revista movimento 3

65

Upload: fuzzy-systems

Post on 31-Mar-2016

230 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Desafios da noite. Falta de mobilidade desperdiça o potencial noturno das cidades

TRANSCRIPT

1NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

e d i t o r i a l �

O adjetivo “solar” é usado figurativamente para descrever

vitalidade e criatividade. Uma personalidade solar indica iniciativa e

capacidade de empreendimento, enquanto o noturnal, notívago ou

simplemente noturno é em geral associado a triste e taciturno. O

senso comum, porém, não dá conta das sutilezas do coração

humano, que insiste em desmentir idéias definitivas. Se a noite rejei-

ta o brilho solar, nem por isso ela deixa de significar atividade, seja

profissional ou lúdica —quem sabe até sonhos, desejos e realizações.

Os ritmos da noite e do dia se misturam e se impulsionam, desafiando

a natureza e modificando o ciclo vital. A humanidade descobre novas

necessidades.

Em fevereiro de 2002, o Institut pour la Ville em Mouvement

reuniu em Paris os mais diversos profissionais para estudar como

as cidades se movimentam quando o sol se põe e propor soluções

originais para quem trabalha em horário noturno ou gosta de

desfrutar o que a noite oferece de melhor. Desde então várias

experiências e iniciativas vêm despontando em todo o mundo. Nova

Iorque é a eterna “cidade que não dorme”; Roma dá o exemplo com

sua “Notte Bianca”, na qual promove eventos noturnos nos mais

diversos bairros e distritos, abrindo também seus museus e lugares

históricos. E nós brasileiros, o que fazemos?

A MovimentoMovimentoMovimentoMovimentoMovimento se debruça nesta nova edição sobre um assunto

cada vez mais caro aos centros urbanos: a mobilidade e a acessi-

bilidade noturnas. Algumas cidades brasileiras já despertam para a

sua importância na vida das pessoas e da comunidade e começam

a se estruturar para criar mais facilidades de circulação e permitir

que as atividades noturnas façam parte de sua rotina, estimulando

as trocas, os encontros, a ocupação dos espaços urbanos. Enfim, a

própria cidadania.

Jurandir F . R. FernandesPresidente da ANTP

REVISTA MOVIMENTOMOVIMENTOMOVIMENTOMOVIMENTOMOVIMENTO,,,,,mobilidade & cidadaniamobilidade & cidadaniamobilidade & cidadaniamobilidade & cidadaniamobilidade & cidadania

ano II • número 3

Editora MultiletraAv. Ataulfo de Paiva, 341/302

Leblon • CEP 22.440-030Rio de Janeiçro • RJ

[email protected]

REDAÇÃO

Diretor de redaçãoSilvio Rabaça

EditorAziz Filho

Editora assistenteMaria Claudia Oliveira

RevisoraTereza da Rocha

EstagiáriaMaria de Freitas

MARKETING

Suzy Balloussier

COORDENADORA DO PROJETO

Cristina Badini

Secretária ExecutivaClaudia Montero

ARTE

Ampersand Comunicação Gráfica([email protected])

DesignersRaquel Teixeira

Claudia FleuryCarlos Henrique Viviane

Luiz Baltar

PUBLICIDADE

Claudia Montero([email protected])

GRÁFICA

KITMais Comércio & Serviços

TIRAGEM10.000 exemplares

ANTP

Associação Nacional de Transportes PúblicosAlameda Santos, 1000 • 7º andarCEP 01418-100 • São Paulo • SP

Tel.: (11) 3371-2299E-mail: [email protected]

Site: www.antp.org.br

PresidenteJurandir F. R. Fernandes

Vice-PresidentesCésar Cavalcanti de OliveiraCláudio de Senna Frederico

José Antônio Fernandes MartinsLuiz Carlos Frayze David

Otávio Vieira da Cunha FilhoRogerio Belda

SuperintendenteNazareno Stanislau Affonso

Coordenadora de ComunicaçãoCristina Badini

A revista Movimento, mobilidade & cidadania é umapublicação da Associação Nacional de TransportesPúblicos - ANTP, editada pela Editora Multiletra.Os artigos e matérias assinadas são de responsabi-lidade de seus autores. Todos os direitos reservados.

CASA DA MOBILIDADE CIDADÃ

2 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 2

i n t e r n e t 4Idas e vindas no OrkutUm ponto de encontro virtual com toda liberdade de expressão

p e d a l a n d o 6Expresso pedalEmpresas adotam a bicicleta em sistema de entregas expressas

c i d a d e s 10A revolução de Bogotá

Know how brasileiro é adotado na capital colombiana, que setornou modelo no transporte público

e n t r e v i s t a 14Enrique PeñalosaO ex-prefeito de Bogotá fala sobre a mudança de paradigmasna gestão da cidade

g a s t r o n o m i a 18Esquinas saborosasRuas brasileiras também podem ser excelente opção gastronômica

i d é i a 24Transporte público: acessível para quem?Cidades brasileiras não têm regras claras para facilitar a vida depessoas com mobilidade reduzida

c o m p o r t a m e n t o 40Faixa não é enfeite - Inovações facilitam prevenção de acidentes,mas ainda falta segurança para o pedestre

c o m b u s t í v e l 46GNV: um sonha ainda distantes - Substituição do diesel pelo gás naturalveicular nos ônibus brasileiros ainda tem obstáculos a serem vencidos

Crônica 50O ônibus do Bussunda

m ã o d u p l a 52Radares eletrônicos reduzem acidentes de trânsito?

e x p a n s ã o 54A rede cresce - expansão do metrô de São Paulo

a t l a s 58Berlim - Transporte público ajuda a integrar cidade,que completa 15 anos de reunificação

a r q u i v o 60O transporte no Recife antes das pontes e da poluição

r e s e n h a 62Livro: O mapa que mudou o mundo/Filme: Uma amizade semfronteiras

ovimento

MO

BIL

IDA

DE

&

C

IDA

DA

NIA

Capa: Toni Escalante

Imobilidadenoturna

Um problema de milhões: deficiência

no transporte público dificulta a vida

de quem quer e quem precisa sair à noite

e prejudica a economia das cidades30m

3 OUTUBRO 2004 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

4 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

i n t e r n e t

Idas e vindasno Orkut

e você se co-

necta à inter-

net, muito pro-

vavelmente já

foi convidado para se cadastrar

na última coqueluche da re-

de. Criado pelo doutorando de

ciência da computação Orkut

Buyukkokten, ligado ao Goo-

gle, o Orkut é uma sala de

visitas virtual que tem como

objetivo aumentar o número

de amigos do usuário e per-

mitir o reencontro de gente

que não se vê há anos. Mais

do que isso, possibilita a troca

de idéias em suas diversas co-

munidades temáticas, como a

de transportes públicos. Há

muita gente discutindo seria-

mente a logística do setor, o

sistema de pedágios e outros

temas técnicos e acadêmicos,

mas os palpiteiros do Orkut se

dedicam mais a falar sobre as

P O R H E I T O R P I T O M B O

linhas de ônibus favoritas, pi-

char a malha ferroviária ou

cultuar o metrô.

Os ônibus são os que mais

inspiram a criação de comuni-

dades. Em uma delas, chamada

Ando de ônibus, e daí?, o porto-

alegrense Luiz Felipe diz que

pegar um T4 às sete da matina

é uma experiência “essencial”:

“Lá dentro acaba-se fazendo

parte de uma massa homogê-

nea. Você não sabe onde co-

meça o seu corpo e onde ter-

mina o da pessoa ao seu lado.

Nem precisa se segurar: nin-

guém consegue se mexer lá

dentro mesmo!”, exagera o

gaúcho. A carioca Sabrina Ca-

razza faz parte do grupo e de-

fine o uso do coletivo como

uma terapia. “Gosto de andar

de ônibus porque esqueço os

meus problemas e literalmente

relaxo, pois não há nada a fa-

zer.” Usuária fiel, Sabrina não

deixa de apontar problemas.

“O preço das passagens ainda

é muito salgado. As promessas

do bilhete único feitas na cam-

panha eleitoral foram boas,

mas pelo visto vamos conti-

nuar pagando caro”, reclama.

Na comunidade Eu ado-

ro ônibus, o também carioca

Wendel Nogueira demonstra

sua paixão num de seus posts.

Ele lembra que, desde os qua-

tro anos de idade, reparava nos

códigos das linhas, nas pin-

turas dos carros e nos mode-

los. Indo para a escola, sempre

escolhia os tipos nos quais

queria embarcar. É um aficio-

nado: “Lembro que me apai-

xonei pelo Thamco Águia

quando foi lançado, em 1987.

Ficava horas fazendo minha

mãe esperar no ponto para an-

dar nele. Quando vinha um

S

MA

RIO

B

AG

5NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

Águia da Volvo, então, era o

auge!”

Outras pessoas nutrem

fascínio pelos eventos pito-

rescos que podem ocorrer na

condução. É o caso da curi-

tibana Leticia Diniewicz, cria-

dora da comunidade Ouvindo

conversas no ônibus, que sem-

pre adorou escutar o papo de

desconhecidos. Já ouviu diver-

sas histórias. As mais recor-

rentes, segundo ela, são as

dos velhinhos que, a cada

esquina, recordam como era

a cidade antigamente. “O

maior número de comentários

é sobre crianças que vomitam

no ônibus. Há também mui-

tas histórias de pessoas que

se apaixonaram por alguém

num coletivo.”

As figuras que freqüentam

os lotações também são víti-

mas de comentários veneno-

sos em comunidades como Eu

odeio baleiro de ônibus, na qual

seu impiedoso criador afirma

não agüentar mais ouvir ex-

pressões como “desculpe inco-

modar a sua viagem”, “não es-

tou traficando nem roubando”

ou “três canetas pelo preço de

uma”. Os personagens mais

citados são, naturalmente, os

condutores, atacados em vá-

rias comunidades chamadas

Eu odeio motoristas de ônibus.

O metrô também pode ser

objeto de adoração e ódio. Na

comunidade Metrô de São Paulo,

a malha paulista é tida por um

dos seus integrantes como

“uma das poucas aplicações de

impostos que dão certo”. Ela

registra episódios pitorescos,

como o relato de um passa-

geiro da Linha Azul (norte-

sul). “Uma vez eu estava den-

tro do metrô, olhando pela

janela, quando vi lá fora um

sujeito cabeludo usando ócu-

los escuros e vestindo uma

calça bizarra olhando para o

nada. O metrô partiu, seguiu

para a estação seguinte e,

quando parou, o cara estava lá

também, com a mesma calça

bizarra, o cabelo e os óculos,

na mesma posição! Com cer-

teza era um fantasma.”

Não faltam relatos ou co-

mentários insólitos, mas em

comunidades como Metrô Rio

(Eu quero um lugar) há muitas

reclamações sérias sobre a falta

de estrutura para dar vazão

aos milhares de passageiros.

Com bom ou mau humor, os

brasileiros desejam mesmo é

melhorar a qualidade de suas

idas e vindas pela cidade. ■

O que é? | O Orkut — www.orkut.com — é um site que funciona

como central de relacionamentos e geralmente conecta grupos de

amigos ou pessoas com interesse nas comunidades temáticas,

que podem ser abertas por qualquer um dos membros do Orkut.

Para ser membro, o interessado precisa de ser convidado.

Como criar uma comunidade? | Entrando no site, clique em

“comunities” e, bem no pé da página, em “create”. Preencha um

pequeno cadastro e, ao clicar novamente em “create”, terá criado

mais uma comunidade no Orkut.

6 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

p e d a l a n d o�

Expresso pedal

s vantagens

para quem

adota a bici-

cleta como

meio de transporte no dia a dia

são bem conhecidas. É uma al-

ternativa eficiente ao trans-

porte motorizado, não polui,

faz bem à saúde e estimula a

integração social. A novidade

é que a magrela passou a ser

uma forma ambientalmente

sustentável de ganhar dinhei-

P O R M A R C O S M A C H A D O

ro, como mostram duas em-

presas que adotaram o veículo

para fazer entregas expressas

em São Paulo e no Rio de Ja-

neiro.

A primeira surgiu em São

Paulo em 1998, prometendo

entregas em até uma hora a

partir da coleta, mesmo se pre-

cisasse cruzar a cidade da Ave-

nida Paulista até Santo Amaro

no rush. A promessa ambiciosa

da Bike Courier, no início, não

foi levada a sério. “Não

acreditavam que pudéssemos

superar os motoboys”, lembra

o sócio Flávio Meireles. Aos

poucos, o conceito ganhou

espaço e credibilidade, em

grande parte graças a uma bem

sucedida manobra de mar-

keting: os ciclistas passaram

a subsidiar a rádio Eldorado

com informações sobre o

trânsito. O fortalecimento da

consciência ecológica no mer-

A

Cresce a procura por

empresas ecologicamente

corretas dos ‘bike boys’

6 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

7NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

cado corporativo atraiu clien-

tes como Votorantim, Ig, Bra-

silinvest e Forma Academia.

O preço também é um forte

apelo. As firmas que operam

com motociclistas, conta Flá-

vio, cobram por hora – no míni-

mo duas – para cada remessa.

Com a entrega em até uma ho-

ra, o custo cai pelo menos à

metade: R$ 9,00 é o preço ini-

cial do serviço na Bike Courier.

A empresa, que começou com

três ciclistas e poucos pedidos,

dispõe de 35 mensageiros para

atender a uma média de 50 cha-

madas na Grande São Paulo.

A Cicle surgiu em 2002 no

Rio com dez ciclistas e en-fren-

tou menos desconfiança do que

sua colega paulista por causa

da forte cultura ciclística da

cidade. O Rio tem a segunda

maior malha de ciclovias da

América Latina, com 140 qui-

lômetros (a maior é de Bogotá,

com o dobro). A empresa já

atende o centro, a zona Sul e a

Tijuca (zona Norte). O número

de funcionários dobrou e os

pedidos são de pelo menos cem

diários, chegando a 2 mil quan-

do há distribuição de convites

para grandes eventos. Os pre-

ços começam por R$ 5, para

entregas no mesmo bairro. Re-

centemente, foi instituída uma

parceria com a Oi. Em troca do

equipamento de comunicação,

os ciclistas estampam a marca

da empresa de telefonia celular

em suas camisas.

Inspiração naDinamarca

Depois de anos trabalhando na

Espanha como editora e

designer de moda, Denise

ansiava por um negócio

próprio com viés social. Seu

marido, o artista plástico

Peter Neusch, sugeriu a

criação da empresa nos moldes

das existentes na Dinamarca,

sua terra natal. “O negócio

nos permite interagir com as

pessoas e mostrar que é

possível viver melhor nas

cidades”, justifica. A Cicle

nasceu associada ao Instituto

Pedalando para salvar ou matarPedalando para salvar ou matarPedalando para salvar ou matarPedalando para salvar ou matarPedalando para salvar ou matar

O uso da bicicleta em atividades profissionais não se

restringe ao ramo de entregas ou ao policiamento,

outra finalidade comum, principalmente na Europa. Em

Londres, ainda em caráter experimental, há um serviço

de bicicletas-ambulâncias. Seis paramédicos em bikes

equipadas com luz de prioridade, sirenes, desfibrilador

cardíaco e máscara de oxigênio vão atuar na área central

em um quilômetro ao redor de Leicester Square,

Trafalgar Square, Soho e Covent Garden. Prestarão

atendimento rápido a pacientes em estado crítico, como

vítimas de ataque cardíaco que estão em vias conges-

tionadas ou ruas de pedestres. Outra equipe com cinco

paramédicos está a postos no aeroporto internacional

de Heathrow para emergências. É o segundo aeroporto

do mundo a contar com o atendimento. O primeiro foi o

de Vancouver, no Canadá.

Militares também usam bicicletas profissional-

mente. Embora o exército da Suíça tenha anunciado a

extinção de seu batalhão de ciclistas de montanha em

2003, a bicicleta continua tendo uso militar, mais

exatamente pelos paraquedistas dos Estados Unidos

na guerra do Iraque. Eles saltam do avião com um

modelo dobrável da Montague às costas, que pode ser

usado para deslocamentos entre os combates.

8 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

p e d a l a n d o�

[email protected]

Grupo de Trabalho de

Bicicletas da ANTP

www.bikecourier.com.br

www.cicle.com.br

Página das empresas de

ciclistas mensageiros

www.adventureofbike.hpg.com.br

Página sobre ciclistas

mensageiros de São Paulo

www.bicicletada.org

Página oficial do movimento

Bicicletada – que promove a

discussão sobre o uso de

meios de transportes não

motorizados

www.uspsprocycling.com

Equipe de ciclismo profissional

do serviço postal dos EUA. –

O pentacampeão da volta da

França, Lance Armstrong, é

um de seus 25 integrantes.

www.londonambulance.nhs.uk

Site oficial do London

Ambulance Service

www.museuda-bicicleta.com.br

Museu em Joinville (SC),

conhecida como “cidade das

bicicletas”, que possui 16 mil

exemplares - inclusive três da

bicicleta de montanha do

exército suíço.

www.militarybikes.com

Site das bicicletas militares

da Montague

S A I B A M A I SS A I B A M A I SS A I B A M A I SS A I B A M A I SS A I B A M A I S

Ethos de Empresas e Respon-

sabilidade Social e fez uma

parceria com a Federação Ca-

rioca de Bicicross, que rendeu

emprego para dois atletas e

um projeto para implantar o

Dia Internacional Sem Carro

no Rio de Janeiro. A iniciativa

foi aprovada pela Prefeitura

este ano, mas ainda não saiu

do papel.

O maior problema das em-

presas pioneiras é o mesmo

que atormenta milhões de ci-

clistas no país: o desrespeito

no trânsito. “Os carros jogam

em cima, fazem o ciclista subir

a calçada e ainda xingam”,

conta Flávio. Apesar dos ris-

cos, a empresa paulista nunca

teve um acidente sério; a do

Rio teve um. “Fui atropelado

há um mês, mas só luxei o

braço”, conta Fábio Rosa de

Oliveira, um dos ciclistas-

mensageiros da Cicle. Roubos

aconteceram poucos, geral-

mente das bicicletas ou partes

delas.

Alguns clientes só des-

cobrem que o serviço foi feito

por bicicleta ao ver a roupa do

bikeboy. Os problemas decor-

rentes do pioneirismo do ser-

viço vão, pouco a pouco, desa-

guando em soluções criativas.

Há prédios que não permitem

o ingresso de bermuda, ves-

timenta mais apropriada para

o esforço. Por isso, uma calça

sempre está na mochila. Fábio

Rosa conta sobre um local em

que ocorre exatamente o

inverso. “Há um escritório de

arquitetura em que a maioria

é de funcionárias. Lá, a calça é

que foi proibida”, brinca,

orgulhoso. ■

A carioca Cicledobrou o númerode ciclistas desdesua fundação,em 2002, echega a receber2 mil pedidosde entregaspor mês

9NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

anúncio Levorin

10 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c i d a d e s�

A capital da Colômbia está

localizada de forma privilegiada

no lado oriental da Cordilheira

dos Andes, a uma hora de vôo

dos oceanos Atlântico, Pacífico

e do Mar do Caribe. Não tem estações muito

definidas, oferecendo uma agradável temperatura

que oscila entre os 9° e os 22°, com períodos de

seca e de chuva que se alternam durante o ano.

Situada 2.640 m acima do nível do mar, Bogotá

tem 7 milhões de pessoas e conta com bela

arquitetura colonial, que convive com edificações

modernas e arrojadas. Com tantas qualidades, é

mais conhecida pela violência e a visão que

muitos têm dessa metrópole sul-americana é de

desordem, graças à ação do narcotráfico e a

mazelas como a falta de ordem no trânsito e o

transporte de péssima qualidade, com altos

índices de acidentes e mortes.

O mundo pode não ter prestado muita aten-

ção, mas as coisas andaram mudando na terra

de Gabriel García Marques e o velho estereótipo

da capital colombiana já não se encaixa nos dias

de hoje. No dia 6 de setembro do ano passado,

Bogotá fez jus ao prêmio Cidades pela Paz, con-

ferido pela Unesco em reconhecimento a projetos

Abem sucedidos e esforços de autoridades e

moradores, muitas vezes em contextos difíceis,

em prol da cultura e da harmonia urbana.

O que mudou

A violência em Bogotá vem diminuindo, os

números de mortos e feridos no trânsito tam-

bém caem, a cara da cidade mudou. A partir da

implantação do Projeto Trasmilênio, em 1999

houve uma mudança no próprio conceito de

cidade. Corajosamente, o então prefeito, Enri-

que Peñalosa, resolveu mostrar que o espaço

urbano ideal privilegia seus habitantes, não os

veículos. Deve ser democrático, com acesso ao

espaço público de forma igualitária para todos,

com muito verde, calçadas amplas e locais de

lazer nos bairros pobres.

Partindo dessa filosofia, foi adotado o sis-

tema pico & placa, que restringe o tráfego de

veículos particulares no centro por duas horas,

nos períodos mais movimentados da manhã e

da noite. Carros estacionados sobre as calçadas,

antigo costume dos motoristas de Bogotá e de

certas cidades de outro conhecido país tropical,

P O R: T Â N I A M A R A

Transmilenio:um projeto detransporte nocentro datransformaçãoque valeua Bogotá oprêmio Cidadespela Paz,da Unesco

A revolução deBogotáA revolução deBogotá

11NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA 11

passaram a ser rebocados. Um investimento na

casa dos US$ 300 milhões contemplou também

iluminação pública, construção de calçadas,

parques, bibliotecas e escolas em bairros pobres.

Inspirado no sistema de transporte de Cu-

ritiba e com participação de técnicos brasileiros,

foi criado um projeto utilizando o ônibus como

transporte de massa, uma solução questionável

em outros contextos mas economicamente pos-

sível para a realidade de Bogotá. Rodando em

faixas segregadas, veículos articulados, com pa-

radas em estações modernas equipadas com ca-

tracas eletrônicas, passaram a operar integra-

dos a um sistema alimentador, que parte dos

diversos bairros.

Por que transporte rodoviário?

Um dos conceitos que levou à escolha de um

transporte de massa sobre pneus foi a econo-

mia. A construção de um metrô seria uma solu-

ção muito cara e mais demorada. A idéia de

buscar caminhos específicos para resolver pro-

blemas próprios da cidade também pesou. Os

técnicos levaram em conta questões reais do

dia-a-dia de um país em desenvolvimento, como

a minguada renda per capita, os problemas liga-

dos à pobreza e os hábitos mais gregários da

população. Evitaram copiar modelos de países

desenvolvidos e cidades com perfis diferentes.

O diferencial do Transmilênio, hoje apon-

tado como exemplo positivo em todo o mundo,

é a concepção de que um sistema de transporte

é capaz de gerar toda uma estrutura urbana.

Houve a consciência, por parte de seus cria-

dores, de que uma política de transporte não é

mera ferramenta para resolver problemas de

congestionamentos de veículos, mas fator in-

dutor de qualidade de vida. Ela pode determinar

o tipo de cidade em que se pretende viver. Em

vez de mais vias e obras de engenharia para

privilegiar automóveis, criaram-se alternativas

para pedestres e ciclistas e procurou-se oferecer

um transporte público de qualidade para que

as pessoas pudessem deixar seus carros em

casa, deslocando-se, em trajetos rotineiros, no

transporte coletivo.

Uma cidade mais igualitária

As pistas de rodagem costumam ser cons-

truídas nos locais onde os preços dos terrenos

são mais acessíveis, justamente onde se concen-

tram as pessoas das camadas de menor renda

da população. Essas vias deterioram comple-

tamente a qualidade de vida das pessoas, expõe

todos a riscos de atropelamentos e à convi-

Bogotá: menores índices de violência e valorização urbana

Espaço público passa a privilegiar os habitantes, não os veículos

12 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c i d a d e s�

vência com mais ruído, fumaça, menos verde.

Quanto mais velocidade as pistas permitem,

maiores os prejuízos ao entorno, ressalta o

economista Peñalosa. Com o tempo, tornam-

se verdadeiras barreiras para os moradores. No

caso do Transmilênio, as áreas ocupadas pelas

comunidades mais pobres foi melhorada, com

a construção de locais de lazer para os mora-

dores. Em muitos casos, as ruas – utilizadas

pelo pequeno percentual que pode ter um carro

– permaneceram sem calçamento, mas foram

construídas calçadas para os pedestres. Um

parque de 45 quilômetros lineares surgiu onde

estava prevista a construção de uma rodovia.

Os moradores dessas comunidades passaram a

ter acesso a ônibus novos, alimentadores, que

os levam a estações onde podem tomar os ôni-

bus articulados. O preço da passagem custa

um pouco mais do que a tarifa anterior, mas dá

direito ao uso integrado.

As transformações de Bogotá não foram ape-

nas em relação à mobilidade humana. O Transmi-

lênio mexeu com a auto-estima e tornou a cidade

mais igualitária. Numa época em que se questiona

o alcance do acesso ao transporte em países como

o Brasil – em que as camadas mais baixas da

população se tornam cada vez mais imóveis por

não terem condições de pagar as tarifas – o cida-

dão de Bogotá ganha um transporte de qualidade,

sem agressões ao meio ambiente, e vias seguras e

cuidadas para pedestres e ciclistas. Talvez seja a

hora de muitas outras cidades do mundo busca-

rem soluções mais humanas para os seus proble-

mas, sejam eles de transporte ou não. ■

13NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

14 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

� entrevista KATIA BORN

ENRIQUE PEÑALOSA

Bogotá chamou a atenção do mundo ao receber, recentemen-

te, o prêmio Cidades pela Paz, da Unesco. A conquista foi

resultado não de uma política de segurança pública, mas de

um trabalho maior, voltado para aspectos sócio-culturais e

econômicos, que começou com a fiscalização de venda de be-

bidas alcoólicas a menores e a

implantação de uma cultura ci-

dadã. Curiosamente, um proje-

to de transporte – o Transmi-

lênio – esteve no centro da mu-

dança. O ex-prefeito Enrique

Peñalosa, que implantou o pro-

jeto, falou a Movimento sobre

a forma como as medidas ele-

varam a qualidade de vida, con-

tribuindo para a harmonia

urbana.

e n t r e v i s t a

15JANEIRO/FEVEREIRO 2004 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

Mudandoparadigmas

P O R A L E N C A R I Z I D O R O

O que é o Transmilênio?

É um sistema integrado de transporte de massa, com base em ônibus articulados.

Foi inspirado em Curitiba, aprimorado por engenheiros brasileiros e adaptado a

Bogotá. É muito mais barato que um sistema de metrô, leva hoje mais

passageiros por quilômetro do que 90% dos metrôs do mundo.

E o transporte alimentador, como funciona?

Existem ônibus comuns por toda a cidade, atuando como alimentadores. São

operados por empresários contratados, que recebem basicamente por quilômetro

percorrido.

Como era o transporte em Bogotá?

Absolutamente caótico, louco, com um número enorme de operadores travando

verdadeira guerra pelos passageiros. Havia muitas mortes no trânsito,

principalmente de pedestres e ciclistas. Circulavam ônibus com até 30 anos de

existência, outros chegavam a ter 4 milhões de quilômetros rodados.

Além da melhoria do trânsito e da redução de acidentes, em que o

projeto mudou a vida da cidade?

Pelo grande poder simbólico, provocou uma mudança cultural ao mostrar

claramente que o interesse geral vem antes do particular. Ao se dar prioridade

no uso da via ao transporte público, tornou a cidade mais democrática. No

espaço público, todos sentem-se iguais. O ônibus também passou a ser visto

como um transporte de qualidade, desvinculado da idéia de pobreza. E a população

economizou tempo e dinheiro, pois 45% dos passageiros usam o alimentador e,

depois, o Transmilênio, pagando apenas uma tarifa.

16 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

� entrevista KATIA BORN

“provocou uma mudança cultural ao mostrar claramente que

o interesse geral vem antes do particular”

Como ocorreu essa mudança de paradigma com relação ao ônibus?

Para começar, mudamos a terminologia. Hoje o passageiro diz “vou tomar o

transmilênio”, que percebe como um produto distinto. As linhas passam também

por áreas nobres, reforçando a idéia de que é um transporte para todos, pobres

e ricos. A restrição aos automóveis no centro e a boa qualidade do transporte

também contribuíram.

O que torna o Transmilênio a contribuir para a paz social?

Cerca de 40% dos investimentos foram feitos em alterações do espaço público.

As áreas públicas tornaram-se seguras, agradáveis, com vias exclusivas para

pedestres, ciclovias, largas calçadas, bibliotecas, parques. Chegamos a eliminar

vias para desenvolver um parque linear, com 45 quilômetros de verde, em uma

área pobre para a qual estavam projetadas mais pistas de rodagem. Hoje os

moradores de Bogotá gostam muito mais da cidade, têm orgulho dela.

E os recursos para a implantação? De onde vieram?

Houve a implantação, por lei, de uma taxa sobre a gasolina, de 5%. Isso garantiu

cerca de 25% dos recursos. O Governo federal assumiu o restante, investindo

na infra-estrutura: vias, estações, garagens.

O projeto humanizou Bogotá?

Sim. Tanto que o governo federal está criando mais cinco projetos semelhantes:

em Barranquilha, Cartagena, Pereira, Cáli e Bucaramanga.

As políticas que privilegiam o automóvel, em países em desenvolvimento

como a Colômbia ou o Brasil, são socialmente justas?

São muito injustas, pois dirigem recursos que vieram também dos mais pobres,

através de tributos, para resolver engarrafamentos criados pelos mais ricos. A

qualidade de vida de uma área é diretamente proporcional ao tamanho do espaço

dedicado ao pedestre e inversamente proporcional à velocidade em que se movem

os carros. Infelizmente, as pistas de alta velocidade são feitas, via de regra,

exatamente nos locais mais pobres, onde os terrenos são mais baratos.

17JANEIRO/FEVEREIRO 2004 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

A classe média costuma reagir negativamente a medidas restritivas

ao automóvel. Em Bogotá, o senhor provocou fortes reações com o

Transmilênio. Em que momento foi revertido esse impacto negativo?

Realmente, chegaram a pedir o meu impeachment. Mas quando os resultados

foram aparecendo as pessoas mudaram de opinião. Em março de 2001, eu tinha

85% de aceitação.

O que caracteriza uma boa política de transporte?

Em vez de tentar resolver, a curto prazo, problemas de

congestionamento, criando mais vias, devemos pensar: como

queremos viver? Não podemos falar de uma política de transporte

se não sabemos quais cidades queremos, pois os sistemas de

transporte criam modelos de cidade. A pergunta não é “que tipo de

transporte queremos” , mas “como queremos viver em nossas

cidades?”

E como podemos ter boas cidades?

Qualquer urbanista hoje tem dois desejos principais: prioridade

para o transporte público e cidades densas. Nós, de países como

Colômbia e Brasil, ainda podemos mudar nossas cidades, fugir dos

modelos norte-americanos, criando soluções de acordo com nossas

realidades.

Como está o Transmilênio hoje?

Temos 56 quilômetros em operação, com um grande terminal que

conta com espaçoso estacionamento e bicicletário. Estão em

construção outros 50 quilômetros, devendo começar a funcionar

em um ano. E virão outras etapas, até 2020, quando 85% das

moradias de Bogotá estarão a menos de 500 metros de uma estação

do Transmilênio. Esta é a meta.

“A qualidade de vida de uma área é diretamente proporcional

ao tamanho do espaço dedicado ao pedestre e inversamente

proporcional à velocidade em que se movem os carros”

18 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

g a s t r o n o m i a�

comida do brasileiro está no

olho da rua. Mas muito bem

empregada, seja em Salvador,

onde o acarajé integra a paisa-

gem e o cardápio de todos os

santos, ou no prato principal dos campos

gaúchos – levado em forma de miniatura para

o Centro de Porto Alegre, onde os espetinhos

assados em carrinhos com infra-vermelhos

mantêm acesa, mesmo sem brasa, a tradição

gaúcha. O gosto de churrasquear, aliás, se

espalhou no braseiro de todo o país: em qual-

quer porta de botequim, praça, esquina mo-

vimentada, festa de candidato a vereador, lá está

o espeto com carnes variadas. De gato, não.

Dele só ficou o apelido do churrasquinho de

rua no Rio de Janeiro.

Nas ruas cariocas, aliás, onde são vendidas

comidas típicas de todo o Brasil, foi que in-

ventaram a iguaria do x-tudo, inspirada no

cheeseburger. Consiste em duas bandas de pão

redondo e tudo que couber entre elas: queijo,

A

P O R: M Ú C I O B E Z E R R A

Esquinas saborosas

As delícias da comida

de rua nas cidades

brasileiras

hamburger, alface, milho verde, azeitonas,

ervilhas, maionese, tomate, ketchup, mostarda,

queijo ralado, molhos diversos... Tudinho por

R$ 1 a R$ 1,50, com direito a um copo de refri-

gerante popular grátis para ajudar na condução

do gigante ao leito do estômago. Sem contar a

pipoca, o amendoim, o algodão-doce, o puxa-

puxa, a cocada, os churros, a papa de milho, o

queijo de coalho assado, o espeto de camarão,

o jamelão, o cajá, a carnaúba, a pitomba... ufa!

O sal de frutas.

Na Bahia, o Acarajé, uma comida-de-santo,

está disponível em qualquer esquina para os

reles mortais. E lá está de prova todos os dias,

no Largo do Farol da Barra, a legítima baiana

de tabuleiro Tânia Bárbara Mary, 39 anos. Tânia

“Nasci dentro do acarajé”, resume Tânia do Farol,artesã do tabuleiro. Ela potencializa a tradição dafamília baiana e merece o certificado “ISO novemil e hummm!!!”

LUC

IAN

O

MA

TO

S

19NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA 19NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

20 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

g a s t r o n o m i a�

do Farol, como é conhecida, não é apenas uma

cozinheira de quitutes, mas uma artesã do

tabuleiro, profissão que passa de mãe para filha

desde os tempos de sua avó. A filha de Tânia,

Ana Cássia, 21 anos, aprendeu ainda menina

as técnicas criadas por escravas para trans-

formar a massa à base de feijão numa delícia

que tem cheiro e gosto da Bahia. “Nasci dentro

do acarajé”, diz Tânia, com todo aquele sorriso

de baiana de tabuleiro, mas sem o mesmo peso

que essa típica figura das ruas de Salvador tinha

antigamente: ela mantém a forma praticando

capoeira e jiu-jitsu. Em dias de santos, que

são muitos, cumpre com seus trabalhos no

terreiro. E no dia-a-dia segue rigorosamente

as regras de higiene aprendidas num curso

patrocinado, no ano passado, pelo Sebrae, o

Sesi, o Senai e a Agência Nacional de Vigilância

Sanitária, idealizadora do projeto Acarajé 10.

O resultado não podia ser outro: Certificado?

ISO nove mil e hummm!!!

Tânia vende seus quitutes a R$ 2 (o sim-

ples), R$ 2,50 (com camarão) e R$ 3 (com

camarão, vatapá, caruru), das 17h30m à meia-

noite. Em dia mais movimentado, vai até uma

da manhã, ajudada pela filha Ana Cassia e o

filho Anderson, 18 anos. Eles parecem seus

irmãos mais novos, porque Tânia se casou

muito jovem, com 14 anos. Depois, separou-

se do marido. “O acarajé é a nossa vida. Minha

mãe também se casou nova, teve 15 filhos, qua-

tro morreram logo e 11 foram criados no ta-

buleiro”, diz, com orgulho.

Na panela cheia de Brasil, a iguaria que

ganhou gosto em todos os estados foi mesmo

o churrasquinho no espeto, até no lugar sa-

grado do churrasco tradicional, o Rio Grande

do Sul. Ainda bem, agradece Jorge Bueno Lucca,

33 anos, um eletricista que ficou desempregado

há dois anos e resolveu driblar o fantasma do

desemprego num carrinho de churrasco. Ca-

sado, três filhos, mulher diarista, Tio Lucca

comprou, depois de um ano na rua e com finan-

ciamento do Banco do Brasil, um carrinho de

três rodas dotado de queimador infra-vermelho

e toldo, especialmente projetado pela prefei-

tura. “Aprendi técnicas de higiene com o pessoal

do Senai, do Sebrae e do Senac. Fiquei muito

satisfeito com a substituição do carvão pelo

infra-vermelho, que evita a fumaça. Aumentei

o valor do churrasquinho de R$ 1 para R$ 1,25

e a clientela cresceu também. Vendo até 120

FER

NA

ND

O

AN

TU

NES

/C

OO

MU

NIC

A

No coração da capital gaúdha, o ex-eletricista JorgeLucca vence o desemprego com um carrinho de churrascoe comemora a chegada do infra-vermelho: menosfumaça, mais fregueses

21NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

por dia”, conta ele, que faz ponto na esquina

das ruas dos Andradas e Borges de Medeiros,

no coração da capital, vendendo para muitos

estudantes universitários e advogados.

O hábito do brasileiro de comer na rua tam-

bém acabou com o desemprego do carioca Car-

los André, 30 anos, casado, dois filhos. Depois

de perder o emprego de copeiro, há dois anos,

ele abriu negócio na esquina da Rua do Ouvidor

com a Avenida Rio Branco, bem no centrão.

Horário de trabalho? Depois que a Guarda

Municipal vai embora, ali por volta das 18h.

Carlos e sua mulher trabalham enquanto há

freguês. Vendem até cem churrasquinhos por

dia, a R$ 1 cada. A cerveja custa R$ 1,50. Em

volta da churrasqueira é montado uma espécie

de bar, com banquinhos. “Já temos freguesia

certa. O melhor dia é sexta-feira, quando isso

fica cheio e nós trabalhamos até de madrugada.

Depois, arrumamos tudo e guardamos num

depósito perto. Pago um aluguelzinho, mas

estou ganhando muito mais do que no tempo

em que era copeiro.”

Mais adiante, na altura da Rua São José, há

outras churrascarias de rua pós-Guarda Muni-

cipal. É ali que o casal de mineiros Débora e

Flávio Belo, pais de um menino de 7 anos e uma

menina de 4, instalam a sua superbarraca rebo-

cada diariamente da Penha, onde moram, para

vender até 600 espetinhos de churrasco, frango

ou salsichão a R$ 1,50. Flávio Mineiro também

trabalhava como copeiro há dois anos, quando,

CA

RLO

S

MA

GN

O

Driblando a Guarda Municipal, o carioca Carlos André montou até banquinhos em volta de seu braseiro: até cem churrasquinhos pordia na histórica Rua do Ouvidor

22 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

g a s t r o n o m i a�

depois de demitido, arranjou emprego melhor

na chapa de um churrasqueira. “Demos a volta

por cima e nossa vida ficou bem melhor. Aqui

só vendemos carne de primeira e, por isso,

temos uma boa e fiel freguesia”, gaba-se Débora.

Um dos mais fiéis é o gerente administra-

tivo de uma empresa de informática, Cléber

Luiz Correia Lima, 37 anos, que pára na chur-

rascaria do Flávio depois do expediente, antes

de voltar para casa, em Maricá. Seu amigo

Édson Cardoso, gerente de banco, morador de

Maricá e vascaíno como Cléber, é figurinha fácil

por ali às sextas-feiras, enquanto espera o

ônibus para voltar para casa. Os dois amigos

elogiam a qualidade do churrasquinho e o bom

ambiente, que atraem a classe média.

A classe média foi tão contagiada pelo cheiro

do churrasco que, em Niterói, para atender à

demanda, Chico e Zacarias Ceará, donos do Bar

Garden’s, em Icaraí, mandaram construir uma

churrasqueira bem na beira de uma das portas,

para atender a clientes como o comerciante de

produtos de informática Flávio Dib. Lá, o

churrasquinho é vendido a R$ 1,75 e R$ 2,25

(com molho). “Comer na rua hoje é uma

tendência e, por aqui, isso já virou moda. No

caso do churrasquinho, vai muito bem para a

roda de cerveja com os amigos”, diz Flávio,

comprovando que a vida nas ruas não é feita só

de pressa, barulho e engarrafamentos, mas

guarda sabores e cheiros muito especiais para

aproximar as pessoas. ■

CA

RLO

S

MA

GN

O

Os vascaínos Cléber Lima e Édson Cardoso, moradores de Maricá, batem ponto na “churrascaria” de Flávio e Débora depois dotrabalho: “carne de primeira e freguesia fiel”, comemora Débora

23NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

� Mais do que fabricar chassis urbanos dealta qualidade, queremos manter sempre umótimo relacionamento com nossos clientes.� Por isso, aqui você tem uma ótima relaçãomotor–benefício: colocamos à sua disposição a motorização eletrônica em nossa linha dechassis desde 1998.

� Aqui também tem uma ótima relaçãodurabilidade–benefício. Resultado? Um chassiresistente. Porque sabemos que essa qualidadeé indispensável para a sua frota.� Relação opção–benefício? Não importa qualmodelo da mais completa linha de chassisde ônibus você escolher, vai sempre contarcom muita rentabilidade e facilidade demanutenção.� E como não poderia deixar de ser, aqui tema melhor relação custo–benefício–cliente–satisfeito. É que os chassis Mercedes-Benzapresentam o desempenho que você semprequis para a sua frota.� É, ficou fácil perceber por que a confiançana marca Mercedes-Benz passa de pai para

filho. Ou de tio para sobrinho. Ou de avô paraneto. Porque aqui tem Mercedes-Benz.� Conheça os novos modelos OF-1722 M e OF-1418 num Concessionário perto de você.� Para obter mais informações sobre osônibus urbanos Mercedes-Benz, acesse osite www.mercedes-benz.com.br ou ligue0800 90 90 90.

Mercedes-Benz, marca registrada do Grupo DaimlerChrysler.

Aqui tem confiança de geração em geração.Chassis urbanos Mercedes-Benz. Durabilidade, economia e tecnologia.

OF-1722 M

24 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

i d é i a

Se a vida do cidadão co-

mum que se desloca pelos

sistemas de transportes pú-

blicos no Brasil já é um mar-

tírio, como ficam os usuários

de cadeira de rodas, os cegos

ou as pessoas de muletas? Pois

é, elas não vão e nem vêm —

elas “ficam”. São anos e anos

de luta pelo direito do acesso

das pessoas com deficiência

aos transportes públicos, prin-

cipalmente os urbanos, mas

até agora o que vemos, de for-

ma geral, são ações isoladas em

algumas cidades que imple-

mentaram uns poucos ônibus

adaptados – a maioria “mal”

adaptada – ou veículos de

transporte exclusivo que não dão conta do

recado. O nível de preocupação e investimento

é zero. Outro dia ouvi de um técnico de uma

das maiores empresas de transporte público do

país que “os deficientes estão mesmo perdidos”.

Infelizmente, ele ainda tem razão. Após tantos

anos de reivindicações e com tanta tecnologia

disponível, por que ainda encontramos esse

quadro de exclusão? E nem entramos ainda no

mérito da dificuldade de idosos, gestantes,

obesos e todos os que têm sua mobilidade

reduzida.

Em primeiro lugar, nunca houve por parte

do Estado brasileiro, de fato, uma estratégia

de investir em políticas públicas com regras

claras e objetivas voltadas à implantação de

transportes coletivos eficientes e dignos. Fo-

ram décadas de estímulo à aquisição do veículo

particular, baseado no modelo norte-americano,

Edison Passafaro é secretário executivo da Comissão Permanente de

Acessibilidade da Prefeitura de São Paulo

i d é i a

Edison Passafaro

Transporte Público:Acessível paraquem?

25NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

voltado à elite e à classe média.

Este comportamento definiu

equivocadamente a política de

transportes de todo um país e

o automóvel se transformou

no maior urbanista do século

20, além do sonho de consumo

dos brasileiros. As cidades e o

comportamento das pessoas

foram se moldando às suas

necessidades. Frente a essa

cultura nacional, o transporte

público passou a ser sinônimo

de transporte ruim, de uso

quase que exclusivo dos me-

nos favorecidos, impossibili-

tados de financiar seus sonhos.

O que restou para a esmaga-

dora maioria – incluindo as

pessoas com mobilidade re-

duzida – foi ser transportada

como gado pelos falidos siste-

mas de transporte públicos,

sucateados, caros e ineficien-

tes, com raras exceções.

Em segundo lugar, a socie-

dade sempre enxergou as pes-

soas com deficiência como

doentes, incapazes, dependen-

tes, improdutivas e confina-

das. Mesmo representando 25

milhões que contribuem com

impostos, consomem, votam e

contam com uma ampla legis-

lação de garantia de seus di-

reitos, inclusive ao transporte

público, essas pessoas não são

respeitadas como cidadãs e

muito menos incluídas priorita-

riamente nas políticas públicas.

Somado o conceito de que transporte pú-

blico é necessariamente ruim ao preconceito

de que acessibilidade é só para pessoas com

deficiência e que estas só freqüentam hospitais

ou instituições especiais, o resultado é que,

quando se pensa em elaborar um plano, as pro-

postas são sempre de disponibilizar ônibus mal

adaptados ou veículos exclusivos que irão,

quando muito, levar uns poucos pobres coi-

tados a seus locais de tratamento. Custam caro

– para a felicidade das empresas concessioná-

rias – e a conta é subsidiada, como caridade

política. Assim os idealizadores se sentem livres

de investir na melhoria do transporte como um

todo e orgulhosos de sua própria “bondade”.

Tendem a achar que fizeram o máximo e que as

pessoas com deficiência não têm do que recla-

mar. Vivem felizes para sempre, sem querer

enxergar que, para quem precisa sobreviver

no mundo dos mortais, a vida continua uma

guerra.

O que restou para a

esmagadora maioria – incluindo

as pessoas com mobilidade

reduzida – foi ser transportada

como gado pelos falidos

sistemas de transporte públicos

26 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

i d é i a

A realidade do transporte

acessível é uma questão de

tempo. Cabe aos gestores

públicos decidirem por caminhar

em sua direção por livre e

espontânea vontade ou por livre

e espontânea “pressão”

Depois de 25 anos combatendo essas

posturas demagogas, politiqueiras e clientelis-

tas, percebo que uma semente de lucidez co-

meça a germinar na mente de alguns profissio-

nais da gestão pública. Talvez porque passaram

a perceber que a população está ficando idosa,

que as pessoas estão cada vez mais obesas e

que a política do carro só aumenta o número

de acidentes com seqüelas irreversíveis. Podem

ter percebido que resgatar o respeito não é mais

questão de consciência, mas de sobrevivência.

O que importa é que resistências estão sendo

vencidas.

De uns anos para cá, passamos pelo menos

a repensar a prioridade do ser humano em re-

lação ao automóvel na reurbanização das ci-

dades. Tentamos incluir na pauta o conceito

de mobilidade urbana a fim de reordenar o

espaço público, otimizando

seus elementos em função de

todos. Desconsiderar a diver-

sidade no planejamento de

edificações, vias, equipamen-

tos, mobiliários urbanos e veí-

culos públicos se torna inacei-

tável. Começamos a intro-

duzir o conceito do Desenho

Universal como ferramenta

básica na construção de po-

líticas públicas de acessibi-

lidade às pessoas com mobili-

dade reduzida (deficientes,

gestantes, obesos, idosos, aci-

dentados temporários etc) e

percebemos a adesão de urba-

nistas ao conceito da “mobili-

dade urbana acessível”.

Para o transporte urbano

em São Paulo, apresentamos

propostas de “sistemas de

transporte acessíveis”, contra-

pondo-as à visão calcificada e

desgastada de “ônibus adap-

tado”. Este novo olhar visa

harmonizar e integrar todas as

ações que garantam acessibili-

dade total ao sistema. Isso sig-

nifica rebaixamento de guias,

comunicação tátil, visual e so-

nora, rampas e equipamentos

eletromecânicos e auxiliares

instalados nos terminais de

embarque e desembarque, nos

pontos de parada, nas cal-

çadas, travessias e mobiliários

urbanos ao longo dos corre-

dores estruturais de trans-

porte, bem como a implemen-

27NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

28 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

i d é i a

tação prioritária de veículos

que garantam embarque em

nível (sem degraus) a todos,

inclusive aos com mobilidade

reduzida, nas linhas estru-

turais. Além disso, a adoção

de veículos de pequeno porte

acessíveis, tipo van, dotados

de rádio comunicador e GPS,

operados para circular regio-

nalmente e coletar os usuários

com mobilidade reduzida em

seus locais de origem, trans-

portando-os dentro das re-

giões ou alimentando as linhas

estruturais, certamente ser-

virão para diminuir o drama

dessas pessoas. Elas estão

impedidas de se locomover

pelas calçadas, em função da

péssima conservação, da

topografia ou de ambas. Outra

possibilidade seriam os con-

vênios com cooperativas de

táxis com veículos acessíveis

para o trabalho regional porta

a porta. Provavelmente o custo

operacional seria menor. Pena

que as propostas não foram

postas totalmente em fun-

cionamento. Acho que faltou

empenho e um pouco de co-

ragem, por parte da secretaria

responsável, para assimilar

possíveis críticas dos acomo-

dados com o sistema cliente-

lista. Mas acredito que avan-

çamos e estabelecemos uma

estrutura lógica que poderá

ser ampliada ou reduzida, de

acordo com a demanda, sem comprometer o

sistema. Hoje outros municípios articulam sis-

temas semelhantes, sinal de que estamos no

caminho certo.

Em 2004, participamos em Brasília de várias

reuniões promovidas pela Secretaria de

Transporte e Mobilidade Urbana do Ministé-

rio das Cidades com setores representati-

vos das pessoas com deficiência, órgãos e

administrações públicas, fabricantes de

veículos e empresas de transportes, entre ou-

tros, visando o consenso para a elaboração de

um plano nacional de acessibilidade nos trans-

portes públicos. No fim do ano, por ocasião

do seminário de transporte acessível do Minis-

tério das Cidades, conhecemos experiências e

propostas regionais. Pela primeira vez, acho

que estamos próximos de depositar esperan-

ças em uma linha de ações exeqüíveis. Na

mesma semana, o presidente Luís Inácio Lula

da Silva assinou o decreto regulamentador

das leis federais 10.048 e 10.098, de 2000, que

estabelecem regras nacionais para a acessi-

bilidade às edificações, vias públicas, comu-

nicação e transportes. O Ministério Público

ganha uma importantíssima arma na fiscali-

zação junto aos governos federal, estaduais e

municipais.

A realidade do transporte acessível é uma

questão de tempo. Cabe aos gestores públicos

decidirem por caminhar em sua direção por livre

e espontânea vontade ou por livre e espontânea

“pressão”. Para os homens de boa vontade, é a

grande oportunidade de construir uma política

coerente, sólida e democrática para que, num

futuro bem próximo, tenhamos um modelo de

transporte público sustentável, eficiente, com

qualidade e acessível a todos os brasileiros,

independentemente de suas características

físicas ou econômicas. ■

29NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

30 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c a p a

P O R E D M U N D O B A R R E I R O S

ImobilidadImobilidade30 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c a p a

31NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

Garçons apressando-se em bai-

xar as portas para tentar pegar

o último trem, boêmios pe-

dindo mais saideiras à espera

do primeiro metrô, pessoas

sonolentas tremendo de frio na madrugada em

um abrigo de ônibus são cenas comuns às

metrópoles. Circular à noite para quem não tem

carro é sempre difícil. Não há trens, os co-

letivos circulam com intervalos maiores e os

táxis, bem mais caros, são a única opção —

quando existem. Mesmo nas cidades com

sistemas eficientes os usuários reclamam do

tempo de espera após determinada hora. “É

inevitável. Como trens e ônibus não podem

ficar rodando vazios a noite inteira, o número

de viagens acaba reduzido”, explica Ronaldo

Balassiano, 49 anos, professor de Engenharia

dos Transportes da Coppe, da UFRJ. O problema

passa despercebido pela grande parte da

Um problema de milhões:

deficiência do transporte

público à noite prejudica

os moradores e a

economia das cidades

e noturnae noturna 31NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

32 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c a p a

população que à noite descansa em casa, mas

muita gente trabalha nesses horários ingratos,

vai às ruas em busca de diversão, visitar parentes

e amigos, ou se desespera em casos de emer-

gência sem ter como chegar ao pronto-socorro.

Isso sem falar na violência, que quando escurece

ganha contornos de síndrome do pânico. A cir-

culação vira privilégio exclusivo de quem possui

automóvel e a imobilidade noturna acaba agra-

vando a exclusão social. A solução do trans-

porte solidário, a carona com os amigos, acaba

sendo a única alternativa, evidentemente res-

trita a setores da classe média.

O desperdício do potencial da economia

urbana e a paralisia da vida das pessoas à noite

não têm produzido, como era de se esperar na

era do conhecimento, muitos estudos espe-

cíficos sobre o tema. Poucos projetos miram o

transporte coletivo noturno como prioridade.

Brasília é um exemplo típico da insustenta-

bilidade de um modelo que precisa ser repen-

sado. Concebida na modernidade dos anos

1950, nossa capital, hoje na casa dos 2 mi-

lhões de habitantes, sempre valorizou o auto-

móvel, complicando a vida de quem não tem

carro. O metrô fecha às 20h e depois das 22h a

freqüência dos ônibus cai muito. Dentro do

Plano Piloto a situação é menos sentida por

quem tem poder aquisitivo e se agarra ao volan-

te, mas a rotina no entorno é difícil. “As cidades

dormitórios têm bom transporte só para levar

as pessoas ao trabalho. Para circular dentro de-

las, só com as vans”, diz o engenheiro florestal

Silvio de Sá, 35 anos, morador da capital.

Quanto maior e mais pobre a cidade, pior a

situação. E quanto mais longe do centro mora

o cidadão, mais grave ainda. “Em alguns lugares,

após determinado horário, há apenas táxis. Em

cidades pequenas com motorização grande, ao

nível de 50 carros para 100 habitantes, o

problema é menor, mas no Brasil o índice está

entre 25 e 30 automóveis por 100 habitantes.

Quem não tem automóvel continua dançando

na história”, diz Balassiano. Os bairros afastados

das regiões metropolitanas são particularmente

prejudicados pela redução e interrupção de

linhas menores ou complementares.

As tentativas de solucionar o problema ge-

ralmente passam pela alteração do itinerário

de algumas linhas. Recife, com mais de 1,5 mi-

lhão de habitantes, recorreu à idéia dos bacu-

raus, ônibus noturnos apelidados em home-

nagem a um pássaro da caatinga que canta à

noite. “Mas o tempo das viagens acaba aumen-

tando e o intervalo entre elas fica maior, às

vezes de até duas horas. E ainda há grande risco

de assalto”, lamenta Inácio França, 39 anos,

diretor de vídeo no Recife.

A volência, quando escurece, ganha contornos de

síndrome do pânico. A circulação vira privilégio exclusivo

de quem possui automóvel e a imobilidade noturna acaba

agravando a exclusão social

33NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

No metrô de São Paulo, a circulação dos trens éinterrompida entre meia-noite e 5h, quando só restamos ônibus para quem não pode pagar os caríssimostáxis paulistanos. “Eles passam, mas com intervalosde mais de uma hora. Eu mesmo dormi várias vezesem pontos de ônibus”, conta Francisco Mastrochirico,38 anos, gerente comercial

No metrô de São Paulo, a circulação dos

trens é interrompida entre meia-noite e 5h,

quando só restam os ônibus para quem não

pode pagar os caríssimos táxis paulistanos.

“Eles passam, mas com intervalos de mais de

uma hora. Eu mesmo dormi várias vezes em

pontos de ônibus”, conta Francisco Mastro-

chirico, 38 anos, gerente comercial. A força do

turismo e a beleza de seus monumentos e

praias iluminados não mudam a situação no

Rio de Janeiro. A menor quantidade de ônibus

e a interrupção dos serviços de trem e metrô,

aliadas à crônica sensação de insegurança,

impõem limites aos hábitos cariocas. “Hoje

trabalho apenas de dia. Antes, quando ia até a

madrugada, tinha de esperar mais de uma hora

pelo ônibus”, conta Afrânio Luiz Gomes, 32

anos, garçom de um restaurante em

Copacabana, na zona sul.

A realidade é comum a várias capitais da

América Latina. Com grandes populações mui-

to pobres e índices altos de violência, a noite

latina é, definitivamente, um desafio. Na Cidade

do México, com quase 20 milhões de habitan-

tes, as dificuldades são proporcionais ao gigan-

tismo. “O metrô funciona relativamente bem,

mas não chega a todos os bairros nem circula

à noite. Os ônibus são pequenos, desconfortá-

veis e raramente rodam depois das 23h, assim

mesmo sem muita segurança”, reclama o editor

César Gutierrez, 35 anos. “Nos anos 90 fui a

um show do Guns & Roses, a dez quilômetros

do centro. Terminou quando o metrô já estava

34 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c a p a

fechado e, como só havia táxis, cobrando US$

40 por uma viagem que deveria custar US$ 4,

voltamos a pé”, lembra, com um toque de

nostalgia.

No centro e nos bairros de maior poder

aquisitivo, o problema é menor. Em Buenos

Aires, com 12 milhões de moradores, há trens

e algumas linhas de ônibus à noite ligando o

centro à periferia, mas nada circulando entre

os bairros afastados. Essa deficiência aumenta

a desigualdade social na Argentina. “Moro em

um lugar onde o transporte é bom. Mas para

quem está afastado dessa região, em alguns

horários, só de táxi, que hoje poucos podem

pagar”, lamenta Deborah Lapidus, 27 anos,

professora de literatura.

A noite dos moradores e dos turistas que

gastam milhões de dólares nas capitais euro-

péias é mais fácil. Projetos criativos, ainda que

imperfeitos, tornam possível circular à noite,

principalmente nos centros e em bairros movi-

mentados. Amsterdã, com apenas 800 mil habi-

tantes, é uma das mais cosmopolitas capitais

européias. É também um exemplo de raciona-

lização dos transportes públicos, com ciclovias

e transportes integrados. À noite há 12 linhas

especiais de ônibus com tarifas diferenciadas

ligando o centro aos bairros. “Elas chegam a

todas as partes. Nunca tive problemas”,

garante Rob Tuin, 39 anos, editor de uma

revista holandesa. Essas linhas saem em

horários calculados para que os passageiros

O problema passa despercebido pela grande parte da

população que à noite descansa em casa, mas muita

gente trabalha nesses horários ingratos, vai às ruas em

busca de diversão

35NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

possam fazer conexões entre elas e com os trens

noturnos. Todos os ônibus têm câmeras de

vídeo para reforçar a segurança.

Na capital espanhola, a solução encontrada

é similar. Madri tem 26 linhas noturnas dife-

rentes das que operam durante o dia para aten-

der a quase 4 milhões de pessoas. Seus trajetos

integram a maior parte da cidade à noite. “Os

ricos andam de táxi, mas não é necessário. De

1h30m às 6h, as linhas sempre nos deixam

perto de casa. Nunca fiquei sem conseguir

chegar a algum lugar”, elogia o biólogo Gus-

tavo Tomás Gutiérrez, 26 anos. Berlim, capital

alemã com 4 milhões de habitantes, segue o

mesmo caminho (leia seção Atlas, p. 58). Hoje

conta com linhas especiais noturnas que

cobrem os horários nos quais o metrô não

circula. Elas funcionam mesmo nos fins de

semana, quando os trens urbanos rodam 24

horas. O resultado disso é uma vida noturna

efervescente, com bares abertos de madrugada

e muita gente nas ruas. Desnecessário dizer o

que isso significa para a economia da cidade.

“As pessoas usam muito os ônibus na madru-

gada, mesmo porque os táxis são caros demais.

E quando estou sem paciência para esperar vou

de bicicleta mesmo”, diz a DJ e baterista

brasileira, Marie Leão, 35 anos, radicada na

Alemanha. Para quem gosta de pedalar, Marie

escolheu a cidade certa para passar suas últimas

férias no Brasil: o Rio de Janeiro, com a maior

rede de ciclovias do país interligando pratica-

mente todos os bairros da zona sul. A falta de

segurança, no entanto, inibe o uso da bike nas

noites cariocas.

Com mais de 10 milhões de habitantes, Pa-

ris se esforça na busca por soluções inéditas.

O serviço de metrô, responsável por quase 50%

do transporte urbano, com 1,3 bilhão de passa-

geiros em 2002, é interrompido entre 1h e 5h,

quando só os Noctambus, linhas especiais, cir-

culam de hora em hora. “Eles são cheios demais

e os parisienses não estão familiarizados com o

itinerário”, diz Antonia Martineau, divulgadora,

40 anos. Quem mora na Paris “intramuros” ainda

consegue voltar a pé para casa, mas o subúrbio

sofre com a falta de ligação com o centro exu-

A DJ e baterista brasileira, Marie Leão, 35 anos, usaa bicicleta quando está “sem paciência para esperar oônibus” em Berlim, onde mora. No Rio de Janeiro,onde passou as férias, a violência desperdiça opotencial da maior rede de ciclovias do país

36 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c a p a

Europa busca soluções

Nos países mais desenvolvidos, a questão da

mobilidade noturna já está em um estágio bem

mais avançado que no Terceiro Mundo.

Algumas cidades e comunidades européias

fazem estudos e apresentam soluções

inovadoras para facilitar a mobilidade noturna.

“Como muitas vezes a administração pública

não se interessa pelo assunto, é fundamental

a participação de ONGs, institutos indepen-

dentes, universidades e associações

comunitárias, que podem começar a envolver

os governos”, conta Tomás Moreira, 40 anos,

coordenador executivo do Institut Pour La Ville

en Mouvement no Brasil, um organismo

dedicado a estimular o debate e a apresentar

soluções para a mobilidade e o transporte.

Fundado há cinco anos, o Ville en Mou-

vement é um dos institutos mais respeitados

do mundo no estudo de mobilidade e trans-

portes. “Se a administração pública muitas

vezes não se interessa, as ONGs, institutos

independentes e as comunidades têm de tomar

as iniciativas e apresentar idéias”, diz Tomás

Moreira. O instituto foi responsável, junto com

a prefeitura de Roma, pela realização do

primeiro Fórum Internacional de Mobilidade

Noturna nas Cidades, realizado na capital da

Itália no ano passado, que reuniu represen-

tantes de cidades européias, operadoras de

transportes, arquitetos, urbanistas,

pesquisadores, estudantes e representantes

de associações que debateram diversas

soluções para o problema.

berante. “Os ônibus que ligam as estações de

trem aos bairros residenciais param às 23h.

Depois, só de táxi para chegar ao banlieu”, diz o

quadrinista Jano, 47 anos, morador de Arcueil,

subúrbio dos mais próximos do centro, onde a

segurança também é um problema. “O metrô à

noite parece assustador, mas é seguro. Já nos

trens de subúrbios há muitos marginais e ne-

nhuma segurança”, reclama o desenhista, que

em seu álbum Paname, sobre a cidade-luz, dedica

algumas obras ao tema.

A atuação e as pesquisas do Institut pour la

Ville en Mouvement (ver quadro) geraram inicia-

tivas originais e eficazes que começam a fun-

cionar em Paris. “Temos serviços de veículos

para buscar jovens em festas de madrugada,

que apanham pessoas em casa com um pequeno

custo adicional. São serviços de demanda

antecipada, nos quais o usuário pode fazer sua

reserva com algumas horas de antecedência”,

explica Tomás Moreira, representante do

instituto no Brasil.

O transporte sob demanda antecipada pode

ser uma boa solução por aqui. “Com o rastrea-

mento de veículos, comunicação com os moto-

ristas e softwares para registrar a demanda, é

possível prestar um serviço eficiente e diferen-

ciado. A possibilidade de reservas pode atrair

para o transporte público pessoas que só usam

o automóvel”, diz Balassiano, que vê aí uma

possível saída para nossas metrópoles, nas quais

segurança e mobilidade são temas indisso-

ciáveis. “É necessário ter boa iluminação, fisca-

lização nos pontos e no acesso aos pontos”, diz

Moreira. O cuidado com os pontos e estações

é mesmo fundamental. “O maior risco em São

Paulo não é o de ser assaltado dentro dos ôni-

bus, mas enquanto os passageiros esperam”, diz

Francisco Masdtrochirico. Na maior cidade bra-

sileira, a simples troca de lâmpadas nas áreas

37NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

I wanna wake up in the City that Doesn’t SleepEm New York, New York, clássico mundial,

Frank Sinatra dizia querer acordar na cidade

que não dorme. E é verdade. Nova York, com

um dos mais eficientes sistemas de trans-

porte no mundo, funciona 24 horas. A mais

importante metrópole do planeta não pára.

“Isso permite que o indivíduo vá a qualquer

lugar quando quiser. E fique na rua até a hora

em que tiver vontade”, diz Steve Williams, 35

anos, motorista da transportadora UPS em

Nova York.

O metrô não é o único, mas o mais eficien-

te dos meios de circulação urbana noturna

em Nova York. “Os ônibus demoram mais

para passar”, explica o agente literário Brett

Kristofferson, 33 anos. O sistema novaior-

quino é utilizado por 4,3 milhões de passa-

geiros por dia, mais de 1 bilhão por ano, e

sofreu melhorias que o deixaram muito se-

guro. Além disso, é integrado a outros sis-

temas de trem, que levam a bairros e cida-

des da periferia, como Jersey City, Newark e

Hoboken. Todos funcionam 24 horas. Isso

permite que muita gente não apenas se

divirta, mas trabalhe à noite. “Vários serviços

funcionam 24h, sete dias por semana. A cidade

não pára, tem sempre gente trabalhando para

atender às necessidades de outras pessoas”,

diz Maya, 23 anos, produtora musical. “Meta-

de dos novaiorquinos é insone e a outra meta-

de trabalha à noite”, brinca Kristofferson.

Um humor desses para falar de trans-

portes públicos é inequívoco bom sinal. “Somos

a cidade que nunca dorme porque contamos

com bom transporte a noite inteira”, confirma

Steve Williams. E, com mais opções, menos

gente tira o carro da garagem, fazendo o

trânsito fluir. Os táxis também se tornam boa

opção. “Não é caro para nossos padrões e, à

noite, são muito rápidos, sem os engarrafa-

mentos”, diz Kristofferson. O metrô é comple-

mentado pelos ônibus, que transportam

anualmente 700 milhões de pessoas por rotas

não servidas pelos trens. Sua eficiência, porém,

na visão dos novaiorquinos, não é a mesma.

“Eles demoram demais. À noite, a única opção

real são os trens”, diz Maya.

Quem tiver a oportunidade de conferir,

em férias ou a trabalho, vai ver a diferença

que um sistema de transporte noturno eficien-

te faz em uma metrópole. É algo tão demo-

crático e marcante que transforma para

melhor a personalidade da cidade. Nova York

consagrou-se como a capital da vida noturna,

com teatros, clubes, boates, restaurantes e

bares abertos até tarde. Uma vida excitante

imortalizada na voz de um dos maiores

cantores de todos os tempos, fascinado, ele

também, com o burburinho na Big Apple

quando as lâmpadas de néon se acendem.

38 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c a p a

O serviço de metrô em Paris, responsável por quase 50%

do transporte urbano, com 1,3 bilhão de passageiros

em 2002, é interrompido entre 1h e 5h, quando só os

Noctambus, linhas especiais, circulam de hora em hora

de transporte público já melhorou a

sensação de segurança.

As soluções começam a aparecer, mas não

são simples como parecem. Todos sonham com

metrô 24 horas, mas poucos se lembram que

é necessário parar a linha para manutenção.

“Operar 24 horas é muito difícil”, descarta

Balassiano. Para ele, qualquer solução para o

transporte urbano no Brasil, num primeiro

momento, pressupõe a adoção de subsídios.

“Com poucos passageiros, o sistema precisa

de bilhetes mais caros para dar lucro ou de

subsídios governamentais. Isso geraria o

aumento do número de passageiros. Com

demanda maior, numa segunda etapa, esses

subsídios podem cair”, projeta. Assim, haveria

mais gente trabalhando, circulando e se

divertindo nas ruas, aumentando a circulação

de dinheiro e a geração de empregos — no

horizonte, a redução dos terríveis efeitos da

desigualdade social. A luz no fim do túnel

pode ser de um ônibus ou trem se apro-

ximando para pegar um passageiro perdido na

madrugada. ■

39NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

40 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 2

c o m p o r t a m e n t o�

P O R: T E R E S A B U C H E R

Nas ruas do planeta, garantir a travessia segura do pedestre é um desafio

40 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 2

c o m p o r t a m e n t o�

Faixa não é enfeite nas ruasFaixa não é enfeite nas ruas

41NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

m 1968, quando os Beatles

ilustraram a capa do álbum

Abbey Road com os quatro

ídolos cruzando uma faixa de

pedestre, as metrópoles já

tinham seus motivos para se preocupar com o

assunto. É verdade que os carros não eram tão

velozes e a fúria do trânsito não matava tanto.

Mas o mundo mudou e os administradores das

cidades hoje se desdobram em busca de idéias

para humanizar as esquinas. Para se ter uma

idéia da tragédia que o singelo ato de atravessar

a rua pode causar, no Brasil os atropelamentos

vitimam sete pessoas por hora. No mundo todo

aumenta a cotação da criatividade no trata-

mento da velha faixa de pedestre: cruzamentos

de zebras, de pelicanos, linhas de zigue-zague

ou simplesmente faixas à moda antiga.

Palco do eterno conflito entre motoristas e

pedestres, o trânsito é a expressão, no sistema

viário, da disputa pelos espaços públicos,

acirrada pela falta de ordem e equilíbrio. A es-

cassez de policiamento, sinalização e cons-

ciência agrava o problema nos países com es-

trutura educacional deficitária e cidadania em

fase de amadurecimento. Nas cidades brasi-

leiras, basta sair às ruas para flagrar duas es-

E

tres no confronto diário com os motores, o

comediante japonês Kenji Kawakami radicalizou

e lançou uma faixa de pedestre portátil. É um

rolo carregado debaixo do braço pelas ruas para

ser aberto onde não houver travessia certa e

segura. Exageros à parte, o avanço da consciên-

cia garante aos moradores das cidades européias

e norte-americanas uma tranqüilidade bem

maior do que no Terceiro Mundo.

Nos Estados Unidos e Canadá, a preferência

é sempre do pedestre onde há faixas sem

semáforos. Na Inglaterra, Austrália, Alemanha,

França, Holanda e Suécia, também há duas ma-

neiras de se atravessar a rua. A primeira é con-

trolada pelos sinais. Nos cruzamentos onde

não há semáforos, basta pôr os pés na faixa e

os carros são obrigados a parar. Em algumas

cidades, a simples localização do pedestre ainda

41NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

pécies arredias às regras que a

civilização já deveria ter tornado

universais: motoristas que não

param nas faixas e pedestres que

resistem em usá-las adequada-

mente.

Na busca por idéias para

reforçar a segurança dos pedes-

Os quatro beatles cruzam faixa de pedestre na capado histórico álbum Abbey Road

O japonês Kenji Kawakami radicaliza elança a faixa portátil

CA

RLO

S

MA

GN

O

42 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 2

c o m p o r t a m e n t o�

na calçada, diante da faixa, é

suficiente para interromper o

trânsito.

Acostumados à selvageria

dos nossos cruzamentos, bra-

sileiros que vão morar no ex-

terior têm a tendência de es-

tranhar tanta civilidade e cos-

tumam ficar literalmente com

o pé atrás, apegados ao ditado

de que o seguro morreu de ve-

lho. “As faixas aqui são res-

peitadas, a penalidade é grave

e dá até cadeia, mas não posso

garantir se alguém vai ou não

ser atingido por um carro ao

atravessar”, diz Clívia Cara-

cciolo, jornalista brasileira da

rádio Nederland, na pacata

cidade holandesa de Hilver-

sum. Em Hamburgo, na Ale-

manha, o gaúcho Gerson

Flebbe conheceu o outro lado

da moeda que regula as

relações no trânsito dentro do

princípio universal de que

direitos pressupõem deveres.

Certa vez ele esperava o sinal

fechar para os carros na

esquina. Estava “louco de pres-

sa” e teria atravessado antes se

não houvesse dois policiais

próximos. “Assim que o sinal

fechou para os carros, eu atra-

vessei antes de abrir o verde

para mim. Quase fui multado

em 60 euros”, conta Gerson.

“O trânsito aqui é bem or-

ganizado e em muitos sinais há

câmaras instaladas.”

“Aqui na Suíça a preferência

é do pedestre. Quando uma

pessoa atravessa a rua, os carros

são obrigados a parar, mas é

claro que é preciso ter bom

senso porque às vezes estão

muito em cima e fica difícil”,

pondera a brasileira Cláudia

Vittet, gerente de pessoal do

Museu do Rath, em Genebra.

“Não precisa ninguém ficar

tomando conta, mas perto

das escolas, na entrada e na

saída, ficam umas mulheres

pagas pela prefeitura”, conta

Cláudia.

No Cairo, com seus quase

16 milhões de habitantes, é

difícil encontrar semáforo.

Em alguns locais a polícia

egípcia ajuda as pessoas a

atravessarem, mas sem a in-

tervenção da força policial o

confronto entre máquina e

homem é iminente e os mo-

toristas enterram a mão na

buzina a cada investida do pe-

destre, quando não ameaçam

passar por cima. Em Nova

Deli, Índia, os pedestres sem

Mulheres seguram os veículosna entrada e saída das escolasde Genebra

Cena comum em Nova York: Nas cidades americanas e canadenses, a preferência é sempre dopedestre onde há faixas sem semáforos

DIV

ULG

ÃO

43NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

pelo fato de nossa capital ser

jovem, planejada e construída

quando o País já tinha noção

nítida dos prejuízos provo-

cados pelos engarrafamentos.

Uma ampla campanha de

conscientização e o combate

aos excessos dos veículos in-

dividuais, iniciados no go-

verno Cristóvam Buarque,

criaram um comportamento

invejável. “Faixa de pedestre

é o nosso acarajé”, brincou o

jornalista e escritor Rogério

Menezes em uma crônica no

Correio Braziliense, referin-

do-se ao orgulho dos brasi-

lienses pela fama de cidade

civilizada.

Segundo o chefe da Divisão

de Processamento de Dados do

Detran da Paraíba, João Eduar-

do Moraes de Melo, Brasília é

o modelo nacional de obediên-

cia ao direito do uso da faixa.

condições físicas para correr

na travessia são aconselhados

pela polícia a carregar bengalas

fluorescentes para atrair a

atenção dos motoristas.

As faixas no Brasil quase

sempre ficam perto de esqui-

nas, muitas delas com semá-

foros, mas os especialistas

chamam a atenção para seu

mau estado de conservação.

Faltam pintura, iluminação,

tachinhas luminosas, sinais

adequados, policiais e guar-

das. O jeito é apelar para amea-

ças mais explícitas, como as

câmeras fotográficas nos cru-

zamentos, providência cara

mas necessária para econo-

mizar vidas.

Em vigor desde 1998, o

Código Brasileiro de Trânsito

traz um capítulo inteiro para

pedestres e condutores de veí-

culos não-motorizados. Negar

preferência aos que atravessam

na faixa pode custar R$ 172,99,

valor irrisório para grande

parte dos apressadinhos no

volante. Não tirar o pé do ace-

lerador em frente a escolas,

hospitais, estações de embar-

que e desembarque e locais de

intensa movimentação de pes-

soas pode resultar no recolhi-

mento da carteira e na reten-

ção do veículo, além de multas.

As capitais costumam sin-

tetizar a história e a cultura

dos países. Para os moradores

de Brasília, felizmente esse

conceito não se aplica, não só

Ele lembra como o uso exem-

plar das faixas reduziu os atro-

pelamentos e parabeniza a ca-

pital pelos sete anos de Educa-

ção de Trânsito. Em 1997 havia

300 faixas no Distrito Federal

e hoje chegam a 3.300. Já o en-

genheiro Paulo Guerra, mestre

em Transporte pela UnB, acha

que a mudança começou a de-

sandar quando as multas foram

reduzidas. O temor de que a

chamada “indústria das mul-

tas” pareça impopular a uma

parcela do eleitorado costuma

levar os governantes à flexibi-

lidade, como se a perda de vidas

decorrente de uma fiscalização

frouxa não justificasse a rigi-

dez.

O Brasil prevê a aplicação

de multas também para os

pedestres. O Contran (Con-

selho Nacional de Trânsito) se

inspirou em experiências bem

Flagrante no centro do Rio de Janeiro: “Estou atrasado”, “não deu tempo de frear” e “o sinalfechou muito rápido” são as principais desculpas

CA

RLO

S

MA

GN

O

44 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 2

c o m p o r t a m e n t o�

sucedidas em países como a

Suíça e o Japão para criar nor-

mas que vão de simples multas

(25 Ufirs) à prestação de ser-

DIV

ULG

ÃO

viços comunitários e à fre-

qüência compulsória em cur-

sos de educação para o trân-

sito. A OMS (Organização

Mundial da Saúde) costuma se

pronunciar sobre o assunto

lembrando sempre que a res-

ponsabilidade pela convivência

harmônica e saudável no

trânsito é de cada ser humano.

Prevenir acidentes requer

ações tão simples como efi-

cazes: basta que todos se com-

portem com respeito mútuo e

obediência às leis. A preo-

cupação com a estética na pin-

tura das faixas em muitas

cidades é louvável por mani-

festar uma preocupação com a

boa aparência dos espaços

públicos, mas a faixa, decidi-

damente, não é enfeite. ■

O ministro das Cidades, Olívio Dutra, durante a campanha “Eu queroa faixa da vida”, coordenada pela ANTP

45NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

46 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c o m b u s t í v e l�

idades com ar menos poluído,

transporte mais barato e até

melhora nas contas externas

do país são resultados espe-

rados da substituição do diesel

pelo gás natural veicular (GNV) como com-

bustível para os cerca de 100 mil ônibus que

rodam nas cidades brasileiras. A expectativa de

tantos benefícios, contudo, não tem sido

suficiente para ultrapassar os obstáculos no

caminho do projeto. A primeira barreira é o

preço. Empresários do setor são favoráveis à

mudança pela vantagem ambiental e possi-

bilidade de redução da tarifa, mas reivindicam

da Petrobras e dos governantes a responsa-

bilidade pelos pesados investimentos que o uso

do gás natural exige, como a mudança da frota

com aquisição de ônibus 30% mais caros.

Defendem também a garantia de compe-

titividade do GNV em relação ao diesel por não

menos do que três décadas.

“Programa de gás para vingar deve ser pelo

menos de 30 anos: dez para trocar a frota, dez

para recuperar o investimento e mais dez para

consolidar o programa. A gente quer garantia

clara de uma política de preço especial e van-

tajosa em relação ao diesel”, reivindica Marcos

Bicalho dos Santos, diretor-superintendente da

CP O R: N I C E D E P A U L A

GNV, um sonhoainda distante

Projeto de substituição do

diesel pelo gás natural

veicular na frota de ônibus

urbanos esbarra em entraves

operacionais e financeiros

c o m b u s t í v e l�

47NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

pressão mundial em favor de medidas ambien-

tais — a troca reduz em cerca de 60 % a emissão

de gases tóxicos — há ainda ganhos importan-

tes nas contas externas. Segundo a NTU, o

uso do gás natural dispensaria a importação

de 55 milhões de barris de petróleo por ano,

volume necessário à produção do diesel usado

pelos ônibus urbanos, reduzindo as importa-

ções em US$ 2 bilhões anuais. De quebra, aju-

daria a escoar parte do gás que o país é contra-

tualmente obrigado a pagar à Bolívia, mesmo

sem consumo, e aumentaria a viabilidade eco-

nômica das reservas de gás descobertas nas Ba-

cias de Santos, Campos e Espírito Santo.

A conversão da frota está entre as medidas

previstas no relatório final que o grupo de estu-

dos para barateamento de transportes públicos

– montado pela Casa Civil e hoje sob coorde-

nação do Ministério das Cidades – está prepa-

rando. Também deve ser assinado um convênio

entre a Petrobras e os ministérios das Cidades

e de Minas e Energia para estabelecer uma polí-

tica nacional para o uso do gás em transporte

de passageiros. “É o primeiro passo de um

processo que só avança se for empurrado pelo

governo federal. As perspectivas são boas:

temos gás sobrando, vantagens ambientais,

tecnologia experimentada e nossa indústria já

Associação Nacional de Transporte de Passa-

geiros (NTU). Segundo Bicalho, o combustível

representava 10% do custo operacional do setor

e passou para 25% nos últimos três anos devi-

do à disparada do preço do diesel no mercado

internacional. Ele calcula que a fixação da tarifa

do gás natural em 50% do preço do diesel

possibilitaria uma redução imediata de 12,5%

no valor pago pelo passageiro.

A pressão dos empresários não é sem mo-

tivo. Experiências anteriores em São Paulo e

Natal acabaram frustradas. A capital do Rio

Grande do Norte abrigou o projeto pioneiro do

país, chegando a ter 15% dos ônibus movidos a

GNV. O programa foi para o espaço no início

dos anos 90, sufocado por problemas de todos

os lados. “No início, a a Petrobras e a Mercedes

Benz, fabricante dos ônibus, bancavam tudo.

Com o tempo a manutenção da Mercedes foi

tirada, a Petrobras começou a cobrar pelo gás,

primeiro 70%, depois 80% do preço do diesel, e

houve problemas por causa do cilindro de gás,

responsável por uma tonelada a mais de peso”,

conta Eldo Laranjeiras, presidente da Federação

das Empresas de Transportes de Passageiros do

Nordeste (Fetranor).

O governo federal tem razões de sobra para

se empenhar na mudança. Não bastasse uma

48 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c o m b u s t í v e l�

exporta motores a gás. O presidente Lula, em

reunião com a Frente Nacional de Prefeitos,

se disse interessado na mudança. Mas não se

troca uma frota do dia para noite. É um pro-

cesso de longo prazo, que não ocorre sem

vontade política do governo federal e o

comprometimento dos municípios”, diz Luiz

Carlos Bertodo, diretor de Cidadania e Inclusão

Social do Ministério das Cidades e coordenador

do grupo de estudos.

A Petrobras estimula a troca do combustível.

Ildo Sauer, diretor de Gás e Energia da empresa,

considera que problemas em programas passa-

dos, como o de Natal, fazem parte de “outra

história”, porque hoje a qualidade do gás é

muito melhor e os novos ônibus têm desem-

penho, manutenção e tecnologia mais avança-

dos. “Já existe uma proposta de incentivo da

Petrobras, com ourtoga de contratos especiais

para as distribuidoras garantindo que o gás não

ultrapassará 55% do preço do diesel durante

dez anos”, explica.

O prazo fica longe dos 30 anos reivindicados

pelos empresários. “Um ônibus dura no má-

ximo cinco anos, estamos garantindo o preço

por dez. Já dá para ver se é bom e se quer manter.

Não há ônibus que dure 30 anos”, rebate Sauer.

Para o executivo, o maior obstáculo ao progra-

ma é a dificuldade de financiamento para a re-

novação da frota. É isso, diz, que está blo-

queando um projeto da Petrobras em parceria

com a USP para colocar 500 ônibus a gás nas

ruas de São Paulo. A empresa tem um projeto

piloto no Rio com um ônibus a gás da viação

Rubanil, na linha 350 Irajá-Passeio, e roda cerca

de 300 quilômetros por dia.

Maior consumidor de GNV do país, o Rio

conta com cerca de 290 mil veículos a gás,

incluindo praticamente toda a frota de táxis.

Nos últimos cinco anos, o número de postos

de abastecimento pulou de 19 para 300. “Há

um ganho ambiental, valorização do combus-

tível produzido no Rio e projeto social de re-

dução do custo. Aceleramos o licenciamento

ambiental e fixamos o ICMS em 12%, contra

30% da gasolina”, explica o secretário estadual

de Energia, Indústria Naval e Petróleo, Wagner

Victer. Quem já usa o GNV aprova o desem-

penho e a economia. “É um excelente negócio

e permite uma boa economia. Só espero que o

aumento do consumo não faça o preço subir”,

torce o taxista Luiz Augusto Marinho, 37 anos

de idade e oito na praça do Rio.

Para o Movimento Nacional pelo Direito ao

Transporte, o gás é uma alternativa para a

redução de tarifa e a inclusão social via trans-

portes. O MDT também se preocupa em esti-

mular estados e municípios a usarem energia

renovável, seguindo os critérios do Protocolo

de Kioto, para se beneficiarem com a venda de

crédito carbono e aplicar esses recursos em

infra-estrutura de transportes. O engenheiro

Antônio Mauricio Ferreira Neto, ex-diretor de

Regulação do Ministério das Cidades e con-

A empresatem um projetopiloto no Riocom um ônibusa gás da viaçãoRubanil, nalinha 350Irajá-Passeio,e roda cercade 300quilômetrospor dia.

48 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c o m b u s t í v e l�

49NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

Clima de confortoExperiência e tecnologiamovimentando pessoas.

Completa linha dear condicionado.Para vans, ambulâncias,

cabines e veículos especiais,

ônibus rodoviário, urbano

e microônibus.

Webasto Climatização do Brasil S.A. - Av. Rio Branco, 4688 - Bairro São Cristovão - CEP: 95060-650Caxias do Sul - RS - Brasil - Fone: + 55 (54) 2101.5700 - Fax: + 55 (54) 2101.5747 - [email protected]

CC 350

sultor da ANTP, vê na substituição do diesel

por GNV um problema complexo de mudança

na matriz energética do país, que passa necessa-

riamente pelos municípios. “O mercado não

se viabiliza se o projeto não estiver no plano

diretor dos municípios, que devem ser indu-

zidos a isso, mas não obrigados, porque senão

deixam de concorrer ao crédito carbono previsto

no Protocolo de Kioto”, diz. Outro impasse é a

cadeia de reaproveitamento dos ônibus no Bra-

sil. Depois de rodarem nas capitais, eles vão

sendo vendidos para cidades pequenas do in-

terior até encerrarem a vida útil transportando

bóias-frias. O uso do gás interrompe essa tra-

jetória pela dificuldade de abastecimento de

GNV fora dos grandes centros.

“Essa é uma das grandes questões do trans-

porte urbano. O empresário de ônibus é um

revendedor de veículo, processo que começa

depois de cerca de três anos de uso. Se tentarem

fazer um programa que impeça a utilização da

frota num canto que não tem gás, pode esque-

cer. Ninguém vai comprar um ônibus 25% mais

caro e que não pode ser revendido”, diz o

engenheiro. Segundo ele, só há chance de o

programa dar certo se a conversão para o gás

puder ser revertida. O argumento da revenda

não é bem recebido pelas autoridades públicas,

como o ex-presidente do Fórum Nacional dos

Secretários de Transportes, Gilmar Tatto. Por

ser uma concessão, segundo ele, o transporte

público não deveria ser pensado em termos de

revenda de ônibus, “mas de qualidade dos ser-

viços prestados à população”. ■

50 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

c r ô n i c a�

O Bussunda tinha vinte anos menos cos ficariam na deles. Nada mais natural, por-

tanto, do que sair da faculdade, ir até o Palácio

Guanabara e pedir um ônibus para ir a um con-

gresso de universitários — oba, farra! – no Ceará

– oba, praia!

Para nossa consternação e incredulidade,

deram o ônibus. Não um de estrada, infeliz-

mente não tinham como consegui-lo, mas um

de rua, desses que se pega nas calçadas. O es-

panto e o medo nos confundiam, apesar de nos

assegurarem de que seriam os novíssimos Volvo

Padron, recém-lançados, grandes, amplos, con-

fortáveis e modernosos.

Partimos a bordo de nossa espaçonave en-

vidraçada rumo ao desconhecido. Desconhecido

mesmo, porque os motoristas também não eram

e aquele hábito adolescente de

andar desleixado e desarru-

mado. Era esse o sujeito que

nos liderava em uma audiên-

cia no Palácio Guanabara. Pa-

ra pedir um ônibus ao Bri-

zola.

Assim falando pode pare-

cer estranho, mas depois de

dez anos de ditadura e mais

outros tantos de nem tão du-

ra assim, a gente tinha de

usufruir toda a liberdade en-

quanto durasse – ninguém

sabia quanto tempo os mili-

c r ô n i c a�

P O R L U I Z H E N R I Q U E S N E T O

O ônibus do Bussunda

OS

VA

LDO

P

AV

AN

ELLI

51NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

de estrada, nunca tinham saído do Rio de

Janeiro e não faziam a menor idéia de on-

de ficava o Ceará. Enquanto houvesse placas

indicando o caminho, eles se virariam. A estrada

parecia ser uma entediante e imensa reta até

Fortaleza e ainda assim eles conseguiram se

perder várias vezes. A mais bizarra foi em Vi-

tória, quando o condutor parou aquele veículo

empanturrado de pessoas – cantando, tocando

violão e embebedando-se – junto a um bêbado

comendo um cachorro-quente às quatro da

manhã e perguntou, naturalmente: “ei, amigo,

qual o caminho para Fortaleza?”

Talvez se perder várias vezes e levar três dias

e meio para alcançar o Ceará não fosse tão duro

assim se tivéssemos banheiro, poltronas-leito,

suspensão especial, ar-condicionado ou pelo

menos cortinas. Se bem que com elas não

acordaríamos com os primeiros sinais da aurora

para descobrir que o sertão do Nordeste, em

julho, é gelado de manhãzinha. Evidentemen-

te não tínhamos agasalhos. Sorte que o frio

não durava muito e o sol causticante logo trans-

formava tudo em um forno. Parecia ser im-

possível dormir ali dentro. Exceto para o mo-

torista ao volante.

Sendo dois os pilotos, para o rodízio, um

branco e um negro, e chamando-se Manhães o

branco, logo o negro foi apelidado de Noites.

Os dois se revezavam entre nossa cachaça e o

volante naquela estrada com uma sinuosidade

de top model. Assim como eles faziam o seu

rodízio, nós fazíamos o nosso, para conversar

com eles e mantê-los acordados.

Seria injusto atribuir a Noites e Manhães

todo o atraso da jornada. Lembrem-se que não

havia banheiro e é um longo caminho até For-

taleza. A facção que bebia demais puxava o coro

“Rá, rá, rá, parada pra mijar” e os mais contidos

respondiam “rá, rá, rá, só no Ceará”, até que

uma moça apertada, com expressão compu-

ngida, decidia a parada.

Também não havia bagageiro. O ônibus era

um imenso pau-de-arara, com pessoas deita-

das no chão entre trouxas e mais trouxas de

roupas. Alguns fizeram questão de levar para o

Ceará objetos muito úteis como um saxofo-

ne. Ficávamos ali, deitados sobre e sob aquelas

bagagens todas e invejando profundamente o

Torreão, que numa parada teve a brilhante idéia

de comprar uma rede. Pendurou-a no corrimão

junto ao teto e conseguiu o leito mais confor-

tável, perene e imune à movimentação nos ban-

cos e corredores. Além da rede, ele se lembrou

de levar a namorada, o que era mais um motivo

de inveja.

Chegamos ao destino após quase quatro

dias. Oba, farra! Oba, praia! Oba, mais farra!

Oba, mais praia! Epa, Volvo Padron de novo!

Hora de voltar.

Por sorte, estávamos exaustos demais, uma

semana de Ceará e festa, para nos irritarmos

com a viagem, mesmo com o toque de sadismo

de Noites e Manhães. Quando calculávamos

cinco horas para chegar em casa, eles pegaram

uma estrada errada. Após horas e horas de via-

gem, na próxima parada, quando achamos que

já estávamos quase na Avenida Brasil, desco-

brimos que faltavam oito horas para o Rio.

Como não há bem que sempre dure nem

mal que nunca acabe, finalmente chegamos ao

campus, em pleno dia de aula. Saltamos, aque-

les que podiam andar ajudando aos outros,

alguns beijando o solo, incrédulos, outros

observando a universidade e os universitá-

rios com o olhar vazio, cheios de histórias e

cicatrizes (ora, bolas, o coração partido não

conta?). Não trocaria aquela viagem por nada.

Foi uma aventura do começo ao fim, coeren-

te com sua época. Começávamos, nós e o país,

a descobrir a liberdade. E para desfrutar da

liberdade de ir e vir, na cabeça de garotada

que só anda em bando, nada melhor do que

um Volvo. ■

52 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

m ã o d u p l a�

PREVENIR É O MELHOR REMÉDIO • O cres-

cimento exagerado das cidades, sem

planejamento, somado às necessidades do

homem moderno, exige um número cada vez

maior de deslocamentos. Eles precisam ser

rápidos. No Brasil, o transporte individual

historicamente simbolizou essa rapidez com o

automóvel. Ele sempre foi incentivado pelos

governos, com redução de impostos ou

investimentos em rodovias. O poder da

propaganda também contribuiu para seduzir o

consumidor de todas as classes, dando aos

veículos um valor agregado para além de seu

significado e das necessidades da população.

Como conseqüência dessa política, crescem

não

sim JOÃO GONÇALO EUGÊNIO

Arquiteto e urbanista, é ex-assessor executivo daPresidência da Empresa Municipal de Desenvolvimen-to de Campinas - EMDEC

ACIDENTES NO TRÂNSITO:

Com mais de 13 anos de militância na área e

tendo me especializado no novo Código de

Trânsito Brasileiro (CTB), tenho de ser taxativo

a esse respeito: fiscalização eletrônica não acaba

com a mortalidade no trânsito.

A fiscalização eletrônica, com o advento do

novo CTB, que conferiu competência aos

municípios para fiscalizar o trânsito, tornou-

se um dos alicerces da chamada “indústria da

multa”, beneficiando apenas prefeituras e

empresas particulares, responsáveis por sua

instalação e operacionalização.

Não é mais do que uma modalidade de

arrecadação, sem nenhum custo para a

municipalidade, pois o percentual cobrado pelas

JAIR LEAL

Advogado tributarista e presidente da Aprovesp –Associação dos Proprietários de VeículosAutomotores no Estado de São Paulo, fundada emjulho de 1991

a frota nas ruas e os riscos de acidentes muitas

vezes resultantes da imprudência e do excesso

de velocidade. É claro que existem muitos outras

causas: vias mal projetadas ou mal conservadas,

falta de sinalização, uso do álcool; mas é inegável

a contribuição da velocidade e do avanço sobre

o sinal vermelho para o número de mortos.

Cabe a municípios e estados investir em

políticas permanentes de vigilância e fiscaliza-

ção para coibir tais infrações. E a adoção dos

radares tem se mostrado eficiente na ampliação

da segurança no trânsito. Quando o motorista

sabe da existência desses equipamentos em

determinado ponto, fica mais atento, não excede

a velocidade, e, conseqüentemente, os aciden-

tes diminuem.

A adoção dos radares, no entanto, não é

tão simples. Em que pesem a aprovação pública

e sua incontestável eficiência na redução dos

53 NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

< >empresas particulares contratadas - e detentoras

do sistema - acaba saindo do bolso dos

proprietários de veículos.

Quando ainda se discutia o anteprojeto do

CTB, em 1994, foi apresentada uma emenda

criando um juizado especial de trânsito, opção

que, à época, foi considerada muito cara pelo

relator da proposta. Afinal, um juizado especial

de trânsito certamente acabaria com a receita

das multas.

Radares eletrônicos reduzemacidentes de trânsito?

acidentes, a política de fiscalização eletrônica

é alvo rotineiro da crítica de infratores contu-

mazes. Sabe-se lá por que motivação, ganha

espaço na mídia. Não é sem razão que os mu-

nicípios precisam adotar total transparência,

embasada em laudos técnicos para escolha da

via, a confiabilidade dos equipamentos e ampla

sinalização, derrubando qualquer argumen-

tação contrária.

Em Campinas, os resultados da fiscalização

eletrônica, aliada às políticas de educação de

trânsito, são significativos na redução dos

acidentes e mortes. Antes dos radares, a cidade

chegou a registrar 181 vítimas fatais/ano no

trânsito. Hoje, mesmo com o crescimento da

frota, o índice é 51,39% inferior ao de dez anos

atrás. Em 2003, foram 88 mortes. É essa política

em defesa da vida que fragiliza o discurso da

“indústria da multa”. Afinal, 80% dos carros

registrados na cidade não receberam sequer

uma multa e 13% foram penalizados com uma

única notificação ano passado.

O grupo de infratores é cada vez menor. Uma

parcela pequena que produz a “barbárie”, apos-

tando numa cultura na qual o carro é instru-

mento de poder e guerra, põe em risco a popu-

lação e ainda exige sair impune. Não há dúvida

que a prevenção é o melhor remédio contra os

acidentes. A visão sobre os radares deve partir

do ângulo da prevenção – e ser encarada como

punição só a partir da decisão do motorista em

exceder os limites.

No Brasil, onde o trânsito promove resul-

tados de uma guerrilha urbana, com mais de

trinta mil mortos/ano, as autoridades devem

imprimir esforços em defesa da vida. Não

podem abrir mão desses equipamentos, que

tantas vidas salvam cotidianamente.

O antídoto poderia ser outro, mas este

não parece interessante. Considerando que

92% dos acidentes fatais se devem a atro-

pelamentos, além de buscar uma maior cons-

cientização dos motoristas, seria necessária

uma política pública, com base em pena al-

ternativa, fazendo com que o infrator tenha

de pagar, possivelmente até com trabalhos

civis na área de trânsito, já que o objetivo

seria educá-lo.

54 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

e x p a n s ã o�

P O R: I N E S G A R Ç O N I E I V A N F E R N A N D E S

A rede cresceA expansão do metrô

em São Paulo: mais

mobilidade, integração e

inclusão social

México, por exemplo, são 191 quilômetros. Por

isso, a Companhia do Metropolitano de São

Paulo quer mais.

O sonho é antigo. Novas linhas e estações

são eternas promessas de campanha. Talvez por

isso, para que funcionem sempre como armas

do jogo eleitoral, é que demoram a se tornar

realidade. Mesmo que tudo corra nos trilhos,

o atual plano de expansão só deve se tornar

realidade em 2008. Desta vez, a promessa –

mais uma delas – é fazer, até lá, a entrega de

uma nova linha, a ampliação de outra e a aber-

tura de mais sete estações. Resultado: mais

15,7 quilômetros, ou um aumento de 27% da

malha. Antes disso, em 2006, serão inaugu-

radas duas estações da Linha Verde (que

interliga os nobres bairros da região da Avenida

Paulista). E quando tudo estiver pronto, outro

A LinhaAmarela estáplanejadadesde os anos80 e o início desua construçãofoi prometidopara 1994.Só agora,dez anosdepois, estásaindo daspranchetas

uando foi inaugurado, em

1974, o metrô paulistano ligava

apenas bairros da zona sul.

Depois partiu rumo ao centro

e só na década de 80 é que se

democratizou como meio de transporte, che-

gando às zonas norte, leste e oeste. Seus 57,6

quilômetros de trilhos se transformaram em

referência de “tudo de bom” no transporte de

massas, venerado pelos usuários, mas conti-

nuam insuficientes para os 11 milhões de ha-

bitantes de São Paulo. O sistema tem capa-

cidade para transportar 2,5 milhões de passa-

geiros diariamente, mas, para se ter uma idéia,

os 8 milhões de moradores da grande Paris

dispõem de 567 quilômetros. Até capitais de

países com situação semelhante à brasileira

possuem redes mais extensas. Na Cidade do

Q

55NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA 55NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

Na Chácara Klabin, bairro de classe média na rota do metrô, amoradora Teresina Conte não está nem aí para as britadeiras: “Ah, vaimelhorar muito.”

PA

ULO

G

IAN

DA

LIA

sonho dos passageiros poderá se tornar reali-

dade: a baldeação, ainda escassa, entre as

próprias linhas do metrô e destas com os trens.

Alguns bairros viraram verdadeiros cantei-

ros e, a julgar pelo andamento das obras, tudo

indica que as linhas serão de fato entregues

no prazo. Os usuários, que têm no metrô um

símbolo de excelência no tratamento, já se an-

tecipam nas comemorações. Na Chácara Klabin,

bairro de classe média da zona sul que entrará

na rota do metrô, a vizinhança nem liga para o

barulho das britadeiras até as oito da noite.

Nem mesmo o pequeno espaço que sobrou para

os pedestres parece incomodar. “Para passar pela

rua atrapalha um pouco, mas tudo bem. Eu uso

o metrô todo dia, poderei descer em frente ao

meu estágio”, anima-se a estudante Graziele

Dias, de 21 anos. Já a aposentada Teresina Conte,

de 58 anos, há 29 moradora da região, quer

menos carros nas ruas: “Ah, vai melhorar muito.

O trânsito vai diminuir”, espera.

O professor Robinson Henriques Alves, 36

anos, vizinho da futura estação Klabin,

também espera. E jura esquecer o transtorno

e a poeira de hoje. “Com a estação na porta,

vou usar muito mais o metrô. O transporte

no bairro vai melhorar.” Em São Paulo, é

natural que a melhora do trânsito seja, para

muitos, a principal expectativa em relação ao

poder público. Expectativa capaz de se manter

intacta por anos a fio.

A Linha Amarela está planejada desde os

anos 80 e o início de sua construção foi pro-

metido para 1994. Só agora, dez anos depois,

está saindo das pranchetas, como se não fosse

de fundamental importância para a cidade: será

a primeira a permitir conexão com outras três

linhas de metrô e uma de trem. O ato de

“baldear” – pular de uma linha para outra, do

56 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

e x p a n s ã o�

metrô para o trem e vice-versa – faz qualquer

paulistano feliz da vida. Tal alegria só será

possível graças aos empréstimos do Banco

Mundial e do JBIC (Japan Bank Internacional

Corporation). São R$ 500 milhões do Estado e

US$ 418 milhões dos órgãos internacionais

para as obras. As 12 estações da Linha Amarela

vão beneficiar 900 mil, um aumento de quase

um terço nos números atuais.

InclusãoAlém de melhorar a vida de passageiros e

motoristas e dar um alívio à cidade, o metrô

integra classes sociais. A Linha Amarela, além

da inauguração prometida para 2008, prevê

mais sete estações – sem data prevista para a

O professor Robinson Henriques Alves com os filhos, vizinhos de uma estação em construção:“Vou usar muito mais o metrô. O transporte no bairro vai melhorar.”

PA

ULO

G

IAN

DA

LIA

inauguração – que farão ligações entre bairros

pobres como a Vila Sônia e áreas de alto padrão

como Higienópolis, onde residem celebridades

como o ex-presidente Fernando Henrique

Cardoso. Uma região de nome parecido mas

condição social inversa também está nos planos

do metrô: Heliópolis, uma das favelas mais

populosas, vai ganhar a estação Sacomã. As

obras desta fase, no entanto, ainda dependem

de parcerias com a iniciativa privada. A idéia é

repassar os direitos de operação da linha por

até 30 anos.

Outra parceria que promete festa será

firmada entre os governos estadual e municipal.

Quem garante é Sergio Salvadori, diretor de En-

genharia e Construções da Companhia do Me-

tropolitano. “Um acerto com a Prefeitura pode

fazer a estação Faria Lima nascer já em 2008.

No passado, foi na parceria entre os dois gover-

nos que a Linha Verde foi ampliada em duas

estações, alcançou outros bairros e facilitou a

vida de milhares de paulistanos”, explica.

Idéias não faltam às cabeças que planejam

o metrô. Algumas parecem irrealizáveis. Quem

imagina, por exemplo, o metrô chegando à

cidade vizinha de Taboão da Serra? É difícil,

principalmente porque a malha ainda não al-

cançou sequer os bairros paulistanos necessá-

rios, mas está lá, nos planos dos técnicos. Outro

passo, este mais perto de virar realidade, será

ampliar em 2,2 quilômetros a Linha 2, até Ta-

manduateí e Vila Prudente, regiões pobres, dis-

tantes do centro e de grande densidade demo-

gráfica. “A Vila Prudente é um pólo importan-

tíssimo pela população que poderá ser aten-

dida”, diz Salvadori. Não há data para essa etapa

começar. Se não demorar muito, a cidade da

garoa ficará eternamente grata. ■

57NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

58 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

� a t l a s

m 2005, a Alemanha come-

mora 15 anos de reunificação.

Por quase cinco décadas, de-

pois da Segunda Guerra, o país

foi dividido em dois. Berlim, a

atual capital, foi cortada ao meio por uma parede

que impedia a circulação. Hoje, sem o Muro,

E

P O R E D M U N D O B A R R E I R O S

Uma cidade reunidaBerlim

seus 3,5 milhões de moradores se movimentam

livremente entre as duas ex-metades, bene-

ficiados por um dos sistemas de transporte mais

eficientes do mundo. As antigas redes inde-

pendentes, cheias de particularidades, foram

interligadas em um processo que culminará na

Copa do Mundo do ano que vem, com a inau-

MES

SE-B

ERLIN

guração da nova estação cen-

tral berlinense.

Nas ruas largas não se

vêem engarrafamentos. Os

automóveis são minoria na

cidade com a maior área verde

por habitante da Europa.

Executivos pedalam para o

trabalho de terno e as mães

levam seus bebês em

carrinhos- reboque. Quem não

vai de bicicleta pode usar os

super eficientes bondes elé-

tricos. Nas principais paradas,

letreiros luminosos avisam

Com transporte 24 horas no fim de semana, os berlinensescirculam à vontade

59NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

FICHA TÉCNICA

• Área de berlim: 892 km2• População: 3,39 milhões• Metrô

Número de linhas: 9Extensão total: 144,2 kmEstações: 170Distância média entre estações: 0,79 kmVelocidade média: 30,9 km/h

• Bondes

Número de linhas: 27Extensão total: 187,7 kmParadas: 377Distância média entre as paradas: 0,491 kmVelocidade média: 19,4 km/h

• Ônibus

Número de linhas: 161Extensão total: 1.271 kmParadas: 2.730Distância média entre as paradas: 0,52 kmVelocidade média: 19,56 km/h

com precisão germânica os minutos para o

próximo carro. Integrados aos trens e ônibus,

os Strassbahn são tão presentes na paisagem

urbana como a altíssima torre de TV que coroa

Alexanderplatz, glória dos tempos de domínio

soviético.

Nas noites de sexta e sábado, as ruas ficam

cheias como se fosse dia. Com transporte 24

horas no fim de semana, os berlinenses circu-

lam à vontade. O resultado é uma das noites

mais agitadas do planeta. O lazer é socializado

e, sem precisar dirigir para lugar algum, todos

podem saborear a famosa cerveja alemã.

A antiga divisão ainda é percebida nas duas

estações centrais, a de Zoologischer Garten,

na parte ocidental, e a de Alexanderplatz, na

oriental. A arquitetura é bem distinta, mais

moderna no “Ocidente”, mas o tempo vem redu-

zindo as diferenças. A Lehrter Hauptbanhoff,

com sua estrutura futurista de aço, será inau-

gurada no centro da capital este ano, inte-

grando todo o sistema. Hoje só os trens param

em suas plataformas, em fase de acabamento.

Em 2006 será conectada às nove linhas de

metrô e outras nove de trem, interligadas por

ônibus e bondes elétricos.

A empresa BVG, Berliner Verkehrsbetriebe,

controla todo o sistema que serve a Berlim e a

Potsdam, na periferia. Divide a região metro-

politana em três áreas e, para garantir o acesso a

todos os cantos, integra até táxis e bicicletas. É

permitido levar as bikes dentro dos trens pagando

uma passagem extra, assim como alugá-las da

própria BVG. Os táxis, em certos pontos, têm

tarifas reduzidas para cobrir percursos curtos não

servidos por ônibus ou bondes.

O preço de uma passagem, à primeira vista,

parece caro. Para circular entre as duas áreas

centrais, são 2 euros (pouco mais de R$ 7),

com direito a qualquer tipo de transporte por

duas horas. Para trajetos curtos, de até três

estações de metrô ou trem ou seis de ônibus

ou bonde, E$ 1,20, pouco mais de R$ 4. Há

reduções para estudantes e idosos e bilhetes

diários, semanais e mensais, os mais vantajo-

sos: E$ 56 para as duas áreas centrais, ou R$ 6

por dia — menos do que boa parte dos mora-

dores das periferias brasileiras gasta para tra-

balhar. E com a vantagem de livre acesso aos

fins de semana. Mesmo com o bom fluxo do

trânsito e as excelentes estradas alemãs, faltam

motivos para tirar o carro da garagem. ■

60 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

a r q u i v o

Ofato de ter nascido às margens

dos rios Capibaribe e Beberibe

exerceu profunda influência

no desenvolvimento da cidade

e seus subúrbios. Antes da

construção das pontes que li-

gam os vários pontos da capital

pernambucana, os recifenses

dependiam totalmente do

transporte fluvial. Já no século

XVI, quando o Recife não pas-

sava de um ancoradouro da

vila de Olinda, a população

dependia dos rios para escoar

a cana-de-açúcar – parte dos

engenhos ficava às margens do

Capibaribe – e sobretudo para

se abastecer de água. O trans-

porte fluvial reinava absoluto

em meio às violentas e suces-

sivas enchentes, que inunda-

vam estradas e abalavam as

estruturas das pontes de ma-

O transporte

no Recife antes

das pontes e

da poluição

deira, deixando a cidade e arra-

baldes acessíveis apenas por

barcos. Mesmo quando passa-

va o período das enchentes, a

população dava preferência aos

barcos, temerosa da manu-

tenção precária das pontes.

Não é à toa que o Recife ficou

conhecido como a Veneza

Brasileira.

“Foi no século XIX, entre

os anos de 1835 e 1860, que

esse tipo de transporte sofreu

grandes mudanças na opera-

ção e organização”, relata a

historiadora Magna Milfont,

que estudou o tema para dis-

sertação de mestrado em ur-

banismo pela Universidade

Federal de Pernambuco. Se-

gundo a pesquisa, uma enor-

me variedade de embarcações

deslizava pelas águas que

60 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

Aspectodo porto dorecife segundouma gravurade Hagedorn.Litografia deA. Guesdon

rodeavam a cidade, transpor-

tando pessoas, objetos e mer-

cadorias pelos mais diversos

percursos. As mais comuns

eram as jangadas, canoas e

barcaças, todas classificadas, à

época, como transporte flu-

vial, mesmo trafegando tam-

bém pelo mar.

As pequenas canoas, em

muitos modelos e tamanhos,

eram as preferidas pelos passa-

geiros, por conseguirem trans-

por trechos de difícil acesso e

ancorar em bancos de areia e

mangues. As barcaças, que va-

riavam de 7,5 a 21 metros, na-

vegavam em pequenas pro-

fundidades, aproveitando en-

chentes das marés, e dispu-

tavam passageiros com as ca-

noas. As jangadas menores,

denominadas ximbelos, botes,

A VenezapernambucanaA Venezapernambucana

a r q u i v o

61NÚMERO 3 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

catraias ou burrinhas, tinham

só uma vela, quando muito. Já

as maiores, com mais velas,

chegavam a ter 20 paus, bas-

tante usadas na descarga de

navios. Barcos estrangeiros

operavam lado a lado com os

nativos e dominavam a nave-

gação na grande cabotagem,

especialmente a partir de 1839,

quando surgiram os barcos a

vapor. Alguns eram verdadeiras

lojas flutuantes, onde se ven-

diam até pequenos barcos.

Escravos e negros libertos

atuavam como manobreiros

na maioria das embarcações,

mas também se viam mestiços

e brancos no serviço, muito

lucrativo. Jangadeiros, canoei-

ros e barcaceiros se organiza-

vam em associações hierarqui-

zadas. As mais rígidas eram

as dos canoeiros, que se divi-

diam em títulos como gover-

nador do porto das canoas (admi-

nistrador do porto), coronel

dos canoeiros (administrador

das rendas do transporte flu-

vial), major dos canoeiros (ca-

pataz do porto) e capitão dos

canoeiros (chefe das embar-

cações). Tais organizações

previam severas punições para

quem fugisse às normas.

Diversos percursos impor-

tantes foram firmados nos rios

e no mar. As regiões mais iso-

ladas, como Monteiro e Apipu-

cos, eram procuradas para

abastecimento de água, cons-

tantemente transportada das

bicas dos outeiros de Olinda,

de onde saíam nos lombos dos

burros até chegar ao trajeto

fluvial. O capim também de-

pendia desse tipo de transpor-

te para chegar às fazendas dis-

tantes e alimentar os animais.

As embarcações ainda eram

muito usadas no transporte do

açúcar e na pesca. Inúmeros

ancoradouros, portos fluviais

e marítimos, praias e ribeiras

próximos aos centros urbanos

de Pernambuco eram palco de

intenso comércio de merca-

dorias e movimentação de pas-

sageiros. Nos trechos mais

movimentados havia a cobran-

ça de pedágio.

A deficiência de serviços

urbanos valorizava o transpor-

te fluvial. A partir da década

de 1840, toda a região da cha-

mada Várzea do Capibaribe foi

objeto de loteamento porque

as pessoas buscavam mais hi-

giene, maior facilidade de des-

locamento e melhor acesso ao

abastecimento de água. Ca-

sarões e chácaras localizados

às margens dos rios eram

usados para veraneio.

De 1835 a 1842, missões

hidrográficas francesas inicia-

ram mudanças na operação e

organização do transporte

fluvial na cabotagem, com en-

genheiros estrangeiros com-

batendo o uso das embarca-

ções nativas na pequena cabo-

tagem. Ao fim da década de

1860, os pequenos barcos co-

meçaram a se restringir aos

rios, rompendo a estrutura do

transporte fluvial. Com as

pontes, Recife passou a ter no

transporte rodoviário, como

qualquer metrópole, um de

seus maiores problemas, com

trânsito intenso e poluição. ■

AC

ER

VO

DO

MU

SEU

DA

CID

AD

E D

O R

EC

IFE

“Parte da paisagem da Madagdalena”, do álbum de Luís Schlapiz, 1863

AC

ER

VO

D

A

FUN

DA

ÇÃ

O

JO

AQ

UIM

N

AB

UC

O

62 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

r e s e n h a�

FICHA TÉCNICA f i l m e

SSão raras as

adaptações

para o cinema

tão fiéis como

Uma amizade

sem fronteiras. Mas o diretor

francês François Dupeyron

confiou no pendor cinemato-

gráfico do romance Seu Ibrahim

e as flores do Corão, o segundo

da Trilogia do Invisível, do

também francês Eric-Emma-

nuel Schmitt, e alterou pouca

coisa do livro – reproduz até

muitos diálogos contidos na

obra literária. Fez bem em não

tentar imprimir sua marca

numa história já muito bem

narrada por Schmitt.

O livro conta os meandros

da amizade entre Moisés

(Pierre Boulanger), um me-

nino judeu, e seu Ibrahim

(Omar Sharif), turco dono de

uma delicatessen num bairro

judeu na Paris dos anos 60.

UMA AMIZADE

SEM FRONTEIRAS

Direção:

François Dupeyron.

Com:

Omar Sharif e

Pierre Boulanger

França/2003

96 minutos

Viagem atravésdos sentidos

Negligenciado pelos pais – foi

abandonado pela mãe e é tra-

tado como um fardo pelo tris-

tonho pai – Momô (como o ve-

lho turco o chama, “menos im-

ponente do que Moisés”) des-

cobre, entre as prateleiras da

deli, um homem generoso e

sábio.

O filme acompanha duas

viagens: primeiro, a travessia

de Momô rumo ao mundo dos

adultos, rito que inclui a perda

da virgindade com prostitutas

da vizinhança, a descoberta de

técnicas de sedução (a impor-

tância do sorriso é a mais inte-

ressante delas), feita com a

ajuda de seu Ibrahim, e outras

passagens contadas com muita

delicadeza por Dupeyron e

Schmitt. Depois há uma via-

gem física mesmo, quando seu

Ibrahim e Momô vão, de carro,

de Paris até a Turquia natal do

velho. É cativante a maneira

como Uma amizade sem fron-

teiras descreve os diferentes

lugares por onde passam e

brinca com os sentidos: seu

Ibrahim veda os olhos de Mo-

mô para que ele sinta o cheiro

do ambiente e assim descubra

onde estão.

Na viagem eles passam por

vários países, como a rica Suí-

ça e a paupérrima Albânia, até

que atingem seu destino. Uma

amizade sem fronteiras é uma

delicada ode à tolerância, flui

com enorme facilidade, no que

a ótima química entre o es-

treante Pierre Boulanger e o

veterano Omar Sharif muito

contribui.

EROS RAMOS DE ALMEIDA

DIV

ULG

ÃO

63JANEIRO/FEVEREIRO 2005 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA

50 anos garantindo a mobilidadeda população fluminense

50 anos garantindo a mobilidadeda população fluminense

A Fetranspor está completando 50 anos. Meio século de atuação no transportecoletivo por ônibus no Estado do Rio de Janeiro. Hoje, reúne 10 sindicatos, aosquais se associam 227 empresas, que atendem 135 milhões de passageiros/mês.Isso significa garantir o direito de ir e vir de 80% da população do Estado.

Sem dúvida, temos muito orgulho de assumir tanta responsabilidade, conseguindogerar 95 mil empregos diretos, o que significa ter cerca de 1 milhão de pessoasdependendo do funcionamento de nossas empresas e sindicatos.

Sobreviver é uma tarefa difícil, e atingir meio século é para os fortes e vitoriosos.Mas não é prova que se ganhe de forma solitária, e, por termos consciência disso,queremos compartilhar, com todas as organizações que consideramos parceiras,a grande alegria que nos proporciona a comemoração deste cinqüentenário.

Melhor transporte,melhor qualidade de vida

64 movimento, MOBILIDADE & CIDANANIA NÚMERO 3

r e s e n h a�

Em O mapa

que mudou o

mundo (Ed.

Record), o

jornalista inglês Simon Win-

chester consegue tirar leite de

pedra. A expressão é quase

literal, pois a pedra em questão

é pedra mesmo: as formações

rochosas do subsolo britânico.

Do tema em princípio tão ári-

do, o autor extraiu a história

profundamente humana do

também inglês William Smith,

autor do primeiro mapa geo-

lógico do mundo em 1815,

fundando uma ciência (a geo-

logia) na qual se apóiam pes-

quisas que vão da exploração

de minas até o traçado de uma

linha de metrô – não por acaso,

o metrô de Londres foi o pri-

meiro do mundo, inaugurado

na segunda metade do século

XIX.

Se o metrô é um dos prin-

cipais reflexos das pesquisas

de Smith na vida contem-

porânea, outro sistema de

transporte esteve na origem de

seu trabalho. Foi escavando a

A humanidadena pedra

E

l i v r oFICHA TÉCNICA

terra para desenhar o traçado

de canais, muito populares na

Revolução Industrial para o

escoamento de carvão para

os centros consumidores, que

Smith pôde observar o com-

portamento das camadas do

solo. Numa época em que o

senso comum policiado pela

religião acreditava que a terra

tinha sido criada por Deus em

seis dias, ele estabeleceu as

diferentes idades de cada fatia

do solo pela correlação com os

fósseis nela encontrados.

A genialidade do homem

que criou sozinho o mapa geo-

lógico de um país inteiro,

depois de 20 anos de pesquisa,

não é o único fator da tra-

jetória de Smith ressaltado no

livro de Winchester. Sem se

derramar em excesso, o autor

destaca os dramas e desgostos

vividos pelo personagem, en-

tre eles o plágio, a passagem

pela prisão, dificuldades finan-

ceiras e o preconceito de ou-

tros acadêmicos por sua ori-

gem pobre e sua falta de refi-

namento.

Winchester é especialista

em dar humanidade a temas

aparentemente pouco seduto-

res, como a feitura do Dicio-

nário Oxford, sobre a qual

escreveu em O professor e o

demente. Em suas obras, não

costuma esconder seu orgulho

britânico, mas isso não chega

a depor contra O mapa que mu-

dou o mundo, ao contrário do

uso um tanto indiscriminado

de termos como “oólito”, “ar-

gilito” e “marga”, que exigem

um tanto de paciência e con-

sultas ao glossário anexo. O

livro inclui ainda uma lista de

leituras indicadas e um índice

onomástico, além da capa,

que, quando desdobrada,

revela uma réplica do mapa de

Smith

LEONARDO LICHOTE

O MAPA QUE

MUDOU O

MUNDO

Simon

Winchester

Tradução

de Suyan

Marcondes

Orsbon

416 páginas

R$ 64,90

Editora Record