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REVISTA DO CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOS PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE PERNAMBUCO RECIFE-PE, VOLUME 11, NÚMERO 11 2018

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REVISTA DO CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOS

PROCURADORIA GERAL DO ESTADODE PERNAMBUCO

RECIFE-PE, VOLUME 11, NÚMERO 112018

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REVISTA DO CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOSPROCURADORIA GERAL DO ESTADO

DE PERNAMBUCO

RECIFE-PE, VOLUME 11, NÚMERO 11, 2018

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COMPOSIÇÃO

DIRETOR GERAL: Procurador Geral do Estado de Pernambuco Antônio César Caúla Reis

EDITOR-CHEFE: Procurador Coordenador do Centro de Estudos Jurídicos Paulo Rosenblatt

EDITORES ADJUNTOS: Procuradora Lílian Elizabeth Cordeiro Tenório de Miranda Procurador Marcelo Casseb Continentino

CONSELHO EDITORIAL: Procuradores Leonardo José Ribeiro Coutinho Be-rardo Carneiro da Cunha, Lílian Elizabeth Cordeiro Tenório de Miranda, Marce-lo Casseb Continentino, Silvano José Gomes Flumignan, Walber de Moura Agra

CONSELHO CIENTÍFICO (avaliadores doutores e mestres): Procuradores Alexandre Auto de Alencar, André Gustavo Afonso Ferreira Barros Leite, Flávio Germano de Sena Teixeira, Ingrid Patrícia Felix da Cruz, Izabel Cristina Moreira dos Santos, Leonardo José Ribeiro Coutinho Berardo Carneiro da Cunha, Lia Sampaio Silva, Lílian Elizabeth Cordeiro Tenório de Miranda, Luciana Santos Pontes de Miranda Koehler, Marcelo Casseb Continentino, Marcos André Couto Santos, Marcos Elesbão, Mirca de Melo Barbosa, Silvano José Gomes Flumignan, Walber de Moura Agra

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GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

Paulo Henrique Saraiva CâmaraGovernador do Estado

PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE PERNAMBUCO

Antônio César Caúla ReisProcurador Geral do Estado

Ernani Varjal Médicis PintoProcurador-Geral Adjunto do Estado

Maria Cláudia JunqueiraProcuradora Corregedora-Geral

Erika Gomes LacetProcuradora Secretária-Geral

Paulo RosenblattProcurador Coordenador doCentro de Estudos Jurídicos

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REVISTA DO CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOS / Procu-radoria Geral do Estado de Pernambuco – v. 11, n. 11, 2018. – Recife: Procuradoria Geral do Estado de Pernambuco – CEJ, 2018 – v. Anual.

ISSN: 2177-7535

1. DIREITO – PERIÓDICOS. 1. Procuradoria Geral do Estado de Per-nambuco. nsc/PGE-PE CFF: 340.05

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Sumário

Residência Jurídica no Brasil: Uma Breve Introdução Acerca de sua Cons-titucionalidade e Oportunidade — Bruno Santos Cunha.......................11

A Compatibilidade do Art. 15 do CPC/2015 com o Princípio Federativo: Um Juízo de Ponderação à Luz da Garantia do Devido Processo Legal — Cecília Lou........................................................................................35

Ponderações Acerca do Julgamento de Casos Repetitivos no Novo CPC — Fagner César Lobo Monteiro..........................................................67

Inconstitucionalidade por Vício de Formação de Vontade nas Votações do Congresso Nacional— Fellipe Domingues de Barros Freitas — Fellipe Domingues de Barros Freitas...............................................................81

A Decadência do Direito de Constituir o Crédito do Imposto de Trans-missão (ITCD) nas Doações de Bens Imóveis: Análise Jurisprudencial e Doutrinária Acerca da Definição do Fato Gerador e do Momento de sua Ocorrência— Fernanda Gonçalves Braga Maranhão.........................95

Utilização de tratamento jurídico diferenciado por Microempresa e Em-presa de Pequeno Porte de cujo capital participe pessoa física inscrita como empresário, que tenha sócio participante do capital de outra pes-soa jurídica ou que atue como seu administrador. Interpretação dos in-cisos III, IV e V do §4º do art. 3º da Lei Complementar nº123/2006 e as consequências de sua violação no âmbito de procedimentos licitatórios — Giovana Andréa Gomes Ferreira.................................................125

Arbitragem em Conflitos que Envolvem o Estado: Análise Prática da Apli-cação do Instituto no Brasil— Gisela Burle Cosentino.......................127

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Inexigibilidade de Título Judicial e Relativização da Coisa Julgadapor De-cisão do Supremo Tribunal Federal: Desconstruindo o NCPC, Art. 525, §§ 12 Usque 15— Irving William Chaves Holanda...........................179

A Crise Financeira da Federação Brasileira e o Fundo Estadual de Combate à Pobreza— José Carlos Bastos Silva Filho.......................................215

A Paródia de Marcas em Perspectiva com os Institutos da Confusão, da Associação e da Diluição— Maria Clara de Oliveira Silva................249

Arbitragem com a Administração Pública e os conflitos tributários no Brasil— Mayara Nunes Medeiros de Souza......................................271

Considerações Sobre a Destinação do IR Retido na Fonte pelos Estados, Distrito Federal e Municípios— Carlos Renato Cunha—Considerations On The Allocation Of The Withholding Of Income Tax By Member States, Federal District And Municipalities— Valterlei A. da Costa — Maurí-cio Dalri Timm do Valle....................................................................302

Pareceres:

PARECER nº 0318/2018—Interessado: Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – DNIT.......................................................323

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APRESENTAÇÃO

A Revista do Centro de Estudos Jurídicos (CEJ) da PGE-PE está no seu oitavo ano, totalizando, com o presente número, onze publicações, nas quais foram divulgados numerosos artigos de procuradores, professores de Direito, juízes, advogados públicos e privados, integrantes das mais di-versas profissões jurídicas e estudantes. É um periódico que se consolidou no cenário jurídico nacional e que reflete uma pluralidade de visões críti-cas do Direito Público e da Advocacia de Estado.

A Revista do CEJ-PGE/PE absolutamente não é uma publicação que pretenda servir de mero veículo para defesa de teses judiciais ou ex-trajudiciais desenvolvidas por nossos procuradores. É, ao contrário, um espaço para o pensamento dialético e do diálogo entre diferentes matrizes teóricas e práticas, para o aperfeiçoamento do Direito.

A Revista do CEJ-PEG/PE não está presa a amarras ideológicas nem está a serviço de interesses corporativos, tampouco simplesmente pretende expressar posições institucionais, implicitamente formalizando argumentos de autoridade. Na preparação de todos os onze volumes da revista, sua comissão científica apenas se preocupou com o rigor metodo-lógico, a qualidade e o ineditismo dos artigos, bem como com a variedade dos assuntos; jamais emitiu qualquer juízo cerceador da liberdade de ex-pressão dos seus colaboradores.

Cabe aqui agradecer a parceria da CEPE (Companhia Editora de Pernambuco), que, desde o nono volume da revista, edita a publicação, com a qualidade diferenciada que agrega a tudo o que produz.

Além da versão impressa, distribuída para as bibliotecas das fa-culdades de Direito, tribunais e fóruns, e a outros órgãos jurídicos, para melhor divulgação dos trabalhos o CEJ passou a publicar a revista digi-talmente, em seu portal, com acesso livre e gratuito, e cuidou de digita-lizar os volumes anteriores. Sem dúvida, trata-se de uma iniciativa de-mocrática e republicana de divulgar as ideias inseridas em uma revista produzida com recursos públicos.

Recentemente também, a PGE, participando dos esforços da gestão estadual e da sociedade civil de celebrar os 200 anos da Revolução Pernam-bucana de 1817, tomou para si o desafio de produzir uma rica coletânea

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com artigos científicos a respeito do tema , com apoio da Faculdade de Di-reito do Recife/UFPE. O livro Bicentenário da Lei Orgânica da Revolução de 1817: um marco na história constitucional brasileira foi publicado pela Editora Fórum, e, certamente, será uma obra de referência, que ajudará a manter viva a história e os ideais que inspiraram os revolucionários.

Por outro lado, a maturidade institucional da PGE-PE, em seus 28 anos de existência, manifesta-se também na valorização do CEJ não apenas como agente de capacitação profissional e de desenvolvimento acadêmico de procuradores, servidores e estagiários, mas também como um vetor de maior integração da PGE com os demais entes da admi-nistração estadual, com o mundo acadêmico, com outras instituições públicas e com a sociedade em geral.

Por meio do CEJ, portanto, a PGE encontra novas ferramentas para se aprimorar, para prestar serviço público de excelência, para contribuir com o aprimoramento da administração estadual e para ajudar no de-senvolvimento de Pernambuco. Desde 2015, mais de 115 eventos foram realizados, ministrados por especialistas de todo o Brasil, com temas di-recionados aos membros da instituição, mas também aos servidores es-taduais, bem assim a todos os operadores do direito e à sociedade civil, totalizando-se 13.970 inscritos nesse período.

Firma-se o CEJ como um veículo de intercâmbio de conhecimen-to doutrinário, legislativo e jurisprudencial da PGE-PE com a Adminis-tração Pública estadual e também com toda a comunidade jurídica. O CEJ, nesses quatro anos, buscou insistentemente essa integração, parti-cipando de eventos realizados em conjunto com diversas instituições, entre as quais, sem pretensão exaustiva, podem ser citados a UFPE, a Universidade Católica de Pernambuco, a Ordem dos Advogados do Bra-sil, a Escola Superior de Advocacia, o Instituto dos Advogados de Per-nambuco, as PGEs dos demais estados nordestinos, e com o Bar Council da Inglaterra e do País de Gales. Esse papel de conjugação de esforços tem se ampliado com a formação da Rede Escolas de Governo – Per-nambuco, na qual dezessete instituições firmaram convênio de parcerias em atividades acadêmicas e relacionamento interinstitucional.

A parceria com o Centro de Formação dos Servidores do Estado de Pernambuco também tem permitido o oferecimento de numerosos cur-

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sos em áreas jurídicas e de gestão pública, fundamentais para fomentar a efetividade na prestação de serviços públicos pela PGE-PE, além de se estimular a colaboração de procuradores na condução de eventos no CE-FOSPE para os servidores estaduais.

Quanto ao estágio em Direito, a PGE-PE ampliou o seu programa na sede, nas regionais (Caruaru, Arcoverde e Petrolina) e na sub-regional de Garanhuns. Foi sedimentado o projeto inovador, iniciado na gestão passada, de criação de vagas reservadas para alunos egressos de escolas públicas do Estado de Pernambuco, aprovados mediante seleção pública (prova de conhecimentos jurídicos), contribuindo-se para o esforço esta-dual de valorização do ensino público estadual. Agora também estudantes egressos de escolas públicas estaduais que cursem faculdades privadas po-derão concorrer a essas vagas. A PGE, contribuindo para viabilizar meios econômicos e formativos para a consecução dos projetos de vida dos es-tudantes, participa da crença na educação como força mobilizadora que permitirá o melhor desenvolvimento de Pernambuco.

Ao lado disso, foi criado o Programa de Capacitação do Estágio em Direito – PCED, pelo qual os estagiários da instituição passam por aulas quinzenais, ministradas por procuradores ou convidados, sobre os mais variados temas jurídicos. E ainda foi instituído o programa Direito em Movimento, em que os estagiários de nível superior compartilham conhecimento jurídico com os estagiários de nível médio, em um traba-lho que aumenta a integração, valoriza os programas de estágio e quali-fica ambos os grupos.

Apesar de todas as dificuldades financeiras decorrentes da atual cri-se político-fiscal, a PGE-PE tem perseguido incansavelmente o objetivo de oferecer o melhor e mais completo estágio extracurricular de Direito do Estado de Pernambuco. É motivo de orgulho para a Procuradoria o fato de terem passado por nosso estágio vários colegas, atuais procuradores, e também integrantes de vários outros entes de advocacia pública, juízes, promotores, professores, defensores públicos, advogados de diversas áre-as e profissionais de Direito em geral, que certamente carregam consigo lições e experiências hauridas do tempo em que frequentaram esta casa.

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A Revista do CEJ, assim, está inserida em um contexto de forta-lecimento institucional e da tradição da escola de pensamento jurídico pernambucano, e é motivo de orgulho não apenas para a PGE-PE, como o deve ser para toda a sociedade.

A Revista do CEJ-PGE/PE tem um longo caminho pela frente para se firmar como um patrimônio do Estado de Pernambuco, independente-mente dos governos de ocasião. Quem investe na produção e disseminação de conhecimento, pensa no futuro. Que este futuro seja exitoso e desafiador.

Recife, setembro de 2018.

César CaúlaProcurador Geral do Estado de Pernambuco

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Residência Jurídica no Brasil: Uma Breve Introdução Acerca de sua Constitucionalidade e Oportunidade

Bruno Santos Cunha1

1 Procurador do Município do Recife e Advogado. Bacharel em Direito pela UFSC (2007). Mestre em Direito do Estado pela USP (2014). Master of Laws pela University of Michigan Law School (2017). Ex-professor da UFSC e professor em cursos de graduação e pós-graduação em Direito.

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Sumário: 1. Introdução; 2. Residência jurídica: o que é isso?; 3. Ca-sos concretos de implementação de programas de residência jurídica: os primeiros questionamentos judiciais e possibilidades remanescentes; 4. A situação dos programas de residência jurídica perante o STF; 5. Conclu-são e perspectivas; 6. Referências.

Palavras-chave: Residência Jurídica – Advocacia de Estado – Constitucionalidade – Legalidade – Oportunidade.

1. Introdução

Os serviços jurídicos estatais, compondo o que se convencionou denominar constitucionalmente de Advocacia Pública, buscam, constan-temente, arregimentar pessoal capaz de bem desempenhar as atividades de consultoria e assessoria jurídica da Administração Pública. Nesse pon-to, extrai-se da expressa dicção da Constituição Federal, em termos gerais (art. 37, II, da CF/88) ou específicos (art. 131 e 132 da CF/88), que a regra geral de arregimentação de pessoal para os quadros da Advocacia de Es-tado2 será dada mediante concurso público de provas e títulos. Em outras palavras, não há dúvidas de que a investidura nos cargos de Advocacia

2 A denominação “Advogado ou Advocacia de Estado” advém da cátedra de Dio-go de Figueiredo Moreira Neto, que utiliza uma acepção larga da palavra “Estado” a fim de designar o ente público primacial, independentemente da esfera tratada: União, Estados, Distrito Federal ou Municípios. Na lição do aludido autor, “a razão mais evidente dessa opção é que a designação de advogado público é equívoca, confundindo-o com o defensor público, pois que este é também, etimologicamente, um advogado público (e até dupla-mente público, porque não só a sua função é pública, como também o é o seu atendimen-to, pois que dirigido ao público). Por outro lado, a alternativa que se tem alvitrado para superar a ambiguidade — a de procurador público — suscita outra confusão com o cargo de procurador de justiça, cujas funções, exercidas junto ao Poder Judiciário, se dirigem à defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Parece, assim, de todo preferível manter-se a referência central ao advogado de Estado para individuar o profissional do direito que exerce as especialíssimas funções previstas nos arts. 131 e 132, insertas na Seção II, do Capítulo IV, do Título IV da Consti-tuição”. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A responsabilidade do advogado de Es-tado. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro — PGE-RJ, Rio de Janeiro, v. 63, 2008, p. 95.

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de Estado será obrigatoriamente demarcada pelo instituto do concurso público, sendo certo afirmar que tal instituto informará, ainda – e como regra geral –, o acesso aos cargos públicos para exercício de atividade es-tatal de natureza perene. Assim, para os cargos de Advocacia de Estado devidamente criados por lei, o concurso público é requisito preliminar inafastável para seu preenchimento.

De toda sorte, o próprio sistema jurídico nacional indica os casos em que, observadas determinadas peculiaridades, o instrumental do con-curso público não será aplicável na seleção de pessoal pela Administração. Como exemplo, é a própria Constituição que elenca os casos dos cargos em comissão (art. 37, II, da CF/88) e os de contratação por tempo deter-minado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, IX, da CF/88). Por ora, no entanto, o que se pretende discutir é uma nova fórmula de atuação dos órgãos jurídicos, em geral, e de Advocacia de Estado, em específico, que vem levantando questiona-mentos quanto ao seu enquadramento constitucional no que se refere à seleção de pessoal: os programas de residência jurídica.

Em breve síntese, o que se planeja no presente artigo é expor as minúcias de tais programas e, logo após, apresentar o debate sobre a sua constitucionalidade, legalidade e oportunidade sob duas óticas principais: (1) à luz da atual matriz constitucional de seleção de pessoal pela Admi-nistração Pública; e (2) à luz da competência legislativa para sua criação e regulamentação. Dito de outro de modo, a ideia é analisar a fórmula das residências jurídicas em contraste com os ditames constitucionais e administrativos de arregimentação de pessoal, em especial o instituto do concurso público. A referida análise terá como pano de fundo, em larga medida, os questionamentos judiciais já enfrentados por tais programas, sobretudo no âmbito do Supremo Tribunal Federal, ainda que não haja, até à presente data, manifestação conclusiva e definitiva do Supremo acer-ca da viabilidade jurídica das residências jurídicas.

Ao final, o que se busca é demonstrar como os programas de residên-cia jurídica poderão ser implementados por órgãos jurídicos (e aqui, em es-pecial, os órgãos de Advocacia de Estado), mormente diante da tentativa de não macular os princípios básicos que informam o regime de direito público inerente às atividades típicas de Estado. Passa-se, pois, à referida explanação.

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2. Residência jurídica: o que é isso?

O pioneiro e mais famoso programa de residência jurídica no Brasil é oriundo de um órgão de Advocacia de Estado: a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ). Atualmente em sua décima edição, o programa foi instituído por intermédio da Resolução PGE-RJ n. 2483/2008 no âmbito do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-RJ e de sua Escola Su-perior de Advocacia Pública (criados, respectivamente, pela Lei Estadual n. 772/1984 e pelo Decreto Estadual n. 21037/1994). Em específico, seu regu-lamento indicava que o programa objetivava “proporcionar a Bacharéis em Direito o conhecimento da advocacia pública” (art. 1º). De forma incisiva – e já em seu art. 2º –, o mesmo regulamento indicava que a Residência Jurídi-ca, abrangendo atividades de ensino, pesquisa e extensão, geridas pela Esco-la Superior de Advocacia Pública, não criaria vínculo empregatício entre o aluno-residente e a Administração Pública. De toda sorte, a partir da análise dos dois primeiros artigos da Resolução PGE-RJ n. 2483/2008, já é possível, de antemão, extrair grande parte dos caracteres básicos e das discussões so-bre o tema das residências jurídicas em geral, a saber: (1) a possibilidade de estabelecimento de um programa de aprendizado e aperfeiçoamento profis-sional para bacharéis em Direito; e (2) o nível e a espécie de vinculação do residente jurídico (ou aluno-residente) com o Poder Público.

Dissecando os dois pontos expostos, é de ver-se que, em suas li-nhas mestras, os programas de residência jurídica são baseados no binômio trabalho-ensino, o que faz surgir, de plano, a discussão acerca de uma even-tual transmutação de seu caráter educacional inicial para um caráter que se assemelha ao de efetivo trabalho no seio da Administração Pública. Em outras palavras – e em um âmbito mais técnico-jurídico –, o binômio tra-balho-ensino traz consigo uma necessária discussão acerca das distinções entre o vínculo educacional criado por intermédio da residência jurídica e o vínculo de trabalho em sentido amplo (relação de trabalho), a abranger, no ponto, a vinculação jurídico-administrativa inerente ao serviço público.

Pois bem. Espalhados pelas três esferas federativas e pelos mais diversos órgãos jurídicos (Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pú-blica e Procuradorias), a ideia básica dos programas recai sobre a intera-ção entre os alunos-residentes (bacharéis em Direito) e os profissionais

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titulares de cargos públicos na seara jurídica. Tal interação, conforme já exposto, é dada sob a égide de um programa educacional que alia apren-dizado teórico com o aperfeiçoamento profissional em termos práticos. É assim, por exemplo, que a Defensoria Pública da União, em sequência ao disposto pela PGE-RJ, estruturou seu programa de residência jurídica. De fato – e nos termos dos normativos internos que criaram o programa no âmbito da DPU –, eis os seus pontos básicos:

Art. 1º. Programa de Residência Jurídica na Defensoria Pública da União constitui-se como curso de pós-graduação lato sensu asso-ciado à prática jurídica.§ 1º O curso tem duração de dois anos, durante os quais o aluno-residente assiste a um mínimo de trezentos e sessenta horas-aulas teóricas, presen-ciais ou à distância, ministradas por instituição de ensino superior.§ 2º. O total de horas destinadas às aulas teóricas divide-se entre disciplinas de um tronco comum, que devem ser cursadas por to-dos os alunos residentes, e disciplinas específicas.§ 3º. A escolha da disciplina específica a ser cursada cabe ao aluno-re-sidente, observados, sempre, os limites de vagas em cada uma delas.§ 4º. A orientação do aluno-residente cabe ao professor escolhido pelo aluno-residente dentre o rol oferecido pela instituição de en-sino superior, condicionada à concordância do próprio professor e da Coordenação do Programa.§ 5º. As aulas teóricas serão complementadas pelo desempenho de atividades práticas sob a orientação de Defensor Público, designa-do como coorientador do aluno-residente pela Coordenação do Programa ou pelo supervisor da coorientação, onde houver.§ 6º. A coorientação para a aplicação prática das aulas teóricas po-derá ser exercida por mais de um Defensor Público.§ 7º. O aluno-residente aprovado no programa receberá da insti-tuição de ensino superior o título de especialista em direito na dis-ciplina específica que escolheu cursar.3

3 Resolução Conjunta DPGF/CSDPU nº 01, de 13 de junho de 2011 – Regulamen-ta o Programa de Residência Jurídica da Defensoria Pública da União.

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Como já visto, o eixo do programa da DPU é o mesmo que acaba por orientar a grande maioria dos programas assemelhados: atividade de ensino, com atribuição de grau superior de especialista em disciplina jurídica (pós-graduação), aliada ao desempenho de atividades práticas sob a orientação de um defensor público da União. Nesse contexto, tem-se, de um lado, a atuação profissional com a utilização da estrutura do órgão jurídico que oferece o pro-grama de residência e com a orientação prático-profissional de seus profissio-nais (no caso, a Defensoria Pública da União por intermédio de seus defensores públicos), e, de outro, a atividade educacional que, via de regra, é viabilizada por intermédio de ajuste firmado entre o órgão/ente jurídico e uma instituição de ensino que coordene o projeto educacional tendente à concessão do grau de especialista (no caso da DPU, a contratação foi manejada com a Fundação Universidade de Brasília, conforme será visto em tópico posterior).

Ainda dentro de um quadro geral, é de ver-se que os mais variados programas de residência jurídica estabelecem, para além do acesso a um grau de especialista, uma contraprestação pecuniária ao aluno residente que, no mais das vezes, é bastante superior aos montantes usualmente destinados aos estagiários em programas de estágio institucional (estes regidos, em si, pela Lei Federal n. 11.788/2008). Aí está, pois, mais um dos atrativos de tais pro-gramas para seus postulantes: uma remuneração minimamente atrativa para alunos com graduação recente e que não mais estariam aptos a continuar atu-ando como estagiários durante seus cursos de graduação em Direito.4

Por fim – e apenas como referencial –, é importante ressaltar como os programas de residência jurídica têm se espalhado pelos mais variados órgãos jurídicos. Para além dos já citados exemplos da PGE-RJ e da DPU, os seguintes órgãos/instituições, entre outros, adotaram essa forma de atuação baseada no eixo trabalho-ensino: PGE-AM, MP-RN, MP-SC, PGM-Rio, PGM-Niterói, DPE-AM, DPE-RJ, TRT-RN, TJ-TO e TJ-SC.5

4 Conforme será visto a seguir, remanesce a possibilidade da realização de estágio durante um curso de pós-graduação.5 O Município do Recife chegou a editar decreto regulamentando o seu programa de residência jurídica, muito embora não o tenha implementado efetivamente. De fato, o Decreto Municipal n. 26.143/2011, ainda em vigor, dispõe que o Programa de Residência jurídica é o programa de formação teórica e prática de pessoal técnico qualificado para a

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3. Casos concretos de implementação de programas de residência jurídica: questionamentos judiciais e possibilidades remanescentes

Logo no início da implementação dos programas de residência jurí-dica, uma das primeiras e mais incisivas contestações judiciais a tais progra-mas veio por intermédio de ação civil pública manejada pelo Ministério Pú-blico Federal no caso da já mencionada parceria firmada entre a Defensoria Pública da União e a Fundação Universidade de Brasília (FUB).6 Em bre-víssima síntese – e conforme relatado pelo órgão jurisdicional que conhe-ceu da matéria, a 18ª Vara Federal do Rio de Janeiro –, a alegação do MPF era de que o contrato entre DPU e FUB havia sido “celebrado em desvio de finalidade, estando voltado, a pretexto do aprimoramento acadêmico dos se-lecionados, para o fornecimento de mão de obra e assessoramento dos Defen-sores Públicos da União”. Em suma, pois, tinha-se a imputação de desvio de finalidade na arregimentação de residentes, fazendo-se crer, a grosso modo, que se tratava de contratação de pessoal por tempo determinado “procedida à revelia dos requisitos constitucionais e da Lei 8.745/93; pois, tal qual em alguns órgãos públicos estaduais do Rio de Janeiro [e aqui a menção indireta e subliminar à PGE-RJ], a denominada ‘Residência Jurídica’ destina-se tão somente ou primordialmente a atribuir o exercício de uma função pública (sem a existência do cargo público correlato) a pessoas que embora, de direito, estejam apenas vinculadas à instituição de ensino ré, estão, de fato, prestando serviço à Administração Pública”.

Outro ponto marcante da imputação do MPF dizia respeito à com-paração entre residência jurídica e residência médica. No ponto, alegava-se que, ao contrário do que ocorre nos programas de residência médica

atuação em matérias jurídicas de interesse do município, sendo organizado pela Secretaria de Assuntos Jurídicos (atualmente designada como Procuradoria Geral do Município do Recife), que editará ato normativo definindo processo seletivo, duração do programa, estru-tura escolar, procedimentos de acompanhamento dos alunos-residentes e outros assuntos relativos ao seu funcionamento. Dispõe o referido decreto, ademais, que o Município poderá firmar convênio com instituição de ensino superior para a organização e a execução do pro-grama de residência jurídica e a titulação dos alunos-residentes como especialistas.6 Processo n. 0007449-54.2011.4.02.5101 – 18ª Vara Federal do Rio de Janeiro – JFRJ, com liminar deferida em 08 de agosto de 2011 e sentença, revogando a liminar, em 17 de junho de 2013.

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regulamentados pela Lei Federal n. 6.932/81, “a residência jurídica não teria qualquer previsão legal, não se podendo equipará-las, já que a pri-meira caracteriza-se por treinamento em serviço, orientado por especialistas médicos, e que habilita o aluno ao exercício da especialidade médica eleita; enquanto a residência jurídica não habilita o “aluno” a exercer a função de Defensor Público”.

Assim, com suporte nas alegações do Ministério Público Federal, o Judiciário, em cognição sumária, abraçou a tese levantada na ação civil pública e suspendeu a execução do contrato firmado entre a DPU e a FUB, obstando, naquele momento,7 a continuidade do programa de residência jurídica da DPU. Em sede argumentativa, o juízo da 18ª Vara Federal do Rio de Janeiro assim expôs sua convicção em sede liminar:

As disposições que regem o contrato impugnado, portanto, ensejam uma aparente prestação de serviço de assessoria jurídica para a De-fensoria Pública da União, sem que haja cargo público a ser ocupado para tanto, com remuneração (a título de “bolsa-auxílio”) e carga ho-rária semelhante à dos próprios servidores públicos da Defensoria Pública da União. Por outro lado, as atividades a serem exercidas pelos “alunos-residentes” são muito assemelhadas àquelas dos servi-dores dos cargos de analistas judiciários.Observo, outrossim, que, ainda que a finalidade real do ato atenda a interesse público – como é o caso de dotar de recursos humanos a Defensoria Pública da União – não seria lícito fazê-lo através de ato preordenado a finalidades acadêmicas.

Dissecando os argumentos acolhidos para a suspensão liminar do programa, é de ver-se que o juízo entendeu que a residência jurídica acabava por escamotear verdadeira contratação de pessoal a despeito da existência de cargos públicos e processo seletivo no padrão constitucional (concurso público). Tinha-se, assim, uma finalidade de arregimentação de pessoal disfarçada de programa de trabalho-ensino.

7 Vide nota 5.

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Após a suspensão do programa em sede liminar e a efetiva oitiva dos envolvidos (União e FUB, sobretudo), o juízo sentenciante bem resumiu a questão nos seguintes termos: “enquanto o MPF argumenta que a cognomi-nada ‘Residência Jurídica’ limita-se a uma tentativa, ainda que escamoteada, de captar mão de obra qualificada sem a necessidade de realização de um concurso público adequado, resultando em claro desvio de finalidade, a União Federal aduz que o programa é parte de um curso de pós-graduação e, por isso, está embasado na lei de Diretrizes e Bases da Educação”.

Diante de tal embate na configuração jurídica do programa, a senten-ça, que revogou a liminar anteriormente deferida, entendeu que o fato de as instituições de ensino superior (tal qual a FUB) terem autonomia para criação de seus cursos, conforme disposto no art. 53, I da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei Federal n. 9.394/96), abrangeria a possibilidade de criação de curso de pós-graduação nos moldes da residência jurídica (a qual, confor-me seu próprio regulamento, é disposta em dois módulos: de um lado, um módulo teórico com aulas, exames e avaliações e, de outro, um módulo de caráter prático-profissional a ser desempenhado pelos alunos-residentes nas unidades da DPU sob orientação de um defensor público).

Para além da questão afeta ao direito educacional e da possível cria-ção de modalidade de programa de pós-graduação abrangendo módulos teóricos e práticos, o juízo da 18ª Vara Federal do Rio de Janeiro funda-mentou sua sentença na própria teoria dos atos administrativos e em seus atributos de presunção de veracidade e de boa-fé. Diante disso, afastou o alegado desvio de finalidade defendido pelo MPF em relação ao programa de residência jurídica nos seguintes termos:

É claro que não se pode afastar a possibilidade de que, na prática, o referido Programa apenas funcione como uma espécie de “guar-da-chuva” para conferir formal e aparente legalidade à prestação de serviços em caráter extraordinário, com burla à legislação de regên-cia. Mas isso decorreria de uma distorção na execução do Programa, que pode e deve receber acompanhamento pelos órgãos incumbidos de fiscalização, entre os quais figura o Ministério Público e o pró-prio Ministério da Educação. Entretanto, não é possível considerar a ocorrência “ex ante” dessa distorção, o que inverteria, aliás, a lógica

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que deve imperar na análise de atos praticados pelo Poder Público, que gozam de presunção de veracidade e de boa fé.

Ante tal fundamentação, o programa de residência jurídica da DPU foi restaurado e teve sua legalidade confirmada em sentença, estando pen-dente de julgamento a apelação do MPF sobre a questão.

Por ora, é interessante notar que no caso da DPU o embate judicial acerca do programa de residência jurídica acabou por não trazer a discussão sobre a competência legislativa para sua criação e regulamentação, uma vez que a ação manejada pelo MPF tinha como fio condutor o argumento do desvio de finalidade nas atividades dos alunos-residentes, os quais estariam, segundo o próprio MPF, exercendo atividade típica de detentores de cargos públicos de defensor público da União. De toda sorte, é na análise dos casos ora pendentes no Supremo Tribunal Federal que se trará o debate dos pro-gramas de residência jurídica tanto à luz da atual matriz constitucional de seleção de pessoal pela Administração Pública quanto à luz da competência legislativa para sua criação e regulamentação.

4. A situação dos Programas de Residência Jurídica perante o STF

A semente dos programas de residência jurídica plantada no Esta-do do Rio de Janeiro floresceu e se espalhou por diversos órgãos jurídicos país afora. Assim é que, diante de tal expansão, os questionamentos aos programas que antes se davam por meios difusos acabaram se concen-trando no Supremo Tribunal Federal.

Em termos específicos, é possível destacar, atualmente, três ações diretas de inconstitucionalidade atacando a criação e a regulamentação de programas de residência jurídica análogos ou semelhantes aos já abordados no presente estudo (PGE-RJ e DPU): 1) ADI 5387, tratando do programa de residência jurídica da PGE-AM; 2) ADI 5477, tratando do programa do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, e; 3) ADI 5752, acer-ca do programa do Ministério Público do Estado de Santa Catarina.

Na ADI 5387, ajuizada pelo Procurador-Geral da República com pedido de medida cautelar, o questionamento foi direcionado à Lei n. 3.869/2013 do Estado do Amazonas, que instituiu, no âmbito da Procu-

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radoria-Geral do Estado do Amazonas, o programa de residência jurídica objetivando “proporcionar a bacharéis em Direito o conhecimento das ati-vidades jurídicas exercidas na PGE e nos demais órgãos a ela tecnicamente subordinados” (art. 2º). Em sua essência, o Programa da PGE-AM foi ca-racterizado em sede legal como “treinamento em serviço”, compreenden-do aulas teóricas e atividades práticas sob a gestão da Procuradoria, sendo que “as atividades práticas dos residentes serão orientadas pelos titulares dos cargos pertencentes aos órgãos e às carreiras jurídicas do Estado” (art. 3º, parágrafo único).

Em específico, a PGR manejou a referida ADI apontando incons-titucionalidades de ordem formal e material na Lei n. 3.869/2013 do Es-tado do Amazonas. No plano formal, a principal alegação formulada pelo Ministério Público Federal era de que o “o Estado do Amazonas avançou sobre competência privativa da União para legislar sobre Direito do Tra-balho, definida pelo art. 22, I, da Constituição da República”. Assim, não havendo lei complementar autorizativa para que Estados e Distrito Fe-deral legislem sobre a temática, qualquer normatização estadual sobre o assunto padeceria de vício de inconstitucionalidade formal.8 Isso porque, na espécie, a PGR reputou que a normatização dada sobre a relação havi-da entre Administração Pública e o aluno-residente caracterizaria relação de trabalho em sentido amplo, sendo passível de regulamentação apenas pela União. Como argumento de suporte para a aferição da inconstitucio-nalidade formal, a analogia com os programas de residência médica foi novamente trazida e assim debatida:

A fim de acentuar a necessidade de lei federal que disponha a res-peito do instituto da “residência jurídica” – conceito, atribuições, duração, abrangência, entre outros aspectos –, cabe apontar a exis-tência de legislação federal relacionada à residência médica.A residência médica, tipo mais conhecido no ordenamento jurí-dico vigente, encontra-se disciplinada pela Lei (federal) 6.932, de

8 No ponto, importante ressaltar que o art. 22, parágrafo único, indica que lei complementar federal poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas no artigo 22, dentre as quais o direito do trabalho (art. 22, I).

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7 de julho de 1981, atualizada pelas Leis 12.514, de 28 de outubro de 2011, e 12.871, de 22 de outubro de 2013. Nos termos do art. 1º da Lei 6.932/1981, “a Residência Médica constitui modalidade de ensino de pós-graduação, destinada a médicos, sob a forma de cursos de especialização, caracterizada por treinamento em servi-ço, funcionando sob a responsabilidade de instituições de saúde, universitárias ou não, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional”.Além da criação por lei federal, que regulamenta suas especifica-ções em todo território nacional, a residência médica consubstan-cia, ainda, modalidade de certificação das especialidades médicas no Brasil (art. 1º, § 3º, da Lei 6.932/1981).A inconstitucionalidade formal da lei amazonense que insti-tui o programa de residência jurídica é nítida, visto que a maté-ria é de interesse nacional e a competência para sobre ela dispor cabe à União. Por conseguinte, há inconstitucionalidade da Lei 3.869/2013, do Amazonas.

Do ponto de vista material, a alegação central da PGR era de que “a Lei estadual 3.869/2013, a pretexto de capacitar bacharéis em Direito e introduzi-los nas atividades da Procuradoria-Geral do Estado do Ama-zonas, caracteriza hipótese velada de contratação por tempo determinado, sem observar os requisitos previstos no art. 37, IX, da Constituição da Repú-blica”. É que, na visão da PGR, “estabelece a lei estadual, nitidamente, hipó-tese de contratação temporária para exercício de função típica de servidor da Procuradoria-Geral do Estado ou de procurador de Estado ou, por via de consequência, de assessor desses servidores, atividades que, de regra, não devem ser realizadas por quem não possua vínculo com o poder público”. E assim concluiu a PGR: “é, por essa razão, inconstitucional a lei amazo-nense, seja por consubstanciar espécie de contratação temporária, não espe-cificando a contingência fática que evidenciaria a situação emergencial, e afrontar o art. 37, IX, do texto constitucional, seja por violar a cláusula do concurso público inscrita no art. 37, II, da Constituição”.

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Após a aplicação do rito do art. 12 da Lei Federal n. 9.868/999 vie-ram as informações do Estado do Amazonas e as manifestações do Advo-gado-Geral da União e do Procurador-Geral da República. Em apertada síntese, as informações do Estado do Amazonas galgaram-se no argu-mento de que a concepção e a formatação do programa de residência ju-rídica da PGE-AM possui natureza jurídica de direito educacional e não de direito trabalhista (relação trabalhista), sendo equivocado, por conse-guinte, o pressuposto adotado pelo MPF de que o programa constitui-se em prestação de serviço público, por bacharéis em Direito, à Procuradoria Geral do Estado do Amazonas.

Adentrando na exposição do Estado do Amazonas, tem-se que o pro-grama de residência jurídica fora “criado com propósito educacional, tendo como objetivo primordial proporcionar a bacharéis em direito o conhecimento sobre a advocacia estatal”. Não haveria, assim, qualquer espécie de víncu-lo ou relação de trabalho entre administração pública e aluno-residente, preponderando o caráter educacional em detrimento de qualquer acepção trabalhista/relação de trabalho (seja estatutária, temporária ou empregatí-cia). Tal construção, pois, afastaria de plano a inconstitucionalidade formal apontada pelo MPF, sobretudo pelo fato de que a programa educacional é que denotaria a natureza jurídica da residência. Ausente a normatização acerca da relação de trabalho, não seria possível se falar em invasão de com-petência legislativa da União por parte do Estado do Amazonas.

Por outro lado – e ainda que não expressamente debatido nas infor-mações do Estado do Amazonas –, é válido salientar que um dos pontos de discussão acerca do programa da PGE-AM reside no fato de que não há, na espécie, um programa de pós-graduação (grau acadêmico de pós-graduação em disciplina jurídica, em nível de especialização) que funda-mente o programa, na linha do que ocorre em diversos outros programas

9 Lei Federal n. 9.868/99 – Art. 12. Havendo pedido de medida cautelar, o rela-tor, em face da relevância da matéria e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica, poderá, após a prestação das informações, no prazo de dez dias, e a manifestação do Advogado-Geral da União e do Procurador-Geral da República, sucessi-vamente, no prazo de cinco dias, submeter o processo diretamente ao Tribunal, que terá a faculdade de julgar definitivamente a ação.

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de residência. Por tal motivo, a defesa manejada pelo Estado do Amazo-nas focava o fato de que “o Programa de Residência Jurídica, portanto, é um curso livre de longa duração promovida pela Procuradoria Geral do Estado do Amazonas, com características de um curso de extensão (cuja criação, de resto, independe de autorização do Ministério da Educação).” Diante dis-so, não haveria “qualquer invasão do Estado do Amazonas à competência prevista no art. 22, I, da Constituição da República, pela edição da Lei Es-tadual n. 3.869/2013. Isso se dá pelo simples fato de que o instituto criado pela referida lei não se enquadra nas matérias ali previstas. De fato, inexiste natureza jurídica de direito do trabalho no Programa de Residência Jurídi-ca da Procuradoria Geral do Estado do Amazonas, cujo caráter de direito educacional é manifestado”. É que, na esteira das competências legislativas na seara do direito educacional, não haveria qualquer óbice para a criação de tal curso de extensão pelo Estado do Amazonas, seja pela própria con-formação constitucional do direito educacional, em leitura cruzada dos artigos 22, I e 24, IX, da CF/88, seja pela abertura legislativa dada pelo art. 81 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que estabelece, em nítida regra de encerramento, a permissão geral para organização de cursos ou instituições de ensino experimentais, desde que obedecidas as disposições gerais da própria LDB.

Quanto à inconstitucionalidade material, o posicionamento do Es-tado do Amazonas deu-se no sentido de que a natureza de direito educa-cional fulminaria, por si, qualquer suposição de que o programa implica-ria burla ao procedimento de acesso à administração pública (concurso público para provimento de cargos efetivos, contratação temporária ou mesmo a nomeação para cargos em comissão). No ponto, as previsões expressas da Lei Estadual n. 3.869/2013 e a bolsa-auxílio que qualifica o programa apontariam no sentido da inexistência total de “cargo, função, prestação de serviços ou remuneração que possa atrair a incidência do art. 37, II e IX” da Constituição Federal. Ademais disso – e não seria demais repetir –, inexistiria qualquer óbice à formatação de curso que traga a aprendizagem prática como modalidade de ensino. Por certo, pois, a na-tureza educacional “não é transmudada pelo fato de o aprendizado se dar por intermédio de aulas teóricas e práticas; pelo contrário: o treinamento em serviço não apenas é modalidade de ensino plenamente reconhecida como

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também essa aprendizagem prática, aplicada em conjunto com a aprendi-zagem teórica, é ponto nodal da Pedagogia de Alternância, defendida como a mais adequada e de melhores resultados pelos mais proeminentes doutri-nadores e filósofos da educação”.

Ofertando manifestação no bojo da ADI 5387, o advogado-geral da União, no mérito, indicou que as atribuições dos alunos-residentes seriam praticamente idênticas às dos estagiários da PGE-AM, sobretudo após a análise minuciosa das atribuições de ambos, tal qual encartadas nos edi-tais dos processos seletivos respectivos. Tal fato, então, seria apto a revelar com nitidez o vínculo propriamente educacional do Programa de Resi-dência Jurídica, e não trabalhista ou jurídico-administrativo, como quis fazer crer o MPF. Eis, então, a conclusão da AGU sobre a matéria:

Em suma, o que pretende a Procuradoria-Geral do Estado do Amazonas, com o seu Programa de Residência Jurídica, é selecio-nar bacharéis em Direito (Lei n. 3869/2013, art. 4°) para, por meio de atividades teóricas e práticas, estas sob a instrução de membros da PGE-AM (Lei n. 3869/2013, art. 3°, parágrafo único), torná-los especialistas em Advocacia Pública.Trata-se, portanto, de atividades de cunho precipuamente educacio-nal, abrangendo não apenas o ensino, como também a pesquisa e a extensão, administradas pela Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Amazonas (Regulamento do Programa de Residência Jurídica, art. 2°), remuneradas mediante bolsa-auxílio mensal (Lei n. 3869/2013, art. 6°) e voltadas para com-plementar a formação profissional do Bacharel em Direito.

No tocante à competência legislativa na esfera do direito educa-cional, esclareceu a AGU que a competência legislativa suplementar dos Estados confere a estes entes federados uma capacidade criativa para in-troduzir, dentro do quadro geral legislado pela União (LDB), experimen-tos e inovações na seara educacional, o que se dá sobremaneira no caso das residências jurídicas. Tanto é assim que o próprio STF tem reconhe-cido a “necessidade de prestigiar iniciativas normativas regionais e locais

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sempre que não houver expressa e categórica interdição constitucional”.10 É que, conforme exposto em precedente exatamente na seara educacional, “o princípio federativo brasileiro reclama, na sua ótica contemporânea, o abandono de qualquer leitura excessivamente inflacionada das competên-cias normativas da União (sejam privativas, sejam concorrentes), bem como a descoberta de novas searas normativas que possam ser trilhadas pelos Es-tados, Municípios e pelo Distrito Federal, tudo isso em conformidade com o pluralismo político, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (CRFB, art. 1º, V)”.11

Por derradeiro, ofertando parecer no bojo da ADI 5387, o Minis-tério Público Federal, também autor do expediente, assim resumiu seu pronunciamento:

É inconstitucional, por afronta ao art. 37, II e IX, da Constituição da República, lei estadual que, a pretexto de instituir programa de residência jurídica, crie hipótese de prestação de serviço público em caráter temporário, por bacharéis em Direito, para exercício de funções típicas de servidor da Procuradoria-Geral do Estado ou de procurador de estado.

Insere-se na competência privativa da União para legislar sobre Direito do Trabalho (CR, art. 22, I) disciplina relativa a instituição, funcionamento, remuneração, carga horária, atribuições, processo de admissão e desligamento pertinentes à residência jurídica.

Ainda no ambiente do próprio Supremo Tribunal Federal – mesmo que em controle difuso –, importante ressaltar que o Tribunal já se pro-nunciou, em obiter dictum, sobre a questão das residências jurídicas. De fato, ao decidir em sede de liminar em mandado de segurança pela não obrigatoriedade da formulação de convênios pelo Ministério Público do

10 STF – ADI 4060 – Relator Ministro Luiz Fux – Julgamento em 25 de fevereiro de 2015.11 Vide nota 8.

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Estado de São Paulo com instituições de ensino para a admissão de esta-giários, o Supremo assim se manifestou:

Quando o estágio se dá no âmbito dos órgãos públicos, é correto admitir que o estagiário, em benefício de sua formação profissio-nal, desempenha tarefas próprias dos órgãos públicos, mas sempre com restrições e necessariamente sob supervisão. Mesmo assim, prepondera sua condição de estudante.O estágio profissional, por definição, é realizado ainda durante o curso. Não se pode admitir o estágio pós-bacharelado, incompatí-vel, inclusive, com a Lei nº 8.625/93, cujo art. 37, parágrafo único, restringe o estágio ao período do curso de bacharelado. Não é por outra razão, aliás, que diversos órgãos públicos do país vêm instituin-do programas de residência jurídica, concebidos como extensão ou pós-graduação dirigida a bacharéis que desejam ampliar seu tirocí-nio profissional mesmo depois de formados.12

Continuando na análise dos casos de controle concentrado de

constitucionalidade, interessa mencionar que a ADI 5477 (caso do MP--RN) e a ADI 5752 (caso do MP-SC) trazem questionamentos bastante semelhantes aos já enfrentados na ADI 5387 (caso da PGE-AM). Além disso, tanto a ADI 5477 quanto a ADI 5752 foram manejadas pela AN-SEMP (Associação Nacional dos Servidores do Ministério Público), tendo redações e argumentações praticamente idênticas.

Em resumo, ambas ações diretas estipulam como parâmetro de controle os já aludidos artigos 22, I, e 37, II e X da Constituição Fede-ral, trazendo novamente as questões de competência legislativa para tra-tamento do direito do trabalho e o debate sobre o acesso de pessoal à administração pública. Assim – e na visão da ANSEMP –, a criação dos programas de residência à luz dos programas de residência médica bus-caria “conferir aparência de legitimidade ao recrutamento de mão de obra boa (trata-se de pessoas graduadas e estudantes de pós-graduação em nível

12 STF – MS 30.687/DF – Relator Ministro Luiz Fux – Julgamento em 04 de agosto de 2011.

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de especialização, mestrado e doutorado) e barata (sem os custos de um servidor efetivo) em manifesto desacordo com a Constituição Federal”.

De plano, o aspecto interessante das duas ações reside numa apa-rente e ligeira alteração de posicionamento do Ministério Público Federal na ADI 5752 (MP-SC), especialmente em relação àquilo que foi sustenta-do tanto na ADI 5387 (PGE-AM) quanto na ADI 5477 (MP-SC), confor-me será visto. É que, por óbvio, tanto os Estados (Rio Grande do Norte e Santa Catarina) quanto a AGU sustentaram a plena constitucionalidade de suas normatizações acerca das residências no âmbito dos respectivos Ministérios Públicos; o MPF, no entanto, houve por flexibilizar, aparente-mente, seu entendimento anterior agora no bojo da ADI 5752.

Diretamente ao ponto – e conforme já relatado –, o MPF vinha in-dicando em todas suas manifestações no âmbito do STF o seu posiciona-mento contrário aos programas de residência jurídica, apontando vícios de inconstitucionalidade formal e material, com a afronta específica aos artigos 22, I, e 37, II e X da Constituição Federal (ausência de competência legisla-tiva subnacional para o trato de matéria afeta à União, o direito do trabalho, e inviabilidade de criação de hipótese de prestação de serviço público pelos residentes a par do acesso regular às funções estatais).

Ocorre que, no bojo da ADI 5752, o MPF sedimentou o seguinte entendimento:

Celebração de contrato de estágio entre órgãos públicos, institui-ções de ensino superior e estudantes regularmente matriculados em cursos de pós-graduação não acarreta vínculo empregatício com a Administração Pública e nem viola o princípio do concurso público.

Como observaram a AGU e a Assembleia Legislativa, em suas ma-nifestações, o art. 9º da Lei federal 11.788, de 25 de setembro de 2008, expressamente admite a oferta de estágio a estudantes que frequentem ensino superior – neste incluídos os cursos de pós-gra-duação, mestrado e doutorado (art. 44, III, da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996) – por órgãos da administração pública direta e indireta, autárquica e fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

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Neste processo, o contrato de estágio celebrado com base no art. 63-A da Lei Complementar catarinense 197/2000 não acarreta vínculo empregatício de qualquer natureza com o MP/SC e sua celebração demanda convênio com instituição de ensino supe-rior. Tem por finalidade o desenvolvimento de alunos e sua pre-paração para o trabalho. Por essas razões, não há falar em afronta ao postulado do concurso público.

É fato notório, de toda sorte, que tal entendimento foi apresentado pelo MPF com a expressa ressalva de que a lei catarinense em questão não trazia especificamente um programa de residência jurídica tal qual o vei-culado pela PGE-AM e em discussão na ADI 5387; trazia, em verdade – e na visão no MPF –, “um programa de estágio no Ministério Público para estudantes regularmente matriculados no ensino médio, nos três últimos anos do curso de graduação em Direito, em curso de graduação em áreas do conhecimento diversas do Direito e em cursos de pós-graduação, em nível de especialização, mestrado, doutorado ou pós-doutorado”. Assim, consignou o MPF que a situação prevista na lei catarinense “não se confunde com a da ADI 5.387/AM, dirigida contra o chamado programa de ‘residência jurí-dica’ do Ministério Público do Amazonas [em verdade, o MPF se referia à PGE-AM, e não ao MP-AM]. Naquele caso, houve previsão de contratação de bacharéis em Direito para exercer atividades relacionadas a atribuições de membros do órgão, sem exigência de matrícula em instituição de ensino superior nem frequência a cursos de pós-graduação”.

Dito isso, importa demarcar, por ora e de forma esquematizada, a posição do MPF a partir da conjugação de suas manifestações nas ações diretas já debatidas:

1) em se tratando de legislação/normatização estadual que preveja a possibilidade de estágio para frequentadores de curso regular de pós-graduação, inexiste afronta à Constituição (caso do MP-SC). 2) em se tratando de legislação / normatização estadual que esta-beleça a atuação prático-profissional de aluno-residente com fun-damento apenas em curso de extensão, restaria inviável a referida

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atuação prático-profissional, eis que representaria, em verdade, ir-regular exercício de função de assessoria pelo aluno-residente.

O diferencial, assim, seria a frequência ao curso regular de pós-gra-duação (e não meramente um curso de extensão), o que abriria as portas para a realização de estágio prático-profissional ao pós-graduando (aluno--residente). O que se vê, em realidade, é que no caso da PGE-AM (ADI 5387) a contraparte educacional do programa de residência jurídica foi via-bilizada mediante curso de extensão a cargo da própria Procuradoria, não se configurando como um curso regular de pós-graduação, em nível de es-pecialização, em disciplina jurídica específica. A prosperar o entendimento do MPF, restaria impossível de se considerar qualquer afronta à Constitui-ção nos casos em que o próprio programa de residência jurídica traz uma contraparte educacional, em nível de pós-graduação, que lastreia o lado prático-profissional (ou, em outras palavras, o estágio prático-profissional para o aluno de pós-graduação).13 Nesse sentido, o pioneiro programa de residência jurídica, a cargo da PGE-RJ, continua a ser um ótimo paradigma para a implementação de novos programas em outros órgãos jurídicos.

Vistos tais pontos controvertidos, é de se mencionar, ao final, que as três ações diretas aqui debatidas continuam pendentes de julgamento. De fato – e tal qual exposto na introdução –, as alegações de inconstituciona-lidade veiculadas nas referidas ações serão resolvidas tanto à luz da atual matriz constitucional de seleção de pessoal pela Administração Pública quanto à luz da competência legislativa para sua criação e regulamenta-ção. Há de se aguardar, por ora, que o Supremo defina, em palavra final, os contornos possíveis para os programas de residência jurídica.

13 Por certo, o estágio prático-profissional ao aluno de pós-graduação tem como fundamento a própria Lei Federal n. 11.788/2008 (regulamento dos estágios), que expres-samente admite, em seu art. 9º, a oferta de estágio a estudantes que frequentem ensino su-perior – neste incluídos, por interpretação lógico-sistemática, os cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado, a teor do art. 44, III, da Lei Federal n. 9.394/1996.

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5. Conclusão e perspectivas

Os programas de residência jurídica, hoje, são parte da realida-de institucional de diversos órgãos/entidades públicas. Em se tratando de órgãos de Advocacia de Estado, onde nasceram e foram gestados inicial-mente (vide PGE-RJ), a fórmula das residências tem apresentado sucesso bastante considerável em sua execução. Corroborando com tal cenário, basta atentar para o fato de que a Associação Nacional dos Procurado-res Municipais (ANPM) aprovou, em seus congressos anuais, o seguinte enunciado sobre a matéria:

Enunciado 247 (AI VI): Programa de formação jurídica: A Procu-radoria, mediante processo seletivo público, poderá instituir Pro-grama de Formação Jurídica, em conjunto com Instituição Oficial de Ensino, conciliando os conhecimentos teóricos e práticos por meio de curso para advogados que, na formação prática, serão su-pervisionados por Procuradores Municipais. (Redação dada pelo Enunciado 289).

É de se notar, na espécie, que o Enunciado da ANPM traz consigo os elementos aptos a caracterizar a legalidade/constitucionalidade do pro-grama, na linha do exposto pelo Ministério Público Federal nas já discuti-das ações diretas em trâmite no Supremo Tribunal Federal.

Não há dúvidas, assim, que os programas de residência jurídica, quando bem formatados e executados, podem vir a representar um exce-lente mecanismo de oxigenação e abertura para os órgãos de Advocacia de Estado (e, obviamente, para todos os órgãos estatais de cunho jurídico).

Quanto ao mérito da questão constitucional em jogo, parece salutar evidenciar que nos programas de estágio (Lei Federal n. 11.788/2008) e mesmo nos de residência jurídica há uma aferição administrativa acer-ca da necessidade e da possibilidade de receber e alocar os postulantes (estagiários/residentes), sendo que tal aferição, de caráter eminentemen-te administrativo, repita-se, prescinde de aprovação legislativa que crie o lócus específico na Administração para o estagiário/residente. Já para o cargo público em si (cargos de procurador, promotor, juiz, defensor e

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qualquer outro que possa vir a servir como orientador do aluno-residen-te), tal aferição é de ordem político-legislativa, sendo necessário o crivo do Legislativo na criação dos cargos públicos. Diante disso, a figura da lei em sentido estrito e formal (lei ordinária) parece não ser necessária para a criação dos programas de residência,14 à semelhança do ocorrido com os programas de estágio atualmente existentes em praticamente todos os órgãos públicos nacionais (de cunho jurídico ou não).

Diante disso, parece claro que, à luz da atual matriz de seleção de pessoal pela Administração Pública, os programas de residência jurídica não trazem qualquer afronta à Constituição, eis que não há, na espécie, a configuração de uma relação de trabalho (seja estatutária, temporária, empregatícia ou qualquer outra). Da mesma sorte, não há, em termos objetivos, a arregimentação de pessoal para prestação/realização de ati-vidade típica de servidores públicos em detrimento dos institutos aptos para tal (concurso público, nomeação para cargo em comissão, seleção simplificada para contratação temporária de pessoal etc.). Por outro lado – e à luz da competência legislativa para criação e regulamentação de tais programas –, o que se vê é que cada ente poderá especificar, em normati-zação própria, de caráter infralegal, os caracteres básicos de seu programa a teor do que dispõe, em suas linhas gerais, o atual marco regulatório dos programas regulares de estágio institucional.

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A Compatibilidade do Art. 15 do CPC/2015 com o Princípio Federativo: Um Juízo de Ponderação à Luz da

Garantia do Devido Processo Legal

Cecília Lou1

1 Procuradora do Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco. Advogada em Pernambuco. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito do Recife, da UFPE. Espe-cialista em Direito Administrativo pela mesma instituição. Pós-graduanda em Processo Civil Contemporâneo, ainda pela UFPE. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Damas.

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Resumo: Neste ensaio aborda-se a previsão legalmente expressa de aplicação subsidiária e supletiva do CPC/2015 aos processos administra-tivos, especificamente sob o enfoque da compatibilidade do art. 15 da Lei nº 13.105/15 com o sistema federativo, ante a competência outorgada aos Estados e Municípios para legislar sobre matéria administrativa, questão inclusive suscitada na ADI 5492/DF. Ressalta-se a incidência da garantia do devido processo legal, insculpida nos incs. LIV e LV do art. da Carta Republicana de 1988, aos processos administrativos, com a conseguinte inserção da processualística desenvolvida pela Administração Pública na Teoria Geral do Processo, o que impõe o reconhecimento da existência de uma unidade normativa cujo referencial é o Direito Processual Civil. Nes-se contexto, a análise da compatibilidade do art. 15 do CPC/2015 com a Constituição Federal, particularmente no tocante à aplicação das normas da Lei nº 13.105/15 aos processos administrativos, deve ser informada por um juízo de ponderação, para se reconhecer a sua constitucionalidade a partir de uma diretriz interpretativa no sentido da conciliação dos inafastá-veis desdobramentos da incidência da garantia do devido processo legal nos processos administrativos – entre os quais a necessidade de lei formal para o disciplinamento da relação jurídica processual –, com a autonomia legislati-va dos entes federativos em matéria concernente ao Direito Administrativo.

Palavras-chave: Aplicação Subsidiária – Código de Processo Civil – Processos Administrativos – Princípio Federativo – Devido Processo Legal – Constitucionalidade.

Sumário: Introdução. Considerações iniciais sobre a previsão (agora legalmente expressa) de aplicação do Código de Processo Civil aos processos administrativos de todas as esferas federativas. 1. Existe dife-renciação entre a aplicação subsidiária e supletiva? 2. A tese da inconstitu-cionalidade do art. 15 do CPC de 2015 no tocante à aplicação subsidiária de suas normas aos processos administrativos dos Estados e Municípios. 3. Uma proposta de afastamento da tese de inconstitucionalidade à luz de um juízo de ponderação entre os valores em conflito ante a unidade da Constituição. Conclusão. Referências.

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Introdução

Considerações iniciais sobre a previsão (agora legalmente expressa) de aplicação do Código de Processo Civil aos processos administrativos de todas as esferas federativas.

É cediço que a Constituição de 1988 conferiu novo status ao pro-cesso administrativo no ordenamento jurídico brasileiro, por força da prescrição contida nos incs. LIV e LV do art. 5º da Constituição Federal2 que assegura, por intermédio dessas disposições de viés principiológico, a observância obrigatória da cláusula do devido processo legal na processu-alística administrativa.

De fato, o inc. LV do art. 5º da Constituição Federal utiliza a expres-são “processo administrativo”, enquanto o inc. LIV reforça essa previsão quando alude às garantias do contraditório e da ampla defesa sem distin-guir a seara processual judicial da administrativa, sendo, pois, constitu-cionalmente reconhecida a existência de processo no âmbito da adminis-tração pública – e não apenas de procedimento.

Os processos administrativos instrumentalizam o chamado contencioso administrativo, sendo um termo amplo que abrange re-lações jurídicas processuais instauradas no âmbito da Administração Pública para o controle da conduta de seus agentes, assim como para a solução de controvérsias e lides entre o Estado e os administrados. O processo administrativo constitui gênero, cujas espécies mais co-muns são o processo disciplinar, o processo tributário, o processo ambiental, o processo de controle externo das contas dos gestores públicos, entre outras, inclusive os processos instaurados no âmbito interno do próprio Poder Judiciário, sendo exemplo típico o proces-so disciplinar, pois ali também há atividade administrativa, embora pelo sistema da separação dos poderes a atividade predominante des-se Poder seja a jurisdicional.

2 LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

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Há que se diferenciar, ademais, processo de procedimento, na me-dida em que aquele pressupõe, sobretudo, a inserção das garantias ineren-tes ao contraditório e à ampla defesa, ao passo que este diz respeito ao rito, ao modo de realização do processo, que é especificado em lei.

A propósito, cabe mencionar as lições doutrinárias de Odete Me-dauar, apud Márcio Fernando Elias Rosa, lecionando acerca da distinção entre processo e procedimento:

O procedimento e o processo administrativo não se confundem. O primeiro corresponde ao rito e é realizado no interior do processo, para viabilizá-lo. O segundo, processo administrativo, implica, além do vínculo entre atos, vínculos jurídicos entre os sujeitos, engloban-do direitos, deveres, poderes, faculdades, na relação processual.3

Elias Rosa complementa aduzindo que:

Deste comentário da autora é plenamente possível detectar-se que realmente existe uma diferença entre o procedimento administra-tivo e o processo administrativo, isso ficou bastante claro posto que o procedimento administrativo é o rito, as fases que se seguirão no processo administrativo, parte organizacional, já o processo admi-nistrativo retoma a ideia de deveres e obrigações entre as partes, existe relação processual, um vínculo jurídico entre os atores do pro-cesso, a título de exemplo: o magistrado, a parte autora e a parte ré. De formar sintética, o procedimento é o rito, e o processo remonta ideia de respeito às garantias constitucionais, aos direitos e deveres das partes na relação jurídica, o liame entre as partes, ao respeito ao devido processo legal aplicável também na seara administrativa.4

3 ROSA, Márcio Fernando Elias. Direito administrativo. 7. ed. Coleção Sinopses Jurídicas. São Paulo: Saraiva, v. 19, 2005, p. 254.4 ROSA, op. cit, p. 254.

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Com pertinência ao tema em comento, Carvalho Filho leciona que “O processo administrativo se consubstancia numa sucessão encadeada de fatos, juridicamente ordenados, destinados à obtenção de um resultado final, no caso a prática de um ato administrativo final”.5

Tal conceito possibilita entender o processo administrativo como o meio pelo qual é formalizada a cadeia de atos administrativos, observan-do-se, no transcurso e desenvolvimento dessa relação jurídica processual, todas as garantias previstas constitucionalmente e também na legislação infraconstitucional, figurando entre outras a legalidade administrativa, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

Considerando que um processo administrativo pode se dar no âmbito de diferentes esferas estatais (Federal, Estadual e Municipal) e em diferentes entes federativos de cada esfera, em respeito à autonomia de cada um dos agentes parece inviável uma única lei federal unificando todos os procedimentos.6

Neste sentido é que tradicionalmente se afirma que, no direito bra-sileiro, a competência para editar normas sobre processo administrativo é própria de cada um dos entes federativos, de modo a entender-se que a retirada da capacidade dos entes políticos de editar normas sobre esse tema equivaleria a suprimir a autonomia que lhes foi assegurada constitu-cionalmente, como traço inerente à federação.

Contudo, o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) prescreve o seguinte em seu art. 15: “Na ausência de normas que regu-lem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposi-ções deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente”. Segundo esse dispositivo, inexistindo normas a regular o processo ad-ministrativo, serão aplicadas supletiva e subsidiariamente as regras do Código de Processo Civil.

Reputa-se suficientemente clara, pela dicção legal, a previsão de que as normas do Código de Processo Civil não serão aplicadas apenas

5 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 806.6 GONÇALVES, Andreia Barroso. Processo administrativo. In: Curso prático de direito administrativo. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.

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à União Federal, pois o conteúdo do dispositivo permite facilmente a in-terpretação de que a aplicação integrativa dar-se-á na “ausência de nor-mas” que regulem o processo administrativo de qualquer ente federado, incluindo Estados, Distrito Federal e Municípios.

Há inclusive Estados e, principalmente, Municípios que não dis-põem de regras mínimas sobre processo administrativo. O problema tem-se resolvido por intermédio da aplicação direta de princípios cons-titucionais e mais recentemente até pela aplicação por analogia da Lei nº 9.784/1999. Entretanto, não é novidade que sempre foram aplicadas nor-mas do Código de Processo Civil para suprir lacunas legislativas em ma-téria de processo administrativo, nas demais esferas federativas, vindo o CPC/2015 apenas positivar uma inegável praxe, ao determinar expressa-mente sua aplicação no caso de inexistência de regulamentação específica.

O contexto torna necessário repensar a doutrina tradicional acerca da competência para editar normas sobre processo administrativo; isso porque reconhecer que no âmbito da Administração Pública há processo, e não mero procedimento, traz consequências jurídicas expressivas.

Poderia cogitar-se inclusive de ser competência da União Federal editar normas sobre processo administrativo. A competência privativa da União então se daria em virtude do disposto no inc. I do art. 22 da Constituição Federal que assim dispõe: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleito-ral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho”.

Assim, compete à União Federal legislar privativamente sobre pro-cesso. Contudo, nos termos do art. 24, inc. XI da Constituição Federal de 1988, é concorrente a competência para legislar sobre procedimentos em matéria processual, cabendo à União, em virtude do disposto no § 1º do mesmo artigo, editar normas gerais sobre direito processual a serem su-plementadas pelos Estados, que possuem competência para editar normas específicas, conforme dispõe o § 2º do mesmo artigo. Inexistindo normas gerais em lei federal, os Estados exercerão competência legislativa plena até que sobrevenha norma federal geral, conforme previsto nos §§ 3º e 4º do mesmo dispositivo constitucional.

A competência legislativa dos Municípios nessa matéria surgiria ape-nas diante de assunto de interesse eminentemente local nos termos do inc.

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I do art. 30 da Constituição Federal. Esse entendimento traria a vantagem de uma uniformidade legislativa em matéria administrativa, isso no país que, além dos Estados, ainda contém quase seis mil municípios. Viabiliza-ria inclusive, tal como ocorre em outros países, a edição de um Código de Processo Administrativo, contendo disciplina homogênea para a matéria.

Desse modo, em vez de os cidadãos sujeitarem-se à respectiva le-gislação federal, de dezenas de legislações estaduais e de milhares de le-gislações administrativas municipais que disciplinam matéria, passaria a existir disciplina única, regulando as relações de qualquer cidadão com o “Estado-administração”, na defesa de seus direitos e dos interesses da coletividade. Poder-se-ia ainda argumentar que esse cenário contribuiria para resolver na instância administrativa muitos dos litígios que acabam sendo levados ao Judiciário, além de também solucionar os constantes problemas das lacunas legislativas no trato da matéria. Contudo, essa não parece ser a melhor interpretação do texto constitucional.

A propósito, a intimidade entre o processo administrativo e o ato de administrar é apontada na doutrina pátria por Sérgio Ferraz e Adil-son Abreu Dallari com a formulação de que “Processo Administrativo é Administração em movimento”7. Assim, considerando que, para atuar, a Administração Pública socorre-se de formas processualizadas, parece evidente concluir que o processo administrativo compõe o campo da au-tonomia administrativa dos entes federados. A partir desse entendimento, assenta-se que a regra, quando se fala em processo administrativo, é que este seja autodeterminado com independência pelos entes federados, para reger as atuações em moldes processuais de suas respectivas Administra-ções Públicas. Com isso, as supressões a esta autonomia devem ser estri-tamente interpretadas.

Aliás, ante o disciplinamento expresso da Constituição Federal, é assente que o processo licitatório a ser executado pelos entes federados (art. 37, inc. XXI) deverá respeitar as normas gerais de licitação e contratação editadas pela União Federal (art. 22, inc. XXVII), o que também se dá nos

7 FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 24.

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processos de desapropriação, constituindo específicas previsões constitu-cionais de limitações à autonomia administrativa dos entes federados.

Contudo, é de se reconhecer o silêncio da Constituição de 1988 quanto à existência de uma lei geral de aplicação nacional em matéria de processo administrativo, o que implica ampla liberdade dos entes fe-derados para promoverem suas codificações de processo administrativo. Portanto, essa autonomia decorre da conformação constitucional da Car-ta Política vigente, que, ao organizar o Estado brasileiro em sua estrutura político-administrativa sob orientação federativa, não restringiu a auto-nomia administrativa dos entes federados quanto à edição de suas leis gerais de processo administrativo.

Com efeito, a organização político-administrativa erigida pela Constituição Federal de 1988 atribui independência aos entes federativos para se autodeterminarem naquilo em que não forem limitados pelo or-denamento constitucional. Isto porque, ao atribuir aos entes federados di-versas competências administrativas, a Carta da República garantiu-lhes autonomia administrativa para ordenar e executar as respectivas atribui-ções, de modo que, não havendo limitação expressa no texto constitucio-nal, cada ente político tem independência e autodeterminação na regula-ção no exercício das atividades que compõem o seu rol de competências, sendo em consequência vedada qualquer ingerência ou subordinação. Neste sentido, inarredável a posição de Menezes de Almeida:

De fato, por força da regra, essencial em uma federação, da autono-mia dos entes federados (Constituição Federal, art. 18), cada ente detém privativamente a competência para se auto-administrar, o que importa tanto a prática de atos materiais de administração, como a produção de legislação de Direito administrativo aplicável no respectivo âmbito.8

8 ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Competências legislativas e analogia – breve ensaio a partir de decisões judiciais sobre a aplicação do art. 54 da Lei n. 9.784/99. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 102, p. 357-370, janei-ro/dezembro de 2007.

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Portanto, quando se interpreta uma norma constitucional que re-tira ou suprime autonomia de entes federados, deve-se proceder a inter-pretação restritiva, pois o regime constitucional brasileiro orienta-se em favor da autonomia.

Assim, forçoso concluir que os entes federativos detêm autonomia para legislar sobre Direito Administrativo, como decorrência lógica e ina-fastável da competência que lhes é outorgada pelo texto constitucional para se autogovernarem e autodeterminarem, o que inclui a edição de lei local sobre processo administrativo, pois essa matéria insere-se na seara do modo de administrar, próprio de cada ente, embora a relação jurídica instaurada no âmbito da Administração Pública tenha a peculiaridade de encontrar-se encartada pela cláusula do devido processo legal, como nota comum a todas as searas processuais, aspecto de grande peso no deslinde da questão objeto deste ensaio. De qualquer forma, deve-se buscar a inter-pretação que melhor assegure aos cidadãos as garantias constitucionais do devido processo legal, no âmbito do processo administrativo.

A questão é a de se saber se uma norma de Processo Civil, editada pela União, no uso da competência que lhe é atribuída pelo art. 22, inc. I da CF/88, pode repercutir em processos administrativos conduzidos por outros entes federados (Estados e Municípios). De plano, afasta-se qualquer invocação à noção de hierarquia, porquanto a sistemática de competências legislativas no Brasil não se pauta por tal critério, uma vez que a Constituição Federal atribui competências aos diversos entes fede-rados, sem que sobre eles haja qualquer hierarquização. Há, em verdade, autonomia política e administrativa de todos os entes federados (art. 18 da CF), a qual se manifesta segundo um arranjo de competências legis-lativas e materiais determinada pela Carta Republicana.

Assentou-se que, em matéria de Direito Administrativo, a dis-tribuição de competência legislativa não ocorre tal como com o Direito Penal, Direito Civil, Direito Processual (jurisdicional), em relação aos quais figura a competência privativa da União (art. 22, inc. I, da CF). Por outro lado, a distribuição de competências no Direito Administrativo não se apresenta exatamente do mesmo modo – concorrente – como ocorre com o Direito Tributário.

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Com efeito, considerando-se a autonomia político-administrati-va que cada ente federado possui (art. 18 da CF), bem assim o fato de que não se atribui à União (tal como no art. 22 da CF) uma competên-cia geral de legislação sobre o Direito Administrativo, impõe-se a con-clusão de que, como regra geral, cada ente político detém competência para legislar sobre os assuntos de seus respectivos interesses. Desta feita, em regra, uma lei editada pela União sobre matéria administra-tiva será aplicada somente no plano federal, ao passo que uma regra editada sobre Direito Administrativo pelo Estado terá aplicabilidade somente em âmbito estadual e, por conseguinte, uma lei versando so-bre temas de Direito Administrativo em determinado Município so-mente será incidente no espectro municipal.

Tal regra geral, contudo, possui exceções, conforme já ressaltado, as quais somente podem se encontrar previstas na própria Constituição Federal, uma vez que nesta se encontra a regra excepcionada. A ratio de tais exceções também é de singela compreensão. Trata-se de matérias que, segundo a própria Constituição Federal, merecem uniformização nacional. É o caso das desapropriações (art. 22, inc. II, da CF) e das normas gerais sobre licitações e contratos administrativos (art. 22, inc. XXVII, da CF), já anteriormente ressaltadas.

Pois bem, a questão da constitucionalidade do art. 15 do CPC des-ponta em face de o tema “processo administrativo” abarcar toda a atividade decisória inerente à função de administração pública,9 não se enquadrando em nenhuma das exceções constitucionais, situando-se, pois, na regra cons-titucional geral, pela qual cada ente federal possuiria competência autôno-ma para editar suas normas pertinentes ao Direito Administrativo.10 Dito de outro modo: em matéria de processo administrativo, cada ente federado possui competência legislativa plena para dispor sobre o assunto.

9 SUNDFELD, Carlos Ari. Processo e procedimento no Brasil. In: SUNDFELD, Carlos Ari; MUÑOZ, Guillermo Andrés (Orgs.) As leis de processo administrativo – Lei Federal 9.784/99 e Lei Paulista 10.177/98, São Paulo: Malheiros, 2000, p. 19.10 Neste sentido: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais do processo administrativo no Direito brasileiro. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 209, p. 198, jul./set. 1997.

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Desta forma, sendo o art. 15 do novo CPC uma regra emanada da União, por força de sua competência para legislar sobre Direito Pro-cessual (art. 22, inc. I, da CF/88), aí considerados os processos de índo-le jurisdicional (Processo Civil, Processo Penal, Processo do Trabalho, Processos Eleitoral etc.), não se poderia considerar, em princípio, o CPC aplicável supletiva e subsidiariamente aos processos administrativos de competência de Estados e Municípios.

Outra alternativa é sustentar que a interpretação do art. 15 do novo CPC mais adequada à Constituição Federal vigente é aquela pela qual se considera o novo CPC aplicável supletiva e subsidiariamente aos processos administrativos dos Estados e Municípios apenas quan-do os seus processos administrativos decorrerem de matérias sobre as quais a União tenha competência nacional para legislar, como é o caso dos processos licitatórios (art. 22, inc. XXVII da CF) e dos processos expropriatórios (art. 22, inc. II da CF), ao menos no tocante a nor-mas gerais, o que sugere uma interpretação conforme a Constituição Federal, para restringir o âmbito da aplicação subsidiária da Lei nº 13.105/2015 a estas hipóteses.

Ainda se pode construir a tese de que essa aplicação integrativa e subsidiária das normas do CPC aos processos administrativos dos Estados e Municípios só seria constitucional nas hipóteses em que o legislador local tenha editado lei contendo regra legal expressa determinando, nos moldes do art. 15 da Lei nº 13.105/2015, a sua aplicação supletiva e subsidiária, va-lendo-se, pois, da autonomia político-administrativa que a Constituição Federal lhes atribui no art. 18, para fazer esta escolha por meio da edição de lei local que assim disponha. Segundo essa concepção, nos demais casos, a aplicação do novo CPC aos processos administrativos significaria indevida intromissão da União em matérias sobre as quais não tem ela competência legislativa, qualificando-se, pois, tal situação como inconstitucional.

Ainda se pode cogitar em interpretação conforme para se res-tringir a aplicação subsidiária e supletiva do CPC aos processos admi-nistrativos desenvolvidos na esfera da União Federal, afastando-se essa aplicação integrativa à processualística administrativa dos demais entes federativos, em respeito à autonomia que lhes é outorgada pelo princí-

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pio federativo, no tocante à competência para editar lei dispondo sobre Direito Administrativo.

Aliás, Cármen Lúcia Antunes Rocha, em artigo doutrinário sobre o tema em comento, posiciona-se contrariamente à tese do reconhecimento da competência privativa da União para legislar sobre processo adminis-trativo, conforme se depreende do seguinte trecho:

Quanto à questão da competência para cuidar do tema em sede infraconstitucional, a organização federativa brasilei-ra não permite que haja lei nacional sobre o tema. A auto-nomia administrativa, que caracteriza o princípio federativo dominante da forma de estado adotada no Brasil, tem a sua afirmação rigorosa na garantia de um espaço próprio de cada entidade federada (Estados-membros, Distrito Federal e Mu-nicípios) para estruturar a sua organização e a sua forma de atuação, observados os princípios constitucionais. O proces-so administrativo, como instrumento de ação adotado pela Administração Pública garantido em seus princípios fun-damentais na Constituição Federal, tem o seu esboço infra-constitucional firmado pela legislação elaborada pelas di-ferentes pessoas políticas, cada qual seguindo as diretrizes que melhor se adaptem às suas condições.A autonomia administrativa limita-se pela definição constitu-cional da competência política de cada pessoa federada. Essa competência manifesta-se, fundamentalmente, pela capacidade de auto organizar-se e autogovernar-se segundo suas próprias Constituições e leis que adotarem (art. 25, da Constituição bra-sileira, de 1988). Todavia, a adoção dessa legislação estadual e municipal e, em especial, a que concerne à matéria administra-tiva – em cuja seara se tem o cuidado legislativo do processo administrativo – tem os seus limites estabelecidos no próprio sistema constitucional, pelo que tudo quanto desborde tais ba-lizas ou transgrida direito fundamental constitucionalmente assegurado é inválido juridicamente. Assim, os princípios cons-titucionais processuais são fundamentos necessários da legisla-

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ção sobre processo administrativo a serem tomados em consi-deração e acatados, em sua integralidade material e formal, pelo legislador estadual e municipal.Dois dispositivos constitucionais referem-se à competência das en-tidades políticas para legislar sobre matéria processual: o art. 22, I, estabelece que ‘compete privativamente à União legislar sobre... direito... processual...”, enquanto o art. 24, XI, reza que “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre... procedimentos em matéria processual’.Tendo a Constituição da República garantido “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral [...] o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, garantindo em última análise o “devido processo constitucional”, há que se reconhecer que o direito processual passou a incluir, necessariamente no sistema positivo nacional o processo administrativo.11 (grifou-se).

Diz ainda a mesma jurista:

Ora, um dos princípios mais fortes e vinculantes do sistema cons-titucional brasileiro é exatamente o federativo (cf., por exemplo, o art. 60, § 4º). Esse princípio é formulado a partir da garantia da autonomia política e administrativa das entidades que compõem a federação. Carente dessa autonomia o que se tem não é senão o que Paulo Bonavides já apelidou de “federação de opereta”. Se o processo administrativo, instrumentalizador das condutas ad-ministrativas e somente utilizado para a garantia dos direitos subjetivos do cidadão e do administrado em geral, não fosse in-serido no espaço de competência própria e autônoma de cada entidade federada, como se ter que a auto-administração dessa pessoa estaria garantida? Como dizer autônoma para organizar a sua própria administração quem não dispõe de autonomia

11 ROCHA, op. cit., p. 198.

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política para legislar sequer sobre o processo a ser seguido no exercício dessa matéria? Assim, tanto o processo administrativo quanto os procedimentos que lhe são inerentes são objetos precí-puos de tratamento autônomo de cada qual das entidades da fede-ração brasileira e a referência à legislação processual que compete privativamente à União, por definição constitucional expressa, é tão-somente aquela correspectiva à unidade do direito processual judicial (civil ou penal).12 (grifou-se)

Em suma, a autonomia dos entes estatais para legislar sobre Di-reito Administrativo é ínsita ao modelo federativo brasileiro, sendo essa concepção a que deve orientar a compreensão das questões que o tema da competência legislativa plena dos entes federados para legislar sobre processo administrativo, frequentemente, suscita.

1. Existe diferenciação entre a aplicação subsidiária e supletiva?

O art. 15 da Lei nº 13.105/2015 (CPC/2015) dispõe que, “na ausên-cia de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou adminis-trativos”, deve ocorrer a aplicação supletiva e subsidiária das disposições do novo Código de Processo Civil.13 Cabe nesse contexto realçar a questão da diferenciação entre aplicação subsidiária e aplicação supletiva. Não são expressões sinônimas, pois, como indica antigo brocardo hermenêutico, a lei não contém palavras inúteis (verba cum effectu sunt accipienda).

A delimitação das expressões constitui tema controvertido na doutrina, existindo pelo menos três correntes doutrinárias. Para uma primeira corrente doutrinária, a aplicação subsidiária visa a preencher

12 ROCHA, op. cit., p. 190.13 Como explicam Nery Júnior e Nery: “Na falta de regramento específico, o CPC aplica-se aos processos judiciais trabalhistas, penais e eleitorais, bem como aos adminis-trativos. De qualquer modo, a aplicação subsidiária do CPC deve guardar compatibilidade com o processo em que se pretende aplicá-lo”. NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. 16. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 245.

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uma lacuna integral (omissão absoluta) de um corpo normativo. Já a aplicação supletiva visa à complementação normativa ao que foi regula-do de modo incompleto (omissão parcial). Na primeira hipótese, falta a regra e ela será inteiramente suprida; no segundo caso, a regra é incom-pleta e será complementada. Entretanto, em ambos os casos, só cabe a aplicação subsidiária ou supletiva se a norma geral (CPC/2015) for compatível com o sistema jurídico da norma processual omissa que se pretende integrar ou complementar.14

Em sentido totalmente oposto, parte da doutrina inverte esses con-ceitos, defendendo que, enquanto a aplicação subsidiária visa à complemen-tação de uma norma incompleta (omissão parcial), na aplicação supletiva ocorre a integração de uma lacuna integral (omissão total) pelo CPC/2015.15

Cabe mencionar ainda orientação doutrinária segundo a qual há a possibilidade de aplicação subsidiária do CPC/2015, ainda que não haja qualquer lacuna normativa nas leis processuais especificas. À luz desse entendimento, embora não haja lacuna normativa, a lei processual pode possuir lacunas de sentido, é dizer, a lacuna decorre da desatuali zação (lacuna ontológica) ou sua aplicação geraria uma solução injusta ou insa-tisfatória (lacuna axiológica), sendo, assim, cabível a aplicação subsidiária do CPC/2015 para corrigir a lei em qualquer dessas hipóteses.16

Destaca-se, contudo, a primeira corrente doutrinária supracitada, por traduzir a mens legislatoris que inspirou a redação das disposições pertinentes ao tema no CPC/2015. Conforme se extrai da exposição de motivos feita pela Comissão especial do CPC/2015 (PL 8.046/2010), o de-putado federal Reinaldo Azambuja justifica que:

14 MEIRELES, Edilton. O novo CPC e sua aplicação supletiva e subsidiária no pro-cesso do trabalho. O novo CPC e as regras supletiva e subsidiária ao processo do trabalho. Revista de direito do trabalho, São Paulo, v. 40, n. 157, p. 129-137, maio/jun. 2014. Dispo-nível em: <https://hdl.handle.net/20.500.12178/96210>. Acessado em 04 de maio de 2018.15 NERY JR., NERY, op. cit., p. 245.16 DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 437.

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Com frequência, os termos “aplicação supletiva” e “aplicação sub-sidiária” têm sido usados como sinônimos, quando, na verdade, não o são. Aplicação subsidiária significa a integração da legislação subsidiária na legislação principal, de modo a preencher os claros e as lacunas da lei principal. Já a aplicação supletiva ou complemen-tar ocorre quando uma lei completa a outra.17

Esse entendimento também parece evidente na dicção do art. 1.046, § 2º, do CPC/2015, que afirma ser possível a aplicação supletiva do Código de Processo Civil de 2015, sem que ocorra uma lacuna normativa (omissão total) nas leis processuais especiais. Assim, o próprio texto legal afasta a segunda cor-rente doutrinária (que defende conceitos totalmente opostos ao do CPC/2015) e, ao que parece, também a terceira corrente, pois o art. 15 do CPC vigente exige expressamente lacuna normativa (“na ausência de normas”) para a aplicação subsidiária e supletiva, não existindo disposições sobre lacunas de sentido que, por serem valorativas, reduziriam a segurança jurídica e a previsibilidade das normas processuais a serem aplicadas ao caso concreto.

Nesse diapasão, vislumbra-se compatível com a disciplina da Lei nº 13.105/2015 a primeira corrente doutrinária. Logo, a contrario sensu, a dis-ciplina legal permite concluir-se que não cabe a aplicação subsidiária do CPC/2015, se houver lei processual específica disciplinando a matéria de ma-neira diversa ou se o CPC/2015 for totalmente incompatível com a sistemáti-ca jurídica daquele tema no processo trabalhista, eleitoral ou administrativo.

Em suma, não cabe aplicação supletiva do CPC/2015 se a lei pro-cessual especial esgotar expressamente o tratamento da matéria/institu-to jurídico, conforme se extrai da própria disciplina contida na Lei nº 13.105/2015. Também não cabe aplicação supletiva se a lei processual es-pecial esgotar implicitamente o tratamento da matéria/instituto jurídico, pois nesse caso ocorre o que Karl Larenz chama de silêncio eloquente,18

17 BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão especial do Código de Processo Ci-vil. PL 8046.2010. Emenda do artigo 15. Disponível em: <http://www.camara.leg.br/sileg/integras/922280.pdf>. Acessado em 11 de setembro de 2016.18 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego e revisão de Ana Freitas. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.

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é dizer, nesta hipótese diz-se que o silêncio é proposital, decorrente de deliberada escolha do legislador, e não ocasional.

Por fim, se determinada regra do CPC/2015 for totalmente incompa-tível com a sistemática jurídica da matéria na legislação processual especial, também não cabe sua aplicação supletiva ou subsidiária. Em suma, os pres-supostos da aplicação subsidiária e supletiva podem ser sintetizados pela exi-gência de omissão (total ou parcial) normativa e da compatibilidade sistêmica entre a norma omissa e a norma que será aplicada para suprimento da lacuna.

À guisa de complementação, registra-se que a doutrina processua-lista civil ainda justifica essa aplicação subsidiária e supletiva das normas do Código de Processo Civil aos demais ramos processuais com o argu-mento de que o CPC é a principal fonte de direito processual no ordena-mento jurídico brasileiro, consistindo em “lei geral do processo” ou “lei processual residual por excelência”,19 devendo ser aplicado aos processos como um todo, e não apenas ao processo civil.20

Esse argumento possui como principal pressuposto o reconhecimen-to da existência de uma Teoria Geral do Processo. Segundo Fredie Didier, o fenômeno processual possui um mínimo fático comum a qualquer de suas espécies, é dizer, todo processo deve ter demanda, admissibilidade, compe-tência, cognição, prova e seu ato final que é a decisão. Por isso, a existência de uma teoria geral do processo legitima a união dos diversos ramos da ár-vore do direito processual a um tronco único e comum, a despeito da auto-nomia científica e metodológica reconhecida a cada uma das demais searas processuais.21 Cria-se, assim, entre processo civil, trabalhista, eleitoral e ad-ministrativo um elo que os torna inseparáveis, sob o prisma metodológico e também das influências recíprocas entre as disciplinas.22

19 NUNES, Dierle; STRECK, Lenio Luis; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Co-mentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 62-63.20 NERY JR.; NERY, op. cit., p. 245.21 DIDIER JR., Fredie Souza. Sobre a teoria geral do processo, essa desconheci-da. 2. ed. Salvador: JusPodivm, p. 69.22 ROQUE, Andre Vasconcelos; GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLO-RE, Luiz; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Teoria geral do processo: comentários ao CPC/2015. Parte geral. São Paulo: Método, 2016, p. 95-96.

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A aplicação subsidiária de uma lei pertencente a um sistema nor-mativo para suprir lacunas em outro coaduna-se inclusive com a concep-ção que embasa a Teoria do Diálogo das Fontes, segundo a qual o orde-namento jurídico deve ser compreendido como um conjunto de normas e princípios; consequentemente, os diversos ramos do direito integram o sistema jurídico como um todo. A mencionada teoria sustenta que o orde-namento jurídico deve ser interpretado de forma holística: “A essência da teoria é que as normas jurídicas não se excluem – supostamente porque pertencentes a ramos jurídicos distintos –, mas se complementam. Como se pode perceber há nesse marco teórico, do mesmo modo, a premissa de uma visão unitária do ordenamento jurídico”.23

Conforme a Teoria do Diálogo das Fontes, que surgiu na Ale-manha com Erik Jayme e foi trazida para o Brasil por Cláudia Lima Marques, o direito deve ser interpretado como um todo de forma sis-temática e coordenada. Segundo essa concepção, uma norma jurídica não exclui a aplicação de outra, como acontece com a adoção dos crité-rios clássicos para solução de conflito. Marques afirma que a “doutrina atualizada, porém, está à procura, hoje, mais da harmonia e da coor-denação entre as normas do ordenamento jurídico (concebido como sistema) do que da exclusão”.24 Também neste sentido destaca-se o en-sinamento de Flávio Tartuce, que ressalta que “a teoria do diálogo das fontes surge para substituir e superar os critérios clássicos de solução das antinomias jurídicas (hierárquico, especialidade e cronológico). Realmente, esse será o seu papel no futuro”.25

O fundamento da teoria está no fato de que as normas surgem para ser aplicadas como um todo e não para serem excluídas umas pelas outras, principalmente quando há um campo convergente. O aplicador do direito, ao deparar com uma enorme quantidade de normas jurídi-

23 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.24 MARQUES, Cláudia Lima. Manual de direito do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 90.25 TARTUCE, Flávio Manual de direito civil: volume único. 2. ed. ver., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2012, p. 66.

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cas, deve identificar, no ordenamento como um todo, qual ou quais se aplicam ao caso, não somente dentro das normas dos microssistemas jurídicos vistos isoladamente.

De acordo com Erik Jayme, existem três possíveis tipos de diálo-gos das fontes, quais sejam: diálogo sistemático de coerência; diálogo de complementariedade e subsidiariedade; e diálogo de coordenação e adaptação sistemática.26

Na seara jurisprudencial, a Teoria do Diálogo das Fontes foi efe-tivamente aplicada no julgamento da Ação Direta de Inconstituciona-lidade n. 2.591, em 2006, na qual foi julgada constitucional a aplicação do CDC às atividades bancárias, disciplinadas em lei complementar. Em seu voto, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Bar-bosa concluiu:

que o regramento do sistema financeiro e a disciplina do consu-mo e da defesa do consumidor podem perfeitamente conviver. Em muitos casos, o operador do direito irá deparar-se com fatos que conclamam a aplicação de normas tanto de uma como de outra área do conhecimento jurídico. Assim ocorre em razão dos dife-rentes aspectos que uma mesma realidade apresenta, fazendo com que ela possa amoldar-se aos âmbitos normativos de diferentes leis. Um exemplo corriqueiro disso é a aplicabilidade tanto de normas do Código Civil como do Código Penal a um mesmo fato, sem que se possa falar em antinomias ou colisões. A Emenda Consti-tucional 40, na medida em que conferiu maior vagueza à discipli-na constitucional do sistema financeiro (dando nova redação ao art. 192), tornou ainda maior esse campo que a professora Cláudia Lima Marques denominou “diálogos entre fontes” - no caso, entre a lei ordinária (que disciplina as relações consumeristas e as leis complementares (que disciplinam o sistema financeiro nacional.27

26 LARENZ, op. cit.27 Ação direta de inconstitucionalidade 2.591-1 – Distrito federal. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/cao_consumidor/jurisprudencia/juris_cons-titucionalidade/Adin2591_0.pdf.

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O seguinte excerto de julgado do Superior Tribunal de Justiça assim aborda a aplicabilidade da Teoria do Diálogo das Fontes no sistema jurí-dico pátrio, in verbis:

2. Diante desse quadro, abram-se parênteses para ponderar que o Direito deve ser compreendido, em metáfora às ciências da natu-reza, como um sistema de vasos comunicantes, ou de diálogo das fontes (Erik Jayme), que permita a sua interpretação de forma ho-lística. De fato, a divisão do Direito em ramos serve para fins ape-nas didáticos e metodológicos, e não para ilhar determinados fatos da vida a algumas das normas jurídicas, em exclusão das demais, como se não se tratasse de um todo. Deve-se buscar, sempre, evitar antinomias ofensivas que são aos princípios da isonomia e da se-gurança jurídica, bem como ao próprio ideal humano de Justiça.28

Portanto, a utilização da Teoria do Diálogo das Fontes confere ampa-ro jurídico à utilização do conjunto normativo vigente para solucionar con-trovérsia apresentada, independentemente da natureza da relação jurídica.

Em suma, a citada Teoria do Diálogo das Fontes permite que o ju-rista não fique adstrito ao microssistema jurídico para o qual a norma inicial-mente foi imaginada, reconhecendo que o ordenamento é um todo unitário e deve ser assim aplicado, diferentemente da concepção clássica de solução de antinomia jurídica, concepção que também deve orientar a interpretação do art. 15 do CPC vigente, no tocante à questão em foco neste ensaio.

2. A tese da inconstitucionalidade do art. 15 do CPC de 2015, no tocante à aplicação subsidiária de suas normas aos processos administrativos dos Estados e Municípios

A Lei nº 13.105/2015 culminou por ampliar sobremaneira os ins-trumentos disponíveis aos processos administrativos para superar lacu-

28 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ, AgRg no REsp 1483780/PE, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, julgado em 23/06/2015, DJe 05/08/2015.

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nas normativas, ao prescrever a sua aplicação subsidiária e supletiva aos processos desenvolvidos no âmbito de qualquer dos entes federativos.

A regra do art. 15 do CPC/2015 reflete uma evidente preocupação em regulamentar uma teoria geral do direito processual, tendo o legisla-dor feito do NCPC o centro instrumental e informativo para a solução das lacunas normativas em matéria processual de todas as searas.

Contudo, a previsão de aplicação das normas do CPC/2015, ainda que subsidiária e supletivamente, aos processos administrativos nos Esta-dos e Municípios tem suscitado questionamentos acerca da constitucio-nalidade dessa prescrição legal.

Nessa perspectiva é que a regra do art. 15 do CPC/2015 ensejou o ajuizamento da ADIN 5492/RJ, na qual se aduz que o mencionado disposi-tivo da Lei 13.105/2015, ao prever a aplicação subsidiária das normas pre-vistas no CPC aos processos administrativos, afrontaria a autonomia fede-rativa, pois teria invadido campo de atuação dos demais entes políticos.

O Autor, o Governador do Estado do Rio de Janeiro, afirma mais es-pecificamente que o art. 15 da Lei 13.105/2015 viola a autonomia federativa, inscrita no art. 18 da Constituição da República, porquanto invade com-petência dos entes federados para dispor sobre processo administrativo. A questão posta na ADIN, neste particular, é no sentido de que o art. 15 da Lei nº 13.105/2015, ao se referir a processos administrativos, sem qualquer qualificação, acabaria por abarcar também os processos dessa natureza das esferas estadual e municipal, em violação à autonomia federativa (art. 18 da Constituição Federal). Culmina-se por defender na referida ADIN 5492/RJ interpretação conforme para se reconhecer a possibilidade da aplicação subsidiária das normas do CPC/2015, a teor do que prescreve o seu art. 15, apenas aos processos administrativos no âmbito da União.

Quanto à expressa previsão da aplicação subsidiária das normas do CPC a outras searas processuais, destacando-se aqui os processos admi-nistrativos, decorre de a atividade administrativa contemporânea apre-sentar-se “processualizada”, é dizer, construída por meio de um processo administrativo prévio que corrobora para uma maior legitimidade, con-trole e eficiência das decisões estatais, suscitando celeumas em razão de os impactos do CPC/2015 sobre o processo administrativo atingirem a própria forma de administrar de cada ente federativo.

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Nessa esteira é que se pode afirmar que a cadeia de atos adminis-trativos que compõe a processualística administrativa constitui, a um só tempo, expressão do modo de atuar da Administração – advindo daí a competência dos entes menores para legislar sobre processos administra-tivos em suas respectivas esferas – e também relação processual que apro-xima esse atuar da Administração do processo jurisdicional.

Pondere-se que, ainda que não tivesse sido inserida a previsão ex-pressa de aplicação supletiva e subsidiária do Código de Processo Civil aos processos administrativos instaurados no âmbito de todas as esferas federativas, inclusive as estaduais, a distrital e as municipais, decerto se-ria mantida a tradição de frequentemente se invocarem as regras do CPC para o suprimento de lacunas integrais ou parciais das legislações locais em matéria de processo administrativo.

Assim, a previsão contida no art. 15 da Lei nº 13.105/2015 apenas positivou a inserção do processo administrativo na disciplina geral do di-reito processual, independentemente da esfera federativa onde se desen-volva, a partir do reconhecimento de uma unidade normativa representa-da pelo Código de Processo Civil, em contexto no qual é inafastável que todo arcabouço normativo em matéria processual encontra-se vinculado à cláusula do devido processo legal, de matriz constitucional.

Aliás, é sobretudo a cláusula do devido processo legal, com todos os seus consectários e desdobramentos, que determina a profunda analogia da processualística administrativa com o processo jurisdicional, em par-ticular o processo civil, pontos comuns que tornam impositiva a inserção do processo administrativo na Teoria Geral do Processo.

Nessa perspectiva é que a previsão de aplicação do Código de Pro-cesso Civil de forma subsidiária aos processos administrativos de todos os entes federativos – sem afastar a possibilidade de cada esfera poder exercer sua autonomia até para esgotar o disciplinamento legal da matéria em seu âmbito – constitui fórmula adequada para se conciliar a compe-tência da União para legislar sobre direito processual, com a competência outorgada a cada ente político para legislar sobre o respectivo modo de administrar, que constitui em última análise o campo do Direito Admi-nistrativo, harmonia que imprime ao art. 15 da Lei nº 13.105/2015 feição compatível com a Constituição Federal de 1988, à luz de um juízo de pon-

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deração que será objeto de discussão mais específica no tópico seguinte deste ensaio, à guisa de uma abordagem conclusiva.

3. Uma proposta de afastamento da tese de inconstitucionalidade à luz de um juízo de ponderação entre os valores em conflito, ante a unidade da Constituição

Conforme já se pontuou, a regra que prevê a aplicação subsidiária

e supletiva do CPC de 2015 aos processos administrativos tangencia, a um só tempo, a incidência do princípio do devido processo legal na processualística administrativa e, noutro viés, a autonomia dos entes fe-derativos para legislar sobre Direito Administrativo, em cuja seara se encontra incluído o direito processual.

De fato, no tocante à constitucionalidade da norma inserta no art. 15 do CPC/2015, particularmente no que concerne à previsão da aplicação subsidiária e supletiva de suas normas aos processos administrativos de-senvolvidos na esfera de qualquer dos entes federativos, é coerente ainda dizer que malfere a cláusula constitucional do devido processo adminis-trativo – de aplicação obrigatória à processualística administrativa – ad-mitir-se um vácuo normativo em matéria de processo administrativo, que se manteria indefinidamente até o legislador local eventualmente resolver preencher a lacuna editando lei local sobre a matéria, apenas a pretexto de sustentar-se que o princípio federativo não admitiria aplicação subsidiária do Código de Processo Civil aos processos administrativos desenvolvidos no âmbito de outros entes federativos.

Afigura-se razoável afirmar, a propósito dessa controvérsia, que a garantia do devido processo legal não se limita à presença obrigatória do contraditório, como se costuma dizer a partir de uma concepção sintética acerca do que vem a ser processo. Em boa exegese, a concepção de devido processo legal judicial ou administrativo – a partir do que prescrevem os incs. LIV e LV do art. 5º da CF/88 – implica também a garantia de que o iter e os institutos processuais utilizados na relação jurídica que se estabe-lece também na processualística administrativa devem seguir um modelo e um regramento necessariamente previstos em lei formal.

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Essa exigência de balizamento do processo administrativo por re-gras provenientes de lei formal é inafastável, pena de se permitir que, em caso de omissão legislativa em matéria de processo administrativo, a pró-pria Administração possa criar regras processuais discricionárias, casuis-ticamente, quando se deve reconhecer que o direito processual submete-se à reserva legal, ainda que procedimentos possam seguir uma praxe não necessariamente prevista em lei formal. Nessa perspectiva, não se pode olvidar que, entre outras concepções e elementos que são inerentes ao de-vido processo legal, está a de que este princípio garante a todos o direito a um processo com todas as etapas previstas em lei.

Assim, se não há lei processual local ou mesmo se esta apresenta lacunas parciais, não é constitucionalmente adequado que a própria Ad-ministração processante crie regras ou institutos processuais segundo o arbítrio casuístico do administrador público, o que poderia inclusive ferir não só a garantia da observância ao princípio da legalidade na imposição de deveres e ônus processuais, mas até mesmo a isonomia entre os admi-nistrados, que assim poderiam se sujeitar a regras distintas diante de uma mesma situação fática, em cada caso, por não haver um balizamento legal previamente estabelecido para regular os aspectos processuais daquela re-lação estabelecida entre a Administração e os particulares, não obstante sejam titulares da garantia constitucional do devido processo legal.

Os problemas decorrentes das constantes lacunas legais acerca de direito processual administrativo são comentados por Cármen Lúcia An-tunes Rocha, nos seguintes termos:

É nessa cultura administrativa antidemocrática que se releva a im-portância do processo administrativo, especialmente o disciplinar, para o administrado. É que se não estiver juridicamente amparada a competência e formalmente realizada a atividade processual da Administração Pública surge o que pode ser considerado um “poder punitivo informal” exercido antijuridicamente por admi-nistradores atuando abusivamente. A competência disciplinar, no exercício da qual pode haver punição de algum responsável, é jurídi-co, formal e objetivo. O que é uma manifestação da responsabilidade estatal é funcional e uma garantia de que o princípio da responsabi-

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lidade com a sociedade, com a Administração Pública surge o que pode ser considerado um “poder punitivo informal” exercido antiju-ridicamente por administradores atuando abusivamente. A compe-tência disciplinar, no exercício da qual pode haver punição de algum responsável, é jurídico, formal e objetivo. O que é uma manifestação da responsabilidade estatal e funcional e uma garantia de que o prin-cípio da responsabilidade com a sociedade, com a Administração Pública e segundo o Direito será obedecido converte-se, então, em irresponsabilidade do agente descuidado em processar ou abusivo ao punir sem formalidade e sem processo.29

É sob essa perspectiva que as lacunas normativas em matéria de processo administrativo, bastante comuns, aliás, no âmbito dos quase seis mil entes políticos que integram a República Federativa do Brasil, ganham relevância sob o prisma das garantias processuais dos administrados, afi-gurando-se relevante uma solução jurídica para a suscitação de inconsti-tucionalidade do art. 15 do Novo CPC pautada por um juízo de pondera-ção entre os valores e princípios constitucionais em choque.

Pondere-se ademais que, se a hipótese prevista no art. 15 do Có-digo de Processo Civil é de aplicação apenas subsidiária ou supletiva aos processos administrativos de qualquer dos entes federativos, essa regra evidentemente pressupõe a ocorrência de omissão total ou pelo menos parcial na legislação local sobre a matéria, o que por óbvio não se con-funde com a previsão de prevalência das normas do CPC sobre as normas locais em tema de processo administrativo.

Neste sentido, a ponderação consiste no método necessário ao equacionamento das colisões entre princípios, em que se busca alcançar um ponto ótimo, no qual a restrição a cada um dos direitos fundamentais envolvidos seja a menor possível, na medida exata à salvaguarda do direito contraposto. As restrições impostas aos valores em disputa devem ser ar-bitradas mediante o emprego do princípio da proporcionalidade, devendo o julgador buscar um ponto de equilíbrio entre os interesses em jogo que

29 ROCHA, op. cit., p. 190.

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atenda aos imperativos da adequação, da necessidade e da proporcionali-dade em sentido estrito, subprincípios do princípio da proporcionalidade.

Aduz Daniel Sarmento com propriedade que a Constituição, em uma sociedade pluralista, acaba acolhendo normas que promovem inte-resses e valores divergentes e que podem entrar em conflito na solução de casos concretos.30 Essa concepção, que constitui técnica interpretativa, relaciona-se com o princípio da unidade da Constituição, no qual se bus-ca, a partir de uma visão global da Constituição, harmonizar as tensões porventura existentes entre normas colidentes.

Tal contexto permite ou até impõe um juízo de ponderação entre a ideia de maltrato ao princípio federativo – positivado no art. 18 da Consti-tuição Federal –, por suposta ofensa à autonomia dos demais entes políti-cos, e a garantia dos administrados de que na relação jurídica processual a Administração somente possa percorrer caminhos traçados em lei formal. Esta exigência constitui corolário lógico inafastável da garantia constitucio-nal, outorgada aos administrados, de que os processos administrativos es-tão encartados na cláusula do devido processo legal – segundo a dicção dos incs. LIV e LV do art. 5º da Carta Republicana de 1988 –, que nesse cenário deve prevalecer sobre aquele, a favor do reconhecimento da compatibili-dade da regra do art. 15 da Lei nº 13.105/2015 com a Constituição Federal.

Ora, afastar a aplicação subsidiária do CPC em caso de omissão nor-mativa em matéria de Direito Administrativo conduziria a se admitir a pre-ferência pelo arbítrio do administrador público na processualística admi-nistrativa, para suprir as lacunas normativas com decisões discricionárias na condução do processo administrativo, apenas sob o argumento de se evi-tar o maltrato à autonomia legislativa do ente local omisso, em detrimento do direito fundamental do administrado a que a relação jurídica processual pauta-se por lei formal, ainda que tomada de empréstimo da lei processual geral, garantia que é decorrência lógica e inafastável da incidência da cláu-sula do devido processo legal sobre a processualística administrativa.

Dizendo de outra forma, a observância à garantia constitucional do devido processo legal no processo administrativo pressupõe e demanda

30 SARMENTO, Daniel. Ponderação dei interesses na Constituição Federal. São Paulo: Lumen Juris, 2003, p. 77-78.

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que a processualidade desenvolva-se sempre pautada em lei processual formal, para tanto fazendo-se necessária a aplicação subsidiária de outros diplomas legais, à luz inclusive da já mencionada Teoria do Diálogo das Fontes, em caso de omissão parcial da lei processual local, ou mesmo na ausência de lei processual que implique completa omissão do legislador local, detentor da autonomia para legislar sobre direito administrativo, em decorrência do modelo federativo delineado na Constituição Federal.

Nessa perspectiva é que configura violação à garantia constitucio-nal do devido processo legal administrativo suprir lacunas legislativas da lei processual local com escolhas discricionárias da Administração para o caso concreto, ou mesmo mediante a edição de ato “regulamentar” autô-nomo, porquanto substituto da lei processual local inexistente, dado que a matéria deve ser disciplinada em lei formal.

Nessa linha de raciocínio, há de se ponderar o conflito entre a autonomia dos entes federativos para legislar sobre direito administrativo – como corolário do dis-posto no art. 18 da CF de 1988 – e, de outro lado, a garantia processual dos adminis-trados ao devido processo legal, por força do que dispõem os incs. LV e LIV da Carta Republicana de 1988, garantia essa que tem entre seus pressupostos a prerrogativa de que a relação jurídica processual de que participem (sempre com consequências significativas em seus patrimônios jurídicos) observe balizamentos e instrumentos processuais disciplinados em lei formal, sob pena de o processo pautar-se em esco-lhas discricionárias e casuísticas do gestor público, com o consequente risco de se instaurar um inconcebível contexto de arbitrariedade e abusividade.

Didier assevera que:

Nenhuma norma jurídica pode ser produzida sem a observância do devido processo legal. Pode-se, então, falar em devido pro-cesso legal legislativo, devido processo legal administrativo e de-vido processo legal jurisdicional. O devido processo legal é uma garantia contra o exercício abusivo do poder, qualquer poder.31

31 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil e processo de conhecimento. 14. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Jus Podi-vm, 2012, v.1., p. 45.

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Pondere-se, em remate, que na processualística administrativa se-quer há triangularização, sendo um modelo de processo linear ou “dual”, dado ser a Administração parte e “juiz” a um só tempo, o que torna ainda mais relevante a existência de lei processual que discipline a relação ju-rídica processual administrativa, de sorte que a aplicação subsidiária de lei processual de outro ente federativo afigura-se imperativa para afastar o risco de arbitrariedade e da vulneração da garantia constitucional do devido processo legal, em última análise.

Pertinente citar a doutrina do administrativista Carvalho Filho, ao advertir que o devido processo legal requer obediência às normas legais que o regulam:

Em relação ao processo administrativo, o princípio do devido processo legal tem sentido claro: em todo o processo adminis-trativo devem ser respeitadas as normas legais que o regulam. A regra, aliás, vale para todo e qualquer tipo de processo, e no caso do processo administrativo incide sempre, seja qual for o objeto a que se destine. Embora se costume invocá-lo nos processos litigiosos, porque se assemelham aos processos judiciais, a verdade é que a exigência do postulado atinge até mesmo os processos não litigio-sos, no sentido de que nestes também deve o Estado respeitar as normas que sobre eles incidam.32

Ora, se ausente a lei processual local a balizar o processo administra-tivo, parcial ou integralmente, a garantia do devido processo legal restará vulnerada e inobservada no seu pressuposto de ser necessariamente regula-do por normas legais, impondo-se um juízo de ponderação para se reputar constitucional a orientação contida no art. 15 do CPC de 2015, dado que constitui opção legal adequada a efetivar a garantia do devido processo le-gal administrativo, a despeito de se reconhecer que em princípio caberia ao legislador local disciplinar o processo administrativo na respectiva unidade federativa, em decorrência da competência outorgada no sistema federativo

32 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 989; grifou-se.

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brasileiro a cada ente político autônomo, para legislar sobre seu respectivo modo de administrar, que constitui campo do Direito Administrativo, cujo conteúdo abrange as normas sobre processo administrativo.

Assim, optar por prestigiar, sem qualquer ponderação ou tempera-mento, a autonomia legislativa do ente federativo – que não se desincumbiu de editar lei local destinada a disciplinar integralmente os processos admi-nistrativos desenvolvidos em seu âmbito – implica admitir que a Adminis-tração, no contencioso administrativo, lance mão de opções discricionárias ou quando muito de normas regulamentares autônomas, porquanto subs-titutivas da lei formal, a fim de pautar aspectos da relação processual para os quais não exista lei local que os discipline, parcial ou completamente. Isto traz prejuízos ainda maiores aos valores constitucionais e ao núcleo de garantias que compõem os direitos fundamentais dos cidadãos, do que a solução guiada por um juízo de ponderação, para se reconhecer a possibili-dade de conciliar a aplicação subsidiária do CPC/2015 aos processos admi-nistrativos, com a autonomia dos Estados e Municípios para legislar sobre processo administrativo, prestigiando-se a garantia insculpida nos incs. LIV e LV do art. 5º, da Constituição Federal de 1988.

A adoção desse juízo de ponderação afigura-se constitucionalmen-te adequada e viável inclusive porque a regra do art. 15 do CPC/2015, naturalmente, não prevê impedimento a que cada ente político possa, a qualquer tempo, exercer sua autonomia para editar lei que venha a suprir omissões parciais ou completas na disciplina dos processos administrati-vos desenvolvidos em seu âmbito.

Conclusão

Cabe pontuar, em remate, que a previsão, agora legalmente expres-sa, da aplicação subsidiária e supletiva do Código de Processo Civil, em particular aos processos administrativos, tem suscitado controvérsias, in-clusive a tese de inconstitucionalidade do art. 15 da Lei nº 13.105/2015 veiculada na ADI 5492/RJ, na medida em que violaria a autonomia dos entes federados para legislar sobre Direito Administrativo em seus respec-tivos âmbitos, vulnerando assim o sistema federativo estabelecido no art. 18 da Carta Republicana de 1988.

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Contudo a controvérsia deve ser enfrentada e resolvida a partir do reconhecimento da incidência da cláusula do devido processo legal, insculpido nos incs. LIV e LV do art. 5º da Constituição Federal, à pro-cessualística administrativa, tornando impositiva a inserção do Processo Administrativo na Teoria Geral do Processo, ante a profunda analogia com o processo jurisdicional, em particular com o processo civil, diretriz interpretativa que conduz, inclusive à luz da Teoria do Diálogo das Fontes, ao reconhecimento da existência de uma unidade normativa, cujo refe-rencial é o Direito Processual Civil.

Esse contexto torna a previsão de aplicação subsidiária do Código de Processo Civil aos processos administrativos conciliável com a autono-mia dos demais entes federativos para legislar sobre esse peculiar modo de administrar, que é, a um só tempo, também atividade processual.

Nessa perspectiva, o reconhecimento da constitucionalidade da norma do CPC/2015 em discussão na ADIN 5492/RJ decorre, sobretudo, de um juízo de ponderação entre a incidência do princípio constitucional do devido processo legal à processualística administrativa, de um lado, e, de outro, a aplicação do princípio federativo que estabelece a autonomia legislativa dos entes políticos em matéria de processo administrativo, uma vez que aquela primeira garantia processual torna inconcebível permitir-se ao administrador público realizar atos processuais discricionariamente, à míngua de lei que balize sua atuação, seja parcial ou integralmente, pena de maltrato ao devido processo legal, cuja concepção implica a garantia de disciplinamento da relação processual administrativa por lei formal, como mecanismo adequado para afastar o risco de abusividade.

Impõe-se, assim, a adoção de solução jurídica que concilie os va-lores em conflito para, à luz de um juízo de ponderação, reconhecer a constitucionalidade da previsão contida no art. 15 da Lei nº 13.105/2015, de aplicação das normas do Código de Processo Civil aos processos ad-ministrativos dos Estados, Municípios e da União, em caso de omissão normativa parcial ou integral, a fim de evitar maltrato à garantia do de-vido processo legal, sem prejuízo de que os entes federativos exerçam, a qualquer tempo, a sua competência para legislar sobre processo adminis-trativo, decorrente da competência plena para legislar sobre Direito Ad-ministrativo, no exercício da autonomia inerente ao princípio federativo.

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Ponderações Acerca do Julgamento de Casos Repetitivos no Novo CPC

Fagner César Lobo Monteiro1

1 Procurador do Estado, Advogado e Palestrante. Ex-Defensor Público do Esta-do. Ex-Assessor Jurídico Chefe de Fundação Pública Estadual. Pós-graduado em Direito Constitucional. Pós-graduado em Direito Material e Processual do Trabalho.

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Sumário: Introdução. Desenvolvimento. Conclusão.

Resumo: O presente estudo traz uma breve abordagem sistemáti-ca e didática do mais novo instituto do Direito Processual Civil, nascido juntamente com a publicação da lei federal n. 13.115, em 16 de março de 2015, o Julgamento de Casos Repetitivos, cujas espécies são: o IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e o Julgamento dos Recursos Repetitivos (CPC, art. 928, incisos I e II), é um dos temas mais instigante tratados pelo Novo CPC, e que traz inúmeras novidades, com repercussão nunca antes observadas para todo o ordenamento jurídico brasileiro, o que lhe garante protagonismo na pesquisa acadêmica, nos fóruns de debates, na justiça e em toda a sociedade para as próximas dé-cadas não só entre os operadores do Direito, mas também entre toda a coletividade cujo tema muito lhe importa.

Palavras-chaves: CPC 2015 – Novo Instituto Processual – Julga-mento de Casos Repetitivos – IRDR – Recursos Repetitivos – Demandas Individuais – Processos em Massa – Mesma Causa Jurídica.

Um dos assuntos mais complexos, e por que não dizer alvissareiro, que permeia o Novo Código de Processo Civil (Lei 13.115, de 16 de março de 2015), certamente diz respeito ao julgamento dos casos repetitivos. O Código de 1973 (ab-rogado) não continha disposição nesse sentido.

O julgamento de casos repetitivos passou a ser, destarte, um as-sunto, um tema, uma questão a ser tratada pelos processualistas civis nos livros, teses e dissertações; nos fóruns de debates, nos seminários, nas academias, nas universidades. Enfim, onde se pensar processo civil, certa-mente, haverá discussão acerca dessa matéria. Não se pode mais ignorá-la.

Nessa compreensão, o art. 928 do CPC 2015 positiva o julgamento dos casos repetitivos, trazendo-o como gênero dos quais são espécies: a) o IRDR – Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e b) o Julga-mento dos Recursos Repetitivos (CPC, art. 928, incisos I e II).

Também é espécie desse gênero, embora não esteja ali expressa-mente plasmado, o julgamento dos Recursos de Revistas Repetitivos,

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previstos na Lei 13.015, de 21 de julho de 2014. Portanto, tudo o que se aplicar para o IRDR e para o Recurso Especial/Extraordinário repetitivo, igualmente se aplicará para o Recurso de Revista Repetitivo. Há uma sim-biose jurídica entre essas duas legislações.

No Brasil existe uma concepção doutrinária segundo a qual há um microssistema normativo regulando os julgamentos dos casos repetitivos; um dos fundamentos para esse pensamento se dá especialmente pela dis-posição contida no art. 926, do CPC 15. Trata-se de norma em harmonia com os precedentes vinculativos que o novo regulamento processual civil constrói a fim de assegurar a higidez e a aderência aos pronunciamentos judiciais proferidos pelas instâncias extravagantes.

Acerca do microssistema normativo, doutrinam Fernanda dos San-tos e Elaine Harzheim:

Trata-se, de qualquer sorte, de um conjunto de regras comprometidas com um novo paradigma de atuação do Poder Judiciário, em especial quando das decisões proferidas pelos tribunais superiores, mas que também alcançam as instâncias locais, sensíveis a uma realidade que precisa ser superada: nas últimas duas décadas o Poder Judiciário e o jurisdicionado defrontaram-se com uma nova realidade, a presença do conflito repetitivo resultado de uma sociedade de massa, o que tem elevado o número de processos em tramitação no país.2

De acordo com Daniel Mitidiero, “A transformação dos tribunais superiores em tribunais de vértice é uma das marcas mais definidoras do novo CPC”.3 Falando sobre essa nova função angariada pelo judiciário, expõe a professora Elaine Harzheim Macedo:

2 MACEDO, Elaine Harzheim; MACEDO, Fernanda dos Santos. O direito pro-cessual civil e a pós-modernidade. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 204, p. 351-367, 2012.3 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à in-terpretação, da jurisprudência ao precedente. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

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Desenha-se uma função normativa a ser atribuída ao Poder Ju-diciário, especialmente através da edição de súmulas vinculantes e do julgamento em sede de repercussão geral no recurso extra-ordinário, ambos os casos com previsão constitucional, ao que se agregam, agora, as decisões proferidas em sede do incidente de re-solução de demandas repetitivas, incidente de assunção de compe-tência e decisões proferidas em sede de recursos repetitivos, cujas orientações (precedentes), não seguidas pelas demais instâncias ju-diciais, dão ensejo à propositura da ação de reclamação (art. 988).4

O principal problema de lentidão do Poder Judiciário são milhares de ações ajuizadas discutindo a mesma questão jurídica, seja questão ma-terial ou processual. Exemplo desse último caso é saber se determinado ente (v.g. o Ministério Público) possui legitimação ativa ad causam para ajuizar ações em casos específicos. É nessa realidade que nasce o julga-mento de casos repetitivos, que veio como antídoto para tentar neutralizar os efeitos maléficos do abarrotamento de processos na justiça do país.

Importante dizer que não é possível julgamento de casos repetitivos para discutir questões fáticas comuns (essa previsão foi vetada na Câmara dos Deputados); só serve para questões de direito. A doutrina crítica isso, pois seria importante saber, por exemplo, nas relações de consumo, se de-terminado produto é ou não perigoso ou cancerígeno à saúde da popula-ção. Isso é uma questão fática a ser resolvida.

Nesse contexto, nota-se que o Novo CPC cria um microssistema normativo, para regular os chamados “julgamentos de casos repetitivos”, que tem como premissa administrar, gerir e julgar inumeráveis processos que discutem a mesma causa jurídica.

O julgamento do recurso extraordinário, o recurso especial e o re-curso de revista repetitivos, ao lado do IRDR, formam um conjunto de regras que são um verdadeiro amálgama legislativo, que devem ser inter-pretadas recíproca e concomitantemente.

4 MACEDO, Elaine Harzheim. Novo CPC Anotado. 2015, p. 694. Disponível em http://www.oabrs.org.br/novocpcanotado/novo_cpc_anotado_2015.pdf.). Acesso em fe-vereiro de 2018.

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Essa técnica de julgamento de casos repetitivos possui, segundo a doutrina, natureza híbrida, porquanto, se por um lado, ela serve como ins-trumento particular para gerir e julgar casos semelhantes que se amontoam no judiciário brasileiro, e que terão de ser observados, não apenas pelo pro-cesso(s) piloto(s), mas para todos os processos (suspensos) em curso. Por outro, igualmente, é técnica especial de criação de precedentes obrigatórios, que serão observados para as demandas que ainda não estão pendentes, ou seja, para os casos futuros. É precisamente essa natureza híbrida que justifi-ca o regramento tão complexo dado ao julgamento de casos repetidos.

Nesse passo, observa-se que o julgamento de casos repetitivos, se-gundo o CPC 15, irá produzir a solução para o caso concreto, mas não só isso, essa solução jurídica irá ser aplicada a todos os outros casos que estejam tramitando na justiça do país. Portanto, valerá para os demais processos que estejam discutindo a mesma causa jurídica.

Mas, para além disso, a solução adotada pelo Tribunal será aplicada aos processos futuros. Portanto, o acórdão do processo paradigma conterá dois capítulos, um referente à fixação da tese e outro, ao julgamento do caso concreto. Sobre esse último capítulo da decisão judicial no julgamen-to de casos repetitivos, ensinam os processualistas Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira:

Além dessa norma jurídica legal, que é delimitada na fundamenta-ção do julgado, o magistrado constrói outra norma, desta feita in-dividual, que é lançada no dispositivo da decisão e tem por objetivo tão somente reger a situação em exame naquele processo. Trata-se da conclusão a que chega acerca da procedência ou improcedência da demanda (ou das demandas) formulada no processo. Essa nor-ma jurídica tem aptidão para ficar acobertada pela coisa julgada.5

Isso dá azo, como dito anteriormente, ao hibridismo desse instituto processual: modelo de solução de casos repetitivos e criação de preceden-

5 DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada e tutela provisória. 13. ed. Salvador: Jus Podivm, 2018, v.2., p. 515.

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tes imperativos. Esse, inclusive, é um eixo comum do IRDR e dos Recur-sos Repetitivos (RE, REsp e RR).

O Brasil adota a técnica do processo piloto. Escolhe-se, dentro do emaranhado de casos repetitivos posto ao crivo do judiciário, processo (ou processos) representativo da controvérsia. Esse processo escolhido, portanto, irá conduzir (“pilotar”) o julgamento para a solução dos casos repetitivos afetados para apreciação com base na tese jurídica fixada no julgamento do processo piloto, que serve como parâmetro para os demais. O Novo CPC não adotou a técnica do processo modelo, em que o proces-so escolhido como padrão não será julgado, apenas serve para o tribunal fixar a tese a ser adotada.

Portanto, em nosso ordenamento jurídico a técnica nuclear para julgar casos repetitivos é a de se escolher processo ou alguns processos representativos com a mesma discussão jurídica e afetá-los à análise e jul-gamento pelo Tribunal, que, depois de escolher as amostras (processos pi-lotos), suspende os demais correlatos, para aguardar a decisão final, cujo fundamento servirá de base para os demais processos sobrestados. Essa é a técnica central, que está prevista nos arts. 982, inciso I e 1.037, inciso II do CPC, para o IRDR e Recursos Repetitivos, respectivamente. Todavia, existem outras técnicas, chamadas satélites (ou secundárias), que também auxiliam esse microssistema de julgamento de casos repetitivos.

Conhecidamente, nosso país tem um sistema de regulação dos ser-viços públicos delegados a particular inábil. Isso inexoravelmente induz a que milhões de ações sejam ajuizadas corriqueiramente para discutir a mesma coisa, por exemplo, um problema no setor de telefonia. Essa judi-cializaçao na maioria das vezes perpassa por uma questão no âmbito ad-ministrativo de má gestão, regulação e fiscalização dos serviços públicos prestados por concessionários, permissionários ou autorizatários.

Pensando nesse caos é que o NCPC prevê, numa tentativa de evitar que tudo desemboque aprioristicamente no Judiciário, nos arts. 985, §2.º e 1.040, inciso IV, do CPC, que se o julgamento de causas repetitivas contiver conteúdo referente às concessões, permissões ou autorizações de serviços públicos delegados a particulares, o tribunal competente expedirá ofício aos órgãos, entes ou agências reguladoras responsáveis pela fiscalização para

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que o precedente vinculante firmado seja efetivamente respeitado já no âm-bito administrativo por esses entes da administração pública.

As agências reguladoras têm por fim a fiscalização desses serviços delegados, para que sejam prestados com qualidade e eficiência à popula-ção; agindo proativamente, evitar-se-á, em última análise, a judicialização.

Como já se disse, o julgamento dos casos repetitivos forma um mi-crossistema normativo peculiar. Por isso é que existem regras expressas previstas no CPC 15 para o IRDR, que não estão previstas para o Julga-mento de Recursos Repetitivos, porém elas se aplicam mutuamente por causa desse microssistema.

Assim, é possível identificar ao menos quatro regras que são apli-cadas para ambos, embora não estejam textualmente previstas para as duas espécies concomitantemente. São elas: a) regra do abandono: nes-se caso, se a causa do processo piloto for abandonada, por exemplo, se o recorrente desistir do recurso, a tese jurídica, mesmo assim, será fixada. Há previsão expressa para o IRDR (art. 976, §1.º), aplicando-se também aos recursos repetitivos por analogia, e por força do microssistema do qual fazem parte; b) regra da recorribilidade do amicus curie: previsão expressa da faculdade de recorrer das decisões tomadas em IRDR ao amicus curie (art. 138, § 3.º). Aplicável aos recursos repetitivos, a lógica é a mesma; c) regra da tutela de urgência: nos casos de suspensão nacio-nal dos processos correlatos à tese discutida, o CPC prevê expressamen-te para o IRDR, no art. 982, §2.º, que cabe ao magistrado em que tramita o processo analisar o pedido, para que não haja prejuízo às partes. Essa regra também se aplica, por analogia, aos Recursos Repetitivos; d) regra especial da desistência: os parágrafos 1.º, 2.º e 3.º do art. 1.040 preveem o estímulo à parte que tenha processo com a mesma causa do processo piloto a desistir da ação, mesmo sem o consentimento do réu. É expres-samente prevista para o recurso extraordinário e especial repetitivos, mas se aplica, analogicamente, e pelo microssistema, ao IRDR.

Como dito outrora, o julgamento de casos repetitivos também tem função de gerar precedentes obrigatórios que nortearão os processos futuros. Nessa última função, o julgamento de casos repetitivos possui um regramen-to complexo e bem peculiar, com ampliação do debate pelos autores sociais, reforço do contraditório substancial, e ainda o dever de motivação especial

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(diferenciado), exigindo-se fundamentação específica, definindo quais razões levaram o órgão julgador a aplicar, no caso concreto, a orientação do prece-dente eleito, não podendo se limitar a sua mera menção ou referência.

Nesse toar é que os artigos 984, §2.º e 1.038, §3.º, do CPC preveem a obrigatoriedade de motivação diferenciada, cujo acórdão necessaria-mente, sob pena de nulidade, abrangerá a análise de todos os fundamen-tos suscitados concernentes à tese jurídica discutida, sejam favoráveis ou contrários. Isso se explica porque as decisões proferidas nesses acórdãos que julgam casos repetitivos se tornarão obrigatórias para as demandas vindouras que tratem da mesma temática jurídica. Para tanto, é preciso selecionar boas causas (CPC, art. 1.036, §1.º). Dando legitimidade e de-mocratizando a criação de precedentes que serão imperativos, os artigos 983 e 1.038, inciso I do CPC preveem ampliação do debate, com a partici-pação da sociedade civil, inclusive através do amicus curie.

Ainda nesse contexto, os artigos 983, §1.º e 1.038, inciso II do CPC estabelecem a previsão de realização de audiências públicas, para ouvir depoimentos de pessoas com experiência e conhecimento na matéria, com a finalidade de instruir o procedimento, ao mesmo tempo em que pode requisitar informações aos tribunais inferiores a respeito da contro-vérsia sub judice.

Sobre esses encargos dados ao relator ao julgar casos repetitivos en-sina a processualista Teresa Arruda Alvim Wambier:

Vê-se que o legislador encontrou interessante fórmula para reduzir o déficit democrático na formação de precedente com força obri-gatória. Sabe-se que a tendência de se emprestar à jurisprudência mais força, com o objetivo de gerar mais segurança jurídica, uni-formidade e estabilidade, tem este “calcanhar de Aquiles”: não se pode deixar instalar o caos e DEPOIS tentar resolver a situação. A análise de acórdãos e a requisição de informações de Tribunais de 2º grau, bem como a admissão de amicus curiae, neutralizam eficientemente tais críticas.6

6 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Primeiros comentários ao código de pro-cesso civil: artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 1515.

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São esses preceitos basilares que tornam o julgamento de casos re-petitivos legítimo na sua versão de gestar precedente obrigatório, a fim de conceber a melhor tese jurídica possível, a ser aplicada às futuras demandas.

Outra técnica igualmente importante nessa formação de preceden-tes é a da ampla publicidade (CPC, art. 979, §1.º), com previsão de regis-tro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça, e de banco eletrônico de dados atualizados com informações específicas sobre questões de direito versadas no incidente. Essa publicidade reconfigurada é essencial ao siste-ma de formação concentrada de precedentes obrigatórios, porque legiti-ma e democratiza o instituto.

Existem ainda outras normas que permeiam o código processual novo e que devem ser observadas e aplicadas nos casos de julgamento de casos repetitivos. Essas regras, como dito, são também chamadas pela doutrina de regras satélites ou secundárias. São elas: a) regra da coerência e integridade (art. 926): é uma regra indispensável na formação de pre-cedente, a tese fixada, portanto, deve ser coerente e íntegra; b) regra da superação (overruling): disciplina a técnica da revisão da tese fixada pelo tribunal, acontece quando o órgão julgador, ao apreciar um determina-do caso concreto, percebe que a sua jurisprudência merece ser revisitada (arts. 986 e 927, §§1 e 2.º, do CPC). É indispensável no sistema de forma-ção de precedentes judiciais. Possui regramento igual ao da formação de precedente, afinal, superar um precedente é gerir um novo que servirá em seu lugar. Acerca do overruling disposto nos artigos citados, que tratam da revisão da tese fixada pelos tribunais, ensina o jurista Celso Scarpinella:

O dispositivo é pertinentíssimo para a construção do direito ju-risprudencial [...]. Para tanto, é absolutamente fundamental que as questões jurídicas, ainda que fixadas para aplicação presente e futura (art. 985, I e II), possam ser revistas consoante se alterem as circunstâncias fáticas e/ou jurídicas subjacentes à decisão proferi-da. É assim, com a edição de novas leis e não haveria razão para ser diverso com os “precedentes judiciais”, mesmo com os brasileiros.7

7 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 4. ed. São Pau-lo: Saraiva, 2018.

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Continuando a explanação das regras, temos: c) regra do distin-guishing (art. 1.037, §9.º, do CPC): no sistema de precedentes cogentes é indispensável à faculdade de sustentar o distinguishing, demonstrando distinção entre a questão a ser decidida no processo e aquela a ser julga-da como casos repetitivos, para seguimento do processo. A aplicação do precedente não pode ser automática, deverá haver intepretação e amol-damento ao caso concreto; d) regra da congruência (art. 1.037, inciso I, do CPC): A decisão no julgamento de casos repetitivos terá de delimitar a tese jurídica que será enfrentada e discutida pelo Tribunal na formação do precedente obrigatório, pena de nulidade. A delimitação da tese é essen-cial à sua validade; e) regra da prevenção (art. 1.037, §3.º, do CPC): es-tabelece que, existindo mais de uma afetação, será prevento o relator que primeiro proferir decisão nesse sentido, na qual estabeleça com precisão a questão jurídica a ser submetida a julgamento (art. 1.037, caput, inciso I).

Tratando do IRDR (mas aplicando-se aos recursos repetitivos, pe-las razões já expostas), o art. 985, inciso I, do CPC 15 vai dizer que a tese nele fixada será incorporada aos demais processos que ficaram suspensos por determinação do tribunal onde se discuta a mesma situação jurídica do processo padrão. O precedente será a norma jurídica geral a ser ado-tada como fundamentação para o julgamento dos demais processos sob a jurisdição do juízo de primeiro grau, que não mais necessitará de enfren-tar novamente essas questões na sentença.

Já o inciso II do referido artigo, que diz respeito à dimensão de geração de precedentes obrigatórios, aponta que a tese jurídica adotada será aplicada aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, cabendo reclamação no caso de sua inobservância (§1.º, do art. 985). Conforme o enunciado n. 558 do Fórum Permanente de Processualistas Civis:

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Enunciado n.º 558: Caberá reclamação contra decisão que contra-rie acórdão proferido no julgamento dos incidentes de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência para o tri-bunal cujo precedente foi desrespeitado, ainda que este não possua competência para julgar o recurso contra a decisão impugnada.8

Acerca dessa dinâmica, leciona a advogada e professora Luciana Monduzzi Figueiredo:

É preciso lembrar que, uma vez afetado o recurso, a suspensão dos processos gera consequências para todos os envolvidos: a parte processual e seu mandatário, que aguardam o posicionamento, a sociedade que também aguarda o posicionamento e o próprio judi-ciário, não só com relação à atividade judicante como também na administração dos processos suspensos (que, a depender do tema, resulta em quantidade vultosa).9

Portanto, a natureza híbrida do julgamento de casos repetitivos faz que a decisão nele produzida se aplique tanto ao(s) processo(s) piloto(s), paradig-ma(s), quanto aos em curso sobrestados por ordem do tribunal: natureza de julgamento de casos repetitivos. Mas também aplica-se aos processos vindou-ros, para o futuro: natureza de geração de precedentes obrigatórios.

Nunca é demais lembrar que para os processos passados (já com trânsito em julgado) que não estavam suspensos e para a hipótese de de-sistência da parte recorrente do processo afetado (piloto/padrão), o inci-

8 Enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis – Grupo: Prece-dentes, IRDR, Recursos Repetitivos e Assunção de Competência. Coordenação: Fredie Didier Jr. e Heitor Sica. São Paulo, 18, 19 e 20 de março de 2016. Disponível em http://www.cpcnovo.com.br/wp-content/uploads/2016/06/FPPC-Carta-de-Sa%CC%83o-Paulo.pdf. Acesso em março de 2018.9 FIGUEIREDO, Luciana Monduzzi. Novo Código de Processo Civil Comenta-do. 2015. Disponível em https://www.direitocom.com/novo-cpc-comentado/parte-espe-cial-livro-iii-dos-processos-nos-tribunais-e-dos-meios-de-impugnacao-das-decisoes-ju-diciais/titulo-ii-dos-recursos/artigo-1-037-2). Acesso em fevereiro de 2018.

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dente não se aplicará; este servirá, na melhor das hipóteses, como reforço de argumento para uma futura ação rescisória, se cabível.

Concluímos que no Brasil há um microssistema normativo que orienta e regula esse novo instituto do julgamento de casos repetitivos. Com o acesso instantâneo e universal à informação numa sociedade de massa, centrada no hedonismo, que anseia incessantemente pela “busca da felicidade”, torna-se um processo natural o crescimento da judiciali-zação. O Judiciário, por sua vez, vem respondendo ineficazmente à so-ciedade, prestando um serviço jurisdicional de má qualidade ao cidadão, oferecendo comumente uma justiça tardia e inútil, especialmente nos processos individuais, responsáveis pela maior parte das demandas cuja discussão jurídica é repetitiva.

É nessa conjuntura, que surgem esses novéis instrumentos proces-suais para julgar processos em bloco e em grande escala, tendo por fim último tentar esvaziar a justiça brasileira dessas enxurradas de ações que atualmente tramitam no país e impedir que outras tantas sejam ajuizadas. Se essa fórmula criada pelo Novo Código de Processo Civil resolverá o problema, só o tempo dirá.

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Inconstitucionalidade por Vício de Formação de Vontade nas Votações do Congresso Nacional1

Fellipe Domingues de Barros Freitas2

Letícia Varela de Aragão Farias3

1 O artigo foi apresentado no PUBLIUS 2017: VI Congresso de Direito Cons-titucional. Processos desconstituintes e democracia no Brasil: Precisamos de uma nova constituição?2 Bacharel em direito pela Universidade Católica de Pernambuco e mestrando pela mesma instituição.3 Graduanda em direito pela Universidade Católica de Pernambuco.

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Sumário: 1. Introdução; 2. Teoria geral do controle de constitucio-nalidade; 2.1 Pressupostos da teoria do controle de constitucionalidade; 2.2 Espécies de inconstitucionalidade; 2.2.1 Controle jurisdicional con-centrado, difuso ou misto; 2.2.2 Inconstitucionalidade por ação ou omis-são; 2.2.3 Vício formal ou nomodinâmico2.2.4 Vício material ou nomoes-tático; 2.2.5 Vício de decoro parlamentar; 3. Parecer do Procurador Geral da República; 4. Conclusão; 5. Referências.

Resumo: O fenômeno da inconstitucionalidade é uma temática pertinente ao exercício dos poderes instituídos pela República Federativa do Brasil. A divisão clássica doutrinária é a de que se divide em: a) incons-titucionalidade material, a qual padece de um vício quanto ao texto origi-nário e derivado escrito na constituição e uma norma ou ato administra-tivo contrário em seu conteúdo; e b) inconstitucionalidade formal, a qual é decorrente do processo constitucional da vontade das leis. Porém, uma terceira classificação, pouco explorada doutrinariamente, surge como fonte proeminente de uma crise institucional e política do país. Ela é a “inconstitucionalidade por vício na formação de vontade”, principalmente baseada no artigo 55, §1º da CRFB/88, em que se fala do abuso e da vio-lação das prerrogativas parlamentares, tal como o recebimento de verbas públicas para a aprovação de determinada lei. Essa temática nasceu da AP nº 470, vulgarmente conhecida como “mensalão”, mas se perpetua como uma práxis na aprovação de emendas parlamentares e cargos comissio-nados a congressistas para aprovações de legislações importantes como reforma previdenciária e trabalhista. O artigo tem como objetivo estender e entender o conceito de inconstitucionalidade por vício de vontade para essas práticas parlamentares, muitas vezes ditas como comuns ou normais na administração pública. O artigo terá por base metodológica pesquisas jurisprudenciais, doutrinárias e legais.

Palavras-chave: Inconstitucionalidade – Votação – Corrupção.

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1. Introdução

O controle de constitucionalidade é um tema de grande relevância no cenário mundial. Por óbvio, a supremacia da Constituição é um dos pilares utilizados para que houvesse a possibilidade desse controle. De tal forma, um Estado democrático de direito caracteriza-se pela supervalo-rização de uma constituição e pela repressão a toda a forma atentatória contra a dignidade dela. Desse modo, o Brasil padece de um vício estru-tural chamado de corrupção que se incompatibiliza com essa nova ordem econômica e social. Consequentemente, quando a corrupção se instaura nas votações de projetos de lei, emendas à constituição e demais disposi-ções legislativas, precisa-se de uma nova categoria de inconstitucionalida-de para sanar essas máculas legislativas.

2. Teoria geral do controle de constitucionalidade2.1 Pressupostos da teoria do controle de constitucionalidade

O controle de constitucionalidade é um instrumento capaz de fazer prevalecer um dos princípios basilares do direito constitucional: a supremacia das normas constitucionais. Esse instrumento retira do ordenamento as normas inferiores que contrariam suprindo a ausência da lei ou declarando a sua constitucionalidade, de modo a garantir uma interpretação conforme à Constituição ou ainda garantindo o cumpri-mento de preceitos fundamentais.

Essa compatibilidade “vertical” das normas constitucionais e demais atos normativos tem em seu ápice as normas com status cons-titucional, logo esse arranjo de validação das normas está baseado em Hans Kelsen. Assim, abstrai-se o conteúdo das normas jurídicas, mas apenas através de uma trama de competência em um esquema de vali-dade e invalidade. As normas jurídicas não são falsas ou verdadeiras, segundo o referido autor, mas, sim, estão em conformidade com nor-mas prescritivas por uma autoridade competente ou não: “Essa segun-da maneira de sistematização das normas jurídicas liga-as não pelo seu conteúdo, totalmente abstraído, mas apenas pela trama de competên-

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cia. A validade do ato praticado pelo chefe de repartição é fundada na obediência geral aos Constituintes”.4

Existem alguns pressupostos, quatro especificamente, para o con-trole de constitucionalidade:

1º) Constituição rígida ou semirrígida: o processo de modificação das normas constitucionais deve ser diferenciado e mais rigoroso quando comparado com as demais leis do ordenamento jurídico. Na classificação doutrinária, a Constituição de 1988 é considerada rígida.

2º) Princípio da supremacia da Constituição: em razão dessa clas-sificação das normas constitucionais em serem rígidas ou semirrígidas, consagra-se a ideia de que a Constituição é o vértice do ordenamento jurídico. Logo, ante o exposto da teoria de Hans Kelsen, a Constituição representa o alto escalão do direito positivo.

3º) Atribuição de competência para o controle de constituciona-lidade a um órgão: é ineficiente um princípio de supremacia da Consti-tuição, caso não haja um órgão capaz de efetivamente controlar as normas infraconstitucionais que estiverem em desacordo com a Constituição. No controle concentrado, tal órgão é exclusivamente o Supremo Tribunal Fe-deral (STF) em face da Constituição Federal de 1988, e dos Tribunais de Justiça, quando em face da Constituição do respectivo Estado no qual o tri-bunal está localizado. Já no controle difuso de constitucionalidade, o órgão competente é o Poder Judiciário, ou seja, todos os demais juízes e tribunais possuem competência para declarar a inconstitucionalidade da norma.

4º) Princípio de presunção de constitucionalidade das leis: em um Estado Democrático de Direito, a norma desempenha função singu-lar, visto que só se pode impor ao indivíduo realizar alguma prestação ou se omitir caso esteja previsto em lei. Desse modo, as normas, quando são editadas, em função do princípio da confiança nascem com uma presun-ção de constitucionalidade.5

De tal sorte que, expostos esses motivos, a relação de constitucio-nalidade e inconstitucionalidade designa um conceito de relação que se

4 COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 28.5 ZANOTTI, Bruno Taufner. Controle de constitucionalidade. Salvador: JusPo-divm, 2016, p. 54-55.

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estabelece entre a Constituição e um comportamento, que lhe está ou não conforme, que é com ela compatível ou não.

A expressão inconstitucionalidade tem, pelo menos, três concep-ções distintas, conforme o ilustre jurista inglês Dicey: a) empregada em relação a um ato do parlamento inglês, isso significa que o ato é oposto ao espírito da Constituição inglesa, mas não significa, necessariamente, que o ato é ilegal ou nulo; b) aplica-se a uma lei das câmaras francesas em que exprimiria que a lei ampliada à extensão do período presidencial é contrá-ria ao disposto na Constituição. Os tribunais franceses não são obrigados a obedecer às leis inconstitucionais; c) quando esse vocábulo é dirigido a um ato do Congresso, ou seja, os atos congressuais são nulos.6

2.2 Espécies de inconstitucionalidade2.2.1 Controle jurisdicional concentrado, difuso ou misto

O controle jurisdicional é aquele exercido por órgão integrante do Poder Judiciário ou por Corte Constitucional podendo ser: a) concentrado (também chamado austríaco); b) difuso (também chamado americano); c) misto.

O controle de constitucionalidade austríaco ou europeu defere a atribuição do julgamento de questões constitucionais a um órgão juris-dicional superior ou a uma corte de constitucionalidade específica. Esse modelo de controle poderá ter uma variedade maior de organização, já que a corte poderá ser composta por membros vitalícios ou membros detentores de mandato com prazo alargado. Contudo, esse modelo, que se diferenciava do segundo por haver um monopólio em torno da corte constitucional, com a possibilidade de um supremo tribunal de justiça e o tribunal de justiça administrativa perante a corte:

Passou-se a admitir que o Supremo Tribunal de Justiça (Oberster-Gerichtshof) e o Tribunal de Justiça Administrativa (Verwaltungs-gerichtshof) elevem a controvérsia constitucional concreta perante a Corte Constitucional. Rompe-se com o monopólio de controle

6 DICEY apud MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 936.

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da Corte Constitucional, passando aqueles órgãos judiciais a ter um juízo provisório e negativo sobre a matéria. Essa tendência se-ria reforçada posteriormente com a adoção de modelo semelhante na Alemanha, Itália e Espanha. Em verdade, tal sistema tornou o juiz ou tribunal um ativo participante do controle de constitucio-nalidade, pelo menos na condição de órgão incumbido da provo-cação. Tal aspecto acaba por mitigar a separação entre os dois sis-temas básicos de controle.7

O sistema americano, por sua vez, adota um modelo processual de controle baseado na defesa de posições exclusivamente subjetivas e ado-ta uma valorização do interesse público em sentido amplo. Esse método assegura a qualquer órgão judicial incumbido de aplicar a lei a um caso concreto o poder-dever de afastar a sua aplicação se considerada incom-patível com a ordem constitucional. Esse modelo nasceu de um famoso caso norte-americano chamado Marbury v. Madison em 1803:

Esse modelo de controle de constitucionalidade desenvolve-se a partir da discussão encetada na Suprema Corte americana, espe-cialmente no caso Marbury v. Madison, de 1803. A ruptura que a judicial review americana consagra com a tradição inglesa a res-peito da soberania do Parlamento vai provocar uma mudança de paradigmas. A simplicidade da forma – reconhecimento da com-petência para aferir a constitucionalidade ao juiz da causa – vai ser determinante para a sua adoção em diversos países do mundo.8

Por fim, o controle de constitucionalidade misto aglutina dois sis-temas de controle do perfil concentrado e do perfil difuso. Em geral, defe-re-se aos órgãos ordinários do Poder Judiciário afastar a aplicação de leis consideradas inconstitucionais nas ações e processos judiciais (in concre-

7 MENDES, op. cit., p. 940.8 MENDES, op. cit., p. 941.

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tum), porém reconhece que determinado órgão de cúpula tem competên-cia para proferir decisões in abstratum sobre essas leis.

2.2.2 Inconstitucionalidade por ação ou omissão

Essa classificação determina que a inconstitucionalidade emanada do Poder Público pode estar relacionada com uma ação positiva (incons-titucionalidade por ação), com a inexistência dessa ação ou negativa (in-constitucionalidade por omissão total), bem como com uma ação positiva incompleta (inconstitucionalidade por omissão parcial).

Explicando-se de forma mais clara, a omissão poderá ser total, quando existe uma ausência de lei ou ato que torna inviável o completo exercício de direito específico, decorrente de uma norma constitucional de eficácia limitada. Já na ausência parcial, há uma norma, porém ela não viabiliza completamente o exercício do direito previsto para o destinatá-rio da norma jurídica. Já a inconstitucionalidade por ação tem por objeto uma lei ou ato normativo que viola frontalmente uma norma constitucio-nal, uma vez que esse vício poderá ser classificado em material, formal e vício do decoro parlamentar.

2.2.3 Vício formal ou nomodinâmico

Esse vício consiste em uma violação do devido processo legisla-tivo, isto é, do método de criação da norma, já que ela não seguiu o pro-cedimento previsto constitucional. Por conseguinte, a Constituição traz regras específicas de competência, trâmite, quórum para votação, dentre outros, logo qualquer mácula sobre quaisquer desses requisitos enseja a inconstitucionalidade da lei por vício formal.

Ao vício formal não é possível a aplicação do princípio da divisi-bilidade da lei, já que ele é capaz de viciar tudo o que for promovido pela lei, bem como se observará nos diversos exemplos a seguir. Portanto, uma vez reconhecido o vício formal, todo o ato administrativo é retirado do ordenamento jurídico: “Os vícios formais traduzem defeito de formação do ato normativo, pela inobservância de princípio de ordem técnica ou procedimental ou pela violação de regras de competência. Nesses casos,

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viciado é o ato nos seus pressupostos, no seu procedimento de formação, na sua forma final”.9

O vício formal é classificado em:

a) Vício formal orgânico ou de competência: trata da inobservân-cia de regra de competência dos entes políticos (União, Estados, Municí-pios e Distrito Federal). A título exemplificativo, o Município publica uma lei que era de competência da União.

b) Vício formal propriamente dito ou do processo legislativo: nele, o vício é ritual ou processual, logo está relacionado ao procedimento, abrangendo a propositura e o trâmite até sua final publicação. Divide-se em: i) vício formal subjetivo, o qual se verifica na fase de iniciativa da lei, relacionado com o início do processo legislativo, diferentemente do vício formal orgânico, que tem relação com as regras de competência dos entes políticos – logo, neste vício a regra de competência está correta, porém o vício é de iniciativa; ii) vício formal objetivo, aquele em que se verifica nas demais fases do processo legislativo, ressalvada a iniciativa.

c) Vício formal por violação a pressupostos objetivos do ato nor-mativo: tratam-se de elementos que não dizem respeito ao processo le-gislativo, mas se refere aos pré-requisitos (pressupostos) para que o ato ao final publicado não seja eivado de inconstitucionalidade formal. Um dos exemplos trazidos pela doutrina é que para editar-se uma medida provisória deve-se comprovar relevância e urgência conforme o art. 62 da CF/88, porém, caso não tivessem presentes esses requisitos, a medida editada seria inconstitucional.10

2.2.4 Vício material ou nomoestático

Esse vício diz respeito ao conteúdo veiculado pela lei, já que está in-compatível com as demais normas constitucionais. De fato, há nesse caso

9 MENDES, op. cit., p. 946.10 ZANOTI, op. cit., p. 57-59.

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uma incompatibilidade vertical entre as normas dentro do sistema hierár-quico proposto por Kelsen. Por exemplo: uma norma penal que tipifica uma conduta anteriormente lícita quando praticada por um sujeito e ela declara expressamente que retroagirá viola frontalmente o artigo 5º, XL da Cons-tituição Federal (“a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”).

A esse vício material aplica-se o princípio da divisibilidade da norma, consequentemente somente será extraído do ordenamento jurí-dico a parte da lei que possui o conteúdo contrário ao da Constituição. Logo, a parte hígida será mantida, desde que não seja hipótese de aplica-ção de inconstitucionalidade por arrastamento.

2.2.5 Vício de decoro parlamentar

Trata-se de um vício relacionado com o “abuso das prerrogativas asseguradas a membros do Congresso Nacional ou a percepção de van-tagens indevidas”. A título exemplificativo o professor Zanotti prescreve: “Como exemplo, tem-se o esquema do ‘mensalão’, divulgado em jornais de todo o país. Não existe, até a presente data, jurisprudência do STF so-bre a consequência das leis editadas com tal vício”.11

Apesar de escassa doutrina e jurisprudência sobre o tema, o funda-mento da inconstitucionalidade foi levantado primeiramente pelo doutrina-dor Pedro Lenza, o qual vislumbra ser perfeitamente possível o reconheci-mento dessa inconstitucionalidade. O fundamento legislativo está baseado no art. 55, §1º da Constituição Federal, o qual dispõe que “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”. O país vive uma situação de com-pra e corrupção de parlamentares por empresários e banqueiros, os quais compram apoio político para aprovarem leis que os favoreçam.

Consequentemente, um dos maiores esquemas de corrupção foi julgado na Ação Penal 470, denominada de mensalão; através das no-

11 ZANOTI, op. cit., p. 59-60.

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tícias do STF, Pedro Lenza faz um resumo do caso e do comentário da Ministra Rosa Weber:

Como noticiado, houve efetivamente a distribuição de milhões de reais a parlamentares que compuseram a base aliada do governo, distribuição essa executada mais direta e pessoalmente por Delúbio Soares, Marcos Valério e Simone Vasconcelos, como nós vimos nas últimas sessões de julgamento, disse o ministro-relator. Ele afirmou que o responsável pela articulação da base aliada era José Dirceu, que se reunia frequentemente com líderes parlamentares que receberam dinheiro em espécie do Parti-do dos Trabalhadores para a aprovação de determinadas emendas cons-titucionais. O dinheiro, afirma o ministro, foi distribuído em espécie na agência do Banco Rural, em Brasília, onde Simone Vasconcelos dispu-nha de uma sala reservada para a entrega do numerário aos parlamenta-res e aos seus intermediários. Ainda, de acordo com as Notícias STF de 04.10.2012, para a Ministra Rosa Weber, “houve sem dúvida, um con-luio para a compra de apoio de deputados federais – não todos – para as votações a favor do governo na Câmara dos Deputados. O dinheiro, prossegue a ministra, veio de recursos, pelo menos em parte, públicos.12

O caso do mensalão foi o maior julgamento da história do país; após 53 sessões, o STF encerrou o julgamento desse caso. Em 17 de de-zembro de 2012, foram condenados 25 dos 37 réus. Havendo a declaração pela suprema corte de desvio de recursos públicos do Banco do Brasil e da Câmara dos Deputados para financiar a compra de apoio político no Con-gresso Nacional: “É importante salientar que o supremo tribunal federal vem reconhecendo em alguns casos como o da reforma da previdência que foi inconstitucional, com base na Ação Penal 470, pois a reforma não fora fruto da vontade parlamentar, mas sim da compra de votos”.13

12 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 256.13 CARVALHO, Emmanoel Ferreira. Controle judicial de constitucionalidade por vício de decoro parlamentar: o caso mensalão. Disponível em: <<http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=13065>>. Acessado em 07 de dezembro de 2017.

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Alguns juristas posicionaram-se de maneira contrária a esse posi-cionamento em face da quantidade de políticos efetivamente condenados e da quantidade de parlamentares que aprovaram a respectiva lei. Isto é, será que existe uma proporção de parlamentares viciados pela corrupção para efetivamente declarar uma lei como inconstitucional?

Não se sabe quantos parlamentares foram “comprados”. Esse dado é muito relevante. Note-se que a aprovação se deu por margem muito grande. Era preciso verificar quantos foram “comprados” e quantos foram “válidos” (indiscutivelmente). Não há notícia de que muitos tenham sido “comprados”. Logo, mesmo excluindo os par-lamentares venais, ao que tudo indica, continua havendo quórum amplo suficiente para a aprovação. Nós não julgaríamos inconsti-tucional a EC 41 sem a comprovação numérica dos parlamentares que aprovaram a emenda ganhando dinheiro “por fora”. 14

Ora, data vênia ao professor Luiz Flávio Gomes em uma situação de grande proporção de corrupção é impossível saber com exatidão os be-neficiários do dinheiro envolvido. De tal sorte, pelo princípio tributarista do pecúnia non olet (“o dinheiro não tem cheiro”), é impossível saber com exatidão a proveniência ilícita dos mecanismos aperfeiçoados de lavagem de dinheiro. O mensalão, apesar de ser o grande julgamento de corrupção já acontecido no Brasil, apenas condenou 25 parlamentares. Porém, quan-tos outros mensalões acontecem diariamente no país e escondem a mácu-la da inconstitucionalidade? Caso a doutrina privilegiasse a quantidade de parlamentares condenados versus a quantidade necessária para a aprova-ção da referida lei objeto do controle, estar-se-ia privilegiando a forma em detrimento do conteúdo. Um privilégio desarrazoado, já que o mínimo de indícios sobre um esquema de corrupção na aprovação de determinada lei é mais do que suficiente para a repetição no mínimo do processo legisla-

14 GOMES, Luiz Flávio. Leis aprovadas enquanto houver mensalão são inconsti-tucionais? Disponível em: <<http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/justicadirei-to/artigos/conteudo.phtml?id=1318181>>. Acessado em 07 de dezembro de 2017.

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tivo, de tal modo que deve-se privilegiar dois princípios basilares de uma democracia: a) princípios democráticos; b) processo legislativo.

O primeiro baseia-se em que a motivação dos atos dos parlamen-tares corruptos não foi a representatividade popular, mas, sim, o interesse pessoal em receber dinheiro para a aprovação de projetos governamentais. Logo, houve uma afronta ao princípio da soberania popular. O membro do poder legislativo, no exercício do seu mandato, votará pela aprovação de qualquer dos projetos de lei ou de emenda à constituição conforme a sua consciência, contudo, quando há um caso de corrupção, esses parla-mentares estão agindo conforme a consciência dos seus corruptores:

É livre, porque o representante não está vinculado aos seus eleito-res, de quem não recebe instrução alguma, e se receber não tem obrigação jurídica de atender, e a quem, por tudo isso, não tem que prestar contas, juridicamente falando, ainda que politicamente o faça, tendo em vista o interesse na reeleição. Afirma-se, a propó-sito, que o exercício do mandato decorre de poderes que a cons-tituição confere ao representante, que lhe garante autonomia da vontade, sujeitando-se apenas aos ditames de sua consciência.15

Por fim, esse posicionamento foi exposto em um parecer do Procu-rador Geral da República adiante em tópico separado exposto.

3. Parecer do Procurador Geral da República

Segundo o parecer número 10.323-RG ADI, relacionado com a ale-gação de inconstitucionalidade material da EC 41/2003, o entendimento da Procuradoria Geral da República deixa claro que uma lei com vício na formação de vontade fere diretamente princípios bastante importantes para o nosso ordenamento jurídico, como por exemplo o princípio de-mocrático e o devido processo legislativo, sendo assim inconstitucional. Contudo, expõe que, “em razão da garantia constitucional da presunção

15 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Ma-lheiros Editora, 1990, p. 23.

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de não culpabilidade (art.5, LVII, CR), é indispensável que haja compro-vação da maculação da vontade de parlamentares em número suficiente para alterar o quadro de aprovação do ato normativo”, acrescentando ain-da que isso não teria ocorrido no caso em questão.

Justifica essa opinião afirmando que “na Ação penal 470, foram conde-nados sete parlamentares em razão da sua participação no esquema de com-pra e venda de votos” e que por isso não se poderia presumir a participação de outros sem a prévia comprovação. Conclui afirmando que pelo fato de a quantidade de votos “comprados” não ter sido suficiente para aprovação da Emenda Constitucional, esta não poderia ser declarada inconstitucional.

4. Conclusão

Notamos certo dilema: de um lado, alguns doutrinadores afirmam que a quantidade de votos “comprados” deverá ser essencial para aprova-ção da lei e comprovados. De outro lado, os doutrinadores afirmam que basta existir um voto vicioso comprovado que já haveria violação e in-constitucionalidade da lei.

A questão é que, se paramos para pensar, quando há uma organiza-ção dentro do Congresso Nacional para existir todo esse processo de cor-rupção, os parlamentares que não foram comprados também votaram por interesse políticos. A criação de uma lei tem de ser em prol da sociedade e não em favor de um “jogo político”; o despertar para a criação de uma lei deve ser o bem-estar da sociedade – no caso de vício por formação de vontade, o despertar é em benefício próprio.

Por isso, não importa quantos votos vendidos/comprados tenham den-tro de uma construção de uma lei: esta tornar-se-á viciosa desde o princípio. Por que haveria articulação, estratégia, pagamento indevido para criação de uma Emenda Constitucional, se não fosse para benefício de pessoas específicas?

Ante o exposto, é necessário observar a importância do tema em questão por se tratar de violação ao nosso Estado Democrático de Direi-to, entre outros preceitos constitucionais, devendo isso ser usado como exemplo e estudo para casos que estão por vir. Uma norma que contém vícios contrários aos princípios basilares da República Federativa do Bra-sil não pode ser declarada constitucional.

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A Decadência do Direito de Constituir o Crédito do Im-posto de Transmissão (ITCD) nas Doações de Bens Imó-

veis: Análise Jurisprudencial e Doutrinária Acerca da Defi-nição do Fato Gerador e do Momento de sua Ocorrência1

Fernanda Gonçalves Braga Maranhão2

1 Tese apresentada e aprovada com menção de louvor no XLII Congresso de Pro-curadores do Estado e do Distrito Federal, em outubro de 2016.2 Mestre em Direito Público pela UFPE. Graduada em Direito pela FDR/UFPE. Mem-bro da Comissão Nacional da Advogada Mulher no Conselho Federal da OAB, e da Comissão de Direito Empresarial da OAB/PE. Procuradora do Estado de Pernambuco, Advogada.

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Sumário: 1. Introdução: revisitando a origem da controvérsia e fi-xando premissas; 2. Regra de decadência no lançamento por declaração; 3. Materialidade do ITCD: o núcleo factual imponível continua a ser a transmissão de bens; 4. Análise crítica dos precedentes do STJ; 5. Conclu-são; 6. Referências.

Resumo: O trabalho analisa a contagem do prazo de decadência do direito da fazenda estadual de lançar o ITCD na doação de bens imóveis, fazendo paralelo com as demais hipóteses de incidência do imposto e breve crítica acerca dos precedentes jurisprudenciais firma-dos sobre o tema.

Palavras-chaves: Decadência – Lançamento por Declaração – ITCD – Materialidade – Doação de Bens Imóveis – Transmissão de Bens – Registro Cartorário da Transmissão do Domínio – Marco Inicial – Aná-lise Crítica dos Precedentes do STJ.

1. Introdução: revisitando a origem da controvérsia e fixando premissas

Passados quase trinta anos da promulgação da Constituição Fede-ral e meio século depois da aprovação do Código Tributário Nacional, seria uma expectativa natural que questões básicas, como decadência e prescrição, contassem com um arcabouço doutrinário e jurisprudencial bem consolidado, gerando, para contribuintes, Fazenda e operadores do direito, uma confortável zona de segurança jurídica.

O tema continua dos mais controvertidos para o direito tributário, entre idas e vindas vacilantes da jurisprudência do Superior Tribunal de Jus-tiça, modificações legislativas pontuais e boa dose de criatividade doutriná-ria. Há pouco consenso, casuísmo e certa confusão de institutos e conceitos.

As dificuldades operacionais e conceituais em matéria de prescri-ção e decadência atingem todos os tributos indistintamente, mas se agra-vam em matéria de Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCD, porque a esse cenário controvertido junta-se a pouca produção científica sobre um tributo que não goza do mesmo prestígio ou relevân-cia acadêmica e jurisprudencial atribuídas a exações cujo âmbito de in-cidência é mais abrangente e, portanto, repercutem maior a arrecadação.

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Em matéria de ITCD, há pouca clareza, inclusive, quanto a aspectos ele-mentares do fato imponível.

Também não ajuda a circunstância de que a única normativa har-monizadora – de âmbito nacional – acerca desse imposto esteja na Seção III do Capítulo III do CTN, cuja redação não é totalmente compatível com o texto da Constituição Federal de 1988 que lhe sobreveio.

A cisão do antigo imposto sobre transmissão, para atribuir aos Mu-nicípios parte da competência tributária antes privativa dos Estados, pa-rece ter produzido o efeito de obscurecer a dimensão material do tributo, a específica definição do fato imponível.

Em muitas legislações estaduais, como em boa parte das discussões no âmbito do Poder Judiciário, perde-se de vista que o imposto tem por ma-terialidade a “transmissão”, instituto cuja definição se busca, conforme di-daticamente esclarecido no art. 110, do CTN, no âmbito do direito privado.

É comum, portanto, na aferição da decadência do direito de a Fa-zenda lançar o ITCD, que se tome o qualificador “doação” como aspecto central da materialidade do imposto; e que se leve em consideração as-pectos de ordem pragmática relativa à falta de estrutura, recursos e meios para fiscalizar a ocorrência do fato gerador – problema em parte superado ou amenizado pelo compartilhamento de informações entre as Fazendas, sobretudo daquelas prestadas à Receita Federal.

O campo de estudo a ser explorado é vasto.3 No escopo deste trabalho, o objetivo é discutir, a partir de uma análise crítica do entendimento firma-do pelo STJ,4 o marco inicial da decadência do direito de a Fazenda lançar crédito tributário relativo ao imposto de transmissão nas doações de bens imóveis.

3 Assim, seja porque ainda carecemos de uniformidade e boa técnica legislativa acerca dos elementos da hipótese de incidência, seja porque ainda se controverte sobre o próprio conceito e caracterização da “inércia”, aspecto elementar e pressuposto da deca-dência (e também da prescrição), os precedentes judiciais, por vezes, refletem conclusões certas com motivação equivocada; noutras vezes, apontam conclusões erradas, simples-mente em razão do completo tangenciamento do tema.4 Serão examinados, especificamente, os acórdãos REsp 1.252.076/MG, AgRg no REsp 577.899/PR, REsp 923.603/RS e AgRG no AREsp 243.664/RS.

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A abordagem parte da doutrina clássica que divide a hipótese de in-cidência em seus aspectos: material, pessoal, temporal, espacial e quantita-tivo.5 Delimitando o aspecto central da materialidade, recorrendo aos con-ceitos e institutos de direito privado e afastando teorias criativas que levam em consideração aspectos metajurídicos sobre as dificuldades fiscalizatórias e arrecadatórias, este trabalho pretende demonstrar que não se deve tomar a doação por materialidade, nem confundir o aspecto temporal da ocorrência do fato imponível com eventuais critérios legais de antecipação.

Será evidenciado, por fim, o equívoco cometido na sucessão de pre-cedentes construídos sem exame dos elementos centrais do fato gerador.

A análise específica acerca do imposto de transmissão nas doações de imóveis será feita, sem prescindir, no entanto, de um paralelo com o marco inicial da decadência do direito de lançar crédito relativo à trans-missão causa mortis.

5 Segundo Souto Maior Borges, “Deve-se a Giannini, no campo do direito tribu-tário, uma das tentativas de dissecação do fato gerador (hipótese de incidência) da regra jurídica, denominado pelo mestre italiano, ‘pressuposto do tributo’ e por ele dividido em dois elementos. O primeiro, o elemento material, é o que mais constitui o objeto do impos-to e serve para diferenciar um imposto do outro; o segundo, o elemento pessoal do pressu-posto, que consiste numa certa relação de fato ou de direito, na qual se deverá encontrar o sujeito passivo do imposto com o elemento material”. (BORGES, José Souto Maior: Lança-mento tributário. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 181). Dessa divisão bipartite, a doutrina brasileira evoluiu acrescendo novos elementos ou aspectos da hipótese de incidência. Ge-raldo Ataliba fala em quatro: “são, pois, aspectos da hipótese de incidência as qualidades que esta tem de determinar hipoteticamente os sujeitos da obrigação tributária, bem como seu conteúdo substancial, local e momento de nascimento. Daí, designarmos os aspectos essenciais da hipótese de incidência tributária por: a) aspecto pessoal; b) aspecto material; c) aspecto temporal e d) aspecto espacial”. (ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 70). Paulo de Barros Carvalho reconhece na hipótese de incidência (regra-matriz do tributo), além dos quatro elementos referidos, um quinto elemento quantitativo, “relativo aos fatores de composição do valor pecuniário que há de ser objeto da prestação”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributá-rio. São Paulo, Saraiva, 1998, p. 169). E, finalmente, Rubens Gomes de Sousa refere-se ao aspecto ou elemento material como “causa da obrigação tributária, [...] a razão jurídica por força da qual o sujeito ativo tem o direito de exigir do sujeito passivo a prestação que constitui o objeto da obrigação”. (SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de legislação tributária. São Paulo, Resenha Tributária, 1975, p. 98).

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2. Regra de decadência no lançamento por declaração

O ITCD é, de maneira tranquila, classificado entre os tributos sujeitos a lançamento por declaração6 (art. 147, CTN). A classificação legal as moda-lidades de lançamento, como bem pontua Souto Borges, tem “funcionalidade teórica e prática, entre outros aspectos, quando se atenta para o fato de que a decadência do direito de lançar e a prescrição da ação de cobrança do tributo somente podem ter como marco referencial o ato de lançamento”.7

Isso porque o Código Tributário Nacional adotou critérios distin-tos para contagem do prazo decadencial, tomando como um dos crité-rios de discrímem justamente as modalidades de lançamento previstas, em abstrato, nas normas de regência de cada tributo.8 Assim, em parale-lo à regra geral de decadência (art. 173 do CTN), foram fixados também outros critérios específicos, como, por exemplo, para os chamados tri-

6 José Souto Mario Borges, por exemplo, considera que “as modalidades de lan-çamento no Código Tributário Nacional disciplinadas nada teriam de contraditório ou, mesmo, de contra-indicado ao adotar como critério de classificação os procedimentos mediante os quais se objetiva a realização do ato-tributário. Por outro lado, as classifica-ções, em si mesmas consideradas, não são verdadeiras ou falsas, senão úteis ou inúteis”. (BORGES, op. cit., p. 326). Eurico Diniz de Santi e Paulo de Barros Carvalho, no entanto, filiam-se à corrente doutrinária que não enxerga utilidade na classificação adotada pelo CTN e, na verdade, a vê como fonte de muitos equívocos: “A fonte da tricotomia reside no índice de colaboração do administrado, com vistas à celebração do ato. [...] adotado o conceito de lançamento como ato administrativo, a citada classificação perde, totalmente, a correspondência com a realidade que pretende classificar. Se lançamento é ato adminis-trativo [...] não há que cogitar-se das vicissitudes que o precederam. (CARVALHO, op. cit., p. 280). “Trata-se de classificação que considera seus pressupostos, i.e., os atos e fatos que conformam o fato jurídico fonte do ato-norma. Classifica o processo, não o produto desses processos: o ato-norma administrativo de lançamento”. (DE SANTI, Eurico Diniz. Lançamento tributário. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 174).7 BORGES, op. cit., p. 327.8 Vale lembrar que a decadência atinge ou fulmina sempre o lançamento de ofício – aquele a ser realizado pela administração, seja qual for a modalidade de lançamento a que o tributo esteja normalmente sujeito. (PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Cons-tituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2005, p. 1233). Daí porque, embora sujeito ao lançamento por declaração do contribuinte, a decadência vai fulminar o direito de a Fazenda realizar o lançamento de ofício substitutivo ou complementar.

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butos sujeitos à lançamento por homologação com pagamento antecipa-do (art. 150, §4º do CTN).9

Não constitui objetivo deste trabalho esgotar o exame dos diver-sos critérios de fruição da decadência, senão, apenas e exclusivamente, estabelecer o marco inicial da decadência do direito de a Fazenda lan-çar crédito tributário relativo à transmissão de bens imóveis por doação. Também não será objeto de estudo as situações relativas à fraude, dolo ou simulação (§4º, art. 150, CTN). 10 E nesse âmbito específico, o primeiro aspecto a destacar é a regra legal de decadência aplicável.

Há certo consenso de que o ITCD é um tributo, em tese, sujeito à lançamento por declaração (art. 147 do CTN), tendo em vista que a cons-tituição do crédito tributário, em regra, é iniciada pela declaração do sujei-to passivo, seguida de cálculo e apuração do imposto pela administração.11 Não há pagamento antecipado pendente de homologação, o que exclui a possibilidade de enquadramento na modalidade do art. 150 do CTN.t

Tratando-se de tributo em que não há previsão de pagamento ante-cipado sem prévio exame da administração, a regra de decadência aplicá-vel é a regra geral do inciso I, do art. 173, do CTN, consoante estabelecido no acórdão proferido por ocasião do REsp 973733/SC, no rito dos recur-sos repetitivos.12

9 Atualmente, o tema está tratado, em âmbito jurisprudencial, no REsp 973733/SC julgado sob o rito dos recursos repetitivos.10 Segundo a classificação feita por Eurico De Santi, a decadência tributária en-contra-se regulada em cinco normas distintas, “cujas hipóteses, além do fator tempo, se conformam pela combinação dos seguintes critérios positivos: (i) atribuição legal ou não ao sujeito passivo do dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade; (ii) ocorrência ou não do pagamento antecipado; (iii) existência ou não de dolo, fraude ou simulação; (iv) ocorrência ou não da notificação preparatória; (v) efetivação ou não da anulação do lançamento anteriormente efetuado” (DE SANTI, Eurico Diniz. Decadência e prescrição no direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 117).11 “O art. 147, continua o tema, tratando do lançamento misto ou por declaração, por implicar a colaboração do contribuinte em sua feitura. Primeiro o contribuinte infor-ma, depois a Administração expede o lançamento”. (COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 678).12 “O prazo decadencial quinquenal para o Fisco constituir o crédito tributário (lan-çamento de ofício) conta-se do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lança-

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Nos termos do art. 173, I do CTN, “o direito de a Fazenda Pública cons-tituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado”.

O marco inicial da decadência foi conectado ao momento em que o lançamento já pode ser realizado. Como regra, esse momento coincide com a data em que ocorre o fato gerador,13 quando se aperfeiçoam todos os elementos da hipótese de incidência e surge a obrigação tributária. É o que também restou decidido no citado REsp 973733/SC:

O dies a quo do prazo quinquenal da aludida regra decadencial rege-se pelo disposto no artigo 173, I, do CTN, sendo certo que o ‘primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado’ corresponde, iniludivelmente, ao primei-ro dia do exercício seguinte à ocorrência do fato imponível, ainda que se trate de tributos sujeitos a lançamento por homologação,

mento poderia ter sido efetuado, nos casos em que a lei não prevê o pagamento antecipado da exação ou quando, a despeito da previsão legal, o mesmo inocorre, sem a constatação de dolo, fraude ou simulação do contribuinte, inexistindo declaração prévia do débito”. Vide ainda: “Em síntese, o prazo decadencial para a Fazenda Pública constituir o crédito tributário será: a) de cinco anos a contar do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lança-mento poderia ser efetuado, se o tributo sujeitar-se a lançamento direto ou por declaração (regra geral do art. 173, I do CTN); b) de cinco anos a contar da ocorrência do fato gerador no caso de lançamento por homologação em que há pagamento antecipado pelo contribuin-te (aplicação do art. 150, § 4º do CTN) e c) de cinco anos a contar do primeiro dia do exercí-cio seguinte àquele em que o pagamento antecipado deveria ter sido realizado nos casos de tributo sujeito à homologação sem que nenhum pagamento tenha sido realizado pelo sujeito passivo, oportunidade em que surgirá a figura do lançamento direto substitutivo do lança-mento por homologação”. (REsp 784.218/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/08/2006, DJ 29/08/2006, p. 151)13 Entretanto, há situações particulares em que, embora ocorrido o fato gerador, ainda não se pode realizar o lançamento. É o caso, exatamente, do imposto de transmissão causa morte, em que – conforme se esclarece a seguir – o fato gerador se considera ocorri-do na data da abertura da sucessão (morte), mas só é possível efetuar o lançamento após a homologação da partilha, porque, antes disso, não é possível identificar o sujeito passivo, a base de cálculo do imposto, ou, ainda, a situação da substituição tributária, em que o tribu-to é exigido antes mesmo da ocorrência do fato gerador. Vê-se que, mesmo nessa temática, a solução jurisprudencial dada em sede de repetitivo não pode ser tomada irrestritamente e mereceria um exame mais cuidadoso e, talvez, até mesmo revisão.

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revelando-se inadmissível a aplicação cumulativa/concorrente dos prazos previstos nos artigos 150, § 4º, e 173, do Codex Tributário, ante a configuração de desarrazoado prazo decadencial decenal.14

Chega-se à primeira conclusão de que, em matéria de decadência do ITCD, aplica-se a regra do art. 173, I, do CTN e, sendo assim, assume especial relevo investigar o momento em que se considera ocorrido o fato gerador, o que, como se expõe a seguir, é encontrado pelo exame dos ele-mentos material e temporal da hipótese de incidência.

E, apesar disso, verificam-se nos julgados que tratam do tema – confor-me detalhado no último tópico deste trabalho – um enfoque equivocado, em que, sem o necessário esforço conceitual no sentido da delimitação do elemento temporal e da própria materialidade do tributo, as discussões são direcionadas para a problemática das dificuldades na fiscalização da ocorrência do fato gera-dor. A argumentação comumente deduzida e, devidamente superada pela juris-prudência, pretendia deslocar o marco inicial da decadência para o momento em que o fisco toma conhecimento da ocorrência do fato gerador.

Trata-se de pretensão que, sem dúvidas, não encontra respaldo na aná-lise sistemática do CTN e contraria a própria essência do instituto da deca-dência, de estabilização de conflitos. Ora, se o prazo decadencial corre contra pretensão do Fisco, é evidente que não se pode condicionar o início de sua fluência a um ato exclusivo do credor, sob pena de nulificar a própria estipula-ção de prazo decadencial. Pouco importam as condições materiais existentes para realizar a fiscalização do fato gerador; cabe à administração aparelhar-se.

Além do mais, a única hipótese – diga-se, excepcional – de inter-rupção da decadência é expressamente prevista no art. 173, II, do CTN, e refere-se à anulação do lançamento por vício de forma. Fora essa excep-cionalidade, não é possível considerar interrompido o prazo decadencial, ainda que exista suspensão da exigibilidade do tributo.15

14 XAVIER, Alberto. Do Lançamento no Direito Tributário Brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 91-104. AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 396-400. DE SANTI, Eurico Marcos Diniz. Decadência e prescrição no direito tributário. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2004, p. 183-199.15 A jurisprudência já está consolidada neste sentido, conforme se verifica, a título

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Mas essa abordagem da decadência em ITCD não esgota o debate e, na verdade, encobre o que verdadeiramente possui relevância: investigar, para cada uma das situações apanháveis pelo tributo, o momento em que, efetivamente, acontece o fato gerador.

3. A materialidade do ITCD: o núcleo factual imponível continua a ser a transmissão de bens

Como se colocou, muitos dos equívocos acerca da fixação do marco inicial da decadência decorrem de imprecisões conceituais so-bre a definição do fato imponível. Neste aspecto, destaca-se a confusão entre os elementos nucleares da hipótese de incidência, por um lado, e as regras de pagamento, por outro. Em outras palavras, confunde-se o momento em que nasce a obrigação tributária com o momento em que é devido o pagamento do tributo.

Curiosamente, quando se examinam de maneira isolada os pre-cedentes sobre decadência, é possível verificar que persistem essas imprecisões conceituais e terminológicas, apesar de já existir juris-prudência16 consolidada pontuando a diferença entre esses dois mo-mentos distintos (ocorrência do fato gerador versus momento em que

exemplificativo, do seguinte aresto representativo: “A suspensão da exigibilidade do crédito, apesar de impedir o Fisco de praticar qualquer ato contra o contribuinte visando à cobrança de seu crédito, não impossibilita a Fazenda de proceder à regular constituição do crédito tributário para prevenir a decadência do direito”. (REsp 1259346/SE, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/12/2011, DJe 13/12/2011)16 Uma das principais consequências da distinção entre os dois momentos acima referidos é, justamente, relativa à exigência ou não de reserva legal. O STF já pacificou o entendimento de que a definição do aspecto temporal, ou seja, o momento em que se deve considerar ocorrido o fato gerador, é matéria de reserva legal, enquanto que o mo-mento em que deve ser recolhido o tributo devido, o prazo de pagamento, não é matéria reservada à lei. Colhe-se, por exemplo: “Não se compreendendo no campo reservado à lei a definição de vencimento das obrigações tributárias, legítimo o Decreto nº 33.707/91, que modificou a data de vencimento do ICMS. Improcedência da alegação no sentido de infringência ao princípio da anterioridade e da vedação de delegação legislativa. Recurso extraordinário não conhecido”. (RE 203684, Relator(a): Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 20/05/1997, DJ 12-09-1997)

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o tributo é exigível). Tal constatação denota uma certa e recalcitrante ausência de coerência e unidade jurisprudencial.

Além disso, adota-se a falsa premissa, por vezes induzida pela pró-pria má redação das leis de regência, de que o imposto incidente sobre a transmissão inter vivos por doação teria como núcleo factual da hipótese de incidência a própria doação,17 e esta estaria materializada nos títulos translativos ou contratos privados firmados entre as partes.

Especificamente em relação ao escopo desse trabalho, é possível ve-rificar que, com frequência, confunde-se o núcleo material do tributo que, na verdade, é e sempre foi a “transmissão” com o negócio jurídico civil “doação” da qual ela decorre. Ou, pior, confunde-se o núcleo material com o título translativo, a exemplo da “carta de sentença” em partilha com ex-cesso de meação, ou a previsão em contrato social de distribuição de cotas em caso de falecimento dos sócios.

São coisas absolutamente distintas. Considera-se doação, nos ter-mos do art. 538 do Código Civil, “o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de ou-tra”. A transmissão, por sua vez, é a própria transferência da propriedade

17 Vejam-se, por exemplo, os seguintes precedentes em que a “doação” é apontada como o “fato gerador” do imposto: “A comunicação do fato gerador (doação) ao Fisco não tem o condão de afastar a decadência, pois a circunstância de o fato gerador ser ou não do conhecimento da Administração Tributária não foi erigida como marco inicial do prazo decadencial, nos termos do que preceitua o Código Tributário Nacional, não caben-do ao intérprete assim estabelecer” (AgRg no AREsp 243.664/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/11/2012, DJe 21/11/2012); “Encontra-se sedimentado no STJ que a comunicação do fato gerador (doação) ao Fis-co não tem o condão de afastar a decadência, pois “a circunstância de o fato gerador ser ou não do conhecimento da Administração Tributária não foi erigida como marco inicial do prazo decadencial, nos termos do que preceitua o Código Tributário Nacio-nal, não cabendo ao intérprete assim estabelecer”. (TJPE – Agravo 356326-4 – Julgado em 15/10/2015). A mesma premissa de “doação” é aspecto material e temporal do ITCD pode ser visualizada no seguinte excerto de acórdão proferido pelo TJSP: “De fato, a cláusula sétima do contrato social da empresa não constitui doação, mas apenas estabelece a for-ma de distribuição das cotas sociais em caso de falecimento do sócio, assim dispondo: ‘a sociedade não se dissolverá, em caso de morte de um dos sócios, as cotas pertencentes ao sócio falecido serão distribuídas aos herdeiros, da seguinte forma: ...’ (fls. 42). Ao contrário do que defende o apelante, a doação das cotas sociais só se efetivou com a alteração contratual feita e registrada na JUCESP em 2005”.

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e pode se dá mortis causa ou decorrer de negócio, entre vivos, a título oneroso (compra e venda por exemplo) ou gratuito (doação, com ou sem encargo, sujeita ou não à condição). A doação, portanto, é apenas um dos negócios jurídicos que dá ensejo à transmissão.

Nesse sentido, a sentença que homologa a partilha, por exemplo, apenas aperfeiçoa ou instrumentaliza o negócio civil doação, mas sequer é, em si, título translativo de propriedade. Na hipótese examinada, o título só é cartularizado quando expedida a respectiva “carta de sentença”, docu-mento por meio do qual é possível obter a “transmissão” da propriedade.

Igual raciocínio se aplica às doações firmadas por contrato, declara-ção unilateral ou promessa que, embora produzam efeitos jurídicos quan-to à formalização da doação, nem sempre assumem a condição, o status de título translativo, se não estiverem preenchidos determinados requisitos e formalidades, como, por exemplo, o registro público no cartório de títulos e documentos, a assinatura de duas testemunhas etc.

Veja-se a situação de previsão em contrato social de cessão de co-tas aos sócios remanescentes, na hipótese de falecimento de sócio. Nesse exemplo, essa previsão contratual pode até ser caracterizada como decla-ração unilateral de doação, que, no entanto, só vai se aperfeiçoar quando implementada a condição estipulada, no caso, o evento morte. Todavia, a “transmissão” propriamente dita dos bens (cotas) apenas se materializa quando do registro na Junta Comercial da respectiva alteração contratual, esta sim, título translativo.

A questão reside, portanto, em estabelecer o núcleo factual do im-posto. Em outras palavras, apontar qual desses institutos, “transmissão” ou “doação”, assume maior relevância na fixação do momento em que se considera ocorrido o fato gerador. É preciso perquirir, então, quando es-tão caracterizadas todas as circunstâncias necessárias e suficientes para o surgimento da obrigação tributária.

Pois bem. O ITCD é tributo, como o próprio nomem juris enuncia, que incide sobre a “transmissão de bens”, nos termos expressos do art. 155 da Constituição Federal: “compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos”.

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A transmissão de bens é gênero, pois, do qual são espécies (qua-lificativos) as transmissões por doação (liberalidade) ou causa mortis (por sucessão) – cuja competência tributária foi atribuída aos Estados – e a alienação (ato oneroso entre vivos), cuja competência foi cindida em favor dos Municípios (ITBI).

O ITCD e o ITBI são tributos historicamente decotados do antigo Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a Eles Rela-tivos. Ambos possuem como elemento central da materialidade o fato de incidirem sobre transmissão da propriedade. Assim, vale em relação ao ITCD as considerações do art. 35, I, do CTN, com os devidos ajustes ao texto Constitucional vigente (derrogação):

Art. 35. O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador: I - a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão física, como defi-nidos na lei civil; II - a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;III - a cessão de direitos relativos às transmissões referidas nos incisos I e II.

Veja-se que, à luz do regramento estabelecido para o cindido Imposto Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a eles Relativos, a “doação” sequer é explicitamente indicada na descrição do fato impo-nível, estando implicitamente referida na expressão “a qualquer título”. Se hoje o qualificativo “doação” assume maior relevância, a ponto de vir explicitamente indicado na hipótese de incidência, isso decorre, em especial, da necessidade de se permitir a identificação do sujeito ativo, da entidade federativa titular da competência tributária. Assim, o qua-lificativo “doação” tem muito mais pertinência com o aspecto/elemento subjetivo da hipótese de incidência – porque este foi o critério utilizado pela Constituição para cindir o antigo Imposto de Transmissão – do que com o momento da ocorrência do fato gerador ou a materialidade propriamente dita (transmissão de bens).

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Para corretamente identificar o elemento central da materialidade e definir o momento em que se deve considerar ocorrido o fato gera-dor, é preciso investigar o fato jurídico abstrato apanhado pela norma tributária, denotativo de capacidade contributiva e, por isso mesmo, descrito em norma tributária como pressuposto da obrigação de pagar o tributo.18 Essa tarefa somente é possível, segundo Paulo de Barros Car-valho, quando se examinam, conjuntamente, todos os elementos que ser-vem à descrição da hipótese: “o fato, porém, como enunciado protocolar que é, caracteriza-se por ter, rigorosamente estabelecidas, além do núcleo factual, suas coordenadas determinantes de espaço e tempo”.19

No caso do imposto de transmissão por doação, o núcleo factu-al é facilmente identificado quando se conjugam os aspectos material e temporal à sujeição passiva. O que o nome juris “transmissão” já insinua é confirmado quando se verifica que o sujeito passivo é, por praxe, o “do-natário”,20 quem, na hipótese de transmissão de bens imóveis à título gra-tuito, efetivamente beneficia-se da operação-signo presuntivo de riqueza. Nesse sentido, sendo a transmissão o núcleo factual do imposto, é justa-mente no momento em que ela se configura que se pode considerar ocor-rido o fato gerador em concreto.

Por isso, é irrelevante para a fixação do marco inicial da decadência o momento em que, supostamente, se aperfeiçoou a doação (negócio jurídico)

18 Segundo a lição clássica de Dino Jarach: “os elementos da relação jurídica tri-butária são os seguintes; o sujeito ativo, titular da pretensão, isto é, do crédito tributário, em outras palavras o credor do tributo; o sujeito passivo principal ou devedor principal do tributo, a quem se pode dar o nome de ‘contribuinte’ e os outros sujeitos passivos ou responsáveis do tributo por causa originária (solidariedade, substituição), ou derivada (su-cessão na dívida); o objeto, isto é, a prestação pecuniária, ou seja, o tributo (veja-se o item 1); o fato jurídico tributário, isto é, o pressuposto de fato ao qual a lei vincula o nasci-mento da relação tributária”. (JARACH, Dino. O fato imponível, teoria geral do direito tributário substantivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 80-81)19 CARVALHO, op. cit., p. 109.20 Embora o texto constitucional permita certa abertura na identificação do sujeito passivo, um exame da legislação de regência nos diversos Estados permite fazer a afirma-ção de que o “donatário” foi, de maneira uniforme, apontado como contribuinte. O que não exclui a possibilidade de serem também indicados outros responsáveis tributários, como o tabelião, por exemplo, nos termos permitidos pelo art. 121 e 128 do CTN.

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ou quando foi expedido o título translativo (sentença ou carta de sentença, contrato ou promessa). Importa verificar o momento em que se concretiza a transmissão dos bens, porque este é o núcleo factual do imposto (materiali-dade e aspecto temporal), seja ela decorrente de doação ou de herança.

Na hipótese de aquisição por causa mortis, é certo que a transmis-são se aperfeiçoa com a abertura da sucessão (art. 1.784, do CC). O prazo de decadência, no entanto, somente tem início com a homologação da partilha porque, antes disso, não estão caracterizados todos os elementos necessários ao lançamento e a Fazenda não dispõe de meios para apurar o tributo ou o verificar quem é o sujeito passivo (art. 173, I, CTN). Conju-ga-se aqui, ao aspecto temporal, a noção antes trabalhada de inércia que, como visto, diz respeito à própria possibilidade de ser exigido o tributo. Como não há inércia (não há exigibilidade), não há decadência.

A jurisprudência acolhe, sem dificuldades, essa conclusão:

TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS E DOAÇÃO. DECADÊNCIA. TERMO INICIAL. AR-ROLAMENTO. HOMOLOGAÇÃO DA PARTILHA. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO. ART. 173, I, DO CTN.1. [...]2. Tendo as instâncias ordinárias consignado que não houve paga-mento antecipado do imposto, aplica-se à decadência o art. 173, I, do CTN, de modo que o seu termo inicial é o primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, tal como pacificado pela Primeira Seção no regime dos recursos repetitivos (REsp 973.733/SC, Rel. Ministro Luiz Fux, Pri-meira Seção, julgado em 12.8.2009, DJe 18.9.2009).3. Na sistemática de apuração do ITCMD, há que observar, inicial-mente, o disposto no art. 35, parágrafo único, do CTN, segundo o qual, nas transmissões causa mortis, ocorrem tantos fatos gerado-res distintos quantos sejam os herdeiros ou legatários.4. Embora a herança seja transmitida, desde logo, com a aber-tura da sucessão (art. 1.784 do Código Civil), a exigibilidade do imposto sucessório fica na dependência da precisa identificação

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do patrimônio transferido e dos herdeiros ou legatários, para que sejam apurados os “tantos fatos geradores distintos” a que alude o citado parágrafo único do art. 35, sendo essa a lógica que inspirou a edição das Súmulas 112, 113 e 114 do STF.5. O regime do ITCMD revela, portanto, que apenas com a prola-ção da sentença de homologação da partilha é possível identificar perfeitamente os aspectos material, pessoal e quantitativo da hipó-tese normativa, tornando possível a realização do lançamento (cf. REsp 752.808/RJ, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 17.5.2007, DJ 4.6.2007, p. 306; AgRg no REsp 1257451/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 6.9.2011, DJe 13.9.2011).6. Não houve aplicação retroativa do art. 1.031, § 2°, com a redação dada pela Lei 9.280/1996, porquanto a referência a este dispositivo serviu apenas para mostrar que a positivação dessa regra é con-sequência da ratio contida no art. 35, parágrafo único, do CTN. Trata-se, em verdade, de típica adequação da técnica processual às exigências do direito material.7. Na hipótese dos autos, a homologação da partilha data de 1°.11.1994, de maneira que o termo inicial da decadência foi 1°.1.1995, em consonância com o art. 173, I, do CTN. Tendo sido o auto de infração lavrado em 18.6.1999, não se operou o transcurso do prazo decadencial quinquenal.8. Agravo Regimental não provido.(AgRg no REsp 1274227/MS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/02/2012, DJe 13/04/2012)

Por outro lado, o tratamento jurídico é relativamente distinto quan-do se trata de transmissão por doação entre vivos. Essa distinção de tra-tamento se deve precisamente em decorrência do regime jurídico diverso que o Código Civil adotou para regulamentar cada uma dessas hipóteses de transmissão de propriedade.

Enquanto a transmissão causa mortis se materializa com a aber-tura da sucessão (art. 1.784, C.C), a transmissão entre vivos, por outro lado, quer decorra ela de doação ou de alienação (ato oneroso), opera-se

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em marcos diferentes que são fixados, exclusivamente, em função da natureza jurídica do bem transmitido.

A transmissão de bens móveis dá-se com a tradição, nos termos expressos do art. 1.267, do Código Civil.21 Já a transmissão da proprie-dade, entre vivos, de bens imóveis só se materializa, para todos os fins de direito, com o registro público do título translativo, nos termos do art. 1.245 do Código Civil.22

Por isso, se a hipótese é de bens imóveis, adquiridos por doação, seja decorrente de contrato, declaração unilateral ou excesso de meação por ocasião da dissolução da sociedade conjugal, o marco a ser conside-rado é sempre o registro do título translativo (contrato, declaração unila-teral ou carta de sentença) no Registro de Imóveis. Assim, o fato gerador do imposto (ITCMD) não se pode considerar ocorrido, enquanto não se proceda com a transmissão da propriedade dos imóveis doados.

21 Embora controvertida, a natureza jurídica das quotas, por seu aspecto intangível e sua representação de uma posição de direitos e haveres perante a sociedade, pode-se estabelecer que, por determinação do inciso III, do art. 83, do Código Civil, são consi-deradas bens móveis (BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. Rio de Janeiro, Renovar, 2012, p. 47). De qualquer maneira e apesar da controvérsia em torno de sua na-tureza jurídica, em relação a elas, existe regra específica de transmissão. O art. 1.003, caput e parágrafo único do Código Civil preveem a necessidade de averbação da modificação contratual. A Lei n.º 6.404/1976 prevê, no art. 31 §1º que a transferência de ações nomi-nativas opera-se por termo lavrado no livro de “Transferência de Ações Nominativas”. Assim, há margem para alguma discussão nesse tema. Outra questão interessante refere-se ao registro de transferência de propriedade de veículos. Por expressa disposição legal, a propriedade de veículos automotores deve ser registrada junto ao DETRAN, enquanto que a propriedade de embarcações deve ser registrada junto à Capitania dos Portos. Seria possível argumentar que, também nesses casos, a transferência da propriedade somente se daria pelo registro nos respectivos órgãos públicos. A discussão, no entanto, foge ao escopo do presente trabalho que tem por objetivo específico examinar a decadência na hipótese de transmissão de bens imóveis.22 Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1º Enquanto não se registrar o título trans-lativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. § 2o Enquanto não se promover, por meio de ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.

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Sobre o tema, colhem-se as lições definitivas de Leandro Paulsen e José Eduardo Soares de Melo:23

Relativamente ao item II (doação), aplicam-se os conceitos de di-reito privado, tendo o Código Civil (art. 538) estabelecido como doação “o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”.Como o imposto incide sobre a “transmissão (gratuita) de qualquer bem ou direito”, é imprescindível que ocorra a mudança (jurídica) de sua titularidade, da pessoa do doador para o donatário, com espírito de liberalidade, e efetivo animus donandi, mediante o empo-brecimento do doador e o enriquecimento patrimonial do donatário.Na doação de bens imóveis, o fato gerador somente ocorrerá no momento da efetiva transcrição realizada no Registro de Imó-veis, sendo impertinente o preceito que determine o recolhi-mento antes da celebração da respectiva escritura pública.

Esse entendimento doutrinário é corroborado em precedentes de di-versos Tribunais do país, aqui citado como exemplo, um precedente do TJGO:

TJGO/ APELAÇÃO CÍVEL N. 397390-49.2011.8.09.0206 (201193973902)EMBARGOS DE DECLARAÇÃORELATOR : Desembargador WALTER CARLOS LEMESEMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ANULATÓRIA DE LANÇAMENTO TRIBUTÁ-RIO. DECADÊNCIA. NÃO INCIDÊNCIA. LANÇAMENTO POR DECLARAÇÃO. 1. Na hipótese de lançamento do ITCMD, a au-toridade administrativa constitui o crédito tributário com base em informações prestadas pelo próprio sujeito passivo (quando este declara o valor do bem transferido), ou por terceiro [...] 2. De acor-do com o art. 173, inc. I, do Código Tributário Nacional, quanto ao

23 PAULSEN, Leandro; SOARES DE MELO, José Eduardo. Impostos, Federais, Estaduais e Municipais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 200.

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ITCD, o prazo decadencial de cinco anos para a Fazenda Pública constituir o crédito tributário somente se inicia no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado.

Do voto do Relator no acórdão citado extraem-se as seguintes con-siderações:

O ITCMD incide sobre a alienação de qualquer bem ou direito havido por doação.Assim, é necessária a alteração de titularidade, do doador para o donatário. E, sobre a questão, assim leciona José Eduardo Soares de Melo: “Na doação de bens imóveis, o fato gerador somente ocor-rerá no momento da efetiva transcrição realizada no Registro de Imóveis, sendo impertinente o preceito que determine o recolhi-mento antes da celebração da respectiva escritura pública.” (PAUL-SEN; SOARES DE MELO, 2009, p. 209).Portanto, não há falar em decadência e, tampouco, prescrição, pois, conforme o parecer da D. Procuradoria de Justiça: “o fato gerador do ITCMD não pode ser anterior ao registro do título translativo no Registro de Imóveis. Somente após o registro in-cide a exação”. (fls. 350).De qualquer forma, não prosperam os argumentos da parte ape-lante, em quaisquer dos aspectos suscitados no recurso, pois, a r. sentença impugnada bem decidiu a questão submetida a julga-mento, como se vê:“A transmissão da propriedade imobiliária dá-se pela trans-crição do respectivo título no registro imobiliário. Antes de tal ato, o doador continua como titular do domínio, independente-mente de ter sido homologada sentença de separação judicial na qual consta a doação efetuada pelo ex-cônjuge à autor apelante. (art. 1245 do Código Civil).Daí, a inafastável conclusão de que, em se tratando de bem imóvel, o fato gerador do ITCMD não pode ser anterior ao registro do títu-lo translativo no Registro de Imóveis (CC, art. 1245).” (fls. 302/303)

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Trata-se de ação de ação mandamental objetivando o registro de partilha de bens imóveis, sem a necessidade de recolhimento do ITCMD, ante a ocorrência de prescrição do crédito tributário, sob alegação de que decorreu mais de cinco anos do trânsito em julga-do da r. sentença homologatória proferida em divórcio consensual.

Não tendo havido registro (transmissão), não se pode considerar

ocorrido o fato gerador e, portanto, ainda não há falar em decadência. No entanto, essa circunstância não autoriza concluir que o tributo não possa ser, de logo, exigido. Não há que se confundir ocorrência do fato gerador com a exigibilidade do tributo.

Enquanto na hipótese de transmissão de bens causa mortis o fato gerador ocorre em momento anterior (abertura da sucessão) à possibili-dade de ser o tributo exigido (o que só se configura com a partilha), no caso de transmissão de bens imóveis por doação, sucede algo diferente e peculiar.

É que o ITCD, na modalidade transmissão por doação, tem a par-ticularidade de ser recolhido antes do aperfeiçoamento do fato gerador (transmissão). Aliás, o recolhimento do tributo antecipadamente é requisito mesmo da própria ocorrência do fato gerador, já que o registro é condicio-nado à prova de sua quitação. É bastante comum essa previsão de que o tributo seja recolhido no momento e como condição do registro imobili-ário, nas diversas Leis Estaduais que regem o ITCD.24 Trata-se de técnica de fiscalização e arrecadação deveras comum, em relação a diversos outros tributos, e perfeitamente compatível com o desenho constitucional.

24 A título de exemplo, colhe-se o disposto na legislação pernambucana, Lei Esta-dual n.º 13.974/2009, art. 9º, §2º, segundo o qual o pagamento do imposto deve ocorrer antes: I – na hipótese de bens imóveis e direitos a eles relativos: “a) da apresentação do correspondente instrumento translativo, ao cartório de Registro de Imóveis, ainda que efetivada antes do término do respectivo prazo; b) de se efetivar o correspondente ato ou contrato, quando a transmissão ocorrer por instrumento público, no caso de doação; c) da apresentação do correspondente instrumento ao Departamento de Trânsito do Estado de Pernambuco – DETRAN-PE, em se tratando de doação de veículos”.

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O próprio ITBI, por exemplo, tributo irmão que incide sobre as transmissões onerosas de bens imóveis, é, igualmente, recolhido antes da ocorrência do fato gerador, como condição do próprio registro.

O imposto de renda devido ao final do ano-calendário (momento em que se aperfeiçoa o fato gerador complexo) é, em inúmeras situações, recolhido antecipadamente ao longo do período, cabendo ao contribuinte apenas o ressarcimento quando se verifica que o imposto recolhido por antecipação é maior do que o imposto efetivamente devido. O mesmo com o ICMS e tantos outros tributos. Não há mais a mínima discussão ju-rídica acerca da possibilidade de um tributo ser exigido antecipadamente à realização do fato gerador.

A lei pode, validamente, deslocar a exigibilidade do tributo (reco-lhimento) para um momento anterior (antecipação) ou posterior (diferi-mento) à ocorrência do fato gerador. Essa orientação já foi validada, inclu-sive, particularmente, em relação ao imposto de transmissão por doação:

TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ITCMD. DOAÇÃO. RE-PETIÇÃO DE INDÉBITO. PRESCRIÇÃO. TERMO INICIAL. DECISÃO JUDICIAL ANULATÓRIA DO ACORDO JUDICIAL QUE ENSEJOU O RECOLHIMENTO. ART. 165, II, DO CTN.1. [...]2. O fato gerador do imposto de transmissão (art. 35, I, do CTN) é a transferência da propriedade imobiliária, que so-mente se opera mediante o registro do negócio jurídico junto ao ofício competente.Nesse sentido, acerca do ITBI, já decidiu o STJ: REsp 771.781/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 29/06/07; AgRg no AgRg no REsp 764.808/MG, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 12/04/07.3. O recolhimento do ITCMD, via de regra, ocorre antes da rea-lização do fato gerador, porquanto o prévio pagamento do im-posto é, normalmente, exigido como condição para o registro da transmissão do domínio. Assim, no presente caso, não é pos-sível afirmar que o pagamento antecipado pelo contribuinte, ao tempo de seu recolhimento, foi indevido, porquanto realizado

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para satisfazer requisito indispensável para o cumprimento da promessa de doação declarada em acordo de separação judicial.4. Considerando, portanto, que é devido o recolhimento ante-cipado do ITCMD para fins de consecução do fato gerador, não se mostra possível a aplicação do art. 168, I, do CTN, porquanto esse dispositivo dispõe sobre o direito de ação para reaver tribu-to não devido.5. Deve, portanto, na espécie, ser prestigiado o entendimento ado-tado pelo acórdão a quo, no sentido de que o direito de ação para o contribuinte reaver a exação recolhida nasceu (actio nata) com o trânsito em julgado da decisão judicial do juízo de família (de anu-lação do acordo de promessa de doação) e o consequente registro imobiliário (em nome exclusivo da ex-esposa) que impediram a realização do negócio jurídico prometido, na medida em que, so-mente a partir desse momento restou configurado o indébito tribu-tário (lato sensu) pelo não aproveitamento do imposto recolhido.Aplica-se, in casu, por analogia, o disposto no art. 168, II, do CTN.6. Recurso especial não provido.(REsp 1236816/DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRI-MEIRA TURMA, julgado em 15/03/2012, DJe 22/03/2012)

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 458, 465, 128 E 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DE DIVERSOS DISPOSITIVOS LEGAIS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 282/STF. ITCD. DO-AÇÃO DE IMÓVEL. AÇÃO DE CONSIGNAÇÃO EM PAGA-MENTO. AFERIÇÃO DO MOMENTO DA COBRANÇA DO IMPOSTO. REVOLVIMENTO DE LEGISLAÇÃO LOCAL. IM-POSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 280/STF. TER-MO A QUO DO FATO GERADOR. ART. 116 DO CTN. POSSIBI-LIDADE DE DISPOSIÇÃO DE LEI EM CONTRÁRIO.1. A presente demanda originou-se em ação de consignação pro-posta pelo ora recorrente com o fim de consignar judicialmente o valor do Imposto Sobre Transmissão Causa Mortis e Doação inci-dente sobre doação de imóvel. O ora recorrente consignou o valor

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do tributo em questão por entender que o fato gerador do mesmo não ocorria com a assinatura da escritura pública, mas sim com a transcrição no registro da doação no Cartório de Registro de Imó-veis competente.2. [...]3. [...]4. [...]5. As hipóteses previstas no art. 116 do CTN, com relação ao termo a quo do fato gerador, podem ser alteradas por lei em contrário, consoante o próprio caput, do referido dispositivo.6. A análise da Lei n. 8.821/89 do Estado do Rio Grande do Sul, bem como do citado regulamento, para se aferir, como pretende o recorrente, se o ITCD incide quando da transcrição da escri-tura pública no registro do imóvel ou se incide antes do referido registro, implicaria o revolvimento de legislação local, procedi-mento que não se coaduna com a competência constitucional-mente outorgada a esta Corte. É de aplicar, no particular, o Enun-ciado Sumular n. 280 do Supremo Tribunal Federal.7. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido.(REsp 771.873/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/10/2009, DJe 04/11/2009)

É nesse sentido, aliás, que devem ser lidos os dispositivos legais es-taduais que determinam o recolhimento do imposto de transmissão nas doações relativas à partilha de bens com excesso de meação ou quinhão. O fato gerador ocorre com a transmissão do bem, mas se considera exigível, por antecipação, na data mesmo da sentença de homologação da partilha.

Isso não autoriza que o fato gerador do tributo seja identificado com a sentença que homologa a partilha ou com o contrato de doação. Há que se examinar, no caso concreto, qual a regra jurídica aplicável para se considerar transmitida a propriedade do bem, o que, como se colocou, varia a depender de se tratar de bem móvel ou imóvel.

A generalização encontrada em muitos precedentes judiciais, iden-tificando a materialidade do tributo à doação, é uma leitura equivocada e divorciada da Constituição Federal e do CTN. É importante reiterar: o fato

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gerador do tributo é e sempre foi a transmissão, cujo conceito deve ser bus-cado no âmbito do direito privado, como se viu. Nessa ordem de ideias, a legislação estadual, ainda que preveja antecipação do pagamento, não altera a materialidade do tributo “transmissão”, e nem poderia fazê-lo, porque se trata de expressão empregada pela Constituição para definir competência tributária (art. 110, do CTN). Eventual antecipação do recolhimento do tributo modifica, isto sim, apenas e exclusivamente, aspectos de sua exigi-bilidade, a saber, o momento em que deve ser realizado o seu recolhimento.

Não se pode confundir institutos absolutamente distintos: trans-missão, doação e título translativo, por um lado; ocorrência do fato gera-dor e exigibilidade, por outro. Nem faz qualquer sentido atribuir ao ITBI um tratamento diferenciado do ITCD, tendo em vista a raiz histórica e a matriz tributária de que foram decotados.

Em resumo, existem eventos que apenas aperfeiçoam a doação; existem documentos que formalizam o título translativo e, no entanto, no núcleo factual do ITCD seu aspecto temporal não é nem uma coisa nem outra, mas, sim, a efetiva transmissão da propriedade, o que, tratando-se de bens imóveis, somente se dá pelo registro do título translativo no Registro de Imóveis. Enquanto não seja transmitida a propriedade dos imóveis pelo registro, não se pode considerar ocorrido o fato gerador do tributo, e, então, não há que se falar em início do prazo decadencial para efetuar o lançamento.

E, finalmente, embora inocorrente o fato gerador do tributo, é ele, com efeito, exigível em antecipação, por força expressa da legislação apli-cável, sendo essa técnica arrecadatória (modificação do prazo de recolhi-mento) perfeitamente legítima e constitucional.

4. Da análise crítica dos precedentes do STJ

Muitos Tribunais Estaduais, conforme já citado, vêm reproduzindo em seus acórdãos trecho da ementa do AgRg no AREsp 243664/RS:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO. RECURSO ESPECIAL. SUPOSTA OFENSA AO ART. 535 DO CPC. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. TRIBUTÁRIO. IM-

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POSTO DE TRANSMISSÃO CAUSA MORTIS E DOAÇÃO, DE QUAISQUER BENS OU DIREITOS. ALEGAÇÃO DE DECA-DÊNCIA E PRESCRIÇÃO. QUESTÃO ATRELADA AO REEXA-ME DE MATÉRIA DE FATO. ÓBICE DA SÚMULA 7/STJ.1. No que se refere à suposta ofensa ao art. 535 do CPC, mostra-se deficiente a fundamentação recursal. Isso porque nem sequer fo-ram apresentados embargos de declaração em face do acórdão que negou provimento ao agravo regimental. Aplica-se, por analogia, o óbice contido na Súmula 284/STF.2. A comunicação do fato gerador (doação) ao Fisco não tem o condão de afastar a decadência, pois “a circunstância de o fato gerador ser ou não do conhecimento da Administração Tribu-tária não foi erigida como marco inicial do prazo decadencial, nos termos do que preceitua o Código Tributário Nacional, não cabendo ao intérprete assim estabelecer” (AgRg no REsp 577.899/PR, 2ª Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 21.5.2008; REsp 1.252.076/MG, 2ª Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe de 11.10.2012). Contudo, no caso concreto, o Tribunal de origem entendeu que nem sequer houve comprovação da doação.3. Nesse contexto, para se adotar qualquer conclusão em sentido contrário ao que ficou expressamente consignado no acórdão ata-cado e se reconhecer comprovada a doação, é necessário o reexame de matéria de fato, o que é inviável em sede de recurso especial, tendo em vista o disposto na Súmula 7/STJ.4. Agravo regimental não provido.(AgRg no AREsp 243.664/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/11/2012, DJe 21/11/2012)

A partir da leitura isolada da ementa, os tribunais vêm concluindo, em casos concretos, que o aspecto relevante para definir o momento em que foi realizado o fato imponível do ITCD é a doação, fixando a doação como marco decadencial, inclusive, para as hipóteses de transmissão bens imóveis.

Além das considerações já feitas acerca do equívoco dessa interpre-tação, o fato é que a reprodução irrefletida da ementa transcrita desconsi-

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dera o próprio contexto em que foi produzida. Aliás, o acórdão lavrado no julgamento do AgRg no AREsp 243.664/RS, com o devido respeito, é, em si, também uma repetição pouco criteriosa dos precedentes nele invocados.

Pois bem. O AgRG no AREsp 243.664/RS foi proferido à luz de um contexto fático bem peculiar e conclusões inusitadas. Trata-se de caso em que foi registrada alteração contratual relativa a quotas de sociedade limitada, sem que exista o respectivo instrumento particular de doação para subsidiar a informação lançada no contrato. Sendo assim, a partir do contexto fático nele examinado (transmissão por doação de bens móveis ou direitos), já é possível verificar o equívoco de sua utilização como pre-cedente nas causas relativas a transmissões por doação de bens imóveis. Mas não é só. Examinando-se, com acuidade, o inteiro teor do acórdão é possível apontar outros equívocos.

Pois bem. Naquele recurso, o Tribunal recorrido entendeu que não estando provada a doação “resta inaplicável ao caso os artigos 149, II e 173, I, ambos do CTN, uma vez que sequer passou a fluir o prazo deca-dencial para lançamento do ITCD, não havendo como se reconhecer a decadência, conforme pretendido”. Esse resultado foi mantido pelo STJ, e o acórdão proferido estabelece as seguintes premissas: (i) o fato gerador do imposto é a doação; (ii) a decadência não depende de conhecimento pelo fisco da ocorrência do fato gerador; (iii) o tribunal a quo entendeu não estar provada a doação, o que, portanto, não pode ser reexaminado na instância especial.

O primeiro aspecto a pontuar é a afirmação equivocada e não re-fletida de que o fato gerador do ITCD é a doação. Já se demonstrou, no item anterior, que, na verdade, o núcleo factual da hipótese de incidência do ITCD, que define o momento da ocorrência do fato gerador, é a “trans-missão” – naturalmente, qualificada pelos restritivos de estar conectada a uma doação ou sucessão por morte.

Mas, para além disso, o que toma relevo na análise do acórdão aqui examinado é que não há uma linha sequer em que se estabeleçam as ra-zões jurídicas para ter sido a doação considerada como marco da ocor-rência do fato gerador e, portanto, do início do prazo decadencial. Essa afirmação, colocada de maneira singela entre parêntesis, é assumida como

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verdadeira, sem qualquer fundamentação, senão a remissão a outros dois precedentes: AgRg no REsp 577899 / PR e REsp 1.252.076/MG.

Esses precedentes invocados, no entanto, não guardam qualquer similitude fática entre si ou com a situação tratada no AgRG no AREsp 243.664/RS, precedente ora examinado e que vem servindo de paradigma para inúmeras decisões em âmbito estadual. No AgRg no REsp 577899 /PR discutiu-se a decadência da cobrança relativa à transmissão causa mortis, em que há regra legal expressa de direito privado fixando a aber-tura da sucessão como momento da “transmissão” dos bens (art. 1.784, do Código Civil). Evidentemente, como já se expôs, as afirmações e con-clusões tecidas nesse cenário fático não podem ser transportadas para a situação diversa em que esteja sendo analisada a cobrança de imposto de transmissão na doação de bens.

No REsp 1.252.076/MG, por sua vez, embora tenha sido discutida decadência do direito de cobrar o imposto de transmissão na doação de bens, não é possível identificar qual a natureza dos bens, nem há discus-são acerca do momento em que se deve considerar ocorrido ou não o fato gerador, uma vez que foi adotada a premissa fática estabelecida pelo Tribunal de origem de que “os fatos geradores ocorreram em agosto/99, março/2000, novembro/2000 e janeiro/2001”.

Da análise desses dois precedentes, portanto, é possível verificar que o STJ não perquiriu, em nenhum deles, acerca da caracterização do aspecto temporal, do momento em que se considera ocorrido o fato gera-dor do ITCD, menos ainda relativamente à situação específica aqui trata-da da transmissão por doação de imóveis.

E isso também não foi feito no AgRG no AREsp 243.664/RS, de modo que é possível afirmar que inexiste jurisprudência consolidada so-bre o assunto e, portanto, é desprovida de densidade jurídica a multiplica-ção de acórdãos, no âmbito dos tribunais estaduais, que toma como ponto de partida a premissa equivocada de ser a doação o elemento temporal a definir o marco de decadência.

Isso seria suficiente para desautorizar a reprodução mecânica da ementa do AgRG no AREsp 243.664/RS, não fosse, ainda, a contradição flagrante contida em sua fundamentação. Ora, se a doação é o “fato gera-dor”, a materialidade, o núcleo factual da hipótese de incidência, então,

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por corolário lógico, jamais seria possível exigir o ITCD, sem a prova de doação. No AgRG no AREsp 243.664/RS, no entanto, o STJ, recusando-se reexaminar questões de fato, acabou por referendar a despropositada con-clusão do tribunal de origem de que, não estando provada a doação, “resta inaplicável ao caso os artigos 149, II e 173, I, ambos do CTN, uma vez que sequer passou a fluir o prazo decadencial para lançamento do ITCD, não havendo como se reconhecer a decadência, conforme pretendido”.

Na verdade, não há decadência porque não há fato gerador, e sem fato gerador não há exação. Como se vê, o STJ poderia e deveria ter refor-mado a decisão do tribunal local, e isso não implicaria qualquer reexame de fato. Não é possível manter a cobrança de um tributo quando se afirma expressamente que não está provado elemento essencial da hipótese de incidência – ainda que se pudesse considerar válida a eleição da “doação” como elemento temporal a definir o momento da ocorrência do fato ge-rador. Em resumo, no mínimo, o AgRG no AREsp 243.664/RS não é um bom julgado e não deveria, de qualquer maneira, servir de paradigma, precedente ou referência jurisprudencial.

O último aspecto a ser examinado refere-se à premissa de que a de-cadência, em direito tributário, flui independentemente do conhecimento por parte do Fisco. Como também já pré-estabelecido no primeiro item deste trabalho, realmente, não há como descontar do prazo decadencial o período de inércia, porque é justamente o escopo precípuo do instituto estabelecer um prazo para que a fazenda adote as medidas cabíveis para investigar e apurar a ocorrência do fato gerador.

Condicionar a decadência ao efetivo conhecimento por parte do fisco equivale a atribuir ao credor o controle do lustro decadencial. As-sim, o momento em que a Fazenda toma conhecimento do fato gerador é, sem sombra de dúvidas, irrelevante para a fruição da decadência. Todavia, como também já foi esclarecido, esse entendimento não é relevante para os propósitos da tese defendida neste trabalho.

A declaração realizada pelo contribuinte não é o marco inicial da decadência, como também não o é o momento em que foi formalizada a doação. A declaração ao fisco ocorre em momento anterior à efetiva ocor-rência do fato gerador e o pagamento é também antecipado.

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O que se deseja pontuar neste trabalho é que, em se tratando de doação de bens imóveis, ela também independe do momento em que foi formalizada a doação, porque o núcleo factual, o momento da ocorrência do fato gerador do imposto é a efetiva transmissão do bem, pelo registro imobiliário do título translativo, seja ele contrato, ato unilateral de vonta-de ou sentença de partilha judicial pela dissolução da sociedade conjugal ou mesmo liquidação de sociedade empresária.

Assim, é possível concluir que os precedentes que vêm sendo invo-cados e reproduzidos em âmbito estadual não são pertinentes nem rele-vantes quando se trata de estabelecer o marco decadencial para o lança-mento de imposto de transmissão na doação de bens imóveis.

7. Conclusão O prazo decadencial para lançamento do ITCD relativo à doa-

ção aperfeiçoa-se com a transferência da propriedade, o que, no caso de bens imóveis, somente ocorre pelo registro público imobiliário do título translativo.

É insuficiente a existência de instrumento particular ou carta de sentença não averbados no Registro de Imóveis, tendo em vista que a do-ação ou a existência de título aquisitivo não é suficiente para considerar materializado o fato gerador. Os precedentes firmados pelo STJ não exa-minam o tema e, portanto, não podem ser tomados como paradigma.

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Utilização de tratamento jurídico diferenciado por Mi-croempresa e Empresa de Pequeno Porte de cujo capital

participe pessoa física inscrita como empresário, que tenha sócio participante do capital de outra pessoa jurí-dica ou que atue como seu administrador. Interpretação dos incisos III, IV e V do §4º do art. 3º da Lei Comple-mentar nº123/2006 e as consequências de sua violação

no âmbito de procedimentos licitatórios

Giovana Andréa Gomes Ferreira. 1

1 Especialista em Direito Processual Civil e em Direito Sanitário. Procuradora do Estado de Pernambuco.

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Palavras-chave: Lei Complementar nº123/2006. Microempresas. Empresas de Pequeno Porte. Sócios em comum. Tratamento Diferencia-do. Vedações. Licitações.

A fim de garantir isonomia material nos procedimentos de contra-tações públicas e em cumprimento ao disposto nos arts. 146, III, “d”, 170, IX e 179, da Constituição Federal (CF)2, foi editada a Lei Complementar (LC)nº123/2006, instituindo o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.

Dentre outras medidas, o Estatuto estabeleceu um regime tributá-rio diferenciado, simplificou o recolhimento de tributos (centralizando-o em documento de arrecadação único) e promoveu alteração nas licita-ções, prescrevendo benefícios em favor das micro e pequenas empresas3.

Comparativamente às iniciativas legislativas pretéritas de incen-tivo às empresas de menor porte, uma das principais inovações da LC nº123/2006 foi a previsão de tratamento diferenciado em sede de licita-ções públicas. Historiando a sucessão de estatutos relacionados ao tema,

2 Art. 146 da CF: Cabe à lei complementar: III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: […] d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […] IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municí-pios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias,previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.3 GUIMARÃES, Edgar. Licitações e contratações diferenciadas à luz da LC nº 123/06 com as alterações da LC 174/14. In:PONTES FILHO, Valmir; MOTTA, Fabrício; GABARDO, Emerson (Coord.).Administração Pública: desafios para a transparência, probidade e desenvolvimento. XXIX Congresso Brasileiro de Direito Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 99

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Ronny Charles Lopes de Torres4 cita as Leisnº7.256/1984, nº8.864/1994 e nº9.841/1999, que estabeleciam normas gerais para microempresas. Des-taca, contudo, ter a Lei Complementarnº123/2006 inovado, ao regrar ex-pressamente sobre tratamento diferenciado no âmbito das licitações pú-blicas, criando dispositivos de preferência e a possibilidade de certames diferenciados, em detrimento das demais pessoas jurídicas.

Conquanto, em regra, o enquadramento como Microempresa (ME) e Empresa de Pequeno Porte (EPP) relacione-se primordialmente à receita bruta anual5, o §4º do art. 3º da LC nº123/2006 elenca uma plêiade de situações que, a despeito do preenchimento do requisito atinente ao faturamento, impedem a utilização do tratamento jurídico diferenciado no Estatuto, inverbis:

Art.3[…]§4ºNão poderá se beneficiar do tratamento jurídico diferenciado previsto nesta Lei Complementar, incluído o regime de que trata oart. 12 desta Lei Complementar, para nenhum efeito legal, a pes-soa jurídica:I – de cujo capital participe outra pessoa jurídica;II – que seja filial, sucursal, agência ou representação, no País, de pessoa jurídica com sede no exterior;III – de cujo capital participe pessoa física que seja inscrita como empresário ou seja sócia de outra empresa que receba tratamento jurídico diferenciado nos termos desta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II docaputdeste artigo;IV – cujo titular ou sócio participe com mais de 10% (dez por cen-to) do capital de outra empresa não beneficiada por esta Lei Com-

4 TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. Salvador: Jus Podivm, 2014, p. 9145 Valores máximos fixados, respectivamente, em R$ 360.000,00 e R$ 4.800.000,00, vigentes a partir de 01/01/2018 (incisos I e II do caput do art. 3º da LC 123/06, com a re-dação dada pela LC 155/2016)

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plementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II docaputdeste artigo;V – cujo sócio ou titular seja administrador ou equiparado de outra pessoa jurídica com fins lucrativos, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II docaputdeste artigo;VI – constituída sob a forma de cooperativas, salvo as de consumo;VII – que participe do capital de outra pessoa jurídica;VIII – que exerça atividade de banco comercial, de investimentos e de desenvolvimento, de caixa econômica, de sociedade de crédito, financiamento e investimento ou de crédito imobiliário, de corre-tora ou de distribuidora de títulos, valores mobiliários e câmbio, de empresa de arrendamento mercantil, de seguros privados e de capitalização ou de previdência complementar;IX – resultante ou remanescente de cisão ou qualquer outra forma de desmembramento de pessoa jurídica que tenha ocorrido em um dos 5 (cinco) anos-calendário anteriores;X – constituída sob a forma de sociedade por ações.XI – cujos titulares ou sócios guardem, cumulativamente, com o contratante do serviço, relação de pessoalidade, subordinação e habitualidade.

Das situações elencadas no §4º do art. 3º da LC Nº123/2006, me-recem destaque o disposto nos incisos III, IV6 e V, que vedam o benefício do tratamento diferenciado às pessoas jurídicas,respectivamente:i) de cujo capital participe pessoa física que seja inscrita como empresário ou que seja sócia de outra empresa que receba tratamento jurídico diferenciado, des-de que a receita bruta global ultrapasse R$ 4.800.000,00 (quatro milhões e

6 Nos termos do §5º do art. 3º da LC 123/06, o disposto nos incisos IV e VII do referido artigo não se aplica à participação no capital de cooperativas de crédito, bem como em centrais de compras, bolsas de subcontratação, no consórcio referido noart. 50 e na sociedade de propósito específico prevista noart. 56, e em associações assemelhadas, sociedades de interesse econômico, sociedades de garantia solidária e outros tipos de so-ciedade, que tenham como objetivo social a defesa exclusiva dos interesses econômicos das microempresas e empresas de pequeno porte.

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oitocentos mil reais)7; ii) cujo titular ou sócio participe com mais de 10% (dez por cento) do capital de outra empresa não beneficiada, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite anteriormente mencionado; iii) cujo sócio ou titular seja administrador ou equiparado de outra pessoa jurídica com fins lucrativos, desde que a receita bruta global igualmente ultrapasse o limite de que trata o inciso II docaputdo art. 3º da LC Nº123/2006.

Nessas hipóteses, presume-se descaracterizada a hipossuficiência eco-nômica autorizadora do discrímenentre empresas de maior e menor porte.

É que, na clássica lição de Celso Antônio Bandeira de Mello8,

Para que um discrímen legal seja convivente com a isonomia, im-pende que concorram quatro elementos:A) Que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo;B) Que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direi-to sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam carac-terísticas, traços, nelas residentes, diferenciados;C) Que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;D) Que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja per-tinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público”.

Nessa toada, não haveria razão, por exemplo, para distinção entre uma pessoa jurídica de maior porte e duas outras que, conquanto isolada-mente “menores”, sejam partes integrantes de um grande grupo empresarial.

7 Valor vigente a partir de 01/01/2018, inciso II do caput doart. 3º da LC 123/06, alterado pela LC 155/20168 BANDEIRA DE MELLO,Celso Antônio. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 41

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De pronto, cumpre destacar que os anteriormente transcritos inci-sos III, IV e V do §4º do art. 3º da Lei Complementar nº123/06 não sig-nificam um impedimento à participação de pessoas físicas inscritas como empresários em microempresas e empresas de pequeno porte, nem ve-dação à sua constituição. Impede-se tão somente a fruição dos benefícios decorrentes dessa condição por MEs e EPPs cuja composição societária incida naqueles preceitos.

Com efeito9,

Em primeiro lugar, destaca-se que a Lei Complementar nº123/06 não traça nenhuma limitação ou restrição ao direito de se associar. Em verdade, a Lei não restringe a constituição de pessoas jurídicas, mas apenas impede a fruição de seus benefícios e privilégios por algumas pessoas.De acordo com o § 4º do art. 3º da Lei Complementar nº123/06, ‘não se inclui no regimediferenciadoe favorecido previsto nesta Lei Complementar, para nenhum efeito legal, apessoajurídica’ que in-cidir em alguma das situações descritas em seus incisos.Uma das situações que exclui apessoajurídicado regime jurídico previsto na Lei Complementar nº123/06, ocorre quando no seu quadro societário se verificar a participação de pessoafísica que seja inscrita como empresário ou seja sócia deoutraempresaque recebatratamentojurídicodiferenciadonos termos desta Lei Com-plementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II docaputdeste artigo (inc. III).A regra se forma no sentido de que, se uma mesmapessoafísica for sócia de mais de umapessoajurídicaapta a receber otratamentodi-ferenciadoda Lei Complementar nº123/06, a concessão dessetra-

9 PERGUNTAS E RESPOSTAS. Microempresas: Há alguma limitação ao nú-mero de empresas enquadradas como microempresas ou empresas depequenoporte, que uma mesmapessoafísica possa ser sócia, para efeito de fruição dos benefícios em licita-ções? Curitiba: Zênite, 716/173/JUL/2008. Disponível em:<www.zenite.com.br>. Acesso em:xxxxx

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tamentonão será conferida se a receita bruta global ultrapassar o limite de R$ 2.400.000,00. Se o somatório da receita bruta dessas empresas ultrapassar esse limite, então, nenhuma das empresas re-ceberá otratamentodiferenciado, ainda que individualmente consi-deradas fossem aptas para tanto.Outrasituação a impedir a concessão dotratamentodiferenciadose forma quando o quadro societário da pequenaempresafor formado porsócioque participe com mais de10% do capital deoutraempre-sanão beneficiada pela Lei Complementar e cuja receita bruta global ultrapassa o limite de R$ 2.400.000,0010. Novamente, se o somatório da receita bruta das empresas for maior do que o limite legal, então, a pequenaempresanão receberá otratamentodiferenciado.Dessa forma, pode-se concluir pela inexistência de limitação ao número de empresas enquadradas como microempresas ou em-presas depequenoporte, em que uma mesmapessoafísica possa ser sócia. A limitação para a fruição dos benefícios previstos pela Lei Complementar nº123/06 em licitações não se dá em razão do nú-mero de empresas em que apessoafísica é sócia, mas sim de outras condicionantes eleitas pela Lei, a exemplo das citadas acima.

Por outro lado, dúvidas poderão surgir quanto à forma de apuração da receita global para os fins do dispositivo nos dispositivos legais anterior-mente citados: se o somatório das receitas brutas das empresascom sócio em comum ou a receita de cada empresa individualmente considerada.

Nesse ponto, o vocábulo global é utilizado em apenas três passa-gens da LC Nº123/2006 – justamente os incisos III, IV e V do §4º do art. 3º – e, nos três casos, como complemento para a expressão receita bruta. Desse modo e seguindo o brocardo de que a lei não contém palavras inúteis, é de se concluir que o vocábulo global–aqui significando “con-siderado em bloco, computado ou avaliado em conjunto”11ou “conside-

10 Equivalentes, atualmente, aR$ 4.800.000,0011 GLOBAL. In: DICIO, DicionárioOnline de Português. Porto: 7Graus, 2018. Dis-ponível em: <https://www.dicio.com.br/global/>.Acesso em: 18 out. 2018.

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rado por inteiro”12 – refere-se ao somatório das receitas brutas auferidas conjuntamente pelas empresa com sócio em comum e não às receitas individuais de cada empresa.

A conclusão acima resulta não apenas da carga semântica do vocá-bulo global, mas da teleologia das vedações legais, que buscam bloquear tentativas de fracionamento de uma unidade produtiva de maior porte em pessoas jurídicas de porte menor para se beneficiar de tratamento diferen-ciado a que não faria jus.

A teleologia dos incisos III,IV e V do §4º do art. 3º da LC nº 123/06 foi bem captada pelo Min. Benjamin Zymler no seguinte excerto do voto condutor do Acórdão TCU nº2.978/2013 – Plenário:Dessa norma, extrai-se o claro intuito de evitar que empresas não enquadráveis nos critérios da lei complementar aufiram seus bene-fícios de forma indireta. Em outras palavras, busca-se assegurar que os incentivos previstos nos arts. 170, inciso IX, e 179 da Constituição Federal cumpram seus objetivos de estimular o empreendedorismo ao se propiciar melhores condições para as sociedades empresárias de menor porte. Por certo, haveria o desvirtuamento dos incenti-vos previstos na Constituição Federal caso essas empresas de menor porte estivessem coligadas com empresas de maior porte, pois não haveria que se falar na fragilidade econômica dessa primeira empre-sa a justificar o usufruto de regime jurídico diferenciado.

Incorrendo numa das vedações do §4º do art. 3º da LC nº123/2006, a microempresa ou empresa de pequeno porteserá excluída do tratamento jurídico diferenciado previsto na citada Lei Complementar e do Simples Nacional a partir do mês seguinte ao que incorrida a situação impeditiva. E, nessas condições, não poderá usufruir dos benefícios relacionados às licitações e contratos administrativos previstos na lei, tais como a possi-bilidade de apresentação de lance vencedor em situação de empate ficto,

12 MICHAELIS. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhora-mentos, 2015

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assim como o diferimento da comprovação da regularidade fiscal e a par-ticipação em licitações exclusivas ou nas cotas reservadas.

Em relação à exclusão do Simples Nacional, seu controle é de com-petência da Receita Federal do Brasil, o que não exclui o poder-dever das demais autoridades administrativas de, em obediência aos princípios da legalidade, da moralidade e da isonomia, coibir o uso indevido do regime tributário para obtenção de vantagem competitiva abusiva em sede de li-citações e contratos administrativos.

Assim, estando uma microempresa ou empresa de pequeno porte irregularmente enquadrada no Simples, além de instaurar processo ad-ministrativo para eventual imputação de penalidades, a Administração deve comunicar o fato à Receita Federal, para que a pessoa jurídica seja excluída do regime simplificado de tributação, sem prejuízo da obrigação de manutenção do valor global da proposta apresentada no procedimento licitatório, adequando as planilhas de custos ao regime tributário comum. Esse dever de manter o valor global da proposta, ajustando as planilhas de custos e assumindo o ônus do enquadramento irregular no Simples, é co-rolário da proibição de valer-se a parte da própria torpeza e do princípio da manutenção da proposta mais vantajosa para a Administração.

Caso, além de fazer uso do regime tributário simplificado, a licitan-te enquadrada numa das vedações legais utilizeindevidamente na licitação o tratamento jurídico diferenciado previsto na LC nº 123/06, a Adminis-tração, sem prejuízo das providências indicadas no parágrafo anterior – inclusive a instauração de procedimento para aplicação de penalidades e a comunicação dos fatos ao Ministério Público – deverá adotar as medidas necessárias ao desfazimento do ato que tenha declarado a empresa habili-tada e/ou vencedora do certame. Demais disso, deve a autoridade compe-tente, motivadamente, tomar a medida mais adequada à salvaguarda do interesse público no caso concreto –fazer a licitação retornar ao estágio anterior ao momento em que usufruído indevidamente benefício próprio de ME/EPP; anular/revogar a licitação.

Quanto ao poder-dever de instauração de processo para aplicação de penalidades, impende pontuar que a utilização indevida da condição de ME ou EPP para obtenção de tratamento favorecido constitui fraude à licitação, conforme jurisprudência a seguir colacionada:

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STJ – ROMS 54.262. Relator: Herman Benjamin. Julgamento: 05/09/2017

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL.UTILIZAÇÃOINDEVIDADA CONDIÇÃO DE EPP PARA OBTENÇÃO DE TRATAMENTO FAVORECIDO NA LICITAÇÃO.

1. Na origem, Mandado de Segurança contra ato do Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, em que se objetiva afastar a aplicação da penalidade de suspensão temporária de participação em licitação e contratação com a Admi-nistração Pública pelo prazo de 1 (um) ano, além de multa no valor de R$ 6.000,00 (seis mil reais), devido a suposta fraude em pregão eletrônico realizado pelo MPE/MG, consistente na apresentação de declaração afirmando que cumpria os requisitos legais para sua qua-lificação comoMicroempresaou Empresa de Pequeno Porte.2. Ao efetuar declaração falsa sobre o atendimento às condições para usufruir dosbenefíciosprevistos na Lei Complementar 123?2006, a impetrante passou a usufruir de uma posição jurídica mais vantajosa em relação aos demais licitantes, o que fere oprincípio constitucional da isonomiae o bem jurídico protegido pelos arts. 170, IX, e 179 da Constituição e pela Lei Complementar nº 123/2006.3. A fraude à licitação apontada no acórdão recorrido dá ensejo ao chamado danoin reipsa. Nesse sentido: REsp 1.376.524/RJ, Rel. Mi-nistro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 9/9/2014; REsp 1.280.321-MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 9/3/2012; REsp 1.190.189/SP, Rel. Ministro Mauro Cam-pbell Marques, Segunda Turma, DJe 10/9/2010, e REsp 1.357.838/GO, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 25/9/2014.4. Mesmo que assim não fosse, a defesa trazida nos autos demanda dilação probatória, o que não se admite em Mandado de Segurança.5. Recurso Ordinário não provido.

TCU – Acórdão 1.825/2013 – Plenário. Relator: Raimundo Car-reiro. Julgamento: 17/07/2013

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EMENTA: Representação. Irregularidade no enquadramento de empresa na condição de empresa de pequeno porte, nos termos da Lei Complementar nº123/2006. Conhecimento. Procedência. Declaração de inidoneidade. Apensamento.

Voto do Relator: “[…] 2.Examina-se, nesta oportunidade, os resul-tados de uma das fiscalizações por mim determinadas, nos autos do TC 023.692/2012-0, em face de proposta oferecida pela Secretaria Adjunta de Planejamento e Procedimentos (Adplan) que tinha por objetivo apurar possíveis casos de benefício indevido de tratamento diferenciado, nas contratações públicas, prerrogativa exclusiva das microempresas (ME) e das empresas de pequeno porte (EPP), uma vez que desatendidos os requisitos estabelecidos na Lei Complemen-tar nº123/ 2006 (Estatuto Nacional daMicroempresae da Empresa de Pequeno Porte).3. Evidencia-se nos autos que a empresa[…] fa-turou no ano anterior à licitação ora em exame, montante superior a R$2.400.000,00, considerando apenas os recebimentos da admi-nistração pública federal, fato que comprova que a empresa deixou, no ano-calendário seguinte, de atender aos requisitos necessários ao usufruto debenefíciosprevistos na LC nº123/2006 para ME e EPP.4.A fim de garantir tratamento diferenciado nesses certames, a empresa em questão, além de não solicitar a sua reclassificação à Junta Comercial, emitiu declaração em que afirma que estariaefeti-vamente enquadrada como empresa de pequeno porte, de acordo com os elementos constantes destes autos. 5.Assim, inequivocamen-te comprovada fraude à licitação, impõe-se, nos termos do art. 46 da Lei nº8.443/92, declarar a inidoneidade da empresa[…].,para licitar e contratar com aAdministração Pública Federal pelo perí-odo de6 (seis) meses, por ter apresentado declarações inverídicas de que atendia às condições para usufruir dosbenefíciosprevistos na Lei Complementar nº123/2006.6.Pondero que essa dosimetria se-gue a mesma proporcionalidade adotada nos Acórdãos nº206/2013, nº3.074/2011, nº588/2011, nº2.846/2010 e nº3.228/2010, todos do Plenário deste Tribunal, que trataram de ilicitude da mesma nature-za.7.Anoto, ainda, que, em consonância com o decidido no Acórdão

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nº1.782/2012-Plenário, o termo inicial do prazo da sanção ora apli-cada à empresaBarreto Comércio e Serviços Ltda. deve ser contado a partir do registro da sanção no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores – Sicaf–, a cargo da Secretaria de Logística e Tec-nologia da Informação, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – SLTI/MPOG.8.Por fim, deixo de encaminhar cópia do caso em análise ao Ministério Público e à Receita Federal, por julgar ser oportuno e mais efetivo tecer determinação ao Comitê Gestor de Tributação das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (CGSN), do qual Receita Federal é componente, com fulcro no art. 3º, inciso XXIII do Decreto nº6.038, de 8/2/2007 e no art. 5º, alínea “c” do da Resolução CGSN nº1, de 19/3/2007, para que aprimore os procedimentos de fiscalização do cumprimento dasobrigações prin-cipais e acessórias relativas ao Simples Nacional, a fim de verificar a ocorrência das hipóteses previstas no art. 29 da Lei Complementar nº123/2006 […].

TCU – Acórdão 206/2013 – Plenário. Relator: Raimundo Carrei-ro. Julgamento: 20/02/2013

EMENTA: Representação. Participação indevida de empresa em licitações exclusivas para empresas de micro e pequeno porte, nos termos da LC Nº123/2006, sem que a licitante detivesse tais condi-ções. Prestação de declaração inverídica à administração contratante. Conhecimento da representação. Procedência. Declaração de inido-neidade para licitar com a administração federal. Representação ao Ministério Público Federal e à Receita Federal do Brasil. Ciência aos interessados. Apensamento.

VOTO […].4.Conforme anotado na peça inicial que deu origem a esta Representação, a análise dos dados de pregões eletrônicos realizados no período de 2007 a 2012 e registrados no SIASG resultou em indícios de que 4.819 (quatro mil oitocentos e deze-nove) processos licitatórios com tratamento diferenciado a mi-croempresas e empresas de pequeno porte, participaram342 em-

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presasque haviam faturado, no exercício anterior ao do certame, valores superiores a R$ 2.400.000,00 (inciso II do art. 3° da Lei, vigente até 31/12/2011).5.Trata-se de estimativa conservadora, porquanto, segundo a unidade técnica deste Tribunal respon-sável pelas apurações iniciais, os “valores de faturamento foram apurados considerando-se somente a soma das Ordens Bancárias (OBs) recebidas pelas empresas, em decorrência do fornecimen-to de bens/serviços à administração pública federal, no exercício anterior ao da licitação (peça 1)”. Logo, “não foram considerados eventuais faturamentos decorrentes de fornecimentos a órgãos e entidades públicas estaduais e municipais, nem a pessoas físicas e jurídicas privadas.”[…] 10.No caso presente, apurou-se que a em-presa […] habilitou-se indevidamente como empresa de pequeno porte em três pregões conduzidos por unidades governamentais, a saber:- Pregão Eletrônico nº108/GIA-SJ/2010, conduzido pelo Grupamento de Infraestrutura e Apoio de São José dos Campos, em 2010;- Pregão Eletrônico nº47/EEAR/2010, realizado pela Es-cola de Especialistas de Aeronáutica, em 2010;- Pregão Eletrôni-co para Registro de Preços nº2/2011, promovido pelo Arsenal de Guerra de São Paulo, em 2011.11.Os três certames foram dirigidos exclusivamente para microempresas (ME) ou empresas de peque-no porte (EPP), nos termos da Lei Complementar 123/2006, que garante, sob certas condições, tratamento diferenciado e favorável às empresas assim classificadas, de acordo com seus respectivos faturamentos brutos anuais. Nos casos analisados, o limite para a classificação como EPP – categoria autodeclarada pela […]. – era, à época, de até R$ 2.400.000,00/ano, nos termos docaputc/c o § 9º do art. 3º da LC Nº123/2006 (limite posteriormente majorado pela LC 139/2011, após os pregões em tela).12.Conforme verificado no Relatório, a empresa […], devidamente instada a defender-se no processo, apresentou alegações que não lograram descaracterizar a irregularidade de sua conduta. Nesse passo, transcrevo, com pequenos ajustes de forma, algumas passagens relevantes da ins-trução final da Secex-SP que bem denotam a reprovabilidade da conduta da referida pessoa jurídica,verbis:22.[…] aplica-se, ao pre-

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sente caso, o entendimento constante no relatório que fundamenta oAcórdão nº1.782/2012-TCU-Plenário(proferido no processo de representação TC 012.545/2011-2 quando da apreciação de pedido de reexame interposto contra o Acórdão nº3.074/2011-TCU-Ple-nário), no sentido de que “a apresentação de declarações divergen-tes da realidade e a participação deliberada e vitória em certames exclusivos para microempresas e empresas de pequeno porte de-monstram conduta passível de apenação com a impossibilidade de licitar e contratar com a Administração por curto período”.[grifo nosso]13.À luz dessas considerações, que adoto como razões de decidir, concluo pela procedência da presente representação, bem como pela aplicação da sanção prevista no art. 46 da Lei nº8.443/92 à empresa […]. (CNPJ 04.624.123/0001-54), que, por esse funda-mento, deve ser declarada inidônea para participar de licitações na Administração Pública Federal pelo período de6(seis) meses. Pondero que essa dosimetria segue a mesma proporcionalidade adotada nos Acórdãos nº3.074/2011, nº588/2011, nº2.846/2010 e nº3.228/2010, todos do Plenário deste Tribunal, que trataram de ilicitude da mesma natureza.14.Acolho também, com ajustes de forma, as demais providências propostas pela unidade técnica, no sentido representar os fatos apurados neste processo ao Ministério Público Federal e à Receita Federal do Brasil, nos termos do art. 71, inciso XI, da Constituição Federal, e de apensar este processo ao TC 023.692/2012-0 (gerador da presente representação), após o trânsito em julgado do acórdão ora proposto (cf. item “d” do des-pacho à peça 1).15.Por fim, anoto que, em consonância com o deci-dido no Acórdão nº 1.782/2012-Plenário, o termo inicial do prazo da sanção ora aplicada à empresa […] deve ser contado a partir do registro da sanção no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores – Sicaf–, a cargo da Secretaria de Logística e Tecno-logia da Informação, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – SLTI/MPOG.

Acórdão 272/2014 – TCU – Plenário. Relator: Min. Benjamin Zymler. Julgamento: 12/02/2014.

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EMENTA: Pedido de reexame em representação. Utilização in-devida do tratamento diferenciado, nas contratações públicas, concedido exclusivamente a microempresas e empresas de pe-queno porte. Inidoneidade de licitante. Conhecimento. Improce-dência dos argumentos. Negativa de provimento.

VOTO.2. Trata-se, originariamente, de representação formu-lada pela Secretaria Adjunta de Planejamento e Procedimentos (Adplan) noticiando possíveis casos deutilizaçãoindevida, em contratações públicas, do tratamento diferenciado concedido ex-clusivamente a microempresas (ME) e empresas de pequeno porte (EPP) tendo em vista a inexistência dos pressupostos fixados pela Lei Complementar 123/2006 (Estatuto Nacional daMicroempre-sae da Empresa de Pequeno Porte).3.Os trabalhos iniciais foram realizados no bojo do TC 023.692/2012-0 e resultaram na instau-ração de processos apartados para cada empresa envolvida.4. No feito ora sob exame, apurou-se a participaçãoindevidada empresa […]., na condição demicroempresaou empresa de pequeno porte, em diversos pregões durante o ano de 2010 sem que ela possuísse os requisitos legais para tanto. […]5. Desse modo, por intermédio do Acórdão 1.906/2013-Plenário, esta Corte, com fulcro no art. 46 da Lei 8.443/1992, declarou a empresa inidônea para participar de licitação na Administração Pública Federal pelo período de seis meses.[…] 14.Consoante transcrito no relatório precedente, are-corrente fraudou procedimentos licitatórios e frustrou os objetivos da Lei Complementar 123/2006 e do Estatuto das Licitações ao se utilizar de falsa declaração, participar e vencer pregões exclusivos para micro e pequenos empreendedores.[…]Resta evidente, pois, a intenção da empresa de fraudar o procedimento licitatório. A apli-cação da penalidade por este Tribunal é uma medida que visa a in-fluenciar e corrigir conduta ilegal da empresa de usufruir indevida-mente dosbenefíciosdo Simples Nacional enquanto fosse possível.

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As penalidades decorrentes da utilização indevida, em sede de lici-tação pública, do tratamento diferenciado previsto na LC nº123/2006po-derão, inclusive, ser estendidas às demais empresas do grupo econômico envolvido, desde que caracterizada a existência de conluio para frustrar o caráter competitivo da licitação e a principiologia do tratamento favoreci-do às microempresas e empresas de pequeno porte.

Acerca da aplicação de penalidades a empresas formal ou informal-mente coligadas, na hipótese de constituição de ME/EPP para que empre-sa de maior porte usufrua indireta e indevidamente dos benefícios da LC Nº123/2006, colhe-se o seguinte precedente do TCU:

Acórdão 2.978/2013 – Plenário. Relator: BenjaminZymler.

EMENTA: REPRESENTAÇÃO. PREGÃO. PARTICIPAÇÃO DE EMPRESAS COLIGADAS. CONLUIO.AUSÊNCIA DE PREEN-CHIMENTO DOS REQUISITOS PREVISTOS NA LEI COM-PLEMENTAR 123/2006 PARA FINS DE CONCESSÃO DE TRATAMENTO DIFERENCIADO. DECLARAÇÃO DE INIDO-NEIDADE.

VOTO: […] 3.As sociedades empresariais foram instadas a se mani-festar acerca das seguintes ocorrências:a) constatação de coligação entre as empresas[…]. e […] em face das vinculações econômicas e administrativas descritas abaixo, indicando que o enquadramen-to da […] como empresa de pequeno porte se fez mediante burla aos requisitos legais previstos na Lei Complementar 123/2006, art. 3º, §4º; […] b) cometimento de fraude ao Pregão Eletrônico para Registro de Preços 017/2011 por meio dos lances de desempate efetuados na sessão pública do dia 24/11/2011, listados abaixo, pela […], fazendo uso indevido dos benefícios concedidos às empre-sas de pequeno porte (EPP) pela Lei Complementar 123/2006, arts. 44 e 45, em face da coligação existente com a empresa. […].14.Entretanto, o caso em tela diz respeito à suposta violação do disposto na Lei Complementar 123/2006, cujo art. 3º, §4º, es-tabelece, dentre outros critérios, que não poderá se beneficiar do

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tratamento jurídico diferenciado de que trata essa lei a pessoa ju-rídica: I – de cujo capital participe outra pessoa jurídica; […] III – de cujo capital participe pessoa física que seja inscrita como empresário ou seja sócia de outra empresa que receba tratamento jurídico diferenciado nos termos desta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo; IV – cujo titular ou sócio participe com mais de 10% (dez por cento) do capital de outra empresa não beneficiada por esta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste ar-tigo;V – cujo sócio ou titular seja administrador ou equiparado de outra pessoa jurídica com fins lucrativos, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II do caput deste artigo; […]VII – que participe do capital de outra pessoa jurídi-ca;[…]IX – resultante ou remanescente de cisão ou qualquer outra forma de desmembramento de pessoa jurídica que tenha ocorrido em um dos 5 (cinco) anos-calendário anteriores; 15.Dessa norma, extrai-se o claro intuito de evitar que empresas não enquadráveis nos critérios da lei complementar aufiram seus benefícios de forma indireta. Em outras palavras, busca-se assegurar que os incentivos previstos nos arts. 170, inciso IX, e 179 da Constituição Federal cumpram seus objetivos de estimular o empreendedorismo ao se propiciar melhores condições para as sociedades empresárias de menor porte. 16.Por certo, haveria o desvirtuamento dos incenti-vos previstos na Constituição Federal caso essas empresas de me-nor porte estivessem coligadas com empresas de maior porte, pois não haveria que se falar na fragilidade econômica dessa primeira empresa a justificar o usufruto de regime jurídico diferenciado. 17.Esse, a meu sentir, é o caso tratado nestes autos, pois a empresa de maior porte […]. – não caracterizada como microempresa ou empresa de pequeno porte – buscou usufruir de forma indireta dos benefícios da Lei Complementar 123/2006 por meio da atuação da empresa […]. 18.Não obsta essa conclusão o fato de a situação dessas empresas não se enquadrar diretamente nas vedações antes mencionadas, pois, diante do contexto probatório, resta permitida

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a conclusão de que houve a intenção de burlar o espírito da norma. Até porque, consoante observado pela unidade técnica, “nesses ca-sos, o primeiro cuidado tomado por quem frauda é atender aos requisitos legais. Logo, essas práticas ilícitas, regra geral, somente são constatadas através dos elementos fáticos a elas associadas.”19.Nesse sentido, são pertinentes as seguintes considerações constan-tes do voto condutor do Acórdão 2220/2013-Plenário: 10. Acredito que, ao analisar um contexto como esse, o julgador não pode e não deve restringir-se à literalidade da lei. Não há como afastar a aplicação dos princípios constitucionais da moralidade e da iso-nomia, diante da situação que permitiu a burla à vedação da LC nº123/2006, proporcionando, às duas fornecedoras, favorecimento indevido em relação às demais licitantes. 11. Não é razoável esperar que o texto normativo preveja absolutamente todas as situações fá-ticas, sendo indispensável ao julgador buscar o sentido da lei para que os objetivos desta sejam realmente alcançados. No caso em apreço, não se pode permitir que a transferência da sociedade a fi-lho menor possibilite à empresa esquivar-se da vedação criada pelo legislador. Portanto, considero caracterizada a fraude à licitação. 20.Entendo, pois, cabível a aplicação a essas empresas da pena de declaração de inidoneidade prevista no art. 46 da Lei 8.443/1992. Não afeta esse entendimento o fato de que as empresas não chega-ram a ser contratadas, pois segundo a jurisprudência desta Corte, trata-se de ilícito de caráter formal em que não se exige a ocor-rência de resultado (Acórdãos Plenário 2179/2010 e 2425/2012). 21.Assim, considerando que somente foi constatada a falha em um único certame e que as empresas não chegaram a se beneficiar do ilícito ante suas desclassificações da licitação, entendo pertinente que a declaração de inidoneidade seja pelo período de seis meses .

Assim, constatada, em sede de licitação, a utilização indevida de tratamento diferenciado, por violação a alguma vedação contidana LC Nº123/2006, deve a Administração: i) instaurar procedimento para even-tual aplicação de penalidades, que, a depender das circunstâncias de cada caso concreto, poderá se estender às empresas integrantes de um mesmo

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grupo;ii)comunicarofatoaoMinistérioPúblicoeàReceitaFederal;iii)pro-mover o desfazimento do ato que tenha declarado a empresa habilitada e/ou vencedora do certame; e iv) adotar todos os demais atos que se mostra-rem necessários à salvaguarda do interesse público, tais como promover o retorno da licitação ao estágio anterior e/ou revogar o certame.

A maior dificuldade, todavia, não reside na adoção das consequ-ências subsequentes à indevida utilização do tratamento diferenciado, mas na identificação dessa má utilização, diante da baixa integração en-tre os sistemas utilizados em licitações e as bases de dados das Juntas Comerciais, das constantes mudanças nas composições societárias de algumas empresas e do não raro registro de pessoas jurídicas em nome de interpostas pessoas.

Essa dificuldade de apuração da violação às vedações contidas no §4º do art. 3º da LC nº123/2006foi abordada por Fernanda Babini13, em artigo atinente às inconsistências do Estatuto, no qual defende que tais pontos devem ser objeto de “declaração de próprio punho” da empresa beneficiária:

Ou seja, considerando que a Lei menciona, textualmente, que será assegurada preferência de contratação, o administrador público deverá recobrir-se de cautela, para não suprimir ou oferecer tal preferência a quem tem, ou não, o direito. Por conseguinte, dese-jando ser justo, deverá analisar parte dos documentos habilitató-rios, terminada a fase de lances. É uma mini-fase de habilitação, transformada em momento de diligência. E essa verificação não é nada simples. Como se apuram, a título de exemplo, as vedações expressas nos incisos abaixo mencionados, que não por declaração de próprio punho?§4ºNão se inclui no regime diferenciado efavorecido previsto nes-ta Lei Complementar,para nenhum efeito legal,apessoajurídica:[…]III – de cujo capital participe pessoafísica que seja inscrita como

13 BABINI, Fernanda. A Lei Complementar nº 123/06, o Decreto nº 6.204/07 e suas inconsistências. Zênite,Curitiba, v. 14, n. 165, p. 1092–1096, nov., 2007.

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empresárioou seja sócia de outraempresa que receba tratamento-jurídico diferenciado nos termos desta Lei Complementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II docaputdeste artigo;IV – cujo titular ou sócioparticipe com mais de 10% (dez por cen-to) do capital de outraempresa não beneficiada por esta Lei Com-plementar, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II docaputdeste artigo;V–cujo sócioou titular seja administrador ou equiparado de outra pessoa jurídicacom fins lucrativos, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inciso II docaputdeste artigo;[…]VII – que participe do capital deoutra pessoa jurídica;Enfim, a Lei Complementar nº123/06 deveria ter devotado um cuidado maior em seus ditames, uma vez que cobra a atuação do administrador com ordens tão expressivas. Um regramento que se impõe de modo tão rigoroso, deve ser inequívoco, para que dele não se apresentem ambigüidades, nem ofereça dúvidas. (grifo nosso)

Para José Anacleto Abduch Santos14, a incidência de determinada ME ou EPP em uma das vedações legais deve ser objeto de impugnação por um dos demais licitantes, devendo ser observado o contraditório e a ampla defesa. Aduz o eminente autor que,

A princípio não parece que a discussão acerca da condição demi-croempresaou de empresa de pequeno porte dos licitantes possa alcançar o momento do certame licitatório. Trata-se de comprova-ção respeitante à qualificaçãojurídicaque, regra geral, não depen-derá de conduta ou de análise administrativa no curso da licitação. Assim, demonstrada a qualificaçãojurídicanecessária para obter os benefícios e preferências estabelecidas na lei, vale dizer, provada a condição demicroempresaou de empresa de pequeno porte quan-

14 SANTOS, José Anacleto Abduch.Licitações e o estatuto da microempresa e empresa de pequeno porte. Curitiba: Juruá, 2015. P. xx[inserir a página consultada].

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do da habilitaçãojurídica, deverá a Administração licitante direcio-nar sua conduta para dar ao detentor dessa condiçãojurídicaotrata-mentoprivilegiado legalmente previsto.Essa afirmação não equivale a dizer que tal condição não pode ser impugnada ou questionada no curso do certame. A documen-tação relativa à habilitaçãojurídicaconstitui provajuris tantumda condiçãojurídica.Não constituiria exagero supor que, em determinado certame, um licitante pode vir a impugnar a condição demicroempresaou de em-presa de pequeno porte do concorrente sob o argumento de perda dessa condição por fato superveniente. Por exemplo: o § 4º do art. 3º da lei complementar determina que não se inclui no regime diferen-ciado efavorecidoprevisto na lei, para nenhum efeito legal, apessoa-jurídicacujosócioou titular seja administrador ou equiparado deou-trapessoajurídicacom fins lucrativos, desde que a receita bruta global ultrapasse o limite de que trata o inc. II docaputdo artigo. Assim, se um dos sócios da empresa detentora da condiçãojurídicademicro-empresaou de empresa de pequeno porte passar a ser titular deou-trapessoajurídicanas condições legalmente vedadas, é de se cogitar a possibilidade de impugnação de sua participação no certame nas condições privilegiadas conferidas pela lei.Evidente que se pode argumentar que a perda da condição pri-vilegiada demanda contraditório e ampla defesa, e que, sem tais garantias, não se poderia retirar do licitante os direitos legalmen-te previstos. Porém, uma vez suscitada a questão, em sede de im-pugnação à habilitaçãojurídicade licitante que supostamente não mais detém as condições fixadas em lei para receber otratamen-toprivilegiado, competirá à Administração decidir de acordo com os princípios que regem a licitação, realizando ponderação de va-lor, para buscar a decisão que mais se coadune com as normas e princípios constitucionais.Em tese, portanto, entende-se possível a não aplicação dos benefícios legais em caso de comprovada perda superveniente, no curso da licitação, das condições jurídicas para usufruir as benesses legais.

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Na mesma linha, é o entendimento de Ricardo Alexandre Sam-paio15, para quem a declaração firmada pela microempresa ou empresa de pequeno porte, quanto ao respectivo enquadramento legal, admite prova em sentido contrário e pode ser objeto de recurso pelos demais licitantes. Nesse sentido:

Identificação da licitante como microempresa ou empresa de pequeno porteOutro fator relevante para o exercício da preferência, é a identifi-cação da licitante como sendo umamicroempresaou empresa de pequeno porte. O novo Estatuto Nacional da Microempresae da Empresa de Pequeno Porte define, em seu art. 3º, as pessoas enqua-dradas nessa condição:Art.3ºPara os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se mi-croempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresá-ria, a sociedade simples e oempresárioa que se refere o art. 966 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que:I – no caso das microempresas, oempresário, apessoajurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais);II – no caso das empresas de pequeno porte, oempresário, apes-soajurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatro-centos mil reais).Facilmente percebe-se a ausência de indicação legal acerca de crité-rio para identificação de umamicroempresaou empresa de pequeno porte, além da previsão contida no art. 3º e parágrafos. Disso surge dificuldade para o pregoeiro saber quais licitantes são verdadeira-

15 SAMPAIO, Ricardo Alexandre.A questão da preferência das micro e pequenas empresas no Pregão.Zênite,Curitiba: Zênite, v. 4, n. 157p. 269–282, mar. 2007.Disponível em<Inserir link específico ou deixar sem link>. Acesso em 19abr.2018.

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mente enquadradas como microempresas ou empresas de pequeno porte, portanto merecedoras dos benefícios e preferências estabele-cidas na Lei Complementar nº123/06 e quais não são.A prova de inscrição no Regime Especial Unificado de Arrecada-ção de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – Simples Nacional, não parece ser o único documento hábil a comprovar se a licitante está enquadrada nessa condição. Isso porque, toda licitante inscrita nesse regime, com certeza, serámicroempresaou empresa de pequeno porte, mas nem todamicroempresaou empresa de pequeno porte estará obri-gatoriamente inscrita nesse regime.(Vide Nota 8)Trata-se de uma faculdade e não obrigação, optar pelo recolhimento mensal, me-diante documento único de arrecadação de tributos.Na falta de um documento oficial que identifique, sem dúvida, qual licitante é umamicroempresaou empresa de pequeno porte, suge-re-se o edital disciplinar a forma de comprovação. De igual modo, sugere-se também a solicitação de uma declaração nesse sentido. Assim, a licitante enquadrada nessa condição deverá declará-la no momento de seu credenciamento no pregão. Isso permitirá ao pre-goeiro identificá-la como beneficiária detratamentodiferenciado, nos exatos limites da Lei Complementar nº 123/06.Essa forma de comprovação é, obviamente, relativa, pois admite prova em sentido contrário. Assim, se uma licitante resolver recor-rer de decisão do pregoeiro alegando que licitante recorrente fez falsa declaração, caberá à recorrente o ônus da prova. Se a licitante recorrente não produzir prova necessária para procedência de seu recurso, por força do princípio da legalidade e seus desdobramen-tos (verdade material e autotutela), entende-se que a Administra-ção deva diligenciar no sentido de apurar se a licitante recorrida efetivamente preenche os requisitos legais para receber otratamen-todispensado pela Lei Complementar nº123/06.

De fato, dada a ausência de ferramentas informatizadas para análise das composições societárias das empresas participantes de procedimentos licitatórios e eventuais grupos que a integram, a identificação de casos

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de fruição indevida do tratamento diferenciado termina por depender de denúncias de terceiros.

Urge, portanto, a modernização dos sistemas de processamento das licitações e sua integração com as bases de dados da Receita Federal e das Juntas Comerciais, sem olvidar da capacitação constante dos agentes pú-blicos que atuam na condução dos certames, dotando-os dos referenciais necessários para coibir, identificar e punir violações às vedações contidas no §4º do art. 3º da LC nº123/2006.

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Arbitragem em Conflitos que Envolvem o Estado: Análi-se Prática da Aplicação do Instituto no Brasil

Gisela Burle Cosentino1

1 Graduada em direito pela Universidade Católica de Pernambuco, tendo cursado parte da graduação na Università di Pisa. Membro do CAMARB Jovem. Membro da Asso-ciação Brasileira dos Estudantes de Arbitragem – ABEArb. Membro do INOVARB – AM-CHAM. Ex-Pesquisadora auxiliar do CNJ. Advogada. E-mail: [email protected].

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Resumo: A utilização da arbitragem nos conflitos que envolvem o Estado foi objeto de muitas discussões no Brasil. Antes mesmo da edição da Lei de Arbitragem, o Supremo Tribunal Federal já havia se posicionado quanto à possibilidade de utilização dessa forma extrajudicial de resolução de conflitos para dirimir controvérsias em que figuram como parte entes públicos, e, a partir daí, foram-se desenvolvendo a doutrina e a jurisprudên-cia pátria. Contudo, em que pese a pacificação da ideia geral de arbitragem como meio adequado de resolução de disputas inclusive para o Estado, este instituto não vem sendo razoavelmente utilizado pelos entes públicos.

Palavras-chave: Arbitragem – Meios Extrajudiciais de Resolução de Conflitos – Estado – Administração Pública – Administração Pública Consensual.

Sumário: 1. A Administração Pública contemporânea. 1.1. Fases históricas. 1.2. Administração Pública consensual. 2. Arbitragem como meio adequado de resolução de conflitos que envolvem o Estado. 2.1. Li-nhas gerais sobre arbitragem. 2.2. A arbitrabilidade nos conflitos em que figura como parte o Estado. 3. Arbitragem em conflitos que envolvem o Estado: análise prática da aplicação do instituto no Brasil. 3.1. Panorama teórico: pacificação da doutrina e jurisprudência. 3.2. Escassa utilização da arbitragem em conflitos que envolvem o Estado.

Introdução

A arbitragem foi instituída no ordenamento jurídico brasileiro no ano de 1996, através da Lei Federal n. º 9.307. No início, não se entendia que esse método de resolução de conflitos era facultado ao Estado, posto que, em seu primeiro artigo, a lei estabelece como arbitráveis apenas os conflitos de direito patrimonial disponível, o que, aparentemente, conflita com o princípio da indisponibilidade do interesse público.

A Lei Federal n. 13.129 de 2015 ultrapassou essa questão e eliminou qualquer dúvida sobre a arbitrabilidade em conflitos com o Estado. Some-se a isso a evolução do direito administrativo e da legislação no que tange à participação da sociedade na Administração Pública, agora consensual, o que serviu para propagar ainda mais o cabimento do instituto no meio público.

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Contudo, em que pese a consensualização do Estado, resta a incer-teza acerca da existência ou não de dissonância entre o nível de aceitação doutrinária e jurisprudencial e o nível de utilização do instituto da arbitra-gem nos conflitos envolvendo o Estado. A utilização da arbitragem pelos entes estatais, mesmo diante da referida evolução, ainda parece escassa.

1. Administração Pública consensual

O Estado Democrático de Direito, com sua legalidade e horizontali-dade, proporcionou a aproximação entre Administração Pública e adminis-trados, incentivando a tomada de decisões administrativas que mais se apro-ximam aos destinatários e propiciando maior participação dos cidadãos no exercício dos poderes da nação. Na prática, houve uma atualização da Admi-nistração Pública que passou a ser democrática, participativa e consensual.

Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, deve-se buscar o “esgotamento das alternativas consensuais antes de recorrer-se às impo-sitivas”.2 O rumo consensual é vantajoso à medida que:

É inegável que o consenso, como modo alternativo de ação estatal, representa para a Política e para o Direito uma benéfica renova-ção, pois, [...] contribui para aprimorar a governabilidade (eficiên-cia), propicia mais freios contra os abusos (ilegalidade), garante a atenção de todos os interesses (justiça), proporciona decisão mais sábia e prudente (legitimidade), evita os desvios morais (licitude), desenvolve a responsabilidade das pessoas (civismo) e torna os co-mandos estatais mais aceitáveis e facilmente obedecidos (ordem).3

2 NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Administração Pública Consensual. Car-ta Mensal, v. 42, n. 500. Rio de Janeiro: Confederação Nacional do Comércio, Conselho Técnico, 1996, p. 63-73.3 NETO, Diogo de Figueiredo Moreira. Algumas notas sobre o progresso da con-sensualidade. Novas mutações juspolíticas – Em memória de Eduardo G. de Enterría, jurista de dois mundos. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 176.

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No Brasil, a consensualização das relações com o Estado é cada vez mais expressiva.4 Um de seus exemplos é o Termo de Ajustamento de Conduta, que pode ser firmado, dentre outros casos, nas hipóteses de dano ou de iminência de dano ambiental, sendo medida aceita e apreciada pela sociedade: evita litígios e ineficiência na medida em que garante o interesse público da coletividade ao meio ambiente sadio.

A legislação pátria é permeada pela tendência consensual aqui de-fendida. A flexibilização de cláusulas contratuais exorbitantes pela Lei das Parcerias Público-privadas ou a repartição de riscos entre as partes, a pos-sibilidade de aplicação de penalidade também à Administração e hipóte-ses de inadimplência do Poder Público capazes de ensejar o acionamento de garantia5 são exemplos da busca pela horizontalidade na relação do Estado com a sociedade.

É levando em consideração esta tendência consensual da Adminis-tração Pública, respeitando-se a legalidade, a eficiência e o interesse pú-blico, que se entende pela possibilidade de submissão de litígios de direito patrimonial disponível contra o Estado à jurisdição arbitral.

2. Arbitragem como meio adequado de resolução de conflitos que envolvem o Estado

2.1. Linhas gerais sobre arbitragem

A arbitragem é um dos meios mais antigos de heterocomposição de conflitos. Conhecida desde o Império Romano e da Antiga Grécia, é procedimento privado pelo qual as partes elegem um terceiro, imparcial, para dirimir determinado conflito. Ao final do procedimento é elaborada uma sentença arbitral que, nos termos do artigo 515, inciso VII do Código de Processo Civil, é título executivo judicial.

4 BORGES, Alice Gozales. Considerações sobre o futuro das cláusulas exorbitan-tes nos contratos administrativos. Revista do Advogado: Contratos com o Poder Público, ano XXIX, n. 107, São Paulo: AASP, nov. 2009, p. 20.5 BORGES, op. cit., p. 16-24.

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É certo afirmar que a arbitragem tem natureza jurídica inicialmente contratual, à medida que é estabelecida por acordo entre as partes, assumin-do, adiante, caráter jurisdicional, vez que o árbitro é juiz privado, equipara-do ao juiz togado pelo artigo 18 do Código de Processo Civil, possuindo ca-pacidade e competência de dizer o direito no caso concreto que lhe é posto.

São muitas as vantagens atribuídas à arbitragem. O procedimento arbitral é, via de regra, mais rápido que o processo judicial e a decisão de mérito é mais especializada, em razão da possibilidade de escolha do jul-gador, o que implica, muitas vezes, a dispensa de perícia.

Em que pese a existência do instituto há séculos, ele só foi explicita-mente adotado no Brasil através da Lei Federal n. º 9.307/1996, tardando, contudo, a ser utilizado com maior frequência no país. Com nacionaliza-ção do instituto, os questionamentos a seu respeito não pararam de surgir. Os estudiosos buscavam entender melhor o procedimento, adequá-lo às normas pátrias e testar a sua viabilidade em solo tupiniquim.

Para identificar se um determinado conflito pode ser levado ou não à jurisdição privada do árbitro, deve-se levar em consideração dois pon-tos básicos de admissibilidade do procedimento arbitral: a arbitrabilidade objetiva e a arbitrabilidade subjetiva.

2.2. A arbitrabilidade nos conflitos em que figura como parte o Estado

2.2.1. Conceito de arbitrabilidade

A arbitrabilidade é a condição essencial conferida pelo ordenamen-to jurídico para que os conflitos sejam submetidos à arbitragem6 – é como um filtro que seleciona quem pode recorrer e o que pode ser discutido em um procedimento arbitral.

No Brasil, os critérios de arbitrabilidade são trazidos pela Lei Brasi-leira de Arbitragem, em seu artigo 1.º, que dispõe: “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Neste sentido, percebe-se que a arbitra-

6 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 133.

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bilidade possui dois aspectos: a arbitrabilidade subjetiva, ratione personae, que trata daqueles que podem se valer da arbitragem; e, de outra parte, a arbitrabilidade objetiva, ratione materiae, que estabelece quais matérias podem ser levadas ao juízo arbitral.

2.2.2. A arbitrabilidade subjetiva

É fácil perceber a existência da arbitrabilidade subjetiva nos confli-tos em que é parte o Estado. Os entes da Administração Pública direta e indireta possuem personalidade jurídica própria e, conforme estabelece o Código Civil brasileiro, podem exercer os atos da vida civil sem o auxílio de terceiros, sendo capazes, portanto, de contratar.

Entender pela não arbitrabilidade dos conflitos oriundos de atos negociais e de gestão do Estado seria quitar-lhe atributo inerente de sua personalidade jurídica: sua autonomia contratual. Nas palavras de Fran-cisco Mendes Pimentel:

Pode comprometer quem pode contratar. Ninguém nega que os Estados podem celebrar contratos. Ninguém duvida que essas convenções podem ser ajustadas entre essas pessoas jurídicas de direito público interno. Portanto – pelas regras de “nosso direito privado” pelas normas de nosso “processo civi” – podem os Esta-dos comprometer.7 [sic]

Questão mais difícil, contudo, é a verificação da arbitrabilida-de objetiva nesses conflitos.8 Ao mesmo tempo em que a Lei Federal n.º 9.307/1996 limita o uso da arbitragem para os casos que versem sobre direitos patrimoniais disponíveis, a própria Constituição Federal de 1988 traz o princípio da indisponibilidade do interesse público como conceito informador de toda a atuação da Administração Pública.

7 MENDES PIMENTEL, Francisco apud LEMES, Selma Ferreira. Arbitragem na Administração Pública. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 121-122.8 LEMES, op. cit., p. 124.

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É possível deixar-se levar, portanto, por esta falsa imagem de an-tagonismo entre o direito patrimonial e a indisponibilidade do interesse público. Contudo, tais ideias não são contrapostas e, para além disto, po-dem, inclusive, somar-se.

2.2.3. Arbitrabilidade objetiva e os enfoques do interesse público

2.2.3.1. Análise do interesse público Antes de partir para a análise da arbitrabilidade objetiva, impres-

cindível é a conceituação – ou, pelo menos, esclarecimento – de alguns termos inerentes ao estudo. Primeiramente, é preciso entender em que se caracteriza o direito patrimonial disponível. Este, pois, é todo aquele direito passível de valoração econômica e que pode ser exercido por seu titular de acordo com os institutos negociais.

O princípio da indisponibilidade do interesse público, por sua vez, é o interesse qualificado como próprio de toda a coletividade, sobre o qual seu órgão administrativo representante sequer possui disponibilida-de.99Ou seja, o princípio limita e pauta a atuação dos gestores públicos no sentido do alcance dos interesses sociais da coletividade, os quais são evidenciados no próprio interesse público e não podem ser dispensados livre e discricionariamente pelo Poder Público.

Ainda preliminarmente, é preciso entender em que consiste o pró-prio interesse público, trazido pela Constituição Federal de forma implícita. O seu artigo 1º, por exemplo, estabelece a necessidade de busca do interesse público pela Administração Pública, ao passo em que traz como fundamen-tos da República Federativa do Brasil a cidadania, a dignidade humana, a soberania, os valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo político. O artigo 3º, mais adiante, estabelece como objetivos a serem busca-dos pela nação o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, a re-dução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos.

9 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 76.

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Na tentativa de identificar o que representa o interesse público, parte da doutrina acredita ser possível a sua conceituação e o define de cinco formas diferentes: (i) uma soma de interesses privados, (ii) soma de certos interesses privados, (iii) interesse social, (iv) interesse coletivo, e (v) interesse difuso.10

Em sentido oposto, porém, está grande parte da doutrina, defen-dendo que o termo sequer pode ser conceituado.11 Nas palavras de Guil-lermo Andrés Muñoz:

Un poco con el interés público, pasa como con el amor: quién no se anima a decir que ha sentido que conoce lo que es el amor, que sus ve-nas han latido a través del amor, que el ritmo de su pulso se ha movido a través de esa cosa ancestral que es el amor? Sin embargo cuando al amor se lo quiere definir, es como si desapareciera, como si perdiera fuerzas, como si perdiera todo. Entonces, es mejor no definirlo.12 13

10 Estas diferentes conceituações são trazidas por Marçal Justen Filho (Conceito de interesse público e a “personalização” do direito administrativo. Revista Trimestral de Di-reito Público. São Paulo, n. 26, p. 115-136, 1999); Héctor Jorge Escola (El interés público como fundamento del derecho administrativo. Buenos Aires: Depalma, 1989, p. 242); Ali-ce Gonzalez Borges (Interesse Público: um conceito a determinar. Revista de Direito Ad-ministrativo, Rio de Janeiro, v. 205, p. 109-116, jul/set. 1996); Hidemberg Alves de Frota (O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado no direito positivo comparado: expressão do interesse geral da sociedade e da soberania popular. Revista de Direito Admi-nistrativo, Rio de Janeiro, v. 60, n. 239, p. 45/65, jan/mar. 2005, p. 47-54); José Luís Bolzan de Morais (Do direito social aos interesses transindividuais: o Estado e o direito na ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 137-138).11 Nesse sentido: VEDEL, Georges. Derecho Administrativo. Traducción de la 6ª edi-ción francesa por Juan Rincón Jurado. Madrid: Biblioteca Jurídica Aguilar, 1980; TRUCHET, Didier. Les fonctions de la notion d’intérêt général dans la jurisprudence du Conseil d’État. Paris: La librairie juridique de référence en ligne, 1977; NIETO, Alejandro García. La Adminis-tración sirve con objetividad los intereses generales. Estudios en homenaje a Eduardo García de Enterría, v. III. Madrid: Editorial Civitas, 1997, p. 2185; PAJERO, Luciano Alfonso. Interés público como criterio de control de la actividad administrativa, Biblioteca Digital del Banco Interamericano de Desarrollo (BID) (www.iadb.org/etica). apud MUÑOZ, Guillermo Andrés. Él interés público es como el amor. In: BACELLAR FILHO, Romeu Felipe; HACHEM, Daniel Wunder (Coords.). Direito administrativo e interesse público: estudos em homenagem ao Professor Celson Antônio Bandeira de Mello. Belo Horizonte: Fórum, 2010.12 MUÑOZ, op. cit., p. 21-22.13 Tradução livre: O interesse público se dá um pouco como o amor: quem não se

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A partir daí, advêm as inúmeras conjecturas que o interesse público assume atualmente: ora é apresentado pelo Estado, ora é defendido pelo próprio particular ou usufruidor do serviço público; ora defendendo os in-teresses sociais de uma determinada classe, ora resguardando os interesses sociais de outra classe. O que se conclui, portanto, é que, dada sua grande dimensão, o interesse público, muitas vezes, pode ser contraditório.

Ainda no tocante ao interesse público, cumpre analisar a diferencia-ção feita por Renato Alessi, através da teoria del doppio, entre os níveis de interesse público, em que é considerado: (a) primário, o interesse de toda a coletividade na persecução do bem comum, intransponível e oriundo do poder absoluto estatal; e (b) secundário, o interesse do Estado como pessoa jurídica, de cunho patrimonial, oriundo de um poder estatal secundário.14

A impressão errônea de contradição entre o direito patrimonial dis-ponível e a indisponibilidade do interesse público ocorre justamente em razão da confusão de termos e da mistura das acepções de Renato Alessi. Em que pese o interesse público tratar-se de vetor orientador da atuação administrativa, muitos, por confundirem o interesse público primário com o interesse público secundário, confundem também o princípio da indis-ponibilidade do interesse público com a conotação do vernáculo disponível.

Ao entender que disponível significa a livre e discricionária disposição de bens e utilizar esse conceito na interpretação do princípio da indisponibili-dade do interesse público, perverte-se o sentido do princípio e embaralha-se a arbitrabilidade objetiva dos procedimentos em que o Estado é parte.

Ora, dizer que determinado direito patrimonial do Estado é dis-ponível nada mais é do que dizer que o interesse público por trás dele é secundário, sendo aquele bem passível de valoração econômica e negocia-ção conforme os institutos do direito privado. Tal negociação configura-se, exatamente, no atendimento do interesse público, posto que a nego-

alegra em dizer que já sentiu e que conhece o que é o amor, que suas veias já bateram por causa do amor, que o ritmo de seu pulso já se moveu através desta coisa ancestral que é o amor? Contudo quando se quer definir o amor, este parece desaparecer, é como se perdes-se forças, como se perdesse tudo. Então, é melhor não o definir.14 ALESSI, Renato. Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano. Milano: Giuffrè, 1953, p. 147-182.

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ciação deve ser feita visando à consecução do interesse da coletividade, o interesse público.15 Nesse sentido, explica Marçal Justen Filho:

O argumento de que a arbitragem nos contratos administrativos é inadmissível porque o interesse público é indisponível conduz a um impasse insuperável. Se o interesse público é indisponível ao ponto de excluir a arbitragem, então seria indisponível igualmente para o efeito de produzir contratação administrativa. Assim como a Administração Pública não disporia de competência para criar a obrigação vinculante relativamente ao modo de composição do litígio, também não seria investida do poder para criar qualquer obrigação vinculante por meio contratual. Ou seja, seriam invá-lidas não apenas as cláusulas de arbitragem, mas também e igual-mente todos os contratos administrativos.16

Entende-se, portanto, que a análise do interesse público deve ser fei-ta caso a caso, posto que às vezes suas características principais podem se contradizer. Um exemplo nítido de tal antagonismo é o reequilíbrio econô-mico-financeiro que ocorre com frequência nos contratos administrativos: opõe-se a necessidade de continuidade do serviço público à proteção do patrimônio financeiro estatal – ambos constituintes do interesse público,17 sendo que um é interesse público primário e o outro, secundário.

O interesse público, bem valioso e pretendido por cada indivíduo e que se identifica com o querer geral de toda a coletividade,18 é amplo e al-berga várias facetas, as quais devem ser sobrepostas no sentido de garantir a sua correta análise.

15 DI PIETRO, Maria Sylvia. As possibilidades de arbitragem em contratos admi-nistrativos, 2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-24/interesse-publico--possibilidades-arbitragem-contratos-administrativos2>. Acessado em 26 de abril de 2017.16 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 824-825.17 DI PIETRO, op. cit18 ESCOLA, op. cit.

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2.2.3.2. Interesse público no procedimento arbitral

O interesse público é evidenciado em um procedimento arbitral me-diante a celeridade no julgamento da causa, a precisão e especificidade da decisão e a obtenção de maiores investimentos de particulares. Tudo isso, muitas vezes, se sobrepõe à economicidade imediata da jurisdição estatal.

A submissão de um litígio com o Estado à apreciação de um tri-bunal arbitral, portanto, não enseja o esquecimento do interesse público, mas, sim, o respeito a esse mesmo princípio. Com efeito, não é compatível com o interesse público primário a obrigatoriedade de recurso judicial, esfera que não tem o conhecimento técnico necessário à resolução de muitas questões pertinentes ao Estado e que tarda anos a fio para solucio-nar litígios. Ao optar pelo procedimento arbitral, o gestor público escolhe solucionar determinada lide de forma célere e técnica, precisamente em atenção ao interesse público19. Explica Carlos Alberto Carmona:

supondo que a Administração persiga sempre o escopo de concre-tização da justiça [e o interesse público], é de todo recomendável que, havendo qualquer dissenso em contratos de que participe, seja a controvérsia resolvida pela via mais rápida, mais técnica e menos onerosa, evitando-se procrastinação indesejável.20

Para além disso, o princípio da legalidade se coaduna com o aqui exposto. A Lei Federal nº. 13.129 promulgada em 2015 positivou inequi-vocamente no ordenamento jurídico a possibilidade da arbitragem nos litígios em que é parte o Estado: o legislador, responsável por balizar o interesse público a ser perseguido pelos administradores públicos, expli-citou a compatibilidade do procedimento arbitral com o interesse público,

19 Neste sentido: GROTTI, Dinorá Musetti. A arbitragem e a Administração Pública. In: GUILHERME, Luiz Fernando do Vale de Almeida (Org.). Novos rumos da arbitragem no Brasil. São Paulo: Fiuza, 2004, p. 153; DALLARI, Adílson Abreu. Arbitragem na conces-são de serviço Público. Revista Trimestral de Direito Público, n. 13, p. 5-10, 1996.20 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo – Um comentário à Lei nº 9.307/96. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 66.

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razão pela qual a utilização do instituto pelo Poder Público vai de acordo com o princípio da legalidade.21

Nesse sentido, valioso o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no Mandado de Segurança nº. 11.308 do Distrito Federal, publica-do em 19.5.2008, de relatoria do então Ministro Luiz Fux, que ao enten-der que o “uso da arbitragem não é defeso aos agentes da administração, como, antes é recomendável, posto que privilegia o interesse público”, en-frenta, ponto a ponto, todo o explanado até o momento:

Nesse sentido, valioso o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no Mandado de Segurança nº. 11.308 do Distrito Federal, publi-cado em 19.5.2008, de relatoria do então Ministro Luiz Fux, que ao enten-der que o “uso da arbitragem não é defeso aos agentes da administração, como, antes é recomendável, posto que privilegia o interesse público”, en-frenta, ponto a ponto, todo o explanado até o momento:

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. PERMIS-SAO DE ÁREA PORTUÁRIA. CELEBRAÇAO DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. JUÍZO ARBITRAL. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. POSSIBILIDADE. ATENTADO. 1. Manda-do de segurança impetrado contra ato do Ministro de Estado da Ciência e Tecnologia, ante a publicação da Portaria Ministerial nº 782, publicada no dia 07 de dezembro de 2005, que anuiu com a rescisão contratual procedida pela empresa NUCLEBRÁS EQUI-PAMENTOS PESADOS S/A - NUCLEP, com a ora impetrante, em-presa TMC -TERMINAL MULTIMODAL DE COROA GRANDE -SPE - S/A. 2. Razões do pedido apoiadas nas cláusulas 21.1 e 21.2, do Contrato de Arrendamento para Administração, Exploração e Operação do Terminal Portuário e de Área Retroportuária (Com-plexo Portuário), lavrado em 16/12/1997 (fls.31/42), de seguinte teor: “Cláusula 21.1 Para dirimir as controvérsias resultantes deste Contrato e que não tenham podido ser resolvidas por negociações

21 MELLO, Rafael Muñoz. Arbitragem e Administração Pública. Direito do Esta-do em Debate – Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná. Curitiba, n. 6, p. 47-48, 2015.

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amigáveis, fica eleito o foro da Comarca do Rio de Janeiro, RJ, em detrimento de outro qualquer, por mais privilegiado que seja. Cláusula 21.2 - Antes de ingressar em juízo, as partes recorrerão ao processo de arbitragem previsto na Lei 9.307, de 23.09.06. 3. Ques-tão gravitante sobre ser possível o juízo arbitral em contrato admi-nistrativo, posto relacionar-se a direitos indisponíveis. 4. O STF, sustenta a legalidade do juízo arbitral em sede do Poder Público, consoante precedente daquela corte acerca do tema, in “Da Arbi-trabilidade de Litígios Envolvendo Sociedades de Economia Mista e da Interpretação de Cláusula Compromissória”, publicado na Re-vista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, Editora Revista dos Tribunais, Ano 5, outubro - dezembro de 2002, coordenada por Arnold Wald, e de autoria do Ministro Eros Grau, esclarece às páginas 398/399 , in litteris: “Esse fenômeno, até certo ponto paradoxal, pode encontrar inúmeras explicações, e uma de-las pode ser o erro, muito comum de relacionar a indisponibilidade de direitos a tudo quanto se puder associar, ainda que ligeiramente, à Administração.” Um pesquisador atento e diligente poderá facil-mente verificar que não existe qualquer razão que inviabilize o uso dos tribunais arbitrais por agentes do Estado.

Tratando, então, do entendimento do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Caso Lage – anos antes da promulgação da Lei de Arbitragem e que será tratado no próximo tópico do presente estudo –, continua o acórdão:

Aliás, os anais do STF dão conta de precedente muito expressivo, conhecido como “caso Lage”, no qual a própria União submeteu-se a um juízo arbitral para resolver questão pendente coma Organi-zação Lage, constituída de empresas privadas que se dedicassem a navegação, estaleiros e portos. A decisão nesse caso unanimemente proferida pelo Plenário do STF é de extrema importância porque reconheceu especificamente “a legalidade do juízo arbitral, que o nosso direito sempre admitiu e consagrou, até mesmo nas cau-sas contra a Fazenda.” Esse acórdão encampou a tese defendida em

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parecer da lavra do eminente Castro Nunes e fez honra a acórdão anterior, relatado pela autorizada pena do Min, Amaral Santos. Não só o uso da arbitragem não é defeso aos agentes da administração, como, antes é recomendável, posto que privilegia o interesse pú-blico”. (grifou-se)

Passos a frente, o acórdão do Superior Tribunal de Justiça aborda a questão dos direitos disponíveis e de sua compatibilidade com a legislação que trata da Administração Pública, bem assim dos entendimentos dou-trinários acerca do princípio do interesse público:

5. Contudo, naturalmente não seria todo e qualquer direito públi-co sindicável na via arbitral, mas somente aqueles conhecidos como “dis-poníveis”, porquanto de natureza contratual ou privada. 6. A escorreita exegese da dicção legal impõe a distinção jus-filosófica entre o interesse público primário e o interesse da administração, cognominado “interesse público secundário”. Lições de Carnelutti, Renato Alessi, Celso Antônio Bandeira de Mello e Min. Eros Roberto Grau. [...] 8. Deveras, é assente na doutrina e na jurisprudência que indisponível é o interesse público, e não o interesse da administração. 9. Nesta esteira, saliente-se que dentre os diversos atos praticados pela Administração, para a realização do inte-resse público primário, destacam-se aqueles em que se dispõe de deter-minados direitos patrimoniais, pragmáticos, cuja disponibilidade, em nome do bem coletivo, justifica a convenção da cláusula de arbitragem em sede de contrato administrativo. (grifou-se)

Por fim, conclui o acórdão que a escolha pela arbitragem não fere o interesse público, mas, ao contrário, respeita o próprio princípio e confere celeridade ao procedimento, garantindo o atendimento do direito à justiça:

11. Destarte, é assente na doutrina que “Ao optar pela arbitragem o contratante público não está transigindo com o interesse público, nem abrindo mão de instrumentos de defesa de interesses públicos, Está, sim, escolhendo uma forma mais expedita, ou um meio mais hábil, para a defesa do interesse público. Assim como o juiz, no pro-

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cedimento judicial deve ser imparcial, também o árbitro deve decidir com imparcialidade, O interesse público não se confunde com o mero interesse da Administração ou da Fazenda Pública; o interesse público está na correta aplicação da lei e se confunde com a realização correta da Justiça.” (grifou-se ) (In artigo intitulado “Da Validade de Convenção de Arbitragem Pactuada por Sociedade de Economia Mista”, de autoria dos professores Arnold Wald, Atlhos Gusmão Carneiro, Miguel Tostes de Alencar e Ruy Janoni Doutrado, publicado na Revista de Direito Bancário do Mercado de Capitais e da Arbitragem, nº 18, ano 5, outubro-dezembro de 2002, página 418.) 12 . Em verdade, não há que se negar a aplicabi-lidade do juízo arbitral em litígios administrativos, em que presente direitos patrimoniais do Estado, mas ao contrário, até mesmo incenti-vá-la, porquanto mais célere, nos termos do artigo 23 da Lei 8987/95, que dispõe acerca de concessões e permissões de serviços e obras públicas, que prevê em seu inciso XV, entre as cláusulas essenciais do contrato de con-cessão de serviço público, as relativas ao “foro e ao modo amigável de so-lução de divergências contratuais”. 13. Precedentes do Supremo Tribunal Federal: SE 5206 AgR / EP, de relatoria do Min. SEPÚLVEDA PERTEN-CE, publicado no DJ de 30-04-2004 e AI. 52.191, Pleno, Rel. Min. Bilac Pinto. in RTJ 68/382 – “Caso Lage”. Cite-se ainda MS 199800200366-9, Conselho Especial, TJDF, J. 18.05.1999, Relatora Desembargadora Nancy Andrighi, DJ18.08.1999, 14. Assim, é impossível desconsiderar a vigência da Lei 9.307/96 e do artigo 267, inc. VII do CPC, que se aplicam inteira-mente à matéria sub judice, afastando definitivamente a jurisdição esta-tal no caso dos autos, sob pena de violação ao princípio do juízo natural (artigo 5º, LII da Constituição Federal de 1988). 15. É cediço que o juízo arbitral não subtrai a garantia constitucional do juiz natural, ao contrário, implica realizá-la, porquanto somente cabível por mútua concessão entre as partes, inaplicável, por isso, de forma coercitiva, tendo em vista que ambas as partes assumem o “risco” de serem derrotadas na arbitragem. Precedente: Resp. nº 450881 de relatoria do Ministro Castro Filho, publi-cado no DJ 26.05.2003: 16. Deveras, uma vez convencionado pelas partes cláusula arbitral, será um árbitro o juiz de fato e de direito da causa, e a decisão que então proferir não ficará sujeita a recurso ou à homologação judicial, segundo dispõe o artigo 18 da Lei 9.307/96, o que significa dizer

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que terá os mesmos poderes do juiz togado, não sofrendo restrições na sua competência. [...] 19. Agravo Regimental desprovido.22 (grifou-se)

A doutrina brasileira, de igual forma, tem entendido pela arbitrabili-dade objetiva em lides que envolvem o Estado nas seguintes hipóteses:223a-tos de gestão, atos negociais, contratos de direito privado, empresas estatais que desenvolvem atividade econômica e serviços comerciais e industriais do Estado. Em todos esses casos, o Poder Público atua com direitos patri-moniais disponíveis, via de regra, em situação de isonomia com os particu-lares, mediante negociação do interesse público secundário.

Ainda, oportuno diferenciar a indisponibilidade do direito material da indisponibilidade da pretensão à tutela jurisdicional estatal.24 É certo que a indisponibilidade é a impossibilidade de renúncia a uma posição jurídica, contudo, quando esta incide tão somente na pretensão à tutela jurisdicional estatal, em nada interfere com o interesse público, vez que o árbitro é investido de poder decisório e é um verdadeiro juiz privado.25

Portanto, sempre que a Administração Pública puder contratar, o que significa disponibilidade de direito patrimonial, poderá contratar também cláusula de arbitragem;26 da mesma forma que sempre que o con-flito com o Estado for de ordem patrimonial e puder ser resolvido sem a intervenção do Poder Judiciário, será arbitrável,27 tudo isso sem que im-porte disposição do interesse público.

22 BRASIL. STJ. MS 11.308, Primeira Seção, Rel. Min. Luiz Fux, Dje 19.05.2008.23 MARTINS, Pedro Batista apud LEMES, op. cit., p. 78.24 TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: consequên-cias processuais (composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem, negócios processuais e ação monitória) – versão atualizada para o CPC/2015. Revista de Processo. v. 264. ano 42. p. 83-107, São Paulo: Ed. RT, fev. 2017.25 CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 226.26 GRAO, Eros Roberto apud LEMES, op. cit., p. 123.27 TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: consequên-cias processuais (composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem, negócios processuais e ação monitória) – versão atualizada para o CPC/2015. Revista de Processo. v. 264, ano 42. p. 83-107, São Paulo: Ed. RT, fev. 2017.

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Afinal, como assinalou Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “jamais se cogita negociar o interesse público, mas se negociar os modos de atin-gi-lo com maior eficiência”, posto que ao mesmo passo em que existe o interesse público do conflito, tão importante é resolvê-lo.28

Ao sopesar o princípio da indisponibilidade do interesse público com a arbitrabilidade objetiva, portanto, percebe-se que estes se alinham e juntos delimitam o objeto da arbitragem com o Estado – que deve res-peitar as leis pátrias, garantindo a preponderância do interesse público primário e precípuo do caso em concreto.

3. Arbitragem em conflitos que envolvem o Estado: análise prática da aplicação do instituto no Brasil

3.1. Panorama teórico: pacificação da doutrina e jurisprudência3.1.1. Esboço histórico

É certo que, antes mesmo da Lei de Arbitragem e da Lei nº. 13.129/2015, que expressamente permitiu a participação de entes públicos em procedimentos arbitrais, esse mecanismo já era utilizado pela Admi-nistração Pública, tendo o Supremo Tribunal Federal, inclusive, manifes-tado-se quanto à sua constitucionalidade em julgado que ficou conhecido como Caso Lage. Dado seu pioneirismo e importância, transcreve-se a ementa do caso:

INCORPORAÇÃO, BENS E DIREITOS DAS EMPRESAS ORGA-NIZAÇÃO LAGE E DO ESPOLIO DE HENRIQUE LAGE. JUÍZO ARBITRAL. CLÁUSULA DE IRRECORRIBILIDADE. JUROS DA MORA. CORREÇÃO MONETÁRIA. 1. Legalidade do juízo arbi-tral, que o nosso direito sempre admitiu e consagrou, até mesmo nas causas contra a fazenda. Precedente do supremo tribunal federal. 2. Legitimidade da cláusula de irrecorribilidade de sentença arbitral, que não ofende a norma constitucional. 3. Juros de mora concedi-

28 NETO, op. cit., p. 159-192.

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dos, pelo acórdão agravado, na forma da lei, ou seja, a partir da pro-positura da ação. Razoável interpretação da situação dos autos e da lei n. 4.414, de 1964. 4. Correção monetária concedida, pelo tribunal a quo, a partir da publicação da lei n. 4.686, de 21.6.65. Decisão cor-reta. 5. Agravo de instrumento a que se negou provimento.29

A pacificação da viabilidade da arbitragem para resolução de con-flitos públicos teve seu pontapé inicial, portanto, com o Caso Lage em 1973. Neste julgado, entendeu-se possível a sujeição da União à jurisdição arbitral nas desapropriações das Organizações Lage, para a quantificação do valor indenizatório a ser pago em face de desapropriação ocorrida em 1942, conforme houvera determinado o Decreto-Lei nº 9.521, de 1946.30 Dois pontos chamam especial atenção na análise do julgado: a “legalidade do juízo arbitral”, e “o nosso direito sempre [o] admitiu e consagrou, até mesmo nas causas contra a fazenda”.

Com efeito, este leading case brasileiro da arbitragem com o Es-tado foi baseado precisamente no juízo de que nunca houve vedação na legislação pátria quanto à utilização da arbitragem em causas públicas. Este entendimento tem fulcro histórico, pois há comprovação da ampla utilização da arbitragem pelo Estado no Brasil Império;31 legal, pois a lei não impedia a sua utilização; e doutrinário, pois desde meados da década de 1950, doutrinadores brasileiros dispunham sobre a natureza contratual da arbitragem e sua adequação com a autonomia contratual do Estado em suas relações contratuais privadas.32

Contudo, muitos foram os juristas que, por diversas razões, enten-deram pela inconstitucionalidade do instituto na Administração Pública, e alguns advogam neste sentido até os dias atuais. Lúcia Valle Figueiredo, por exemplo, afirmava não ser possível levar a um árbitro privado con-flitos em que figurava como parte o Estado, porque se estaria violando o

29 BRASIL. STF. AI 52181, Tribunal Pleno, Rel. Min. Bilac Pinto, Dje 14.11.1973.30 LEMES, op. cit., p. 79-81.31 LEMES, op. cit., p. 63-70.32 NUNES, José de Castro apud LEMES, op. cit., p. 79-80.

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artigo 5º, incisos XXXV, LXIX, LXX e LXXIII da Constituição Federal, que tratam da inafastabilidade do poder judiciário e da possibilidade de impetração de mandado de segurança ou ajuizamento de ação popular para anular ato lesivo ao interesse público.33

Neste mesmo sentido, Carlos Medeiros Silva afastava o cabimento da arbitragem nos contratos com o Poder Público, em razão da impossibi-lidade de renúncia da função administrativa de dizer o direito, que estaria sendo cedida ao árbitro.34

3.1.2. Atualização legal e pacificação da doutrina e jurisprudência

Através da Lei de Arbitragem, o instituto foi positivamente afir-mado no Brasil e começou a ter sua prática difundida no país. Contudo, referida norma não previa expressamente a possibilidade de utilização do procedimento arbitral pelo Estado, tratando tão somente da “capacidade negocial”, para referir-se à arbitrabilidade subjetiva, e dos “direitos patri-moniais disponíveis”, para tratar da arbitrabilidade objetiva.

Apenas com a promulgação da Lei Federal nº. 13.129/2015, que reformou a legislação arbitral, é que começa a superar-se tal questão. Re-ferida lei previu, de forma expressa, a possibilidade de utilização da arbi-tragem nos casos com o Estado.

Dentre outras mudanças, a referida lei ampliou o âmbito de aplicação da arbitragem e acrescentou o parágrafo primeiro ao art. 1º da Lei de Arbitra-gem, explicitando a faculdade do Estado de utilizar-se da jurisdição arbitral e, assim, erradicando quaisquer dúvidas que pudessem existir quanto à matéria.

Com o desenvolvimento do instituto na legislação, a doutrina che-gou a um consenso majoritário quanto à possibilidade de utilização da arbitragem pelos entes e entidades estatais. Os argumentos trazidos por Lúcia Valle Figueiredo, apresentados acima, foram superados: a ação de anulação de sentença arbitral pode ser ajuizada com o fito de evitar abusos e violações ao interesse público, assim como não há que se falar em vio-

33 FIGUEIREDO, Lúcia Valle apud LEMES, op. cit., p. 75-79.34 SILVA, Carlos Medeiros apud LEMES, op. cit., p. 73-74.

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lação ao acesso à justiça, posto que, nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a justiça e a jurisdição não se confundem:

monopólio [de jurisdição é] indisputável do Estado, já que é abso-lutamente necessário que exista esse terceiro, parte neutra e dotado de atributos de coercitividade, para dar a última palavra em todas as controvérsias litigiosas; ocorre apenas que essa prerrogativa não envolve, não elimina nem prejudica a busca de “justiça”, enquanto anseio e atividade humana que não é monopólio de ninguém, nem mesmo das organizações políticas.35

Ademais, com esse mesmo argumento de diferenciação entre mono-

pólio de jurisdição e monopólio de justiça, José de Castro Nunes suplantou as questões acerca da suposta inconstitucionalidade do juízo arbitral em face da competência constitucional processual para causas contra a União – o acesso à justiça regular é garantido com solução semelhante à judicial.36

Nesse sentido, ainda, as afirmações de Carlos Medeiros Silva acerca da cessão de função administrativa restaram sobrepujadas, haja vista, nas palavras de Selma Lemes, “inconteste confusão entre o mister de árbitro, aquele que dirime controvérsia, com a posição da autoridade administra-tiva que decide questões que lhe são próprias”.37

Foi extensa, também, a contribuição da jurisprudência dos tribu-nais superiores na construção de um entendimento pacífico acerca do tema. Não é ocioso reforçar, o ponto de partida para tal uniformização foi o julgamento do Caso Lage, proferido pelo Supremo Tribunal Federal ainda no ano de 1973, tendo o Superior Tribunal de Justiça, ao seu turno, manifestado-se pela primeira vez a respeito do tema no ano de 2006 – res-salte-se que também antes da edição da Lei 12.319/2015 –, julgando caso que discutia questões meramente contratuais:

35 NETO apud LEMES, op. cit., p. 107-108.36 NUNES apud LEMES, op. cit., p. 75-77.37 LEMES, op. cit., p. 73-74.

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PROCESSO CIVIL. JUÍZO ARBITRAL. CLÁUSULA COMPRO-MISSÓRIA. EXTINÇÃO DO PROCESSO. ART. 267, VII, DO CPC. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. DIREITOS DISPO-NÍVEIS. EXTINÇÃO DA AÇÃO CAUTELAR PREPARATÓRIA POR INOBSERVÂNCIA DO PRAZO LEGAL PARA A PROPOSI-ÇÃO DA AÇÃO PRINCIPAL. 1. Cláusula compromissória é o ato por meio do qual as partes contratantes formalizam seu desejo de submeter à arbitragem eventuais divergências ou litígios passíveis de ocorrer ao longo da execução da avença. Efetuado o ajuste, que só pode ocorrer em hipóteses envolvendo direitos disponíveis, fi-cam os contratantes vinculados à solução extrajudicial da pendên-cia. 2. A eleição da cláusula compromissória é causa de extinção do processo sem julgamento do mérito, nos termos do art. 267, inciso VII, do Código do Processo Civil. 3. São válidos e eficazes os con-tratos firmados pelas sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços (CF, art. 173, § 1o) que estipulem cláu-sula compromissória submetendo à arbitragem eventuais litígios decorrentes do ajuste. 4. Recurso especial parcialmente provido.38

Dois anos mais tarde, em julgamento de mandado de segurança já transcrito nesse trabalho,39 o Superior Tribunal de Justiça se manifestou de maneira mais ampla e aprofundada, passando, então, a entender que “não só o uso da arbitragem não é defeso aos agentes da administração, como, antes é recomendável, posto que privilegia o interesse público”.40

Em 2012, esse mesmo tribunal superior entendeu que as questões referentes ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administra-tivos configuram direitos patrimoniais, também arbitráveis41 e que a au-

38 STJ. REsp 612.439/RS, Segunda Turma, Rel. Min. João Otávio Noronha, julga-do em 25/10/2005, DJ de 14/09/2006.39 Vide nota 21.40 BRASIL. STJ. MS 11.308, Primeira Seção, Rel. Min. Luiz Fux, Dje 19.05.2008.41 BRASIL. STJ. REsp 904.813/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, Dje 28.02.2012.

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sência de previsão acerca da arbitragem no edital do certame não invalida compromisso posterior firmado entre o Estado e a sociedade contratada. De mais a mais, da análise dos precedentes judiciais, até os dias atuais, é possível verificar que, de forma crescente, as cortes apoiam a faculdade do Estado de utilizar-se da via arbitral.42

Assim foi se desenvolvendo a doutrina em sintonia à jurisprudên-cia: enquanto Hely Lopes Meireles afirmava, ainda em 2013, que a arbitra-gem com o Estado era possível e facultativa era a sua utilização,43 o Supre-mo Tribunal Federal asseverava a possibilidade da utilização do instituto pelo Estado, tudo antes mesmo da própria Lei de Arbitragem.44

3.2. Escassa utilização da arbitragem em conflitos que envolvem o Estado

3.2.1. Estudo desenvolvido por Selma Ferreira LemesApesar de o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de

Justiça já possuírem consolidado entendimento quanto à possibilidade de o Estado se valer da arbitragem para dirimir conflitos de direito patrimo-nial disponível, tendo, inclusive, a doutrina majoritária referendado tal entendimento, a utilização deste mecanismo ainda é escassa

Em estudo desenvolvido pela jurista Selma Ferreira Lemes, pu-blicado em julho de 2016,45 foram analisados os principais centros de arbitragem do país, o Centro de Arbitragem da AMCHAM – Brasil (AMCHAM), o Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil-

42 Vide as várias recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça sobre as arbitra-gens da Petrobrás e União, como o Conflito de competência nº 151.130/SP, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, em que foi revista decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no sentido de determinar a participação da União em procedimento arbitral mo-vido pelos acionistas da Petrobrás, conforme cláusula arbitral constante do estatuto social da sociedade de economia mista.43 MEIRELES, Hely Lopes apud LEMES, op. cit., p. 113,44 Vide Caso Lage, nota 46.45 LEMES, Selma Ferreira. Pesquisa: arbitragem em números e valores, 2016. Dis-ponível em: <http://selmalemes.adv.br/noticias/An%C3%A1lise%20da%20pesquisa%20arbitragens%20em%20n%C3%BAmeros%202010%20a%202015.pdf>. Acessado em 01 de junho de 2017.

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Canadá (CCBC), a Câmara de Mediação, Conciliação e Arbitragem de São Paulo (CIESP/FIESP), a Câmara de Arbitragem do Mercado (BO-VESPA), a Câmara de Arbitragem da Fundação Getúlio Vargas (CAM-FGV) e a Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil (CAMARB), e descobriu-se que, no ano de 2015, existiam apenas vinte arbitragens en-volvendo o poder público no Brasil.

Além disso, o estudo aponta que as referidas câmaras arbitrais possu-íam, quando da pesquisa, 566 (quinhentos e sessenta e seis) arbitragens em trâmite. Ou seja, o percentual de processos em que figura como parte um ente público, em 2015, era de pouco mais de 3,5% (três e meio por cento):

Figura 1 – Análise das partes litigantes em arbitragem no ano de 2015.

Percebe-se que o número de procedimentos arbitrais em que figura o Estado, seja ele administração direta ou indireta, de âmbito municipal, estadual ou federal, é ínfimo quando comparado à quantidade de proce-dimentos existentes em trâmite em território nacional.

3.2.2. Experiência da CAMARB – Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil

Outro estudo que merece atenção foi desenvolvido pela CAMARB. Com atuação mais relevante no âmbito da arbitragem com o Estado, dentre as arbitragens iniciadas pela referida câmara no ano de 2014, 17% (dezes-sete por cento) possuía algum ente da Administração Pública como parte.

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Figura 2 – Distribuição dos procedimentos arbitrais instituídos na CAMARB, por partes envolvidas, no ano de 2014.

Contudo, ao comparar os dados da CAMARB relativos ao ano de 2014 com os dados desta mesma câmara atinentes ao período compreen-dido entre os anos de 2014 e 2016, percebe-se uma diminuição no percen-tual de arbitragens em que figura como parte o Estado. Dentre os 78 (se-tenta e oito) procedimentos arbitrais instaurados na câmara no período mencionado, 12 (doze) possuíam algum ente da Administração Pública como parte, perfazendo o percentual de 15% (quinze por cento).

Figura 3 – Distribuição dos procedimentos arbitrais instituídos na CAMARB, por partes envolvidas, entre 2014 e 2016.

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3.2.3. Comparação do estudo de Selma Ferreira Lemes e da CAMARB com pesquisa da Associação dos Magistrados do Brasil

Ao comparar os dados obtidos pela jurista e os dados da experi-ência da CAMARB com os obtidos pela Associação dos Magistrados do Brasil mediante pesquisa intitulada “O Uso da Justiça e o Litígio no Bra-sil”,46 realizada com o intuito de analisar os agentes atuantes nos tribunais pátrios também no ano de 2015, o resultado da sobreposição é destoante.

A pesquisa da Associação dos Magistrados do Brasil demonstra que o Estado, de forma geral, é o maior litigante em juízo, estando pre-sente em mais de 50% (cinquenta por cento) das demandas nos oito entes federativos em que foi realizado o estudo.

No Estado da Bahia, por exemplo, 71,5% (setenta e um vírgula cin-co por cento) das demandas em trâmite no primeiro grau foram ajuizadas pela Administração Pública Municipal. Por sua vez, a Fazenda Pública do Distrito Federal ingressou com 71% (setenta e um por cento) das deman-das em trâmite no primeiro grau dos tribunais locais, enquanto que no Estado de São Paulo o percentual de ações ingressadas pelo Órgão Público Municipal foi de 62,3% (sessenta e dois vírgula três por cento).

Diante desses dados, denota-se que (i) o Estado é o maior litigante em juízo do Brasil; e (ii) a participação do Estado nos processos arbitrais é mínima.

46 AMB. O Uso da Justiça e o Litígio no Brasil, 2015. Disponível em: <https://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wp-content/uploads/2015/08/O-uso-da-Justi%C3%A7a--e-o-lit%C3%ADgio-no-Brasil.pdf>. Acessado em 01 de junho de 2017.

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Figura 4 – Comparação entre a distribuição de procedimentos arbitrais e judiciais, por partes envolvidas.

Considerações finais

A contraposição de realidades teórica e prática permite inferir a discrepância entre o que se estuda e o que se aplica. Mesmo diante de ampla discussão doutrinária e pacificação jurisprudencial sobre o tema, o Estado continua sendo o maior litigante estatal, ao mesmo passo em que continua recorrendo infimamente à jurisdição arbitral.

É imprescindível, portanto, para a correta aplicação do instituto, a compreensão da divergência teórica e prática, para que possam ser pen-sadas as maneiras de solução do problema e, assim, de atingimento da teleologia da norma – a celeridade, especialidade e baixo custo mediato, inclusive nas contratações públicas.

A arbitragem não deve ser entendida como método de resolução de conflitos obrigatório, nem mesmo defende-se que preferível, devendo ocorrer nas contratações de valores mais vultosos ou que demandem re-solução mais célere ou especializada. Contudo, deve ser utilizada sempre que adequada à situação.

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Inexigibilidade de Título Judicial e Relativização da Coisa Julgadapor Decisão do Supremo Tribunal Federal: Des-

construindo o NCPC, Art. 525, §§ 12 Usque 15

Irving William Chaves Holanda1

1 Assessor de Desembargador (TJPE). Pós-graduado em processo civil pela UFPE/FDR (2015/2017). Pós-graduado em penal e processo penal pela Faculdade Da-másio de Jesus – FDJ (2013/2014). Professor Colaborador da ELEPE/ALEPE (2008/2009). Graduado pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.

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Resumo: O cerne do presente ensaio aborda a curiosa questão da “inexigibilidade da obrigação reconhecida em título judicial” por decla-ração, pelo Supremo Tribunal Federal, de inconstitucionalidade/incom-patibilidade de atos normativos em face da Constituição, realidade já existente no CPC/1973, mas que agora ganha uma nova roupagem diante do NCPC, art. 525, §§ 12 a 15. O assunto revela uma enorme importân-cia prática, razão pela qual o estudo propõe soluções adequadas para os problemas trazidos ao lume pela vigência do novo Código, o que é feito mediante ponderações acerca da doutrina e da jurisprudência das Cortes Superiores (STF e STJ).

Palavras-chave: Inexigibilidade – Título Judicial – Relativização – Coisa Julgada – Inconstitucionalidade.

Abstract: The focus of the study is the curious question of the “unenforceability of the obligation recognized in judicial title” by a de-claration – by the Brazilian Supreme Court – of unconstitutionality/in-compatibility of normative acts in the face of the Constitution, a reality already existing in CPC/1973, but now gets a new outfit before the NCPC, art. 525, §§ 12 to 15. The subject is of great practical importance, which is why the study proposes adequate solutions to the problems brought about by the validity of the new Code, which is done by considering the doctrine and jurisprudence of the High Courts (STF and STJ).

Keywords: Unenforceability – Judicial Title – Relativization – Res Judicata – Unconstitutionality.

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Introdução

O presente estudo visa traçar uma análise tópica do art. 525, §§ 12 usque 15 do NCPC, desconstruindo-o para análise. Percebe-se, logo à saída, que o tema não reflete uma inovação substancial, à vista de que o CPC de 1973 já tratava do tema, especificamente no art. 475-L, inciso II, § 1º, bem ainda, art. 741, parágrafo único. Contudo, nota-se, a disciplina do vetusto Código era incipiente, o que dava margem a várias divergências doutrinárias, motivo pelo qual o legislador colheu do ensejo a oportuni-dade ideal para reformular o tema, reestruturando-o por completo.

O presente estudo é oportuno, à vista de que – desde o CPC de 73 – a doutrina já vinha criticando veementemente a ausência de parâmetros razoáveis aptos a embasar a perda de exigibilidade do título executivo pela declaração de inconstitucionalidade por decisão do Supremo Tribunal Fe-deral (STF). A preocupação maior, pelo que se depreende, era com a ques-tão da segurança jurídica e com o respeito à coisa julgada.

Com a nova reestruturação do tema, prevista agora no novo Códi-go de Processo Civil, ainda paira razoável preocupação com a segurança jurídica das relações recobertas pelo manto da coisa julgada material, po-rém – é preciso dizer – a novel disciplina agora é mais estável, estreme das dúvidas e lacunas existentes no sistema anterior (CPC/1973).

Sem embargo, o presente estudo estabelece aligeiradas linhas acer-ca do cumprimento de sentença, alavancando, pontualmente, as mudan-ças trazidas pelo novo Diploma Processual (NCPC).

E, ao fim, ver-se-á que o legislador brasileiro procurou sistematizar essa excepcional hipótese de perda de eficácia do título executivo judicial, estabelecendo lindes e limites legais, o que permite concluir que houve preclara evolução no tema, mesmo a despeito da preocupação com a se-gurança jurídica. Porém, infelizmente, criou-se situação anômala, no que tange aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade/incompatibilida-de de ato normativo após o trânsito em julgado do édito judicial. Tentar responder a essas imbricações é, justamente, o pano de fundo e o especial desiderato deste ensaio. Então, vamos em frente.

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1. Considerações prefaciais sobre o cumprimento de sentença: a nocente caminhada até o sincretismo processual.

Como consabido, o cumprimento de sentença nada mais é do que uma fase do processo, concernente à satisfação da pretensão;2 3 entenda-se, aí, a execução da sentença.4

Então, não há melhor maneira de começar o presente ensaio senão pelo conceito de execução. Segundo De Plácido e Silva, o termo deriva do latim exsecutio, de exsequi, e quer significar “seguir até o fim, proceder judicialmente, perseguir”. E, assim, completa o grande dicionarista:

possui, na terminologia jurídica, uma variedade de acepções, todas elas tendentes a mostrar a intenção ou o desejo de levar a cabo alguma coisa, ou de realizar um plano ou um projeto, concebido anteriormente, ou concluir o que fora iniciado. Significa assim o ato ou a ação, que não vem isolada. Surge como complemento, cum-primento ou conclusão de coisa ou de fato já existentes anterior-mente. Pela execução, assim, completa-se, conclui-se ou cumpre-se o que anteriormente estava determinado, decidido, projetado. Em qualquer aspecto, pois, quer significar o ato que vem para cumprir ou completar alguma coisa ou para compelir alguém a cumprir ou completar o que era de seu dever.5

2 Neste sentido, verifique-se: GRECO, Leonardo. A execução e a efetividade do processo. Revista de Processo. Ano 24, abril-junho de 1999, n. 94. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP, 1999, p. 35 usque 66. No mesmo sentido, ainda: GRECO, Leonardo. A reforma do processo de execução. Revista Forense, v. 350, abril/maio/junho de 2000. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 57 e ss.3 MEDINA, José Miguel Garcia. Processo de execução e cumprimento de sen-tença. Coleção Processo Civil Moderno – v. 3., 3. ed., rev., atual. e ampl. da obra Execução. São Paulo: RT, 2013, p. 228.4 Neste sentido, inclusive, consulte-se: NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Comentários ao código de processo civil (Novo CPC – Lei n. 13.105/2015). São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 1264.5 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 26 ed. Atual: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro: Forense ed., 2005, p. 576.

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Convém rememorar, inclusive, que tanto no Código de Processo Civil (CPC) de 1939 (Decreto-Lei n. 1.608 de 1939), quanto no CPC de 1973 (pelo menos até a edição das Leis nos. 10.444 de 2002 e 11.232 de 2005), existiam processos autônomos, um para fixar o acertamento da pretensão, denominado processo de conhecimento (procedimento sumá-rio ou ordinário6), e outro para a satisfação do direito, chamado processo de execução, podendo eventualmente existir outro processo, o de liqui-dação, que serve primordialmente para quantificar a obrigação acertada pelo processo cognitivo.7 Apenas para registro, destaque-se também as lições de Alexandre Freitas Câmara, que desfechou a questão com a per-cuciência, verve e maestria habituais:

A Lei n. 10.444/2002 modificou o modelo anteriormente existen-te (ressalvadas, apenas, as obrigações pecuniárias, em relação às quais continuou a existir o binômio processo de conhecimento + processo de execução). A partir da entrada em vigor do aludido diploma legal, a condenação não é mais capaz de exaurir o proces-so (quando se tratar de condenação a fazer, não fazer ou entregar coisa diversa de dinheiro). A execução é um prolongamento do processo, que não é mais nem puramente cognitivo nem puramen-te executivo, mas um processo misto, sincrético, em que as duas atividades se fundem. Além da simplificação trazida para o sistema executivo brasileiro, a obtenção de tutela jurisdicional plena pode ser alcançada mais rapidamente.8

6 O procedimento sumário foi extinto pelo NCPC, art. 1.046, § 1º c/c parágrafo único do art. 1.049.7 A este respeito, consulte-se: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil, v. 5., 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 118. Oportuno, também, citar as lições de Pinto Ferrei-ra: Teoria geral do processo de execução. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito, n. 7, ano 7. Universidade Federal de Pernambuco/Faculdade de Direito do Recife/CCJ. Coord.: João Maurício Adeodato. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997, p. 363-364.8 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil, v. 2, 22. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 163. No mesmo sentido: DIDIER JR. et al., op. cit., p. 34.

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No sistema do CPC de 1939, a disciplina repousava nos artigos 882 e ss., em que se assentava a disciplina da “execução de sentença”. Já no Có-digo Buzaid (1973), a excussão estava disciplinada a partir do art. 612, no qual constava “das diversas espécies de execução”. Não existia, assim, uma ideia de sincretismo processual, em ordem a instituir fases processuais.9

Inclusive, é bom ressaltar, sob boa parte da égide do CPC de 1973, a execução provisória de sentença era feita por meio de um instrumento (rectius: incidente) chamado “carta de sentença”,10 que tramitava dissocia-do do processo de execução, cf. art. 589 do CPC/1973, o qual não resistiu às reformas e acabou sendo revogado pela Lei n. 11.232 de 2005.

Nesta enseada, e sob a inspiração das ondas renovatórias da pro-cessualística civil, deixou-se para trás a ideia de processo autônomo para cada etapa de uma mesma pretensão, e foi incorporada, assim, a ideia do sincretismo processual, donde emergiram os conceitos de fases processu-ais, no caso: a fase de conhecimento, a fase de liquidação e a fase de execu-ção. Neste sentido, inclusive, leciona Alexandre Freire Pimentel:

A lei nº 11.232/05 encerrou um dos principais ciclos das refor-mas procedidas no código de processo civil de 1973. O sincretis-mo processual, iniciado com a lei nº 10.444/02, amalgamou tute-las executivas e cautelares no processo de conhecimento. Esta lei possibilitou a concessão de provimento de natureza cautelar, no âmbito do processo de conhecimento, quando o autor postulasse providência dessa ordem (cautelar), mas, equivocadamente, a en-

9 É bom deixar assentado e sedimentado: a ideia de sincretismo processual não é nova. Autores do porte de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo já defendiam a sua implemen-tação, como medida de satisfação e efetivação do processo, apud CÂMARA, op. cit., p. 163.10 “A carta de sentença era um fascículo, um caderno, contendo todas as cópias de peças do processo de conhecimento necessárias para a realização da execução – aquelas enumeradas no art. 590 do CPC. A carta era extraída pelo escrivão, que deveria cumprir todas as formalidades inerentes à formação de autos de um processo (autuação, numera-ção etc.). Por fim, deveria ser assinada pelo juiz. A carta de sentença sempre foi considera-da uma ‘velharia burocrática e cartorária que clama por extinção’ e, de fato, sua eliminação tem sido aplaudida por todos”, cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direi-to Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2004, v. 4, p. 768.

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quadrasse como requerimento antecipatório dos efeitos da tutela. Cuidou-se, pois, de sincretismo entre processo de conhecimento e cautelar. Mas, a mescla de medidas executivas e cognitivas atingiu apenas as tutelas das obrigações de fazer, não-fazer e entregar coisa (CPC, 461 c/c 644 e 461-A c/c 621). A partir daí, deixou de existir o processo de execução de sentença cível, restrito a estas searas obri-gacionais, e a tais ações de conhecimento foi acrescentada a fase de efetivação da sentença, passando a serem nominadas de ações executivas lato sensu. Como bem observou Francisco Cavalcanti, os pilares do código de 1973 foram corroídos. A necessidade de reavaliação dos conceitos e princípios do processo civil foi também defendida pelo Ministro Pádua Ribeiro, do STJ. A compactação sa-tisfativo-operacional do processo de conhecimento desconstruiu (no sentido de Derrida) a ideia do purismo das tutelas efetivada por Alfredo Buzaid. Neste contexto, a lei nº 11.232/05 emerge como instrumento de arremate do sincretismo processual iniciado pela lei nº 10.444/02, porque estende a técnica de efetivação (exe-cução) da sentença – sem processo de execução – para as obriga-ções de pagar quantia certa em dinheiro.11 (grifei)

Veja-se, assim, que existiram muitos entraves e percalços na ca-minhada tracejada pelo legislador para chegar ao sistema de sincretismo processual. Perceba-se, ainda, que, esse iter – marcado por enfadonha burocracia – decerto causou sérios gravames ao jurisdicionado, inclusive injustificáveis desdobramentos e morosidade processuais (mesmo certo que, à época, não existisse a garantia fundamental da duração razoável do processo, hoje insculpida no art. 5º, inciso LXXVIII da CRFB por advento da Emenda Constitucional n. 45/200412) que foram, ao longo de décadas,

11 PIMENTEL, Alexandre Freire. O sistema da liquidação de sentença instituído pela lei nº 11.232/05. In: CAVALCANTI, Bruno; ELALI, André; VAREJÃO, José Ricardo do Nascimento (Coords.). Novos temas de processo civil: Leis nº 11.277/06, nº 11.276/06, nº 11.280/06, nº 11.187/06, nº 11.232/05. São Paulo: MP Ed., 2006, p. 20 e ss.12 Para maiores informações sobre o tema consulte-se, por todos, a dissertação de Frederico Augusto Leopoldino Koehler: O princípio da razoável duração do processo:

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suportados pelas partes. Por isso, insistimos em chamar esse viés de no-cente/funesto.

Pois bem. Superadas essas considerações iniciais, entende-se ne-cessário assentar os requisitos para a empreitada executiva judicial, no-tadamente porque o tema do presente ensaio cuida de analisar, precipua-mente, uma hipótese singular de perda de exigibilidade do título judicial, marcada pela pecha de inconstitucionalidade declarada no STF.

2. Apontamentos gerais sobre o cumprimento de sentença no NCPC

O novo Código de Processo Civil (NCPC) disciplina no Título II do Livro I, Parte Especial, o reverberado “cumprimento de sentença”, di-vidindo-o em seis capítulos, quais sejam: (I) disposições gerais; (II) cum-primento provisório da sentença que reconheça a exigibilidade de obri-gação de pagar quantia certa; (III) cumprimento definitivo da sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa; (IV) cumprimento da sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de prestar alimentos; (V) cumprimento de sentença que reconheça a exigi-bilidade de pagar quantia certa pela Fazenda Pública; e, ao remate, (VI) cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer, não fazer ou de entregar coisa.

2.1. Requisitos da demanda executiva

A doutrina classicamente tem defendido que os requisitos da de-manda executiva são a existência de um título executivo judicial e a afirma-ção do inadimplemento. Neste sentido, Fredie Didier Jr. et allie lecionam:

Se a demanda tem por escopo a satisfação de um direito já certi-ficado (seja num título executivo judicial ou extrajudicial) e que até então não foi satisfeito (inadimplemento), tem-se então uma demanda executiva. Em síntese, chamamos de demanda executiva

propostas para sua concretização nas demandas cíveis. (Dissertação de Mestrado). Recife: Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, 2008, p. 17 usque 46.

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aquela provocação da atividade jurisdicional que contém uma pre-tensão executiva (efetivação/realização/satisfação de um direito a uma prestação), calcada numa determinada causa de pedir (título executivo e inadimplemento/lesão), em função da qual os titulares das situações jurídicas materiais descritas no título executivo pas-sam a estar vinculados na relação processual.13

Neste escorreito caminho, são dignos de registro os apontamentos de Cassio Scarpinella Bueno:

O cumprimento de sentença, tanto quanto a execução, pressupõe título executivo. Ele é, de acordo com doutrina amplamente ven-cedora, pressuposto necessário e suficiente para autorizar a prática de atos executivos. Necessário porque, sem título executivo, não há execução (o que é comumente identificado como o “princípio da nulla executio sine titulo”). Suficiente porque, consoante o en-tendimento predominante, basta a apresentação do título para o início dos atos de cumprimento (atos executivos) pelo Estado-juiz, independentemente de qualquer juízo de valor expresso acerca do direito nele retratado. Título executivo deve ser compreendido como do cumento que atesta a existência de obrigação certa, líquida e exigível e que autoriza o início da prática de atos jurisdicionais executivos. Os três atributos, o da certeza, o da exigibilidade e o da liquidez, constam expressamente no art. 783 (do NCPC).14

Necessário, ainda, ter em mente que a modalidade que mais in-teressa ao presente ensaio é, maiormente, a do cumprimento de senten-ça que reconhece a obrigação de pagar quantia certa entre particulares,15

13 DIDIER JR. et al., op. cit., p. 68.14 BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil: inteiramente estruturado à luz do novo CPC – Lei n. 13.105, de 13-3-2015. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 383/384.15 Neste aspecto, são lídimas as lições de José Lebre de Freitas: A acção executiva – à luz do código revisto. 2 ed. Coimbra: Coimbra ed., 1997, p. 10.

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mesmo que às outras hipóteses se aplique subsidiariamente as regras do processo de execução, cf. art. 513 do NCPC c/c Livro II da parte especial do novo Código.

Partindo desses pressupostos, é lídimo asseverar: presentes o título executivo (líquido, certo e exigível) e a afirmação de inadimplemento, o cumprimento deve prosseguir mediante requerimento do exequente, cf. NCPC, art. 513, § 1º. Nota-se, por aí, que o nosso ordenamento jurídico ainda continua sob a inspiração do Direito Italiano (tal como propugna-vam as lições de Liebman), mas também do Direito Português. Em ordem a ilustrar essa assertiva, vale a pena conferir o ensinamento de José Lebre de Freitas, notável processualista português, que assenta – em proficiente ensinamento – os pressupostos da “acção executiva”:

Para que possa ter lugar a realização coactiva duma prestação de-vida (ou de seu equivalente), há que satisfazer dois tipos de con-dição, dos quais depende a exequibilidade do direito à prestação: a) o dever de prestar deve constar dum título: o título executivo. Trata-se dum pressuposto de carácter formal, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe con-fere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admis-sibilidade da acção executiva. b) A prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida. Certeza, exigibilidade e liquidez são pressupostos de carácter material, que intrinsecamente condicionam a exequi-bilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coactiva da pretensão.16

2.2. Mudanças significativas no sistema de cumprimento de sentença

Para enaltecer o presente estudo, é interessante ressaltar que o novo CPC (2015) trouxe à baila quatro (na verdade, três) mudanças significati-vas ao sistema de cumprimento de sentença. Vejamo-las agora:

16 FREITAS, op. cit., p. 25.

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I. A primeira novidade repousa no art. 515, § 2º, NCPC: “§ 2o A autocomposição judicial pode envolver sujeito estranho ao processo e versar sobre relação jurídica que não tenha sido deduzida em juízo”;II. A segunda novidade: Constitui título executivo judicial, cf. NCPC, art. 525, inciso IX: “a decisão interlocutória estrangeira, após a concessão do exequatur à carta rogatória pelo Superior Tri-bunal de Justiça”;III. A terceira mudança seria a instituição de força judicial às de-cisões do Tribunal Marítimo, cf. inciso X do art. 515 do CPC/2015; Porém, esse mudança não chegou à vigência, tendo o seu teor sido vetado pela Presidência da República;IV. A quarta mudança foi a previsão do § 1º do art. 515 do NCPC: “§ 1º Nos casos dos incisos VI a IX, o devedor será citado no juí-zo cível para o cumprimento da sentença ou para a liquidação no prazo de 15 (quinze) dias”. Perceba-se que os títulos previstos nos incisos VI a IX do art. 515 são títulos judiciais externos, razão pela qual – por não terem sido firmados nos autos do processo em que se dará o cumprimento – os executados serão citados.

É digno de destaque, assim, que das quatro mudanças previstas, apenas três chegaram à vigência, à vista de que a presidência da república vetou a instituição de força judicial para as decisões proferidas pelo Tri-bunal Marítimo. Na sequência, recomenda-se a leitura do art. 515, incisos VI, VII, VIII e IX, todos do NCPC.

Afora isto, o que se tem é a repetição de regras que já eram previstas no CPC/1973, tal como, por exemplo, assentava a redação do art. 475-J. Ou seja, ultrapassado o prazo para pagamento voluntário sem adimple-mento, pelo NCPC, art. 523, § 1º, à obrigação deverá ser acrescida multa de 10% (dez por cento). A novidade é que também haverá acréscimo de honorários advocatícios (os chamados honorários elisivos), também no percentual de 10%. Em caso de pagamento parcial, nos termos do § 2º do art. 523 do CPC/2015, a multa e os honorários incidiram apenas sobre a parcela que restar inadimplida.

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Caso decorrido o prazo, previsto no NCPC, art. 523, e caracteriza-do o inadimplemento total (rectius: ausência de pagamento voluntário), inicia-se automaticamente o prazo para impugnação.

2.3. Do protesto de sentença inadimplida

A propósito, outra novidade no cumprimento de sentença – po-sitivada no novo código – é a possibilidade de protesto de sentença ina-dimplida, que pode ser registrada em Cartório de Serventia Extrajudicial, como se fosse um cheque ou uma duplicata não paga, cf. NCPC, art. 517.

Rigorosamente, o protesto já seria possível desde a égide do CPC de 1973, porém tal hipótese não estava expressa na Lei n. 5.869/1973 (CPC/73). Ela foi resultado da construção pretoriana (criada pelos tribunais). Nesta es-teira, encontra-se o escólio do professor José Miguel Garcia Medina:

De acordo com o art. 1.º, caput da Lei 9.492/1997, “protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descum-primento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida”. Na vigência do CPC/1973, a jurisprudência já vinha admitindo o protesto de sentença condenatória transitada em julgado: [...]. O art. 517 do CPC/2015 incorporou essa orientação jurisprudencial. Assim, caso não haja pagamento do valor reconhe-cido na sentença transitada em julgado (cf. art. 523 do CPC/2015), poderá o exequente levar a protesto certidão que contenha tal in-formação, assim como dados relevantes da sentença (cf. § 1.º do art. 517 do CPC/2015).17

Noutros dizeres, o legislador aproveitou o ensejo da feitura do novo Códex para incorporar o posicionamento dos Tribunais Superiores (no caso, do STJ) ao texto legal.

17 MEDINA, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil comentado: com remissões e notas comparativas ao CPC/1973. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 516.

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Assim, já é digno de registro, que essa possibilidade de protesto de sen-tença somente é possível para a execução definitiva. É dizer, para o protesto ser levado a efeito é necessário ter ocorrido o trânsito em julgado. O segundo requisito para o protesto da sentença seria o decurso in albis do prazo para pagamento voluntário, cf. art. 517 c/c art. 523, ambos do CPC de 2015.

Para levar a sentença a protesto, o exequente deve munir-se da cer-tidão do trânsito em julgado, a qual deve expor o teor da decisão. O có-digo diz que essa certidão de trânsito em julgado deve ser fornecida no prazo de três dias úteis.

2.4. Do poder geral de efetivação do Juiz na fase executiva

É bom deixar assentado e sedimentado que o exequente, no curso do cumprimento de sentença, poderá requestar ao juiz a efetivação de medidas atípicas, tudo isto em ordem a garantir a satisfação do título/obrigação. Foi por este espírito que surgiram os Enunciados n. 48 da Es-cola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM) e o n. 12 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC):

Enunciado n. 48 da ENFAM: “O art. 139, IV, do CPC/2015 traduz um poder geral de efetivação, permitindo a aplicação de medidas atípicas para garantir o cumprimento de qualquer ordem judicial, inclusive no âmbito do cumprimento de sentença e no processo de execução baseado em títulos extrajudiciais”.

Enunciado n. 12 do FPPC: “(arts. 139, IV, 523, 536 e 771) A aplica-ção das medidas atípicas sub-rogatórias e coercitivas é cabível em qualquer obrigação no cumprimento de sentença ou execução de título executivo extrajudicial. Essas medidas, contudo, serão apli-cadas de forma subsidiária às medidas tipificadas, com observação do contraditório, ainda que diferido, e por meio de decisão à luz do art. 489, § 1º, I e II”. (Grupo: Execução)

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Deve-se salientar, ainda, por questões pragmáticas, que a prescri-ção intercorrente pode, sim, ser reconhecida no procedimento de cum-primento de sentença, vide Enunciado n. 194 do FPPC.18 Assentadas as premissas do cumprimento de sentença, vejamos agora a questão da com-petência para o julgamento do cumprimento.

3. Competência para o cumprimento de sentença

A disciplina está contida no parágrafo único do art. 516 do NCPC. Este dispositivo corresponde ao revogado art. 475-P, do CPC de 73, e nele (art. 516) consta que há opções de foro para o exequente nas hipóteses dos incisos II e III. Imperioso registrar: as regras do cumprimento de sentença se aplicam à execução de tutela provisória. Neste tema, não é demais lem-brar das oportunas lições de Elpídio Donizetti:

O parágrafo único do art. 475-P do Código de 1973 traz uma exce-ção ao princípio da perpetuatio jurisdictionis, ao passo que possi-bilita o cumprimento de sentença em local diverso daquele em que fora iniciada a tramitação do processo de conhecimento. O NCPC estendeu essa exceção expressamente às hipóteses de cumprimen-to de obrigação fixada em sentença penal condenatória, sentença arbitral, sentença estrangeira, acórdão proferido pelo tribunal ma-rítimo, bem como às decisões relacionadas às obrigações de fazer e não fazer. A regra do art. 516, parágrafo único, a par de excepcio-nar o princípio da perpetuação da competência, mitiga o caráter absoluto da competência funcional do juízo no qual se processou a causa, de modo a permitir a ultimação do cumprimento da senten-ça de forma célere e efetiva.19

18 Enunciado n. 194 do FPPC: “(arts. 921, e 771; enunciado 150 da súmula do STF). A prescrição intercorrente pode ser reconhecida no procedimento de cumprimento de sentença”. (Grupo: Execução)19 DONIZETTI, Elpídio. Novo código de processo civil comentado (Lei nº. 13.105, de 16 de março de 2015): análise comparativa entre o novo CPC e o CPC/73. São Paulo: Atlas, 2015, p. 396.

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Feito o breve registro, é de se seguir adiante com breves aponta-mentos acerca do cumprimento provisório de sentença.

4. Mudanças na Execução Provisória

A execução provisória está regulada no art. 520 do novo pergaminho processual pátrio – NCPC, e passou a ser nominada de “cumprimento pro-visório de sentença”. De forma propedêutica, Daniel Assumpção assevera:

Execução provisória é a execução fundada em título executivo ju-dicial provisório, ou seja, a decisão judicial que pode ser modifi-cada ou anulada em razão da pendência de um recurso interpos-to contra ela. O recurso, naturalmente, não pode ser recebido no efeito suspensivo, pois tal circunstância retira a executabilidade da decisão e, consequentemente, cria um impedimento à execução. [...] Como no Novo Código de Processo Civil toda execução de título executivo judicial passa a ser feita por meio de cumprimento de sentença, inclusive a execução de pagar quantia certa contra a Fazenda Pública e a de alimentos, o novo diploma processual deixa de utilizar o termo “execução provisória” e passa a adotar “cumpri-mento de sentença provisório”.20

Não há muito mais o que se acrescer às judiciosas lições do mestre paulista acima reverenciado. Porém, por amor à completude, recomen-damos a leitura do art. 520 do NCPC. No dispositivo referido consta que a execução provisória serve para o pagamento de quantia certa. Como se pode depreender da leitura do art. 520, inciso I, do novo Código, a execu-ção provisória corre sob responsabilidade objetiva do exequente (consa-grando a teoria do risco-proveito).

Implica dizer que se a sentença vier a ser reformada o exequente deverá ser responsabilizado, arcando com os custos e ressarcindo os pre-

20 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 8 ed. – Salvador: Juspodivm, 2016, p. 1515.

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juízos (comprovadamente) suportados pelo executado. Adrede, consulte-se mais uma vez às lições de Daniel Assumpção:

Prevê o art. 520, I, do Novo CPC que a execução provisória corre por conta e responsabilidade do exequente, em nítida aplicação da teoria do risco-proveito. Significa dizer que a execução provisória é uma opção benéfica ao exequente, já que permite, senão a sua satisfação, ao menos o adiantamento da prática de atos executi-vos. [...] A responsabilidade, nesse caso, é objetiva, de forma que o elemento “culpa” é irrelevante para a sua configuração, bastan-do ao executado provar a efetiva ocorrência de danos em razão da execução provisória. É claro que não existe responsabilidade civil sem dano, de forma que caberá ao executado demonstrar concretamente a sua ocorrência, o que exigirá a propositura de uma liquidação de sentença incidental (g.n.).21

Ressalve-se, entretanto, o entendimento eclipsado no Enunciado n. 49 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM): “No julgamento antecipado parcial de mérito, o cumprimento provisório da decisão inicia-se independentemente de caução (art. 356, § 2º, do CPC/2015), sendo aplicável, todavia, a regra do art. 520, IV”.

Perceba-se que o caso refletido no enunciado atesta que, em caso de julgamento antecipado parcial de mérito, não será necessário – via de regra – a prestação de caução.22 Esta, contudo, será exigível nos casos em que o cumprimento ensejar “o levantamento de depósito em dinheiro e a prática de atos que importem transferência de posse ou alienação de propriedade ou de outro direito real, ou dos quais possa resultar grave dano ao execu-tado, dependem de caução suficiente e idônea, arbitrada de plano pelo juiz e prestada nos próprios autos”, conforme inciso IV do art. 520 do NCPC.

21 NEVES, op. cit., p. 1524.22 Enunciado n. 218 do FPPC, segundo o qual: “(art. 1.026) A inexistência de efeito suspensivo dos embargos de declaração não autoriza o cumprimento provisório da sentença nos casos em que a apelação tenha efeito suspensivo”. (Grupo: Ordem dos Pro-cessos nos Tribunais e Recursos Ordinários)

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Nada obstante, e em que pese a exigência legal de caução para os casos previstos NCPC, art. 520, inciso IV, revela-se possível negócio pro-cessual para elidir a prestação de caução. Neste viés, o Enunciado n. 262 do FPPC: “É admissível negócio processual para dispensar caução no cumprimento provisório de sentença”. (Grupo: Negócios Processuais)

Uma outra mudança, com relação ao regime até então vigente no CPC/1973, é que poderá haver reforma parcial da decisão. E, neste caso, a execução provisória não cai totalmente, permanecendo ativa na parte em que não houve reforma da decisão exequenda.

E, outra coisa, a apuração dos prejuízos causados poderá ser feita por qualquer técnica de liquidação, pode ser por arbitramento ou liquidação pelo procedimento comum (novo nome dado à antiga liquidação por artigos).

Sim, a liquidação por artigos mudou de nome, passando a se cha-mar de “liquidação por procedimento comum”, cf. NCPC, art. 511. Esse dispositivo, retromencionado, é o correspondente do art. 475-O do CPC de 1973. É preciso jogar ao lume, ainda, o § 4º do art. 520 do NCPC, que insculpiu exceção à regra de desfazimento de atos para recomposição das partes, criando situação inteiramente nova.

De rotina, tem-se que, quando cessar a eficácia de uma execução provisória, as partes devem ser ressarcidas para voltarem ao estado an-terior da execução. Porém o NCPC, art. 520, § 4º, excepciona essa regra, dizendo que o retorno ao status quo ante “não implica o desfazimento da transferência de posse ou da alienação de propriedade ou de outro direito real eventualmente já realizada”.

Ou seja, se houver tido, por exemplo, a arrematação de um imó-vel, a hasta pública não é invalidada. Seus efeitos remanescem, sobretudo para proteger o terceiro adquirente. É uma norma de segurança jurídica, pois, não fosse assim, todos aqueles que, eventualmente, se interessassem em adquirir o imóvel não participariam da hasta pública ante ao eventual risco de perder o imóvel em uma reviravolta processual (uma vez que a propriedade estaria, ainda, sendo discutida em juízo).

Outro detalhe importante é que essas regras, previstas para a exe-cução provisória para pagar quantia, aplicam-se – no que couber – para as demais espécies de execução provisória (obrigações de fazer, não fa-zer ou de dar coisa).

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5. Arguição de nulidades por simples petição: previsão legal da exceção de pré-executividade?

O art. 518 do NCPC também traz uma novidade, que é a permissão para arguir nulidades através de simples petição. Provavelmente muitos doutrinadores irão tentar relacionar o texto deste dispositivo com a consa-gração legislativa da “exceção de pré-executividade”, criação doutrinário-forense tradicionalmente atribuída a Pontes de Miranda,23 que se presta a levantar questões de ordem pública que pudessem obstar o seguimento da execução por meio de uma simples petição.

A defesa no cumprimento de sentença continua sendo, ordinaria-mente, a impugnação. E esta é a via adequada para o executado veicular defeitos do processo (invalidades). Ela (impugnação) é a peça de defesa por excelência na execução de título judicial (rectius: cumprimento de sentença). Então, como conciliar essa possibilidade de alegar os vícios por simples petição com a via da impugnação? Não haveria, assim, preclusão para alegar os defeitos?

Ora, a defesa no cumprimento de sentença, como predito, é a im-pugnação. É nesta via que o executado deve concentrar toda a sua defesa, inclusive, àquelas referentes aos vícios formais, tais como: incompetência, excesso de penhora, avaliação errônea; tudo isto pode estar aparelhando a impugnação do executado.

Já a petição avulsa (no caso, simples petição) só pode ser usada em duas situações específicas: 1) para levantar vícios formais supervenientes à impugnação; 2) para alavancar questões que não estão sujeitas à preclu-são (ex: incompetência absoluta).

23 Cf. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Dez anos de pareceres, v. 4, Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves editora S.A, 1975, p. 125-139 apud OLIVEIRA, Katiane da Silva. A objeção de pré-executividade: uma construção doutrinária. Dispo-nível no sítio eletrônico de Conteúdo Jurídico: <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-objecao-de-pre-executividade-uma-construcao-doutrinaria, 49828.html#_ftn1>. Acessado em 18 de agosto de 16.

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Só assim para compatibilizar o art. 518 do NCPC com o meio de defesa da impugnação, uma vez que esta (a impugnação) serve também para promover a defesa perante vícios formais.

6. Generalidades da impugnação ao cumprimento de sentença

O caput do art. 525 versa sobre a impugnação ao cumprimento de sentença, que é – como já visto neste ensaio – o principal meio de defesa na fase de cumprimento de sentença.24 Sobre a natureza da impugnação, inclusive, lecionam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery:

O incidente de impugnação ao cumprimento da sentença é misto de ação e defesa e se constitui como meio de defesa do devedor contra a eficácia do título executivo e contra atos de execução. Ao contrário do que ocorria no CPC/73, segundo o qual a impugna-ção somente podia ser oposta depois de seguro o juízo pela penho-ra, no atual sistema a impugnação pode ser oposta no prazo do pagamento, mas independentemente de penhora. O recebimento do incidente não suspende o curso da execução, salvo se o juiz as-sim o determinar, no caso do CPC 525 § 6º.

Exsurge do texto legal que a parte executada será intimada para o pagamento voluntário do débito, cf. NCPC, art. 523, caput, o que deve ser feito no prazo de 15 (quinze) dias.

Ultrapassado o lapso legal para o pagamento gracioso, começa a correr – sem embargo – o prazo para impugnação ao cumprimento nos próprios autos, vd. NCPC, art. 525, caput. Não é ocioso lembrar que a apresentação da impugnação não impede a prática de atos executivos – conferir o § 6º do art. 525 do NCPC.

24 Neste sentido o Enunciado n. 184 do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC: “(art. 675) Os embargos de terceiro também são oponíveis na fase de cum-primento de sentença e devem observar, quanto ao prazo, a regra do processo de execução. (Grupo: Procedimentos Especiais)”

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E, ainda assim, é preciso que o executado – ao apresentar a impug-nação – respeite os casos e hipóteses legais para oferecer resistência, uma vez que a apresentação de peça manifestamente protelatória poderá ser vista como ato atentatório à dignidade da jurisdição, podendo ser coibida por meio da aplicação de multa, prevista no art. 774, parágrafo único, do NCPC. Este posicionamento, aliás, foi cristalizado no Enunciado n. 50 da ENFAM, in verbis: “O oferecimento de impugnação manifestamente pro-telatória ao cumprimento de sentença será considerado conduta atentató-ria à dignidade da Justiça (art. 918, III, parágrafo único, do CPC/2015), ensejando a aplicação da multa prevista no art. 774, parágrafo único”.

Indo mais além, é induvidoso que a interposição de impugnação manifestamente protelatória dá ensanchas à rejeição liminar da resistên-cia, sendo desnecessário, por isso, chamar a parte adversa para se manifes-tar (NCPC, arts. 9º e 10). É, portanto, o caso de se aplicar o acertado racio-cínio eclipsado no Enunciado n. 55 da ENFAM: “Às hipóteses de rejeição liminar a que se referem os arts. 525, § 5º, 535, § 2º, e 917 do CPC/2015 (excesso de execução) não se aplicam os arts. 9º e 10 desse código”.

É interessante notar que o novo Código dispensa, expressamente, a exigência de garantia do juízo para que o executado possa impugnar o cumprimento de sentença; conferir o NCPC, art. 525, § 6º. Desta feita, destaque-se, restou superado o entendimento das 3ª e 4ª Turmas do c. Superior Tribunal de Justiça (STJ), que perfilhavam o entendimento de que “a garantia do juízo é pressuposto para a apresentação da impugnação ao cumprimento de sentença”.25

Tal regra (de inexigibilidade de caução), ao revés, não subsiste no caso de o executado – impugnando o cumprimento – requestar a conces-são de efeito suspensivo. Porém, se a concessão do efeito suspensivo for parcial, a execução – ainda assim – poderá prosseguir na parte não sobres-tada pelo referido efeito, ex vi do § 8º do art. 525 do CPC/2015.

25 STJ – 3ª T., AgRg no AREsp 374318/SC, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 7.11.2013, DJUE 21.11.2013. No mesmo sentido: STJ – 4ª T., AgRg no Ag 1312084/ES, Rel. Min. Raul Araújo, j. 17.12.2013, DJUE 3.2.2014.

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Ressalve-se que, mesmo concedido o efeito suspensivo, o exequente poderá requerer o prosseguimento da execução mediante a prestação de caução, suficiente e idônea, a ser arbitrada pelo Juiz (NCPC, art. 525, § 10).

O § 11 do art. 525 afirma que os fatos ocorridos após o prazo para oferecimento dos memoriais de impugnação ao cumprimento, bem como aquelas relativas à validade e à adequação da penhora, da avaliação e dos atos executivos subsequentes, podem ser arguidas por simples petição. À vista disto, muitos doutrinadores hão de afirmar que houve, aqui, a previsão legal da exceção de pré-executividade (inclusive, como já foi visto no item 5 deste estudo). A tudo isto se acresça, por fim, que a majoração dos honorários ad-vocatícios, tal como prevista no CPC/2015, art. 827, § 2º, não é aplicável à im-pugnação ao cumprimento de sentença, vide Enunciado n. 51 da ENFAM.26

Nesta toada, vistos os prolegômenos gerais, passa-se, agora, a tra-balhar a hipótese específica de impugnação ao cumprimento de sentença, erigida no CPC/2015, art. 525, § 12, e que deu mote ao presente estudo.

6. Perda de exigibilidade do título judicial por declaração de in-constitucionalidade no STF

Eis o ponto nevrálgico do presente ensaio. Para início de conversa, é preciso estabelecer que havia uma incipiente discussão sobre a natureza e os efeitos da decisão que causa a perda de efeitos da decisão judicial por pecha de inconstitucionalidade declarada pelo STF. Havia defensores, na doutrina, dizendo que a superveniência da decisão do STF não seria, a bem dizer, causa da perda de “exigibilidade”, mas, sim, “exequibilidade”. A esse respeito, consulte-se – por todos – o magistério de Fredie Didier Jr. et allie citando, por seu turno, o professor Araken de Assis:

O executado pode defender-se alegando inexigibilidade da pre-tensão creditícia. A inexigibilidade não é do título, mas ela pre-tensão. Será inexigível a pretensão se pender alguma condição ou termo que iniba a eficácia do direito reconhecido na sentença. [...]

26 Enunciado n. 51 da ENFAM: A majoração de honorários advocatícios prevista no art. 827, § 2º, do CPC/2015 não é aplicável à impugnação ao cumprimento de sentença.

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ARAKEN DE ASSIS sugere outra interpretação para o inciso II do art. 475-L. O autor entende que o inciso refere-se à “inexe-quibilidade, ou seja, à falta de título ou à ausência dos atributos da respectiva obrigação (certeza e liquidez)”; “a inexigibilidade do título executivo impropriamente mencionada no inciso II do art. 475 representa excesso de execução (art. 475-L, V, ele art. 743, lV e V) e integra, portanto, a correspondente rubrica”. Parece cor-reta essa observação. A inexigibilidade da pretensão ficaria mais bem acomodada à hipótese de excesso de execução (art. 743, IV e V). De fato, cuida o inciso de alegação de falta de título executivo ou dos atributos da respectiva obrigação. (...) Embora a menção à inexigibilidade (referência ao inciso II), parece que o caso é de inexequibilidade, nos termos examinados no item anterior: falta de título executivo hábil à execução.27

Lado outro, existiam defensores da perda de exigibilidade.28 Porém é lídimo asseverar que essa discussão perdeu sentido, à vista do que hoje dispõe o art. 525, inciso III, § 12 e ss., os quais resguardam a ideia de que a decisão de inconstitucionalidade, proferida pelo STF, enseja, a bem da verdade, a perda de exigibilidade. Esta foi a opção do legislador.

Ladeando a discussão, por ser de pouca relevância prática, vamos em frente. Um dos pontos mais sensíveis da nova sistemática da impug-nação ao cumprimento de sentença, à evidência, está refletido no NCPC, art. 525, § 12 usque § 15. Estes dispositivos disciplinam a perda de exigibi-lidade da sentença por declaração de inconstitucionalidade.

Como já foi exaustivamente dito nesta lavra, o assunto não é novo, mas passou por uma completa reestruturação. Está se tratando aqui, como cediço, de hipótese de relativização (ou flexibilização) da coisa julgada.

27 DIDIER JR. et al., op. cit., p. 383 usque 385.28 Nesta vereda consulte-se: PETCHEVIST, Daniele. Astreintes – Da exigibilidade a exequibilidade da decisão judicial (Monografia de conclusão de curso). Disponível em: <http://tcconline.utp.br/wp-content/uploads/2012/08/ASTREINTES-DA-EXIGIBILIDA-DE-A-EXEQUIBILIDADE-DA-DECISAO-JUDICIAL.pdf>. Acessado em 15 de agosto de 2016.

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Interessante, assim, ver como eram as açodadas críticas doutriná-rias ao art. 475-L,29 inciso II, § 1º, e do art. 741, parágrafo único, ambos, do vetusto CPC de 1973 (correlatos ao atual art. 525, § 12 e ss, do NCPC). Alguns defendem a constitucionalidade desse instituto (da relativização), outras condenam. Pela defesa da relativização da coisa julgada, cedo a pa-lavra ao já saudoso Ministro Teori Albino Zavascki:

É posicionamento que tem como pressuposto lógico – expresso ou implícito – a sobrevalorização do princípio da coisa julgada, que estaria hierarquicamente acima de outros princípios constitu-cionais, inclusive o da supremacia da Constituição, o que não é verdadeiro. Se o fosse, ter-se-ia de negar a constitucionalidade da própria ação rescisória, instituto que evidência claramente que a coisa julgada não tem caráter absoluto, comportando limitações, especialmente quando estabelecidas, como no caso, por via de le-gislação ordinária.30

Ainda corroborando com tal posicionamento, professa o Juiz Fede-ral Bruno Risch Fagundes de Oliveira:

há inúmeras situações em que existe a contradição entre um bem jurídico constitucionalmente assegurado (coisa julgada) e outro também naturalmente definido pela Carta Magna, qual seja, a jus-tiça das decisões, máxime quando associadas aos termos esparsos no próprio texto constitucional. Tal situação é o que Teori Albino Zavascki denominou de “Conflito entre estabilidade jurídica e jus-tiça das sentenças”. Nesse texto, o ilustre Ministro do STF diz: “Se à segurança das decisões é relevante a profundidade da cognição, à pacificação social o que importa é a estabilidade das decisões.

29 Cf. WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. 3 ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 429.30 ZAVASCKI, Teori Albino. Sentenças inconstitucionais: inexigibilidade. BD-Jur, Brasília/DF, 12. fev. 2008, p. 5. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/hand-le/2011/16404>.Acessado em 18 de agosto de 2016.

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Ainda quando a prestação jurisdicional não tenha chegado a um resultado justo, mesmo assim é importante que a pendência judi-cial assuma o caráter definitivo e imutável, ou seja, que adquira a qualidade de coisa julgada”. Por fim, Zavascki arremata, afirman-do, em suma, que a coisa julgada pode ser relativizada quando em conflito com outros elementos de real importância. Situações inte-ressantes, no que toca ao tema, dizem respeito à superveniência de decisão judicial com força vinculante e eficácia erga omnes (como as proferidas em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, ou até em sede de Recurso Extraordinário, como adiante se verá) e o seu reflexo sobre demandas individuais já transitadas em julgado com exame de mérito.31

Outros doutrinadores, tais como Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery criticam o instituto, inclusive acoimando inconstitucional a restruturação imposta nos §§ 12 usque 15 do NCPC.32 Cônscio da difi-culdade do tema, e à vista da agressiva divergência entre os doutrinadores, cumpre-nos uma análise cuidadosa. Curial, logo à saída, recomendar a lei-tura do art. 525, § 12, do NCPC, pois é dali que nasce toda a exegese.

Destaque-se: a perda da exigibilidade (ou, para quem assim entende, da exequibilidade) ocorre se o cumprimento de sentença tem como lastro ato normativo que o Supremo declarou inconstitucional, ou mesmo incom-patível com a CRFB, seja em sede de controle difuso33 ou concentrado. Po-rém a perda da eficácia – é bom dizer – sói ocorrer na específica situação de

31 OLIVEIRA, Bruno Risch Fagundes de. A coisa julgada inconstitucional. Revista de Doutrina da 4ª Região. Porto Alegre, n. 56, out. 2013. Edição especial 25 anos da Cons-tituição de 1988. (Grandes temas do Brasil contemporâneo). Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao056/ Bruno_de_Oliveira.html>. Acessado em 19 de agosto de 2016.32 NERY JR.; NERY, op. cit., p. 1307-1308.33 ROCHA, José de Moura. Dos recursos para o STF e o STJ. BORGES, José Souto Maior (Coord.). Anuário do Mestrado em Direito, n. 5, ano 5. Universidade Federal de Pernambuco/Faculdade de Direito do Recife/CCJ. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1992, p. 187 e ss.

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o STF proferir sua decisão ANTES do trânsito em julgado da decisão exe-quenda, nos termos do NCPC, art. 525, § 14. Veja que, até aqui, tudo bem.

A problemática, contudo, nasce se a decisão emanada da Corte Cons-titucional for posterior ao trânsito da decisão exequenda. Nesse caso, não ocorre perda da eficácia automaticamente (como no caso do NCPC, 525, § 12), o que se justifica, inclusive, por questões de segurança jurídica.34

Porém, pondera-se: haverá, sim, um abalo da coisa julgada, apta a ensejar a propositura de ação rescisória, cujo prazo só começa a correr do trânsito em julgado da decisão proferida pelo c. STF. Esta é a inteligência do § 15, art. 525, do NCPC.

Pronto. Chegamos ao problema! Pelo simples cotejo entre o art. 475-L, inciso II, § 1º, do CPC/73 e o

novo Código de Processo, art. 525, §§ 12 usque 15, percebe-se que houve a solução parcial de um grande problema. É que, na vigência do CPC de 1973, muito se discutia se a decisão de inconstitucionalidade poderia ser lastreada em sede de controle difuso ou se era apenas em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Esta discussão tinha espaço ampara-da na tese da objetivação do controle difuso de constitucionalidade, bem ainda porque o dispositivo legal nada esclarecia a esse respeito.

Nos casos do § 13 o legislador esclarece, ainda, que os efeitos da decisão do Supremo poderão ser modulados, notadamente – e mais uma vez – em atenção à segurança jurídica. Pois bem, da simples leitura do re-ferido dispositivo (NCPC, art. 525, § 13) podemos tirar duas conclusões:

I) houve uma previsão expressa de modulação de efeitos em sede de controle difuso de constitucionalidade (coisa que não existia no CPC/1973);

34 Para maiores informações, recomenda-se a leitura de: THEODORO JÚNIOR, Humberto. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica. In: DUARTE, Bento Herculano; DUARTE, Ronnie Preuss (Coords.) Processo civil: aspectos relevantes; v. 2: estudos em homenagem ao prof. Humberto The-odoro Júnior. São Paulo: Método, 2007, p. 279 e ss.

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II) se a retroação da modulação dos efeitos ficar limitada a de-terminada data, os atos anteriores ao limite estabelecido pelo STF continuarão válidos, e o cumprimento plenamente eficaz.

É imperioso destacar que, já na vigência do CPC de 73, a doutrina criticava exaustivamente a redação do art. 475-L, inciso II, § 1º, levantan-do hipóteses de preclara agressão à segurança jurídica, se, por exemplo, houvesse uma sentença no ano de 2000, e o Supremo viesse a declarar a inconstitucionalidade do ato normativo em 2010.

Note-se que, no exemplo, há um lapso de dez anos entre a sentença e a declaração de inconstitucionalidade, e mesmo assim, não haveria limites para a perda de eficácia (no CPC/73), fato este que causava muitos transtornos e questionamentos por falta de regulamento normativo. Neste peculiar sentido, traz-se à colação o posicionamento de Marcus Vinícius Rios Gonçalves:

Inexigibilidade do título. O título inexigível é aquele que não pode ser co-brado, porque depende de certas circunstâncias que ainda não se verifi-caram. Será inexigível um valor fixado em acordo para pagamento em determinada data, que ainda não tenha chegado; ou aquele que contenha obrigações bilaterais, quando se verifique que o exequente ainda não cum-priu a sua parte. A exigibilidade está intimamente relacionada ao interes-se para executar. Enquanto não verificada, o exequente será considerado carecedor de ação. Estabelece o art. 475-L, § 1º: “O dispositivo tem sus-citado numerosas controvérsias e críticas. Ele estende os efeitos da de-claração direta de inconstitucionalidade para processos já julgados, até com trânsito em julgado. Se um processo foi sentenciado com funda-mento em determinação da lei, e já transitou em julgado, a declaração de inconstitucionalidade da lei na qual o juiz se baseou tornará o título inexigível, independentemente de ação rescisória. A crítica é que o dis-positivo pode trazer insegurança: mesmo uma sentença já definitiva pode ser considerada inexigível, se anos depois o Supremo Tribunal Federal reconhecer que a lei em que fundada é inconstitucional.”35

35 GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil: execução e processo cautelar: volume 3. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 164.

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Se não houvesse, pois, a aplicação da técnica decisória da modula-ção dos efeitos, essa execução – acaso tramitando – claramente seria afe-tada pela decisão do STF. Assim, com essa mudança, instituída no NCPC, art. 525, § 13, aparentemente resolve-se uma parte dos problemas. Porém, existem outros, que serão enfrentados mais adiante.

Outro dispositivo que merece destaque é o § 14 do art. 525 do NCPC. Lá consta que a decisão do STF deve ser proferida antes do trânsito em julga-do da decisão exequenda, pois, caso contrário – se a decisão do Supremo for proferida após o trânsito em julgado – aplica-se o § 15, do art. 525 do NCPC.

Observe-se que, se a decisão do Supremo for posterior ao trânsito em julgado da sentença, não será mais caso de perda automática de exigibilida-de/exequibilidade da decisão, será – isso sim – hipótese de ação rescisória. A diferença é que o prazo da rescisória, segundo a norma, começará a cor-rer a partir do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF. Ao pro-pósito, cite-se o escólio de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery:

Na hipótese de o STF proferir a decisão de inconstitucionalidade, cujo trânsito em julgado ocorrer depois de transitada em julgado a decisão que está sendo executada, o executado não poderá ale-gar a inexequibilidade do título nem a inexigibilidade da obrigação (CPC 525 § 1º III), em virtude do disposto no CPC 525 § 14. O texto ora comentado autoriza a rescindibilidade da sentença ou do acórdão exequendo (CPC 966 V), no prazo previsto para o exercí-cio da ação rescisória – 2 anos (CPC 975 caput).36

E, é no azo destas colocações que se revela oportuno abrir o próximo tópico, destinado a resolver um problema: a questão da segurança jurídica contraposta à impossibilidade de convalidação de atos inconstitucionais.

36 NERY JR.; NERY, op. cit., p. 1309.

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7. Resolvendo um problema: a segurança jurídica versus a impos-sibilidade de convalidação de atos inconstitucionais

À vista das linhas transatas, é certo que nasceu uma premente e inadiável discussão acerca da (in)constitucionalidade das regras insculpi-das nos parágrafos 12 usque 15 do art. 525 do NCPC. A primeira pergunta que se pode fazer, pela mera leitura do § 15, art. 525, do NCPC é: existem, assim, duas chances para opor ação rescisória em um mesmo processo?

A pergunta é pertinente, à vista de que ordinariamente o prazo da rescisória começa com o trânsito em julgado da última decisão proferi-da no processo. Porém, é digno de destaque que, na singular situação do NCPC, art. 525, § 15, o legislador aparentemente criou um segundo pra-zo para ajuizamento da rescisória, o qual só começa a correr (dies a quo) a partir do trânsito em julgado da decisão que reconhece a inconstitucio-nalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal, seja em sede controle concentrado ou difuso.

A princípio, incompossível imaginar a possibilidade de ajuizamen-to de duas rescisórias. Essa lição é comezinha, e, inclusive, já era sustenta-da por Rui Barbosa, no auge do seu magistério:

Do mesmo gênero que essa é a outra fantasia jurídica, a que [...] é rescindir acórdãos proferidos em ação rescisória. Se assim fosse, teria razão, com efeito, o réu em increpar a autora de querer “re-duzir a nada o caso soberanamente julgado.” Caso soberanamente julgado é, em verdade, na linguagem de um dos nossos maiores ju-risconsultos, “aquele que não pende mais de recursos nem de ação rescisória”. A ação rescisória não se repete. Se, portanto, havendo já intentado uma, promovesse outra agora [...], a segunda seria uma tolice, e o caso estaria soberanamente julgado.37

37 BARBOSA, Rui. Nulidade e rescisão de sentenças. Atualizador e anotador: Ri-cardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN ed., 2003, p. 83

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Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery asseveram:

determina o texto comentado que o dies a quo desse prazo seja o do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF. Have-ria, portanto, dois prazos de rescisória? A pretensão rescisória extinta pela decadência não pode renascer pela decisão futura do STF. Saliente-se que a ADIn, por exemplo, não tem prazo de exercício previsto em lei, de sorte que se trata de pretensão perpétua, que pode ser ajuizada dois, cinco, dez, vinte anos de-pois da entrada em vigor da lei apontada inconstitucional. Por óbvio, a rescisória – instituto que se caracteriza como exceção à regra constitucional da intangibilidade da coisa julgada ma-terial, – [...] que, como exceção, deve ser interpretada restriti-vamente – não pode receber esse mesmo tratamento e nem as partes devem se submeter à essa absoluta insegurança jurídi-ca. Daí por que, extinta a pretensão rescisória pela decadência, não pode renascer. Entendimento diverso ofenderia o princípio constitucional da segurança jurídica e a garantia fundamental da intangibilidade da coisa julgada (CF 5º, XXXVI). Para que possa dar-se como constitucional, o dies a quo fixado no tex-to normativo sob comentário deve ser interpretado conforme a Constituição. Assim, somente pode ser iniciado o prazo da rescisória a partir do trânsito em julgado da decisão do STF, se ainda não tiver sido extinta a pretensão rescisória cujo prazo te-nha-se iniciado do trânsito em julgado da decisão exequenda. Em outras palavras, o que o texto comentado autoriza é uma espécie de alargamento do prazo da rescisória que está em curso.38

Premido das lições acima expostas, calha a pergunta: há violação do princípio da segurança jurídica pela rediscussão de coisa soberana-mente julgada em virtude do reconhecimento a posteriori de inconstitu-cionalidade pelo Supremo Tribunal Federal? Ou seja, a decisão judicial

38 NERY JR.; NERY, op. cit., p. 1309.

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transitada em julgado pode ser desfeita a qualquer momento, ante a de-claração a inconstitucionalidade (ou incompatibilidade) de um diploma normativo pelo Supremo?

Da forma como posta no § 15 do art. 525 do NCPC, não importa quando tenha sido proferida a sentença/acordão exequendo; se a execu-ção ainda estiver em trâmite, a decisão do Supremo, em sede de controle concentrado ou difuso, reabrirá a discussão sobre a exigibilidade do título, abalando-o e dando margem a nova rescisória.

Então, a preocupação aqui é com a segurança jurídica, contudo há argumentos razoáveis para ambos os lados. Explico. De um lado, exsurge o princípio da segurança jurídica, bem como o respeito à coisa soberana-mente julgada (CRFB, art. 5º, inciso XXXVI). De outro lado, temos a ideia de que atos inconstitucionais não se convalidam pelo decurso do tempo.

Ora, como conciliar essas premissas contrapostas? Será razoável dei-xar tudo à luz do caso concreto, cabendo sempre ao STF resolver a questão da segurança jurídica por meio da técnica de modulação dos efeitos?

Entende-se que não. E propomo-nos a responder a essas questões. A modulação de efeitos é, sim, uma saída viável para resolver o eventual conflito entre a segurança jurídica/coisa julgada e a impossibilidade de convalidação de atos inconstitucionais.

Contudo, não convém – como predito – deixar tudo nas mãos dos Ministros do c. STF, pois – acredita-se – não existem lacunas no nosso sistema jurídico. As omissões legislativas são auto integráveis pelas outras normas do ordenamento, que se completam e se complementam por meio da teoria do diálogo das fontes. É desta premissa que devemos partir. For-te nisso, vamos ao raciocínio!

De bom alvitre salientar que há posicionamento jurisprudencial – inclusive sustentado no seio do c. Pretório Excelso – no sentido de que atos inconstitucionais não se convalidam pelo decurso do tempo. Neste escorreito viés, colaciona-se judicioso precedente da Suprema Corte bra-sileira – STF, da lavra do e. Min. Celso de Mello, assim vazado:

Ação direta de inconstitucionalidade e prazo decadencial. O ajui-zamento da ação direta de inconstitucionalidade não está sujeito a observância de qualquer prazo de natureza prescricional ou de

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caráter decadencial, eis que atos inconstitucionais jamais se con-validam pelo mero decurso do tempo. Súmula 360.39

Tais posicionamentos partem, por seu turno, de uma lógica irrefu-tável: atos inconstitucionais não podem, não devem, se convalidar pelo mero decurso do tempo. Com a palavra, o percuciente Ministro do STF, Luís Roberto Barroso:

Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. E a falta de validade traz como consequência a nulidade ou a anu-labilidade. No caso da lei inconstitucional, aplica-se a sanção mais grave, que é a de nulidade. Ato inconstitucional é ato nulo de ple-no direito. Tal doutrina já vinha proclamada no Federalista33 e foi acolhida por Marshall, em Marbury v. Madison: “Assim, a particu-lar linguagem da constituição dos Estados Unidos confirma e reforça o princípio, que se supõe essencial a todas as constituições escritas, de que uma lei contrária à constituição é nula”. A lógica do raciocínio é irrefutável. Se a Constituição é a lei suprema, admitir a aplicação de uma lei com ela incompatível é violar sua supremacia. Se uma lei inconstitucional puder reger dada situação e produzir efeitos regulares e válidos, isso representaria a negativa de vigência da Constituição naquele mesmo período, em relação àquela matéria. A teoria constitucional não poderia conviver com essa contradição sem sacrificar o postulado sobre o qual se assenta. Daí por que a inconstitucionalidade deve ser tida como uma forma de nulida-de, conceito que denuncia o vício de origem e a impossibilidade de convalidação do ato. Corolário natural da teoria da nulidade é que a decisão que reconhece a inconstitucionalidade tem caráter

39 STF – ADI n. 1.247-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-8-1995, Plenário, DJ de 8-9-1995. Transcreve-se, de propósito, o Enunciado n. 360 da Súmula do STF, que corrobora o julgamento acima firmado: “Não há prazo de decadência para a re-presentação de inconstitucionalidade prevista no art. 8º, parágrafo único, da Constituição Federal”. No mesmo viés, consulte-se ainda, mutatis mutandi, a Ementa da ADI n. 2.158 e ADI 2.189, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 15.09.2010, Plenário, DJE de 16.12.2010.

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declaratório — e não constitutivo —, limitando-se a reconhecer uma situação preexistente. Como consequência, seus efeitos se produzem retroativamente, colhendo a lei desde o momento de sua entrada no mundo jurídico. Disso resulta que, como regra, não serão admitidos efeitos válidos à lei inconstitucional, devendo to-das as relações jurídicas constituídas com base nela voltar ao status quo ante.40

Note-se, por isso, que a própria tese de impossibilidade de convali-dação de atos inconstitucionais, bem como o seu reconhecimento, visam prestigiar o princípio da segurança jurídica. Difícil, inclusive, de se ima-ginar um Estado Democrático de Direito com a manutenção de qualquer ato inconstitucional como regra. Porém, como sempre, há exceções.

É de se destacar que o próprio STF, por vezes, decidiu manter vá-lidos atos inconstitucionais sob o fundamento de “estabilização das re-lações jurídicas”. E, o que seria essa dita “estabilidade” senão a própria consagração do princípio da segurança jurídica?

À guisa de exemplo, colha-se – naquilo que se revela pertinente – recente precedente (2016) do c. Supremo Tribunal Federal, mais de vinte anos depois do julgamento da ADI n. 1.247-MC, cuja relatoria coube no-vamente ao agora decano Ministro Celso de Mello:

EMENTA: COISA JULGADA EM SENTIDO MATERIAL. IN-DISCUTIBILIDADE, IMUTABILIDADE E COERCIBILIDA-DE: ATRIBUTOS ESPECIAIS QUE QUALIFICAM OS EFEITOS RESULTANTES DO COMANDO SENTENCIAL. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL QUE AMPARA E PRESERVA A AUTORI-DADE DA COISA JULGADA. EXIGÊNCIA DE CERTEZA E DE SEGURANÇA JURÍDICAS. VALORES FUNDAMENTAIS INE-

40 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito bra-sileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 32. No mesmo sentido, confira-se: LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 373.

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RENTES AO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. EFICÁ-CIA PRECLUSIVA DA “RES JUDICATA”. “TANTUM JUDICATUM QUANTUM DISPUTATUM VEL DISPUTARI DEBEBAT”. CON-SEQUENTE IMPOSSIBILIDADE DE REDISCUSSÃO DE CON-TROVÉRSIA JÁ APRECIADA EM DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO, AINDA QUE PROFERIDA EM CONFRONTO COM A JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. – A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de es-pecífica ação autônoma de impugnação (ação rescisória) que haja sido proposta na fluência do prazo decadencial previsto em lei, pois, com o exaurimento de referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento posterior, tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito de fiscalização incidental de constitucionalidade. – A decisão do Supremo Tribunal Federal que haja declarado inconstitucional determinado diploma legislati-vo em que se apoie o título judicial, ainda que impregnada de eficá-cia “ex tunc”, como sucede com os julgamentos proferidos em sede de fiscalização concentrada (RTJ 87/758 – RTJ 164/506-509 – RTJ 201/765), detém-se ante a autoridade da coisa julgada, que traduz, nesse contexto, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, “in abstracto”, da Suprema Corte. Doutrina. Precedentes.41

À vista do posicionamento do mais alto Sodalício Pátrio, percebe-se que os professores Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery estão recobertos de razão.42 É preciso dar interpretação conforme à Constituição,

41 STF - Processo: AI 809714 MS. Relator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamen-to: 17/03/2016.42 NERY JR.; NERY, op. cit., p. 1309.

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em ordem a manter a estabilização das relações jurídicas (que nada mais é do que a consagração do princípio da segurança jurídica), mantendo-se, ainda, o respeito à coisa soberamente julgada (res judicata) e a boa fé.

Por essa razão, se não estabelecermos sobre o NCPC, art. 525, § 15, uma interpretação conforme à Constituição – no sentido de que “somente pode ser alargado o prazo da rescisória pela decisão do STF, se a pretensão rescisória ainda não tiver sido extinta pela decadência da primeira ação rescisória”43 –, o texto normativo inevitavelmente estará eivado de incons-titucionalidade.

Nesta pisada, percebe-se que as duas premissas contrapostas, ainda que inconciliáveis em um primeiro contato, se mantém válidas. Se de um lado temos por regra que atos inconstitucionais não se convalidam pelo decurso do tempo, de outro lado – à exceção – será possível a manutenção de atos inconstitucionais, dês que a situação esteja recoberta pelo manto da coisa soberanamente julgada (material), ou seja, tal como versava Rui Barbosa, é preciso que na decisão não penda recurso ou ação rescisória.

Exauridas as considerações necessárias à real compreensão das assertivas e preocupações postas nesta lavra, revela-se agora o momento propício para assentar as conclusões do presente estudo.

Conclusão

Didaticamente, é lídimo asseverar que o novo Código de Processo Civil reestruturou inteiramente a disciplina da “inexigibilidade da obriga-ção reconhecida em título judicial” por declaração, pelo Supremo Tribunal Federal, de inconstitucionalidade/incompatibilidade de atos normativos em face da Constituição. Viu-se também que esse dito reconhecimento pode defluir do controle concentrado ou difuso de constitucionalidade.

Nesta empreitada, também é certo, o legislador estabeleceu novos lindes e resolveu, assim, parte de um antigo problema: fincou como o li-mite para a perda de eficácia do título judicial o trânsito em julgado da decisão exequenda, cf. § 12, do art. 525. Porém, ao passo em que resolveu

43 NERY JR.; NERY, op. cit., p. 1309.

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o antigo problema, o legislador acabou criando um novo: instituiu que a decisão do Supremo, após o trânsito em julgado da decisão exequenda, abre um novo caminho para a via estreita da ação rescisória. Pior: da for-ma como posta, a redação do atual § 15 do art. 525 do CPC/2015, cria dois prazos para a propositura da ação rescisória:

I) o primeiro, que tem como dies a quo o trânsito em julgado da última decisão proferida nos autos; II) o segundo, que só começará a correr a partir do trânsito em jul-gado da decisão proferida pelo Supremo, que declarar a inconstitu-cionalidade/incompatibilidade de ato normativo face à Constituição.

Percebe-se, portanto, que a inovação legislativa criou uma premente si-tuação de insegurança para o jurisdicionado. Acreditamos, inclusive, que a al-teração se deu em obséquio à máxima de que os atos inconstitucionais não se convalidam pelo decurso do tempo; conferir Súmula do STF, enunciado n. 360.

Entretanto, mesmo que a dita máxima seja verdadeira, é igualmente certo que o c. Pretório Excelso – STF – tem determinado, casuisticamente, a manutenção de atos inconstitucionais, sob o fundamento de estabili-zação das relações jurídicas, que nada mais é do que a consagração do princípio da segurança jurídica. Nesta enseada, há uma aparente contra-dição. Mas, pelo estudo verticalizado neste ensaio, percebe-se que ambas as premissas podem coexistir em nosso ordenamento jurídico.

Ao remate, cumpre asseverar que para não haver pecha de inconstitu-cionalidade sobre o NCPC, art. 525, § 15, é preciso que ao seu texto seja dada interpretação conforme a Constituição, no sentido de assentar que o suposto segundo prazo de ação rescisória é, na verdade, um alargamento do primeiro.

Ou seja, o § 15 do NCPC, art. 535, só incidirá no caso de o Supremo declarar a inconstitucionalidade dentro do prazo decadencial da primeira ação rescisória (que é de dois anos, contados do trânsito em julgado da decisão exequenda).

Qualquer interpretação em sentido contrário, além de contrariar a mais recente exegese fornecida pelo STF, tende a vilipendiar, não apenas o princípio da segurança jurídica, mas também, a garantia fundamental da coisa julgada material (CRFB, art. 5º, inciso XXXVI).

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A Crise Financeira da Federação Brasileira e o Fundo Estadual de Combate à Pobreza

José Carlos Bastos Silva Filho1

Marcos Antônio Alves de Andrade2

1 Procurador do Estado do Piauí, advogado, professor, mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).2 Procurador do Estado do Piauí, advogado, especialista em Direito Constitucio-nal Aplicado pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus.

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Sumário: 1. Introdução. 2. Apresentando o problema central: o quadro normativo acerca dos fundos estaduais de combate à pobreza e a tese dos Municípios. 3. A jurisprudência do STF. 4. Pressuposto ético, no mínimo, questionável. 5. Direitos fundamentais e a moderna interpre-tação constitucional do art. 82, §1º, do ADCT. 5.1 A fundamentalidade material do art. 82, §1º, do ADCT; 5.2 Natureza da norma de direito fun-damental contida no art. 82, §1º, do ADCT: direito fundamental à organi-zação.; 5.3 A eficácia direta e imediata das normas de direito fundamental, incluindo o art. 82, §1º, do ADCT; 5.4. Em suma: um dispositivo, duas interpretações. 6. Elementos tradicionais de interpretação constitucional e o art. 82, §1º, do ADCT. 6.1 O elemento gramatical; 6.2 O elemento sistemático; 6.3 O elemento finalístico. 7. Proposições finais. Referências.

Resumo: O presente trabalho discute a guerra fiscal vertical, esta-belecida entre os Municípios e os Estados, em torno da divisão da parcela adicional do ICMS destinada aos fundos estaduais de combate à pobreza, que está prevista no art. §1º, do art. 82, do ADCT. Apresenta uma in-terpretação deste dispositivo constitucional, fundamentada tanto em ele-mento modernos quanto nos tradicionais de interpretação constitucional. Ao final, propõe cinco conclusões que buscam afastar a pretensão munici-pal e conferir eficácia plena e aplicabilidade imediata à norma contida no dispositivo objeto de estudo.

Palavras-chave: Fundo Estadual de Combate à Pobreza – Adicio-nal de ICMS – Interpretação Constitucional.

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1. Introdução

A Federação é a expressão de uma das formas de organização do Estado. Ela é uma forma de estruturar, institucionalmente, a divisão de poderes em uma determinada nação. Sua principal característica, sob a perspectiva da distribuição interna de poder, é a coexistência, dentro de um mesmo sistema político, “de vários níveis de governo, cada um com reivindicações constitucionalmente fundamentadas em algum grau de au-tonomia organizacional e autoridade jurisdicional”.3

Sérgio Ferrari aponta, em resumo, como características do Estado Federal:

descentralização política (com repartição de competências legisla-tivas, administrativas e judiciais), participação dos Estados-mem-bros na formação da vontade nacional (através de um órgão pró-prio do Poder Legislativo) e a autonomia dos Estados-membros (aí incluída a auto constituição, que é destacada por alguns autores como característica à parte, o autogoverno e auto-administração). Deve-se destacar como característica autônoma, como faz Luís Roberto Barroso, a competência tributária própria dos Estados-membros. De fato, sem a garantia de receitas próprias para o exercício de suas competências, a autonomia dos entes federati-vos ficaria reduzida a uma ficção4. (grifamos).

Ao conceito formal de Federação é comum associar-se um con-junto de valores os quais, juntos, caracterizam a doutrina do federalismo. Entre estes valores, Cristiano Martins5 destaca os seguintes: autodetermi-

3 HALBERSTAM, Daniel. Federalism: Theory, Policy, Law. In: ROSENFELD, Mi-chael; SAJO, András (Eds.). The Oxford Hand book of Comparative Constitutional Law. Oxford: OUP, 2012, p. 580.4 FERRARI, Sérgio. Constituição estadual e federação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 44-45.5 MARTINS, Cristiano Franco. Princípio federativo e mudança constitucional: limi-tes e possibilidades na Constituição brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 33.

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nação, tolerância, integração e participação. A Federação tem a pretensão de estabelecer um relacionamento eficiente entre tais valores, conjugando, ao mesmo tempo, a unidade das partes em torno de interesses comuns e a diversidade (ou individualidade) por meio do respeito às diferenças. Diz-se, comumente, portanto, que toda Federação pretende garantir “a unidade dentro da diversidade”.

Não bastasse a complexa convivência de ordens jurídicas e de níveis de governo que são característicos da organização de poder no federalismo, ainda há que se destacar que, dentro dos valores plurais que este congrega, é possível encontrar uma espécie de “tensão interna”. Wilba Bernardes, defen-dendo que o federalismo é sempre um conceito incompleto e em constru-ção permanente, destaca as tensões que o marcam internamente:

Quando falamos em federalismo com esse conteúdo, podemos constatar uma tensão interna permanente inerente a esse conceito, pois trabalha com aspectos, inicialmente, opostos: liberdade e au-toridade, igualdade e diferença, diversidade e unidade, autonomia e interdependência, centralização e descentralização, independên-cia e entendimento comum, integração e dispersão. Tal fato, na ver-dade, reafirma seu valor ao invés de destruí-lo, pois é justamente nessa tensão que o federalismo se firma como a opção viável para a atual sociedade – fragmentada e pluralista – nas formas de orga-nizações territoriais de poder, visando a uma distribuição espacial desse poder. [...] Dessa forma, é justamente neste “cabo de guerra” entre diversidade e unidade, nesta tensão previamente posta, que concorremos para obter a paz social ou o “fio de harmonia” .6

Desta feita, diante destes conflitos internos, das disputas de poder entre os diversos níveis e da submissão do cidadão, ao mesmo tempo, a diferentes ordens de normas, pode-se perceber a importância da função desempenhada por uma corte que faça as vezes de “Tribunal da Federa-

6 BERNARDES, Wilba Lúcia Maia. Federação e federalismo: uma análise com base na superação do Estado Nacional e no contexto do Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 48.

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ção”. Ela tem a missão de dirimir os inúmeros problemas que exsurgem do exercício de poder pelas várias esferas de governo que convivem num mesmo sistema político. Daí porque as constituições de estados federais sempre conterem a previsão de existência de um tribunal que, atuando como terceiro desinteressado, possa solucionar os conflitos de competên-cias e interesses entre os governos integrantes da federação.

A Federação Brasileira não foge a estas características. Sob a divi-são constitucional de competências convivem três ordens jurídicas. União, Estados e Municípios disputam, entre si, um conjunto de competências le-gislativas, administrativas e tributárias, delineadas na Constituição Federal de 1988. Como árbitro destas disputas, encontra-se o Supremo Tribunal Fe-deral, o qual, não raras vezes, privilegia a centralização federativa em torno do governo federal, em detrimento da autonomia de Estados e Municípios.7

Fato é que a convivência entre os entes federativos, no Brasil, não é harmônica. Na busca por mais recursos para cumprir com as suas res-ponsabilidades administrativas atribuídas pela Constituição, os entes po-líticos buscam expandir, de algum modo, a sua parcela do bolo dos recur-sos tributários. Este é um dos sintomas pelos quais é possível dizer que o federalismo fiscal brasileiro está em crise, por não ser capaz de distribuir, de forma equilibrada, entre os níveis de governo, responsabilidades admi-nistrativas e recursos para custeá-las.8

As disputas por mais recursos de natureza tributária ou investi-mentos privados, travadas entre os membros da Federação brasileira, con-vencionou-se chamar de “guerra fiscal”, que pode ocorrer tanto em nível horizontal quanto vertical. No primeiro caso, disputam recursos ou inves-timentos dois ou mais entes federativos situados num mesmo nível (Estado

7 A propósito do tema, cf.: SOUZA, Celina. Federalismo, desenho constitucional e instituições federativas no Brasil pós 1988. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 24, p. 105-121, 2005.8 Sobre tema, consultar: REZENDE, Fernando. A crise do federalismo brasilei-ro: evidências, causas e consequências. O federalismo brasileiro em seu labirinto: crise e necessidades de reforma. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. Ou, ainda: REZENDE, Fer-nando; OLIVEIRA, Fabrício; ARAÚJO, Erika. O dilema fiscal: remendar ou reformar? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007; CHARNESKI, Heron. Tributação e autonomia no Estado Federal brasileiro. São Paulo: BH Editora, 2006.

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vs. Estado ou Município vs. Município). Enquanto que, no segundo, a dis-puta é estabelecida entre níveis diferentes de governo (por exemplo: Estado contra a União, Município contra Estado, ou Município contra a União).

O presente trabalho tem por objetivo principal apresentar uma das facetas da guerra fiscal que traduz o estágio atual da crise do federalismo fiscal brasileiro. Trata-se da guerra fiscal de natureza vertical, declarada pelos Municípios contra os Estados. O objeto da disputa é o montante de 25% da parcela extra do ICMS prevista no art. 82, §1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Esta “parcela extra de ICMS”, cuja alíquota poderá chegar ao máximo de 2%, acresce-se à arrecadação normal do ICMS e está destinada, previamente, pela própria Constituição Federal, ao “Fundo Estadual de Combate à Pobreza”. Por for-ça de regra constitucional, esta parcela não está sujeita à repartição do produto da arrecadação do ICMS determinada pelo art. 158, IV, da CF/88.

Como objetivo secundário, este estudo se propõe a apresentar uma argumentação de status constitucional em torno do seu objeto, o art. 82, §1º, do ADCT. Os argumentos que serão apresentados intencionam con-trapor a tese que sustenta a pretensão dos Municípios a uma parte dos referidos recursos. Se bem-sucedida a argumentação aqui apresentada, consequentemente, será mantida a vinculação direta de um volume con-siderável de recursos públicos estaduais9 à manutenção de ações e pro-gramas destinados à redução da pobreza,10 razão pela qual se justifica a importância desta pesquisa e a sua relação com a questão (implícita) do fortalecimento da democracia.

Estruturalmente, o trabalho está dividido em três partes. Na primeira delas, de cunho introdutório, apresentaremos a tese que sustenta a preten-são municipal a uma parcela dos recursos dos fundos estaduais de combate à pobreza. A segunda parte tratará da interpretação constitucional do art.

9 No Estado do Piauí, por exemplo, segundo o Balanço referente ao ano de 2016. Foram arrecadados R$ 69.473.566,00 a título de ICMS destinado ao FECOP-PI. Disponí-vel em: <<http://www.sefaz.pi.gov.br/balanco/2016/>>. Acessado em 15 de junho de 2017.10 Das 27 unidades federativas, apenas os Estados do Acre, Amapá, Roraima e San-ta Catarina, até a data do fechamento da pesquisa (15 de junho de 2017), não haviam instituído fundos estaduais de combate à pobreza, nos termos do art. 82, §1º do ADCT.

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82, §1º, com fundamento na doutrina dos direitos fundamentais, seguindo a “moderna metodologia de interpretação constitucional”. A terceira e últi-ma parte apresentará argumentos de interpretação constitucional a partir de “elementos tradicionais de interpretação constitucional”.11 Ao final, as conclusões serão apresentadas em forma de proposições.

2. Apresentando o problema central: o quadro normativo acerca dos fundos estaduais de combate à pobreza e a tese dos municípios

O Texto Constitucional de 1988 não previu, em sua redação ori-ginária, a criação dos denominados “fundos de combate à pobreza”. Eles tiveram sua criação autorizada por meio da Emenda Constitucional nº 31/2000, que acresceu os artigos 79 a 83 ao Ato das Disposições Constitu-cionais Transitórias (ADCT).

O ponto central, que atraiu os olhares, à época da edição desta Emenda Constitucional, foi o art. 83,12 que condicionou a criação dos fundos estaduais e municipais à edição de uma lei federal, que deveria definir os produtos e serviços supérfluos sobre os quais poderia incidir o adicional de até 2% (dois por cento) na alíquota do ICMS (imposto de competência dos Estados) e de 0,5% (meio por cento) para o ISS (imposto municipal). Estes adicionais foram previstos pelos parágrafos 1º e 2º do artigo 82.13 Contudo, essa lei federal não foi editada.

11 Para o estabelecimento de uma diferença entre a “metodologia tradicional” e os “novos paradigmas” da interpretação constitucional, cf.: BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013; Ou, ainda: SOUSA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014.12 Art. 83. Lei federal definirá os produtos e serviços supérfluos a que se referem os arts. 80, inciso II, e 82, §§ 1º e 2º.13 Art. 82. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem instituir Fundos de Combate à Pobreza, com os recursos de que trata este artigo e outros que vierem a destinar, devendo os referidos Fundos ser geridos por entidades que contem com a parti-cipação da sociedade civil.§ 1º Para o financiamento dos Fundos Estaduais e Distrital, poderá ser criado adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias

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Alguns Estados, mesmo antes da edição da referida lei federal de-finidora dos produtos e serviços supérfluos, promulgaram leis criando fundos de combate à pobreza,14 tendo como fonte de recurso o incre-mento da alíquota do ICMS autorizado pela EC nº. 31/2000. Logo, os contribuintes não demoraram a ingressar em juízo contra o aumento da alíquota do ICMS, diante da ausência de lei federal que definisse quais seriam os produtos e serviços sujeitos ao aumento de até dois pontos percentuais na alíquota do ICMS.15

Com vistas a possibilitar aos Estados a criação de fundos de com-bate à pobreza, dispensando-os de submetê-los à exigência de observância da lei federal e, deste modo, conferindo um maior espaço de autonomia legislativa a eles, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 42. Esta al-terou a redação dos citados artigos 82, §1º, e 83 do ADCT, os quais passa-ram a vigorar com a seguinte redação:

Art. 82. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem instituir Fundos de Combate à Pobreza, com os recursos de que trata este arti-go e outros que vierem a destinar, devendo os referidos Fundos ser ge-ridos por entidades que contem com a participação da sociedade civil.§ 1º Para o financiamento dos Fundos Estaduais e Distrital, poderá ser criado adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, sobre os produtos e serviços supérfluos e nas condições definidas na lei complementar de que trata o art. 155, § 2º, XII, da Constituição, não se aplicando, sobre este percentual, o disposto no art. 158, IV, da Constituição.[...]

e Serviços – ICMS, ou do imposto que vier a substituí-lo, sobre os produtos e serviços supérfluos, não se aplicando, sobre este adicional, o disposto no art. 158, inciso IV, da Constituição.§ 2º Para o financiamento dos Fundos Municipais, poderá ser criado adicional de até meio ponto percentual na alíquota do Imposto sobre serviços ou do imposto que vier a substi-tuí-lo, sobre serviços supérfluos.14 Por Exemplo: Rio de Janeiro (Lei Estadual nº 4.056/2002), Sergipe (Lei Estadual nº 4.731/02) e Ceará (Lei Complementar Estadual nº 37/2003)15 Ver, em seguida, tópico relativo à jurisprudência do STF.

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Art. 83. Lei federal definirá os produtos e serviços supérfluos a que se referem os arts. 80, II, e 82, § 2º.

As alterações promovidas pela EC nº 42/2003 foram no sentido de (1) excluir a exigência de Lei Federal definidora dos produtos e serviços supérflu-os sobre os quais poderia incidir o adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do ICMS destinado ao fundo de combate à pobreza (v. art. 83). Além disso, (2) também foi alterada a redação do §1º do art. 82, para que os Estados, no momento de criação do adicional de ICMS destinado a eventual fundo de combate à pobreza, observassem o quanto disposto na lei complementar de que trata o art. 155, §2º, XII, da Constituição Federal. Por fim, com vistas a resguar-dar as leis estaduais editadas na vigência da EC nº 31/00, mesmo diante da au-sência de lei federal então exigida pelo art. 83 do ADCT, a EC nº 42/2003, em seu art. 4º,16 (3) previu regra de convalidação desses diplomas legais.17

Nada obstante as importantes alterações promovidas pela EC nº 42/03, cujo objeto diz respeito, diretamente, à dispensabilidade (ou não) de lei federal prévia, responsável por definir os produtos e serviços supérfluos sobre os quais poderá in-cidir o adicional na alíquota do ICMS, o problema central que nos propusemos a discutir, neste trabalho, diz respeito à parte final do parágrafo 1º, do art. 82, do ADCT, pela qual não se aplicaria ao percentual adicional de ICMS destinado ao fundo estadual de combate à pobreza o disposto no art. 158, IV, da Constituição. Ou seja, muito embora a EC nº. 31/00 e a EC nº. 42/00 tenham excepcionado a regra de repartição obrigatória do produto da arrecadação do ICMS (25%) com os Municí-pios (art. 158, IV, da CF/88),18 há quem entenda de modo diverso.

16 Art. 4º Os adicionais criados pelos Estados e pelo Distrito Federal até a data da promulgação desta Emenda, naquilo em que estiverem em desacordo com o previsto nesta Emenda, na Emenda Constitucional nº 31, de 14 de dezembro de 2000, ou na lei comple-mentar de que trata o art. 155, § 2º, XII, da Constituição, terão vigência, no máximo, até o prazo previsto no art. 79 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.17 Acerca da jurisprudência formada em torno desta convalidação promovida pelo art. 4º da EC nº 42/2003, apresentaremos alguns comentários no tópico seguinte.18 Art. 158. Pertencem aos Municípios: [...] IV - vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de merca-dorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.

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A tese sustentada pelos Municípios, que vem ganhando espaço no Poder Judiciário de alguns Estados,19 é a de que, tanto sob a vigência da EC nº. 31/00 quanto sob a vigência da EC nº. 42/03, a instituição do incre-mento, de até dois pontos percentuais, na alíquota do ICMS, destinado a abastecer de recursos eventual fundo de combate à pobreza, estaria con-dicionada à edição prévia de lei federal, definindo os produtos e serviços supérfluos. E, subsidiariamente, ainda que admitida a competência direta dos Estados (não condicionada à edição de lei federal prévia), estes não poderiam dispor, livremente, sobre o que pode ser qualificado como pro-duto ou serviço supérfluo para fins do art. 82, §1º, do ADCT. Neste último caso, por exemplo, Estados não poderiam promover o incremento da alí-quota do ICMS incidente sobre a energia elétrica, sobre as telecomunica-ções ou, ainda, sobre os combustíveis, porquanto estes não poderiam ser qualificados como supérfluos. Essa tese teria como consequência direta a declaração de inconstitucionalidade de todas as leis estaduais que institu-íram o descrito incremento na alíquota do ICMS.

Firmes nessa tese de inconstitucionalidade do aumento de alíquota do ICMS, promovido pelos Estados com base no art. 82, §1º, do ADCT – seja por carência de lei federal prévia, seja por ofensa aos limites da razo-abilidade quanto à definição dos produtos e serviços supérfluos – , os Mu-nicípios pedem que o produto da arrecadação do ICMS que é destinado ao Fundo de Combate à pobreza, seja devidamente repartido na forma do art. 158, IV, da Constituição Federal, não se lhe aplicando a comentada exceção prevista na parte final desse mesmo dispositivo (§1º, do art. 82, do ADCT).

O presente trabalho dedica-se à análise desta temática.

3. A jurisprudência do STF

No tópico anterior, dissemos que os contribuintes se insurgiram contra o aumento da alíquota do ICMS destinado ao fundo de combate à pobreza dos Estados, sob o argumento de que não teria sido editada a lei

19 Exempli gratia, no Estado do Piauí, o incidente de inconstitucionalidade na ape-lação cível/reexame necessário nº 2011.0001.006239-8. No Estado do Maranhão, o inci-dente de inconstitucionalidade na Apelação Cível nº 0052513-69.2012.8.10.0001.

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federal definidora dos serviços supérfluos, tal qual exigia a regra contida na redação primeira do art. 83 do ADCT.

A primeira e mais emblemática destas ações foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 2.869/RJ, proposta pela Confederação Nacional da Indústria para questionar a constitucionalidade da Lei Esta-dual nº. 4.056/02 do Rio de Janeiro. Tendo sido proposta ainda na vigência da EC nº. 31/00, com a superveniência da EC nº. 42/03 e, por conseguinte, a alteração do parâmetro constitucional acerca da matéria, foi extinta sem resolução de mérito por decisão monocrática do Relator, o então Ministro Carlos Ayres Britto. Em obiter dictum, Britto afirmou que o art. 4º da EC nº. 42/03 teria convalidado as disposições da lei carioca eventualmente conflitantes com a EC nº. 31/00.

Embora essa decisão monocrática não pudesse alçar a condição de precedente vinculante,20 por não ter apreciado o mérito da demanda (art. 102, §2º, da CF/88), o obiter dictum de Ayres Britto ganhou força e passou a ser reproduzido como solução para diversas demandas propostas indi-viduais, em sede de controle difuso de constitucionalidade.21 A jurispru-dência então se consolidou no sentido de que as leis estaduais que dispu-sessem sobre o aumento da alíquota do ICMS, realizado na forma do art. 82, §1º, do ADCT, editadas durante a vigência da EC nº. 31/00, ainda que ausente a lei federal definidora dos produtos e serviços supérfluos, teriam sido validadas pelo art. 4º da EC nº. 42/03.

O erro histórico (a ausência de decisão de mérito na ADI nº 2.869/RJ) na formação dessa jurisprudência parecia ter sido convalidado pelo tempo.

20 Acerca do tema, cf.: FREIRE, Alexandre; FREIRE, Alonso. Elementos normati-vos para a compreensão do sistema de precedentes judiciais no processo civil brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 103, v. 950, dezembro/2014, p. 199-231. BUSTA-MANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial: a justificação e a aplicação de regras jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012. GEHARDT, Michael J. The power of precedent. New York: Oxoford Univeristy Press, 2008.21 V., por exemplo: RE 571.968/RJ, RE 570.016/RJ, AI 671.948/RJ, RE 511.588/RJ. Em todos estes julgamentos o tribunal decidiu que: “O art. 4º da EC 42/2003 validou os adicionais instituídos pelos Estados e pelo Distrito Federal para financiar os Fundos de Combate à Pobreza. Precedentes” (RE 508.993/RJ – AgR. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Câmara. Fonte/publicação: DJe de 13.06.2014).

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No entanto, recentemente (abril de 2017), a Primeira Turma do STF decidiu reabrir a discussão acerca da possibilidade de o art. 4º da EC nº 42/03 con-validar leis estaduais editadas com vício originário de inconstitucionalidade por ofensa à regra do art. 83 do ADCT, com a redação originária da EC nº 31/00.22 Ou seja, discutirá se Emenda Constitucional pode declarar a cons-titucionalidade superveniente de lei, afastando assim, a priori, o entendi-mento, até então pacífico, de que o art. 4º da EC nº. 42/03 teria promovido, constitucionalmente, a descrita convalidação de leis estaduais.

Nenhum dos casos relatados até aqui tratou, diretamente, do proble-ma relativo à dispensa de repartição com os Municípios dos recursos arre-cadados com o incremento da alíquota do ICMS e destinados ao fundo de combate à pobreza, na forma do §1º do art. 82 do ADCT. Isto reforça a re-levância do presente estudo, porquanto, em breve, o tema aqui tratado tam-bém deverá ser objeto de discussão perante o Supremo Tribunal Federal.

O único caso cujo objeto aproxima-se do tema aqui em discussão foi o da ADI nº. 3.576/RS, que questionou a constitucionalidade da lei gaúcha nº. 12.223/05. Este diploma legal instituiu o “Fundo Partilhado de Combate às Desigualdades Sociais e Regionais do Estado do Rio Grande do Sul”. Entre os recursos a ele destinados, destacavam-se as contribuições realizadas diretamente pelos contribuintes, os quais passariam a ter direi-to a um crédito presumido de ICMS de valor igual aos depósitos realiza-dos em favor do fundo. A causa de pedir da ação direta de inconstitucio-nalidade era a suposta ofensa ao art. 155, §2º, XII, “g”, da CF/88 (exigência prévia de deliberação do CONFAZ para a concessão de favor fiscal). No entanto, o STF declarou a inconstitucionalidade da norma por ofensa ao art. 167, IV, da Constituição, que veda a vinculação de receita de impostos a fundo, a despeito da observação feita no voto (vencido) do ministro Marco Aurélio, no sentido de que o art. 82, §1º, do ADCT autorizaria tal vinculação, em virtude da especial destinação dos recursos.

22 Trata-se do julgamento do Agravo Regimental no RE nº 592.152/SE (Rel. Min. Ricardo Lewandowski. Primeira Turma. Fonte: DJe-103, de 17.05.2017.

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4. Pressuposto ético, no mínimo, questionável

União, Estados e Municípios compõem a República Federativa do Brasil. Embora sejam considerados entes autônomos, todos eles, em con-junto, têm a sua razão de existência no cumprimento dos objetivos funda-mentais da República Federativa.23 Em outras palavras, União, Estados e Municípios devem atuar conjuntamente para garantirem que a República Federativa do Brasil consiga, no mínimo, os seguintes objetivos, colima-dos no art. 3º da Constituição Federal: “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promo-ver o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

A análise da (in)constitucionalidade da cobrança da principal fonte de recursos que compõem o fundo estadual de combate à pobreza, pre-vista no art. 82, §1º, do ADCT, impacta, diretamente, no alcance dos re-feridos objetivos fundamentais da Federação. Conforme apresentamos anteriormente, os Municípios vêm defendendo a inconstitucionalidade da cobrança da alíquota adicional de ICMS, porquanto considerem que os Estados não teriam competência para criar tal adicional, sem que antes fosse editada uma lei complementar da União, definindo quais seriam os produtos supérfluos sujeitos a essa tributação adicional.

Contudo, o que causa espécie é que o objetivo final dos Municí-pios não é fazer cessar a cobrança do adicional por eles considerado in-constitucional. Não pretendem que o Estado pare de cobrar o adicional de ICMS destinado a abastecer o fundo de combate à pobreza. Pleiteiam, sim, a participação no produto desta “inconstitucional” arrecadação. Em outras palavras, embora as municipalidades considerem “ilícita” (no mais alto grau de ilicitude, por se tratar de inconstitucionalidade) a cobrança do adicional do ICMS, vêm buscando uma tutela jurisdicional para garan-tir que o Estado reparta com elas o produto desta ilicitude.

23 Vide ZIMMERMANN, Augusto. Teoria geral do federalismo democrático. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 5. ed. rev. e atual. por Juliana Campos Horta. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

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Cabe destacar que não há nenhuma justificativa ética, constitucional-mente tutelável, que ampare uma prestação jurisdicional que, após o reco-nhecimento da inconstitucionalidade da cobrança de tributos (fundamento do pedido municipal) – cujo sujeito passivo nem são os Municípios, mas, no caso, os contribuintes do ICMS afetados pela cobrança adicional –, mantenha a exigência tributária e confira, tão-somente, a participação dos Municípios no resultado da sua arrecadação (o pedido final das municipalidades).

Em outra perspectiva, o que pretendem os Municípios, em última análise, é retirar recursos, cuja destinação encontra-se vinculada, tanto pela Constituição (art. 82, §1º, do ADCT)24 quanto por Lei.25 Recursos destinados a várias ações diretamente relacionadas a garantir à parcela mais pobre da população (de todos os Municípios, destaca-se) acesso a condições mínimas de vida digna. Tais recursos, caso a tese dos Muni-cípios logre êxito, perderão a vinculação constitucional e passarão a ser utilizados livremente pelos governos locais. Afinal de contas, Estado e Municípios não deveriam estar unidos para combater a pobreza, diminuir as desigualdades e garantir vida digna à população (art. 3º da CF/88)?

Todas estas questões iniciais, que estão por trás da questão analisa-da neste artigo, devem ser levadas em consideração no momento de refle-tir sobre uma solução para o problema levantado pelos Municípios. Nada obstante se apresentar como, eminentemente, técnico-jurídica, a tese em discussão possui um pressuposto ético, no mínimo, questionável.

24 § 1º Para o financiamento dos Fundos Estaduais e Distrital, poderá ser cria-do adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS, sobre os produtos e serviços supérfluos e nas condições definidas na lei complementar de que trata o art. 155, § 2º, XII, da Constituição, não se aplicando, sobre este percentual, o disposto no art. 158, IV, da Constituição.25 No caso do Estado do Piauí, dispõe a Lei Estadual nº Lei 5.622/06. Art. 1º Fica instituído o Fundo Estadual de Combate à Pobreza – FECOP, de acordo com o art. 82 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, na forma das Emendas Constitucionais Federais nº 31, de 14 de dezembro de 2000 e n°42, de 19 de dezembro de 2003, com o objetivo de viabilizar a população do Estado o acesso a níveis dignos de subsistência, cujos recursos serão aplicados em ações suplementares de nutrição, habitação, educação, saúde, reforço da renda familiar, infraestrutura, segurança pública e outros programas de rele-vante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida.

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5 Direitos fundamentais e a moderna interpretação constitucional do art. 82, §1º, do ADCT

5.1 A fundamentalidade material do art. 82, §1º, do ADCT

Um Estado Democrático de Direito tem, na sua base conceitual, como pressuposto lógico a existência de uma gama de direitos que devem ser garantidos aos cidadãos, a fim de que estes possam usufruir, na maior medida possível, sua liberdade individual e decidir, autonomamente, so-bre os rumos que suas vidas deverão tomar. Esse conjunto de direitos, com toda razão, são denominados fundamentais. Eles, ao mesmo tempo que garantem uma esfera de proteção dos cidadãos contra o Estado, também possibilitam que eles possam exercer, efetivamente, sua autonomia e cida-dania. Em resumo, assim escreveram Bodo Pieroth e Bernhard Schlink:26

A evolução histórica permite reconhecer duas linhas: por um lado, os direitos fundamentais são entendidos como direitos (humanos) do indivíduo anteriores ao Estado; a liberdade e a igualdade dos indivíduos são condições legitimadoras da origem do Estado, e os direitos à liberdade e à igualdade vinculam e limitam o exercício do poder do Estado. Por outro lado, na evolução alemã, também se entendem como fundamentais os direitos que cabem ao indivíduo não já como ser humano, mas apenas enquanto membro do Esta-do, direitos que não são anteriores ao Estado, mas que só são outor-gados pelo Estado. Porém, também aqui os direitos fundamentais são direito individual e, por via da construção da autovinculação, produz-se um compromisso do exercício do poder do Estado sobre os direitos fundamentais: as ingerências na liberdade e na proprie-dade carecem de lei para sua justificação.

26 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. São Paulo: Sa-raiva, 2012, p. 48.

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No mesmo sentido, leciona Ingo Wolfgang Sarlet:27

verifica-se que os direitos fundamentais podem ser considerados

simultaneamente pressuposto, garantia e instrumento do princípio demo-crático da autodeterminação do povo por intermédio de cada indivíduo, mediante o reconhecimento do direito de igualdade (perante a lei e de oportunidades), de um espaço de liberdade real, bem como por meio da outorga do direito à participação.

Os direitos fundamentais, como é consagrado pela melhor doutri-na, variam em conformidade com a ordem constitucional de cada Esta-do-nacional. A Constituição é a responsável por consagrá-los, sendo que, ao lado das normas que tratam da organização e estrutura do poder, os direitos fundamentais compõem o conteúdo mínimo de qualquer Cons-tituição.28 O problema que se propõe, então, é saber o seguinte: como é possível identificá-los, haja vista que nem tudo que está na Constituição Federal pode ser considerado direito fundamental?

A doutrina, comumente, utiliza dois critérios para a identificação dos direitos fundamentais: um formal e outro material. Sob o ponto de vista formal, seriam fundamentais todos aqueles direitos assim indicados, expressamente, pela Constituição, independentemente de seu conteúdo. Estes direitos são conhecidos como “direitos fundamentais do catálogo”.29

Por outro lado, sob a perspectiva material, podem se qualificar como fundamentais direitos que estejam fora do catálogo constitucional e, até mesmo, outros que estejam consagrados fora do Texto Constitucional. Aqui, o importante não é propriamente a sua localização formal, mas o conteúdo material protegido pelo direito em si. No caso brasileiro, é a vin-culação de certas posições jurídicas – quer estejam no texto constitucio-

27 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 61.28 A propósito, verificar: SILVA, José Afonso da. Teoria do conhecimento consti-tucional. São Paulo: Malheiros, 2014.29 SARLET, op. cit., p. 74 e ss.

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nal (dentro ou fora do catálogo), quer em legislação infraconstitucional – aos princípios fundamentais da Constituição Federal que possibilita a qualificação de um direito como fundamental. A este jaez, destaca-se, em especial, o princípio da dignidade da pessoa humana,30 além dos demais princípios e objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 1º e 3º da CF/88).

A Constituição brasileira consagrou a existência de direitos apenas materialmente fundamentais – fora do catálogo,31 portanto –, no seu art. 5º, §2º.32 Cabe recordar, neste momento, que, para fins de aplicação do §2º, do seu art. 5º, devem ser considerados, como caracterizadores do “regime” e dos “princípios” adotados pela Constituição Federal brasileira, os funda-mentos e objetivos da República Federativa do Brasil positivados nos arts. 1º e 3º da mesma Carta Política, entre eles: “a dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III); “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I); “garantir o desenvolvimento nacional” (art. 3º, II); “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III); e, finalmente, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV).

Para o alcance dos objetivos aqui propostos, cabe destacar que é possível identificar a existência de direitos fundamentais espalhados pelo Texto Constitucional decorrentes do regime e princípios por ela adotados, que não estão localizados, topograficamente, no catálogo de direitos do seu art. 5º. Em outras palavras, se, por exemplo, existir norma que consa-gre alguma posição jurídica frente ao Estado brasileiro em favor do cida-dão, que tenha íntima relação com a proteção/promoção da dignidade da pessoa humana, a construção da justiça e solidariedade social, a erradica-

30 SARLET, op. cit., p. 93.31 O próprio Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de consagrar a exis-tência de direitos fundamentais “fora do catálogo” no julgamento da ADI 939-7, quando considerou que o princípio da anterioridade tributária constituiria uma garantia individu-al, ainda que topograficamente localizada fora do art. 5º da CF/88.32 “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decor-rentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

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ção da pobreza e a redução das desigualdades sociais, por aplicação direta do §2º do art. 5º da CF/88, tal norma poderá ser qualificada como direito fundamental, independentemente de sua localização formal no Texto.

Com base nesta premissa inicial, é que devemos analisar o art. 82 e seu parágrafo primeiro, do ADCT. Por interpretação sistemática e simétrica da Constituição em relação ao modelo federal, os fundos estaduais de combate à pobreza têm por objetivo os mesmos consagrados no art. 79 do ADCT, a saber: “viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de subsistência, cujos recursos serão aplicados em ações suplementares de nutrição, habita-ção, educação, saúde, reforço de renda familiar e outros programas de rele-vante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida”.

Assim sendo, pode-se perceber, claramente, a fundamentalidade material das normas consagradas no art. 82, do ADCT, e seu parágrafo primeiro, tendo em vista sua relação e harmonia direta com os objetivos e princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, entre eles: promover a dignidade humana, combater a pobreza e reduzir as desigual-dades sociais. Em outras palavras, por aplicação do art. 5º, §2º, da CF/88, o art. 82 do ADCT contém uma norma dotada de fundamentalidade material ou consagradora de um “direito fundamental decorrente”.

5.2 Natureza da norma de direito fundamental contida no art. 82, §1º, do ADCT: direito fundamental à organização.

Embora possa parecer que direitos fundamentais somente seriam aqueles vinculados a uma posição subjetiva direta do cidadão contra o Es-tado, como é o caso da proteção às liberdades fundamentais (pensar, expres-sar, locomover-se etc.), é plenamente reconhecido que se qualificam como fundamentais, igualmente, certas posições jurídicas que estão vinculadas aos direitos clássicos de liberdade/igualdade, oferecendo-lhes uma proteção adicional. Robert Alexy e seus seguidores qualificam tais direitos como “di-reitos fundamentais à organização e ao procedimento”.33

33 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgilio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2010. Em especial, a partir da p. 470. “Os direitos individuais à organização em sentido estrido, dirigidos ao legislador, são direitos dos indivíduos a que

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Esses direitos consagram posições jurídicas para os cidadãos, que decorrem de uma imposição, promovida pela ordem jurídica constitu-cional, dirigida ao Estado para que este crie certos “institutos” ou “or-ganizações” que busquem conferir maior proteção às pessoas ou àquilo que a sociedade tem por importante (igreja, família, meio ambiente, por exemplo). Eles decorrem do status positivus34 do cidadão e cobram uma prestação positiva do Estado.

Comumente, esta classe de direitos fundamentais à organização e ao procedimento demanda do Estado a realização de prestações de cunho jurídico. Sobre o tema, leciona Gonet Branco:35

Há direitos fundamentais cujo objeto se esgota na satisfação pelo Esta-do de uma prestação de natureza jurídica. O objeto do direito será a norma-ção pelo Estado do bem jurídico protegido como direito fundamental [...].

Além disso, há direitos fundamentais que dependem essencial-mente de normas infraconstitucionais para ganhar pleno sentido. Há direitos que se condicionam a normas outras que definam o modo do seu exercício e até o seu significado.

o legislador crie normas de organização que sejam conformes aos direitos fundamentais. Uma organização legislativa conforme os direitos fundamentais pode ser assegurada não apenas por direitos subjetivos, mas também por deveres e proibições meramente objeti-vos.” (p. 491).34 “Este é o estado em que o particular não pode ter a sua liberdade sem o Estado, mas em que depende de medidas do Estado para a criação e conservação da sua existência livre. Este estado encontra-se conformado e assegurado nos direitos fundamentais quando e na medida em que sejam direitos de reivindicação, de proteção, de participação, de pres-tação e de procedimento. No entanto, a diversidade das designações também indica, de maneira não muito segura, diferentes legitimações: quando se fala em direitos de proteção, pode-se querer dizer a proteção mediante prestações do estado, no sentido de um direito de prestação, e a proteção por meio de e em procedimentos do Estado, no sentido de um direito de procedimento; e há participação na proteção, nas prestações e nos procedimen-tos do Estado”. (PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 63)35 BRANCO, Gonet. Teoria dos direitos fundamentais. In: MENDES, Gilmar Fer-reira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 292).

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Há direitos que não prescindem da criação, por lei, de estruturas organizacionais, para que se tornem efetivos. Além disso, esses di-reitos podem requerer a adoção de medias normativas que per-mitam aos indivíduos a participação efetiva na organização e nos procedimentos estabelecidos.

Com efeito, aplicando-se as lições acima à tese sob exame, é correto concluir que o art. 82 do ADCT impôs uma especial obrigação aos Es-tados, qual seja, o dever de criar o fundo de combate à pobreza. O modo verbal imperativo (“devem instituir”) conduz também à conclusão de que a obrigação imposta pelo constituinte aos Estados, por outro lado, garan-tiu uma posição jurídica fundamental em favor dos cidadãos. Trata-se de uma competência do tipo impositiva ou vinculada, no sentido dado por José Afonso da Silva, a qual significa que não se trata apenas de um “po-der”, que pode ou não ser exercido pelo Estado, mas de um poder-dever, cujo exercício está fora do juízo de oportunidade.36

Destarte, em resumo, temos que o art. 82 do ADCT consagrou uma norma materialmente fundamental, cuja natureza é de um direito à orga-nização.37 A criação de um fundo destinado, especialmente, a relevantes funções ligadas à redução da pobreza e das desigualdades sociais. Ao mes-

36 “A regra geral é a de que as regras de competência não vinculam seu destinatário titular. [...]. Mas existem regras de competências vinculativas. [...] Vale dizer, portanto, que as regras de competência são de dois tipos: conferem um poder discricionário – competên-cias discricionárias – e, às vezes, conferem um poder vinculado – competências vinculadas.” (SILVA, op. cit., p. 384-385).37 A dúvida que persiste é saber se este direito à organização consagra uma posição subjetiva dos indivíduos ou apenas um dever objetivo por parte do Estado. Acerca desse tema, Robert Alexy (Op. Cit., p. 492) questiona: “[...] em que medida a organização reque-rida pelos direitos fundamentais é exigida por normas que outorgam direitos subjetivos, e em que medida por normas que fundamentam um dever objetivo do Estado?” E ele mesmo responde: “[...] os fundamentos do primeiro grupo estão ligados à importância que a organização requerida pelas normas de direitos fundamentais tem para o indivíduo, para sua situação de vida, seus interesses, sua liberdade etc. Os fundamentos do segundo grupo estão ligados à importância que a organização requerida pelas normas de direitos fundamentais tem para a coletividade, ou seja, para os interesses ou bens coletivos”. Na nossa opinião, a norma consagrada no art. 82 do ADCT e seu parágrafo primeiro contém fundamentos nos dois sentidos.

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mo tempo, o seu §1º contém regra que dispõe acerca do meio pelo qual os Estados estão autorizados a conseguirem receita extra para compor este Fundo. Ou seja, a Constituição não apenas consagrou o fim, como previu o meio de alcançá-lo. E todas estas disposições relativas ao fundo de combate à pobreza dos Estados ganharam status de fundamentalidade material por conta da abertura promovida pelo art. 5º, §2º.

5.3 A eficácia direta e imediata das normas de direito fundamental, incluindo o art. 82, §1º, do ADCT

Vimos que, por força de seu conteúdo, as disposições do art. 82 e seu parágrafo primeiro podem ser equiparadas às normas de direitos fundamentais, em razão da aplicação do art. 5º, §2º, da CF/88. Estas nor-mas podem ser classificadas como direito fundamental à organização, na medida em que passaram a impor aos Estados a criação de uma “organi-zação” (o fundo de combate à pobreza) própria para combater a pobreza extrema e promover a redução das desigualdades sociais.

A qualificação de uma norma como de direito fundamental, con-tudo, tem uma consequência muito importante, que deve ser levada em consideração para a correta interpretação das disposições acerca do fundo estadual de combate à pobreza. As normas de direito fundamental têm aplicação imediata. É o que dispõe o art. 5º, §1º, da CF/88.38 Acerca deste tema, lecionam, mais uma vez, Ingo Sarlet e colegas:39

Com efeito, um dos esteios da própria fundamentalidade consiste, como já demonstrado, na força jurídica privilegiada das normas de direito fundamentais, da qual o art. 5º, §1º, da CF é justamente um dos mais importantes indicadores. [...]

38 “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.39 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 328-330.

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A despeito de alguma divergência, a doutrina e a jurisprudência reco-nhecem, em termos gerais, que o mandamento da imediata aplicabili-dade alcança todas as normas de direitos fundamentais, independen-temente de sua localização no texto constitucional, o que, além disso, guarda sintonia com o teor literal do art. 5º, §1º, da CF, visto que este ex-pressamente faz referência às normas definidoras de direitos e garantias fundamentais e não apenas aos direitos individuais constantes do art. 5º. [...]Verifica-se, portanto, que a partir do disposto no art. 5º, §1º, da CF, é possível sustentar a existência – ao lado de um dever de aplicação ime-diata – de um dever, por parte dos órgãos estatais (mas com ênfase nos órgãos jurisdicionais, a que incumbe inclusive a revisão dos atos dos de-mais entes estatais nos casos de violação da Constituição), de atribuição de máxima eficácia e efetividade possível às normas de direitos funda-mentais. Nesta perspectiva, por terem direta aplicabilidade, as normas de direitos fundamentais terão a seu favor pelo menos uma presunção de serem também de eficácia plena, portanto – de acordo, pelo menos, com a convencional definição de normas de eficácia plena ainda pre-valente no Brasil -, de não serem completamente dependentes de uma prévia regulamentação legal para gerarem, desde logo, seus principais efeitos, o que, à evidência, não afasta eventual exceção, nos casos aos em que a própria Constituição Federal expressamente assim o estabelece.

Estas lições, obviamente, aplicam-se diretamente ao art. 82 e ao seu parágrafo primeiro do ADCT. Este dispositivo consagra um direito funda-mental fora do catálogo. A tese dos Municípios, que atribui eficácia limitada à norma aqui em análise, desconsidera que, por força de disposição cons-titucional expressa, deve-se atribuir, a toda norma de direito fundamental, aplicabilidade imediata e a maior eficácia possível,40 por conta do que dis-

40 Diz-se possível, considerando a teoria de Robert Alexy, que aproxima as normas de direito fundamentais aos princípios jurídicos. Sendo estes considerados “mandados de otimização”, a sua máxima eficácia dependerá, quase sempre, das condições fáticas e jurí-dicas (outros direitos fundamentais, por exemplo) que se oponham à sua aplicação. Vide: ALEXY, op. cit., p. 90 e seguintes.

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põe o art. 5º, §1º, da CF/88. Em outras palavras, por se tratar de disposi-ção de direito fundamental, não se pode dizer que a simples ausência de lei (complementar, no caso) opera como elemento impeditivo absoluto de atribuição de eficácia ao art. 82 e seu parágrafo primeiro, do ADCT.

O cerne da questão é adaptar o grau de eficácia à normatividade que se pode extrair do dispositivo que contém a norma de direito fundamen-tal.41 Um simples olhar para o §1º do art. 82 do ADCT revela que este dispositivo contém elementos suficientes para se atribuir eficácia à regra que dele se extrai em relação ao financiamento do fundo estadual de com-bate à pobreza. Ele fixa o sujeito ativo da competência (os Estados), fixa o objeto (alíquota adicional de ICMS), fixa o aspecto material desta hipóte-se de incidência (produtos supérfluos), impõe a observância de condições (Lei Complementar prevista no art. 155, §2º, XII, da CF/88), bem como já, previamente, exclui a participação dos Município no produto de sua arre-cadação.

Este modo de ver as disposições de direito fundamental vai ao en-contro da melhor doutrina e jurisprudência do Supremo Tribunal Fede-ral. Basta, para tanto, recordar o caso do art. 37, VII, da CF/88, que, nada obstante exigir a edição de Lei para regular o direito de greve no serviço público, teve sua eficácia reconhecida pelo Supremo Tribunal.42 Note-se que, no caso da greve no serviço público, nem se trata de um direito mate-rialmente fundamental – pelo menos não com o mesmo nível de relevân-cia do que a do fundo de combate à pobreza.

Assim sendo, para finalizar este tópico relativo às premissas teóri-cas, esperamos ter logrado êxito em demonstrar o seguinte: o art. 82, §1º, além de ser norma de status constitucional (motivo suficiente para que lhe seja atribuída eficácia), contém norma de direito fundamental, devendo, portanto, por força do quanto disposto no art. 5º, §1º, da CF/88, ser atri-buída a ele aplicabilidade plena e a maior eficácia possível (consideradas

41 Acreditamos ser despiciendo tratar da diferença entre TEXTO e NORMA. Para tanto, vide: STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração her-menêutica da construção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 47 e ss.42 Vide o julgamento dos Mandados de Injunção nº 670 e 708 pelo Supremo Tribu-nal Federal.

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eventuais circunstâncias fáticas e jurídicas que lhe sejam contrárias). Este modo de interpretar o dispositivo em questão vai ao encontro da mo-derna doutrina do direito constitucional, atribuindo a eficácia e a força normativa que se espera do Texto Constitucional, valorizando os direitos fundamentais e possibilitando ao intérprete atribuir a maior eficácia pos-sível ao dispositivo interpretado,43 cuja consequência é garantir à popula-ção mais pobre recursos, exclusivamente destinados a lhe proporcionar melhores condições de vida.

6. Elementos tradicionais de interpretação constitucional e o art. 82, §1º, do ADCT

Além dos argumentos apresentados, é possível acrescentar, ainda sob um ponto de vista jurídico-constitucional, tomando-se por base os métodos tradicionais de interpretação aplicáveis à interpretação constitu-cional, o seguinte: (3) a Lei complementar referida no dispositivo já existe e se trata da própria Lei Kandir; (4) Os Estados podem dispor sobre maté-ria de Direito Tributário, ainda que não editada Lei Federal, por se tratar de matéria sujeita à competência concorrente; (5) O ICMS é imposto de competência dos Estados e, portanto, são eles que possuem exclusividade para legislarem sobre o tema, respeitando apenas, no plano infraconstitu-

43 Aqui se faz referência a mais um princípio da “nova interpretação constitucional”, o da força normativa da constituição. Este princípio é a base da teoria constitucional de Kon-rad Hesse, que proferiu palestra sobre este tema no final da década de 1950. Ele escrevia em um momento histórico no qual a Constituição não era considerada norma jurídica propria-mente dita, era tida apenas como documento político sujeito aos ditames dos “fatores reais de poder”. Em reação a isto, Hesse defendeu que a Constituição era responsável pela tran-sição da força política (“Constituição Real”) para a normatividade jurídica (“Constituição Jurídica”). Esta última seria caracterizada por sua pretensão de eficácia. Então, o princípio em questão seria uma espécie de apelo para que o intérprete da Constituição lhe confira a devida eficácia a suas normas. Por este princípio, “na resolução de problemas jurídico-cons-titucionais, [deve] ser dada a preferência àqueles pontos de vista que, sob os respectivos pres-supostos, proporcionem às normas da Constituição força de efeito ótima” (HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1998, p. 68).

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cional, as disposições da Lei Complementar prevista no art. 155, §2º, XII, da CF/88 e eventuais resoluções do Senado Federal.6.1. O elemento gramatical

O elemento (ou método) gramatical é o ponto de partida de toda interpretação. Por meio dele, o intérprete tem o contato com a linguagem utilizada pelo legislador, buscando atribuir uma significação inicial ao texto da norma. Constitui, ao mesmo tempo, o ponto de partida da inter-pretação e um limite para o intérprete, que não poderá chegar a soluções que não se possa, razoavelmente, extrair do texto normativo interpretado.

A controvérsia, aqui analisada, gira em torno do seguinte trecho da redação do §1º, do art. 82, do ADCT: “sobre os produtos e serviços supérfluos e nas condições definidas na lei complementar de que trata o art. 155, § 2º, XII”. Este trecho, segundo a tese dos Municípios, merece a seguinte interpretação textual: o termo “definidas” deveria ser interpreta-do como “definidos”, para concordar, ao mesmo tempo, com a expressão “serviços supérfluos” e com o substantivo “condições”. Assim sendo, tanto as “condições” quanto os “serviços supérfluos” deveriam ser “definidos” pela “lei complementar de que trata o art. 155, §2º, XII”.

Ocorre que, segundo o texto objeto de interpretação, tal qual foi publicado, a expressão “definidas na lei complementar de que trata o art. 155, §2º XII, da Constituição” está qualificando apenas o termo mais pró-ximo, “condições”, por isso usa a forma feminina plural (definidas) e não aquela sugerida pela tese municipal. Resta infirmada, por este singelo mo-tivo, por simples interpretação gramatical, a tese principal dos municí-pios, que caminha no sentido de que haveria, em qualquer caso, seja antes da Emenda Constitucional nº 42, seja depois, a exigência de prévia lei federal (complementar) para a definição dos produtos e serviços supér-fluos sujeitos à tributação extra autorizada pelo §1º, do art. 82, do ADCT.

No entanto, falta, ainda, a tese subsidiária. Esta é menos extensa do que a principal e considera que, ainda que os Estados gozem de competên-cia (plena ou suplementar) para definir os produtos e serviços supérfluos, nos termos do art. 82, §1º, do ADCT, ainda assim seria possível fazer um controle da atividade legislativa acerca do que é possível, razoavelmente, entender por “produtos e serviços supérfluos”. Quanto a este tema, a inter-

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pretação gramatical não nos possibilita chegar a uma interpretação uní-voca e conclusiva, tendo em vista a indeterminação semântica do termo “supérfluo”.44

Comumente, no direito tributário, os autores associam o vocábulo “supérfluo” ao que seria “não essencial”, “desnecessário”. O confronto “es-sencial” vs. “supérfluo” é travado, via de regra, na discussão acerca da ex-tensão do princípio da seletividade do ICMS ou do IPI. Nesta perspectiva, as alíquotas destes impostos devem aumentar na razão inversa à essencia-lidade das mercadorias/produtos. Há que se observar, diante da abertura semântica desses termos, que cabe ao legislador a difícil tarefa de definir o conceito de “essencialidade”, levando-se em consideração que

A essencialidade tem relação direta com a ciência econômica, nota-damente no que concerne aos bens de consumo e, por essa razão, está sujeita a elementos temporais, circunstanciais e, até mesmo, regionais. Faça-se o seguinte raciocínio: em tempos de guerra, a indústria bélica é essencial; todavia, em tempos de paz, ela é supérflua quando compa-rada à necessidade de saneamento básico. Note-se, assim, que vincular a definição do que é essencial à edição de uma lei poderia sufocar o princípio prestigiado pelo constituinte, pois sujeitaria a seletividade ao demorado e penoso processo legislativo brasileiro, que sabidamente não acompanha os interesses e necessidades da sociedade.Consequentemente, a ausência de norma definidora dos parâme-tros de essencialidade endereça a questão para o campo da sub-jetividade e da razoabilidade. No entanto, o fato de determinada interpretação estar sujeita a critérios subjetivos não significa dizer que ela possa ser analisada à margem do ordenamento jurídico.45

44 Aliás, para muitos autores, uma das especificidades da interpretação constitu-cional é, justamente, a utilização de conceitos abertos, vagos e indeterminados. A expres-são “produtos e serviços supérfluos” seria mais um desses conceitos indeterminados.45 MELLO, Alessandra Nishinari de; JUNIOR, José Gazzaneo. Princípio da se-letividade para o ICMS. Tributação de energia elétrica. Revista Eletrônica de Direito Tributário da ABDF. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <<http://www.abdf.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2096:principio-da-seletividade-pa-ra-o-icms-tributacao-de-energia-eletrica&catid=28:artigos-da-revista&Itemid=45>>.

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Deste modo, tomando-se por base apenas o elemento gramatical, por ora, o que se pode concluir é que, em virtude de não ser possível de-finir, de forma unívoca, quais são os serviços e produtos supérfluos, sur-ge para o legislador, prima facie, uma margem ampla de decisão acerca de sua definição. A amplitude desta margem de decisão é justificada em razão da competência decisória do legislador democraticamente eleito.46 Vejamos se os demais elementos de interpretação podem contribuir para uma melhor solução.

6.2. O elemento sistemático

O elemento sistemático, para interpretação jurídica, decorre de um confronto da norma objeto de interpretação com as demais que compõem o sistema jurídico como um todo (o ordenamento), ou apenas com as que integrem o mesmo diploma legal. O método consiste, portanto, em anali-sar a norma interpretanda em seu contexto com outras normas que guar-dem alguma conexão com o seu objeto. Deste modo, será possível verifi-car relações existentes entre regras e exceções; entre o geral e o particular; e a existência de eventuais limites para a norma objeto de interpretação.47

No caso, cabe analisar o §1º do art. 82 do ADCT frente às demais disposições da Constituição Federal acerca da matéria. Em primeiro lu-gar, recorde-se que a tese municipal defende, como argumento principal, que a competência dos Estados para instituir o aumento na alíquota do

Acessado em 15 de junho de 2017.46 Poder associado ao princípio democrático. A “competência decisória do legisla-dor democraticamente legitimado” é, inclusive, utilizada por Robert Alexy como um dos fatores a serem levados em considerados, quando estamos diante de situações de impas-se, nas quais não é possível definir com segurança qual direito fundamental, quando da aplicação da lei do sopesamento, goza de maior peso e, portanto, deve prevalecer numa determinada situação concreta. Diante desses impasses, estaria aberta ao legislador uma margem de discricionariedade (quer estrutural, quer epistêmica) para escolher a melhor solução. Esta, por sua vez, passará a gozar de uma legitimidade prima facie, justamente, em razão da aplicação do princípio democrático.47 Neste mesmo sentido, são as lições de Carlos Maximiliano: Hermenêutica e aplicação do direito. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 105.

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ICMS estaria condicionada à prévia existência de lei complementar fede-ral, encarregada de definir quais seriam os produtos e serviços supérfluos sobre os quais poderia incidir a tributação extra destinada ao fundo de combate à pobreza.

No entanto, sabe-se que a competência para legislar sobre direito tributário é concorrente (art. 24, I, da CF/88). A definição de produtos e serviços supérfluos, para fins do art. 82, §1º, do ADCT, é matéria relacio-nada ao direito tributário, estando, portanto, sujeita às regras de divisão de competência concorrente traçadas pela Constituição. Neste caso, por força do §3º, do art. 24, da CF/88,48 a ausência de normas gerais veiculadas pela lei complementar prevista no art. 155, §2º, XII, da CF/88, que tratem da definição de produtos e serviços supérfluos, os Estados passariam a gozar de competência legislativa plena sobre a matéria até que sobrevenha a regulamentação federal.49

Por outro lado, há que se considerar, ainda, que a competência tributária, quanto aos impostos definidos na Constituição Federal, é ex-clusiva e plena. Deste modo, cabe a cada ente tributante dispor sobre os seus impostos, sem interferência dos demais, salvo aquelas expressamen-te autorizadas pela Constituição Federal. O art. 155, II, da CF/88 define como sendo de competência dos Estados o ICMS. Portanto, pressupõe-se ser deles a competência para tratar de todos os temas relativos a este im-posto.50 Por que, então, não estaria inclusa, na sua competência tributária para tratar do ICMS, a definição dos produtos e serviços supérfluos sujei-tos à tributação extra autorizada pelo multicitado dispositivo do ADCT?

48 “§3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a compe-tência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.”49 No mesmo sentido do texto, cf.: AMORIM, João. Adicional do fundo de comba-te à pobreza. ICMS: questões controvertidas (doutrina e jurisprudência). Niterói: Impetus, 2007, p. 96.50 Amorim acrescenta ainda que: “o art. 34, §3º do ADCT, que permite a edi-ção pelos Estados dos instrumentos normativos necessários à perfeita aplicação de suas competências tributárias. A Constituição outorgou aos Estados competências tributárias privativas, inampliáveis e indelegáveis, cuja eficácia não poderia, em absoluto, quedar-se condicionada aos critérios de conveniência e oportunidade do Congresso Nacional. Não existe vício de iniciativa da Lei Estadual” (op. cit.)

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Seria por conta da referência que o §1º, do art. 82, do ADCT, faz à “lei complementar de que trata o art. 155, § 2º, XII”?

Pelo que se pode perceber, a lei complementar a que faz referência o art. 155, §2º, XII, da CF/88 deve dispor acerca de temas que estejam rela-cionados à faceta nacional do ICMS, que extrapolam as fronteiras de cada Estado, buscando evitar eventual guerra fiscal entre os entes federados. A definição de produtos e serviços supérfluos não toca – nem mesmo indi-retamente – em nenhum dos temas relacionados no §2º, inciso XII, do art. 155. Tanto é assim que, atualmente, a aplicação do princípio da seletivida-de do ICMS é feita por cada Estado sem a existência de qualquer lei fede-ral que disponha sobre o tema. Aliás, a Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/96), que cumpre o papel previsto na Constituição, não trouxe nenhu-ma disposição acerca da essencialidade (ou não) de produtos e serviços. Nem poderia trazer, sob pena de violação material à Constituição, que não arrolou entre as matérias descritas naquele dispositivo (art. 155, §2º, XII) qualquer tema relacionado ao princípio de seletividade. Logicamen-te, pelas mesmas razões, defendemos que não se pode interpretar que ape-nas a parcela adicional de ICMS, de que trata o §1º, do art. 82, do ADCT, estivesse sujeita a um regime diferente – accessorium sequitur principale.

Ainda sob um ponto de vista sistemático, em relação à interpre-tação do que se pode entender por “produtos e serviços supérfluos” (tese subsidiária dos Municípios), o §1º, do art. 82, do ADCT parece guardar relação com o quanto disposto no art. 155, §2º, III, da CF/88, que dis-põe acerca da aplicação da seletividade, “em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”. A relação se estabelece em virtude do con-traponto, a que nos referimos no item anterior, entre essencialidade e su-perfluidade. Neste contexto, o que se pode concluir é que, se o legislador estadual decidiu por aplicar a seletividade facultada no corpo permanen-te da Constituição, fazendo aumentar as alíquotas do ICMS em função da superfluidade das mercadorias e dos serviços, o mesmo critério deve ser utilizado para impor o acréscimo da parcela adicional autorizada no ADCT. Deste modo, o acréscimo na alíquota do ICMS, de até dois por cento, cuja arrecadação está destinada ao fundo de combate à pobreza, deverá gravar os mesmos produtos (mercadorias) e serviços que estejam sendo tributados por determinado Estado com as alíquotas mais altas.

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Pode-se concluir, portanto, que o método sistemático, aplicado ao dispositivo constitucional objeto de análise neste trabalho, indica o com-pleto afastamento da tese principal defendida pelos Municípios.

Quanto à tese secundária, que diz respeito à essencialidade de cer-tos produtos e serviços, o que afastaria a cobrança do adicional de ICMS, a interpretação sistemática fornece um elemento objetivo de avaliação da atividade legislativa estadual, quando da definição dos “produtos e ser-viços supérfluos”: devem ser aqueles que são gravados com as maiores alíquotas do ICMS, por serem os escolhidos pelo legislador estadual, ao aplicar o princípio da seletividade, como os menos essenciais.

6.3. O elemento finalístico

Na busca pelo significado e alcance da norma, também é importan-te que o intérprete busque investigar acerca da finalidade por ela almejada. Os fins buscados pelo dispositivo legal objeto da interpretação fornecem ao intérprete o elemento teleológico ou finalístico. Esses fins podem ser alcançados a partir da análise do objetivo que se pode extrair do texto da norma (mens legis), ou da tentativa de descobrir a intenção do legislador (mens legislatoris) ao elaborar essa mesma norma. A primeira das técni-cas (mens legis) é mais bem vista pela doutrina, já que a segunda envolve incursões na subjetividade do legislador, que, quase sempre, é um órgão colegiado, o que dificulta sobremaneira o alcance de um resultado seguro.

No segundo tópico, ao apresentarmos o quadro normativo acerca do tema, vimos que, nada obstante a Emenda Constitucional nº 31/2000 tenha previsto a criação dos fundos estaduais de pobreza e do adicional de ICMS de que trata o presente trabalho, em virtude de ter condicionado a instituição deste incremento na arrecadação à prévia edição de lei federal (redação original do art. 83, do ADCT), os fundos estaduais não saíram do papel – salvo algumas exceções –, frustrando assim o nobre objetivo visado pelo legislador reformador.

Com efeito, a Emenda Constitucional nº. 42/2003, diante da inér-cia do legislador federal em editar a lei que possibilitasse aos Estados a cobrança da parcela extra do ICMS destinada aos fundos de combate à pobreza, buscou modificar o texto constitucional com o claro objetivo de

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incentivar os Estados a promoverem a criação destes fundos. Para tanto, retirou a exigência de prévia edição de lei federal e conferiu aos próprios Estados a competência direta para definir os produtos e serviços supérflu-os que estariam sujeitos à cobrança adicional do ICMS.51

Portanto, pelo método finalístico, a tese principal dos Municípios contraria a mens legis da Emenda Constitucional nº. 42/2003, tendo em vista que busca atribuir nenhum efeito à modificação por ela implemen-tada. Para as municipalidades, teria havido uma mudança meramente topográfica em relação à exigência de prévia observância de lei federal definidora dos produtos e serviços supérfluos, que teria sido deslocada do art. 83 para o §1º, do art. 82, do ADCT.

Quanto à tese secundária, acerca dos limites impostos ao legislador para definir, razoavelmente, os produtos e serviços supérfluos sujeitos à tri-butação da parcela extra do ICMS, autorizada pelo art. 82, §1º, do ADCT, o elemento finalístico vai ao encontro do elemento gramatical. Funciona como reforço para a tese de que o legislador estadual dispõe de liberdade de conformação para definir os produtos e serviços supérfluos sobre os quais incidirá a alíquota extra do ICMS, em razão da abertura semântica acerca do que se pode entender por “produto essencial” ou “produto supérfluo”.

Por fim, pelo que se pôde perceber, a análise dos elementos tra-dicionais de interpretação aqui empreendida reforça os argumentos cal-cados na teoria dos direitos fundamentais apresentados no tópico ante-rior. Todos eles convergem no sentido de que, para fins do art. 82, §1º, do ADCT, está dispensada a edição prévia de lei (complementar) federal destinada a fixar os “produtos e serviços supérfluos” que estariam sujeitos à competência estadual para instituir a cobrança extra do ICMS a ser des-tinada ao fundo de combate à pobreza. Assinalamos, outrossim, que não constitui objetivo deste trabalho construir uma teoria acerca dos critérios objetivos pelos quais é possível avaliarmos a “essencialidade” ou “super-fluidade” de mercadorias e serviços sujeitos ao ICMS.

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7. Conclusão

Considerando o quanto foi argumentado acerca do art. 82, §1º, do ADCT, com fundamento nos elementos tradicionais e modernos de inter-pretação constitucional, são estas as conclusões deste trabalho, apresenta-das de forma propositivas:

(1) A tese principal sustentada pelos Municípios, no sentido de que, tanto sob a vigência da EC nº 31/00 quanto sob a vigência da EC nº. 42/03, a instituição do incremento, de até dois pontos percentuais, na alíquota do ICMS, destinada a abastecer de recur-sos eventual fundo de combate à pobreza, estaria condicionada à edição prévia de lei federal, definindo os produtos e serviços supér-fluos, não é juridicamente defensável. (2) Não há nenhuma justificativa ética, constitucionalmente tu-telável, que ampare a pretensão municipal de manter a cobrança do adicional de ICMS, previsto no art. 82, §1º, do ADCT, supos-tamente inconstitucional, e que, ao mesmo tempo, garanta-lhes o direito à participação no produto da arrecadação desta cobrança. (3) O art. 82 do ADCT contém uma norma dotada de fundamen-talidade material ou consagradora de um “direito fundamental de-corrente”, em virtude de sua vinculação direta com os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil e, como tal, goza de eficácia e aplicabilidade imediata, na forma do §2º, do art. 5º, da Constituição. Em conjunto com o seu parágrafo primeiro, tem a natureza de um direito fundamental à organização, especialmente destinado a cumprir relevantes funções ligadas à redução da po-breza e das desigualdades sociais. (4) Os elementos gramatical, sistemático e teleológico informam que a tese principal dos Municípios não guarda qualquer funda-mento com o comando que se pode extrair da interpretação do §1º, do art. 82, da Constituição Federal. (5) Os elementos gramatical e teleológico indicam a existência de um espaço de conformação, conferido ao legislador estadual, para a definição do que se deve entender por “produtos e serviços su-

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pérfluos” passíveis da tributação extra do ICMS prevista no art. 82, §1º, do ADCT. Enquanto o elemento sistemático impõe, pelo menos, um limite à atividade legislativa estadual, qual seja: o acrés-cimo na alíquota do ICMS, de até dois por cento, cuja arrecadação está destinada ao fundo de combate à pobreza, deverá gravar os mesmos produtos (mercadorias) e serviços que estejam sendo tri-butados por determinado Estado com as alíquotas mais altas, em razão da aplicação do princípio da seletividade.

Não é o caso de adentrarmos nas discussões filosóficas e jurídicas

acerca do princípio da seletividade do ICMS e sobre a definição de cri-térios objetivos para a definição de produtos e serviços supérfluos. Este tema é objeto de muitas discussões, e os limites deste trabalho não per-mitiriam tal abertura. Aguardemos o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do RE 714139 RG/SC, cujo objeto teve repercussão geral reconhe-cida (tema 745) e versa acerca do alcance da normatividade do princípio da seletividade do ICMS. Por ora, esperamos ter apresentado argumentos suficientes para afastar a tese principal dos Municípios e conferir ao art. 82, §1º, do ADCT, a eficácia jurídica que ele precisa para alcançar o nobre objetivo de financiar ações diretamente destinadas ao beneficiamento dos setores mais pobres da população.

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A Paródia de Marcas em Perspectiva com os Institutos da Confusão, da Associação e da Diluição

Maria Clara de Oliveira Silva1

1 Advogada em Lima e Falcão Advogados, graduada pela Universidade Federal de Pernambuco e mestranda do Programa de Propriedade Intelectual e Inovação Tecnológica do Instituto Nacional da Propriedade Industrial.

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PALAVRAS-CHAVE: marcas - paródia - confusão - associação - diluição

Introdução

Em 2002, a empresa titular da marca de produtos de luxo, “Tommy Hilfiger” ajuizou uma ação contra uma empresa que produzia artigos de pet shop alegando uso indevido de marca e prática de concorrência desleal, ensejada pela utilização da marca “Timmy Holedigger” em perfumes cani-nos2. A corte entendeu não haver possibilidade de confusão entre as mar-cas em razão da ausência de competição pelo mesmo mercado. Enquanto a primeira marca tem atuação no mercado voltada para peças de vestuário e produtos a fins para homens e mulheres, a marca de perfume é destina-da aos donos de animais de estimação. Se entendeu que o consumidor da primeira marca não ficaria satisfeito em adquirir um produto da segunda.

O exemplo acima é um interessante caso de paródia. Para a corte, a na-tureza da piada era óbvia e ainda bem sucedida em deixar evidente que não se tratava de um produto da marca “Hilfiger”. Isso se relaciona diretamente com a natureza referencial do discurso das paródias de marcas. Para que uma paródia seja eficiente, é preciso que a utilização do signo remeta à marca referencial3. Porém, ao mesmo tempo, se distancie dela. Dessa forma, a eficácia da paródia em produzir um efeito humorístico depende da compreensão do destinatário de que aquilo não é a marca referida, mas uma alusão a ela. Mark Lemley (2013) afirma que uma paródia copia seu referente na medida que consegue fazê-lo reconhecível, subvertendo a mensagem originalmente transmitida4.

2 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Corte distrital de Nova Iorque. Tommy Hil-figer Licensing Inc. v. Nature Labs. 13 de agosto de 2002. Disponível em < https://law.justia.com/cases/federal/district-courts/FSupp2/221/410/2486298/>. Acesso em: 10 out. 20173 O termo “marca referencial” será utilizado no presente artigo para designar a mar-ca que tem significado e popularidade preexistente à paródia e, justamente por isso, é utiliza-da nesse discurso. Ainda, será a utilizada a terminologia empregada pela literatura america-na: marca sênior, para designar a marca anterior, e marca júnior, que se refere à marca nova.4 LEMLEY, Mark e DOGAN, Stacey L. Parody as brand. University of Carlifornia, Davis. 2013. p.01. Disponível em <https://osf.io/s9q28/?action=download>. Acesso em: 10 out. 2017.

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Thomas McCarthy (1996), por sua vez, define que a paródia é uma forma de discurso compreendida na liberdade de expressão que veicula duas mensagens simultaneamente: que é o original e que também não é o original5. O humor desse discurso reside na natureza contraditória de seus conteúdos, produzindo o efeito de aguçar a perspicácia do destinatário. Dessa forma, se observa que a paródia é uma expressão criativa e, como tal, estaria compreendida dentro das obras protegidas pelo direito autoral. O uso de marcas em paródias ganha contornos complexos em perspectiva com a análise dos institutos da confusão, associação e diluição. Essa análise é essencial para observar se uma paródia consiste em uso indevido de mar-ca ou não, bem como se incorre em prática de concorrência desleal.

1. A Paródia no Direito Marcário

A questão que será abordada no presente artigo é como a paródia se rela-ciona com o direito marcário e a propriedade industrial, uma vez que a proteção da criatividade seria um elemento estranho a esse sistema. Assim, se faz neces-sário elencar que tipos de uso o discurso da paródia pode adquirir. Somente com essa diferenciação será possível observar qual sua relação com os institutos da confusão e da associação. Inicialmente, cumpre destacar que apenas serão analisadas as paródias que utilizam como referências as marcas. Logo, são ex-cluídas da análise o discurso que tem como referente obras do direito autoral.

As paródias de marcas podem ser classificadas de acordo com o meio que são expressas. Uma expressão possível é da paródia enquanto marca, ou seja, a paródia é utilizada como um novo sinal marcário, aposto a bens co-mercializados, sejam eles produtos ou serviços, que trazem como elemento de familiaridade uma outra marca preexistente. Como exemplo seria possível citar o caso da paródia “Chewy Vuiton”, uma marca que utiliza como referente a tradicional marca de bolsas de luxo “Louis Vuiton” para artigos de pet shop6.

5 MCCARTHY, J. Thomas. McCarthy on trademarks and unfair competition. 4ª edição. Editora Thomson Reuters, 1996, vol. 5, cap. 31, p. 31-223.6 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Corte de apelação do quarto circuito. LOUIS VUITTON MALLETIER v. HAUTE DIGGITY DOG. Relator: Neimeyer. Novembro, 2017. Disponível em < https://www.law.berkeley.edu/files/louisvuitton.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017

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Ainda, uma paródia de marca pode ser utilizada em uma obra do direito autoral, na qual a referência ao sinal marcário preexistente não está aposta a produtos ou serviços, mas sim a uma obra visual, como um quadro ou escultura. Nesse aspecto, é possível citar a obra do artista pau-listano Ozi. Nela, o artista plástico usa as iniciais “L.V.” da marca Louis Vuitton para evocar a desigualdade social que acompanha a sociedade de consumo7. O direito autoral garante a liberdade criativa. Dessa forma, não há uma limitação dentro desse sistema quanto ao conteúdo da obra, nem mesmo o limite imposto para resguardar a moral e os bons costumes, como previsto no direito marcário (art. 124, inciso III, da Lei de Proprie-dade Industrial - LPI8). Isso significa que quanto ao direito de exclusivo, o titular da obra é protegido pelo sistema autoral como criador. Entretanto, isso não implica em ausência de responsabilização em caso de possível ato ilícito. O que o direito autoral promove é o reconhecimento da existência da obra, independente de seu conteúdo.

Isso se relaciona com uma outra possibilidade de classificação das paródias de marcas. É possível que o discurso empregue um humor sar-cástico que vai provocar o senso crítico do destinatário através de uma ironia ácida. Essas formas normalmente implicam em algum teor de crí-tica também aos titulares das marcas, aos valores que ela veicula em um nível semiótico. Aqui é possível citar como exemplo o caso da paródia da marca “Wal-Mart”, que foi utilizada em um blog como “Walocaust” e “Wal-quaed”, comparando a atuação da cadeia de supermercados ao ge-nocídio de judeus e à organização terrorista Al-Quaeda9.

7 JORNAL DO COMÉRCIO. Ozi, um artista das ruas que provoca, expõe na Caixa Cultural. Disponível em <http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/artes-plas-ticas/noticia/2016/09/14/ozi-um-artista-das-ruas-que-provoca-expoe-na-caixa-cultu-ral-252993.php>. Acesso em: 10 out. 20178 BRASIL, Congresso Nacional. Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direi-tos e obrigações relativos à propriedade industrial. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9279.htm> Acesso em: 10 out. 2017.9 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Corte distrital da região norte da Georgia, Atlanta. Charles Smith v. Wal-mart Stores, inc. Março, 2008. Disponível em: < https://www.acluga.org/sites/default/files/smith_v._wal-mart_brief.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.

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Por outro lado, há paródias que utilizam outras formas de humor, ausente de crítica. Nesse sentido, a marca é utilizada para provocar a fa-miliaridade do público, ressignificando seu discurso inicial. O humor do discurso não reside em uma crítica, mas promove no destinatário o reco-nhecimento da marca originária para distorcer seu conteúdo semiótico. Muitas vezes, o resultado é provocar o destinatário quanto a um aspecto da sociedade e não da marca em si. Por exemplo, é possível citar o caso da marca de bebidas alcoólicas “Absolut Vokda”, a qual foi parodiada por uma empresa comerciante de produtos decorativos, sendo utilizada em canecas e outros itens do gênero como “Absoluto leite”, “Absoluta cachaça” e “Absoluta água”10. É interessante salientar que para McCarthy (1996), isso não seria uma paródia de marca, mas apenas a utilização da marca para parodiar a sociedade11.

A paródia não se confunde com a imitação ou reprodução. De acordo com Gama Cerqueira (2010), a reprodução de uma marca consiste em sua cópia integral, enquanto que a imitação consiste em uma simi-laridade menor, mas que ainda assim causa confusão12. A reprodução é menos comum, uma vez que é mais evidente e, portanto, deixa claro o intuito delituoso de seu autor. Mais comuns são as imitações, que podem adotar diversas formas. Uma delas é a imitação denominada por Gama Cerqueira de ideológica, mediante a qual uma marca, mesmo material-mente diversa, sugere que se trata de marca anterior através da veiculação de conteúdo simbólico similar a essa.

Ambas as figuras, tanto da reprodução quanto da imitação, são ca-racterizadas pelo intuito do titular da marca ilegítima de se fazer passar por outra. O uso de marcas em paródias, por outro lado, adota como re-

10 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Milktech Importação Ltda v. The Absolut Company Aktiebolag. Relator: Des. Péricles Bellusci de Batista Pereira. Se-tembro, 2016. Disponível em: <https://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/389443792/apelacao-apl-15633246-pr-1563324-6-acordao/inteiro-teor-389443793?ref=juris-tabs#>. Acesso em: 10 out. 2017.11 MCCARTHY, J. Thomas. McCarthy on trademarks and unfair competition. 4ª edição. Editora Thomson Reuters, 1996, vol. 5, cap. 31, p. 31-238.12 CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da propriedade Industrial, vol. 2, Tomo II. Rio de Janeiro. Lumen Juris Revista dos Tribunais, 2010. p. 80

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ferente uma marca anterior para dela se distanciar, através do humor ou da ironia. Uma paródia só será eficaz se conseguir fazer seu destinatário entender que não se trata da original. Dessa forma, não caberia enquadrar a paródia dentre tais figuras. Entretanto, isso não significa que as paródias de marcas não sejam capazes de promover a confusão, associação ou di-luição/, o que será analisado mais adiante.

A racionalidade do sistema marcário se fundamenta no interesse público de proteção do consumidor. Assim, garantir a exclusividade do sinal tem como efeito coletivo veicular ao consumidor um conteúdo in-formacional consistente, que vai promover a responsabilização do titular do sinal quanto aos atributos dos produtos ou serviços marcados. Nesse sentido, temos a vedação do artigo 124, XIX da LPI quanto ao registro de marca que seja suscetível de causar confusão ou associação. O exercício de avaliar se uma paródia de marca consiste em uso prejudicial ao sistema vai depender de quão próxima ela estaria de violar esse interesse público e, portanto, gerar confusão ou associação.

2. Os institutos da confusão, associação e diluição

A proteção da exclusividade do sinal marcário tem como caracte-rística sua capacidade distintiva, ou seja, seu potencial de diferenciar os produtos ou serviços a que estão apostas dos demais disponíveis. Porém, essa distintividade está vinculada a pertinência concorrencial do uso do sinal. Assim, há de se observar o princípio da especialidade, mediante o qual a exclusividade está restrita ao segmento comercial que será desem-penhado pelo titular. A especialidade guarda relação com os princípios constitucionais da livre iniciativa e da proteção do consumidor13. Portan-to, fica evidente que o interesse privado do titular da marca encontra res-guardo na função social do signo, além de ser somente uma ferramenta de promoção da autonomia privada.

13 BARBOSA, Denis Borges. Da confusão e da associação. 2011. Disponível em: <www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/novidades/marca_de_industria.pdf>. Acesso em: 11 out. 2017. p. 5.

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O ordenamento jurídico nacional prevê uma exceção ao princípio da especialidade, no que se refere às marcas de alto renome. Tais sinais distintivos adquirem exclusividade em todas as atividades comerciais, ge-rando um impedimento absoluto a registro por terceiros de um sinal que tenha a potencialidade de gerar confusão ou associação em relação a eles. Isso se dá em razão do extrapolamento da marca para além dos produtos ou serviços a que ela está aposta, exorbitando seu escopo primitivo. Dessa forma, a marca de alto renome tem sua proteção vinculada ao reconhe-cimento junto ao público, quanto a sua reputação, o qual tem o efeito de atrair a escolha de consumo em razão de sua simples presença.

Como se observa, a marca de alto renome é caracterizada por um direito de exclusivo mais abrangente que as demais marcas e, consequen-temente, gera o efeito de uma maior restrição. Para equilibrar os prin-cípios do sistema de marcas nesse aspecto, a Resolução nº 107/2013 do Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI, estabelece critérios específicos para a concessão dessa proteção. Esses critérios têm a finali-dade de aferir com objetividade o reconhecimento da marca pelo público e em que medida sua presença é forte o suficiente para ser o fator mais relevante na escolha do consumidor.

Para identificar se haveria a possibilidade de confusão ou de asso-ciação, é preciso observar se duas marcas pertencem ao mesmo mercado. A divisão contida na Classificação de Nice através das classes de produtos e serviços serve como um guia de efeitos administrativos que facilita essa observação. Entretanto a utilização da Classificação de Nice tem efeitos burocráticos que nem sempre são suficientes para observar se as marcas de fato competem pelo mesmo mercado. O princípio da afinidade vem complementar essa categorização que pode se mostrar artificial e insufi-ciente. Assim, são utilizados critérios para promover a eficácia da marca enquanto dispositivo de eficiência dos mercados, analisando o contexto temporal e geográfico pertinente, mesmo que transpondo as classes.

A perspectiva do consumidor é essencial nessa análise. Se em seu processo de escolha, o consumidor considera que os produtos ou ser-viços assinalados pelas duas marcas são fungíveis, ou seja, que haveria a satisfação de suas expectativas tanto pela aquisição de um quanto do outro, é possível falar em afinidade entre as marcas. Logo, duas mar-

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cas pertencem ao mesmo mercado quando há fungibilidade entre suas mercadorias para o consumidor. Porém, a apuração da concorrência não leva somente em consideração os requisitos técnicos dessa escolha. Além de se observar os atributos das mercadorias, é imprescindível se ter em conta o conteúdo simbólico da marca. Ou seja, se há similaridade quanto ao seu funcionamento enquanto signo.

Denis Barbosa (2011) afirma que é preciso observar a fungibilidade real e a fungibilidade percebida enquanto fatores cumulativos para iden-tificação de um mesmo mercado. Para tanto, o autor utiliza o exemplo de bolsas de marcas de luxo. Alterações de preço podem levar o consumi-dor de uma bolsa Gucci a adquirir outra bolsa da marca de luxo, como a Fendi. Contudo, esse mesmo consumidor não teria suas expectativas satisfeitas ao adquirir uma terceira bolsa, com o mesmo volume, mesma quantidade de bolsos, mesma cor e demais aspectos de funcionalidade14.

Somente com a constatação de que duas marcas são fungíveis, ou seja, pertencem ao mesmo mercado, é que se pode passar à análise da con-fusão e da associação. A confusão é definida como a ocorrência de distorção no reconhecimento do consumidor quanto às diferenças de uma marca em relação a outra, de maneira que ele assume que determinada marca é outra que de fato não é. Ao misturar um sinal marcário com outro, o consumi-dor incide em erro quanto à escolha de compra que realiza, prejudicando todo o sistema marcário. No aspecto privado, há prejuízo direto ao titular da marca, que pode ter seu sinal vinculado a produtos de menor qualidade ou de atributos estranhos a sua estratégia comercial. Além disso, há o prejuízo financeiro pelo simples fato de que o público vai adquirir um outro bem, imaginando se tratar de um bem proveniente do titular da marca originária.

Entretanto, maior dano é causado à sociedade e aos efeitos do siste-ma marcário para a economia. Enquanto aparelho de eficiência dos mer-cados, as marcas promovem a redução da assimetria da informação e a redução dos custos de busca15. Ainda, há a capacidade das marcas de indi-

14 BARBOSA, Denis Borges. Da confusão e da associação. 2011. Disponível em: <www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/novidades/marca_de_industria.pdf>. Acesso em: 11 out. 2017. p. 17.15 Os conceitos de assimetria de informação e redução dos custos de busca são

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car a origem do produto ou serviço, promovendo a responsabilização do titular do sinal. No contexto de ocorrência da confusão, a confiabilidade depositada na marcas enquanto elemento distintivo de produtos e servi-ços é questionada, causando insegurança jurídica e econômica.

A associação, por sua vez, ocorre quando o consumidor não toma um produto por outro, mas sim estabelece uma relação, mesmo que sim-bólica, entre um produto e outro. Ou ainda, é realizada uma conexão entre determinado produto e atributos que lhe são estranhos, sejam elementos técnicos, seja uma origem diversa da verdadeira. Comparativamente, a as-sociação seria uma relação estabelecida entre marcas mais sutil ou menos evidente que aquela ocorrida por meio da confusão. Por esse aspecto, as paródias seriam mais suscetíveis de associação, do que de confusão. Uma vez que o uso de marcas em paródias adota o discurso humorístico para construir um novo sinal, o uso afirma não se tratar do original. A paródia se distancia do sinal original para ser reconhecida enquanto sinal novo.

Verificar se uma paródia promove a associação e , portanto, se constitui um uso indevido de marca, é observar se a percepção do desti-natário foi alcançada de maneira eficiente. Se houve de fato a transmissão da mensagem de maneira correta. Isso gera conflitos e controvérsias, pois essa avaliação tem forte teor subjetivo. Entretanto, há de se utilizar o bom senso para nortear a avaliação. Quanto mais distintiva é uma marca, mais abrangente é sua área de proteção em relação às demais, de maneira que outras marcas mais fracas seriam mais suscetíveis de serem relacionadas com ela16. Logo, a força distintiva da marca referencial precisa ser levada em conta na análise da ocorrência de associação em paródias de marcas.

próprios do pensamento econômico acerca das funções da marca enquanto instrumentos de eficiência de mercados. Nicholas Economides (1988) define a assimetria de informação como a desvantagem de conteúdo informacional que o consumidor possui em relação à fonte produtora da mercadoria. Já a redução dos custos de busca é definida por Andrew Griffiths (2008) e Lands e Posner (1987) como a capacidade da marca de otimizar a esco-lha do consumidor diante do universo de mercadorias similares disponíveis, promovendo uma escolha mais rápida e mais satisfatória a suas expectativas.16 A análise da distintividade de uma marca é um critério utilizado em testes de colidência, como o “Teste Polaroid” que será abordado mais adiante.

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De acordo com Cabral e Mazzola (2015)17, a confusão pode ser classi-ficada como confusão direita, ou seja, a compra de um produto por outro, e confusão por associação, que seria a falsa percepção de que a mercadoria se trata de uma fonte conhecida. É possível perceber que os autores entendem a associação como um tipo de confusão, submetida à categorização de gênero e espécie. Isso se relaciona diretamente com a percepção de que a associação remete à marca referencial de uma forma mais sutil que a confusão.

Além dos tipos clássicos acima, os autores apontam três outras mo-dalidades de confusão: por interesse inicial, reversa e pós-venda. A confu-são por interesse inicial é definida por Gilson (2010) como situações em que o uso de uma marca de terceiro é o elemento que vai atrair o consu-midor à primeira vista, sendo nas palavras do autor “a bait-and-scwitch cheat”18. Em tais situações, o uso da marca de terceiro é feito com má-fé para se destacar na concorrência, se beneficiando da reputação construída pelo titular da marca sênior.

É perceptível esse tipo de confusão na utilização por terceiros do trade dress de um concorrente mais estabelecido, como no exemplo da disputa entre as marcas de cerveja Duvel e Deuce. A cervejaria belga Du-vel ajuizou ação contra um produtor de cervejas artesanais do Rio de Ja-neiro sob a acusação de uso indevido de marca e prática de concorrência desleal, especificamente quanto à utilização do trade dress. O acórdão do TJRJ decidiu que há grande similaridade entre os rótulos de ambas as cer-vejas, de maneira a promover a confusão por interesse inicial19.

McCarthy (1996) cita como exemplo de confusão por interesse ini-cial um julgado americano que tratou da confusão entre marcas de pianos, a famosa Steinway e a menos conhecida Grotian-Steinweg. Segundo o julga-

17 CABRAL, Filipe Fonteles e MAZZOLA, Marcelo. O teste 360º de confusão de marcas. Revista da ABPI, nº 132. Set./out., 2014.18 GILSON, Jerome. Gilson on Trademarks. Ed. LexisNexis, 2010, vol. 02, cap. 05.19 BRASIL. Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro. 11ª Câmara Cível. Apelação nº 0254911-82.2014.8.19.0001. Cervio Comercio e Indústria de Bebidas LTDA EPP v. Duvel Moortgat. Relator: Desembargador Luiz Henrique O. Marques. 20 set. 2017. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/dl/tj-rj-determina-cerveja-carioca-mude.pdf>. Acesso em: 11 out. 2017.

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do, o potencial consumidor de pianos, apesar de supostamente possuir um elevado conhecimento sobre a capacidade técnica da mercadoria, poderia ser atraído a primeira vista pela semelhança entre as marcas. Uma vez ob-servado que se tratam de origens diferentes, o consumidor poderia ainda assim escolher pela opção mais barata, por entender que essa seria suficien-te para satisfazer suas expectativas. Portanto, a utilização de marca similar teria o efeito de usurpar a reputação do titular da marca mais conhecida.

É possível observar que as paródias de marcas utilizam o mecanismo de familiaridade com outra marca para atrair a atenção inicial do consumidor. Contudo, a confusão por interesse inicial remete ao conceito de fungibilidade anteriormente abordado, ou seja, com a concorrência entre mercadorias. Não seria razoável afirmar que a paródia é, regra geral, fungível em relação à marca originária, pois seu discurso é caracterizado pelo distanciamento da marca referencial através de um uso humorístico ou irônico. É bastante comum ob-servar o uso de paródias de marcas em camisetas, bonés, pequenos artigos de decoração e produtos que não tem necessariamente afinidade com aqueles da marca originária. Contudo, nada impede que haja esse tipo de utilização, sendo necessário avaliar a confusão por interesse inicial no caso concreto.

A confusão reversa é assim chamada pois há a modificação quanto ao aspecto subjetivo dos titulares das marcas em caso de confusão comum. Ge-ralmente, a marca anterior é mais famosa e mais forte, sendo alvo de ações de terceiros no sentido de perturbar sua exclusividade. Nesse caso, porém, a marca mais nova goza de um poder econômico maior, o que proporciona formas dela se tornar mais conhecida que a marca anterior. É de se pontuar, ainda, que tais espécies de confusão seriam mais prováveis em países que ado-tam o sistema declarativo como os Estados Unidos, em razão da ausência de um exame administrativo para concessão do direito de exclusivo.

De acordo com Cusson (1995), a confusão reversa se distancia da confusão comum também pelo fato de que o uso da marca sênior não tem o intuito de usurpar a reputação previamente construída pelo titular20. Em um primeiro momento, parece que a confusão reversa beneficia o titular da

20 CUSSON, Molly S. Reverse Confusion: Modifying the Polaroid Factors to Achieve Consistent Results. Fordham Intellectual Property, Media and Entertainment Law Journal. The Berkeley Electronic Press (bepress). v. 06, issue 01, article 04, 1995. p. 183.

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marca anterior, que teria seu sinal vinculado a um agente de maior poder econômico, com uma campanha publicitária mais robusta. Inclusive, alguns julgados americanos ventilam esse argumento. Contudo, tal argumento leva em consideração que o titular da marca anterior teria interesse nessa vincu-lação, o que não é de todo verdade. É possível que ele entenda que a marca nova atrapalha sua entrada em novos mercados ou ainda que haja a vincu-lação de sua marca com valores estranhos a sua estratégia comercial.

McCarthy (1996) usa como exemplo dessa espécie de confusão o caso ocorrido entre a famosa marcas de pneus Goodyear, que usou como marca o termo Bigfoot21. Tal termo já era utilizado por um produtor de pneus da região oeste dos Estados Unidos, o qual possuía uma tímida campanha pu-blicitária e atuação limitada geograficamente. Quando a Goodyear passou a anunciar o seu pneu Bigfoot, empreendendo grandes somas em publicida-de, o público consumidor passou a perceber a marca sênior como um uso não autorizado da marca mais famosa e mais forte. Além do prejuízo ao di-reito de exclusivo do titular sênior, a confusão reversa no caso causou dano à reputação do titular originário, uma vez que o uso de sua marca passou a ser percebida pelo consumidor como uma imitação ou uso indevido.

Por fim, há a confusão pós-venda. Nela, o produto é percebido como outro, tal qual a confusão comum. Porém, quem assim percebe não é quem adquiriu o produto, mas sim um terceiro. O consumidor do bem sabia que adquiria uma mercadoria não original, sem que isso impedisse sua escolha. Esse tipo de confusão pode ser observada de maneira mais evidente em caso de bens de consumo de luxo, os quais são frequentemen-te alvo de contrafação. Neles, a sofisticação associada à marca também é relacionada com altos preços. A reputação do titular é prejudicada ao ter sua marca associada a produtos de menor qualidade ou mesmo por ser um público diverso daquele a que se destina sua estratégia comercial.

É interessante pontuar que a confusão pós-venda se relaciona com a contrafação, ou seja, com o ato ilícito de imitar ou reproduzir uma mer-cadoria sem autorização do titular da marca. Assim, a proibição da con-trafação também visa proteger a reputação do titular contra sua vincula-

21 MCCARTHY, J. Thomas. McCarthy on trademarks and unfair competition. 4ª edição. Editora Thomson Reuters. 1996. v. 02, cap. 23, p. 23-27.

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ção à qualidades inferiores, não somente em relação àquele que adquire de fato o produto, mas em relação à coletividade. Dessa forma, esse tipo de confusão seria uma forma de resguardar a reputação do titular mais voltada para o funcionamento da marca como signo, o que ela transmite em termos de valores.

McCarthy (1996) cita como exemplo o casa da marca Levi’s do se-tor de vestuário22. Essa marca geralmente é evidente na peça de roupa, adquirindo um papel importante não somente na escolha de compra do consumidor, mas na sua identificação enquanto pertencente a determina-do grupo ou estilo. Mesmo que o comprador de uma peça tenha conhe-cimento de se tratar de uma imitação, as demais pessoas que observam o consumidor vestindo a peça não saberão. O consumidor da contrafação se torna um vetor de má publicidade, gerando prejuízo ao titular através da percepção de terceiros.

A confusão pós-venda se relaciona com o funcionamento da marca enquanto veículo de valores e da imagem do seu titular. Assim, é preci-so entender as contribuições semióticas e semiológicas concernentes ao direito marcário. Denis Barbosa23 aborda essas contribuições através da aplicação da estrutura triádica de Pierce e da estrutura diádica de Sau-surre aos signos marcários. De acordo com a estrutura triádica, os signos são compostos por: significante, o elemento perceptível pelos sentidos; significado, o conteúdo semântico relacionado com o significante; e o re-ferente, o elemento concorrencial, ou seja, o produto ou serviço a que a marca está aposta.

Por outro lado, de acordo com a estrutura diádica, se entende que a marca é um signo composto de significante, elemento perceptível pelos sentidos, e significado, sendo esse o conjunto de valores, ideias e visões de mundo veiculados pela marca. A diferença entre as duas estruturas está em identificar qual é o objeto de consumo. Enquanto na primeira, o consumidor é atraído pelos atributos do referente, na segunda o que mo-

22 MCCARTHY, J. Thomas. McCarthy on trademarks and unfair competition. 4ª edição. Editora Thomson Reuters. 1996. v. 02, cap. 23, p. 23-20.23 BARBOSA, Denis Borges. O Fator Semiológico na Construção do Signo Marcário. 2006. Disponível em: <http://denisbarbosa.addr.com/tesetoda.pdf>. Acesso em: 12 out. 2017.

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tiva o consumidor é o signo em si. Para Denis Barbosa (2006) e Ramello (2006), a economia desmaterializada da atualidade é caracterizada pelo consumo do signo e pela fidelidade à marca. Assim, o consumidor não é atraído pela competição por menores preços apenas, mas acima disso pelo conteúdo simbólico da marca.

A diluição é um instituto do direito marcário que tem a finalidade de proteger a marca em seu funcionamento simbólico, para além da ocor-rência de confusão e associação. Assim, a diluição ocorre quando há o uso de uma marca sênior por um outro agente que afeta seu funcionamento enquanto signo, podendo haver prejuízo a sua distintividade. A diluição não se submete à análise de concorrência entre as marcas, diferentemente da confusão e da associação. Logo, não há de se falar em observação do princípio da especialidade ou da afinidade, pois para que haja diluição é indiferente saber se as marcas pertencem ao mesmo mercado. É suficiente que haja prejuízo de sua capacidade distintiva, seja através de uma ofensa a sua unicidade ou à sua reputação24.

Embora a LPI não adote expressamente o instituto da diluição, é comum que haja seu emprego pela jurisprudência brasileira. Além disso, a Resolução nº 107/2013 do INPI traz menção a esse instituto, o incorpo-rando ao ordenamento jurídico nacional. É evidente que a diluição traz uma maior abrangência ao direito de exclusivo dos titulares dos sinais marcários. Essa abrangência tem como racionalidade a proteção da repu-tação e da distintividade, que nem sempre vai ser suprida pela confusão ou associação. Entretanto, é preciso manter atenção ao equilíbrio do sis-tema como um todo. O interesse privado do titular da marca não pode se tornar o imperativo de todo o sistema. Nesse sentido, McCarthy (1996)

24 A jurisprudência americana classifica a diluição em três espécies. A maculação consiste na vinculação da marca a produtos de menor valor ou a valores estranhos a seu conjunto simbólico, suscitando no público juízos de valor negativos quanto à reputação da marca sênior. A ofuscação que representa o enfraquecimento da distintividade da marca através de sua utilização em outros contextos. Por fim, há a adulteração, a qual é caracteri-zada pela modificação dos elementos que compõe o sinal marcário, promovendo prejuízo ao seu potencial distintivo.

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afirma que o instituto da diluição não pode ser empregado para suprimir toda e qualquer referência às marcas25.

3. Testes utilizados pela jurisprudência para identificar o uso inde-vido de marcas

Conforme observado nas definições conceituais dos institutos da confusão e suas espécies e bem como da diluição, há um relevante teor subjetivo na identificação do uso indevido de marcas. Assim, a apreciação dos casos em concreto pelos juízes e tribunais competentes levou à elabo-ração de testes e critérios para avaliar o uso indevido casuisticamente. A jurisprudência americana desenvolveu o notório teste denominado Pola-roid Factors diante da disputa ocorrida entre as empresas Polaroid Corp. e Polarad Eletronics Corp. A empresa Polaroid, que já utilizava a marca desde 1935, ajuizou ação contra a Polarad por uso indevido de marca e concorrência desleal. O Tribunal do Segundo Circuito elaborou uma lista de fatores para guiar a análise da confusão. Ironicamente, o teste não foi usado para a resolução da demanda, uma vez que a corte entendeu que a demora da Polaroid em acionar a concorrente barrava a disputa. Contudo, o teste se tornou um marco no estudo da confusão.

O teste Polaroid Factors usa como critérios: a força da marca sênior; o grau de similaridade entre as duas marcas; a proximidade dos produtos; a probabili-dade da marca sênior entrar no mercado da marca júnior, se já não o fizer; evi-dências de que a confusão de fato ocorreu; a boa-fé do titular da marca júnior, ou sua má fé; a qualidade dos produtos vinculados à marca sênior; e a sofisticação do público consumidor da marca sênior. Embora tenha sido desenvolvido com o intuito de conferir objetividade à análise da confusão, o teste se relaciona com elementos subjetivos. Como tal, sua aplicação produz resultados inconsistentes, que variam de acordo com o tribunal que vai apreciar a demanda26.

25 MCCARTHY, J. Thomas. McCarthy on trademarks and unfair competition. 4ª edição. Editora Thomson Reuters. 1996. v. 02, cap. 23, p. 31-236.26 CUSSON, Molly S. Reverse Confusion: Modifying the Polaroid Factors to Achieve Consistent Results. Fordham Intellectual Property, Media and Entertainment Law Journal. The Berkeley Electronic Press (bepress). v. 06, issue 01, article 04, 1995. p. 196.

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No caso das paródias de marcas, tais fatores também requerem uma análise casuística. Contudo, alguns elementos podem ser debatidos gene-ricamente. Quanto à proximidade dos produtos e a disputa pelo mesmo mercado, de maneira geral, as paródias não estariam sujeitas à confusão, principalmente para o caso de paródias de marcas que são utilizadas como obras do direito autoral. No caso de paródias utilizadas como marcas, é de se avaliar se o uso da marca sênior dentro do discurso humorístico tem a potencialidade de competir pelo mesmo mercado. No caso citado da marca Chewy Vuiton, por exemplo, não seria razoável admitir que o consumidor entende haver fungibilidade entre as mercadorias parodiadas e as originais.

Ainda, quanto ao critério da boa-fé, de maneira geral, a paródia afir-ma não ser a marca original. Ou seja, não há o intuito de se passar por outra, mas tão somente de remeter à marca original e dela se distanciar. Por fim, quanto ao critério da sofisticação do público consumidor, a paródia tem o intuito de provocar a perspicácia do destinatário. Então, ela se destina aos consumidores que conseguem observar que se trata de um discurso irônico ou crítico. Não sendo capaz de realizar essa provocação, a paródia pode ser entendida como uso indevido. Mas, antes disso, não seria exatamente uma paródia, por contrariar a natureza referencial do discurso.

Além do teste Polaroid Factors, a jurisprudência americana também desenvolveu o chamado teste du Pont, no qual foi estabelecido um abran-gente rol de fatores para nortear o julgamento da ocorrência de confusão sob uma análise casuística. O teste conta com treze fatores, mas isso não significa que há necessidade de aplicação de todos aos caso concreto. Os critérios funcionam como guias que vão se moldar à realidade das marcas em conflito. Gilson (2010) afirma que o teste não listou tais fatores por or-dem de importância, ficando a cargo do juiz definir que fatores são mais relevantes para o caso em concreto e quais fatores podem ser suprimidos.

Quanto a eles, temos: a similaridade ou não das marcas quanto a sua aparência, som, conotação e impressão comercial; a similaridade ou não da natureza das mercadorias envolvidas; a similaridade ou não dos canais utilizados pelas marcas para realizarem suas atividades comerciais; as condições em que a compra é realizada (se por impulso ou através de uma decisão sofisticada), bem como de quem são os consumidores de cada marca; a fama da marca sênior; a quantidade e natureza das marcas

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que são utilizadas em bens similares às marcas analisadas; a natureza e abrangência da ocorrência de confusão de fato; o período de tempo e as condições em que houve o convívio entre as marca sem que houvesse con-fusão; a variedade de mercadorias a que as marcas estão apostas; a relação entre o titular da marca sênior e o titular da marca júnior; a extensão do direito de exclusividade do titular da marca sênior quanto a excluir de-mais concorrentes de utilizar sua marca; as dimensões da possibilidade de confusão (definida entre mínima e substancial); e, por fim, qualquer outro fator enseje conteúdo probatório para a resolução da demanda27.

Ainda, no ordenamento jurídico nacional, é possível citar o julga-mento do Recurso Especial nº 949.514/RJ, o qual estabelece três critérios para aferição da ocorrência de confusão28. O julgado se refere à análise de confusão entre a marca sênior “Fiesta” e a marca júnior “Moça Fiesta”, am-bas do ramo alimentício. Inicialmente, se observa se há imitação ou repro-dução da marca já registrada, no todo, parcialmente ou mediante acréscimo de algum elemento. Também é avaliada a semelhança ou afinidade entre os produtos a que estão apostas as marcas. Por fim, é analisada a possibilidade da coexistência das marcas promover a confusão ou dúvida no consumidor.

De tais requisitos, é possível observar que a análise da confusão está em consonância com o estudo da concorrência. Caso haja a disputa entre as marcas pelo mesmo mercado, é possível falar em confusão. Dessa forma, os critérios apontam implicitamente para os princípios da espe-cialidade e da afinidade. No caso concreto da marca “Fiesta”, se entendeu não haver risco de confusão em razão da marca sênior ser utilizada para comercialização de sidra, enquanto que a marca júnior era utilizada para comercialização de leite condensado de sabores variados. Além de serem registradas através de classes distintas, as marcas utilizavam rótulos e em-

27 GILSON, Jerome. Gilson on Trademarks. Ed. LexisNexis, 2010, vol. 02, cap. 05, p. 5-18.28 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 949.514 - RJ. Agrícola Fraiburgo S/A v. Société des Produits Nestlé S/A. Relator : Ministro Humberto Gomes de Bar-ros. Outubro, 2007. Disponível em: < http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?pro-cesso=949514&&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=true#>. Acesso em: 13 out. 2017.

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balagens completamente diversos. Nesse sentido, o tribunal entendeu que poderia haver a coexistência harmônica entre elas.

Também é interessante pontuar, no contexto dos testes de confusão, a chamada teoria da distância desenvolvida pelo direito alemão. Tal teoria se baseia na percepção da marca como emanadora de um campo distin-tivo diante de suas concorrentes, levando em consideração não somente a semelhança das marcas em disputa, mas também da marca em relação às demais disponíveis no mesmo ramo de atividade.29 O termo “distância” não se refere à separação geográfica que pode haver entre as marcas, mas sim de uma separação imaterial entre os elementos que às compõem. A teoria usa como critério o grau de distintividade do sinal marcário. Quan-to maior, mais forte será a marca e, consequentemente, maior será a área abrangida pela sua exclusividade. Para tanto, é observado também seu funcionamento enquanto signo, o conteúdo de valores de uma marca e como ele se impõe em relação aos demais.

Nesse sentido, é interessante recordar as observações feita por Ra-mello quanto à classificação das marcas de acordo com sua distintivida-de30. Uma marca pode ser fantasiosa, quando há a criação inédita do sig-no, sem que haja significado preexistente vinculado a ele, como exemplo, Exxon. Também é possível que as marcas sejam arbitrárias, quando há um significado preexistente vinculado ao signo, mas esse é distante do produ-to ou serviço marcado, por exemplo Apple. Por fim, as marcas podem ser evocativas ou sugestivas, quando seu significado faz referência a algum elemento que é reconhecível pelo público consumidor como pertencente ao universo dos produtos ou serviços da marcados.

Analisada no contexto da teoria da distância, as marcas evocativas ganham força distintiva quando concorrem com marcas fantasiosas. Um exemplo disso é o caso das marcas Bombril e Assolam, no qual a primeira teve sua distintividade fortalecida por ser colocada em contraposição à

29 SCHMIDT, Lélio D. A Distintividade das Marcas. 1ª ed. São Paulo. Saraiva, 2013. p. 264.30 RAMELLO, Giovanni Battista e SILVA, Francesco. Appropriating signs and me-aning: the elusive economics of trademark. Industrial Corporate Change, v. 15, n. 6, p 937-963, 2006. p. 549.

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última. O consumidor percebeu que a marca Bombril não se tratava de uma denominação genérica para lãs de aço. Por outro lado, a existência de diversas marcas semelhantes no mesmo mercado prejudica a distintivida-de de todas as concorrentes, fazendo com que sua diferenciação repouse em aspectos menores como sufixos ou prefixos.

Para além da confusão, associação e diluição, o debate que surge na utilização de marcas sob o discurso da paródia é em que medida se dá a ca-pitalização da popularidade construída pelo titular da marca originária em benefício do criador da paródia. Ou seja, se haveria parasitismo mediante o exercício da paródia. Muito se fala quanto à distorção dos investimentos realizados na construção da reputação da marca originária e em que medi-da isso implica em se beneficiar da propriedade alheia. Por outro lado, há de se considerar a forma como a sociedade se relaciona com o sinal marcário e seu conteúdo simbólico. Na pós-modernidade, as marcas ampliaram seu funcionamento para muito além do mercado e da esfera comercial. Assim, a marca hoje alcança o espaço social. Consequentemente, ao ultrapassar as fronteiras do consumo, as marcas adentraram no universo de referências culturais e, portanto, se encontram exposta à opinião pública31.

Dessa forma, as paródias se relacionam com a garantia constitucio-nal da liberdade de expressão. O artigo 5º, incisos IV e IX, da Constituição Federal, protegem a livre manifestação de pensamento e a livre expressão intelectual, respectivamente. O interesse privado do titular da marca em proteger de perturbações sua distintividade encontra limite no interesse coletivo de exprimir opiniões e utilizar criativamente os sinais marcários. A mera utilização da marca como referência para o discurso da paródia não é suficiente para determinar o uso indevido. McCarthy (1996) afirma que o uso de marcas em paródias pode possuir a tendência de aumentar a identificação do público com o sinal originário. A paródia tem o intuito final de divertir ou provocar o consumidor, não de o confundir.

A marca de artigos esportivos Nike é alvo bastante frequente de paró-dias. Em uma delas, foi utilizada a grafia e o característico swoosh em cami-setas que utilizavam como elemento nominativo o nome próprio “Mike”, no

31 SEMPRINI, Andrea. A Marca Pós-Moderna: Poder e Fragilidade da Marca na Sociedade Contemporânea. São Paulo: Estação das Letras, 2006. p. 275.

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lugar de “Nike”32. Esse caso é um interessante exemplo de que as paródias podem adotar um discurso inocente e claro, não sendo necessariamente capazes de causar perda de distintividade. O sucesso da paródia depende do sucesso do titular, pois somente fará sentido enquanto a vinculação de sentido ressoar no público como familiar. Novamente, isso não significa que a paródia e a liberdade de expressão possam ser um recurso de defesa para o uso indevido de marcas. Essa análise deve ser casuística e, para tanto, os teste de confusão fornecem interessantes critérios de aferição.

4. Conclusão

O uso de marcas em paródias pode ser entendido como a conse-quência do aumento de alcance desses sinais, superando a esfera comer-cial e adentrando no espaço social. A sociedade de consumo se relaciona com os sinais marcários não apenas como mecanismos de eficiência dos mercados, mas também como parte do universo de referências culturais. Assim, o uso criativo de marcas dentro do discurso da paródia é bastante frequente, como se observa dos casos citados.

Embora frequente, não há um consenso na doutrina e na jurisprudên-cia acerca da legalidade dessa utilização. Nesse sentido, é bastante comum haver a judicialização por parte do titular do sinal originário sob alegações de que as paródias promovem confusão, associação ou diluição. Enquanto a con-fusão é causada por um uso de marca alheia que provoque a percepção de um produto como diferente daquele que de fato é, a associação ocorre de maneira mais sutil. Ela provoca no consumidor a falsa sensação de que haveria uma relação, mesmo que simbólica, entre a marca júnior e a marca sênior.

Por esse aspecto, é mais provável que as paródias tenham a poten-cialidade de causar associação, do que confusão. Entretanto, é preciso di-ferenciar uma paródia bem sucedida em aguçar a perspicácia do destina-tário através do humor ou da crítica, da paródia que causa associação. Não é possível afirmar que o mero uso de marcas em paródias seja prejudicial ao sistema por promover a confusão ou associação.

32 MCCARTHY, J. Thomas. McCarthy on trademarks and unfair competition. 4ª edição. Editora Thomson Reuters. 1996. v. 02, cap. 23, p. 31-155.

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Ainda, quanto à diluição, é preciso impor limites à aplicação do insti-tuto no que diz respeito às paródias de marcas. Apesar dele proteger a exclu-sividade das marcas para além da ocorrência de confusão e associação, isso não pode significar uma proibição total à menção de marcas de terceiros em qualquer discurso, seja crítico ou não. O equilíbrio do sistema reside na har-monização entre o direito privado do titular do sinal e o interesse público de proteção à liberdade de expressão. Cada caso traz implicações que precisam ser avaliadas em singular, levando em conta suas particularidades.

Os testes desenvolvidos pela jurisprudência americana, tanto o Po-laroid Factors quanto o teste du Pont, além dos critérios utilizados pela jurisprudência nacional, fornecem importantes observações acerca da análise de ocorrência de confusão e associação no que diz respeito às pa-ródias. Avaliar a força distintiva da marca referencial, bem como o intuito do autor da paródia, pode representar a solução para disputas sobre o uso indevido de marcas. Entretanto, tais testes e critérios possuem elementos subjetivos que precisam ser debatidos casuisticamente. Não há uma regra geral que determine se o uso de uma marca em paródia é ou não uma violação do direito de exclusivo do titular do sinal originário.

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Arbitragem com a Administração Pública e os conflitos tributários no Brasil

Mayara Nunes Medeiros de Souza1

1 Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Membro da Comissão de Mediação e Arbitragem da OAB/PE. Diretora da Associação Brasileira de Estudantes de Arbitragem.

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Sumário: Introdução; 1. Arbitragem Tributária: um breve pano-rama histórico; 2. Arbitragem no Brasil; 3. Arbitrabilidade subjetiva; 4. Arbitrabilidade Objetiva; 4.1. A indisponibilidade do crédito tributário; 4.2. O Artigo 171 do CTN e a Transação do Crédito Tributário; 5. A Pers-pectiva da Arbitragem Tributária no Brasil; 5.1. Atenção ao Princípio da Legalidade; 5.2. Necessidade de regulamentação específica; 5.3. Elemen-tos Necessários para Funcionamento; 5.3.1. Formas e Modalidades de Ar-bitragem; 5.3.2. Detalhes: A Escolha Dos Árbitros; 5.4. Cumprimento de Sentença e Pagamento; 5.5. Recursos contra a Sentença Arbitral; Conclu-são; Referências Bibliográficas.

Palavras-chave: arbitragem; administração pública; direito tributário.

Introdução

O presente artigo tem como tema principal o instituto da arbitra-gem, em especial a sua utilização para solução de conflitos envolvendo a Administração Pública e matérias afetas ao direito tributário. Observando a evolução da arbitragem no Brasil, assim como o próprio instituto da arbitragem tributária, com origem em Portugal, o presente trabalho pro-põe-se a verificar a viabilidade de adoção da arbitragem tributária como prática resolutiva no Brasil.

O ensaio se dará através de uma análise conceitual de institutos jurídicos de grande relevância no direito brasileiro como o princípio da legalidade e a (in)disponibilidade do crédito tributário e da matéria a ele relacionada, assim como outros elementos normativos existentes no or-denamento jurídico brasileiro que têm relação e influência sobre o tema estudado. O ponto de origem do presente trabalho foi, ante o atual cenário de expansão da atuação da Administração Pública em arbitragens, bem como das matérias passíveis de discussão em arbitragem, a necessidade de verificar se seria possível superar algumas barreiras supostamente existen-tes na utilização de arbitragem para solução de conflitos tributários, em especial a ideia de indisponibilidade do interesse público, para viabilizar a resolução de tais conflitos por arbitragem no Brasil.

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O contexto que se tem por base é o do atual sistema de processos tributários no Brasil, onde a morosidade e aparente recorribilidade infini-ta representam um entrave à solução definitiva dos conflitos tributários de forma eficaz e satisfatória, em desatenção ao princípio da duração razoá-vel do processo. É em razão deste cenário, no qual os créditos se acumu-lam sem efetivo pagamento durante anos, gerando despesas prolongadas na movimentação da máquina estatal para discussão dos processos, que a solução adotada por Portugal se apresenta como uma opção atrativa para melhoria da solução das demandas tributárias. Na realização da pesquisa foi utilizada metodologia fundamentalmente teórica, através de revisão bibliográfica de doutrina e legislação, mas também foram observados da-dos qualitativos e quantitativos acerca dos processos tributários e arbitra-gens no Brasil, a fim de apresentar elementos que corroborem os argu-mentos e raciocínio que o trabalho propõe.

1. Arbitragem tributária: um breve panorama histórico

A Arbitragem Tributária, tal qual ora estudada, surgiu em Portugal, inicialmente no âmbito do direito administrativo, a partir da desconstrução da ideia de que as relações jurídicas envolvendo direitos e entes públicos não poderiam ser objeto de arbitragem simplesmente por que “administração pú-blica não pode dispor livremente dos direitos e obrigações do Estado, vincu-lada que está à primazia do interesse público e ao princípio da legalidade”2.

Com a adoção de uma postura em que Administração e particula-res, juntos, devem atuar para concretizar o interesse público3, a arbitra-gem entre administração e administrados, como partes em igualdade de condições, tornou-se algo perfeitamente exequível. Assim, em 2004 houve uma reforma no Código de Processo e Tribunais Administrativos para

2 SERRA, Manuel Fernando dos Santos. A Arbitragem Administrativa em Portu-gal. Mais Justiça Administrativa e Fiscal: arbitragem. Coimbra: Wolters Kluwer; Coim-bra Editora, 2010, p. 25 apud FRANCISCO, Ana Mafalda Costa. A Arbitragem Tributá-ria. 2012. Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica Portuguesa, Porto, 2012, p. 6.3 FRANCISCO, Ana Mafalda Costa. A Arbitragem Tributária. 2012. Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica Portuguesa, Porto, 2012, p. 8.

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positivar a mudança para um modelo mais subjetivista, preocupado com os direitos subjetivos dos administrados, criando nesta oportunidade o regime da Arbitragem Administrativa4.

A partir dessa mudança de posicionamento acerca da participação da administração pública em procedimentos arbitrais, nos quais não esta-ria acima dos cidadãos, mas em paridade para solucionar os conflitos no melhor interesse geral, iniciou-se também a discussão acerca da possibili-dade de extensão do regime de arbitragem à matéria tributária.

É importante apontar que em Portugal existe uma dualidade de jurisdições, pois à parte dos Tribunais Judiciários existem os Tribunais Fiscais e Administrativos, que são independentes e possuem estatuto e competência próprios5. Ocorre que, além disso, a Constituição Portugue-sa prevê também, no artigo 209.2, o recurso a tribunais arbitrais, com a clara intenção de excepcionar a competência dos demais tribunais caso haja determinação específica para que determinada matéria ou conflito seja encaminhado a um tribunal arbitral.

Ademais, para além das circunstâncias puramente jurídicas em que surgiu a arbitragem tributária, é necessário destacar a conjuntura mais ampla de sua implantação, o que é bem retratado por Sergio Vas-quez em artigo publicado no âmbito do próprio Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD):

O elevado grau de litigância que caracteriza a “fiscalidade de massas” dos nossos dias exacerba a dificuldade que os tribunais judiciais sentem para lhe dar resposta pronta, mais ainda pela crescente sofisticação do Direito Fiscal, marcado por soluções técnicas de imensa delicadeza e em constan-te transformação. Sem dúvida que a morosidade da justiça tributária com que hoje nos deparamos representa um prejuízo económico efectivo para os contribuintes e não poucas vezes para a administração fiscal6

4 PORTUGAL. Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 4-A/2003, de 19 de fevereiro. arts. 180 a 187.5 PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. 1976. Art. 212.6 VASQUES, Sergio. Os primeiros passos da arbitragem tributária. CAAD Newslet-ter, Lisboa, out. 2011, p. 5. Disponível em <https://bit.ly/2AdJFBl>. Acesso em 31/07/2018.

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Enfim, considerando-se que se a qualidade pública da administração não lhe era óbice para realização de arbitragens em matéria administrativa, também não deveria ser para solução de conflitos fiscais7, tanto a arbitrabi-lidade subjetiva quanto objetiva, das questões aparentemente públicas.

Assim foi implementado em Portugal o Regime Jurídico da Arbi-tragem Tributária, como uma resposta à morosidade do Judiciário e à ne-cessidade de reforma para concretização eficaz de direitos8. Instituiu-se, assim, através do Decreto Lei n.º 10/2011, a arbitragem como meio alter-nativo de resolução de conflitos tributários, mediante autorização do art. 124 da Lei n.º 3-B/2010, a qual entrou em vigor no dia 1 de julho de 2011.

O Decreto supramencionado inclui previsões específicas acerca das matérias passíveis de análise no âmbito do Regime, assim como diversas outras questões essenciais à concretização da proposta de solução de li-tígios fiscais por arbitragem – como o tempo para prolação de sentença, requisitos à escolha dos árbitros, e outros. Desta feita, respeitando o prin-cípio da legalidade, foram feitas determinações expressas em lei acerca de que litígios que envolvessem matéria tributária poderiam ser objeto de arbitragem, e como seria seu tratamento.

O diploma que deu origem ao Regime Jurídico da Arbitragem Tri-butária criou, para sua efetivação, o Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), uma instituição vinculada à jurisdição Administrativa e Fiscal, prevista na Constituição Portuguesa, responsável por gerenciar e admi-nistrar os procedimentos arbitrais administrativos e tributários. Por ser li-gado à própria administração, o CAAD tem práticas diferenciadas no que toca à recorribilidade das sentenças proferidas pelos tribunais arbitrais constituídos sob seu bojo, sendo admitido recurso ao Tribunal Constitu-cional, por exemplo.

7 OLIVEIRA, Ana Perestelo. Da Arbitragem Administrativa à Arbitragem Fiscal: notas sobre a introdução da arbitragem em matéria tributária, Mais Justiça Administrativa e Fiscal, 2010. P 133. apud FRANCISCO, Ana Mafalda Costa. A Arbitragem Tributária. 2012. Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica Portuguesa, Porto, 2012, p. 138 No preâmbulo, o Decreto discrimina seus objetivos: “reforçar a tutela eficaz dos di-reitos e interesses legalmente protegidos dos sujeitos passivos, por outro lado, imprimir uma maior celeridade na resolução de litígios que opõem a administração tributária ao sujeito pas-sivo e, finalmente, reduzir a pendência de processos nos tribunais administrativos e fiscais”.

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Desde sua criação, a arbitragem tributária em Portugal é cada vez mais utilizada, auxiliando no descongestionamento do Judiciário e contribuindo para sua finalidade primária de diminuir a morosidade e aumentar a eficácia das soluções. A evolução da utilização do instituto pode ser observada nos newsletters divulgados pelo CAAD, que em 20169 indicou, apenas entre janeiro e setembro de 2016, o número de 582 novas demandas, e dos 2.197 processos findos até então, apenas 5,1% não foram definitivamente encerrados com a sen-tença arbitral, o que mostra um alto grau de aceitação das decisões prolatadas.

2. Arbitragem no Brasil

No ordenamento jurídico brasileiro a autorização para utilização de arbitragem como meio de resolução de conflitos surgiu com o adven-to da Lei 9.307/1996. Apesar de existir há tanto tempo, apenas passou a ser efetivamente utilizada após pronunciamento do Supremo Tribunal Federal em sede de homologação da sentença estrangeira SE 5.206/ES, em 2001, atestando sua constitucionalidade.

A partir de então esclareceu-se que a utilização de arbitragem não con-figuraria uma ofensa ao princípio constitucional da inafastabilidade da tutela jurisdicional pelo Poder Judiciário, pois esta tinha também natureza igual-mente jurisdicional10, e, ademais, a lei não impede os indivíduos de socorre-rem-se no Judiciário, mas simplesmente lhes dá uma nova possibilidade.

O direito tributário é uma das áreas de tratamento delicado no orde-namento jurídico brasileiro, pois é uma matéria essencialmente de direito público, cujos guardiões legais são membros do poder público, o que faria dela absolutamente avessa à jurisdição privada de uma arbitragem. Ocorre, porém, que é necessário analisar mais de perto os motivos que em tese cau-sariam tal incompatibilidade entre o direito tributário e a arbitragem.

9 CAAD Newsletter, Lisboa, n. 1, out. 2016, p. 5. Disponível em: <https://bit.ly/2NIYUph>. Acesso em 31/07/2018.10 CAHALI, Francisco José. Curso de Arbitragem. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 127; VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. 12 anos da Lei 9.307/1996. São Paulo: Malheiros: 2008. p. 242

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Para tanto, são de essencial relevância temas como a possibilidade de a Administração Pública figurar em juízo arbitral, a possibilidade ou não de se discutir conflitos ligados a obrigações tributárias em sede de arbitragem, considerando a indisponibilidade ou não da matéria, junta-mente com o interesse público. Questões como essas serão tratadas aqui a fim de verificar, à diante, se seria possível e como viabilizar a adoção da arbitragem tributária no Brasil.

3. Arbitrabilidade subjetiva: Administração Pública como parte

A arbitrabilidade subjetiva refere-se à capacidade das partes para figurar em um procedimento arbitral e para firmar contratos (consideran-do a natureza contratual do compromisso arbitral e do termo de arbitra-gem). Com a reforma realizada na Lei de Arbitragem 9.307/1996, através da Lei 13.129/2015, incluiu-se no artigo 1º, que versa sobre a capacidade das partes, a possibilidade expressa de os entes da Administração Pública direta e indireta utilizarem arbitragem para dirimir eventuais conflitos so-bre direitos patrimoniais e disponíveis.

Com a inclusão desta provisão, superou-se um grande debate sobre o obstáculo à possibilidade de o poder público participar de arbitragens, restando clara a possibilidade, a partir de então, diante da permissão legis-lativa. A reforma foi acompanhada de outras leis no mesmo sentido, como a Lei 15.627/2015, do Estado de Pernambuco, que trouxe a confirmação, em âmbito estadual, da possibilidade de arbitragem para solução de con-flitos com o Estado e a Administração Pública.

A fim de evitar quaisquer outras discussões acerca da legitimida-de para representar a Administração nas arbitragens, a reformada Lei de Arbitragem esclareceu, em seu Art. 1º, §2º, que aquele que tiver o poder para realizar acordos ou transações é o devido representante público para firmar o termo e figurar como parte no procedimento.

Apesar de apenas recentemente ter sido expressamente permitida a arbitragem com a Administração Pública em todos os âmbitos, cumpre observar que já existiam casos isolados anteriormente, em razão de leis específicas em setores e esferas diferentes, como a Lei Mineira de Arbi-tragem (Lei nº 19.477/2011), que já ensejavam a participação da Admi-

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nistração Pública em procedimentos arbitrais, ainda que de forma quase inexpressiva.11

Com a reforma de 2015, não apenas superou-se definitivamente a controvérsia sobre a participação da Administração Pública em procedi-mentos arbitrais, restando claro quem deve representá-la em tais ocasiões, mas também se ampliaram as possibilidades de utilização de arbitragem pelo poder público, uma vez que todos os entes e órgãos podem eviden-temente participar dos procedimentos. Assim, espera-se que daqui para frente o número de arbitragens com o poder público cresça de maneira mais expressiva, considerando as vantagens da celeridade e, principal-mente, a especialidade dos árbitros, que são de grande utilidade para os contratos e relações jurídicas de maior complexidade.

É nesse sentido que acreditamos que diante de tais permissões, é perfeitamente possível – por hora, do ponto de vista subjetivo – que a Fa-zenda Pública se utilize de arbitragem para resolver controvérsias de na-tureza tributária, considerando que, sem a imposição de outros requisitos específicos acerca das matérias a serem discutidas pela Fazenda Pública em sede de arbitragem, cabe apenas verificar, em cada uma, seu caráter disponível e patrimonial que permitirá a submissão à jurisdição arbitral.

4. Arbitrabilidade objetiva: a (in)disponibilidade do interesse público

Como requisitos objetivos de arbitrabilidade, a Lei 9.307/96 deter-mina que os direitos, para que possam ser discutidos em sede de arbitra-gem, devem ser patrimoniais e disponíveis. O diploma, no entanto, não define tais requisitos ou elenca matérias que se encaixem ou não na con-dição necessária de arbitrabilidade, pelo que restou à doutrina apresentar de forma mais específica a caracterização destes elementos.

11 Em pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas, analisando o período de 1989 a 2016, verificou-se que as arbitragens no Brasil foram compostas em 97% por partes do setor privado, enquanto apenas 1% correspondia à Administração Pública Direta e 2% à Adminis-tração Pública Indireta. SCHMIDT, Gustavo Rocha. A arbitragem nos conflitos envolvendo a administração pública: uma proposta de regulamentação. 2016. Dissertação (Mestrado) – Es-cola de Direito do Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2016, p. 28.

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A patrimonialidade é um conceito certamente mais simples de se verificar, pois relaciona-se à existência de caráter patrimonial do direito, ou seja, à possibilidade de expressar-se em valor pecuniário, quantificar monetariamente tal direito. No tocante à disponibilidade, porém, é mais difícil chegar a uma conclusão única e definitiva acerca do que caracteriza um direito como disponível ou não, mas nessa senda veja-se o que diz Moreira Neto sobre o tema, citado por Selma Lemes:

São disponíveis, nesta linha, todos os interesses e os direitos deles derivados que tenham expressão patrimonial, ou seja, que possam ser quantificados monetariamente, e estejam no comércio, e que são, por esse motivo e normalmente, objeto de contratação que vise a dotar a Administração ou os seus delegados, dos meios ins-trumentais de modo a que estejam em condições de satisfazer os interesses finalísticos que justificam o próprio Estado. 12

A Lei de Arbitragem, assim como o Código Tributário Nacional (CTN) – Lei Nº 5.172, de 25 de outubro de 1966.–, a Constituição Federal de 1988 (CF) e outras leis relevantes ao presente trabalho, não traz explícita definição acerca da disponibilidade ou não do crédito tributário para fins de submissão a arbitragem, pelo que se faz necessário analisar através de elemen-tos do direito administrativo, constitucional e tributário se este requisito de arbitrabilidade objetiva pode ser ou não preenchido pela matéria em questão.

Um dos pontos mais controversos e utilizado como um dos maio-res justificadores à impossibilidade de solução dos conflitos tributários por arbitragem no Brasil é a dita indisponibilidade do interesse público, em que se inseriria a matéria tributária, mas para avaliar se esse é de fato

12 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Arbitragem nos Contratos Adminis-trativos. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 209, p. 81-90, jul. 1997 apud LEMES, Selma Ferreira. Arbitragem na Concessão de Serviços Públicos- Arbitrabilidade Objetiva. Confidencialidade ou Publicidade Processual? Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e Arbitragem, São Paulo, v. 21, p. 387-407, jul./set. 2003. Disponível em: <https://bit.ly/2OrYmJA>. Acesso em: 21 maio 2018.

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um impeditivo à arbitrabilidade objetiva da matéria tributária, deve-se analisar primeiro o próprio interesse público.

É importante compreender, de início, que o interesse público não se resume a uma única e simples definição, mas trata-se, na verdade, de um instituto que abriga em si duas subdivisões. A distinção entre interes-se público primário e secundário é fundamental para a ideia que aqui se constrói, de que é possível utilizar a arbitragem para solucionar conflitos envolvendo matérias tributárias, pois isso não caracterizaria disposição do interesse público indisponível.

O interesse público primário é aquele que pertence à coletividade, na promoção da sua segurança e bem-estar, não sendo de titularidade da Administração Pública, mas havendo meramente sido deixado aos seus cuidados pelo ordenamento jurídico, para que o proteja e garanta sua re-alização em benefício da coletividade. Nesse sentido defende Celso Antô-nio Bandeira de Melo13:

A indisponibilidade dos interesses públicos significa que, sendo interesses qualificados como da própria coletividade – internos ao setor público –, não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe ape-nas curá-los – o que é também um dever – na estrita conformidade do que predispuser a intentio legis. […]

Relembre-se que a administração não titulariza interesses públicos. O titular deles é o Estado, que, em certa esfera, os protege e exercita através da função administrativa, mediante o conjunto de órfãos

13 Ressalte-se que a opinião do autor é contrária à que se tem neste trabalho, sen-do ele um administrativista de caráter conservador que acredita não poder ser utilizada a arbitragem para solucionar conflitos envolvendo a Administração Pública ou serviços públicos, quiçá matéria tributária. Mas sua opinião atualmente não compõe corrente ma-joritária, especialmente após a reforma da Lei 9.307/1996. Suas opiniões podem ser vistas no livro: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. Ver também: ESCOBAR, Marcelo Ricardo. Arbitragem na Administração Pública como Pressuposto da Arbitrabilidade Tributária. 2016.Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 82-85.

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(chamados administração, em sentido subjetivo ou orgânico), veí-culos da vontade estatal consagrada em lei.14

Compreende-se, assim, que uma vez que o titular do interesse pú-blico primário é a coletividade, resta impossível à Administração Públi-ca – ou a qualquer outro sujeito – dispor dele, pois carece da capacidade necessária para tanto. Desta feita, considera-se que os interesses públi-cos primários são de fato indisponíveis e inarbitráveis, mas, importa ressaltar, o são apenas os direitos em si, pois as eventuais consequências fáticas patrimoniais que deles decorram ainda poderiam ser objeto de discussão em procedimento arbitral15.

O interesse público secundário, por sua vez, diz respeito àquilo que a Administração faz, na concretização do poder de gestão do Estado, com a finalidade de viabilizar a consecução dos interesses públicos primá-rios. A Administração Pública, portanto, não é meramente responsável por protegê-los, mas por executá-los, atuando enquanto pessoa jurídica e, portanto, não se tratando de atos de império do Estado, têm natureza disponível e discutível em arbitragem, como esclarece Moreira Neto:

São disponíveis, nesta linha, todos os interesses e os direitos deles derivados que tenham expressão patrimonial, ou seja, que possam ser quantificados monetariamente, e estejam no comércio, e que

14 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 77.15 Conforme leciona Carlos Alberto Carmona acerca de direitos tidos como indis-poníveis e a arbitrabilidade de seus reflexos patrimoniais: “Estas constatações não são su-ficientes, porém, para excluir de forma absoluta do âmbito da arbitragem toda e qualquer demanda que tanja ao direito de família ou o direito penal, pois as consequências patrimo-niais tanto num caso quanto noutro podem ser objeto de solução extrajudicial. Dizendo de outro modo, se é verdade que uma demanda que verse sobre direito de prestar contas e receber alimentos trata de direito indisponível, não é menos verdadeiro que o quantum da pensão pode ser livremente pactuado pelas partes (e isto torna arbitrável esta questão), da mesma forma, o fato caracterizador de conduta antijurídica típica deve ser apurado exclusivamente pelo Estado, sem prejuízo de as partes levarem à solução arbitral a respon-sabilidade civil decorrente de ato delituoso”. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 38.

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são, por esse motivo e normalmente, objeto de contratação que vise a dotar a Administração ou os seus delegados, dos meios ins-trumentais de modo a que estejam em condições de satisfazer os interesses finalísticos que justificam o próprio Estado.16

Utilizando essa ideia de interesse primário e secundário para ob-servar o objeto de estudo neste trabalho, tem-se que o interesse primário na esfera tributária seria o poder de instituir tributos – sua própria exis-tência –, o poder de cobrá-los, o poder de instituir penalidades para o não pagamento. Enquanto isso, no interesse secundário pode-se incluir a forma e demais elementos fáticos e práticos da cobrança do tributo, o valor efetivamente cobrado, os juros, multas e penalidades pecuniárias aplicadas em caso de descumprimento.

Deve-se, portanto, separar o interesse público do interesse da Ad-ministração ou Fazenda Pública para que se possa avaliar o que realmente deve ser considerado indisponível e o que é disponível, o que pertence a uma coletividade indiscriminada e o que cabe à Fazenda Pública en-quanto ente personalizado. Fazendo uma analogia com a utilização da arbitragem na seara administrativa, pode-se considerar como se o tributo cobrado decorresse de um contrato firmado entre contribuinte e fisco, do qual podem decorrer multas, juros, discordâncias acerca de eventuais des-cumprimentos serem devidos ou não e em que medida, etc.

É nesse sentido, de que apesar de o poder do Estado para instituir e cobrar tributos decorre de ato de império, a cobrança em si e a fiscalização são atos de gestão, configurando matéria passível de discussão em arbitra-gem, assim como todas as suas repercussões patrimoniais.

Ainda, há de se considerar que é do melhor interesse público a ga-rantia de um processo legal com duração razoável e efetiva prestação juris-

16 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Arbitragem nos Contratos Adminis-trativos. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 209, p. 81-90, jul. 1997 apud LEMES, Selma Ferreira. Arbitragem na Concessão de Serviços Públicos- Arbitrabilidade Objetiva. Confidencialidade ou Publicidade Processual? Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e Arbitragem, São Paulo, v. 21, p. 387-407, jul./set. 2003. Disponível em: <https://bit.ly/2OrYmJA>. Acesso em: 21 maio 2018

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dicional, mas isto tem estado longe da realidade dos processos tributários no Brasil, onde um processo inteiro – da fase de conhecimento na seara administrativa à de execução no Judiciário – demora em média 16 anos17.

É nesse sentido, de considerar o método mais benéfico à solução dos conflitos, que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se manifestou em julgado da Primeira Turma sobre arbitragem envolvendo a Administra-ção Pública – o que se aplica também à Fazenda:

Ao optar pela arbitragem, o contratante público não está transi-gindo com o interesse público, nem abrindo mão de instrumentos de defesa de interesses públicos. Está, sim, escolhendo uma forma mais expedita, um meio mais hábil, para defesa do interesse públi-co. Assim como o juiz, no procedimento judicial deve ser impar-cial, também o árbitro deve decidir com imparcialidade. O interes-se púbico não se confunde com o mero interesse da Administração ou da Fazenda Pública; o interesse público está na correta aplicação da lei e se confunde com a realização correta da Justiça”.18

Assim, considerando a jurisprudência do STJ, não se confundindo o interesse público com o interesse da Administração ou Fazenda Públi-ca, as questões evidentemente patrimoniais, das mais diversas naturezas, que correspondem ao interesse público secundário, representam apenas o interesse da própria Administração, não devendo ser taxadas como indis-poníveis, portanto19.

17 SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes; GUIMARÃES, Vasco Branco (Orgs.). Transação e Arbitragem no Âmbito Tributário: homenagem ao jurista Carlos Mário da Silva Velloso. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 476.18 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Mandado de Se-gurança nº 11308-DF (2005/0212763-0), Relator: Ministro Luiz Fux. Data de Julgamento: 28/06/2006. Diário da Justiça, Brasília, DF, 14 ago 2006, p. 251.19 LEMES, Selma Ferreira. Arbitragem na Administração Pública: Fundamentos Jurídicos e Eficiência econômica. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 138-140.

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4.1. A indisponibilidade do crédito tributário

O interesse público nas relações tributárias, segundo Ricardo Lobo Torres, conforme citado por Marcelo Ricardo Escobar:

Só pode ser o interesse de arrecadar o imposto justo, fundado na capacidade contributiva, e que os instrumentos jurídicos mais im-portantes para ‘excepcionar o princípio da indisponibilidade do crédito fiscal são a discricionariedade administrativa, a tipificação administrativa casuística e a quantificação.20

Acerca da indisponibilidade do crédito tributário, considerando o contexto tributário e constitucional brasileiro, juntamente com a conjun-tura de evolução democrática e globalizada do direito, é de grande rele-vância a opinião do ilustre tributarista Heleno Torres sobre a questão:

O que vem a ser precisamente a indisponibilidade do credito tribu-tário? O princípio da indisponibilidade do patrimônio público e, no caso em apreço, do crédito tributário, desde a ocorrência do fato ju-rídico tributário, firmou-se como dogma quase absoluto do direito de estados ocidentais, indiscutível e absoluto na sua formulação, a tal ponto que sequer a própria legalidade, seu fundamento, poderia dispor em contrário. E como o conceito de tributo, até hoje não de-finido satisfatoriamente, acompanha também essa indeterminação conceitual de sua indisponibilidade, avolumam-se as dificuldades para que a doutrina encontre um rumo seguro na discussão do pro-blema. Porquanto “tributo” e “indisponibilidade” não sejam concei-tos lógicos, mas sim conceitos de direito positivo, variáveis segundo a cultura de cada nação, próprios de cada ordenamento. Será o direi-to positivo a dar os contornos do que queira denominar de “direito

20 TORRES, Ricardo Lobo. Transação, conciliação e processo tributário admi-nistrativo equitativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008 apud ESCOBAR, Marcelo Ricardo. Arbitragem na Administração Pública como Pressuposto de Arbitrabilidade Tributária. 2016. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 205-206.

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indisponível”, inclusive suas exceções (direito inalienável inter vivos, direito intransmitível [sic] mortis causa, direito irrenunciável, direi-to não penhorável, etc.). Tome-se como premissa a inexistência, no direito de todos os povos, de um tal princípio universal de “indispo-nibilidade do tributo”. (grifos do autor)21

Exatamente pela inexistência de previsão acerca de eventual indis-ponibilidade do crédito tributário, e em atenção ao princípio da legalida-de22, um dos pilares do direito tributário pátrio, apesar de não se verificar proibição à utilização de arbitragem para solução de conflitos tributários também não se tem, ainda, a necessária autorização.

Ademais, como afirma Priscila Faricelli de Mendonça, ao optarem por submeter a controvérsia tributária ao juízo arbitral, as partes não es-tão dispondo do direito em discussão, mas somente renunciando à so-lução jurisdicional estatal do conflito, não havendo qualquer entrega ou renúncia de direitos23.

Como bem aponta Heleno Torres, no mesmo sentido da ideia que aqui se apresenta, a indisponibilidade não é do crédito tributário, mas do poder de instituir e cobrar o que a Constituição confere específica e dis-criminadamente aos entes federativos, pelo que o crédito tributário pode ser disponível (para fins de arbitrabilidade), nos limites da lei, desde que

21 TORRES, Heleno. Transação, arbitragem e conciliação judicial como medidas alternativas para resolução de conflitos entre a administração e contribuintes – simplifi-cação e eficiência administrativa. Revista Fórum de Direito Tributário, Belo Horizonte, ano 1, n. 2, p. 12-13, mar./abr. 2003.22 Importante ressaltar que o princípio da legalidade não é considerado como um óbice à arbitragem tributária neste trabalho, pois, considerando tanto o art. 5º II da CF/1988 quanto o art. 150 do CTN/1966, tem-se que a exigência expressa do princípio se refere à criação, extinção, modificação de tributos. De qualquer forma, ainda que se considere o mesmo sob o viés de regulamentação geral de qualquer norma ou prática envolvendo matéria tributária, esclarece-se desde já que a ideia aqui apresentada é de que, para efetiva criação de um sistema de arbitragem tributária no Brasil, é necessária a edição de leis específicas que o regulem, o que em si já representa a devida atenção ao princípio da legalidade sob a mais ampla ótica.23 MENDONÇA, Priscila Faricelli de. Arbitragem e Transação Tributárias. Bra-sília, DF: Gazeta Jurídica, 2014, p.84

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respeite os critérios de constituição, modificação e extinção, sendo perfei-tamente possível a resolução alternativa dos conflitos relacionados.24

4.2. O artigo 171 do CTN e a transação do crédito tributário

Apesar de transação e arbitragem não se confundirem em momen-to algum, é relevante, para a discussão de arbitrabilidade objetiva da maté-ria tributária, observar as disposições já existentes na legislação nacional que possibilitam a transação do crédito tributário pelo fisco.

A arbitragem é um método heterocompositivo no qual as partes, de comum acordo, através de uma cláusula ou compromisso arbitral, estabele-cem que um terceiro ou um colegiado terá poderes para solucionar a con-trovérsia, e cuja decisão será final e com a mesma eficácia de uma sentença judicial25. A transação, por sua vez, é um método autocompositivo em que os conflitos se resolvem “em mútuas concessões (CC, art. 1025) e, portanto, participa ao mesmo tempo da natureza da renúncia e da submissão, cada um dos sujeitos acedendo na parcial ‘disposição dos seus direitos’”26 (grifo nosso).

Observe-se, assim, que nos termos do que leciona Cândido Rangel Dinamarco, a transação implica, em disposição de direitos, um instituto originariamente do direito civil –arts. 840 a 850 do Código Civil de 2002 – que foi trazido à seara tributária pelo artigo 171 do Código Tributário Nacional, que dispõe:

24 TORRES, Heleno. Princípios da Segurança Jurídica e transação em matéria tri-butária. Os limites da revisão administrativa dos acordos tributários. In: SARAIVA FI-LHO, Oswaldo Othon de Pontes; GUIMARÃES, Vasco Branco (Orgs.). Transação e Arbi-tragem no Âmbito Tributário: homenagem ao jurista Carlos Mário da Silva Velloso. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p. 300-301.25 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9.307/96. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 31-32.26 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições De Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 120.

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A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário. Parágrafo Único: A lei indicará a autoridade competente para auto-rizar a transação em cada caso.

Evidentemente o CTN estabelece a possibilidade de o crédito tri-butário ser objeto de transação e, consequentemente, reconhece que ele pode ser objeto de disposição em solução de controvérsias. Se o legislador permitiu que a Administração Pública dispusesse extrajudicialmente, em sede de autocomposição, do crédito tributário, tem-se a indicação de suas intenções de retirar o engessamento e formalismo excessivo que original-mente cercava a matéria tributária.

Para este trabalho, a importância do artigo mencionado é a verifica-ção do requisito de disponibilidade do objeto para submissão da matéria tributária à arbitragem, o que permite afastar a ideia de inarbitrabilidade em razão da indisponibilidade, para, junto à evidente patrimonialidade do direito tributário, concluir-se pela possibilidade da arbitragem tribu-tária. Ocorre, porém, que mesmo ultrapassada essa barreira, ainda não se pode simplesmente afirmar que é possível realizar arbitragem tributária no Brasil atualmente.

5. A perspectiva da arbitragem tributária no brasil: elementos essenciais

Como já se viu, apesar de não haver vedação legal à utilização de arbitragem para solução de conflitos envolvendo matéria tributária, não se pode dizer que da forma como as leis do ordenamento brasileiro se en-contram atualmente já seria possível iniciar a prática arbitral. É necessá-rio, portanto, observar alguns elementos do ordenamento jurídico pátrio e outros inerentes à viabilização prática da arbitragem, para estabelecer os passos a serem tomados.

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5.1. Atenção ao princípio da legalidade

O princípio da legalidade, tanto pelo viés constitucional quanto estri-tamente tributário, não se apresenta, aqui, como um empecilho à adoção da arbitragem tributária no Brasil, sendo simplesmente um dos elementos que devem ser observados na inclusão do instituto no ordenamento brasileiro.

Cumpre observar os dispositivos legais que dão base ao princípio, distinguindo-os e pontuando especificamente as características específi-cas a fim de contribuir com a ideia de que é possível, dentro do que per-mitem as leis brasileiras, utilizar arbitragem na seara tributária.

A legalidade que se observa no artigo 5º, II da Constituição Federal é um conceito mais amplo, aplicável não apenas às matérias tributárias, mas a toda e qualquer matéria que enseje imposição de obrigações aos jurisdicionados, prevendo que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Essa previsão é de extrema relevância sob a ótica da autonomia da vontade, uma vez que a arbitragem é um instituto fundado essencialmente no exercício da livre vontade das partes – para submeter seus conflitos não ao Estado, mas a um terceiro imparcial que os julgará com a mesma eficácia –. Respeitar este princípio na criação de um sistema de arbitra-gem tributária no brasil significa dizer que, a despeito de incluir-se na lei a possibilidade de solução de conflitos através de arbitragem, não quer dizer que o contribuinte estará necessária e automaticamente obrigado a utilizar apenas este meio para tanto, pois a lei garante, no art. 5º, XXXV da CF/1988, o direito de acesso ao Judiciário, que não pode ser retirado dos cidadãos por determinação legal.

O princípio da estrita legalidade, por sua vez, previsto no art. 150, I da CF/1988, estabelece uma vedação aos entes federativos de exigir ou au-mentar um tributo sem lei que o estabeleça, ou seja, refere-se apenas à im-possibilidade de criação ou aumento de tributo por qualquer outra forma que não através de lei27. Sendo assim, este dispositivo sequer relaciona-se

27 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 25. ed. São Paulo: Saraiva. 2013. p. 167.

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à utilização de arbitragem para solução de controvérsias tributárias, pois em nada esta significaria criação ou aumento de tributos.

5.2. Necessidade de regulamentação específica

Para que se possa iniciar um regime de arbitragem tributária, é ne-cessário especificar como se darão os detalhes de sua execução, pois, caso contrário, uma simples autorização genérica à arbitrabilidade das ques-tões tributárias não seria suficiente para que esta de fato se desenvolvesse, mas ao contrário, apenas geraria um caos procedimental.

Tratando-se de procedimentos arbitrais, especialmente envolvendo um direito material tão complexo e importante, é necessário que se cuide de sua regulamentação nos mínimos detalhes, começando com uma au-torização legislativa expressa para que a prática tenha credibilidade real.

Apenas assim, com a necessária segurança jurídica, o instituto po-deria tornar-se realmente eficaz – tome-se por exemplo a arbitragem com a Administração Pública, que apesar de muitos afirmarem já ser perfei-tamente possível antes da reforma da Lei de Arbitragem, apenas com a autorização expressa e clara cessaram os questionamentos e preconceitos –, ainda que persistam dúvidas acerca de pontos específicos.

Atualmente, com as tendências de diminuição da intervenção es-tatal em toda e cada área da vida – jurídica ou não – da sociedade, ca-minha-se para um sistema mais aberto, menos judicializado (em que o monopólio da jurisdição não pertença ao Estado). É nessa perspectiva que inovações legislativas têm caminhado para expandir as matérias que podem ser submetidas à arbitragem, o que demonstra a confiança que o instituto vem ganhando em razão dos bons resultados apresentados.

A exemplo do início da abertura do objeto tributário à arbitragem, tem-se a Lei dos Portos de 2013 (Lei nº 12.815, de 5 de junho de 2013), que permite a solução por arbitragem28 de conflitos relativos ao inadim-

28 Art. 62. O inadimplemento, pelas concessionárias, arrendatárias, autorizatárias (sic) e operadoras portuárias no recolhimento de tarifas portuárias e outras obrigações financeiras perante a administração do porto e a Antaq, assim declarado em decisão final, impossibilita a inadimplente de celebrar ou prorrogar contratos de concessão e arrenda-

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plemento das tarifas portuárias e obrigações financeiras com a adminis-tração do Porto e Antaq.

Mais avançada é a proposta do Projeto de Lei Complementar nº 469/2009, de reforma do Código Tributário Nacional, que há muito tra-mita no legislativo e cujo parecer foi, em 2011, por sua aprovação (não na integralidade da proposta original, mas mantidos os dispositivos acerca da inclusão de arbitragem para solução de conflitos, o que efetivamente interessa a este estudo).

A justificativa do projeto na Exposição de Motivos em muito traduz as razões de necessidade e a importância da instituição da arbitragem tri-butária no Brasil, veja-se:

2. As alterações ora propostas são indispensáveis à moderniza-ção da Administração Fiscal de forma a tornar a sua atuação mais transparente, célere e eficiente. Fazem parte de um conjunto mais amplo de modificações consistente na edição de duas leis ordiná-rias: uma referente à transação tributária e a outra, à execução fis-cal administrativa. 3. As medidas sugeridas se inspiraram em importantes reformas ocorridas nas legislações alienígenas, necessárias para se fazer frente às novas formas de fraude e sonegação fiscal típicas de um mundo globalizado, em que vultosos recursos podem, em minu-tos, ser postos fora do alcance do Fisco.29

O PL 469/2009 propõe a alteração específica dos seguintes artigos do Código Tributário Nacional: artigo 156, para incluir a sentença arbitral (equivocadamente chamada de laudo no Projeto) como forma de extinção do crédito tributário; artigo 171, para acrescentar a alínea a, estabelecendo a arbitragem como forma de solução de conflitos tributários cuja sentença

mento, bem como obter novas autorizações. § 1º Para dirimir litígios relativos aos débitos a que se refere o caput, poderá ser utilizada a arbitragem, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996.29 MANTEGA, Guido. EM nº 187/2008. Planalto. 10 nov. 2008. Disponível em: <https://bit.ly/2ykpCQc>. Acesso em: 21 maio 2018.

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é vinculante; artigo 174, para acrescentar o início da arbitragem como forma de interrupção da prescrição do crédito tributário.

A despeito da grande relevância do tema e das frequentes discus-sões acerca da necessidade de reforma do CTN, parece não haver o mesmo interesse político para que se leve a cabo a reforma tributária proposta, a exemplo do referido projeto de lei, proposto há oito anos e inerte há dois.

5.3 Elementos necessários para funcionamento

Além da edição de lei prevendo expressamente a possibilidade de utilização da arbitragem para solução dos conflitos tributários, é necessá-rio observar que se deve criar uma regulamentação para todo o procedi-mento. São alguns dos assuntos que necessariamente devem ser cuidados para que a arbitragem tributária possa se tornar uma realidade o Brasil:

5.3.1 Formas e modalidades de arbitragem

O primeiro item que se deve determinar, após a autorização legal (provavelmente todos os elementos citados neste item deverão constar na lei autorizadora ou no diploma ao qual ela faça referência), é se a arbitra-gem tributária poderá ter forma institucional ou ad hoc, ou se necessaria-mente deve acontecer em uma instituição determinada.

Acreditamos que a arbitragem ad hoc seja inviável para este tipo de aplicação, pois além da incerteza que gera em razão da ausência de um regulamento, todo o procedimento torna-se demasiadamente complicado em razão de as partes terem que organizar tudo, o que não seria interes-sante para a Administração nem para os contribuintes.

A arbitragem institucional, por sua vez, apesar de ser obviamente mais confortável para as partes, considerando a existência de um regula-mento, uma lista de árbitros, toda a estrutura física e o suporte da secreta-ria da câmara, traz também uma questão: como haveria de ser escolhida a câmara responsável por administrar os procedimentos tributários?

A princípio tem-se, desde já, uma boa opção como solução à ques-tão colocada: a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, instituída pelo Decreto nº 7.392/2010. Atualmente a Câmara

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não tem grande atuação e restringe-se a controvérsias de natureza jurídi-ca entre órgãos e entidades da Administração Federal, mas nada impede que sejam realizadas reformas para sua expansão e adaptação necessárias de modo que cuide também dos conflitos tributários, equiparando-se ao CAAD30 português.

Cumpre, de pronto, conceituar e diferenciar os dois tipos de moda-lidades apresentados.

Enquanto na arbitragem de direito os árbitros decidem segundo a lei em sentido estrito, interpretando e aplicando as normas jurídicas, na arbitragem por equidade o árbitro abandona a norma posta e busca for-mular e aplicar uma regra particular e própria para aquele determinado caso, observando a própria consciência, princípios sociais e morais, aten-dendo as razões de conveniência, de oportunidade e de justiça concreta31.

A arbitragem por equidade, porém, não é uma possibilidade quando se trata de arbitragem envolvendo a Administração Pública no Brasil. Tanto por motivos principiológicos, – princípios da legalidade, impessoalidade –, quanto por motivos legais – a Lei de Arbitragem apresenta previsão expres-sa no artigo 2º, §3º – a arbitragem tem que ser necessariamente de direito.

Desta forma, assim como em Portugal é proibida a arbitragem por equidade em matéria tributária, no Brasil também o seria naturalmente, pois já é este o entendimento do legislador.

5.3.2. Detalhes: a escolha dos árbitros

No exemplo português, o legislador tomou bastante cuidado e deu muita atenção à pessoa do árbitro no que concerne às características pes-soais necessárias à atuação em conflitos de natureza tributária, estabele-

30 O CAAD é o Centro de Arbitragem Administrativa de Portugal, responsável por gerir os casos de arbitragem relativos a matérias de direito público. Vide: CAAD. Regula-mento de Arbitragem. Disponível em: <https://bit.ly/2pXth1H> . Acesso em 21 maio 201831 VALENTE, Larissa Peixoto. A aplicabilidade dos meios alternativos de solu-ção de conflitos no Direito Tributário. 228 f. il. 2016. Dissertação (Mestrado) – Facul-dade de Direito, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016. p. 187. Disponível em: <https://bit.ly/2pZs75U>. Acesso em: 21 maio 2018

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cendo requisitos e deveres de forma específica e extensa no Código Deon-tológico e demais diplomas relacionados.

No Brasil, a Lei de Arbitragem, em seu art. 13, impõe apenas dois requisitos para a atuação como árbitro em qualquer conflito, de maneira geral: possuir capacidade civil e ter a confiança das partes, mas por outro lado estabelece diversos deveres inerentes que devem ser respeitados no exercício da atividade.

No tocante aos requisitos para que um indivíduo possa atuar como árbitro, cumpre também observar, para a construção da ideia que aqui se pretende, a previsão legislativa recente encampada no Decreto nº 8.465/2015, que Regulamenta o § 1º do art. 62 da Lei nº 12.815/2013 (Lei dos Portos), para dispor sobre os critérios de arbitragem para dirimir li-tígios no âmbito do setor portuário (no qual, como dito, há previsão para solução arbitral de conflitos envolvendo débitos, tarifas e obrigações fi-nanceiras portuárias), no que toca às características dos árbitros.

Enquanto na Lei 12.815/2013 o legislador determinou que eles de-vem ser escolhidos de comum acordo entre as partes (art. 37 §3º), no De-creto de 2015 acrescentou que “se o árbitro for estrangeiro, deve ter visto que autorize o exercício da atividade no Brasil”.

Acerca destas questões é pertinente a opinião emitida por Carlos Alberto Carmona32 no sentido de que a primeira se trata de uma im-posição estranha que pode representar um empecilho à constituição do tribunal arbitral e consequentemente à solução do conflito, em razão da ausência de consenso das partes sobre a eleição do árbitro. Ainda, pode-se considerar que a imposição fere o princípio da autonomia da vontade, pois lhe coloca a restrição de que só poderá ser exercida se em consonân-cia com a da outra parte.

Considerando o exemplo de Portugal e do CAAD – que parece ter inspirado o decreto na determinação de valores segundo os quais o con-flito deve ter um ou três árbitros –, é importante lembrar que, apesar de lá haver previsão de situação em que obrigatoriamente o árbitro será único,

32 CARMONA, Carlos Alberto. A arbitragem no setor de infraestrutura portuária e as jabuticabas. Migalhas. 11 ago. 2015. Disponível em: <https://bit.ly/2J1kogc>. Acesso em 21 maio 2018

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não se impõe às partes a tarefa de concordar sobre sua eleição, determi-nando – como fazem câmaras privadas – que a própria câmara escolherá, o que pode evitar impasses e conflitos maiores entre as partes.

No tocante à exigência de nacionalidade dos árbitros, pode-se com-preendê-la quando observado que na solução de conflitos que envolvam tributos e obrigações fiscais é interessante, de fato, que o indivíduo a fa-zê-lo seja um cidadão brasileiro, tanto por seu conhecimento do contex-to nacional quanto pelo viés de não se delegar a estrangeiros o poder de decidir sobre questões envolvendo o Estado e suas finanças. Ainda que realmente represente uma reserva de mercado, como afirma Carmona, talvez seja uma reserva natural e compreensível quando se toma como exemplo o setor portuário para pensar o desenvolvimento da arbitragem em matéria tributária.

Assim, apesar de já ser inerente à arbitragem no Brasil a escolha de árbitros especializados na matéria dos conflitos, no caso se implantação de um regime de arbitragem tributária no país, através de edição legislati-va, talvez seja o caso de estabelecer alguns requisitos além da capacidade e confiança previstas na Lei de Arbitragem. Ainda que possa se apresentar como uma medida aparentemente desnecessária sob a ótica de alguns, é importante a clareza quanto aos mínimos requisitos daquilo que seja de máxima importância para o funcionamento da arbitragem tributária, pelo que a exigência de experiência comprovada na área seria, por exemplo, um requisito relevante e pertinente a se estabelecer.

5.4. Cumprimento de sentença e pagamento

Ainda é uma incógnita, nas atuais condições iniciais em que se en-contra a utilização de arbitragem para solução de conflitos envolvendo a Administração Pública, como deve dar-se o pagamento das eventuais condenações contra o poder público. Por não haverem sido finalizados muitos procedimentos com a Administração e não se ter conhecimento de algum caso em que ela tenha sido condenada a pagar à outra parte uma quantia determinada, não se tem dados a respeito, e por isso trata-se, ainda, apenas de uma discussão doutrinária.

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A Constituição Federal prevê, em seu artigo 100, o modo como de-vem ocorrer os pagamentos de débitos judiciais da Fazenda Pública, esta-belecendo as hipóteses de prioridade, prazos em que deve ser efetuado o pagamento, exceções em razão do valor, entre outras coisas. Aqui, impor-ta destacar algumas determinações específicas deste dispositivo legal, para vislumbrar as possibilidades de formas de pagamento dos débitos eventu-almente advindos de sentenças prolatadas em sede de conflitos tributários.

Uma vez que haja uma sentença transitada em julgado, que conce-da ao credor um direito de crédito contra o Estado, considera-se que tem início a fase de cumprimento de sentença33 quando se dará sua execução com consequente satisfação do direito concedido.

Como afirma Cunha,34 acerca das arbitragens envolvendo a Admi-nistração Pública, em geral, conforme o artigo 100 a regra geral de paga-mentos pela Fazenda Pública determina que estes devem acontecer sob for-ma de precatórios, não havendo previsão legal específica de exceção para pagamentos decorrentes de procedimentos arbitrais. Sob esta ótica, de fato, restaria clarividente que as condenações contra o poder público deveriam ser pagas através do sistema de precatórios ou requisição de pequeno valor (RPV), nos casos do §3º do referido dispositivo constitucional.

Ocorre que os precatórios35 têm se mostrado meio absolutamente ineficiente para solver as dívidas contraídas pela Fazenda Pública, repre-

33 Como coloca Humberto Theodoro Júnior, o tribunal arbitral, apesar de ter com-petência para prolatar a sentença, não tem poder de imperium para promover sua exe-cução. Assim, a competência para cumprimento forçado de sentença arbitral é do Poder Judiciário, através do juízo de primeiro grau que teria competência para julgar a causa ori-ginariamente, se não houvesse compromisso arbitral. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil, vol. II. 49. ed. Rio de Janeiro: Forense. 2014.34 CUNHA, Leonardo Carneiro. Opinião 47 – A arbitragem e a administração pú-blica. Leonardo Carneiro da Cunha, 30 out. 2014. Disponível em: <https://bit.ly/2yHK-f8k>. Acesso em: 21 maio 201835 Nas palavras de Manoel da Cunha, precatório é “o requisito ou pedido de pa-gamento ao Presidente do Tribunal respectivo, feito pelo juiz de um processo findo, com sentença de execução transitada em julgado, quando o devedor é a Fazenda Pública, fede-ral, estadual ou municipal, quer seja da administração direta (órgãos integrantes dos três poderes – Executivo, Legislativo, Judiciário), quer seja da administração indireta (autar-quias e fundações públicas). CUNHA, Manoel da. Precatórios: do escândalo nacional ao

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sentando grande ônus aos credores, que não apenas se veem impossibili-tados de receber durante longo tempo, como ainda têm que abrir mão de parte do seu crédito caso queiram adiantar em algum tempo o pagamento.

Neste pensamento é importante observar o que diz o §5º do artigo ora analisado:

§5º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriun-dos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atuali-zados monetariamente.

De acordo com o excerto acima, os pagamentos dos precatórios teoricamente seriam pagos em até um ano e meio após sua inclusão no orçamento da entidade devedora, ocorre, porém, que a realidade é muito diferente do que prevê a lei.

O problema dos precatórios não começou agora e também não será resolvido imediatamente, além de estar além do escopo do presen-te trabalho a discussão acerca das possibilidades de melhoria do sistema de pagamentos adotado pelo Estado. Cumpre observar, no contexto aqui apresentado, porém, a maneira como tem se apresentado o sistema de precatórios na efetivação dos direitos dos credores de receber o que lhes é devido pela Fazenda.

Nesse sentido veja-se o que dizem Meneguin e Bugarin36, crítica que permanece atual:

A mudança no sistema de pagamento de precatórios só terá viabili-dade política se conseguir equilibrar os ganhos e perdas imputados às partes de forma que todos fiquem em situação melhor do que estão agora. A atual sistemática onera o Estado em infinitas disputas judiciais, impõe juros ele-

calote nos credores. São Paulo: LTr, 2000.36 MENEGUIN, Fernando B.; BUGARIN, Maurício S. Uma Análise Econômica Para O Problema Dos Precatórios. Textos Para Discussão, Brasília, DF, v. 46, ago. 2008. Disponível em: <https://bit.ly/2pVy6se>. Acesso em: 21 maio 2018.

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vados sobre a dívida judicial, além de gerar o risco do sequestro de rendas, situação instável não desejada por qualquer administrador público.

Os credores, por sua vez, embora possuam um crédito bem remu-nerado, sofrem com sua baixíssima liquidez. Aqueles que podem esperar pelo pagamento (ainda que parcelado) não estão em situação desconfor-tável; já os que necessitam de recursos a curto prazo ficam em situação mais delicada.

O perdedor inequívoco é a sociedade, que perde com a situação de insegurança jurídica”.

É nesse sentido que, apesar de não se vislumbrar outra forma de pa-gamento das eventuais condenações contra a Fazenda Pública advindas de procedimentos arbitrais, há de se respeitar a previsão legislativa que deter-mina o uso dos precatórios, a fim de não gerar uma posterior injustiça ou ilegalidade, privilegiando os créditos arbitrais em detrimento dos judiciais.

Uma nova solução para o problema dos precatórios – acúmulo sem vazão, demora excessiva, ineficácia de efetivar o direito do credor – de fato é necessária, mas esta deve ser fruto de uma reforma ampla, que não dirá respeito apenas às questões arbitrais ou tributárias, mas atingindo todos os conflitos que criem para o Estado obrigação de pagar.

5.5. Recursos contra a sentença arbitral

Uma das questões naturais que também surgem quando da avaliação da aplicabilidade do regime de arbitragem tributária no Brasil é a irrecorri-bilidade natural das sentenças arbitrais, à parte das exceções de correção do artigo 30 e as de anulação previstas no artigo 32 da Lei 9.307/1996.

O fato de a arbitragem tributária ter a Fazenda Pública como par-te no processo não demanda, por si só, que se estabeleça um sistema de recursos. A recorribilidade, porém, apesar de saber-se que pode vir a re-presentar um elemento que imprimiria morosidade ao procedimento, não é uma ideia a ser prontamente descartada, exatamente pela natureza da matéria tributária em discussão.

Considerando a hipótese de que podem surgir incompatibilidades constitucionais nas sentenças relacionadas a procedimentos arbitrais tri-butários, e observando o modelo que vigora em Portugal, seria prudente

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considerar a possibilidade de recurso ao Supremo Tribunal Federal em caso de conflito constitucional ou afronta à constituição.

Uma vez que o tribunal arbitral carece do poder de império necessário à execução das sentenças por ele prolatadas, da mesma forma extingue-se sua competência em tal momento – a não ser nos casos previstos no art. 30 da Lei 9.307/1996–, retornando ao Poder Judiciário a responsabilidade por aplicar as determinações contidas na sentença arbitral, ou, se for o caso, anulá-la.

No referido artigo 30, já se verifica que as partes não ficam desassis-tidas no que concerne à possibilidade de reclamar a correção de eventu-ais erros materiais na sentença arbitral, funcionando o mecanismo como equivalente aos Embargos de Declaração37, sendo dirigidos ao próprio Tribunal Arbitral que prolatou a sentença.

O procedimento de recurso ao Judiciário para anulação de sentença arbitral – cujas hipóteses taxativas se encontram discriminadas no artigo 32 da Lei de Arbitragem –, encontra-se na própria Lei 9.307/1996, no arti-go 33. Observe-se, porém, que no caso de implantação do instituto da ar-bitragem tributária no Brasil, assim como foi feito em Portugal, a Lei que o crie e regule deve prever tudo quanto necessário à sua boa utilização, e é importante que o legislador, desde o início, já anteveja os problemas que podem advir após a prolação das sentenças em matéria tributária.

É certo, porém, que o sistema que hoje se tem, com um extenso número de recursos que levam os processos tributários a se arrastarem por muitos anos, não tem apresentado a devida eficácia necessária à con-cretização de direitos dentro de uma duração razoável.

Nesse ínterim, importa observar com atenção o que a lei de arbitra-gem já dispõe no que concerne às causas de nulidade de sentenças, consi-derando que, no caso de criação de uma lei regulamentando a arbitragem tributária, apenas se acrescentassem ao artigo 33 as eventuais hipóteses es-pecíficas que se fizessem necessárias em decorrência da natureza da matéria.

Imprescindível não esquecer, porém, que não se deve minar as características principais e mais atrativas da arbitragem com um amplo,

37 VITAGLIANO, José Arnaldo. Limites da Coisa Julgada e Recursos na Arbitra-gem. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 51, p. 9, out. 2001. Disponível em: <https://bit.ly/2yiPMCX>. Acesso em 21 maio 2018.

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complexo e invasivo sistema de recursos, pois de nada adiantaria adotar um processo mais célere e especializado se no final fossem impostas ex-cessivas dificuldades à execução das determinações dele advindas.

conclusão

A aversão à implantação da arbitragem em matéria tributária no Brasil é algo essencialmente cultural, decorrente de um posicionamento conservador e protecionista do monopólio jurisdicional do estado ain-da difundido por muitos doutrinadores e acolhido por muitos tribunais. É necessária, portanto, uma mudança na mentalidade com a qual se vê o direito tributário, dando atenção ao contexto de desjudicialização que se difunde no país, nas características de menor estatização da sociedade atual, na qual a credibilidade da atuação privada na solução de conflitos é cada vez maior, e com toda razão, dados os resultados observados.

É preciso deixar de lado a cultura de concentração do poder juris-dicional nas mãos do estado para dar azo à implantação de sistemas que podem se mostrar plenamente aptos a auxiliar o Judiciário no cumpri-mento dos princípios de duração razoável do processo, promovendo o acesso à Justiça com qualidade e eficiência.

Para tanto, na seara tributária, faz-se necessário observar com aten-ção a distinção entre o interesse público primário, atinente ao bem-estar geral, e o secundário, referente à Administração Pública enquanto pessoa jurídica detentora de direitos e deveres. A partir daí, tem-se que a utiliza-ção da arbitragem para solucionar conflitos de conteúdo tributário seria perfeitamente possível, posto que presentes os requisitos necessários de arbitrabilidade.

Ademais, não seria qualquer desrespeito aos princípios tributários ou constitucionais a submissão dos conflitos tributários à solução por ar-bitragem, visto que se trata apenas de uma opção a ser realizada pelo legis-lador e pelo contribuinte de adotar um meio diferente do judiciário, mas absolutamente legítimo.

Tendo em consideração as mudanças realizadas em Portugal, a evo-lução do seu sistema de solução de conflitos tributários – sempre consi-derando as especificidades de cada ordenamento e guardadas as devidas

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proporções e diferenças –, assim como a iniciativa tímida, mas existente de reforma legislativa no Brasil, observa-se que é possível aprimorar o sistema brasileiro, respeitando os princípios da legalidade, publicidade, e todos os outros relativos à discussão da matéria.

Com a tomada das medidas legislativas e práticas necessárias para viabilizar a implantação do instituto da arbitragem tributária no Brasil, não há por que não ser uma boa solução à morosidade e ineficiência do sistema processual tributário que hoje se verifica no Judiciário.

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Considerações Sobre a Destinação do IR Retido na Fonte pelos Estados, Distrito Federal e Municípios

Considerations On The Allocation Of The Withholding Of Income Tax By Member States, Federal District And

Municipalities

Carlos Renato Cunha1

Valterlei A. da Costa2

Maurício Dalri Timm do Valle3

1 Doutorando e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Pa-raná – UFPR. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Procurador do Município de Londrina - PR. Professor da pós-graduação lato sensu em Direito. Membro do Instituto de Direito Tributário de Londrina – IDTL. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5587-2004 Endereço: Rua Quintino Bocaiúva, 180, sala 102, Centro, Londrina/PR, CEP 86020-919. Telefone: (43) 99912-7027. E-mail: [email protected] Mestrando em Direito do Estado e Bacharel em Direito pela UFPR. Ex-Técnico de Finanças e Controle da Procuradoria da Fazenda Nacional. Advogado em Curitiba/PR. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3426-5878 Endereço: Rua Mateus Leme, 980, apart. 22 – Centro Cívi-co - Curitiba/PR – CEP 80530-010. Telefone (41) 3206-2563. E-mail: [email protected] Bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela UFPR. Professor do Progra-ma de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília – UCB – e de Direito Tributário da Graduação em Direito do Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba. Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7361-595X. Endereço: Condomínio Brisas do Lago - Apto. D024T, SCES, Trecho 4, Lote 5, CEP 70.200-004, Brasília – DF. Telefone: (41) 99213-0025. E-mail: [email protected].

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Resumo: O princípio federativo apresenta como consequência a necessidade de autonomia financeira dos entes-membros da federação. Essa autonomia se manifesta com a possibilidade de instituir tributos pró-prios, mas também no direito a receber o repasse de valores arrecadados por outros entes, e, em caso específico, o direito dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios de não repassarem à União, incorporando como receitas próprias, os valores retidos na fonte a título de imposto sobre a renda. Isso qualquer que seja o título da retenção, não apenas nos casos de que esses valores decorram do pagamento a seus servidores ou empre-gados. Disposição que estabeleça, em contrário, obrigação de repasse dos valores retidos, estará eivada de inconstitucionalidade, especialmente por ir de encontro à Federação.

Abstract: The federal principle has as consequence the need of finan-cial autonomy of members of the federation. This autonomy manifests itself through the possibility of instituting own taxes, but also in the right to receive the transfer of funds from other entities. Specifically, the right of the member States, Federal District and Municipalities not to pass to the Union, incorpo-rating as its own revenues, the amounts withheld as income tax. Whatever which is the denomination of the withholding, not only in cases where these amounts result from payment to your servants or employees. Provision that establishes otherwise, obligation to pass on amounts withheld, will be un-constitutional, especially by going against the Federation.

Palavras-chaves: Federação – Autonomia Financeira – Transferên-cia de Recursos – IR Retido na Fonte.

Keywords: Federation – Financial Autonomy – Transfer of Funds – Withholding of Income Tax.

Sumário: 1. Introdução; 2. O Princípio Federativo em matéria tri-butária; 3. Do imposto sobre a renda e a obrigatoriedade de retenção na fonte; 4. Da repartição das receitas entre os entes federativos; 5. Dever de retenção do IR: desnecessidade de transferência à União; 6. Conclusão; Referências.

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1. Introdução

A Secretaria da Receita Federal do Brasil expediu novas orientações no tocante à retenção do Imposto sobre a Renda e o seu recolhimento em relação aos pagamentos efetuados por entes públicos, decorrentes de contratos de fornecimento de bens e/ou serviços. Com efeito, em face da redação do § 7º do artigo 6º da Instrução Normativa RFB nº 1599, de 11 de dezembro de 2015, e da Solução de Consulta nº 166-COSIT, de 22 de junho de 2015, passou o órgão fazendário federal a prescrever aos demais entes federativos a obrigação de recolhimento à União dos valores reti-dos na fonte a título de Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) quando incidente sobre quaisquer outros fatos que não os atinentes ao pagamento de valores a seus servidores/empregados públicos.

Convém analisar o tema, sob o enfoque constitucional, mormente em face de seus claros reflexos na autonomia financeira das pessoas políti-cas constitucionais, dimensão essencial do Princípio Federativo.

2. O Princípio Federativo em matéria tributária

Não há dúvida de que a forma de descentralização adotada pelo texto constitucional tem fortes implicações no campo tributário. O aspecto tribu-tário primordial da Federação dá-se na necessária garantia de autonomia fi-nanceira. Tal autonomia implica a existência de fontes de receitas próprias, à parte de eventuais receitas fruto de repasse entre os entes federativos. E com isso concorda Carrazza quando afirma: “Parece certo que, sendo autônomo, cada Estado deve, sem interferências federais ou estaduais, prover as ne-cessidades de seu governo e administração. Para isto, a Lei Maior conferiu a todos o direito de regular suas despesas e, conseguintemente, de instituir e arrecadar, em caráter privativo e exclusivo, os tributos que as atenderão”.4

Assim sendo, “por exigência do princípio federativo [...] nem a União pode invadir a competência tributária dos Estados, nem estes a da União”.5

4 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 130.5 CARRAZZA, op. cit., p. 140.

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Borges também ensina: “O princípio básico que preside à estruturação do Estado federal é a repartição de competências (Kompetenzverteilung), em particular a repartição de competências tributárias (Steuerkonpetenzen)”.6 Na mesma linha, expõe Torres: “O sistema tributário federado tem entre as suas principais qualidades: a) a equidade entre os entes públicos, com a distribuição equilibrada de recursos financeiros, em consonância com os serviços e gastos que também lhes sejam reservados; b) a autonomia dos entes públicos menores para legislar e arrecadar os seus tributos”.7

Não por outro motivo, não mais subsiste a possibilidade, em nosso ordenamento, da isenção heterônoma, isto é, a União conceder isenção de tributos dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios. A Constituição anterior, em seu artigo 19, § 2º8, previa expressamente essa possibilidade, agora negada pelo artigo 151, III, da CF/889. E a vedação de emenda à Constituição sobre o tema é rigorosa: impede modificação que tenda à abolição da estrutura federativa.10 É em tal contexto que se insere o tema sob análise, atinente à repartição de receitas tributárias.

3. Do Imposto sobre a Renda e a obrigatoriedade de retenção na fonte

Entre os artigos 153 a 156 da Carta Magna encontra-se regulada a competência tributária da União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, no que se refere à espécie tributária “imposto”. O legislador constitucional outorgou competência para os entes federativos instituírem e regularem a arrecadação de impostos elegendo determinados signos de

6 BORGES, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. São Paulo: Ma-lheiros, 2007, p. 29.7 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 363.8 CF/67, com redação dada pela EC 1/69: “Art. 19. Omissis. [...]. § 2º A União, me-diante lei complementar e atendendo a relevante interesse social ou econômico nacional, poderá conceder isenções de impostos estaduais e municipais”.9 CF/88: “Art. 151. É vedado à União: [...] III - instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios”.10 CF/88: “Art. 60. Omissis. [...]. § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado”.

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riqueza, que se constituem nas hipóteses de incidência possíveis. No arti-go 153, encontra-se estatuído o seguinte: “Art. 153. Compete à União ins-tituir impostos sobre: [...] III – renda e proventos de qualquer natureza”.

E, com fulcro nessa norma de competência, a União instituiu o Im-posto sobre a Renda, regulado por diversas leis federais. Em alguns casos, a legislação federal prevê a obrigação de a fonte pagadora realizar a reten-ção do IR, realizando o recolhimento à Receita Federal do Brasil – RFB (como, no IRPF, a Lei Federal n. 7.713/88; no caso do IRPJ, o Decreto-Lei n. 2030/83 etc.).

Não há dúvida, quer-nos parecer, de que referida obrigação se es-tende também às pessoas jurídicas de direito público. Com isso, os esta-dos-membros, o Distrito Federal e os municípios, como fontes pagadoras de rendimentos a pessoas físicas e jurídicas, estão obrigados a reter o valor devido a título de Imposto sobre a Renda nos termos da legislação, sob pena das sanções previstas no Decreto-Lei nº 5.844/43 e na Lei nº 9.430/96:

Decreto-Lei 5.844/43 - Art. 103. Se a fonte ou o procurador não ti-ver efetuado a retenção do imposto, responderá pelo recolhimento deste, como se o houvesse retido. Lei 9.430/96 - Art. 44. Nos casos de lançamento de ofício, serão aplicadas as seguintes multas, calculadas sobre a totalidade ou di-ferença de tributo ou contribuição:I - de setenta e cinco por cento, nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, pagamento ou recolhimento após o vencimento do prazo, sem o acréscimo de multa moratória, de falta de decla-ração e nos de declaração inexata, excetuada a hipótese do inciso seguinte; II - cento e cinquenta por cento, nos casos de evidente intuito de fraude, definido nos arts. 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502, de 30 de no-vembro de 1964, independentemente de outras penalidades admi-nistrativas ou criminais cabíveis.

Convém explicitar melhor a chamada retenção na fonte do IR. Sua natureza e suas consequências podem variar entre uma obrigação tributá-ria acessória – ou dever instrumental, segundo parcela da doutrina – aco-

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metida a quem, de qualquer forma, pague a outrem valores considerados como renda pelo legislador federal, ou, ainda, um típico caso de subs-tituição tributária.11 O responsável pela retenção deve fazê-la sob pena de incidir em multa por descumprimento de obrigação acessória e, em alguns casos, na obrigação de realizar o pagamento do tributo. Verifica-se, portanto, que a União, utilizando de sua competência tributária para ins-tituição e arrecadação do Imposto sobre a Renda e proventos de qualquer natureza, legislou e regulamentou tal questão tributária, obrigando, tam-bém, os demais entes federativos a realizar a retenção de IR em algumas hipóteses legais.

4. Da repartição das receitas entre os entes federativos

Ao lado disso, a Constituição de 1988 também previu, como sobre-norma de Direito Financeiro, a participação de Estados-membros, Distrito Federal e Municípios em parcela da arrecadação federal, e dos Municípios na arrecadação estadual. Em relação ao IR, preveem os seus artigos 157 e 158:

Art. 157. Pertencem aos Estados e ao Distrito Federal:I - o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendi-mentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem; [...]Art. 158. Pertencem aos Municípios:I - o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendi-mentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem.

11 “A obrigação de reter não caracteriza o instituto da sujeição passiva. Tampou-co diz respeito àquele dever a eventual derivação obrigacional, para alguns denominada ‘indireta’, ou, mais especificamente, substituição tributário. A nosso ver, a obrigação de recolher, ainda que tenha aquela natureza (de dever), constitui-se num ato de colaboração e não de sujeição tributária. O dever, em verdade, tem cunho administrativo”. (CASTRO, Alexandre Barros. Sujeição passiva no imposto de renda. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 370).

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Trata-se de questão afeta ao direito financeiro, mormente no desti-no que se dará ao produto da arrecadação tributária, feita nos termos da legislação expedida com espeque na competência constitucional aponta-da. A própria Constituição da República determina que haverá a divisão do produto da arrecadação dos tributos entre as entidades federativas. São os chamados “repasses”, cuja regulação se encontra no próprio Có-digo Tributário Nacional (apesar de sua natureza de direito financeiro), assim como em outras leis complementares, como a LC nº 62/89 e a LC nº 143/2013, e cujos valores, em alguns tipos de partilha, constituem os chamados “Fundo de Participação dos Estados – FPE” e “Fundo de Par-ticipação dos Municípios – FPM”. Tratam-se de típicas receitas transferi-das “porque, embora provindas do patrimônio do particular (a título de tributo), não são arrecadadas pela entidade política que vai utilizá-las”.12 Mais que isso, tratam-se de receitas transferidas obrigatoriamente, tudo de acordo com a partilha feita pela Constituição.

Dito isso, deve-se ter em conta que qualquer restrição à transferên-cia é expressamente vedada pelo Texto Constitucional, com as exceções previstas no Parágrafo Único, de seu art. 160:

Art. 160. É vedada a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos, nesta seção, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, neles compreendidos adicionais e acréscimos relativos a impostos.Parágrafo único. A vedação prevista neste artigo não impede a União e os Estados de condicionarem a entrega de recursos: I - ao pagamento de seus créditos, inclusive de suas autarquias;II - ao cumprimento do disposto no art. 198, § 2º, incisos II e III.

Não resta dúvida de que os valores da partilha financeira previs-ta na Constituição Federal constituem, em conjunto com a competência tributária própria outorgada aos entes federativos, a materialização da au-

12 OLIVEIRA, Regis Fernandes de; HORVATH, Estevão. Manual de direito finan-ceiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 34.

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tonomia financeira, condição necessária para a existência de efetiva auto-nomia federativa. Como afirma Ramos Filho:

Pela repartição de receitas o que se divide entre as entidades fe-deradas não é o poder de instituir e cobrar tributos, mas o produ-to da arrecadação do tributo por uma delas instituído e cobrado. [...]. Nesse caso, a autonomia financeira da entidade da Federação é assegurada não pela atribuição de fontes próprias de arrecada-ção, como no sistema de atribuição de competências, mas sim pela garantia da distribuição de parte do produto arrecadado por deter-minada unidade para outra unidade.13

Trata-se de técnica de repartição de receita tributária pela discri-minação das rendas pelo produto. Como afirma Silva, “Essa cooperação financeira entre as entidades autônomas da Federação, chamada federa-lismo cooperativo, integra a fisionomia do federalismo contemporâneo”.14 A transferência de receitas pode ser realizada de dois modos: pela partilha direta, que é feita “sem intermediação, ou seja, o ente político beneficiado, como agente arrecadador, apropria-se, total ou parcialmente, da receita tributária mediante transferência orçamentária, ou recebe diretamente do ente dotado de competência tributária parte do produto da arrecadação por ele feita”; e pela partilha indireta, mais complexa, através da criação de fundos e partilha segundo critérios de proporcionalidade previstos na legislação complementar. A previsão do artigo 158 da CF/88 é exemplo típico de partilha direta e, em tal hipótese, nas palavras de Silva, “o poder tributante cabe à União, mas o produto da arrecadação percebido pelas outras entidades a elas pertence”.15

13 RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes. Curso de direito financeiro. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 214.14 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Ma-lheiros, 2010, p. 730.15 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Ma-lheiros, 2010, p. 730.

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5. Dever de retenção do IR: desnecessidade de transferência à União

Pois bem. A questão colocada em análise diz respeito à amplitude da previsão do artigo 158, I, da CF/88, e se ela abrange, ou não, todas as retenções de Imposto sobre a Renda realizadas pelas demais pessoas políticas constitucionais, ou apenas a parcela das retenções atinentes a pa-gamentos de seus servidores e empregados. Isso porque a Instrução Nor-mativa da Receita Federal do Brasil, a IN RFB nº 1599, de 11 de dezembro de 2015, explicitou um novo entendimento da Fazenda Nacional sobre a matéria. Com efeito, prevê o § 7º do art. 6º da IN RFB nº 1599/2015:

Art. 6º A DCTF conterá informações relativas aos seguintes im-postos e contribuições administrados pela RFB:[...]§ 7º Os valores relativos ao IRRF incidentes sobre rendimentos pa-gos a qualquer título a servidores e empregados dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como de suas autarquias e fundações, recolhidos pelos referidos entes e entidades, no código de receita 0561, não devem ser informados na DCTF.

Vê-se, às claras, que a autoridade fazendária federal somente ex-cluiu do dever de prestar informações na Declaração de Débitos e Cré-ditos Tributários Federais (DCTF) os valores de Imposto sobre a Renda retidos na fonte pelas pessoas jurídicas de direito público, referentes a rendimentos pagos, a qualquer título, a seus “servidores e empregados”. Todo o restante das retenções realizadas deverá ser incluído em DCTF e, consequentemente, recolhidos aos cofres federais.

Trata-se de mudança significativa em relação ao regramento ante-rior, constante da revogada IN RFB nº 1110/2010, que fazia alusão à dis-pensa de inclusão em DCTF dos valores retidos a título de Imposto sobre a Renda Retiro na Fonte (IRRF), incidente “sobre rendimentos pagos a qualquer título” sem a limitação agora existente em sua extensão. Esse novel entendimento decorre da interpretação exarada na Solução de Con-

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sulta-COSIT nº 166, de 22 de junho de 2015,16 Nota Técnica COSIT nº 36, de 6 de dezembro de 2013, e nos Pareceres PGFN/CAT nº 658/201217 e PGFN/CAT nº 276/2014.

Com efeito, o problema que se impõe é sobre a amplitude da ex-pressão constitucional “rendimentos pagos a qualquer título”, inserta no inciso I do artigo 158 da CF/88. Há, realmente, uma vaguidade semântica que convém ser analisada com cuidado. Assim, iniciamos por um esforço de compreender a exegese adotada pela União, nos pareceres jurídicos acima mencionados. A dúvida em questão foi bem levantada pela Nota Técnica COSIT nº 36, de 6 de dezembro de 2013:

4. Disso, surge a seguinte questão: o inciso I do art. 158 da CF, que dispõe caber aos municípios o produto da arrecadação de Imposto de Renda sobre os rendimentos pagos, permite dizer que eles po-dem reter para si, com base no art. 647 do RIR/99, as importâncias pagas a pessoas jurídicas? Ou é somente para os valores pagos a

16 “ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA RETIDO NA FONTE - IRRF Reten-ção do Imposto de Renda incidente na fonte e direito à apropriação do mesmo, na espécie, pelos Municípios e suas autarquias e fundações que instituírem e mantiverem, para fins de incorporação definitiva ao seu patrimônio, por ocasião dos pagamentos que estes efetua-rem a pessoas jurídicas, decorrentes de contratos de fornecimento de bens e/ou serviços. Inteligência da expressão “rendimentos” constante no inciso I do art. 158 da Constituição. O art. 158, inciso I, da Constituição Federal permite que os Municípios possam incorpo-rar diretamente ao seu patrimônio o produto da retenção na fonte do Imposto de Renda incidente sobre rendimentos do trabalho que pagarem a seus servidores e empregados. Por outro lado, deve ser recolhido à Secretaria da Receita Federal do Brasil o Imposto de Renda Retido na Fonte pelas Municipalidades, incidente sobre rendimentos pagos por estas a pessoas jurídicas, decorrentes de contratos de fornecimento de bens e/ou serviços. Dispositivos Legais: Constituição Federal de 1988, art. 158, I; Lei nº 5.172, de 1966 (Có-digo Tributário Nacional), art. 86, inciso II, §§ 1º e 2º; Decreto-Lei nº 62, de 1966, art. 21; Decreto nº 3.000, de 1999 (Regulamento do Imposto de Renda), arts. 682, I, e 685, II, “a”; Instrução Normativa RFB nº 1.455, de 2014, arts. 16 e 17; Parecer Normativo RFB nº 2, de 2012; Parecer PGFN/CAT nº 276, de 2014”.17 “Ementa: Retenção do Imposto de Renda na Fonte por Estados, Distrito Federal e Municípios, na forma dos artigos 157, e 158, I, da Constituição. Incidência exclusiva so-bre rendimentos pagos a servidores e empregados. Inconstitucionalidade do alargamento da hipótese constitucional para promover retenções sobre pagamentos feitos a pessoas jurídicas por prestação de serviço ou venda de mercadorias”.

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pessoas físicas? Para tanto, qual é o conceito de rendimentos de que trata o inciso I do art. 158 da Constituição?

Percebe-se que o esforço hermenêutico da área de consultoria da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional foi no sentido de dar à expres-são “rendimentos pagos a qualquer título” o sentido restrito ligado ao pa-gamento de servidores, com base numa interpretação histórica que teria levado à inclusão da previsão do inciso I do artigo 158 na Constituição de 1988. Aproveitemos o relato histórico contido na mesma Nota Técnica:

5. Primeiro, apresenta-se um breve histórico do instituto jurídico que permite que as fazendas públicas dos demais entes federados se apropriem do IRRF.5.1. A sua raiz histórica está no conflito federativo resultante da imposição de IR sobre vencimentos de funcionários públicos es-taduais e municipais. O ingresso no ordenamento jurídico deu-se por meio do inciso II, combinado com o §1º, do art. 85 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, Código Tributário Nacional (CTN), que determinaram a distribuição, aos demais entes fede-rados do produto da arrecadação do IRRF incidente sobre a renda das obrigações de sua dívida pública e sobre os proventos dos seus servidores e dos de suas autarquias. A lei poderia determinar a in-corporação total desses recursos pelos demais entes. Note-se que a norma restou bastante delimitada: obrigações de dívida e proven-tos de servidores.[...]5.2. A lei prevista no referido § 2º, por sua vez, foi incorporada ao ordenamento jurídico por meio do art. 21 do Decreto-Lei nº 62, de 21 de novembro de 1966, abaixo transcrito: Art 21. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão incorporar diretamente à sua receita o produto de retenção na fonte do imposto de renda incidente sobre os proventos de seus servidores, ou sobre as obri-gações de sua dívida pública, desde que se comprometam a comu-nicar, até 28 de fevereiro de cada ano, à repartição competente do Ministério da Fazenda, em relação nominal, os rendimentos pagos

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no ano anterior e o montante do imposto retido de cada beneficiá-rio, na forma estabelecida no Regulamento. 5.3. A questão ganhou caráter constitucional com a Constituição Federal 1967. O § 1º do art. 24 e alínea “b” do § 1º do art. 25 con-cediam aos demais entes federados “o produto da arrecadação do imposto de renda e proventos de qualquer natureza que, de acordo com a lei federal, são obrigados a reter como fontes pagadoras de rendimentos do trabalho e dos títulos da sua dívida pública”. Apa-rentemente houve um alargamento em relação ao CTN, passando a ser qualquer rendimento de trabalho, e não apenas os proventos dos servidores. [...]5.4. Após a Emenda Constitucional (EC) nº 1, de 17 de outubro de 1969, o dispositivo teve a redação alterada, mas sem reflexos relevantes. [...]5.5. A EC nº 17, de 02 de dezembro de 1980, deu nova redação ao § 1º do art. 23 e ao § 2º do art. 24, mas também mantendo o mesmo sentido: [...]5.6. A CF de 1988, como já visto, utilizou o termo “rendimentos”, sem dizer se seriam apenas aqueles do trabalho ou se englobariam outras importâncias pagas.

E foi esse pressuposto histórico que levou ao entendimento cons-tante no PGFN/CAT nº 658/2012, no qual a consultoria tributária federal assim se manifestou:

9. Não é de hoje que a matéria é discutida no âmbito da Procurado-ria-Geral da Fazenda Nacional. A devida aplicação dos artigos 157, I e 158, I da Constituição Federal, já foi objeto de pareceres sob diversos prismas (processual, tributário e financeiro), são exem-plos os Pareceres PGFN/CRJ 168/2005, 1536/2007, 321/2008 e 324/2009, PGFN/CAT 1647/2004, 271/2007, 2283/2007, 1925/2008 e 381/2009, PGFN/CAF 1649/2008 964/2009, 2802/2009 e 667/2010.[...]

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17. De observar que no seu nascedouro o produto da arrecadação era entregue à União e ela possuía prazo para remeter os valores aos seus destinatários. No entanto, o § 2° do artigo 85 acima repe-tido, já fazia previsão de lei que autorizasse a incorporação defini-tiva, por parte dos destinatários dos valores decorrentes dos paga-mentos feitos aos seus servidores. O procedimento que eliminava o desnecessário repasse à União para posterior devolução aos Esta-dos, Distrito Federal e Municípios, veio com o artigo 21 do Decreto Lei n° 62, de 21 de novembro de 1966: [...]21. O esboço histórico do repasse do produto da arrecadação do imposto de renda retido na fonte sobre os pagamentos feitos aos empregados e servidores públicos (folha), aos Estados, Distrito Fe-deral e Municípios, deixa claro que a regra sempre incidiu em rela-ção aos estipêndios desembolsados pelos entes políticos enquanto empregadores. 22. Assim, afasta-se interpretação ampliativa que tem por objetivo avançar sobre outras retenções de imposto de renda na fonte, à exemplo da prevista no artigo 64 da Lei 9.430, de 1996 e da Instrução Normativa SRF (Secretaria da Receita Federal) n° 480, de 15 de dezembro de 2004, em benefício dos demais entes políticos, sob leitura constitucional indevida. O texto atual apenas dá a devida conotação ao instituto, mantendo a orientação nascida com a redação do § 2° do artigo 85, do Código Tributário Nacional. Se valendo do termo “rendimentos pagos, a qualquer título”, para que sejam incluídos pagamentos feitos a título de salários, proven-tos, pensões, soldos, subsídios, ou qualquer outra nomenclatura existente para designar pagamentos feitos pelas pessoas jurídicas de direito público da administração direta, autarquias e fundações, aos seus servidores ou empregados. [...]25. Destarte, partindo da premissa segundo a qual o texto, “sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem”, constante dos ar-tigos 157, I, e 158, I, da Constituição, se restringe aos pagamentos de servidores e empregados dos Estados, Distrito Federal e Muni-cípios, e respectivas autarquias e fundações, resta demonstrada a inconstitucionalidade de ato dos demais entes políticos tendente

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a ampliar as hipóteses constitucionais de retenção na fonte do im-posto de renda, seguida de apropriação dos valores arrecadados, especificamente no caso sob análise, para a previsão do artigo 64, da Lei 9.430, de 1996.

Esse entendimento foi corroborado pelo PGFN/CAT nº 276/2014:

11. Assim, a posição desta Procuradoria está consolidada no sentido de que os “rendimentos” a que se referem os arts. 157, I e 158, I, da CF, sobre os quais incide o IRRF, cujo produto da arrecadação per-tence aos Estados, Distrito Federal e Municípios são aqueles circuns-critos aos pagamentos de servidores e empregados destes entes e de suas autarquias e fundações. 12. Muito embora o TCU tenha seguido outra linha interpretativa, sendo afirmado na Decisão nº 125/2002 – Plenário, que sempre que houver retenção na fonte, inclusive relativo aos pagamentos efetuados à pessoa jurídica, o produto dessa arreca-dação pertence ao Estado, Distrito Federal ou Município do qual se originou o pagamento, não se pode perder de vista que a interpreta-ção da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos no âmbito do Ministério da Fazenda compete a esta PGFN.[...]14. Como já demonstrado tanto no Parecer PGFN/CAT/Nº 658/2012 quanto na Nota Técnica da Cosit nº 36, de 2013, a legislação que fa-zia referência à retenção do imposto sobre a renda pelos entes da fe-deração, antes do advento da CF/1988, sempre deixou patente que os rendimentos ali mencionados eram aqueles decorrentes do trabalho e da dívida pública pagos pelos Estados, DF e Municípios. Com o ad-vento da Carta de 1988, os arts. 157, I e 158, I não mais fizeram refe-rência a qualquer classificação, mas permaneceram com a expressão “rendimentos pagos”, expressão esta que na dicção da alínea “a” do inciso I do art. 195, ao dar fundamento à instituição de contribuições sociais, é aludida a “rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física...”. 15. Dessa forma, uma interpretação sistemática da Constituição nos leva ao entendimento que os rendi-mentos referidos nos artigos em comento são aqueles decorrentes

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do trabalho. A legislação do imposto sobre a renda acima transcrita também nos direciona nesse sentido. Veja-se que o art. 7º da Lei nº 7.713, de 1988, é o que prevê a incidência do IRRF relativamente aos rendimentos do trabalho assalariado, quer sejam pagos por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas. 16. O art. 647 do RIR cuida de outra situação, eis que sujeita à incidência na fonte todas as importâncias pagas ou creditadas por pessoas jurídicas a outras pessoas jurídicas pela prestação de serviços caracterizadamente de natureza profis-sional, exemplificando pagamentos que se enquadram na hipótese. Inclusive, em uma das normas legais4 que dá supedâneo ao referi-do artigo, há referência ao termo aqui debatido “rendimentos”, mas apenas quando cuida do caso da sociedade civil controlada direta ou indiretamente por pessoas físicas. 17. Assim, qualquer pessoa jurí-dica, seja ela de direito público ou não, deve efetuar o recolhimen-to, quando efetua pagamentos da espécie. Tal comando não confere suporte para apropriação do tributo, em virtude da interpretação firmada relativamente ao quanto disposto no inciso I do art. 157 e no inciso I do art. 158 da CF. 18. É bom que fique claro que não se está afirmando que a denominação de “rendimentos” seja exclusiva e especificamente ligada a pagamentos a pessoas físicas, apenas é feita a interpretação a partir do comando constitucional de que se trata. [...]19. Dado o exposto, entendemos que a posição refletida na Nota Técnica Cosit nº 36, de 2013, é adequada ao caso vertente e re-afirmamos as conclusões exaradas no Parecer PGFN/CAT/Nº 658/2012 no sentido de que o texto, “sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem”, constante dos artigos 157, I, e 158, I, da Constituição, se restringe aos pagamentos de servidores e em-pregados dos Estados, Distrito Federal e Municípios, e respectivas autarquias e fundações.

Em suma, vê-se que o fundamento da interpretação restrita do ar-tigo 158, I, da CF/88 é exclusivamente histórico. Em nenhum momento analisou-se o texto normativo como ele efetivamente é hoje, lendo-o com

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a miopia de sua suposta origem histórica. Não que a história do direito seja irrelevante, longe disso; o texto constitucional – como qualquer outro texto normativo – advém de influxos históricos e seu sentido muitas vezes pode ser esclarecido quando se conhece sua genética. Mas daí a desconsi-derar o texto, como hoje ele se encontra versado, vai uma longa distância: é cair no arbítrio dos voluntarismos de ocasião e conveniências.

É que na CF/88 não se verifica a limitação que a Fazenda Nacional está considerando. Ora, o aposto “a qualquer título” está especificando ou-tro aposto constante do inciso I do artigo 158: “sobre rendimentos pagos”. Façamos uma análise, portanto, do texto: a) o sentido de “rendimentos” é claro, albergando não só os valores pagos a “servidores”, mas a qualquer um. Até porque, se assim não fosse, nos demais casos não seria lícita a retenção do imposto sobre a renda – ou seja, se “rendimentos” não fos-sem; b) o particípio passado do verbo pagar no plural (“pagos”) não in-firma o conceito amplo de rendimentos. Todos os valores sobre os quais se promove a retenção de IR são rendimentos e são pagos. Reitera-se: se não fossem, não poderia haver a retenção. E é o pagamento que dá ao retentor a capacidade de cumprir a obrigação acessória e/ou de ser consi-derado substituto tributário, que lhe traz o epíteto de “fonte pagadora”. É o ressarcimento financeiro que impede a lesão à capacidade contributiva e torna a prática constitucional; c) o pronome indefinido “qualquer”, nesse aposto, “Designa pessoa ou coisa indeterminada [...]. Todo (a); cada”;18 e, por fim, d) o substantivo masculino “título” pode ser compreendido como “(Ter) título [direito, jus] a algo, à admiração, ao respeito, à estima dos outros”.19Ou seja, o sentido possível do texto constitucional não vai além de “todos os rendimentos pagos”, ou “rendimentos pagos seja qual for a razão”, em suma, quaisquer rendimentos pagos a qualquer um!20

18 SACCONI, Luiz Antonio. Grande dicionário Sacconi. São Paulo: Nova Geração, 2010, p. 1704 (verbete “qualquer”).19 LUFT, Celson Pedro. Dicionário prático de regência nominal. São Paulo: Ática, 2010, p. 502 (verbete “título”).20 Abrimos aqui parênteses apenas para alertar que ainda que, fosse aplicada a in-terpretação restrita prevista na IN nº 1599/2015, há um equívoco técnico que necessita ser observado detidamente: é que existem outros pagamentos – os feitos a título de “ren-

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Foi, aliás, nesse sentido que entendeu o Plenário do Tribunal de Contas da União (TCU), na Decisão nº 125, de 27 de fevereiro de 2002, na qual se consignou: “sempre que houver retenção na fonte, inclusive relativa aos pagamentos efetuados à pessoa jurídica, o produto dessa ar-recadação pertence ao Estado, Distrito Federal ou Município do qual se originou o pagamento”.

Ora, os valores pagos a pessoas jurídicas são uma presunção de renda e só por essa ligação com a materialidade do IRPJ é que podem ser objeto de retenção – a título de adiantamento da renda ou a título de tributação exclusiva na fonte.21 A questão pode ser assim sintetizada:

embora possa [a tributação do rendimento da fonte] caracterizar-se tão-somente como uma antecipação do valor devido, se for certa a con-figuração da futura hipótese de incidência, pode também incidir sobre parcela não representativa de acréscimo patrimonial, caso o fato jurídico ensejador da cobrança, qual seja, o acréscimo patrimonial, não ocorrer.22

Ainda que, a priori, os pagamentos contratuais feitos a pessoas ju-rídicas sejam “receita”, que comporão o cálculo para que se encontre a “renda”, a retenção somente se justifica na presunção de adiantamento da renda, sob pena de se estar a tributar, sob o pretexto do Imposto sobre a Renda, o faturamento ou a receita bruta, o que contrariaria frontalmente a norma de competência constitucional.

É bem verdade que o Código Tributário Nacional prevê, em seu ar-tigo 85, II, uma regra restrita aos pagamentos feitos a servidores e/ou em-pregados.23 Não se pode perder de vista, contudo, que o Código Tributá-rio Nacional é anterior à atual Constituição e vários de seus dispositivos não foram recepcionados ou, ainda, devem ser interpretados conforme o atual Texto Constitucional, sob pena de subverter-se a ordem hierárquica em nosso ordenamento jurídico. É o Código Tributário Nacional que deve ser interpretado constitucionalmente e não a CF/88 que deve se adequar à legislação infraconstitucional.

dimentos” no sentido estrito, decorrentes da folha remuneratória – a agentes públicos que não são “servidores”, nem “empregados”, como a agentes políticos ou terceiros em colabo-ração com o Poder Público, por exemplo.

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6. Conclusão

Por todo o exposto, entendemos ser equivocada a interpretação da Fazenda Nacional que determina o recolhimento à União de valores re-tidos a título de Imposto sobre a Renda pelos demais entes da Federação em casos outros que não os referentes a pagamentos a servidores e/ou empregados, haja vista ser inconstitucional a IN RFB nº 1599/2015 que deu ao Texto Constitucional, especialmente aos artigos 157, I, e 158, I, da CF/88, uma interpretação estrita que não se coaduna com sua literalidade e, ainda mais importante, com o próprio conteúdo do Princípio Federati-vo, que tem como um dos pilares a autonomia financeira.

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PARECER nº 0318/2018

Interessado: Departamento Nacional de Infraestrutura de Trans-portes – DNIT.

Protocolo PGE nº 2018.02.001464

EMENTA: CONSULTA. ADMINISTRATIVO. TERMO DE COMPROMISSO FIRMADO ENTRE O DEPARTAMENTO NA-CIONAL DE INFRAESTRUTURA DE TRANSPORTES – DNIT E O ESTADO DE PERNAMBUCO. CONVALIDAÇÃO, PELO GOVERNADOR DO ESTADO, DOS ATOS DE ASSINATURA DO INSTRUMENTO PRINCIPAL E ADITIVOS, ENTÃO AS-SINADOS POR SECRETÁRIOS DE ESTADO E OUTRAS AU-TORIDADES, A PRINCÍPIO, SEM DELEGAÇÃO ESPECÍFICA. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO GOVERNADOR DO ESTA-DO, PARA ASSINATURA DE CONVÊNIOS E INSTRUMENTOS CONGÊNERES (CONSTITUIÇÃO ESTADUAL, ART. 37, XXII). VÍCIO DE INCOMPETÊNCIA. POSSIBILIDADE DE DELEGA-ÇÃO E JURIDICIDADE DA CONVALIDAÇÃO, COM BASE NO ART. 55 DA LEI Nº 11.781/2000. RAZÕES DE INTERESSE PÚ-BLICO E PROPORCIONALIDADE PARA A CONTINUAÇÃO DA RELAÇÃO JURÍDICA ENTRE O ESTADO E A UNIÃO. AU-SÊNCIA DE PREJUÍZO A TERCEIROS.

1. Relatório.

Nesta Procuradoria Geral do Estado, consulta referente ao Termo de Compromisso nº 1.115/2012 (com três aditivos), decorrente de coope-ração realizada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Trans-portes – DNIT e o Estado de Pernambuco, por intermédio das Secretarias das Cidades e de Transportes, tendo como objetivo a transferência de re-cursos, a reabilitação do pavimento e a execução dos serviços de melho-ramentos, adequação e capacidade de segurança na Rodovia BR 101, no trecho conhecido como “Contorno do Recife”.

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A documentação anexada demonstra a assinatura do Termo de Compromisso e aditivos por autoridades das Secretarias das Cidades, de Transportes e do Departamento de Estradas de Rodagem de Pernambuco – DER-PE, cujas competências para firmar os instrumentos foram ques-tionadas pela Advocacia Geral da União. Contudo, o Exmo. Sr. Governa-dor do Estado ratificou os atos anteriormente praticados no instrumento mater bem como nos seus aditivos, manifestando-se pela convalidação das assinaturas anteriormente apostas por autoridades dos órgãos e da au-tarquia supramencionada (Secretários de Estado, Secretários Executivos, Superintendentes de Gestão e por Diretor-Presidente do DER).

Em seguida, novamente, a Advocacia Geral da União pronunciou-se por meio do Parecer nº 81/2018/PFE-DNIT-PGF AGU (0580208), so-licitando “que seja consultada a Procuradoria do Estado de Pernambuco, considerando a competência dos Estados Federados para manifestar-se quanto à delegação posterior de competência e sobre a convalidação de ato praticado por agente incompetente de tal ente federativo, se válido ou não, inclusive, com indicação da norma estadual aplicável. Ressalta-se que a regularidade do 4º Termo Aditivo está condicionada ao cumprimen-to das recomendações constantes no Parecer nº 00806/2017/PFE-DNIT/PGF/AGU e no despacho nº 02543/2017/PFE-DNIT/PGF/AGU”.

2. Análise jurídica.

A presente análise decorre das disposições constitucionais que re-gem a advocacia pública dos Estados, especialmente, o art. 132 da Cons-tituição Federal e 72 da Constituição do Estado de Pernambuco, notada-mente em relação à competência para o exercício da consultoria jurídica das entidades federativas.

Trata-se, como se vê, da necessidade de pronunciamento deste ór-gão, solicitada pela Advocacia Geral da União – AGU, sobre a regularidade jurídica da convalidação realizada pelo Exmo. Sr. Governador do Estado de Pernambuco em relação ao Termo de Compromisso nº 1115/2012-00 e seus aditivos posteriores.

De logo, nota-se a ratificação do Termo de Compromisso nº 1115/2012-00 e dos aditivos posteriores, realizada pela autoridade máxi-

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ma do Poder Executivo Estadual, por meio do ofício nº 751/2017-GG/PE, datado de 30 de novembro de 2017, de maneira que inexiste controvérsia em relação à questão de fato. No que se refere à questão jurídica envolvida, a AGU pediu manifestação expressa desta Procuradoria Geral do Estado em relação “à delegação posterior de competência e sobre a convalidação de ato praticado por agente incompetente de tal ente federativo”.

A Constituição do Estado de Pernambuco prevê as hipóteses nas quais os atos do Governador do Estado podem ser delegados, dentre as quais, como dito, a hipótese de celebração de convênios e instrumentos congêneres, conforme art. 37, XXII, o qual prevê a delegação “aos secre-tários de Estado ou a outras autoridades”, conforme parágrafo único do mesmo dispositivo1, de modo que não se trata de competência exclusiva, na qual não seria admissível a delegação.

Na mesma toada, o Decreto nº 18.404, de 16 de março de 1995 – vi-gente na data da assinatura do termo de compromisso – previa, no art. 4º,

1 “Seção IIDas Atribuições do Governador do EstadoArt. 37. Compete privativamente ao Governador do Estado:(…)XXII – celebrar ou autorizar convênios, ajustes ou outros instrumentos congêneres com entidades públicas ou particulares, na forma desta Constituição;XXIII – convocar, extraordinariamente, a Assembléia Legislativa;XXIV – prestar, por si ou por seus auxiliares, por escrito, as informações solicitadas pelos Poderes Legislativo ou Judiciário no prazo de trinta dias, salvo se outro for determinado por lei federal;XXV – realizar as operações de crédito autorizadas pela Assembléia Legislativa;XXVI – mediante autorização da Assembléia Legislativa, subscrever ou adquirir ações, re-alizar aumentos de capital, desde que haja recursos disponíveis, de sociedade de economia mista ou de empresa pública, bem como dispor, a qualquer título, no todo ou em parte, de ações ou capital que tenha subscrito, adquirido, realizado ou aumentado;XXVII – promover a criação de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrre-giões, constituídas por agrupamentos de Municípios limítrofes, para integrar a organiza-ção, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum;XXVIII – conferir condecorações e distinções honoríficas.Parágrafo único. O Governador poderá delegar atribuições aos Secretários de Estado ou a outras autoridades, salvo:I – a representação política de que trata o inciso I;II – as previstas nos incisos II a V, VII, IX a XXI, XXIII, XXVII e XXVIII deste artigo.”

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a necessidade de assinatura do Governador do Estado quando da celebra-ção, assinatura ou autorização de contratos, convênios, ajustes e instru-mentos assemelhados frente a órgãos e entidades na União Federal, dos demais poderes, de outros Estados e entidades de direito público interno, Municípios, governos estrangeiros e organismos internacionais. O seu pa-rágrafo único previa a delegação de tais competências, para o exercício de atribuição específica, mediante ato do Governador do Estado2.

A partir do Decreto nº 43.133/2016, tais atribuições foram dele-gadas expressamente aos Secretários de Estado, conforme art. 2º, III, do mencionado regulamento, excepcionando-se os convênios e instrumentos congêneres cujo valor de contrapartida esteja acima de R$ 2.000,000.00 (dois milhões de reais), os celebrados com governos estrangeiros e orga-nismos internacionais, bem assim aqueles cujo prazo de validade ultra-passe cinco anos (art. 4º, IV, V e VI), in verbis:

DECRETO Nº 43.133, DE 9 DE JUNHO DE 2016.Delega atribuições aos Secretários de Estado, autoridades equipa-

2 DECRETO Nº 18.404/1995: Art. 4º Competirá exclusivamente ao Governador re-presentar o Estado e intervir nos atos das entidades da administração indireta quando da cele-bração, assinatura ou autorização de contratos, convênios, ajustes e instrumentos assemelhados frente aos órgãos e entidades da União Federal, dos demais Poderes, de outros Estados e entida-des de direito público interno, Municípios, governos estrangeiros e organismos internacionais.Parágrafo único. A competência de que trata o presente artigo poderá ser delegada, para o exercício de atribuição específica, através de ato do Governador do Estado.Art. 5º A celebração de instrumentos contratuais, convênios ou ajustes com particulares, pes-soas físicas ou jurídicas, será de competência privativa do Governador nas seguintes hipóteses:I – nas contratações para execução de obras ou prestação de serviços em valor que exceda a R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais);II – nas contratações de compras e fornecimentos de valor superior a R$ 1.000.00,00 (hum milhão de reais);III – nos convênios celebrados em que haja transferência de recursos do Tesouro, em valo-res acima de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais);IV – em qualquer caso, quando a vigência do contrato ou do convênio for por prazo su-perior a 4 (quatro) anos.§1º No interesse da Administração, o Governador poderá avocar para si, a qualquer tem-po, a competência para a celebração de contratos ou convênios não enquadrados nas hi-póteses do presente artigo.§2º Os valores referidos nos incisos I a III deste artigo serão corrigidos, a partir da vigência do presente Decreto, pela variação da Unidade Fiscal do Estado de Pernambuco – UFEPE.

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radas e dirigentes máximos de entidades integrantes da Adminis-tração Pública Estadual.O GOVERNADOR DO ESTADO, no uso das atribuições que lhe são conferidas pelos incisos II e IV do art. 37 da Constituição Estadual,DECRETA:Art. 1º Os Secretários de Estado, autoridades equiparadas e diri-gentes máximos de entidades integrantes da Administração Pública Estadual, exercem a representação administrativa dos respectivos órgãos e entidades estatais, no âmbito das suas atividades próprias e de suas competências e atribuições definidas em regulamento ou estatuto.Art. 2º Compete aos Secretários de Estado, autoridades equipa-radas e dirigentes máximos de entidades integrantes da Adminis-tração Pública Estadual, no exercício da representação adminis-trativa de que trata o art. 1º, as seguintes atribuições:I – representar o Estado em reuniões, encontros, congressos, com-promissos, missões de serviço e nas relações funcionais junto a outros órgãos e entidades da Administração Pública Federal, dos demais Poderes, de outros Estados, dos Municípios, de organismos internacionais e de particulares que demandem providências e ser-viços devidos pela Administração;II – exercer os poderes hierárquico e disciplinar no âmbito do res-pectivo órgão ou entidade;III – celebrar ou autorizar convênios, contratos, acordos, contra-tos de repasse, termos de compromissos vinculados às transferên-cias de recursos e respectivos termos aditivos ou outros instrumen-tos congêneres com entidades públicas ou particulares, na forma da Constituição Estadual, das leis e regulamentos aplicáveis;IV – prestar contas diretamente aos órgãos de controle interno e externo dos atos e procedimentos praticados na respectiva unidade orçamentária, inclusive dos recursos vinculados aos contratos de repasse firmados com a União Federal, sem prejuízo da responsa-bilidade dos demais ordenadores de despesa; eV – regular, através de portarias e outros atos normativos, medidas e situações jurídicas decorrentes de lei ou decreto.

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Parágrafo único. As atribuições dos Secretários de Estado, autori-dades equiparadas e dirigentes máximos de entidades estatais po-derão ser delegadas, por ato expresso e nos termos do regulamento ou estatuto próprio, aos seus subordinados.Art. 3º A nenhuma Secretaria de Estado ou órgão equiparado da administração direta é permitida a celebração de contratos ou a as-sunção de obrigações e compromissos em nome próprio, cabendo sempre a titularidade do ato ao Estado de Pernambuco, represen-tado pelo órgão e pela autoridade competente.Art. 4º A celebração de instrumentos contratuais, convênios ou ajustes com entidades públicas ou particulares, no âmbito da Administração Pública direta, será de competência privativa do Governador do Estado nas seguintes hipóteses:I – nas contratações para execução de obras ou serviços de enge-nharia de valor superior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais);II – nas demais contratações de prestação de serviços de valor su-perior a R$ 8.000.000,00 (oito milhões de reais);III – nas contratações de compras ou fornecimentos de valor supe-rior a R$ 4.000.000,00 (quatro milhões de reais);IV – nos convênios, acordos, contratos de repasse, termos de compromisso ou congêneres em que haja transferência de re-cursos do Tesouro, em valor superior a R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais);V – nos convênios, acordos e instrumentos congêneres com gover-nos estrangeiros e organismos internacionais; eVI – em qualquer caso, quando a vigência inicial do contrato ou do convênio for por prazo superior a 5 (cinco) anos.§ 1º O Governador do Estado poderá, a qualquer tempo, exercer a competência para celebrar contratos ou convênios não enquadra-dos nas hipóteses deste artigo.§ 2º Os valores referidos nos incisos I a IV deste artigo serão anu-almente atualizados, com base no índice para atualização estabele-cido na legislação tributária e financeira do Estado, publicado pela Secretaria da Fazenda, conforme disposto na Lei nº 11.922, de 29 de dezembro de 2000.

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§3º Os termos aditivos aos contratos de repasse previstos neste ar-tigo, desde que não impliquem aumento da contrapartida do Esta-do, poderão ser firmados pelos Secretários de Estado, autoridades equiparadas e dirigentes máximos de entidades estatais, que este-jam vinculados à execução do respectivo objeto contratual.Art. 5º As prestações de contas parciais e finais de instrumentos contratuais, convênios ou ajustes, inclusive as previstas no art. 4º, serão assinadas pelo Secretário de Estado, autoridade equiparada ou dirigente máximo de entidade estatal, que esteja vinculado à execução do respectivo objeto contratual.Art. 6º Não produzirão efeitos jurídicos perante a Administração Pública os instrumentos contratuais, convênios ou ajustes com en-tidades públicas ou particulares celebrados em desacordo com o presente Decreto, salvo a responsabilidade pessoal da autoridade ou agente que praticou o ato sem competência pelos prejuízos cau-sados ao Estado ou a terceiros.Art. 7 º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.Art. 8º Revoga-se o Decreto nº 18.404, de 16 de março de 1995.Palácio do Campo das Princesas, Recife, 9 de junho do ano de 2016, 200º da Revolução Republicana Constitucionalista e 194º da Independência do Brasil.PAULO HENRIQUE SARAIVA CÂMARAGovernador do Estado (grifos nossos)

Assim, desde a data de edição do Decreto supramencionado, em 9 de junho de 2016, não resta dúvida sobre a possibilidade de delegação aos Secretários de Estado e a outras autoridades para a celebração de termo de compromissos com a União – ressalvadas as exceções acima mencionadas –, conforme dicção da Constituição Estadual e das normas regulamenta-res acima transcritas.

Observa-se no instrumento mater que estava prevista a contraparti-da do Estado no Termo de Compromisso nº 1.115/2002 em valor superior ao constante no inciso IV do art. 4º do Decreto nº 43.133/2016, de maneira que a assinatura do 3º aditivo era, igualmente, da competência do Governa-dor do Estado, autoridade competente, também, para ratificar tal ato.

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Em relação à convalidação, esta é permitida no ordenamento jurí-dico do Estado de Pernambuco por meio do art. 55 da Lei nº 11.781/2000, nos termos a seguir transcritos, in verbis:

Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defei-tos sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração.

A decisão já foi tomada pela autoridade máxima do Poder Execu-tivo Estadual, a qual ratificou os atos anteriores praticados pelas autori-dades estaduais. Em relação à lesão ao interesse público, conquanto tal aferição não caiba, sob o ponto de vista do mérito do ato administrativo, a este Procurador do Estado, mas sim ao próprio chefe do Poder Executivo, não observo, sob o ponto de vista jurídico, lesão ao interesse público ou mesmo a interesse de terceiros, seja da União ou de particular eventual-mente contratado pelo Estado.

Ao contrário, a ausência da convalidação certamente traria prejuí-zos ao Estado em relação aos objetivos do Termo de Compromisso, cujos recursos são imprescindíveis, em momento de grave crise financeira, para a resolução de problema em trecho importante de rodovia federal no Estado, cuja precariedade é notória. Esta Procuradoria Geral do Estado, à luz da lei estadual sobre processo administrativo, tem o entendimento de que é pos-sível a convalidação de atos eivados de vícios sanáveis, desde que não acar-retem lesão ao interesse público, nem prejuízo a terceiros, em hipóteses nas quais a invalidação importar sacrifício a valores juridicamente protegidos.

A ilegalidade, in casu, decorreu, durante certo tempo, de agentes que, sob o ponto de vista formal, eram incompetentes para a subscrição do convênio e dos aditivos, hipótese – vício de incompetência – de defeito do ato administrativo a permitir a convalidação.

Vale dizer que o Governador do Estado promoveu a ratificação dos atos praticados anteriormente, o que, também sob o ponto de vista formal, afigurou-se correto, considerando que a ratificação – uma das espécies da convalidação – é possível para a correção dos atos inquinados de vícios extrínsecos, como a forma e a competência, como ocorreu no caso. Sendo ratificado pela autoridade competente para a assinatura dos convênios à época – especialmente em relação a Termo de Compromisso e aos aditi-vos anteriores ao terceiro –, tal ato afigura-se regular.

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Sobre o assunto, José dos Santos Carvalho Filhoa afirma:

Nem todos os vícios do ato permitem seja ele convalidado. Os ví-cios insanáveis impedem o aproveitamento do ato, ao passo que os vícios sanáveis possibilitam a convalidação. São convalidáveis os atos que tenham vícios de competência e de forma, nesta in-cluindo-se os aspectos formais dos procedimentos administrati-vos. Também é possível convalidar atos com vício no objeto ou no conteúdo, mas apenas quando se tratar de conteúdo plúrimo, ou seja, quando a vontade administrativa se preordenar a mais de uma providência administrativa no mesmo ato: aqui será viável suprir ou alterar alguma providência e aproveitar o ato quanto às demais providências, não atingidas por qualquer vício3. (Grifo nosso)

Vale trazer, ainda, as lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

Quanto ao sujeito, se o ato for praticado com vício de incompetência, admite-se a convalidação, que nesse caso recebe o nome de ratifica-ção, desde que não se trate de competência outorgada com exclusi-vidade, hipótese em que se exclui a possibilidade de delegação ou avocação; por exemplo, o artigo 84 da Constituição Federal define as matérias de competência privativa do Presidente da República e, no parágrafo único, permite que ele delegue as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV aos Ministros de Estado, ao Procurador Ge-ral da República ou ao Advogado Geral da União; se estas autoridades praticarem um desses atos, sem que haja delegação, o Presidente da República poderá ratificá-los; nas outras hipóteses, não terá essa fa-culdade. Do mesmo modo, nas matérias de competência exclusiva das pessoas públicas políticas (União, Estado e Municípios) não é possível a ratificação de ato praticado pela pessoa jurídica, incompetente; no caso o ato é inconstitucional, porque fere a distribuição de competên-

3 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 166.

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cia feita pela própria constituição4. (Grifo nosso).

Esta Procuradoria Consultiva, inclusive, emitiu pronunciamento publicado no Boletim Informativo nº 03/2017, disponível no sítio eletrô-nico da PGE, por meio do qual se manifestou pela possibilidade de conva-lidação com base no art. 55 da Lei nº 11.781/2000, in verbis:

“4. Possibilidade excepcional de convalidação de atos administra-tivos cujos vícios sejam sanáveis, desde que não tenham acarreta-do lesão ao interesse público, nem prejuízo a terceiros, nos casos em que a invalidação importar sacrifício a valores juridicamente protegidos. Por força do princípio da autotutela, consagrado nas Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal, a Administração tem o poder-dever de anular os próprios atos quando eivados de vícios que os tornem ilegais. Tradicionalmente, a declaração de nu-lidade era tida como único destino para atos administrativos pra-ticados em desconformidade com a ordem jurídica, dos quais não se permitia a geração de quaisquer direitos. Todavia, a teoria geral das nulidades vem sendo temperada pelo princípio da proporcio-nalidade, adotando-se múltiplas soluções de saneamento, dada a multiplicidade de graus dos possíveis defeitos dos atos adminis-trativos. Sobre a evolução no conceito de nulidade, ensina Marçal Justen Filho (Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 252-267): “No direito administrativo, costuma-se utilizar a expressão ‘anulação’ em acepção genérica, abrangendo todas as hipóteses em que exista um defeito no ato administrativo. Mas essa solução é incompatível com o próprio princípio da proporcionali-dade. Não basta a mera incompatibilidade entre o ato administra-tivo e a lei para que se configure a invalidade. Há diferentes graus de invalidade. […] A invalidação deve ser pronunciada somente como solução indispensável para a realização dos valores jurídi-cos. Não se cogita de invalidade se tal for inadequado para gerar,

4 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 237.

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sob o prisma de causa e efeito, a realização dos interesses e valores protegidos pelo direito”. Assim, a incompatibilidade entre um ato concreto e as normas de regência pode não culminar necessaria-mente em sua anulação, sendo excepcionalmente possível, sob da-das circunstâncias devidamente comprovadas nos autos, e a partir da ponderação dos interesses em jogo, a manutenção de atos cujos defeitos sejam sanáveis, mediante o instituto da convalidação. No âmbito do Estado de Pernambuco, tal possibilidade encontra-se positivada no art. 55 da Lei nº 11.781/2000, segundo o qual “em decisão da qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem de-feitos sanáveis poderão ser convalidados pela Administração”. (Grifo nosso)

Ainda que não fosse cabível a convalidação por quaisquer outros motivos, doutrina importante defende tratar-se, em hipóteses análogas, de relação jurídica estabilizada pelo direito, cuja manutenção na realida-de fática atende a valores superiores, especialmente, imperativos de se-gurança jurídica, considerando a boa-fé dos envolvidos diretamente nas relações jurídicas que decorreram da elaboração dos atos viciados, bem como o interesse de terceiros. Desde a edição do Termo de Compromisso, vários atos jurídicos ocorreram e várias relações jurídicas foram estabele-cidas, seja da União com o Estado, do Estado com a empresas executoras da obra, da empresa com seus empregados e fornecedores, dentre outras.

O dano ao interesse público seria maior, in casu, na hipótese da anulação do instrumento convenial, uma vez que prejudicaria o interesse de todos os envolvidos, com probabilidade de haver responsabilização da União e do Estado por eventuais perdas e danos. Os imperativos de segu-rança jurídica, de índole constitucional, sobrepõem-se em tais hipóteses às necessidades de invalidação do ato.

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Tal posicionamento é defendido por Celso Antonio Bandeira de Mello:

II- sempre que esteja perante ato insuscetível de convalidação, terá a obrigação de invalidá-lo, a menos, evidentemente, que a situação gerada pelo ato viciado já esteja estabilizada pelo direito.Em tal caso já não haverá mais situação jurídica inválida ante o sis-tema normativo e, portanto, simplesmente não se põe o problema. Essa estabilização ocorre em duas hipóteses: a) quando já escoou o prazo dito prescricional para a administração invalidar o ato; b) quando, embora não vencido tal prazo, o ato viciado se categoriza como ampliativo da esfera jurídica dos administrados (cf. n. 80) e dele decorrem sucessivas relações jurídicas que criaram, para sujeito os de boa-fé, situação que encontra amparo em norma protetora de interesses hierarquicamente superiores ou mais amplos que os resi-dentes na norma violada, de tal sorte que a desconstituição do ato geraria agravos maiores do que os interesses protegidos na ordem jurídica do que os resultantes do ato censurável. […] As asserções feitas estribam-se nos seguintes fundamentos. Dado o princípio da legalidade, fundamentalíssimo para o Direito Administrativo, a Administração não pode conviver com relações jurídicas formadas ilicitamente. Donde é seu dever recompor a legalidade ferida. Ora, tanto se recompõe a legalidade fulminando um ato viciado, quan-do convalidando-o. É de se notar que esta última tem em seu abo-no o princípio da segurança jurídica, cujo relevo é desnecessário encarecer. A decadência5 e a prescrição demonstram a importância que o Direito lhe atribui. Acresce, também, o princípio da boa-fé – sobreposse ante atos administrativos –, já que gozam de presunção de legitimidade, concorre em prol da convalidação, para evitar gra-vames ao administrado de boa-fé6. (grifo nosso).

5 No Estado de Pernambuco é de dez anos o prazo decadencial para a correção de atos administrativos inválidos (art. 54 da Lei nº 11.781/2000).6 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de direito administrativo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 484.

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As partes manifestaram durante anos a intenção de celebrar a coo-peração sem que tenha havido qualquer questionamento sobre a regula-ridade jurídica do instrumento. O interesse público está sendo atingido, tanto pela vontade manifestada pelo Governador do Estado – autorida-de com a legitimação democrática para definir a realização da política pública – ao ratificar os instrumentos anteriores, como pela continuação das obras na rodovia. Não há notícia, ainda, de terceiros prejudicados (ao contrário, como visto acima).

Não seria, ainda, razoável ou proporcional sob o ponto de vista do interesse público a invalidação do Termo de compromisso e dos aditivos posteriores7. RETIRAR A regularidade da ordem jurídica perseguida com eventual anulação do ato laboraria, ao revés, em desfavor do interesse pú-blico, com consequências gravosas, como já dito, para os entes federativos envolvidos. No sopesamento entre a anulação do ato e sua manutenção na ordem jurídica, mediante ratificação, resta claro que a segunda hipótese afigura-se mais adequada aos interesses dos entes federativos envolvidos8.

À guisa de ilustração, transcrevo decisão proferida pelo TRF da 2ª Região em hipótese análoga na qual a convalidação teve por objetivo res-guardar o interesse público e de terceiros:

ADMINISTRATIVO. CELEBRAÇÃO DE CONVÊNIO ENTRE O PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DA UNI-VERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ E A FA-CULDADE DE FILOSOCIA DE CAMPOS. DECLARAÇÃO DE

7 8 A ponderação dos interesses na pronúncia do vício: A avaliação dos interesses em conflito é essencial na determinação do vício, o que conduz à utilização do princípio da proporcionalidade. A invalidação deve ser pronunciada somente como solução indis-pensável para a realização dos valores jurídicos. Não se cogita de invalidade se tal for inadequado para gerar, sob o prisma de causa e efeito, a realização dos interesses e valo-res protegidos pelo direito. Em segundo lugar, somente é cabível a invalidação se tal for a solução menos lesiva ao conjunto dos interesses em jogo. Por fim, não cabe invalidação quando importar sacrifício de valores e interesses protegidos de modo intransponível pela ordem jurídica. (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 454, grifos nossos).

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INEXISTÊNCIA. VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE COMPETÊN-CIA E PROCEDIMENTO. CONVALIDAÇÃO EM HOMENA-GEM AOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE, RAZOA-BILIDADE, FINALIDADE E SEGURANÇA JURÍDICA.1-) Mandado de segurança impetrado com vistas à anulação do ato da Reitora em exercício que declarou a inexistência do Convênio celebra-do entre o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Faculdade de Filosofia de Campos.2-) A despeito da constatação de que o ato impugnado violou regra de competência e regra de procedimento, restou consignado pelo Procurador-Geral da Universidade que tais violações não condu-ziriam inexoravelmente à invalidação do Curso de Mestrado em Filosofia, podendo verificar-se a convalidação.3-) Desconsiderado, outrossim, o fato de que o ato estaria produzin-do efeitos e, tendo gerado reflexos benéficos para terceiros (os alunos e a própria Faculdade de Filosofia de Campos), só poderia ser des-constituído mediante processo em que assegurada a garantia do con-traditório e da ampla defesa (Constituição da República, art. 5º, LV).4-) Convalidação do ato em homenagem aos princípios da propor-cionalidade, razoabilidade, da finalidade, da segurança jurídica, dentre outros, que devem permear a atividade administrativa.5-) Aplicação à hipótese, outrossim, da regra estatuída no artigo 55 da lei nº 9.784/99, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, litteris: “Art. 55 – Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros os atos que apresentarem defeitos sanáveis po-derão ser convalidados pela própria administração.”6-) Apelação provida.9

9 TRF da 2ª Região, AMS 00251373920054025101, Rel. ANTÔNIO CRUZ NET-TO, j. em 12/11/2008, p. DJU em 27/11/2008.

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3. Conclusão.

Em face do exposto, em relação à consulta formulada, consideran-do o ordenamento jurídico estadual, e por não se tratar de ato exclusivo do Governador do Estado, sendo passível de delegação, opino pela regu-laridade jurídica da convalidação realizada no Termo de Compromisso nº 1.115/2012, bem como nos aditivos posteriores. Ressalte-se, ainda, que eventuais aditivos poderão ser assinados pelos respectivos Secretários de Estado, autoridades equiparadas e dirigentes máximos de entidades in-tegrantes da Administração Pública Estadual, considerando a delegação constante no Decreto nº 43.133/2016, ressalvadas as exceções previstas no mencionado regulamento.

Recife, 12 de abril de 2018.

Alexandre Auto de AlencarProcurador(a) do Estado de Pernambuco

De acordo.Encaminhe-se.Em

Giovana Andréa Gomes FerreiraProcurador Chefe da Procuradoria Consultiva

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