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7/24/2019 Revista Doctor Plinio 204_201503 http://slidepdf.com/reader/full/revista-doctor-plinio-204201503 1/36 Publicação Mensal Ano XVIII - Nº 204 Março de 201 Santidade e nobreza

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Publicação Mensal Ano XVIII - Nº 204 Março de 201

Santidade e nobreza

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 As coisas terrenas passam,

 só a eternidade fica

2

Corpo incorrupto de Santa CatarinaIgreja do Corpo do Senhor,Bolonha, Itália

  fisionomia de Santa Catarina

de Bolonha é distendida. O

mais expressivo deste semblante

está nos lábios cerrados, longos e

  finos, com um leve sorriso, aomesmo tempo de afabilidade e

de acolhida, como quem, com

muita suavidade, mas com

uma enorme transcendência,

 sorri de desdém de todas as

coisas da vida, e diz: “Olhe,tudo isso não é nada, tudo

acaba, não tem importância;

a figura das coisas terrenas

  passa, só a eternidade fica. Eu

  passei por tudo, sofri todas as dores,

tive todas as provações, e terminados esses

 sofrimentos sorrio para eles. Porque aquiloque foram mares encapelados, precipícios

temíveis, montanhas instransponíveis, fica para trás. De longe, eu sorrio

  para tudo isso e percebo que só a eternidade é séria.” 

(Extraído de conferência de 19/5/1971)

 A

  w

  w  w .

   h  e  r  o   i  n  a  s   d  a  c  r   i  s   t  a  n   d  a   d  e .   b

   l  o  g  s  p  o   t .  c  o  m .   b  r

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E d  i  t  o r i  a  l 

Virtude: fator

 de enobrecimento e harmonia

4

erta ocasião, Dr. Plinio encantou-se com a descrição feita por Antero de Figueiredo de um men-

digo espanhol que, cônscio de sua dignidade de filho de Deus, pedia com tal distinção a carida-

de de uma esmola, que mais se assemelhava a um fidalgo maltrapilho do que a um esmoleiro.

Semelhante impressão causou-lhe a réplica de uma simples camareira a uma das filhas de Luís XV.

 Ao ver-se obrigada a se opor a um abuso de autoridade, a fiel servidora ouviu de sua senhora a ame-

açadora pergunta: “Não sabes que sou filha do Rei?”

 A humilde mucama retrucou, num tom respeitoso, mas firme: “E não sabeis, Alteza, que sou filha

de Deus?”

Contudo, maior admiração experimentou Dr. Plinio ao tomar conhecimento de que a Bem-aven-

turada Anna Maria Taigi, mera dona de casa e cozinheira dos Príncipes de Colonna, causava encan-

to ao caminhar pelas ruas de Roma, devido a seu porte que muito se assemelhava ao de uma rainha.

De onde vinha tanta dignidade que conferia nobreza a pessoas do povo? Antes de tudo, concluía

Dr. Plinio, de almas habitadas pela graça divina.

Sempre lhe foi muito cara a tese — mencionada na seção “Hagiografia” da presente edição1 — de

que um dos principais fatores de enobrecimento é a prática da virtude. De modo correlato, a situaçãode pecado, escandalosa e duravelmente sustentada, constitui grave razão para destituir alguém de su-

as dignidades nobiliárquicas.

Tese essencialmente contrarrevolucionária, pois apresenta o fundamento divino de tudo o que é

nobre e elevado, enquanto aponta como uma das principais tarefas da nobreza dar exemplo das vir-

tudes cristãs.

 Assim como um religioso, por vocação, deve tender à perfeição, também “a condição de nobre —

dizia Dr. Plinio — é a de quem deve ser perfeito no plano espiritual, quer dizer, exímio no cumpri-

mento dos Mandamentos, no amor a Deus, à Igreja e ao próximo, de um lado. De outro lado, ele de-

 ve ser exímio do ponto de vista temporal, procurando fazer tudo perfeitamente bem, até mesmo asmínimas coisas, como o modo de servir-se de um peixe ou de suspender um copo para tomar água,

porque a missão dele é ser o homem arquetípico.”2

Dentro desta perspectiva católica, torna-se completamente vazia de sentido a luta de classes pro-

movida pela Revolução, pois o que impede a verdadeira harmonia entre nobres e plebeus, como tam-

bém entre ricos e pobres, não são as diferenças existentes entre essas camadas da sociedade, mas o

prurido igualitário que eventualmente domine seus membros.

Com efeito, o mesmo espírito revolucionário que impele o plebeu ou o pobre a se revoltar con-

tra o nobre ou o rico leva estes a desprezar e, por vezes, explorar aqueles, pois ambos os extremos es-

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  5

DECLARAÇÃO:  Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e

 de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou

 na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm

 outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.

tão impulsionados pelo orgulho — uma das molas propulsoras da Revolução 3 — e não pela graça

de Deus.

Eis a razão pela qual o Magistério da Igreja sempre apontou como contrária ao verdadeiro espí-

rito cristão a promoção da luta de classes.

Em 19 de março de 1993 era publicado o último livro de Dr. Plinio, “Nobreza e elites tradicionaisanálogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana”4, no qual o Autor, baseando-

-se em pronunciamentos do Magistério eclesiástico, trata do importante papel das elites na socieda-

de contemporânea.

Essa obra, profundamente imbuída do autêntico espírito católico, o qual sempre inspirou o amor

à hierarquia, promove a cooperação e a harmonia entre as classes sociais.

Desse espírito de harmonia nos falam as duas grandes festas celebradas pela Igreja no mês de

março, respectivamente nos dias 19 e 25: São José, Esposo da Bem-aventurada Virgem Maria, Pa-

droeiro da Igreja Universal, e a Anunciação e Encarnação do Verbo.

Poderiam existir diferenças mais extremas do que aquelas que conviviam harmoniosamente noseio da Sagrada Família?

 Ali estava um Menino no qual a majestade divina se unira à pobre natureza humana. O sacrário

onde se operou tal união foi o claustro virginal da humilde esposa de um carpinteiro, ambos descen-

dentes da estirpe real de Davi, e que, ao se tornar Mãe de Deus, foi elevada à dignidade de Rainha

dos Anjos, dos homens e de todo o universo.

São José, por sua vez, o menor de todos, era quem exercia a autoridade sobre a Mãe e o Filho de Deus.

Como comentava Dr. Plinio, “três perfeições que chegaram todas ao auge ao qual cada uma de-

 via chegar. Três auges desiguais que se amavam intensamente e se intercompreendiam, e onde Deus

quis que reinasse uma hierarquia com uma ordem admiravelmente inversa: o chefe da casa no plano

humano era o menor na ordem sobrenatural, e o Menino que devia obediência aos dois era Deus.

Inversão que faz amar ainda mais as riquezas e as complexidades de toda ordem verdadeiramente

hierárquica. Eram perfeições altíssimas, maravilhosas, mas desiguais, realizando uma harmonia de

desigualdades admirável como não houve jamais no resto da Terra, dando assim lugar a que toda a

alma fiel que quisesse fazer uma reflexão sobre esse assunto, pudesse entoar um hino de grandeza,

de admiração e de fidelidade a todas as hierarquias e a todas as desigualdades.”5

1) Cf. p. 26.

2) Conferência de 10/11/1989.3) Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Revolução e Contra-Revolução. Parte I, cap. VII, 3 - A.

4) Porto: Livraria-Editora Civilização.

5) Conferência de 2/11/1992.

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E

 Lições sobre os Novíssimos do homem

6

DONA LUCILIA

Dona Lucilia possuía um profundo conhecimento da

Doutrina Católica, não tanto devido à leitura de livros,

mas a suas observações e meditações a respeito de fatos

da vida. A fim de formar seus filhos e instruí-los sobre os

Novíssimos, ela narrava casos impressionantes ocorridos

com pessoas relacionadas com sua família.

m Dona Lucilia eu via grande se-riedade e profundidade, e seuamor para com todas as

 verdades ensinadas pela Igreja

Católica, entre as quais os No- víssimos do homem.

 Amor à seriedade

Naquela fotografia ti-rada em Paris, ela está vestida com certa pom-pa, certa distinção queas senhoras daquele tem-po, quer dizer, imediata-mente antes da Primei-

ra Guerra Mundial —1914, portanto —, usavamquando iam para uma reu-nião social. E mamãe, comcerteza, estava vestida parauma reunião social.

Se bem que ela se encontras-se com uma preocupação de sefazer fotografar de um modo con-digno e respeitável, e de outro lado ti- vesse diante de si a perspectiva de uma

reunião social, na qual uma senhora côns-cia de suas responsabilidades compre-

ende que tem um papel a represen-tar, que deve absolutamente ter

realce, destaque, saber conver-sar, apesar de tudo isso elaestá com o melhor do seuespírito voltado para pa-ragens muito mais altas,e numa atitude de quem,contemplando verdadessérias, se põe numa posi-ção de alma séria; e amamuito a seriedade.

Quer dizer, há umbem-estar dela na serie-

dade que se nota no fun-do do seu olhar.Eu percebo isso até

por um pequeno porme-nor que aqueles que não a

conheceram não podem no-tar. Ela tinha os olhos, como a

maior parte das senhoras brasi-leiras, de cor castanho-médio, co-

mum. Mas quando ela consideravaqualquer coisa com mais seriedade, mais

    A   r   q    u    i    v   o

     R   e    v    i

   s    t   a

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atenção, a tonalidade de seus olhos mudava um pouco,e aquela cor castanha se tornava castanho-escuro, indi-cando o esforço visual que estava atrás do esforço da re-flexão.

Confiança na salvação eterna, pelabondade de Nossa Senhora

É bem como o olhar dela está nessa fotografia. Suaatitude é de senhora de sociedade, mas muito decidi-da. Naquilo que ela crê, ela crê; aquilo queela sabe, ela sabe; para aquilo que es-tá disposta a fazer sacrifícios afim de homenagear e propug-nar, quer dizer, a Santa IgrejaCatólica, ela fará o esforçonecessário.

Toda a educação queela me deu está em ger-me naquela atitude dealma.

E essa atitude tornaa pessoa muito propen-sa a refletir a respei-to dos Novíssimos. Por-que uma pessoa que estácolocada diante de coisassérias, mas não gosta dascoisas sérias e sim da brin-

cadeirada, da malandragem,da bobice, toma um ar enfadado,enfarado, aborrecido, de quem estáquerendo escapar daquelas ideias pa-ra cair na folia habitual.

Não havia nada disso com ela. Do-na Lucilia sentia-se inteiramente à vontade naquela contemplação, naquela meditação, e afirmeza de sua vontade lhe dá uma espécie de seguran-ça e de certeza de que, com confiança em Nossa Senho-ra, ela chegará até ao Céu; essas são as notas dominan-tes de sua vida.

 A chama que se desprendede uma lamparina...

Mamãe também contava, de vez em quando, casos arespeito do Inferno. Não tanto tirados de livros de pieda-de, que no tempo dela no Brasil não eram muito difun-didos, mas de fatos que se narravam nas rodas familiaresdela e das famílias amigas.

Por exemplo, o caso de uma fazendeira muito rica,cujo marido tinha oito fazendas, mais ou menos próxi-

mas uma das outras; o que formava um latifúndio colos-sal.

Esse homem, naturalmente para fiscalizar essas pro-priedades, tinha que ir de uma fazenda para outra comalguma frequência. E nessas viagens ele muitas vezesdormia — essas fazendas tinham casas — ora numa casa,ora numa outra e depois voltava para a residência dele.

Quando havia essas viagens, essa senhora, cujas filhas já estavam casadas, pedia para uma sobrinha solteira fa-zer-lhe companhia, principalmente durante a noite. O

que era uma coisa compreensível na solidão dosertão daquele tempo, sem policiamento.

E certa noite ela acordou a sobrinhae lhe disse: “Minha filha, você es-

tá vendo?” A sobrinha olhou e perce-

beu que de uma lamparina

que estava lá, uma cha-ma se desprendeu, deua volta por todo o quar-to e se apagou. E elas fi-caram muito impressio-nadas com aquilo.

Qual não foi a sen-sação que elas tiveram

quando, de manhã bemcedinho, veio um empre-

gado de uma das fazendasdele, a cavalo, a toda a pres-

sa, contar que o fazendeiro fo-ra encontrado morto no cafezal!Ela contava isso com uma se-

riedade que fazia com que a pessoasentisse a realidade e a gravidade daMorte, do Juízo e do risco de se cairno Inferno.

Mas Dona Lucilia também gostava muito de narrarfatos relacionados com o Céu, sobre almas que estavamglorificadas no Paraíso porque tinham sido muito boasna Terra.

Um homem que caluniava Dr. Antônio Ribeiro dos Santos...

Ela falava com alguma frequência da Morte, sobretu-do fazendo sentir a solidão da Morte. Quer dizer, quan-do a pessoa estava para falecer, apesar de ter o quartocheio de parentes, amigos, etc., há alguma coisa que a se-para de todo o mundo. Ela está morrendo aos poucos ese aproximando do instante em que vai estar sozinha emface de Deus, será julgada e terá de prestar contas desua vida; e naquela hora será precipitada no Inferno, ou

  F a e  (   C  C

   3.  0  )

Um sacerdote ministra aUnção dos Enfermos

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DONA LUCILIA

mandada para o Purgatório, ou irá diretamente para oParaíso. E mamãe exprimia isso muito bem.

Dona Lucilia contava fatos bonitos a respeito da mor-te. Por exemplo, o caso de um homem que fora grandeinimigo do pai dela. Era um chefe político daquela zo-na de Pirassununga, onde ela nascera, um homem de boafamília de São Paulo, mas que tinha em relação ao paidela um ódio gratuito, sem razão.

Várias vezes, esse homem pregou calúnias contra omeu avô, o qual teve que se defender e sempre conseguiu

provar que ele estava sendo caluniado, e que o calunia-dor era aquele indivíduo, etc.

...é preso e pede a Dr. Antônio que o defenda

Meu avô era muito bom advogado e, estando em Pi-rassununga, recebeu certo dia um telegrama desse inimi-go dele, que morava em São Paulo, dizendo o seguinte:

“Eu estou preso porque fui acusado de tal crime. Edevo ser julgado no dia tanto perante o tribunal do jú-ri de tal cidade — uma localidade próxima a Pirassunun-ga. Como eu não confio em ninguém tanto quanto no se-nhor, peço que aceite defender-me.”

Era uma sem-vergonhice desse homem pedir, semmais nem menos, que tivesse como advogado aquele queele caluniou. Ele deveria começar por dizer: “Eu reco-nheço que tais coisas assim foram calúnias, peço perdão

e misericórdia. A misericórdia consiste em consentir emme defender.” Aí estaria bem. Mas, antes desse pedidode perdão e de misericórdia, não se concebia.

Mas meu avô era um homem — segundo ela contava,porque não o conheci — muito paciente e misericordio-so, e mandou telegrafar-lhe dizendo o seguinte: “Esperá--lo-ei na estação quando o senhor descer do trem, e acei-to o encargo que me confia.”

Em cidadezinha do interior, máxime naquele tempo,esses fatos tinham uma importância enorme, todo mundoqueria ver a notabilidade chegar, com os soldados de umlado e de outro, presa com algemas e ir para a cadeia. E

era uma coisa horrível o que o povo fazia, mas se a cadeianão era longe da estação, o prisioneiro ia a pé até a pri-são e com todo o povo acompanhando. E naturalmente osinimigos dele dizendo coisas horríveis, contra as quais elenão podia se defender porque estava manietado.

Quando meu avô chegou à estação para receber o ho-mem, percebeu que o local estava cheio de inimigos docliente dele. Então meu avô disse uma coisa mais ou me-nos desse gênero, falando bem alto para todas as pesso-as ouvirem:

“Todos sabem que aqui chegará preso Doutor Fulanode Tal, mas nem todos têm conhecimento de que ele vem

como meu cliente. E sendo meu cliente está sob a mi-nha proteção; por causa disso qualquer ultraje feito a eleé uma ofensa contra mim. A honra dele está sob o meuamparo, e eu quero saber quem vai por esta forma meagredir.”

O homem desceu do trem, meu avô mandou emboraos soldados e passou o braço por debaixo do braço dele.Cumprimentou-o amavelmente, perguntou se tinha feitoboa viagem; tudo isso na presença de todos que lá se en-contravam, que ficaram pasmos, porque era conhecida ainimizade entre o réu e o advogado.Dr. Antônio Ribeiro dos Santos

   A  r  q  u   i  v  o   R  e  v   i  s   t  a

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Depois disse: “Vamos então!” E começou a atravessara multidão, que abriu fileiras, e ele foi até a cadeia, ondeo homem ficou preso.

Dominado pelo vício da inveja

 Aí meu avô foi estudar o caso, porque os papéis todos vinham de São Paulo. E ele achou o seguinte: não estavaprovado que o homem era inocente, e nem que era cul-pado. Tratava-se de um caso nebuloso. E quando não es-tá provado que um indivíduo é culpado, se deve soltá-lo.Uma pessoa não pode ser presa por uma suspeita.

Então meu avô compareceu como seu advogado no jú-ri e fez a defesa dele nesses termos. Quer dizer, não de-clarou que era inocente — porque ainda não estava pro- vada sua inocência —, mas disse que quando não se pro- vou que uma pessoa era culpada de um crime, ela não po-

dia ser condenada, nem ser, portanto, objeto de vaias, deapupos. O crime de que aquele homem era acusado nãoestava provado, logo se supunha que ele era inocente.

Com isso o indivíduo foi solto e já aquela noite nãodormiu na cadeia, mas numa casa qualquer dele ou deoutrem. E começou a levar a vida de um homem livre.

 A senhora dele, que estava na cidadezinha, foi a Piras-sununga visitar minha avó para agradecer toda a bonda-de que meu avô tinha tido, porque ela não afirmava queo marido fosse criminoso, mas reconhecia que o mau tra-to que ele tinha dado ao meu avô anteriormente não lheconcedia o direito de recorrer aos seus serviços. Seu es-

poso podia ter pedido a qualquer outro advogado que odefendesse, mas foi logo solicitar ao meu avô.E na conversa essa senhora disse à minha avó:“Meu esposo é um invejoso e tem uma inveja medo-

nha do Dr. Ribeiro; quando vê o Dr. Ribeiro ter triun-fos como advogado e fazer dinheiro, ele que não conse-gue o mesmo começa a caluniar o seu marido. Eu reco-nheço que é malfeito, mas ele é meu esposo; estou ligadaa ele para a vida e para a morte, e tenho que seguir o ca-minho junto com ele.”

 Atingido por grave doença, pede

auxílio em altas horas da noite Anos depois — eles não se viram mais —, já em São Pau-

lo, tarde da noite, garoando, para um carro, ainda era otempo dos carros puxados a cavalo, na porta da casa de meuavô e o cocheiro entrega um bilhete. Era daquele homem.

“Dr. Ribeiro, eu me encontro reduzido ao extremo,condenado a morrer porque estou passando muito mal,com tal doença; além do mais não tenho dinheiro parame tratar, e então quero saber se o senhor poderia viraqui em casa, arranjar um médico para mim e me dar

de presente o dinheiro necessário para eu comprar os re-médios. E mais ainda, passar de carro por uma farmácia,mandar que seja aberta e conseguir os remédios. Porquese não for isso eu morro.”

Uma pessoa de minha família, que estava em casa domeu avô quando chegou esse bilhete, disse-lhe:

— Totó — meu avô chamava-se Antônio, mas no tra-to de casa comum era Totó — não atenda, faça esse ho-mem agora sofrer tudo que ele quis que você padeces-se. Chegou a hora de você se regozijar, a hora da justi-ça de Deus.

— Não, esse homem bateu à minha porta, e vou termisericórdia para com ele; eu quero que Deus tenha mi-sericórdia comigo quando chegar a minha vez.

— Mas você está doente, e ainda com essa garoa aí fora!— Não tem conversa, eu vou.Cobriu-se com agasalhos, etc., e lá foi meu avô para a

casa do homem, que ficava num bairro afastado. Lição de misericórdia

 Afinal, meu avô chegou à residência do indivíduo, ba-teu na porta, entrou e encontrou esta cena: o quarto emque esse homem estava não tinha nenhum móvel, masapenas uma cama com um colchão encostado na pare-de, de maneira que esta servia de cabeceira para apoiaro travesseiro.

Ele disse, arfando: “Dr. Ribeiro, muito obrigado.”— Mas o que o senhor tem?

— Estou tuberculoso em alto grau, e às portas da morte.Meu avô, sentado na cama dele e sujeito a contágio,tomou nota do que ele sentia para explicar ao médico, etentaria que este fosse àquela hora da noite à casa dele;depois iria comprar os remédios numa farmácia.

 Após algum tempo, meu avô retornou à casa do ho-mem, deu-lhe todos os remédios, e mandou reservaruma passagem especial para o enfermo e sua senhora,num trem que devia ir no dia seguinte para a cidade dointerior do Estado, onde ele queria morrer. Os dois em-barcaram, tendo o meu avô pago tudo.

Era uma lição de misericórdia que mamãe dava, lição

esta acompanhada da ideia de que quem não tem miseri-córdia não receberá misericórdia. E que a clemência deDeus e de Nossa Senhora, no Juízo, é reservada especial-mente para os clementes.

Naturalmente, um menino, como era eu, se impressio-nava muito com esse fato narrado por Dona Lucilia, e asideias sobre o Céu, o Inferno, o Juízo, a Morte, se radica- vam muito no meu espírito. v

 

(Extraído de conferência

 de 11/10/1993)

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 Matriz do pensamentode Dr. Plinio

D

10

SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS

Dentre as explicitações nascidas do místico convívio

de Dr. Plinio com o Sagrado Coração de Jesus,

encontra-se o tema da sacralidade, considerada por

ele como sendo a matriz de seu pensamento e cujo

fundamento é o próprio Homem-Deus.

os vários aspectos da Igreja, umque está profundamente na mi-nha alma — e que eu vejo em

Nosso Senhor Jesus Cristo, de modo adorá- vel — corresponde a um substantivo que euemprego às vezes. Talvez notem que, quandoo utilizo, é no sentido do sumo da coisa elogiá- vel, deleitável, magnífica, esplêndida: sacralidade.

Conceito de sagrado

Sei que a palavra “sacralidade” em latimtem toda uma etimologia e um significado. Jáli algumas coisas a esse respeito, mas não encon-trei uma definição que me agradasse tanto quantoo termo me agrada.

O que significa sacral? Que diferença há entresagrado e sacral? O que é o sagrado nessaperspectiva das coisas?

 A coisa sagrada tem uma superiori-dade por onde, de algum lado, é mais

 voltada para Deus do que para o homem;desse fato decorre para ela uma espécie de“participação”, de “ter parte com Deus”.Ela “tem mais parte com Deus” do que umacoisa melhor, porém menos sagrada.

Essa “parte com Deus” que a coisa sagra-da tem, lhe dá uma espécie de, eu quase diria

— sei que não é —, uma “presença de Deus”,fazendo com que nos acerquemos dela com su-mo respeito, suma reverência, ao mesmo tem-

po sentindo-nos pequenos, mas elevados até onível daquele sagrado, e nos introduzindo numpatamar completamente diferente do patamar

das coisas não sagradas.Por exemplo, um cálice de Missa. Não sei por

que, mas na minha sensibilidade, na minha imagi-nação, fica como o próprio símbolo do objeto sa-

grado. Parece-me que a forma do cálice,com aquela copa que se abre, sua estru-

tura, já lhe dá uma disposição natural amanifestar o sagrado.

   A  n  a  g  o  r   i  a   (   C   C   3 .   0

   )

   G  u  s   t  a  v  o   K  r  a   l   j

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 Além do mais, tendo sido consagrado, penetrou no cáli-ce algo que a minha imaginação conceberia como um fluido— não é um fluido —, por onde não se pode nele tocar semtodo o respeito, sem receber como que uma descarga elétri-ca de maldição. Mas também quem o toca respeitosamentesente-se elevado e, de algum modo, amado por Deus.

Daí uma veneração enorme para com o sacerdócio; eo sacerdócio nos seus vários graus de jurisdição: o padre,o bispo e o Papa. E uma veneração submissa, fiel, amigade ser menos, desejosa de servir, por causa do conceitode sagrado: “Aquele foi sagrado!”

Sei que em mim, enquanto católico, há algo disso, porefeito do Batismo, com um incremento em razão da Cris-ma. Mas, em qualquer caso, continua verdadeiro que fi-co a meio termo entre o mundo do sagrado e o mundodo profano, enquanto aquele que está inteiramente nomundo do sagrado é de uma elevação que não encontro

palavras para dizer.Esse conceito do sagrado é a própria matriz de meupensamento a respeito de uma série de coisas. De manei-ra tal que, no fundo, sempre que eu elogio uma coisa, es-tou, na minha mente, achando que ela tem uma analo-gia, pelo menos, com o sagrado. Em relação ao que é sa-grado, tenho uma propensão a aceitar, a admitir, a servir.Mas se tem uma contra-analogia com o sagrado, estou vi-tuperando, e no meu vitupério se encontra uma rejeição,uma impugnação, uma vontade de combater: porque alihá uma recusa do sagrado. O ponto de referência é sem-pre o sagrado.

 A palavra “sacrossanto”

Também na ordem do terreno, elogio certas coisasporque, no fundo, elas têm tal ou qual analogia, tal ouqual participação no sagrado.

Por exemplo, os vitrais elaborados à maneira de fun-dos de garrafa justapostos. Sei perfeitamente que essesobjetos não são sagrados. Mas a luz que coa através do vitral tem, em relação à luz do dia, uma analogia com acomparação entre o sagrado e o não sagrado.

E a luz filtrada por um vitral — qualquer que seja a

cor ou desenho, desde que seja bem feito, de acordo como espírito católico — tem uma analogia com o sagrado; ecoando a luz, prepara o ambiente para que o estado deespírito propenda para o sagrado, amoleça aquilo que épuramente natural, impetuoso, rústico, e, pelo contrário,exalte, glorifique o que é sagrado, sacrossanto.

 A palavra “sacrossanto” para mim é carregada de to-das as graças e delícias possíveis: “Uma coisa sacrossan-ta... Oh!” O próprio vocábulo diz isso: “sacro santo”.Que coisa maravilhosa, esplêndida! É preciso ajoelhar--se: essa coisa é sacrossanta!

Também certos princípios de ordem puramente espe-culativa podem parecer à nossa inteligência sacrossantos.São dos tais princípios delicados cuja força está em quesão quebráveis facilmente por qualquer vândalo, mas,quebrados, a ordem das coisas está espatifada: “Cuida-do, é uma coisa sacrossanta!”

O sacrossanto alia duas formas de sagrado: o sagrado— que recebeu uma sagração — e o santo. Então é umacoisa “sacro santa”. E a palavra “sacrossanta” mostra aexcelência dessas duas presenças cumulativamente, umasobre a outra.

Como todo o circuito do meu pensamento se faz emtorno de Nosso Senhor Jesus Cristo, sou levado a con-siderar que Ele é sagrado num grau inimaginável, pois éDeus! E, enquanto Homem, sua natureza humana estáelevada a um grau de união com Deus a ponto de cons-tituir uma só Pessoa. Então, qual é o grau de sagrado e

de santo que há n’Ele? Não há palavras que o indiquemsuficientemente. É inimaginável! A figura d’Ele no San-to Sudário, no meu modo de entender, é eminentemen-te sacrossanta.

Minha posição de batalha é, no fundo, um furor deque uma coisa sacrossanta tenha sido atingida, ferida. Sealguém quer destruí-la ou está pensando nisso, eu já meindigno: “Como se atreve a mexer naquilo que é sacros-santo?! Onde está com a cabeça?” E eu me oponho oquanto possa!

 A substância da Revolução é dessacralizar 

Tenho impressão de que estou fazendo esses comentá-rios com uma radical imperfeição num ponto: que a no-ção de sagrado está sendo mal definida. Mas vou dizerpor quê.

Em primeiro lugar, porque não sei definir; em segun-do lugar, porque meu objetivo aqui é mais fazer uma des-crição psicológica do efeito do sagrado no homem, doque propriamente de dar o conteúdo metafísico do sa-grado.

Eu poderia ir facilmente a um dicionário de Teologia, ver no nosso bom Cornélio1 — que goza de todas as mi-

nhas complacências e benevolências — o que é “sagra-do”, e ficar com uma ideia técnica do que seja. Seria mui-to bom.

Mas tenho a sensação de que enquanto não explicitarinteiramente o que estou pensando, e não descrever o es-tado de espírito que o homem deve ter em face do sagra-do, eu de fato, se ler o Cornélio, mais atrapalho a elabo-ração da descrição desse estado de espírito do que a fa- voreço.

Estou certo de que o espírito revolucionário é o opos-to do sagrado, a mais não poder. A substância da Revolu-

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SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS

Basílica do Santíssimo Sacramento - Buenos Aires, Argentina

ção é dessacralizar. E a substância da Contra-Revolução,bem entendida, é sacralizar.

Debaixo de certo ponto de vista, a Contra-Revoluçãoé o retorno do sagrado a todos os campos que o homemnaturalmente domina: primeiro nas almas, e depois naordem exterior das coisas que o homem faz. O retornointeiro ao que lhe é próprio.

Uma vassoura da capela e um anel de bispo

Eu diria que o sagrado opera por osmose. Uma coi-sa colocada muito em contato com algo de sagrado, ouque lhe presta apenas um serviço muito remoto, fica comalgo que adere a ela. E nós só não notamos porque te-mos o espírito muito leviano, superficial, e não damos adevida atenção às coisas. Por exemplo, um utensílio vul-gar, uma vassoura que, entretanto, tivesse sido usada pa-

ra varrer durante muitos anos uma igreja, especialmentea capela do Santíssimo Sacramento e a capelade Nossa Senhora, em um país distante, diga-mos, uma das ilhas da Indonésia.

Imaginemos que eu tivesse de embarcarnum navio de protestantes onde não houvessenada de sagrado, e no qual me comunicassema notícia de que o fim do mundo estava imi-nente. E, por uma circunstância fortuita, essa vassoura estivesse na embarcação.

Eu pegaria essa vassoura, a colocaria nomeu quarto e teria por ela um especial apre-

ço como remanescente de algo que tocou nosagrado: uma vassoura que varreu o Santuáriode Deus! Seria capaz de oscular o seu cabo to-dos os dias, de manhã e à noite.

Digamos que, ao invés de uma vassoura, medeixassem um objeto muitíssimo mais nobre: oanel de um bispo. O mundo iria acabar e, porisso, estaria por se extinguir inclusive o episco-pado, não haveria mais bispos sobre a Terra.Restara, entretanto, sobre o mundo prestes aser extinto, um anel episcopal.

Eu apanharia esse anel e o trataria direta-

mente como uma relíquia porque um bispo ca-tólico, fosse ele quem fosse, o usara. Se só is-so resta pela Terra, sinto-me ligado, por meiodessa simples relíquia, a todo o oceano de sa-cralidade que é a Igreja Católica e, através daSanta Igreja, com o Céu.

O cantochão, a capela do Santíssimo

O meu gosto pelo cantochão, mais do quepelo canto polifônico, provém exatamente de

que o primeiro é mais sacral. O canto polifônico tem al-gumas coisas admiravelmente sacrais, mas ele possuiqualquer coisa de aberto e, no abrir-se, alguma coisa dorecolhido, que é próprio ao sacral, se perde. Esse “fecha-do” sacral, não é hermeticamente fechado, mas é comose fecha a mão de um pai ou de uma mãe…

Uma capela do Santíssimo, por exemplo, eu conside-ro supervenerável porque naquele ambiente meio fecha-do temos um fenômeno curioso: o mistério aumenta a in-timidade. Em todas as coisas da vida, o mistério diminuia intimidade, mas em contato com o Santíssimo, não. Háuma maravilha qualquer no Santíssimo Sacramento poronde o seu mistério nos acalenta e nos aproxima d’Ele.Participa da bem-aventurança daqueles que amam semcompreender.

Fica-se ali, como que dizendo: “Estou em contato como incompreensível, com o invisível, com o infinito. Mas

nesse contato fico sabendo de alguma coisa que de tal

   D  a  r   i  o   I  a   l   l  o  r  e  n  z   i

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maneira é íntima, afável, bondosa para comigo, me per-doa, que entro naquilo como num refúgio.”

 Antes de Nosso Senhor Jesus Cristo, havia na Terra osacerdócio da Antiga Lei, prefigurativo do sacerdócio daNova Lei. O sacrifício no sentido pleno da palavra é o deNosso Senhor Jesus Cristo.

Porém, aquelas prefiguras tinham alguma coisa de sa-grado, razão pela qual quem tocasse na Arca da Aliança,sem as devidas licenças, ficava fulminado. Há uma por-ção de outras coisas que falam nesse sentido.

De modo que, no Antigo Testamento, não se estavano regime da graça, mas não no regime da mera nature-za. Havia um elemento divino presente na religião judai-ca antes de ela prevaricar, e a Igreja Católica é uma con-tinuação dela.

Os pais, o ancião, o herói de guerra

Também entre as coisas laicas existem algumas que, naordem natural, têm algo de sagrado. Por exemplo, o paie a mãe, independente do aspecto sacramental do casa-mento, pelo fato de serem esposos, pai e mãe, têm qual-quer coisa de sagrado. O ancião adquire qualquer coisade sagrado com relação aos mais novos. O herói de guer-ra, num nível mais baixo, mas sob certo ponto de vistamais excelente, adquire qualquer coisa de sagrado tam-bém. Toda autoridade tem algo de sacral. Sobretudo senota isso quando ela tem a convicção da sacralidade dopoder que possui.

Morreu há pouco tempo o Imperador do Japão, Hi-roito. Ele não era um imperador investi-do pela Igreja, mas um pagão. Entretan-to, nenhum de nós, por mais descontenteque estivesse com ele, teria coragem delhe dar umas bofetadas. Por quê? Ele éo Imperador do Japão, e isso se respeita!

Há mil formas de sacralidade  minor ,natural, incomparavelmente menos den-sas. E todos esses reluzimentos de umsagrado de uma ordem inferior existemtambém na vida minor .

Isso chega a tal ponto que, se se anali-sar com cuidado certas coisas de caráterpura e estritamente material, elas têmum “como que” de sagrado em relaçãoa outras coisas boas, criaturas retas deDeus, mas que não têm aquele sagrado.

Por exemplo, o cristal em relaçãoao vidro. O cristal é uma coisa que temqualquer coisa de sagrado. Nesses par-ques de diversão, se faz muitas vezes tiroao alvo, e põem como alvo pires, pratos e Serviço de café em porcelana de Sèvres

coisas semelhantes, de um material muito ordinário quequando é atingido se desfaz.

Se colocassem ali, como meta, uma porcelana deSèvres, ou de Limoges, ou taças de  champagne de cris-tal, nós diríamos: “Não faça essa barbárie!” É um comoque sacrilégio! Essas coisas têm qualquer coisa de sagra-do com relação às outras.

“Minha mentalidade e meu modo de ser são presididos pela ideia do sagrado”

Quando isso se dá numa sociedade de católicos, issose liga mais intimamente à Pessoa de Nosso Senhor JesusCristo. E as pessoas acabam respeitando, com um respei-to sobrenatural, essas formas naturais de sacralidade, emfunção do Redentor.

De onde se deduz que o mundo só está direito quan-

do embebido, reflete e reluz nele certa sacralidade. Daítambém o conceito de Cristandade. É uma sociedadetemporal sacral que se liga a Nosso Senhor Jesus Cristo,fundamento de toda sacralidade.

No fundo, é só por aí que os assuntos me interessam: adefesa da sacralidade.

Por exemplo, nas Cruzadas o élan de heroísmo é muitobonito; mas se fosse uma cruzada para salvar S.P.Q.R. —Senatus Populusque Romanorum2 — façam o que quise-rem, briguem, mas não me amolem! Não entrem no meucampo visual, porque não me interesso por vocês! Entre-tanto, bastaria pôr no alto do lábaro uma cruz: “Ah! En-

tão, está o sacral presente? Sou soldado nessa guerra!”

   B  r  o   k  e  n   S  p   h  e  r  e   (   C   C   3 .   0

   )

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SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS

Poderíamos fazer um exame de consciência a esse res-peito. Houve tempo em que todos nós tivemos muitopresente essa sacralidade, mais ou menos na ocasião danossa Primeira Comunhão, e depois fomos aos poucos,por oportunismo, aceitando aspectos não sacrais da vidamoderna. E gostando das coisas numa perspectiva laica.

Tudo na minha mentalidade, no meu modo de ser épresidido por essa ideia do sagrado. Não é uma ideiaabstrata, mas o conhecimento de que em Nosso SenhorJesus Cristo não está apenas como uma abstração ou co-mo uma utopia, mas que Ele é a fonte quente, borbu-lhante, eterna, inesgotável, perfeita, de tudo quanto é sa-grado, porque é o Homem-Deus!

Se querem conhecer minha personalidade, observem--me enquanto ultracultor do sagrado, embebido dissoaté onde possa ser. E o que não compreendam em mim,

procurem explicar por esse lado, que se torna claro

imediatamente.Há, por exemplo, um vocabulário distinto que es-tá para o trivial como uma coisa sagrada estaria pa-ra a não sagrada. De onde meu horror ao vocabu-lário trivial por causa disso. Quer dizer, não en-quanto linguagem popular, pois num homem dopovo se compreende, porque ele não faz na-

da que o diminua com isso. Mas um homemde cultura, que elevou seu espírito a certo

grau, rebaixar-se e tomar um vocabulárioinferior a seu nível é, em algum sentido,uma coisa análoga a dessacralizar-se.

 Sinfonia de desigualdades graduadas

Dentro da perspectiva da sacrali-dade, poder-se-ia perguntar se o ide-al para uma sociedade não seria umgoverno teocrático, no qual o podertemporal fosse apenas um acessóriodo poder espiritual que, de fato, di-rigiria o Estado.

Cheguei a me pôr esse problema

e percebia que isso não deveria serassim, mas não compreendia a ra-zão metafísica pela qual era maisexcelente a organização que Nos-so Senhor deu à Santa Igreja, dis-tinguindo-a do Estado. Foi-mepreciso maturar para entenderbem essa questão.

São Tomás de Aquino3  per-gunta se não seria melhor Deuster criado um único ser que en-

Sagrado Coração de JesusIgreja de Saint-Kilian,

 Alsácia, França

   R  a   l  p   h   H  a  m  m  a

  n  n   (   C   C   3 .   0

   )

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cerrasse em si todas as belezas e perfeições da Criação,ao invés de criar seres de excelências diversas. E respon-de que uma única criatura não seria suficiente para re-presentar a perfeição e a bondade divinas.

 A desigualdade repete de várias formas a relação en-tre o homem e Deus. E uma sinfonia de desigualdadesgraduadas é mais bela do que uma só nota — um mi ouum sol perfeitos — tocando por toda a eternidade.

Portanto, para que o homem possa conhecer bem aDeus, é preciso que haja toda uma clave de perfeições minores  governadas por um ente coletivo de perfeição minor , fazendo todo um mundo  minor   — a sociedadetemporal — distinto do mundo maior  da Igreja. Assim aglória de Deus reluz mais perfeitamente. Isso me pareceplenamente convincente.

Então, foi bom que houvesse uma gradação por on-de existissem elementos sacrais de um nível  minor , que

ficassem no domínio do Estado; enquanto os de ordem maior  pertencessem à esfera da Igreja. Como as coisasdo Estado são de ordem minor , devem ocupar dentro dohorizonte do homem, nesta Terra, uma posição  minor . Assim, o Estado propriamente temporal fica, não enco-lhido, mas com sua estatura natural; porém muito imbuí-do da sacralidade superior .

Estou dando a razão metafísica pela qual Nosso Se-nhor Jesus Cristo fez uma coisa mais excelente, instituin-do a Igreja e reconhecendo a existência do poder tempo-ral, do que estabelecendo um governo teocrático sacerdo-tal.

 Sacralidade da ordem temporal 

Na Idade Média, a Igreja tinha uma realidade enor-memente superior à do Estado. Mas era bom que hou- vesse hierarquias diversas, para exemplificar melhor asformas e os graus de sacralidade que existem no univer-so.

Com as imperfeições inerentes a tudo quanto é huma-no, eu acredito que a monarquia feudal medieval realizainteiramente o tipo ideal do governo humano, mostran-do bem a sacralidade da ordem temporal, abaixo da sa-

cralidade sobrenatural da ordem espiritual.Por exemplo, o que era o Papa em relação a qualquersoberano? É uma coisa a perder de vista! Há iluminurasda Idade Média representando uma cena hipotética, quenunca se deu: um Papa celebrando Missa com dois coroi-nhas: o Imperador do Sacro Império e o Rei da França.

Nisso eu vou inteiro, é como eu faria! Até já me pas-sou pela mente que no Reino de Maria seria preciso fa-zer isso. Não basta a analogia de uma iluminura; ela temque sair dos vitrais e entrar na vida. Saindo da igreja,esse imperador iria para seu palácio, teria sua co-

roa, sua corte, etc. Mas, cuidado! Ele do Papa não é se-não coroinha!

 Aqui está dada a proporção exata que nossas almasquereriam entre os dois poderes.

Uma coisa que exprime esse mesmo pensamento é oque historicamente se passou antes do cisma do Oriente.Quando os metropolitas de Moscou montavam a cava-lo, o tzar segurava o estribo para eles montarem. Depoisdo cisma, foram eles que passaram a segurar o estribo docavalo para o tzar...

Esse tema da sacralidade justificaria um acréscimo emmeu livro “Revolução de Contra-Revolução”, mas pare-ce-me que esta explicitação ainda não está pronta inte-lectualmente para ser apresentada.

Quando escrevi essa obra, na minha mente estava aconvicção disso, mas nem sequer no modesto grau de ex-plicitação em que apresento aqui, nesta reunião.

Se tomarem qualquer coisa que eu faça e a exami-narem, notarão haver uma noção de sacralidade alidentro. v

(Extraído de conferência de 13/4/1989)

1) Cornélio a Lápide (* 1567 - † 1637): jesuíta e exegeta fla-mengo.

2) Do latim: O Senado e o Povo dos Romanos. Antiga divisado Império Romano.

3) Cf. Suma Teológica, II - q. 47, a. 1.

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Ordenação e desregramento do

instinto de sociabilidade - II 

O

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O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO

 Analisando os desequilíbrios do instinto de sociabilidade

radicados no orgulho, Dr. Plinio explica como do

individualismo egoísta se chega à ditadura do coletivismo.

utro fator para desviar o curso normal do rela-cionamento é o orgulho. A pessoa não se con-tenta com o bom conceito, a consideração, o res-

peito que estão nas proporções comuns ter, mas ela querfruições violentíssimas de glória, só se contenta com ex-travagantes glórias imaginárias. A apoteose é a sua me-dida, e o que não for apoteose não lhe satisfaz.

Desejo de ser adorado

Resultado: a pessoa só concebe sonhos grandiosos, ir-realizáveis, ou realizáveis com custas tremendas. Para

quê? Para em certo momento beber a taça da admiraçãouniversal. É o relacionamento malfeito. A pessoa quer, de algum modo, substituir-se a Deus

e ser considerada como uma espécie de divindade. Querbeber da taça da admiração universal assim: não é queamem a Deus nele, por-que perde a graça, mas oamem como ele é. Colos-so é ele, a matriz de quali-dades inefáveis que os ou-tros devem amar enquantotais. Se Deus é ou não é au-

tor dessas qualidades, pou-co importa. Residem nele etêm que ser adoradas nele.Ele cobra essa adoração.

 Anseios desenfreadosde sociabilidade

 Anteriormente ao séculoXIX, duas grandes figuras dasociedade, com grandes suces-

sos, eram o guerreiro e o universitário. Ainda não haviao tipo do grande orador do mundo letrado e mundano, anão ser dentro das paredes da universidade. Então, eraum professor a quem os alunos forravam com as suas ca-pas o caminho para ele passar. Certas congregações uni- versitárias naquele tempo dão ideia da glória universitá-ria, como nós não imaginamos.

Havia outra forma de glorificação, mas essa estava mo-nopolizada pelas dinastias, e era o poder público, o man-do em grau supremo. Alguns monarcas eram sensíveis aisso. Então aspiravam esse mando, concebido um pou-co de modo salomônico. Era o sujeito que tinha o direito

de mandar, mas ao mesmo tempo um homem completo,reunindo em si a glória militar com uma sabedoria maior

Da esquerda para a direita:Frederico II, José II e Luís XIV

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do que a do universitário, e que este venerava. Era o reisábio e guerreiro, que presidia a corte e a organizava.Quando se queria elogiar alguém, o intitulava de “Sa-

lomão”. Frederico II1 foi chamado de “Salomão do Nor-te”. Se há um homem que quis ser “Salomão” e não con-seguiu foi José II2. Outro que bateu as asas um pouqui-nho na grandeza salomônica e não conseguiu voar até oalto e caiu baixo foi Luís XIV.

Tudo isso são desejos de sociabilidade desenfreadosque começam pelo individualismo. Segrega o indivíduo doconvívio social por uma aventura individual, ainda que se- ja do herói que se destaca e fica brilhando aos olhos de to-

do mundo, levando o afeto de todos atrás dele. Até a atriz — a era por excelência das atrizes de tea-tro célebres foi o século XIX — que quando acabava seupapel no teatro choviam bouquets de flores, e até caixascom joias para ela. Eram convidadas para banquetes emcasas nobres, etc. Tudo isso junto constituía a atração deum afeto universal que satisfazia até à pletora o instintode sociabilidade.

Foi o povinho que se levantoucontra a Revolução Francesa

 À margem disso ficou sempre uma cota de populaçãoainda não afetada por essa deformação das elites que seoperou no fim da Idade Média e foi lentamente se espa-lhando pelas cortes, depois descendo para a alta burgue-sia e que durante muito tempo não tomou a plebe.

De maneira que o equilíbrio medieval que descrevi,com a sociabilidade temperante e bem centrada em Nos-so Senhor, demorou a desaparecer. E o povinho de Pa-ris que constituiu a Liga Católica, chefiada pelos Gui-se, contra os protestantes, não era levado por esses sen-timentos, mas ainda era o pequeno povo de Deus que se

mantinha na linha antiga. E era esse o verdadeiro susten-táculo dos restos da Idade Média e do Ancien Régime nas vésperas da Revolução Francesa.

Quando analisamos os acontecimentos durante a Re- volução, notamos que quem se levantou contra ela foramas camadas não contaminadas por essa marcha de ego-ísmo subjetivo, introspectivo, e foram essas populaçõesque defenderam as antigas instituições. Restos de esta-dos de espírito assim, nos nobres e no clero ainda nãocontaminados, levaram também a certa defesa das an-tigas instituições. Mas o apoio era essa massa normal,tranquila, em que o instinto de sociabilidade não tinha si-

do deformado tão profundamente.

O romance, o teatro ambulante, asestradas de ferro, a industrialização

Com o progresso da tipografia, os romances de amorse espalharam por toda a massa da população das gran-des cidades. Ao lado dos romances, difundiram-se tam-bém as companhias teatrais ambulantes que iam de cida-de em cidade levando, infalível e invariavelmente, as pes-soas a sonharem com o drama amoroso que desarticu-lava completamente a sociabilidade dos tempos antigos,

porque introduzia uma vibração nova, intensa, que mata- va todas as outras e arrastava tudo no seu furacão. A própria massa camponesa começou a ser mais atingi-

da por isso com o estabelecimento das estradas de ferro, afacilidade de ir para o interior, mas também com a atraçãoenorme que as grandes cidades foram exercendo, por cau-sa da industrialização, sobre as pessoas do campo.

 As pessoas que viajavam para a cidade entravam nocircuito do romance. Quando iam passar férias no cam-po, levavam essa vibração e essa disposição, deixandosempre sementes atrás de si.

Vandeanos pedem a Cathelineau que chefie a insurreição - Museu Bernard d’Agesci, Niort, FrançaMissa em alto mar, em 1793 - Museu de Belas Artes, Rennes, França

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O PENSAMENTO FILOSÓFICO DE DR. PLINIO

   P  a  r   i  s   1   6   (   C   C   3 .   0

   )

Tomada da Câmara Municipal de Paris em 1830Museu Nacional, Versailles, França

Havia uma interação campo--cidade que fazia com que a ci-dade influenciasse muito mais ocampo do que o campo a cidade.De maneira que isso se espalhoucomo uma mancha de azeite, lar-gamente.

O que deu o “golpe de miseri-córdia” foi a possibilidade de tercinema por toda parte, depois orádio e, mais tarde, a televisão.

Escravidão ao coletivismo

Como se explica que desse in-dividualismo egoísta se chegue aocoletivismo?

Dizem os franceses: Tout passe,tout lasse, tout casse et tout se rem-

 place3. À força de se esfregar nes-se mito, ele se desgasta e as pes-soas acabam percebendo a irrea-lidade dele. E um indivíduo, ao perceber essa irrealida-de, fica mais ou menos como um drogado do qual tira-ram a droga. Ele acha que a vida inteira não tem maisgraça, perdeu todo o interesse, o entusiasmo, o  élan, eque seu problema individual não existe, seu interior estácomo caramujo vazio, que só emite ruídos ocos à manei-ra de um mar que não significa nada.

Então o indivíduo olha para o mundo e encontra ou-tro elemento que estimula sua sociabilidade. Ele perce-be que esse mundo está engajado num ritmo de traba-lho acelerado e muito interessante, enquanto é um cor-re-corre, com vibrações próprias, que lhe dão um gosto,um gáudio próprio de viver por todos vibrarem da mes-ma maneira.

Então, essa covibração o instala de novo no meio dosoutros. E ele passa do homem que vivia no seu isolamen-to, para o homem cuja sociabilidade leva a perder-se nomeio dos outros, na covibração dos outros.

Notem o seguinte: é tão possante o instinto de sociabi-

lidade, que esses amorosos que se isolavam em parques,em jardins, de fato faziam assim porque sabiam que to-dos se isolavam. Irem todos ao parque-jardim e váriaspencas de amorosos se cruzarem uns aos outros, era umisolamento sincrônico. Se eles devessem enfrentar a opi-nião universal que os desprezasse de fato por isso, o Tris-tão e a Isolda se separariam na mesma hora. E o amormais violento ficava reduzido a cacos, se eles soubessemque todo mundo desprezava isso.

De maneira que, mesmo nos delírios do individualis-mo, ainda é a escravidão ao coletivismo que dá o tom. E

o que no fundo move é o fato de todo mundo estar cons-ciente de ser acompanhado por todo mundo.

Psique coletiva de uma pequena cidade

Evidentemente, as coisas não se passaram esquema-ticamente como estou descrevendo: acabou a “lango-

rosidade” e só então começa aparecer o gosto do cole-tivismo, das vibrações. À medida que a “langorosidade”amorosa foi decaindo, já o coletivismo das vibrações foisubstituindo. Não houve hiatos. Antes de a época seguin-te reinar, ela já invade a anterior, e ambas convivem até aanterior morrer. Essas coisas se interpenetram como naembocadura de um rio.

Vamos tomar como exemplo uma cidade pequena,com cerca de vinte mil habitantes.

Pela natural distribuição das coisas, algumas pessoastêm muito mais aptidão, necessidade, predisposição, feitio— às vezes sem perceber — para viverem num intercâm-

bio tão grande, ágil e rápido umas com as outras, que for-mam uma psique comum da cidade, com o temperamen-to próprio à cidade. É gente que quando acontece algumacoisa na cidade, faz parte ativa do grande bolo — em vintemil habitantes, um grande bolo de talvez treze, quinze milhabitantes — que vibram em uníssono a respeito de tudo.

E não só diante de um acontecimento. Nas horas emque não acontece nada, elas descansam do mesmo mo-do, gozam do mesmo estado psíquico e temperamental,gozam do não fazer nada, como poderão depois gozardo fazer alguma coisa. Vivem do mesmo ritmo e da mes-

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Busto de VoltaireFerney, França

ma vida que circula entre todas elas porque, como se in-terpenetram muito, acabam formando um elemento co-mum entre si, que é a tal psique coletiva.

Depois haverá umas cinco, sete mil pessoas dentrodas vinte mil que são isso menos intensamente e queconstituem uma aba um pouco esclerosada. Mas são as-sim muito mais por bronquice do que por qualquer ou-tra razão. Não por uma resistência ideológica, mas por-que são mais átonas, mais broncas, vibram menos e estãomais voltadas para uma espécie de atonia absoluta.

Essa psique assim constituída passa por muitas ou portodas as alternações dos vaivens da alma humana comum.

Os pecados coletivos das nações

 A alma humana tem épocas em que quer mais uma coi-sa, e épocas em que deseja mais outra. Assim também es-

sa psique comum, ora quer mais isto, ora quer mais aqui-lo. E os indivíduos que estão engajados, todos eles, comouma espécie de plantação sobre a qual sopra o vento, seinclinam à vista do império dessas necessidades.

É um fenômeno instintivo também. Não confundamisso com esnobismo. Este é o esforço brutal que o indiví-duo, que seria recalcitrante, faz para se pôr dentro dessesopro. Neste caso não, o sopro é instintivo.

Há épocas em que o homem é festeiro, épocas em que elese torna “raciocinante” e épocas em que ele se torna senti-mental. Às vezes num mesmo dia o homem pode passar pelapredominância de um desses três estados de espírito.

O Iluminismo coincidiu com o período em que essaalma comum quis se pôr a raciocinar. Então foi a era dapopularidade dos Descartes e dos Voltaire.

E a Revolução sofística, como a tendencial, tem perío-dos de maior ou de menor receptividade conforme as dispo-sições dessa “alma” de doze mil pessoas. As almas de cadauma delas, postas em comum, sopram numa direção, nou-tra direção, de modo isócrono. É o instinto de sociabilidade.

Praticamente os grandes pecados dahumanidade são cometidos por es-

sas sociedades. Daí o fato daresponsabilidade pelo dei-

cídio cair menos sobre es-te ou aquele indivíduo doque sobre a massa da na-ção, o povo. Porque é fa-to que esse povo foi manu-seado. Esses manuseado-res têm uma responsabili-dade enorme. Mas o povo,

em última análise, é o que aceita ou rejeita o manuseio.E nisso ele é o grande executor da caminhada histórica.

E é por força desse instinto de sociabilidade assim,dessa imposição de todas as personalidades intensamen-te comunitárias, que se fazem os grandes pecados coleti- vos das nações.

O prazer cibernético

O prazer de certos homens modernos é o prazer ciber-nético de se tornar vibração pura, mera sensação coleti- va e independente do pensamento. É a animalidade quese liberta da inteligência e de todo contato com tudo quenão seja a própria animalidade, e que encontra o gostode ser ela mesma.

Para essa posição tende o mundo todo contemporâ-neo. É um pecado que não bastaria dizer que foi fomen-

tado por esse ou por aquele, porque teve o consentimen-to individual de milhões. E foi esse consentimento queconstituiu o pecado da coletividade.

Naturalmente, alguém habituado aos padrões da Re- volução sofística, pensa: “Voltaire escreveu um livro, qui-nhentos indivíduos o seguiram.”

Mas a questão é: Quem impulsionou a tendência?Voltaire escreveu um livro, quinhentos o seguiram. Porque o acompanharam? Por que não o seguiriam na Ida-de Média?

Quer dizer, Voltaire tem uma parte enorme de peca-do, mas o grande pecador é a coletividade. Do contrário

seria negar o livre arbítrio. O homem é o principal res-ponsável do seu próprio pecado. Ele tem graças para evi-tar o pecado; se pecou é o responsável essencial, tenha ti-do Voltaire o caminho que teve.

Desde o começo esse pecado falseou o senso da socia-bilidade e, falseando, fez da sociedade um canteiro elei-to para a semeadura da Revolução; os homens todos usa-ram a sociedade e a sociabilidade para pecar. Acovarda-ram-se diante da Revolução porque não ousaram rom-per com o princípio da escravização à sociedade, não ou-saram ficar sós, ser diferentes.

Os homens não deveriam estar sujeitos à mera socia-

bilidade. Somos criaturas humanas, batizadas, temos Fé!E o que nos guia é a nossa Fé! v

 

(Extraído de conferência

 de 5/1/1984)

1) Rei da Prússia de 1740 a 1786.2) Imperador do Sacro Império Romano-Germânico de 1765

a 1790.3) Tudo passa, tudo cansa, tudo quebra e tudo se substitui.

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 Modalidades de sofrimento - II 

 A

20

DR. PLINIO COMENTA...

Os sofrimentos da alma, por serem os mais penosos,

podem levar a pessoa a buscar refúgio na irrealidade que,

ao invés de aliviar os padecimentos, agrava-os, tornando

o ser humano escravo de suas próprias mentiras.

Nessa dor de alma entram os sofrimentos que a vidaimpõe por causa da realidade, e depois as dores que vêmpara o homem por motivo da irrealidade.

Quando o homem não quer ir para onde Deus dese- ja, ele se põe a fazer imagens erradas das coisas e formauma ideia irreal da vida. E ruma para uma meta que nãoé aquela para a qual ele deveria caminhar, e que não érealmente a dele. E se faz uma espécie de vida de menti-ra dentro dele e em torno dele, que o atormenta enorme-

mente mais do que a realidade que ele seguiria, cheia decontradições, de absurdos, de fricções, etc. Mas, de ou-tro lado, ele se convence cada vez mais de que ele nãoaguenta esta vida tão dura, a não ser carregando as men-tiras. As mentiras que são uma causa potentíssima do so-frimento, ele julga que, se não as carregar, não suporta.

Então, ao mesmo tempo ele aguenta a causa do sofri-mento e esta lhe produz efeitos pelos quais ele se julganecessariamente preso à causa. Isso forma um círculo vi-cioso que leva o indivíduo não se sabe até onde.

 São Gregório VII: semelhante a um

toureiro que investe contra o touroUma figura histórica pela qual tenho um respeito

enorme é São Gregório VII. O que mais gosto nele é vercomo ele viveu dentro da verdade. Isso é também assimnos outros Santos, mas nele esta característica fica parti-cularmente clara aos meus olhos.

Se ele não visse inteiramente de frente a situação naqual se encontrava, poderia se tapear, levar uma vida maisou menos cômoda como Papa, e até iludir-se, fazendo vá-rias coisas boas. Mas ele não teria cumprido o seu dever.

respeito do sofrimento da alma haveria ain-da algo a acrescentar e que é o seguinte:

Sendo esta Terra um vale de lágrimas, a vidahumana passa-se de maneira a fazer o homem sofrer tan-to do ponto de vista físico, material, como do espiritual,conforme as várias formas de sofrimento de que tratei.

Dores causadas pela realidadee pela irrealidade

Na existência do homem o jogo de seus anseios, a fina-lidade a que ele se propõe ou para a qual Deus o destina— na medida em que ele conhece, segue, deseja ou nãoessa finalidade — fazem com que, para todo ser humano, viver acabe sendo uma batalha terrível.

Porque há uma irremediável desconexão entre o queele quereria como satisfação, como prazeres de alma, in-clusive legítimos — não estou me referindo apenas aosilegítimos —, e aquilo que de fato a vida lhe dará. E eletem que sorver o cálice duríssimo na vida que é o enigmade cada homem.

 Adivinhar isso em outro homem é extraordinariamen-te difícil. E, em geral, o homem carrega esse seu proble-ma de tal maneira que os outros imaginam que ele tenhatodos os problemas, menos aquele que realmente tem.Quer dizer, ele carrega isso no isolamento.

Essa é propriamente uma dor de alma e não do corpo. A dor do corpo pode aumentar a da alma. É muito piorter aborrecimento acrescido de uma dor ciática, do queter só o aborrecimento. A dor ciática pode agravar mui-to. Mas, de fato, o aborrecimento é tanto mais, que a dorciática não é nada em comparação com ele.

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   P  r  e  u  s  a  c   h  s  e

   (   C   C   3 .   0   )

Henrique IV em Canossa - PalácioMaximilianeum, Munique, Alemanha

Empolga-me e acho uma mara- vilha vê-lo à maneira de um tourei-ro que entra diretamente na arenae faz aquele lance com a capa e aespada por cima do touro, como adizer:

“O caso que eu tenho é um só:com o Império1. O próprio assun-to dos sarracenos se resolverá seeu solucionar o caso do Império.Como seria agradável se eu pudes-se combater os meus inimigos os-tensivos. Tenho inimigos pendura-dos em mim e que são os meus fi-lhos. E este meu filho a vários tí-tulos primogênito, o Imperadordo Sacro Império Romano-Ale-

mão, está querendo me assassinar!Irei de encontro a ele e sustenta-rei a batalha. Verei o perigo inteirocomo é, e lançarei a ele o contrá-rio do que ele quer, de tal manei-ra que entre mim e ele não haverápaz possível.”

Vê-se nele um homem que emnada procurou iludir-se, em nadabuscou um caminho que não era o seu, mas que olhoude frente.

Ele pediu auxílio para defender-se contra Henrique

IV, e depois morreu exilado. Consta que, parafraseandoo Salmo que diz: “Amas a justiça e odeias a iniquidade,por isso Deus te consagrou com o óleo da alegria”2, SãoGregório teria afirmado: “Amei a justiça e odiei a iniqui-dade, por isso morro no exílio!”

É o princípio axiológico3 quebrado. Mas é um homemque não teve falsas dores de espírito em nada. Viu a coi-sa de frente!

Nosso Senhor Jesus Cristo fez exatamente isso: foi deencontro aos que O podiam matar e levar a obra d’Elepara a ruína. E Ele os enfrentou, ainda que desse emba-te saísse a solução antiaxiológica. Nisso estava a axiolo-

gia d’Ele.

Exemplo perfeito de amizade: os sete santos fundadores dos Servitas

Façamos agora a relação de tudo isso com almas mui-to especialmente chamadas. Ou essas almas avançam porcima de sua própria antiaxiologia, e com coragem, ounão têm nada feito.

Quer dizer, devem compreender que, em vários episó-dios de sua vocação, esta vai lhes parecer antiaxiológica,

e precisam, apesar disso, continuara avançar de qualquer jeito, mesmopara o absurdo e para a catástrofe,colocando sua confiança em Deus.

 A alma que conserva qualquernostalgia de tal alma irmã, no fundoespera de outra criatura o que elasó pode receber de Deus! Seja noterreno alma irmã homem-mulher,seja no terreno mais inocente, e porisso menos carregado de veneno,amigo a amigo. Não conseguirá! OuDeus dá, ou não terá…

Para mim, o exemplo perfeito deamizade, que estou me lembran-do no momento, é São Filipe Bení-cio, um dos sete santos fundadores

da Ordem dos Servos de Maria. To-dos eles foram enterrados juntos, eas suas cinzas se misturaram. É umacoisa extraordinária!

 As relações entre eles eram re-almente admiráveis, mas não nes-se sentido de uma alma que encon-trou em outra o seu complemento.É algo diferente. É Deus que esta-

 va presente numa alma e vendo-Se também presente naoutra, formou o amor que o Altíssimo tem a Ele mesmo.É outra coisa.

Esperar encontrar noutra criatura uma espécie de pa-raíso de contemplação em que a alma tem esse deleite, éinútil. Ou acha ali dentro Deus, então está certo, ou seencontrar apenas outra alma, deparou-se com um blefe.Garrafa vazia… É preciso compreender bem isso. v

 

(Extraído de conferência de 23/11/1983)

1) Dr. Plinio se refere à contenda entre o Papa São GregórioVII e o Imperador do Sacro Império Romano-Germânico,Henrique IV. Esta luta, motivada pela questão sobre se asinvestiduras eclesiásticas poderiam ser conferidas pelo po-der temporal, teve como alguns de seus pontos culminantesa excomunhão do Imperador, sua peregrinação ao castelode Canossa para pedir perdão ao Papa e a posterior invasãode Roma, por Henrique IV, para tentar remover São Gregó-rio VII e substituí-lo por um antipapa.

2) Sl 45, 8.3) Termo derivado de “Axiologia”: ramo da Filosofia que estu-

da os “valores”, isto é, os motivos e as aspirações superiorese universais do homem, as condições e razões que dão ru-mo à sua existência, para os quais ele tende por insuprimívelimpulso da sua natureza.

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––––––––––––––––– * M ARÇO *  ––––

  23

Santa Francisca Romana

G  O  6  9   (  C  C   3  .0   ) 

15. VI Domingo da Quaresma.Beato João Adalberto Balicki, presbítero (†1948). Rei-

tor do seminário de Przemysl, Polônia. Dedicou-se à ad-ministração do Sacramento da Penitência e à formaçãodos jovens seminaristas.

16. Santo Heriberto, bispo (†1021). Sendo chanceler doimperador Oto III, foi eleito contra sua vontade para a se-de episcopal de Colônia, Alemanha. Fundou a abadia be-neditina de Deutz.

17. São Patrício, bispo (†461).Beato João Nepomuceno Zegri y Moreno, presbítero

(†1905). Fundou a Congregação das Irmãs Mercedárias

da Caridade, em Málaga, Espanha.18. São Cirilo de Jerusalém, bispo e Doutor da Igreja

(†c. 386).Beata Celestina da Mãe de Deus,  virgem (†1925). Fun-

dou em Florença, Itália, a Congregação das Filhas Pobresde São José de Calazans.

19. São José, esposo da Bem-Aventurada Virgem Maria,Padroeiro da Igreja Universal. Ver página 24.

20. Beato Hipólito Galantini, leigo (†1619). Fundador

da Irmandade da Doutrina Cristã, trabalhou na formaçãocatequética dos pobres e humildes.

21. Santo Endeus, abade (†c. 542). Obteve do rei Oengusa ilha de Aran, na baia de Galway, Irlanda, onde fundou ummosteiro.

22. V Domingo da Quaresma.São Basílio de Ancira, presbítero e mártir (†362). Du-

rante o reinado de Constâncio, lutou contra os arianos eno tempo do imperador Juliano foi torturado até a morteem Ancara, Turquia.

23. São Turíbio de Mogrovejo, bispo (†1606).Santa Rebeca (Rafqa) Choboq Ar-Rayès,  virgem (†1914).

Religiosa da Ordem Libanesa das Maronitas de Santo Antônio, atingida pela cegueira e outras enfermidades,perseverou durante 30 anos, em contínua oração.

24. Beata Maria Seraf ina do Sagrado Coração,  vi r-gem (†1911). Fundou em Caserta, Itália, a Congregaçãodas Irmãs dos Anjos, adoradoras da Santíssima Trin-dade.

25. Anunciação do Senhor.Santa Lúcia Filippini,  virgem (†1732). Para promover

a formação das jovens e mulheres, fundou o Instituto dasPiedosas Mestras em Montefiascone, Itália.

26. Santo Eutíquio, mártir (†356). Subdiácono de Ale- xandria, que no tempo do imperador Constâncio, morreuem defesa da Fé.

27. Beato Francisco Faà di Bruno, presbítero (†1888). Associou diligentemente a ciência da matemática e da físicacom o ardor das obras de caridade. Morreu em Turim, Itália.

28. Santo Estêvão Harding, abade (†1134). Um dosfundadores do Mosteiro de Cister, França, do qual foi aba-de e no qual recebeu São Bernardo de Claraval com seus30 companheiros. Fundou doze mosteiros.

29. Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor.São Marcos de Aretusa, bispo (†364). Bispo de Aretusa,

atual Al-Rastan, Síria, que durante a controvérsia ariana

nunca se desviou da verdadeira Fé e sofreu violenta perse-guição no tempo do imperador Juliano, o Apóstata.

30. São Júlio Álvarez, presbítero e mártir (†1927). Pá-roco de Mechoacanejo, México, fuzilado durante perse-guição religiosa.

31. Beata Natália Tulasiewicz, mártir (†1945). Durantea ocupação militar na Polônia, foi presa no campo deconcentração de Ravensbrück e executada pela inalaçãode gás letal.

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O

 Nobreza e lógica de São José 

24

HAGIOGRAFIA

 Amor à hierarquia e espírito lógico são características fundamentais

do contrarrevolucionário. Dr. Plinio analisa as razões pelas quais São

José pode e deve ser cultuado enquanto nobre, e louva a lógica, levada

até o heroísmo, do Patrono da Santa Igreja.

texto que pretendo comentar é tirado do capítu-lo VII do livro “Suma dos dons de São José”, doPadre Isidoro de Isolano, dominicano do século

XVI, um dos primeiros teólogos católicos a atacar Lute-ro. É de longe o mais importante Doutor da Teologia so-bre São José. Esta ficha parece conter dados muito inte-ressantes a respeito deste Santo e o espírito da Contra--Revolução.

Carpinteiro e príncipe da Casa de Davi

 Não está muito conforme com os mistérios das Sagradas

 Letras essa nobreza de sangue tão louvada em São José.

 Aqui o autor cuida de São José enquanto nobre desangue. Ele era, ao mesmo tempo, trabalhador manual,

carpinteiro e, como tal, pertencente — ao menos do pon-to de vista econômico — à camada mais modesta da so-ciedade. Mas, de outro lado, descendia do Rei Davi e detoda uma linhagem de reis de Israel.

 A Casa de Davi decaiu e, com o tempo, perdeu o tro-no e afastou-se do poder. Seus membros continuaram amorar em Israel, mas essa Casa era cada vez menos in-fluente, menos poderosa e menos rica. A tal ponto quequando, afinal, da raça de Davi nasceu Aquele que, naintenção de Deus, era a razão de ser da raça, Nosso Se-nhor Jesus Cristo — a esperança e a alegria de todo o po- vo, e que deveria ser um filho de Davi —, a Casa de Davi

estava no auge de sua decadência.E São José era um trabalhador manual, um mero car-pinteiro. É bem verdade que, nessas sociedades muitorudimentares, as classes sociais e econômicas não se di-ferenciam de um modo absolutamente tão nítido quantonas sociedades mais desenvolvidas; e nem sempre é umsinal de muita decadência econômica o fato de a pessoater pertencido a uma grande família e passar a exercerum trabalho manual.

Conheço zonas do interior do Brasil, por exemplo, emque das grandes famílias do lugar há gente que é, por

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exemplo, chauffeur  de praça, carregador da estação, oualgo análogo, mas que se casa com ramos mais ricos dafamília e, depois, ascende novamente na escala social.

Portanto, essa situação de São José não queria dizernecessariamente tanta prostração quanto seria a de umdescendente de reis que chegasse a ser, hoje em dia, tra-balhador manual. Mas ao menos se pode afirmar queera, na ordem econômica das coisas, o mínimo que umapessoa pode ser.

Então, São José pode e deve ser cultuado enquan-to operário, mas também enquanto príncipe da Casa deDavi. É por essa razão que, falando a respeito dele, o Pa-pa Leão XIII, um dos Pontífices que mais inculcaram adevoção a São José, disse taxativamente que este Santodeve ser cultuado não só como modelo do príncipe, mastambém como o modelo, o ânimo, o estímulo de todosaqueles que pertencessem a grandes linhagens decaden-

tes; para que essas pessoas compreendam como, pela vir-tude, pela fidelidade a Deus, podem erguer-se ao maisalto grau da santidade e realizar esplendidamente os de-sígnios da Providência sobre elas.

 Argumentação tomista

O Padre Isidoro de Isolano está analisando, precisa-mente nesse capítulo, São José enquanto aristocrata. En-tão, escreve ele:

São José foi eleito para conhecer a verdade do Verbo de

 Deus. São Paulo disse: “Não há, entre vós, muitos sábios

 segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos no- bres. Antes escolheu Deus a estultice do mundo para con-

 fundir os sábios, e a fraqueza para confundir os fortes”

(1Cor 1, 27). Logo, não se deve louvar a nobreza de São Jo-

 sé, escolhido por Deus.

Percebe-se que o autor adota o método de São Tomásde Aquino. Ao tratar desse tema, o Doutor Angélico per-guntaria, por exemplo: “Deve ser São José louvado tam-bém enquanto nobre?”

Então ele daria, em primeiro lugar, as razões pelasquais parece que não deve. Citaria um, dois, três argu-

mentos negativos. Depois apresentaria os argumentospositivos, como quem faz um cálculo de conta corrente:tem o débito e depois o crédito. Por fim, tira a conclu-são: Se tais são os argumentos pró e tais os contra, comoresponder? Então ele refuta os argumentos da tese queele quer refutar, faz alguma grande citação em abono daideia dele — sobretudo citações da Sagrada Escritura —e depois tira a conclusão. É o método lógico perfeito.

Nota-se, então, que o Padre Isidoro adota esse mesmoprocesso. Começa por dar os motivos pelos quais não sedeve louvar a nobreza de São José. E aqui está uma ra-

zão tirada de São Paulo que, dirigindo-se aos primeiroscatólicos, diz: “Entre vós não há muitos que sejam cul-tos, nem nobres, nem poderosos de acordo com o mun-do. Mas desde que sirvam a Deus, isso basta.” Então, daíse tira um argumento contra a nobreza, a cultura, o po-der, que são coisas sem importância e não devem ser lou- vadas. É o primeiro argumento, que depois ele vai reba-ter. E continua:

 Isso mesmo se confirma com a autoridade da Glosa so-

 bre essas palavras do Apóstolo: “O Deus humilde veio a

 buscar os humildes e não os poderosos, entre os quais são

 considerados os nobres pelos mortais.” 

Esgrima da inteligência

No século XVI os nobres eram considerados podero-sos. Na reviravolta das coisas de hoje, um diretor de sin-

dicato é, o mais das vezes, mais poderoso do que um du-que. Então, ele diz: “Se é verdade que Nosso Senhor JesusCristo, ao encarnar-Se, não veio procurar os poderosos —os nobres, portanto —, não há importância em ser nobre.Logo, não se deve louvar São José enquanto nobre.”

E passa adiante: A humildade de Deus foi extrema na Encarnação. Mais

 humilhação era escolher um pai putativo pobre do que um

 nobre. Logo, não deve elevar-se a nobreza de São José.

 A argumentação está muito bem desenvolvida. NossoSenhor Jesus Cristo veio para Se humilhar. Por isso esco-lheu um pobre como pai putativo, isto é, a quem se atri-

bui a paternidade, mas que não era o verdadeiro pai. En-tão, não tem importância que esse pobre seja nobre. Nos-so Senhor também não olhou para isso, mas apenas pa-ra o lado da pobreza. Portanto, ser nobre não vale nada.

Continua o autor: A nobreza não parece ser outra coisa senão a antiguida-

 de das riquezas, como disse Aristóteles. E José, pobre até o

 ponto de ter que exercer o ofício de carpinteiro para ganhar

 o pão de cada dia, não podia gabar-se de ser nobre.

O argumento também é interessante. Diz ele que, se-gundo Aristóteles, a verdadeira nobreza é ter uma fortu-na muito antiga. Quem tem uma fortuna que passou por

 várias gerações, esse ficou nobre. Ora, São José não ti-nha nenhuma fortuna e, portanto, já não era nobre. Lo-go, não era o caso de louvar a nobreza dele.

Esses argumentos parecem-me muito bem feitos, oautor sabia objetar bem. Deve fazer parte da destrezado nosso espírito que apreciemos esse florete da argu-mentação, gostemos de ver argumentos feitos ainda quesejam contra nossas teses para, depois, dar a nossa res-posta. É como uma esgrima. Muito mais alta e mais belado que a esgrima da espada é a esgrima da inteligência. Aqui estão quatro estocadas bem desferidas contra nós.

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26

HAGIOGRAFIA

Vamos ver, agora, como o nosso bom padre responde aessas estocadas.

Descendente de rei, de sacerdote e de profeta

 Para solucionar essa dificuldade, tenha-se em conta que

 a nobreza humana pode considerar-se em sua causa, em

 sua essência e em sua ação.

Está muito bem lançado! Para responder, começarpor ver o que é a nobreza, para depois desencaixar daí osargumentos contrários. E, para saber o que é a nobreza,ela deve ser considerada em sua causa, em sua essênciae em suas ações, ou seja, no que a causou, no que ela é eno que ela causa. Está perfeito. Não falta nada!

Considerando-a em sua causa, é a nobreza de origem,

 no que foi singularíssimo São José, pois tem sua ori-

 gem numa tríplice dignidade: corporal, espiritual e

 celeste. Ou seja, uma dignidade real, sacerdotal e profética, que é celestial, pois predizer o futuro é só

 de Deus. Davi foi rei, Abraão foi patriarca, Natã,

 profeta, e os três foram antepassados de São José.

 Ao analisar a causa da nobreza de São José, oPadre Isidoro explica que ele descende de varõesdignos a três títulos diferentes: segundo o corpo,por ser descendente de rei; conforme o espíri-to, por descender de estirpe sacerdotal; se-gundo as coisas sobrenaturais, porque eradescendente de profeta.

Ora, descender de rei, de profeta e

de sacerdote confere a mais alta no-breza que uma pessoa possa ter. Éesplendidamente bem argumentado.

Que relação há entre rei e corpo?O rei é o chefe do Estado. O Estado cui-da, entre os homens, daquilo que diz respei-to ao corpo.

O sacerdote faz para a alma o que o Es-tado realiza para o corpo. Ele cuida dascoisas da alma, do espírito.

O profeta é o representante de Deus, oporta-voz da palavra do Altíssimo. Sobre-

tudo quando se trata do profetismo ofi-cial, de um homem mandado por Deuse cuja missão era garantida com mila-gres, e que falava oficialmente em nomedo Criador, como o embaixador fala ofi-cialmente em nome de seu rei. Evidente-mente isso é uma altíssima situação, umaaltíssima missão.

São José tinha, portanto, as três causasmais altas de nobreza, representativas detrês aspectos da vida do homem: o aspec-

to material, o espiritual e a representação de Deus. É mui-to bem tratado, superiormente inteligente.

Vejamos agora o que ele diz sobre a essência.

Varão justo, esposo da Rainha do

Céu e pai nutrício de JesusSão José era nobre em sua essência, quer dizer, na sua

 própria pessoa, porque encontramos nela tríplice nobreza:

 ele foi justo em sua alma, alcançou a dignidade de espo-

 so da Rainha do Céu e teve ofício de pai nutrício do Filho

 de Deus.

Consideremos que aquele fotógrafo, Antony Arms-trong-Jones, que se casou com a Princesa Margaret, irmãda Rainha Elizabeth da Inglaterra, antes do casamento

foi elevado à dignidade de Conde de Snowdon,porque para se casar com a irmã da Rainha tem

que ser nobre.Mas que pouca coisa é ser casado com a irmãda rainha, em comparação de ser esposo da Mãede Deus! Se isso não constitui nobreza, e se o ho-mem que se casou com a Mãe de Deus não é no-bre, então não há nobreza na Terra! O estadodele é, por definição, nobiliárquico.

Nossa Senhora é Rainha do Céu e da Ter-ra, não por uma alegoria, uma ima-gem, mas Ela o é efetiva e autenti-camente. Se a Rainha Elizabeth fos-se católica e reconhecesse, portan-

to, a realeza da Santíssima Virgem,ela, aparecendo diante de Nossa Se-nhora, teria que se ajoelhar e colo-

car a coroa dela aos pés da Mãe deDeus. Porque onde Nossa Senhora es-tá ninguém é rei, ninguém é rainha. So-mente Ela é a Rainha e tem todo o po-der. Os reis e as rainhas não são senão os

representantes d’Ela. Nossa Senhora é quemanda, porque todo o poder que Deus temsobre o universo, Ele deu a Ela. Maria San-tíssima é a Rainha de todo o universo. Ora,

aquele que se casa com a Rainha de todo ouniverso é nobre, evidentemente.Notem a coisa interessante: antes de men-

cionar a nobreza de São José como fidalgocasado com Nossa Senhora, o autor refere anobreza de São José porque ele era justo, um varão virtuoso que vivia na graça de Deus.

Temos aí uma tese muito interessanteem matéria de nobreza. Aos olhos dos ho-mens, um nobre pode valer mais do que umplebeu, porque não está escrito na fronte

   D  a  v   i   d   D  o  m   i  n  g  u  e  s

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de ninguém se ele está ou não na graça divina. Mas, aosolhos de Deus, o plebeu em estado de graça vale incom-paravelmente mais do que o nobre que esteja em esta-do de pecado. Quer dizer, o primeiro foro de nobreza é agraça de Deus. É uma coisa evidente.

De tal maneira que no Reino de Maria, se houver umanobreza, sou da opinião de que os nobres que vivam ofi-cial e publicamente em estado de pecado percam a no-breza.

Mas, depois, o Padre Isidoro diz bem: São José não foiapenas o esposo de Nossa Senhora, mas também o painutrício do Menino Jesus. Ora, ser o pai nutrício do Fi-lho de Deus é a mais alta honra a que um homem possachegar, depois da honra de ser a Mãe do Filho de Deus,que é, evidentemente, maior.

 Mais do que governar todos os

reinos e impérios do mundoTambém em suas obras ele deu provas, ao mundo in-

teiro, de uma singular nobreza, pois recebeu em sua casa

 o Salvador do mundo, conduziu-O são e salvo através de

 vários países, serviu-O e alimentou-O durante muitos anos

 com seus trabalhos e seus suores.

Quer dizer, ele não só foi nobre porque se casou comNossa Senhora, mas porque Deus o investiu na mais al-ta função de governo que possa haver na Terra, abaixode Maria Santíssima. Exercer uma alta função de gover-no, de acordo com os conceitos da sociedade tradicional

daquele tempo, nobilitava, conferia nobreza. Ora, ser opai do Menino Jesus, governá-Lo, bem como a Nossa Se-nhora, é mais do que governar todos os reinos e impériosdo mundo. Isso não lhe veio só do casamento; Deus o es-colheu para essa tarefa. Compreende-se a nobreza excel-sa que lhe vinha disso, evidentemente.

 Esses são os novos raios que emite a nobreza do santíssi-

 mo José, tornando-a mais resplandecente que o mesmo Sol.

Seguindo, como dissemos, o método de São Tomás, oPadre Isidoro deu os argumentos contra a tese que ele iasustentar; depois defendeu a tese e apresentou os racio-cínios a favor dela. Agora ele vai destruir os argumentos

contrários à tese por ele sustentada.

 A humildade é o melhorornamento da nobreza

 Respondendo à primeira dificuldade: São Paulo se refe-

 re aos pregadores que levariam a Fé ao mundo, que deviam

 ser de origem humilde e simples, para que não se atribuís-

 se ao seu poder e sabedoria a dignidade das maravilhas que

 obrava a graça de Deus, mediante o ministério deles; res-

tando daí glória à Cruz de Cristo. Por isso lhes disse a Glo-

 sa: se não houvesse um honrado pescador, teríamos poucos

 pregadores humildes.

O pensamento é o seguinte: era natural que entre osprimeiros católicos houvesse poucos nobres, e daí não setira nenhum argumento contra a nobreza. Porque se en-tre os primeiros católicos existissem muitos nobres, muitospoderosos, muitos ricos, dir-se-ia que o Evangelho con-quistou toda a Terra por causa do prestígio desses homens.Ora, não foi isso. Não houve nem nobres, nem sábios, nempoderosos, nem ricos. Foram homens simples que con-quistaram. Donde o milagre fica patente. E não é porquea Providência não gostasse da nobreza, ou não lhe desse valor, mas foi para glorificar mais especialmente a Deusque foram escolhidos homens de uma condição modestapara esse primeiro passo. Está muito bem argumentado.

 Agora, outra razão: Mas não era apropriado que o Rei dos reis convivesse

 na intimidade com quem não era nobre nem de espírito nem de sangue. Não era razoável que Aquele a Quem ser-

 vem milhões de Anjos, escolhesse por pai a quem não fos-

 se nobre de linhagem; nem tampouco que a Virgem escolhi-

 da por Mãe, a Quem admiram os moradores da Jerusalém

 celeste, fosse desposada por um homem de origem plebeia.

[...]

…sabemos que a humildade não é incompatível com a

 nobreza, mas que, pelo contrário, é o seu melhor ornamen-

to; pois, quanto maior é uma pessoa, tanto mais deve hu-

 milhar-se em tudo. Deus ama singularmente os humildes.

 Assim disse a Santíssima Virgem: “Porque Ele olhou a hu-

 mildade de sua serva, por isso todas as gerações me chama- rão bem-aventurada” (Lc 1,48).

Tanto é verdade que a grandeza e a humildade não seexcluem, que em Nosso Senhor tiveram uma aliança ad-mirável.

O Magnificat 

 Foi [Nosso Senhor] pobre em bens de fortuna, mas não

 na excelência de sua Pessoa, que é o verdadeiro fundamen-

to da nobreza.

Está muito bem argumentado. De fato, Deus ama

eminentemente a humildade, porém esta não é uma vir-tude exclusiva dos plebeus; é também dos nobres, pois éa virtude dos grandes e dos pequenos.

 A humildade é a verdade. É humilde aquele que,olhando para si, reconhece a verdade a seu respeito, con-tenta-se com o que é, não quer ser mais nem menos, por-que Deus Nosso Senhor, que manda nele, o colocou naposição que ele tem. Por isso uma pessoa pode ser muitohumilde, embora seja de altíssima categoria.

O autor cita exatamente as palavras do  Magnificat.Porque olhou a humildade de Nossa Senhora, todas as

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HAGIOGRAFIA

gerações A chamarão bem-aventurada. Quer dizer, colo-cou-A no ápice porque era humilde, tinha a respeito deSi uma ideia perfeitamente precisa. Se a grandeza fosseincompatível com a humildade, colocando Nossa Senho-ra em tal excelsitude, Deus Nosso Senhor A teria impe-dido de ser humilde. Ora, Ela foi humilde até o fim da vi-da, sendo a maior das meras criaturas. Logo, entre gran-deza e humildade não há incompatibilidade. É um argu-mento que não permite resposta. É perfeito.

Formas de grandeza de Nosso Senhor Jesus Cristo

Terceiro argumento:Constatamos que a Encarnação revelou a suprema hu-

 mildade de Deus:

1º- O revestir-Se da carne humana. “Ele Se aniquilou,

tomando a forma de servo” (Fl 2,7). 2º- Por sua humilde vida. “Aprendei de Mim, que sou

 manso e humilde de coração” (Mt 11,29). 3º- Pelas terríveis dores de sua Paixão. “Olhai e vede se

 há dor comparável à minha dor” (Lm 1,12).

Contudo, nem sempre apareceu no exterior com a mes-

 ma humildade; mas, pelo contrário, mostrava sua grandeza

 quando convinha. Assim vemos que Ele ensinou com auto-

 ridade, fez milagres e ressuscitou vitorioso dentre os mortos.

Também está muito bem argumentado. Afirma o au-tor: tanto é verdade que a grandeza e a humildade não seexcluem, que em Nosso Senhor tiveram uma aliança ad-

mirável. Ninguém na vida foi mais humilde do que NossoSenhor Jesus Cristo, mas ninguém teve grandeza maiordo que a d’Ele.

E ele indica três formas da grandeza do Redentor. Oensinamento de Nosso Senhor; ensinar é um atributoda grandeza. Mostra, de outro lado, o seu poder de fa-zer milagres, a ponto de ressuscitar mortos; é manifestaruma grandeza que ninguém tem. Quando qualquer po-tentado da Terra, no auge de seu poder, ressuscitou ummorto? Só Deus o pode fazer. Mas, terceiro, ressuscitou--Se a Si próprio, o que é um milagre ainda muito maior.Porque, estando morto, ressuscitar-Se a Si próprio é uma

grandeza que desafia qualquer palavra. Então, Aqueleque foi o mais humilde de todos foi o maior; logo, a hu-mildade não é incompatível com a grandeza. Não há oque dizer! Está perfeitamente respondido.

 Mais ainda: a humilhação de Deus na Encarnação não

teria sido maior por escolher um pai de origem humilde;

 foi extrema a humilhação e nada poderia acrescentar-se à

 humildade que supõe revestir a divindade da natureza hu-

 mana.

Ele quer dizer o seguinte: falar que Nosso Senhor Sehumilhou muito, sendo filho de operário, é uma coisa in-

teiramente secundária. A humilhação verdadeira d’Ele,sendo Filho de Deus, foi consentir em ficar homem.Diante disso o resto é inteiramente secundário.

Nobreza en sommeil 

 Por último, foi pobre em bens de fortuna, mas não na ex-

 celência de sua Pessoa, que é o verdadeiro fundamento da

 nobreza, como já foi declarado. Além disso, ele careceu do

 supérfluo, mas não do necessário. Nem tampouco se opõe

 à nobreza o ganhar o pão com o suor de sua fronte, pois

 o trabalho evita a degradação, e ninguém pode glorificar-

-se da nobreza se não souber cobrir suas necessidades com

 o trabalho de suas mãos. A natureza, que dá essa nobreza

 aos homens, aborrece a ociosidade, combatendo-a com to-

 das as suas forças. E assim dizia Aristóteles: “Todo o que

trabalha ordena sua operação ao obrar.” O trabalho tem a

 si mesmo por seu próprio efeito; e também Deus e a nature- za nada fazem inutilmente.

O princípio que o autor desenvolve aqui é muito inte-ressante. Ele diz que o trabalhar com as próprias mãosde si não destrói a nobreza, porque não há uma incompa-tibilidade radical da nobreza com o trabalho manual; es-te não é uma vergonha, não é um pecado. Um nobre po-de estar reduzido à condição de trabalhador manual e,com isso, não perde a sua nobreza. Ele pode readquirir,de futuro, a sua posição, porque não fez uma ação vexa-tória, criminosa. São José foi assim. O que ele fez comseu trabalho manual foi tudo quanto havia de mais nobre

e de mais alto e, por causa disso, não se pode dizer queele tenha desmerecido a nobreza de seus antepassados,trabalhando manualmente.

Certa ocasião li um livro sobre a nobreza no qual oautor mostrava que, em determinadas regiões da Euro-pa, havia essa delicadeza de alma: quando um homem deuma família nobre perdia a fortuna e era obrigado a tra-balhar com suas próprias mãos, não se afirmava que eletinha perdido a nobreza, dizia-se que sua nobreza esta- va en sommeil — a expressão é muito bonita: em estadode sono —, e que ela despertaria no dia em que suas con-dições materiais lhe permitissem viver no estado nobre.

É um infortúnio, ele ficou pobre, está trabalhando, masnão está fazendo nada degradante.É verdade que para um homem que se tornou, por

exemplo, copeiro não é próprio dizer para ele: “Alteza,traga-me um copo d’água!” A nobreza dele entrou numestado de sono; ela está como que dormindo dentro de-le. Mas, as circunstâncias melhorando, a nobreza dele re-floresce.

O Padre Isidoro de Isolano aplica isso à nobreza deSão José. Perfeitamente bem pensado, bem concluído,bem articulado.

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 Alegria proporcionada  pelo raciocínio

Enquanto eu desenvolviao pensamento desse sacerdo-te a respeito de São José, no-tei como as expressões fisio-nômicas dos ouvintes indica- vam adesão e satisfação, nãoapenas pela tese sustentadapor ele, mas também por ve-rem a agilidade de sua argu-mentação.

Permitam-me, nesta reuniãoum pouco mais íntima, tratarde algo à margem do tema.

 Aqueles que sentiram al-

gum contentamento em ou- vir a argumentação desse pa-dre tiveram um prazer por on-de se esqueceram, por algunsinstantes, das preocupações edos aborrecimentos da vida detodos os dias; experimentaramcerta serenidade, certa tran-quilidade.

Façamos uma comparaçãoentre a alegria que dá a torci-da e a proporcionada pelo ra-

ciocínio, com essa serenida-de da alma, quando o homemestá no estado de repouso, dedistensão, e acompanha o pas-so majestoso e cadenciado dosargumentos que se seguem unsaos outros como uma bonitaparada; em que ele aprecia ogume de cada arma da lógica, e tem esse prazer sobera-no de ver a arma da lógica entrar no corpo, na carnatu-ra do erro e fender.

O argumento que, como o bisturi de um médico exce-

lente, entra e talha, corta o tumor e o organismo respi-ra satisfeito. Magnífico! O mal ficou inutilizado, prostra-do, arrasado.

 Assim faz a lógica clara, precisa, elegante, que comoum Anjo dardeja um raio sobre o erro e o liquida. Vemoso erro ser apresentado com todos os seus enfeites, masdepois surge a lógica e o joga ao chão com uma sapecadacerta, um golpe certeiro.

Esse elogio da lógica seja feito em homenagem a SãoJosé, tão lógico, tão coerente, que levou a lógica ao ver-dadeiro heroísmo durante a sua vida.

Uma calma que só oshomens lógicos possuem

Qual foi um lance da vida deSão José em que ele levou a ló-gica até o heroísmo? Foi aque-le episódio muito conhecido,quando ele viu que Nossa Se-nhora tinha concebido um filhodo qual ele não era pai. O Evan-gelho trata disso. Então, ele fi-cou colocado diante de uma si-tuação absurda. Maria era evi-dentemente santa, e ele não po-dia disso duvidar, porque a san-tidade d’Ela reluzia de todos osmodos possíveis; de outro lado,

estava criada uma situação queele não conhecia, mas com aqual ele não podia conviver.

 Ao invés de denunciá-La, co-mo mandava a lei hebraica, elesaiu com a única solução lógica:“Quem está demais nessa ca-sa, não é essa Mãe, que é a do-na e rainha desse lar; nem o fi-lho que Ela concebeu. Alguémestá demais, mas esse alguémsou eu. Vou abandonar a casa

e sumir; porque não compre-endo esse mistério, mas contraele não me levantarei. Passareimeus dias longe, venerando omistério que não entendi.”

Resolveu, então, fugir da ca-sa, deixando Nossa Senhoracom o fruto de suas entranhas.

Ele tinha que abandonar o maior tesouro da Terra, a Vir-gem Maria, o que para ele representava um sofrimentoinenarrável, inimaginável.

O Evangelho nos conta que ele estava dormindo quan-

do apareceu um Anjo e lhe deu a explicação. Quer dizer,antes desse lance tremendo, São José dormia. Ele ia via- jar e tinha que se preparar por meio do repouso para es-sa viagem. E foi durante o sono que o Anjo veio e lheexplicou tudo. Ele continuou a dormir. Vejam a calmadele! Essa calma só os homens lógicos têm. De manhã,acordou e a vida continuou normalmente. Suma norma-lidade, suma coerência, suma lógica!

Em louvor dessa lógica de São José, fica este rápidocomentário. v

(Extraído de conferência de 19/3/1976)

Sonho de São José - Igreja de São José,Nova Iorque, EUA

   A  n  g  e   l   i  s   D  a  v   i   d   F  e  r  r  e   i  r  a

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LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ

 Esplendor do equilíbrioInterpretando falsamente o princípio de que a virtude

está no meio, muitas pessoas chegam a defender os

erros mais crassos, contrários à Doutrina Católica.

Dr. Plinio elucida sapiencialmente esse tema, com base na razão e apresentando belíssimos exemplos.

 São Francisco de Sales, grande Doutor da Igreja,chegou a identificar o equilíbrio com a virtude, di-zendo que a virtude está no meio. Ora, o meio é

exatamente o equilíbrio entre dois extremos, a conside-rar as coisas do ponto de vista geométrico. Assim, se a virtude está no meio, chegamos à conclusão de que a ver-dade se encontra no equilíbrio. Portanto, não há razãopara julgar o equilíbrio como sendo algo insípido, estúpi-do; nele deve estar a verdadeira sabedoria.

Noção de equilíbrio

Contudo, é preciso ver bem o que nas conotações dapalavra “equilíbrio”, na linguagem brasileira, entra defundamentalmente sem sabor, fazendo com que umacoisa tão eminente como o equilíbrio possa dar uma im-pressão tão desagradável.

O equilíbrio, afinal, o que é? É uma excelência dascoisas por onde elas — nos seus aspectos contrários — secompensam, se harmonizam, de maneira tal que se reú-nem em torno de uma nota suprema, a qual abarca umaporção de notas colaterais. Poderíamos dizer, por exem-

Catedral deSão BasílioMoscou, Rússia

   P   e   t   a   r   M   i   l   o   š   e   v   i   ć

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plo, que um edifício, com uma torre no centro e duas alasiguais de uma amplitude harmônica com o tamanho datorre — ou seja, quanto mais alta a torre, mais largas asalas —, tem equilíbrio. Essa ideia de equilíbrio abrangeuma grande variedade de aspectos, e nós começamos aentrever através disso, de um modo mais vivencial, quan-to o equilíbrio é uma coisa boa.

Entretanto, no Brasil se chama homem equilibrado,não aquele que tem uma ideia ou princípio central, emtorno do qual ele traça a circunferência de todos os as-pectos possíveis, mas um simplório que não tem nenhu-

ma ideia central; e sempre que é atormentado por doisextremos opostos, o equilibrado se coloca simplesmenteno meio-termo, pensando que com isso resolveu as coi-sas.

Por exemplo, entre um comunista e um fascista, oequilibrado seria um burguês. Entre um indivíduo quequer o divórcio e outro que deseja o amor livre, o equi-librado quereria um divórcio muito evoluído; entre umhomem que é favor da alopatia e outro da homeopatia,o equilibrado gostaria de uma mistura sem sentido entreessas duas coisas incompatíveis. E daí para a frente.

Pensamento seletivo, ordenativo, vigorosoEntão, o verdadeiro equilíbrio não é uma mistura

ininteligente de coisas incongruentes, mas a força de umpensamento central, com o leque das consequências queem todos os sentidos dele se podem tirar.

 Assim, toda beleza é necessariamente equilibrada.Mas há certas formas de pulcritude nas quais o que bri-lha à primeira vista não é o equilíbrio, mas é quase o de-sequilíbrio.

Tomem a Catedral de São Basílio, em Moscou, por

exemplo, com aquelas torres pequenas — encimadas porcúpulas em forma de cebola — que sobem com uma es-pécie de ascensão frenética para o céu: a nota daquilo éde um misticismo que parece não dar lugar ao bom sensoe à razão. Em substância dá, mas parece que não. É umanobre e pseudounilateralidade, no fundo da qual existeum equilíbrio.

Encontraremos, assim, várias formas de beleza. Mas aforma de beleza francesa — sobretudo nos áureos tem-pos da França, na Catedral de Notre-Dame, por exemplo— é o equilíbrio.

Catedral de Notre-Dame - Paris, França

Nesta página e nas seguintes,aspectos do Castelo de

Cheverny - França

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LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ

Mas é um equilíbrio cheio de gosto, de sa-bor, de classe, de estilo — não o equilíbrio abo-bado entre duas opiniões das quais, tratando--se irenisticamente, se obtém o meio-termo pro

 bono pacis1 —, porque é um pensamento sele-tivo, ordenativo, forte, vigoroso, que agrupa emtorno de si os respectivos elementos, e faz dissopropriamente uma maravilha.

O equilíbrio francês cheio de sabores

Temos um exemplo neste panorama que vemosaqui. Eu o considero de uma alta categoria. Ondeestá a beleza do quadro que contemplamos?

 Analisem elemento por elemento. A grama éde um verde-esmeralda que nos nossos trópicosnão se encontra. No meio da grama, a coisa mais

comum do mundo: um caminho inteiramente re-to. Bem no fundo, um castelo.O que tem esse castelo propriamente de mara-

 vilhoso? Na fachada, não se vê uma estátua e qua-se nenhum ornato. Não se nota no castelo nada que des-lumbre. Não é uma construção cara; custa preço alto ape-nas porque é grande, tem muito tijolo, material com quese faz qualquer casa. Entretanto, eu acho que seria umabsurdo não reconhecer a isto a nota do equilíbrio, domaravilhoso. Mas qual é o maravilhoso? É o maravilho-so do equilíbrio, da coisa bem pensada, bem estudada, efeita com categoria: aqui está o esplendor do equilíbrio.

E é o equilíbrio francês, cheio de toda espécie de sabores.Observem primeiramente o prédio, depois o resto.

 A graça dominando a força

O prédio é composto de uma espécie de torreão cen-tral, que não é uma coisa bojudona, fazendo assim o pa-pel de um tórax, de um abdômen, perto do qual o restosão duas asinhas. Pelo contrário: é uma coisa fininha, es-guia, terminada, para acentuar a ideia do fino, por umteto pontudo. Mais ainda, de um lado e de outro há du-as chaminés altas que realçam ainda mais a ideia do pon-

tudo, porque elas terminam em ponta; e no alto uma es-pécie de campanariozinho — um mirantezinho, uma pe-quena cúpula — suportado por coluninhas. E essa pontatermina numa janela com uma ponta, tendo do lado du-as pontas. Essa parte central do prédio é toda leve, es-guia, fininha; mas está de tal maneira no centro, é tãobem pensada, que ela não faz o papel de raquítica, de ne-nhum modo, em relação aos dois extremos atarracadõese bojudos que se encontram num ponto e no outro.

O governo, a linha rectrix do prédio está bem no cen-tro. É a graça dominando a força, Jacó reprimindo Esaú,

   F   r   a   n   c   i   s   c   o   L   e   c   a   r   o   s

   M  a  n   f  r  e   d   H  e  y   d  e   (   C   C

   3 .   0

   )

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as coisas pesadas coordenadas em tor-no da leve.

Não sei se percebem o alto pensa-mento, a afirmação da superioridadedo espírito que há por detrás disso: é otriunfo da graça sobre a força, a facul-dade ordenante da inteligência sobre ascoisas da matéria.

 Alta categoria

Entretanto este contraste entre a par-te central e os dois extremos é equilibra-do — porque todo contraste equilibradodeve possuir termos intermediários har-mônicos — por dois corpos de edifíciosiguais, nem tão esguios nem tão bojudos,

mas que ficam entre uma coisa e outra,preparando a transição. As fachadas la-terais são mais largas que a central, os ci-mos mais esparramados e não terminam

em ponta, mas em cones truncados. No alto, há uma ja-nela só no centro, e três janelas nas partes laterais.

Usa-se nas gerações mais novas uma expressão umpouco popular, mas que às vezes tem uma certa força designificado: “Que coisa bem craniada!” Porque é precisoter crânio para fazer isso.

Esse castelo não foi feito por bobo, nem para bobo,porque é muito discreto. É como quem diz: “Se tu não

me percebes, eu não te digo. Sou para quem tem quila-te; diante de mim há mata-burro.” Ou então: “Se tu me julgas banal, eu te julgo trivial. Os eleitos, os seletos ve-nham a mim. Eu sou feito para poucos.”

Vemos que tudo isso é de alta categoria, realizado porcabeça superiormente orientada.

O gênio francês

Nos extremos, observamos a coisa curiosa. Esses cor-pos de edifícios são atarracadões; não tanto atarracadosporque possuem três janelas — porque os laterais tam-

bém têm —, mas devido ao espaço maior entre as jane-las, e, sobretudo, pelo teto pesadão e grandão, que cons-titui uma tampona. Mas o muito pesadão horrifica o gê-nio francês, e por causa disso, no meio do pesadão há al-gumas coisas que o equilibram.

Imaginem que pesadelo seria essa tampa grande senão houvesse essas janelinhas pequenas em cima, redon-dinhas! Como elas dão um sorriso que compensa a car-ranca dessa imensidade de ardósia do teto! Por detrás,as chaminezinhas e os campanariozinhos evitam que is-to tome a aparência de um calcanhar achatando a ala do

                                                                                                        B                                                                            e                                                                             n

                                                                                                        h                                                                                                         L

                                                                                                        I                                                                                                        E                                                                                                       U  

                                                                                                         S                                                                                                         O                                                                                                        N                                                                                                       G

                                                                                                       (                                                                                                                                     C                                                                                                         C  

                                                                                                     3                 .                                                                                                  0 

                                                                                                        )                            

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   w   w   w .   d

   e   l   c   a   m   p   e .   n

   e   t   (   C   C   3 .   0

   )

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LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ

castelo. Apesar de tudo, isso é pesadão, a parte intermé-dia é meio leve, e o centro é levíssimo.

 A altivez do castelo está no que ele tem de mais gra-cioso. É como quem diz: “Forte eu sou, mas, sobretudo,eu me prezo de ser inteligente. Em última análise, eu soucompleto, porque tenho tudo. Tenho muita força, mastanta inteligência que, em mim, a inteligência domina aforça. Eu sou equilibrado.”

Isso é um equilíbrio de primeira categoria, é degusta-

ção, porque se degusta isso como um prato saboroso! Is-so é turismo! Viajar pela Europa quer dizer ir perceben-do essas coisas. Não basta ouvir o que um guia fala, masé preciso ver o que o artista diz, o que o ambiente queinspirou esse artista tinha a sofreguidão de contemplar.

Vemos aqui uma aplicação da noção de equilíbrio.Quando São Francisco de Sales afirma que no meio es-tá a virtude, pensem nesse torreãozinho e encontrarãoa explicação. Não é um equilíbriosensaborão, mas sim cheiode sal; é o gênio francês.

Esse gênio francês, mui-

to discretamente, se faz sen-tir noutra coisa: é o quadro.O castelo é, talvez, um pou-co discreto demais. Então,ele é realçado pela perspecti- va: um grande parque. Ele étão simples nas suas linhas enos seus enfeites que, se hou- vesse canteiros com muitasflores e esguichos, ele ficavapobre; então, ele tem um sim-

ples, mas esplêndido tapete de esmeralda para lhe servirde apresentação, e arvoredos formando, um pouco lon-ge dele, moldura. Dir-se-ia que ele sai de dentro de ummundo de delícias e de mistérios que essas árvores enco-brem; ou a clareza e a lógica cercadas de imponderáveis.Outra forma de equilíbrio. Eu acho isso maravilhoso.

 Perceber essas maravilhas é umdos prazeres da vida

Os caçadores! Notem a posição deles! Tenho a im-pressão de que é uma fotografia tirada espontaneamen-te, mas a pessoa que fotografou o fez tão bem, que se umencenador devesse colocar esses caçadores numa posi-ção bonita, ele os poria assim. Querem uma coisa maissem graça do que, por exemplo, todos andando na mes-ma linha? Estragaria o quadro. Ou um cavaleiro aqui,

outro ali, outro lá, outro aco-lá, etc., seis manchas de ver-melho, sem sentido... Aquinão. Há um misto de distân-

cia e proximidade, fantasiae ordem dentro da distribui-ção deles, que faz com quesejam deliciosos de ver.

Observem, por outro la-do, o estilo. Os caçadoresestão parados, tranquilos,de uma tranquilidade pron-ta para a ação. E a ideia daefervescência da caçadanão é dada pelos homens,

                                                                                                        Z                                                                                                    i                                                                        e

                                                                    g                                                                                              l                                                                e

                                                              r                                                                                  1                                                                                7                                                                              5                                                                              (                                                                              C                                                                          C

                                                                  3                                                            0

                                                                )

Ziegler175(CC3.0)

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mas pela cachorrada: um ferver de cães famintos, dispos-tos para correr. E os caçadores sólidos, mas elegantes —porque são homens elegantes —, montados em cavalosque não têm nada de espetacular, mas espetacularmente

proporcionados ao conjunto. Com toda a distância psí-quica2, os homens se preparam para uma caçada que vaiser feroz, por vales e por montes, tocando cornetas etc.; ademarragem é equilibrada.

Não é verdade que para degustar um dos prazeres da vida, que tornam a existência humana digna de ser cris-tãmente vivida, é preciso perceber essas coisas? Mas per-ceber com o rumo ao Céu.

 Reflexo da Igreja Católica

Esses valores de espírito são assim porque essa civi-

lização foi cristã. Porque há o precioso Sangue de Nos-so Senhor Jesus Cristo, a graça, o Batismo, a Igreja Ca-tólica dentro disso. Isso é, no fundo, um reflexo da Igre- ja Católica. Se não fossem as virtudes cristãs, isto não te-ria sido assim.

Então não é um puro gáudio dos olhos, nem da inte-ligência que se tira daí, mas acima disso é um gáudio su-perior do espírito, considerando uma ordem transcen-dente de coisas, onde existe um Deus pessoal, sobrena-tural, que nós contemplaremos face a face, e no qual to-das as formas desse equilíbrio se realizam de um modo

tal que isto é uma imagem do Criador. Mas Deus é tãomais do que isto, que Ele até não é nem um pouco as-sim. Isto se encontra n’Ele de um modo insondável e in-capaz de ser imaginado por qualquer criatura. Assim é

a Terra como a bênção de Deus a fez, como a civiliza-ção cristã a modelou. Esta é a figura do Céu para o qualnós vamos.

Temos aqui um termo religioso para uma meditaçãosobre uma coisa profana.

 Alguém me diria: “Dr. Plinio, falta um cruzeiro diantedesse castelo para ele ter a nota cristã.” Eu responderia:Em todos os lugares onde se queira colocar um cruzeiro,eu exulto. Mas dizer que a coisa fica falha sem cruzeiro,não concordo. O espírito católico está aí até sem o cru-zeiro. Esse castelo é católico em si; tal equilíbrio sem agraça não se consegue. É uma tradição constituída por

homens que em certo momento receberam a graça e ti- veram esses valores. Aqui está o equilíbrio católico. v

 

(Extraído de conferência

 de 12/5/1969)

1) Do latim: para o bem da paz.2) Expressão utilizada por Dr. Plinio para significar uma calma

fundamental, temperante, que confere ao homem a capaci-dade de tomar distância dos acontecimentos que o cercam.

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N  

 Pureza, humildade, obediência

   R  e  p  r  o   d  u  ç   ã  o

Anunciação (porFra Filippo Lippi)Antiga Pinacoteca,Munique,

Alemanha

a Anunciação, a atitude de Maria, a Virgemdas virgens, foi perfeitamente virginal. De

outro lado vemos como Ela foi humilde em toda alinha. Aquela que Deus destinara para ser sua Mãe,

 preparando sua alma e seu corpo para estareminteiramente proporcionados — tanto quanto

 possível a uma criatura humana — à honra de sera Mãe do Messias, não tinha de Si uma alta ideia.

 Pelo contrário, ficou perturbada porque julgou que oelogio do Anjo não podia caber para Ela.

Contudo, bastou São Gabriel dar-Lhe a certezade que isso vinha de Deus para Maria responder:

ll f h d b

 Assim, da humildade e da pureza conjugadas em Nossa Senhora resultou sua aceitação do plano de Deus, a respeito da Encarnação do Verbo.

 Há, entretanto, outro fiat de Maria que é umaverdadeira beleza. Aos pés da Cruz, Deus quis que

 Ela consentisse em oferecer o seu Filho como vítima.

 Nossa Senhora O via estertorando na Cruz, dandoaquele brado: “Meu Deus, meu Deus, por que Meabandonastes?”, e consentiu que aquilo se passasse

  para o gênero humano ser resgatado e as almas  poderem ir ao Céu. Porque Deus queria que Ela

quisesse, Ela quis! São os dois atos supremos deb d d