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|455| Revista Ensaio | Belo Horizonte | v.17 | n. 2 | p. 455-482 | maio-ago | 2015 RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS MATEMÁTICOS NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA INVESTIGAÇÃO COM PROFESSORES POLIVALENTES RESUMO: O presente artigo traz resultados de uma pesquisa realizada com professoras polivalentes dos anos iniciais de uma escola da rede privada de São Paulo, que investigou quais são suas concepções a respeito do tema Resolução de Problemas, buscando compreender de que maneira elas exercem influência em sua prática. O quadro teórico recorre às ideias de Brousseau, especificamente àquelas relativas à teoria das situações didáticas (TSD) e ao conceito de contrato didático. A investigação, de abordagem qualitativa, valeu-se de dois instrumentos: um questionário, objetivando a análise dessas concepções, e posterior observação das aulas dessas professoras, de modo a permitir um confronto entre discurso e prática. Os resultados apontaram que os sujeitos compreendem a importância de seu papel problematizador nas aulas e valorizam o pensamento matemático dos alunos, contudo, ainda têm dificuldade em organizar um milieu antagonista, capaz de provocar desequilíbrios. Identificou-se, ainda, alguns efeitos do contrato didático, devidamente descritos nas análises. Palavras-chave: Resolução de problemas. Teoria das situações didáticas. Contrato didático. Professoras polivalentes. MATHEMATICAL PROBLEM SOLVING IN ELEMENTARY EDUCATION’S EARLY YEARS: AN INVESTIGATION WITH POLYVALENT TEACHERS ABSTRACT: This paper presents the results of a research conducted with a private school’s early grades polyvalent teachers in São Paulo. The research investigated what are their views on the subject “problem solving”, trying to understand how they influence in the teachers’ practice. The theoretical framework draws on Guy Brousseau ideas, specifically those related to the theory of didactic situations (TSD) and the concept of didactic contract. The research, qualitative approach, used two separate instruments: a questionnaire to analyze these concepts and the subsequent teachers classes’ observation, to allow a confrontation between discourse and practice. The results showed that the subjects understand the importance of their role in problem- solving lessons and value the mathematical thinking of students, but still have some difficulty in organizing an antagonist milieu able to cause imbalances. Additionally, some effects of the didactic contract were found and equally described through the analysis. Keywords: Problem solving. Didactic situations theory. Didactic contract. Polyvalent teachers. Gerson Pastre de Oliveira* Maria Teresa M. R. Mastroianni** * Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação Matemática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). E-mail: [email protected]. ** Mestre em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Assessora Pedagógica (Matemática – Educação Infantil e Fundamental I) e Professora do Colégio Albert Sabin (SP). E-mail: [email protected]. DOI - http://dx.doi.org/10.1590/1983-21172015170209

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    RESOLUO DE PROBLEMAS MATEMTICOS NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: UMA INVESTIGAO COM PROFESSORES

    POLIVALENTES

    RESUMO: O presente artigo traz resultados de uma pesquisa realizada com professoras polivalentes dos anos iniciais de uma escola da rede privada de So Paulo, que investigou quais so suas concepes a respeito do tema Resoluo de Problemas, buscando compreender de que maneira elas exercem influncia em sua prtica. O quadro terico recorre s ideias de Brousseau, especificamente quelas relativas teoria das situaes didticas (TSD) e ao conceito de contrato didtico. A investigao, de abordagem qualitativa, valeu-se de dois instrumentos: um questionrio, objetivando a anlise dessas concepes, e posterior observao das aulas dessas professoras, de modo a permitir um confronto entre discurso e prtica. Os resultados apontaram que os sujeitos compreendem a importncia de seu papel problematizador nas aulas e valorizam o pensamento matemtico dos alunos, contudo, ainda tm dificuldade em organizar um milieu antagonista, capaz de provocar desequilbrios. Identificou-se, ainda, alguns efeitos do contrato didtico, devidamente descritos nas anlises.Palavras-chave: Resoluo de problemas. Teoria das situaes didticas. Contrato didtico. Professoras polivalentes.

    MATHEMATICAL PROBLEM SOLVING IN ELEMENTARY EDUCATIONS EARLY YEARS: AN INVESTIGATION WITH POLYVALENT TEACHERS ABSTRACT: This paper presents the results of a research conducted with a private schools early grades polyvalent teachers in So Paulo. The research investigated what are their views on the subject problem solving, trying to understand how they influence in the teachers practice. The theoretical framework draws on Guy Brousseau ideas, specifically those related to the theory of didactic situations (TSD) and the concept of didactic contract. The research, qualitative approach, used two separate instruments: a questionnaire to analyze these concepts and the subsequent teachers classes observation, to allow a confrontation between discourse and practice. The results showed that the subjects understand the importance of their role in problem-solving lessons and value the mathematical thinking of students, but still have some difficulty in organizing an antagonist milieu able to cause imbalances. Additionally, some effects of the didactic contract were found and equally described through the analysis.Keywords: Problem solving. Didactic situations theory. Didactic contract. Polyvalent teachers.

    Gerson Pastre de Oliveira*Maria Teresa M. R. Mastroianni**

    * Doutor em Educao pela Universidade de So Paulo

    (USP). Professor do Programa de Estudos Ps-Graduados em

    Educao Matemtica da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    (PUC/SP). E-mail: [email protected].

    ** Mestre em Educao Matemtica pela Pontifcia Universidade

    Catlica de So Paulo (PUC/SP). Assessora Pedaggica (Matemtica Educao Infantil e Fundamental

    I) e Professora do Colgio Albert Sabin (SP).

    E-mail: [email protected].

    DOI - http://dx.doi.org/10.1590/1983-21172015170209

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    RESOLUCIN DE PROBLEMAS MATEMTICOS EN LOS AOS INICIALES DE LA EDUCACIN PRIMRIA: UNA INVESTIGACIN CON MAESTROS POLIVALENTES RESUMEN: Este artculo presenta los resultados de una investigacin realizada con maestras polivalentes de los aos iniciales de una escuela de la red privada de So Paulo, que investig cules son sus concepciones a respeto del tema Resolucin de Problemas, buscando comprender de qu manera ellas influencian su prctica. El cuadro terico recurre a las ideas de Guy Brosseau, especficamente a las relativas a la teora de las situaciones didcticas (TSD) y al concepto de contracto didctico. La investigacin, de abordaje cualitativo, usa dos instrumentos distintos: un cuestionario con el objetivo de analizar esas concepciones y la posterior observacin de las clases de esas maestras, de manera a permitir un confronto entre discurso y prctica. Los resultados muestran que los sujetos comprenden la importancia de su papel problematizador en aula y valoran el pensamiento matemtico de los alumnos, pero todava tienen alguna dificultad en organizar un milieu antagonista capaz de provocar desequilibrios. Adems, fueron identificados efectos del contracto didctico, debidamente descriptos a lo largo de los anlisis. Palabras clave: Resolucin de problemas. Teora de las Situaciones Didcticas. Contracto Didctico. Maestras Polivalentes.

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    Resoluo de problemas matemticos nos anos iniciais do ensino fundamental: uma investigao com professores polivalentes

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    INTRODUO: SOBRE O PROBLEMA DE PESQUISA

    Os fatores que geraram o tema da pesquisa que aqui relatamos origina-ram-se da observao exercida, em pesquisa, de aulas de matemtica dos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma escola da rede particular de So Paulo. A constatao de que muitos alunos chegavam ao final desse ciclo ainda dependentes de comentrios do professor para resolver certos problemas tornou-se, na verda-de, uma inquietao. Habituados a buscar pistas no enunciado para descobrirem qual operao deveriam fazer como principal recurso de resoluo, mostravam-se inseguros em relao ao movimento de investigar, de maneira autnoma, no in-tuito de propor resolues e/ou conjecturas. As argumentaes e confrontaes que deveriam estar em pleno exerccio, mesmo quando incentivadas, nem sempre aconteciam como prtica estabelecida nas aulas. Buscando compreender o cenrio supramencionado, foi realizada, ante-riormente, uma pesquisa nessa escola, no final do ano de 2009, com alunos do 5 ano do Ensino Fundamental (MASTROIANNI, 2010). No estudo, aps coloc--los em uma situao de resoluo de problemas, foi efetuada uma entrevista indi-vidual com alguns, buscando entender qual a dificuldade na leitura dos problemas e por que solicitavam constantemente ajuda da professora para sua compreenso. Embora o foco desse estudo fosse direcionado para a autonomia da lei-tura em problemas matemticos ao final das sries iniciais, os dados coletados trouxeram outros elementos, que acabaram por gerar novas questes. Esta uma caracterstica observvel em pesquisas qualitativas: respostas obtidas podem trazer tona outros ngulos do fenmeno analisado, indicando novos caminhos e subli-nhando fatos que at ento no se mostravam relevantes no cenrio observado. Desta forma, os resultados observados nos trouxeram outra inquietao, no senti-do de compreender por que os alunos mantinham uma postura to insegura frente resoluo de problemas. Dessa forma, tornaram-se esses dados, vindos da voz dos prprios sujei-tos de uma pesquisa qualitativa, um ponto real e concreto; um ponto de partida para uma nova investigao, direcionando o foco, dessa vez, para o professor. Dessa forma, podemos dizer que uma investigao sobre a atividade discente e processos de resoluo de problemas, gerou, indiretamente, um estudo sobre a resoluo de problemas como metodologia de ensino. A partir desse movimento que o aspecto metodolgico da resoluo de problemas se delineou como uma nova hiptese e encaminhou o segundo mo-vimento de pesquisa, ou seja, a investigao que aqui descrevemos. Preliminar-mente, havamos percebido que os resultados obtidos com os alunos trouxeram questes que apontavam com grande nitidez para a vigncia e influncia de um contrato didtico, no sentido destacado por Brousseau (2008), e que mais adiante esclarecemos, o qual preciso compreender de forma mais aprofundada. Enfim, esse contexto contribuiu para a eleio do quadro terico apresen-tado neste artigo, que inclui o conceito de contrato didtico e elementos da teoria

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    das situaes didticas (BROUSSEAU, 2008), alm de contribuir para o delinea-mento das questes de pesquisa:

    Quais efeitos do contrato didtico ocorrem na prtica dessas pro-fessoras do ponto de vista do trabalho didtico com resoluo de problemas nas aulas de Matemtica?

    De que forma as estratgias utilizadas para a resoluo de problemas matemticos por professoras polivalentes dos anos iniciais de uma escola da rede particular de So Paulo podem ser posicionadas do ponto de vista da teoria das situaes didticas?

    Para responder a esses questionamentos, buscamos, inicialmente, compre-ender as principais ideias e proposies acerca do tema resoluo de problemas, de modo a posicionar nossos procedimentos de pesquisa de forma consistente. Este esforo se encontra sintetizado a seguir. Nas prximas sees deste trabalho, eviden-ciamos as bases tericas e metodolgicas que sustentam as argumentaes surgidas a partir das anlises, tambm descritas em sequncia. Na ltima parte, alinhamos as consideraes finais, resultantes do esforo de investigao aqui relatado.

    Resoluo de problemas: ideias e proposies comum encontrarmos em relatrios de pesquisa e em estudos especiali-zados, como em English e Sriraman (2010), que, para a maioria dos alunos, resolver um problema significa fazer clculos com os nmeros encontrados no enunciado, buscando, j em uma primeira leitura, as palavras que indiquem as operaes a serem utilizadas para a resoluo. Tambm em nossa pesquisa anterior, realizada junto aos alunos do quinto ano, esse foi um dos fatos constatados (MASTROIANNI, 2010). Esse padro nos leva a pensar se no dessa forma que o trabalho com resoluo de problemas tem sido encaminhado, ou seja, voltado para a aquisio de procedimentos eficazes, disponveis ao alcance do aluno para atingir uma meta. Porm, como e quando utilizar estes procedimentos de maneira autnoma? Para Echeverra e Pozo (1998),

    A aprendizagem da soluo de problemas somente se transformar em autnoma e e s -pontnea se transportada para o mbito do cotidiano, se for gerada no aluno a atitude de procurar respostas para suas prprias perguntas/problemas, se ele se habituar a ques-tionar-se ao invs de receber somente respostas j elaboradas por outros, seja pelo livro--texto, pelo professor ou pela televiso. O verdadeiro objetivo final da aprendizagem da soluo de problemas fazer com que o aluno adquira o hbito de propor-se problemas e de resolv-los de forma a aprender. (ECHEVERRA; POZO, 1998, p.15)

    Dessa forma, muitos dos problemas que so apresentados aos alunos po-dem ser caracterizados como pseudoproblemas, ou seja, meros exerccios de aplica-o de rotinas aprendidas por emprego e repetio, praticamente automatizadas, sem que o aluno saiba discernir o sentido do que est fazendo e, por conseguinte,

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    sem que possa transferi-lo ou generaliz-lo de forma autnoma a situaes novas (ECHEVERRA; POZO, 1998, p. 15).Ao contrrio desses exemplos, um problema deve aguar no estudante o desejo de resolv-lo, porque este sente algum obstculo nessa tarefa. De acordo com Charnay (1996, p. 46), s h um problema se o aluno perceber uma dificuldade: uma de-terminada situao, que provoca problema [...] h ento, uma ideia de obstculo a ser superado. Sendo assim, ento, em que momento um problema realmente um problema ou deixa de s-lo para caracterizar-se como exerccio? Para Echeverra e Pozo (1998, p. 16), um problema se diferencia de um exerccio, na medida em que, neste ltimo caso, dispomos e utilizamos mecanismos que nos levam, de forma imediata soluo. Os autores sublinham, ainda, a ideia de que a mesma situao pode, para um sujeito, representar um problema, mas, para outro, no. Refletindo sobre essas questes, podemos compreender a importncia que a escolha de atividades realizada pelo professor tem no contexto de uma metodo-logia voltada para a resoluo de problemas, juntamente com a abordagem que este faz ao trabalhar essas atividades. Para Brousseau (2008), as concepes atuais do ensino exigiro do professor que provoque no aluno por meio da seleo sensata dos problemas propostos as adaptaes desejadas. Alm disso, outro aspecto emergiu: a organizao didtica. Foi necessrio incluir esse elemento em funo da importncia da constituio de uma dinmica distinta para o trabalho didtico com resoluo de problemas. Deste ponto de vista, adotamos a Teoria das Situaes Didticas (TSD) como referencial, no esforo de compreender, a partir da anlise dos dados, os procedimentos levados a efeito pelos professores ao trabalharem com resoluo de problemas em suas aulas de Matemti-ca. Outra referncia relevante, tambm empregada nas anlises, est ligada ao concei-to de contrato didtico (BROUSSEAU, 1990), um constructo terico cuja finalidade explicar as relaes entre professor e aluno em contextos de ensino/aprendizagem. Elementos da Teoria das Situaes Didticas A TSD apoia-se em trs hipteses principais, a saber (BROUSSEAU, 1986):

    O aluno aprende adaptando-se a um milieu, que fator de dificuldades, de contradies, de desequilbrio. Esse saber, fruto da adaptao do aluno, manifesta-se pelas respostas novas, que so a prova da aprendi-zagem;

    O milieu no munido de intenes didticas insuficiente para permi-tir a aquisio de conhecimentos matemticos pelo aprendiz. Para que haja essa intencionalidade didtica, o professor deve criar e organizar um milieu no qual sero desenvolvidas as situaes suscetveis de pro-vocar essas aprendizagens;

    Esse milieu e essas situaes devem engajar fortemente os saberes ma-temticos envolvidos no processo de ensino e aprendizagem.

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    Notamos, em Brousseau (2008), a importncia atribuda organizao do milieu, considerado o ambiente onde ocorrem as interaes do sujeito, e que deve ser planejado como um sistema antagonista no qual o sujeito age. nele que se provo-cam mudanas visando desestabilizar o sistema didtico e propiciar o surgimento de conflitos, contradies e possibilidades de aprendizagem de novos conhecimentos. Para isso concorre, preponderantemente, a intencionalidade do professor no plane-jamento das situaes, vistas como

    o conjunto de relaes estabelecidas explicitamente e/ou implicitamente entre um aluno ou um grupo de alunos, um certo milieu (contendo eventualmente instrumentos ou obje-tos) e um sistema educativo (o professor) para que esses alunos adquiram um saber cons-titudo ou em constituio. (BROUSSEAU, 1978 citado por ALMOLOUD , 2010, p. 33)

    Assim, o milieu constitui a ambientao na qual sucedem as interaes entre os agentes (alunos e professores) e o conhecimento em jogo. Idealmente, deve ser planejado pelo professor como um sistema antagonista, de modo a levar o estudante ao desequilbrio. Isso significa prever resistncias, restries e at mesmo dificulda-des, passveis de superao por meio do engajamento dos sujeitos no jogo didtico e na investigao de conjecturas que levem resoluo dos problemas componentes. Dessa maneira, o milieu deve ser engendrado a partir da intencionalidade didtica do professor, o qual, ao organizar sua estrutura, prov elementos para que as respostas esperadas como resoluo das questes propostas representem o prprio processo de construo do conhecimento. Perrin-Glorian (1998) indica que o milieu teria trs componentes essen-ciais: o de natureza material, constitudo por objetivos e instrumentos; o de natureza cognitiva, tecido por conhecimentos necessrios para a resoluo dos problemas propostos, e o de natureza social, formado pelos atores (alunos, professores) cuja interao interfere na resoluo dos problemas em anlise. Alm disso, preciso observar que um milieu aliado no seria adequado para efetivar o processo de construo do conhecimento nos termos supramencio-nados, uma vez que constitudo por elementos facilitadores e por uma preparao que exime os sujeitos do processo investigativo e do esforo para a superao de eventuais dificuldades e restries. Nesse caso, os componentes cognitivos j se en-contram explicitados na forma de exemplos ou modelos e, frequentemente, o com-ponente social substitudo por exposies/instrues do professor. Ainda segundo Brousseau (2008), no processo de ensino e aprendizagem, deve haver condies para que o aluno realize, ele mesmo, suas aproximaes sobre determinados procedimentos e raciocnios que no so e nem deveriam ser expli-citados pelo professor. Para ele, o que evidencia a caracterizao de uma situao didtica, no caso da matemtica, a natureza especfica do trabalho com a resoluo de problemas. Assim, na prtica pedaggica, no se trata de permanecer no nvel da trans-misso de um conhecimento; deve-se, sobretudo, trabalhar com a apresentao e com a devoluo de bons problemas, ou seja, uma situao didtica se caracteriza

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    pelo jogo de interaes do aluno com os problemas colocados pelo professor (AL-MOULOUD, 2010, p. 34). A forma como este prope os problemas chamada de devoluo, no sentido de transferncia de responsabilidade (o aluno tomando o problema como dele), e seu objetivo deve ser o de promover uma interao rica e que oportunize o desenvolvimento da autonomia do estudante. Dessa forma, o professor deve evitar a apresentao precoce de resultados envolvendo conceitos formalizados e, sempre que possvel, promover a simulao de um ambiente de pesquisa que permita aos alunos vivenciarem momentos de investigao, simulao e elaborao de hipteses. Nessa etapa do processo, h a necessidade de que os alunos trabalhem in-dependentemente do controle do professor. O aluno deve tentar superar, por seu prprio esforo, certas passagens que conduzem o raciocnio na direo de sua aprendizagem. So essas dedues racionais do aluno, realizadas sem o controle pedaggico explcito, que caracterizam as chamadas situaes adidticas. Nelas, o aluno se apropria das situaes, como se fosse um pesquisador buscando a soluo, com seus prprios passos, sem a ajuda de seu orientador (papel do professor). Este, alis, justamente o lugar de um problema do ponto de vista da TSD: no mbito de uma situao adidtica. Ainda aqui, o papel do professor na escolha dos problemas essencial, pois deve garantir trs caractersticas fundamentais, de acordo com Brous-seau (1986):

    Permitir que o aluno aja, reflita, fale e evolua por conta prpria; Ensejar que o estudante construa os novos conhecimentos de forma

    inteiramente justificada pela lgica interna da situao, ou seja, sem apelo a razes didticas;

    Criar condies, via mediao, para que o aluno seja o principal agente na construo dos conhecimentos, a partir do problema em questo.

    Ainda segundo Brousseau (1986), o trabalho dos estudantes ao longo de um percurso tpico de aprendizagem envolve a passagem por dialticas distintas e interligadas, prprias da construo do conhecimento:

    DialticadeAo:o aluno empenhado na soluo de um problema realiza determinadas aes mais imediatas, que resultam na produo de um conhecimento de natureza mais operacional. Ocorre o predom-nio do aspecto experimental do conhecimento.

    DialticadeFormulao:o aluno j utiliza, na soluo do proble-ma estudado, alguns modelos ou esquemas tericos explcitos, alm de mostrar um evidente trabalho com informaes tericas de uma forma bem mais elaborada, podendo ainda utilizar uma linguagem mais apro-priada para viabilizar esse uso da teoria. Faz afirmaes relativas sua interao com o problema, mas ainda sem a inteno de julgamento da validade. Elabora conjecturas.

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    DialticadeValidao: o aluno utiliza mecanismos de prova em que o saber usado com a finalidade de validar suas conjecturas. Nessas situaes, ento, preciso elaborar algum tipo de prova daquilo que j se afirmou, de outra forma pela ao. Podem servir para confirmar ou mesmo contestar ou rejeitar proposies.

    Como o processo nessas situaes adidticas , geralmente, muito amplo, faz-se necessria uma fase de institucionalizaodosaber, que deve ser conduzida pelo professor. Essa fase visa dar acabamento ao conhecimento elaborado pelos alu-nos ou mesmo trabalhar no sentido de descartar possveis aspectos no valorizados na perspectiva do saber socialmente formalizado. Nesse momento, ainda que dial-tico, no se est mais numa situao adidtica, pois o controle sobre o saber volta para o professor. Assim, cabe a ele organizar a sntese do conhecimento, procurando elev-lo a um estatuto de saber que no dependa mais dos aspectos subjetivos e par-ticulares. A constituio de situaes didticas no mbito da teoria de que nos va-lemos no prescinde da compreenso/organizao das relaes entre os agentes do processo, professores e alunos, que ocorrem por meio do chamado contrato didtico, constructo terico que empregamos tambm nas anlises e cujos conceitos esclarecemos em seguida.

    O contrato didtico Brousseau (1990) define o contrato didtico como o conjunto de compor-tamentos especficos do professor que so esperados pelos alunos e o conjunto de comportamentos caractersticos dos alunos que so esperados pelo professor. Essa relao est sujeita a muitas regras e convenes, que acabam funcionando como clusulas de um contrato. Assim, na definio desse autor, esse contrato :

    Uma relao que determina - explicitamente em pequena parte, mas sobretudo implicita-mente aquilo que cada parceiro, professor e aluno, tem a responsabilidade de gerir e pelo qual ser, de uma maneira ou de outra, responsvel perante o outro. Esse sistema de obri-gaes recprocas assemelha-se a um contrato. Aquilo que aqui nos interessa o contrato didtico, ou seja, a parte deste contrato que especfica do contedo: o conhecimento matemtico visado. (BROUSSEAU, 1990, p. 51)

    As obrigaes recprocas que ocorrem nesse meio quase nunca so explci-tas, porm revelam-se principalmente quando ocorre sua transgresso, ou seja, quan-do ocorrem rupturas nesse contrato. Dessa forma, quando o professor se depara com dificuldades ou apresenta insucessos em suas aes, ambas as partes se comportam como se estivessem unidas por um contrato que acaba de ser quebrado: cada um supe compromissos por parte do outro um, de explicar, o outro, de entender e os dois tentam encontrar as clusulas e as sanes de quebra (BROUSSEAU, 2008, p. 76.). Segundo Ricardo, Slongo e Pietrocola (2003), Brousseau faz aluso di-

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    menso paradoxal que permeia o contrato didtico. O professor tem responsabili-dades em seu papel, bem distintas das do aluno, e como gerenciador desse contrato, deve respeitar seu desenvolvimento cognitivo. Vivencia uma situao em que, ao mesmo tempo em que sua mediao na relao didtica se faz necessria, ela no pode revogar as condies indispensveis para o processo de apropriao do conhe-cimento. O professor procura reestruturar o problema, devolvendo-o ao educando; entretanto essa proximidade provoca a constante tentao de ajudar o aluno a ser bem-sucedido, quando se trata de aprender (PERRENOUD, 1999 citado por RICARDO; SLONGO; PIETROCOLA, 2003). O cenrio a que nos remete esse paradoxo contempla alguns fenmenos que interferem no processo de ensino e aprendizagem em matemtica e que so denominados efeitos do contrato didtico, considerados de natureza deletria, medida que trazem prejuzos ao processo de construo do conhecimento. Alguns deles aparecem ao longo das anlises contempladas neste artigo, o que nos permite classific-los e explicar sua relao com o processo de aprendizagem em curso.

    Natureza e procedimentos metodolgicos Para responder aos questionamentos realizados neste trabalho, optamos por uma pesquisa que se caracteriza como qualitativa. Como a origem de nossas questes nasceu da prpria atuao em sala de aula, para ela que voltamos nossas lentes de observao, procurando entender os fenmenos que perpassam as aulas de matemtica dos anos iniciais, do ponto de vista da Teoria das Situaes Didticas e em particular, como se manifestam os fenmenos relativos ao contrato didtico, suas rupturas e negociaes levando em conta todo o dinamismo que ocorre nesse ambiente. Outro ponto que justifica a escolha pela abordagem qualitativa sua es-sncia descritiva, fundamental para a compreenso dos fenmenos que queremos investigar. A escola na qual se desenvolveu a investigao pertence rede particular de ensino e situa-se na zona oeste do municpio de So Paulo. uma escola cujos alu-nos/egressos obtm boas pontuaes no ENEM e nos vestibulares, e que vem, por meio de cursos de formao continuada para os professores, buscando aperfeioar seu sistema de ensino. Os sujeitos da pesquisa aqui apresentada so seis professoras voluntrias dos anos iniciais do Ensino Fundamental, cujos nomes reais foram substitudos por outros, fictcios, para a preservao do anonimato. Quanto formao, quatro das professoras so graduadas em Pedagogia, uma em Psicologia e uma em Artes. Todas possuem especializao lato-sensu: trs em Psicopedagogia, uma em Neuroeduca-o, uma em Educao Ambiental e uma em Neurocincia e Transtornos de Apren-dizagem. Todas lecionam h mais de vinte anos nas sries iniciais. Os dados analisados neste artigo foram obtidos, principalmente, por meio de observaes de aulas dadas pelos sujeitos da pesquisa. Alm disso, um question-rio com seis perguntas foi distribudo entre os sujeitos. Essas questes, expostas no Quadro 1, no so o principal objeto de anlise deste artigo, mas algumas respostas

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    dadas pelas professoras surgem nas anlises como elemento de confronto entre o discurso e a prtica dos sujeitos.

    Quadro 1 O questionrio

    1 Voc trabalha com Resoluo de Problemas nas aulas de Matemtica? Em quemomentos?

    2 De que forma desenvolve esse trabalho? (Quais recursos, posturas... ou situaes cria

    em sala de aula para isso)

    3 Com que frequncia trabalha Resoluo de Problemas nas aulas de Matemtica?

    4 Sente alguma dificuldade nessa abordagem? Qual (quais)?

    5 Em aulas de Matemtica, em sua opinio, o que um problema?

    6

    Em que momentos voc se sente mais vontade para trabalhar com Resoluo de Problemas nasala de aula?

    Fonte: Dados da pesquisa.

    Os sujeitos responderam s questes privadamente, entregando suas res-postas antes das observaes de suas aulas. Em relao ao principal foco da anlise, o procedimento foi o de observar como os professores, em sua ao pedaggica, ati-vam os mecanismos relacionados aos elementos tericos discutidos nesse trabalho e como lidam com eles: como se d o estabelecimento do contrato didtico, o desen-volvimento de processos investigativos nas aulas e a forma como compreendem a resoluo de problemas matemticos em suas aulas. Em nosso relatrio de pesquisa, fizemos a anlise de cinco aulas, destacan-do, neste artigo, os excertos significativos de duas delas, escolhidas por sintetizarem de forma mais ampla os fenmenos observados, cujas anlises apresentamos a se-guir, considerando as observaes efetuadas e trechos das falas de professores e alunos envolvidos, tomados a partir da gravao em udio das interaes ocorridas, posteriormente transcritas.

    A prtica da professora Marlia: uma aula no quinto ano Marlia optou por usar uma aula prevista no planejamento mensal do quinto ano, pelo qual responsvel. A proposta era que ela trouxesse para os alunos um problema de travessia1 , a fim de variar o repertrio de problemas no convencionais trabalhados com os alunos. O enunciado do problema era o seguinte:

    Era uma vez um pai e dois filhos. O pai tinha 80kg, o menino, 40kg e a menina, 35kg. Eles tinham de atravessar um rio. Por sorte, os trs sabiam remar e encontraram um bote na margem. S que, junto ao bote, havia um aviso assustador: Noseafogue!Obotesuporta,nomximo,85kg. Faa dedues, elabore hipteses e descubra: nessas

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    condies, de que maneira os trs podero atravessar o rio utilizando o bote? Escreva e explique sua resposta. (Professora Marlia, anotaes de pesquisa)

    Quando chegamos, os alunos do quinto ano j estavam organizados em duplas2 .

    M:Coloquem o nome e a srie. Bom hoje a gente vai fazer um problema...Qual o nome que est escrito no alto da folha?C: Desafio!M:Na verdade um desafio porque vocs vo ver que um problema...Todos os problemas a gente resolve com conta, com o algoritmo? Sim ou No? [Alguns alunos disseram sim, outros no]M:Alguma vez vocs j resolveram algum problema que no tenha algoritmo, ou conta pra gente fazer? [Alguns alunos disseram que sim]M: Ento, acontece s vezes, n? [Alguns responderam sim e outros falaram no] M: Vamos ver.... Ento a gente tem um problema aqui, que vocs vo discutir com a sua dupla. um problema de... na verdade de lgica, pra gente pensar como que a gente vai fazer esta situao-problema. Porque muitas vezes, o que que acontece: vocs sempre esto buscando que conta pra fazer... Ento, pra gente pensar um pouquinho que nem sempre a gente precisa, pra resolver algum problema, fazer uma conta, que o que vai acontecer aqui. Ento na dupla, vocs vo ler o problema. Eu vou passar pra ver a discusso de vocs na dupla, que importante; e, depois, a gente v se vem pra lousa pra gente colocar solues diferentes que apareceram a. Tudo bem?

    (Professora Marlia e alunos, transcrio de vdeo)

    Consideramos que a professora, em seu discurso, enfatizou a importncia das interaes entre os alunos nas duplas, valorizando o processo investigativo. Pro-curou desmistificar para os alunos uma crena relativa ao contrato didtico, segundo a qual os alunos entendem que, em Matemtica, resolve-se um problema efetuando operaes e que a tarefa dos mesmos encontrar uma operao adequada e aplic-la corretamente. Porm, antecipou para os alunos que este era um problema que no seria resolvido pelo algoritmo, prevendo algumas aes e estratgias que deveriam ser mobilizadas por eles. Em sua mediao, enquanto se esperava a ocorrncia da dialti-ca de Formulao, de acordo com Brousseau (2008), ela deveria evitar intervir sobre o contedo. Ainda nesse sentido, compreendemos que a professora classificou esse pro-blema como sendo de lgica para reforar a ideia de que no precisariam usar algo-ritmos para a resoluo. No final da aula, alegou estar em dvida se este seria mesmo um problema de lgica, pois no apresentava nenhum tipo de tabela, como so os problemas de lgica com os quais j trabalhou. A esse respeito, podemos recordar a resposta dada por ela segunda questo do questionrio, sobre a forma pela qual desenvolve este trabalho:

    [...] em algumas resolues os alunos sentam em dupla. Os alunos recebem uns 5 pro-blemas (convencional) e iniciam a resoluo. Chamo alguns alunos para colocarem suas resolues na lousa, discutimos cada uma delas. Tambm trabalhei com problemas de lgica. (Professora Marlia, questionrio)

    No confronto entre seu discurso e sua prtica, percebemos que compre-

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    ende o tipo de problema mencionado (lgica) como no-convencional, pelo fato de permitir estratgias diferenciadas de resoluo ao invs de operaes matemticas. Stancanelli (2001), de fato, classifica problemas de lgica de maneira an-loga a essa ideia. De outro modo, porm, podemos observar que o problema apre-sentado pressupe algum raciocnio numrico e emprega operaes de adio, o que indica que tais problemas no precisam representar opostos diametrais em relao aos chamados problemas numricos:

    Problemas de Lgica so problemas que fornecem uma proposta de resoluo cuja base no numrica, que exigem raciocnio dedutivo e propiciam uma experincia rica para o desenvolvimento de operaes de pensamento como previso e checagem, levantamento de hipteses, busca de suposies, anlise e classificao. (STANCANELLI, 2001, p. 114)

    Podemos observar, na sequncia de trechos extrados da aula3, que, alm da argumentao, foi exigida dos estudantes a operao ou clculo para validao da resposta. Ainda que nesta situao a resoluo do problema prescinda do algoritmo, nota-se a importncia dada a tal aspecto, possivelmente associada a uma exigncia formal dessa estratgia, comumente valorizada no mbito escolar.

    [Os alunos se evolveram com a leitura e resoluo do problema. A classe estava baru-lhenta, mas todos estavam envolvidos na discusso. A professora comeou a passar pelas duplas, perguntando como estavam resolvendo] 4M:J... Como vocs pensaram?A1: Primeiro, vo eles dois. A depois volta a menina. A depois a menina fica aqui e o pai vai. A depois volta o menino e pega a menina e os dois vo juntos.M: H ... e a? Faz a conta pra gente ver se isso mesmo...Ser que deu? Porque eles tm.... Tm, olha l, o quilo olha... V se d...Faz a conta... Deu setenta e cinco quilos?A2: Eles tm setenta e cinco quilos.M: Como voc pode comprovar isso, com conta ou escrevendo... Pensem a na resposta.[Os alunos somam quarenta quilos mais trinta e cinco quilos...Depois observou outra dupla que discutia e a chamou]A3: Professora, vem aqui. Professora, vai o filho e depois o pai?A4: Mas o bote vai estar do outro lado...A3: ...S se o pai for remando primeiro...A4: Ah, porque esse pai no faz um regime...? [riem]M: Oh, vamos l; calma, fala de novo, quem vai primeiro?A3: O pai.M: T. E a minha pergunta foi: e como que o barco vai voltar? [Silncio...] Pensem de novo...A3: Acho que j sei...Vai os dois meninos... A vai... volta um..A4: A um menino fica aqui - [aponta pro outro lado do rio] - a vai o pai, a volta a criana e volta... eeeeee [comemoraram] [A professora foi em outra dupla]M: Vamos l, como que ?A5: Vo os dois meninos, a volta um...M: Volta um qualquer? Pode ser um ou o outro?A5: . No... No sei..., volta um qualquer.M: Por que que pode ser um ou outro? A5: Por que cabe no bote, d pra segurar...M: Ah, t por causa do peso...A5: Ai volta o menino por exemplo, a vai o pai, ai volta a menina, a pega o menino e vai...

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    M: T bom...Legal! Agora tem que registrar. Vamos ver como vocs conseguem escrever isso... E o quilo, deu? Vocs olharam isso? Fizeram a conta dos quilos?A6: Primeiro vamos somar... [e comearam a fazer os clculos] [A professora foi em outra dupla, muitos j tinham resolvido mas estavam, a pedido dela, registrando a resposta no espao]M: Vocs terminaram? Explica pra mim como vocs pensaram?A6: Vamos explicar pra ela, vai. Vai as duas crianas, a volta a menina, a vai o pai depois, a volta o menino e pega o outro menino.M: E no passou o peso em nenhum momento?A6: No.M: Como vocs podem mostrar pra mim que no passou?A6: Porque 40 + 35 = 75, ento a volta 35 que da menina, a vai o pai que 80, sozinho, que cabe... depois volta o menininho que 40 e depois pega a menininha que 35 e vai, que d 75.[As duplas chegavam todas soluo e, como viram alguns explicando, queriam tambm explicar. A professora perguntou em uma dupla]M: Vocs chegaram concluso juntos?A7: Mais ou menos.M: Mais ou menos? Como que foi essa discusso.A8: foi junto.M: T bom vocs falaram pra mim, como que ? Fica a menina... e volta o menino? A8: No, fica o menino e volta a menina.M: E pode ser o contrrio ou no? Em vez de ficar o menino, fica a menina e vai o outro? D certo isso? Sim ou no?A8: Sim.M: Por que que daria?A8: Porque ficaria assim, parecido.M: Ento vamos l. Vocs olharam o peso dele?A7: Sim o pai oitenta, ela trinta e cinco e ele quarenta.M: Ento faz diferena voltar um ou outro, um primeiro ou o outro ou tanto faz?A7: Ah, tanto faz.M: Por que tanto faz? Que conta voc tem que fazer pra saber se tanto faz?A7:Quarenta mais trinta... e cinco...M: Mais? Pensa..., quem que vai junto na volta? Quanto o peso do pai?A8: Oitenta.M: Ento voc tem que contar o peso do pai mais...A8: Mas a no daria porque passaria...porque o pai tem oitenta, a passaria, caberia s mais cinco...M:Exatamente! Por isso que ele tem que ir...? [Os dois alunos responderam juntos:: Sozinho!]M:Muito bem. [Questionou outras duplas que deram a resposta] Mas no passa o peso?A8:No porque o pai oitenta e o pai j est l, e eles dois juntos d setenta e cinco quilos, da eles voltam... [Mais uma dupla anunciou a resposta correta. Ela fez o mesmo questionamento, perguntando se fazia diferena voltar um ou outro. A professora ouviu ainda mais duplas que queriam contar como resol-veram. A classe estava barulhenta pois os que j tinham resolvido, contado e registrado conversavam. Em todas as duplas que ouviu fez a mesma pergunta (se fazia diferena uma ou outra das crianas voltarem).

    (Professora Marlia e alunos, transcrio de vdeo)

    A anlise das mediaes da professora com as duplas nos leva a pensar que ela d espao para os alunos interagirem com seus pares e argumentarem, mas acaba por induzi-los ao que considera como validao da resposta, atitude que entra em desacordo com as concepes anunciadas em sua fala na resposta questo seis de nosso instrumento, a qual questiona os sujeitos sobre o momento em que se sentem mais vontade para trabalhar com resoluo de problemas na sala de aula:

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    No existe momento melhor ou no para se trabalhar com resoluo de problemas. Exis-tem as aulas para se trabalhar com resoluo de problemas. Tento deixar a aula de forma que os alunos proponham solues, explorem possibilidades e validem suas prprias con-cluses. (Professora Marlia, questionrio)

    Constatamos tambm em nossa anlise que a professora tinha pouco re-pertrio de questionamentos para esse problema: praticamente um nico foi feito aos alunos, sobre a ordem dos garotos na volta da travessia. A uma dupla, perguntou sobre como o barco voltaria, fazendo-os refletir sobre a resposta que tinham pro-duzido. Alm desses, somente a verificao pelo clculo foi sugerida. Isso nos leva a refletir sobre as palavras de Brousseau (2008) quando se refere seleo sensata dos problemas propostos que devem fazer, pela prpria dinmica, que o aluno evolua. O professor deve ter conscincia da escolha feita e avaliar o grau de dificuldade ou de desafio na proposta. Nesse caso, o desafio era insuficiente para sustentar questiona-mentos que fomentassem maiores reflexes. Alm disso, ao intervir dessa forma, a professora pe em questo todo o trabalho envidado pelos alunos na dialtica de validao. Ao antecipar etapas da institucionalizao, a professora cria prejuzos para a proposta de construo do conhecimento. Essa tentativa de obter justificativas formais indica a resistncia que a docente apresenta a um contrato didtico distinto daquele que prev respostas em certo formato para as questes propostas. Finalmente, ao fornecer pistas e apontar antecipaes por meio de dicas em sua fala com os estudantes, incorre no efeito do contrato didtico denominado Topaze5 (BROUSSEAU, 2008), ou seja, no momento em que o aluno encontra alguma dificuldade, o professor tende a criar condies para que o aluno supere esta dificuldade e avance, esquecendo-se, porm, do engajamento que deveria ter o discente nesse processo. Nesse caso, ento,

    A resposta que o aluno deve dar previamente determinada. O professor escolhe as per-guntas que a podem provocar. claro que os conhecimentos necessrios para a produo dessas respostas mudam de significao. Fazendo perguntas cada vez mais fceis, tenta obter o mximo de significao do mximo de alunos. (BROUSSEAU, 2008, p. 80)

    Retomamos nossa observao na problematizao relatada no incio deste artigo, sobre a dificuldade, para alguns professores, na organizao e no planejamento de aulas em que se priorizem momentos de discusso de conceitos, argumentao e confrontao sem necessariamente conduzir os alunos ao acerto. Como todas as duplas j tinham respondido, no havia mais o que contestar. A professora procurou-nos e disse:

    M: Acho que j deu... Esse problema deu pista que foi fcil, d pra procurar outros mais difceis... Eu ia fazer o Painel de Soluo mas no tem mais sentido.- [Optou por fazer um fechamento da aula focando na forma em como registraram as concluses]M: Pessoal, ateno [disse para a classe chamando a ateno de todos que iam parando de conversar].- Eu fui passando pra ver as resolues e percebi que todos vocs chegaram soluo do problema. S que cada um registrou, ou escreveu, lgico, da sua maneira. A eu queria que vocs fossem me falando como cada um registrou para eu ir escrevendo na lousa. A vocs vo perguntar: pra apagar o que eu fiz, pra

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    copiar o que voc fez na lousa? No. Esse que eu vou por na lousa, vou escrever num papel pra gente ter depois a resposta de todos vocs; a gente vai tentar montar uma resposta comum, da classe. Ento no apaguem nada do que vocs escreveram [...].

    (Professora Marlia, transcrio de vdeo)

    Os alunos foram descrevendo os passos da resoluo, enquanto a professora escrevia na lousa. Alguns solicitaram algumas pequenas mudanas, apenas troca de palavras. Nesse registro, no houve nenhuma meno num-rica, apenas a sequncia de aes realizadas pelas personagens. Todavia, oral-mente, na elaborao do texto coletivo, retomou-se a pergunta sobre a ordem das crianas na volta do bote e os clculos com os pesos. A classe repetia em coro, j muito dispersa. Observamos que a professora teve a percepo de que o Painel de Solues 6 era desnecessrio e refletiu sobre o grau de dificuldade dessa e de uma prxima atividade. Quando ia encerrar, um aluno levantou a mo dizendo que esse problema tinha sido fcil porque j haviam feito um bem mais difcil na aula de computao. A professora novamente deu voz aos alunos:

    M: Ento, o Paulo falou que na aula de computao vocs fizeram um problema de travessia. Quem disse que foi mais difcil que esse?A9: Era mais difcil porque tinha um tempo pra fazer.M:Ah, tinha um tempo... E tinha essa questo dos quilos?C:No.M:Qual era o problema dessa travessia?[Muitos alunos falavam. Todos queriam contar sobre personagens e sobre o tempo para fazer]M: Agora eu sei porque vocs acharam este to fcil, porque j fizeram um mais difcil...

    (Professora Marlia e alunos, transcrio de vdeo)

    Nesse encerramento, notamos mais uma vez a valorizao, por essa pro-fessora, dos processos de raciocnio e pensamento dos alunos. A docente oferece tambm uma discusso coletiva sobre o texto final, lanando a ideia de que no de-vem apagar o seu, mas compar-lo. No final, ento, a dialtica de institucionalizao conseguiu recuperar alguns elementos importantes do trabalho investigativo. No podemos deixar de mencionar uma dificuldade na gesto do trabalho didtico por essa professora: Brousseau (2008) indica que a estruturao de situa-es ricas, do ponto de vista da atividade cognitiva dos alunos, depende, em grande parte, da seleo de bons problemas. Tal seleo foi prejudicada aqui, uma vez que aspectos caractersticos do problema como estruturador de um milieu antagonista no existiram: os alunos j haviam trabalhado com problemas semelhantes, em con-dies ainda mais adversas. Dessa forma, pudemos inferir dessa situao que, para este sujeito, faltou clareza quanto ao que ensinar, o que acaba prejudicando a intencionalidade didtica essencial ao milieu, tornando-o insuficiente para avivar no aluno os conhecimentos pretendidos. Atentamos para o fato de que a professora, apesar de incentivar nos estudantes, em seu discurso, movimentos de busca pelo conhecimento, acaba carac-

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    terizando sua atuao estabelecendo um contrato didtico prescritivo: para todos, indica a operao numrica como chave para a resoluo do problema.

    A prtica da professora Ana: uma aula no 4 ano A professora iniciou a aula comentando sobre a prova que haviam feito recentemente e na qual alguns alunos haviam tirado notas baixas. Enfatizou, com veemncia, que muitos alunos no perceberam que todos os problemas colocados como itens da prova que fizeram, e repetiu TODOS, tinham um modelo similar no caderno. Acrescentou tambm que todos envolviam mais de uma operao. De-pois disso, iniciou a aula, anunciando que os alunos deveriam resolver um problema, cujo enunciado era o seguinte:

    Uma fbrica funciona em turnos e, em cada um deles h uma quantidade de funcionrios. Na quinta-feira da semana passada, amanheceu e j havia 197 pessoas trabalhando. s 8h entraram 342 pessoas e saram 183. s 14h entraram 255 e saram 298. s 20h entraram 184 pessoas e saram 362. Quantas pessoas ficaram trabalhando na fbrica aps as 20h? (Professora Ana, relatrio de pesquisa)

    Em seguida, comeou a andar por entre as fileiras, observando as resolues7 .

    A1: Professora, eu lembrei do problema do nibus!PA: Lembrou?A2: Eu tambm lembrei do problema do nibus.PA: Lembrou do nibus tambm? Na verdade mudaram os dados mas bem parecido...

    (Professora Ana e alunos, transcrio de vdeo)

    Podemos perceber, pelo discurso da professora Ana com os alunos ini-cialmente, que ela anuncia a existncia de um modelo de resoluo de problemas que pode ser aplicado em outros do mesmo tipo. Ao ler o problema, alguns alunos imediatamente estabeleceram essa conexo. A respeito da problematizao inicial da atividade, como um modelo desafiador, parece que encontramos mais um exerccio de aplicao de contedo ou estratgias, e no realmente um problema. Destacamos as ideias de English e Sriraman (2010) que citam esta como uma das abordagens existentes na suposta resoluo de problemas: conceitos e procedi-mentos necessrios devem ser ensinados em primeiro lugar para, logo depois, serem aplicados por meio da resoluo de problemas que contam uma histria, os quais normalmente no envolvem os alunos numa verdadeira resoluo de problemas. Pelo prisma de Brousseau (2008), no temos a devoluo de um problema com o qual os alunos interajam ou sintam-se intrigados. Dessa forma, como j resol-veram um problema similar, os alunos devem utilizar-se do repertrio de heursticas e estratgias adquirido anteriormente para esse fim. Neste caso podemos identificar a resoluo de problemas como independente dos conceitos matemticos ensinados e no como uma via para trazer novos conhecimentos. Ainda de acordo com Brous-seau (2008), essa prtica pode incidir em um dos efeitos do contrato didtico, deno-minado deslize metacognitivo, ou seja, o professor concebe uma tcnica til para

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    resolver um problema e a considera como o verdadeiro objeto de estudo, perdendo de vista o real conhecimento a se desenvolver, no caso, a habilidade em resolver problemas, que fica comprometida nessa atividade para quem lembrar do modelo do nibus. No questionrio essa professora diz que tudo pode ser um problema em Matemtica, depende da forma como colocado para o resolvedor. Alguns exerc-cios so desafiadores e mobilizam o aluno, outros so importantes para a sistemati-zao (Professora Ana, questionrio). Assim, acreditamos que, para ela, como para muitos professores, a abordagem sobre resoluo de problemas ainda no esteja associada concepo de utiliz-la como um valoroso meio de desenvolvimento de novos conceitos matemticos. Outro ponto que se destaca nesta aula, e que se conjuga com nossa anlise das respostas ao questionrio, a falta de um processo investigativo compartilhado. Os alunos leem e resolvem o problema sozinhos e as discusses ocorrem depois. Ao unirmos as concepes explicitadas pela professora e sua prtica, podemos ter pistas de que trabalhar com a interao entre os alunos e organizar o milieu de forma a pro-mover e mediar discusses durante o processo de resoluo pode ser uma viso a ser desenvolvida com os professores dessa escola. Percebemos que, possivelmente, essa professora sinta-se mais vontade para trabalhar com o que chama de resoluo de problemas na sala de aula, de modo a realizar intervenes individualmente. Outra resposta sua indica esse percurso: quando h tempo para propor a atividade e ob-servar o aluno resolvendo-a sozinho, descubro como cada um pensa, quais recursos utiliza para resolver as atividades, como faz para resolver o problema (Professora Ana, questionrio). Enquanto os alunos resolviam o problema, a professora foi passando e fazendo algumas intervenes:

    PA: Voc est fazendo aqui mas tem um monte de coisa pra c ... olha s... Voc acha que esse caderno vai dar prazer em estudar? Confuso, n, amigo?[Para outro aluno]PA: Deixa eu ver como voc respondeu. Voc leu o problema direitinho?O aluno afirmou com a cabea que sim.PA: Leia de novo.[Para outro aluno]PA: No se pe a resposta logo assim... tem que primeiro calcular! [Observando outro aluno na carteira que havia feito uma operao e depois parou]PA: Continua fazendo...Sabe qual o problema? Voc fica pensando l na frente e a voc perde todo o resto... faz devagar, vai de parte em parte. Da voc vai ver que chega ao resultado...[Continuou andando pelas carteiras vendo os procedimentos de resoluo. Parou em um aluno]PA: Deixa eu ver como voc fez? Ah voc juntou uma conta na outra isso?...A3: No pode?PA: Eu que te pergunto: pode?A3: Eu fiz assim mas ...no sei..PA: Voc acha que pode as contas juntas mas voc no sabe se pode... Ah......[Para outro aluno]PA:Precisa apagar esse R (de resposta) e resposta vem s no final do problema... seno voc se atrapalha...

    (Professora Ana e alunos, transcrio de vdeo)

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    Nota-se que a professora est atenta aos processos de resoluo, porm, as intervenes acontecem na esfera individual. No identificamos a abertura para as interaes entre os estudantes, oportunizando reflexo sobre seus pensamentos e procedimentos. A individualidade impede que outros reflitam, tambm, a respei-to das observaes feitas por elementos do grupo, mobilizando conhecimentos e estabelecendo relaes. Veremos que esse momento acontece no momento de dis-cusses coletivas promovido no chamado painel de solues, porm, aps os alunos terem (ou no) resolvido o problema, o que pode desmotiv-los, principalmente aqueles que no conseguem chegar a uma resposta. Do ponto de vista da TSD, essa ausncia de discusses indica que no ocorreram trnsitos nas dialticas adidticas, ou seja, no existiram momentos de ao, formulao e validao compartilhados. Aps alguns minutos, a professora anunciou que iria pedir a gentileza de alguns alunos colocarem suas resolues na lousa. Muitos alunos levantaram a mo e pediram para ir, mas ela comeou a colocar alguns nomes na lousa e dividir os espaos. Voltou carteira de alguns alunos para confirmar se seriam mesmo esses alunos que queria chamar. Uns alunos comearam a reclamar que era injustia, pois alguns j tinham ido lousa no problema do nibus. A professora interviu:

    PA: No injustia. O Ricardo sempre participa da aula e voc s vezes no me escuta. Talvez eu repita algumas pessoas. [Escreveu o nome na lousa de quem iria; Julia, Debora, Lucas Raul, Carol]PA: Eu pedi para alguns alunos que viessem aqui colocar a resoluo exatamente do jeito que estava no caderno, t...? A gente vai dar uma observada como cada colega pensou... tem outros... outros poderiam vir... que eu quis escolher diferentes resolues... t bom? No quer dizer que os outros esto certos ou errados... [Enquanto os alunos escreviam na lousa a professora foi passando entre carteiras. Falou para um aluno que no terminou]PA: Falei pra voc reler mais de trs vezes... [E para a pesquisadora: No releu nem uma vez] [Para outro aluno]PA: Vamos Gabriel, voc vai esperar e copiar da lousa? No consigo entender seus nmeros...[Para um aluno que estava na lousa]PA: Pode pr do jeito que voc ps, s a letra A t?[Para classe]PA: No porque a gente vai pra lousa que tem que modificar alguma coisa no...

    (Professora Ana e alunos, transcrio de vdeo)

    Conquanto as falas dos alunos que eventualmente ocorriam ao longo das interaes revelassem a incompreenso pelas escolhas da professora, percebemos que ela contemplou propositadamente as resolues sobre as quais gostaria de pro-mover o debate. Ela explica isso aos alunos e procura demov-los da ideia de pensar somente no resultado correto em funo de pensar, neste momento, nos processos desenvolvidos. Essa ao condiz com sua descrio de quais recursos ou posturas se utiliza quando da resoluo de problemas: procuro valorizar qualquer empenho e no coloco o sinal de X (errado) nos exerccios; peo aos alunos que o revejam e verifiquem onde est o erro (Professora Ana, questionrio). Nas falas subsequentes, encontramos tambm marcas de seu discurso na prtica, configurando, novamente a falta da interao nas dialticas de ao e formu-lao e a concepo da professora de que a dificuldade dos alunos na resoluo de

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    problemas seria vinculada aos processos de leitura. Dessa forma, existe um processo de orientao, porm sem resultado, pois no acontece efetivamente do ponto de vista da mediao: se o aluno no compreende, na leitura individual, um texto to-talmente compatvel com as competncias leitoras da faixa etria, provavelmente ler novamente, ou reler trs vezes no trar melhores resultados. Todavia, esse um dos mecanismos anunciados pela professora em seu discurso: [...] e, o mais importante, necessrio que eles leiam as atividades e consigam entender o que pedido em cada uma delas. Assim, quando um aluno diz logo que no entendeu, eu digo a ele para ler novamente at que perceba o que realmente no entendeu e o que entendeu (Professora Ana, questionrio). Enquanto os alunos que foram lousa colocavam suas resolues, a pro-fessora fazia algumas intervenes na organizao, no traado dos nmeros, sempre enfatizando os comentrios com toda a turma. Os alunos comearam a comparar seus resultados. Alguns diziam: - O meu est igual ao da. Um deles disse: - Achei o meu erro.... Ocorre um burburinho, alguns levantaram para ver melhor a lousa ou para ver o de algum colega que comen-tou estar igual ao de algum da lousa.

    PA: Quem j olhou, senta... que a gente vai discutir um pouquinho...A gente vai conversar agora porque eu t vendo que cada resoluo at agora deu uma resposta diferente...A4: Menos o do Raul, da Malu e do Lucas...PA: A gente vai verificar porque o seu e o da Malu esto iguais ao do Lucas e o do Guga no... deixa s os colegas terminarem e a gente j vai conversar.A4: . [Observando seu caderno e a resoluo na lousa atentamente]; o meu est igual ao da Carol [que estava feito na lousa]PA: Quarto ano... vamos dar uma olhada nas resolues pra gente conversar... D uma olhada no que os amigos fizeram e nos resultados encontrados... A gente j fala...

    (Professora Ana e alunos, transcrio de vdeo)

    luz desse trecho, podemos perceber o quo estimulante poderia ter sido uma discusso feita em pequenos grupos durante a resoluo do problema a partir dos movimentos dialticos de ao, formulao e validao. Alunos que estavam em silncio durante a aula, aqueles que j tinham terminado h algum tempo ou aqueles que no tinham conseguido resolver, de repente, interessaram-se por ver os pro-cedimentos dos colegas, compar-los e discuti-los. As propostas expostas na lousa estimularam os estudantes a olhar novamente as suas respostas e as dos colegas. Mais interessante do que resultados corretos ou o emprego do procedimento utilizado no problema do nibus, seria a discusso, o desenvolvimento das argumentaes, enfim, de acordo com Brousseau (2008), toda a organizao do milieu. Barth (1996) afirma que a construo do saber feita pelo indivduo, no entanto, decorre tambm de interaes sociais e em contextos exteriores prpria pessoa, influenciadas por aspectos inerentes aos indivduos e por condies polticas, sociais e culturais. Essa premissa nos estimula a valorizar a comunicao e a negocia-o em sala de aula. A mediao do saber demanda considerar a aprendizagem nas suas dimenses cognitiva, afetiva e social. preciso que estejamos atentos tanto para

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    a quantidade como para a qualidade das interaes aluno-aluno, aluno-professor e professor-professor, cabendo a este ltimo o papel decisivo na direo e na natureza do discurso que se deve instaurar a fim de promover um ambiente motivador, de-safiador e de questionamento constante em que no existam condicionamentos de espao ou de tempo. A seguir traremos grande parte da discusso desenvolvida durante o Painel de Solues, para que se compreendam melhor a lgica, o desencadeamento e o sig-nificado das aes contextualmente. Em cada fragmento expressivo de acordo com nossa temtica, incluiremos algumas consideraes.

    PA: Pessoal: Ns temos a cinco resolues: Eu peguei aqui o Raul comentando que um est muito igual ao outro mas t diferente...Uma nica diferena... Voc pode falar mais alto? [Ele repetiu, mas foi baixo ainda. A professora repetiu]PA: Ah, o Lucas fez 6 contas e voc fez 3. Mas o resultado foi igual? [Ele e outros responderam]C: Foi.PA: Hum...Por que ser?A5: A resoluo.PA: Por que ser?A5: Por causa que... por que a resoluo foi diferente...o raciocnio...PA: A resoluo foi diferente mas porque ser que o resultado foi igual?[Algum disse Eu sei! Outros falavam junto] Espera a que eu no estou entendendo o que vocs esto falando... Olhando na do Lucas... ele fez 3 adies e 3 subtraes...Olhando na sua... tem 2 adies e uma subtrao. [Um aluno levantou a mo, a professora disse:] Espera... segura o que voc est pensando um pouquinho...Giovana:A6: [Giovana]: Ele somou todos os que iam entrar, e tambm fez adio dos que saram e pegou os resultados dos que saram menos o resultado dos que entraram... A7: O caminho foi diferente!PA: Sim os, caminhos foram diferentes...Voc disse que o Raul somou todos que entraram na fbrica, somou todos que saram pegou os dois resultados e subtraiu e descobriu o qu?Alunos (em coro) 235...PA: Que o que?C: A respostaPA: A resposta que o que? Os trabalhadores...que...C: ...Que ficaram na fbrica depois das 20 horas...PA: T. Vocs entenderam o que a Giovana falou? Foi mais ou menos o que o Raul falou. Ele diminuiu as contas... mas ele fez a mesma coisa que o Lucas.A8: O caminho foi diferente.PA: O caminho foi diferente? Explica um pouco melhor essa ideia.A: O Raul pensou de um jeito diferente mas os dois jeitos podem estar certos. [A professora repetiu a frase do aluno]PA: Ser que esto certos? Vamos verificar? Fala Fbio... Espera um pouquinho [para a classe que fala-va junto] ...seno eu no escuto o colega. Fala alto. [O aluno falou em tom muito baixo. Parece ape-nas ter retomado a fala anterior porque ela apenas repetiu: sim uniu duas operaes.] O que o Lucas fez? Ele fez passo a passo... de cada informao que o problema apresentou. Ento o problema dizia l... espera que eu no esqueci os outros no espera a...Vamos l...

    (Professora Ana e alunos, transcrio de vdeo)

    Nessa parte da discusso, bem como em outras, podemos perceber que a professora procura administrar as respostas redirecionando-as como novas pergun-tas aos alunos, possibilitando aos alunos a verbalizao sobre concordncias ou dis-

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    cordncias. Os comentrios dos alunos, de um modo geral, so reaproveitados e uti-lizados para reencaminhar a discusso, e o uso de diferentes caminhos ou estratgias enfatizado em seu discurso. So oferecidos momentos para que outras sugestes sejam apresentadas, ou hipteses levantadas; porm, o tempo dado para isso curto e insuficiente para proporcionar uma reflexo: essa atitude denota certa ansiedade em esclarecer qual a resposta certa. Do ponto de vista do contrato didtico, essa necessidade de que a resposta correta aparea logo indica a ocorrncia de um efeito ligado ao controle da incerteza, ou seja, o chamado efeito Topaze, medida que se tenta garantir o acerto da resposta independentemente do engajamento do estudante na situao. A professora releu o problema e foi identificando os dados nas operaes feitas na lousa.

    PA: Se comparar mais uma com o Raul...pelo que eu observei aqui da Carol, tem alguma coisa pareci-da...pelo menos a quantidade de contas a mesma... Quem pode comentar um pouquinho: semelhanas e diferenas da resoluo?PA: John voc falou em caminhos diferentes...So diferentes os caminhos da Carol e do Lucas?A7 Mais ou menos.PA: Mais ou menos?A7: Ah... Pera a...PA: Pera a que ele est pensando e calculando... Fala Fbio, o que voc queria falar... a mesma coisa? Mas agora voc me explica: Se a mesma coisa porque que no do Lucas eu tenho 135 e no da Carol deu 235?A8: Deu 100 a mais.PA: Espera...Deu 100 a mais. Paula: [A aluna falou baixo, a professora repetiu] A Carol esqueceu de cortar o negocinho e passar o nmero pro lado...Matematicamente eu no t entendendo...A10: Eu sei!PA: Quem pode ajudar a Paula na ideia que ela t trazendo... Mariana: [A aluna falou baixo a profes-sora repetiu] Dar para o outro quando subtrai? Qual a palavra certa para isso? Giovana:A11: Destrocar ..PA: Destrocar! Onde? Qual conta?(Professora Ana e alunos, transcrio de vdeo)

    Observamos nesse trecho que o discurso da professora busca propiciar e enfatizar a utilizao de termos e da linguagem matemtica corretos, apostando em sua utilizao e na correo dos alunos. Procura estabelecer a relao entre a lingua-gem informal do mundo da criana e a terminologia formal da matemtica. Para Santos (2005, p. 118), a ao e os discursos praticados pelo professor, quando en-sina Matemtica, decorrem do seu conhecimento e o modo de ver a Matemtica, de como enxerga e escuta o aluno. Para o autor h aspectos para os quais o professor deve dar ateno, como a manifestao de diferentes formas de comunicao e os diversos significados de que se revestem as noes matemticas na sala de aula. Por exemplo, especial ateno deve ser dada s dificuldades observadas entre alunos do fundamental decorrentes de conflitos entre linguagem corrente e linguagem mate-mtica, ou do significado que os alunos podem intuitivamente atribuir a determina-do conceito.

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    A12: Eu..456... mais... PA: No.. qual? Guilherme? 539 menos 183? Vamos ver se realmente a Carol se confundiu aqui? 9 menos 3, seis. Trs menos oito... no d .. O que eu preciso fazer? A Carol, na verdade... ela no cortou...eu no entendi o que ela fez aqui... Eu no en-tendi o seu nmero aqui se 6. Se 2 o que que ?.. Voc esqueceu de destrocar mas o que voc fez aqui? A gente j descobriu onde t o erro mas a gente precisa entender o que que voc pensou. Lembra o que eu disse...A13: Professora!PA: Escuta. Lembra o que eu disse? Que mesmo errando, a gente tem um pensamento matemtico grande? Lembra? Eu preciso saber o que voc pensou pra chegar aqui no 4. Voc fez 5 menos 1 mas que nmeros so esses aqui ? Que eu no t entendendo. [A aluna ficou olhando para sua resoluo, alguns alunos querendo falar] Deixa ver se ela lembra.PA: Organizar pra no perder qual clculo estava fazendo? [repetiu a fala da aluna]. Joo voc consegue explicar... porque eu me perdi... [Joo foi lousa e explicou] Ah agora entendi... Entendi... Primeira conta, segunda conta...T vendo como impor-tante.... A professora no entendeu... eu pensei que fazia parte da conta que voc fez... Ah... ento no tem erro aqui. No tem erro aqui neste nmero que eu estava olhando e no estava entendendo... Ela descobriu... Ela esqueceu de destrocar... (errou na sub-trao) Descobrimos onde est a falha? C: SimPA: Concorda Carol? E a mudou porque ficou uma centena a mais nesta conta...O resultado ficou com uma centena a mais. Interessante. Descobrimos. Ento a Carol pensou como o Lucas mas se confundiu na execuo das contas. E a Dbora? Como que a Debora fez?[Alguns quiseram falar mas a professora pediu]Espera ela falar. Dbora o que voc somou aqui?A14: (Debora) Todos que estavam entrando. [A professora foi conferir, lendo o pro-blema]PA: Olhando no problema eu tinha: 197 na fbrica, 342 que entraram...Duzen...[deu uma parada; alguns alunos fizeram Ahaaaaa...] Todos que entraram, voc diz?A14 : No, que estavam na fbrica [a professora repetiu a fala que foi baixa]: Ah os que estavam na fbrica...Os que estavam... e aqui os que saram...Olha s um pouqui-nho o problema. Vou ler pra voc uma frase: pera a que eu vou ler uma frase pra ela: ... ns sabemos que tinha 197... s 8 horas entraram 342 pessoas e saram 183...Voc colocou que essas 183 [era mais, gritou um aluno] estavam na fbrica, elas estavam?C: NoooPA: Deixa a Debora falar. [Mas j foi emendando] Olha o que voc pensou. Elas es-tavam mas voc no registrou que elas saram. Porque para sair da fbrica, onde elas tinham que estar?C: Na sada... (risos.). Na fbrica! (risos)PA: O pensamento da Debora foi bacana... ela falou o que ela pensou e t certo... se a pessoa saiu da fbrica porque ela estava dentro da fbrica...Olha o pensamento a... esse pensamento no est errado. Pra sair ela precisava estar dentro. S que... eu no posso contar que ela FICOU NA FBRICA; usar o verbo estavam est certo; mas na verdade a DIFERENA para o Raul que ele somou quem entrou na fbrica e realmente ficou depois das 8. S quem entrou realmente. Os 183 saram. Tanto que voc Debora, colocou o 183 aqui... e eles realmente saram s que eles saram mas eles continuaram l. Percebeu onde d a diferena? Que mais... Oh 298 que saiu tambm voc colocou como entrou na fbrica. Mas voc no pensou FICOU ... Olha onde t o certo no pensamento dela... Ela pensou ESTAVAM NA FBRICA. E estavam na fbrica?PA: Simmmm, porque para sair da fbrica, precisa estar dentro. Perceberam? O pen-

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    samento aqui t diferente. Ela no tinha que pensar em ESTAVAM tinha que ter pensado em quem FICOU. Percebeu a falha? Ela pensou certo, mas usou esse pensa-mento diferente um pouquinho...

    (Professora Ana e alunos, transcrio de udio) Na sequncia que se desenrolou, gostaramos de salientar dois aspectos que se relacionam com nosso estudo. Um deles, j assegurado pela professora em suas respostas e bastante presente em sua prtica, a valorizao do pensamento do alu-no. H, em sua aula, perguntas que fazem o aluno pensar sobre o motivo do erro, porm, observamos que h uma preocupao constante em esclarecer os erros e ressaltar o procedimento certo: em funo disso, como j dissemos, o tempo para o aluno pensar no motivo do erro, para reelaborar saberes e realizar a resoluo de forma correta, apropriando-se do conhecimento e do objeto de trabalho , muitas vezes, insuficiente. Em muitas passagens da discusso ficou evidente a antecipao da professora s respostas de vrios alunos, no dando voz a estes em certas oca-sies. A fala organizada da plenria fica na mo da professora o tempo todo, assim como as concluses. Os alunos poderiam falar mais. Ao encontro dessas duas observaes o empenho em valorizar o pensa-mento do aluno e a preocupao com a exposio de modelos corretos pudemos identificar, com base em nosso estudo terico, a incidncia de um efeito do contrato didtico denominado por Brousseau (2008) de Efeito Jourdain ou mal-entendido fundamental. Esse efeito caracteriza-se quando um comportamento comum do aluno visto pelo professor como uma manifestao de saber. Alguns dos erros que surgiram na discusso, como o da interpretao do texto do problema, por exemplo, com relao a pessoas que ficaram ou estavam na fbrica foi valorizado como pen-samento matemtico, quando na verdade isso no ocorreu. O erro na destroca na subtrao tambm foi minimizado pela professora: - Ento, no tem erro aqui. A forma de colocar a tarefa e de relacion-la com modelos preexistentes, alm de descaracterizar a atividade em relao s definies de problema adotadas neste estudo, prejudica a possibilidade indicada por Brousseau (2008) ao mencionar que, no mbito de uma situao didtica, deve o sujeito aprender por meio de retro-aes do milieu antagonista. Isso no aconteceu: tratava-se de um milieu aliado, pois havia referncias seguras e estabelecidas nas condies do problema. Alm disso, reiteramos o fato de percebermos, em alguns dos sujeitos, uma postura resistente ao erro e ao fracasso dos alunos, o que, muitas vezes, parece des-regular suas mediaes nas discusses.

    CONSIDERAES FINAIS A observao (e respectiva anlise) das duas aulas aqui apresentadas per-mite indicar uma sntese, com destaque para os principais aspectos que foram alvo de nossa investigao. No geral, as ideias que emergiram da prtica, principalmente, e da fala dos sujeitos, subsidiariamente, destacam que as professoras reconhecem a importncia da resoluo de problemas como mtodo de ensino. Consideram-na

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    importante no processo educativo, como maneira de incentivar os alunos na busca e construo de novos conhecimentos alm de propiciar o desenvolvimento de ferra-mentas para um trabalho com autonomia, permitindo um avano nas competncias que favorecem processos de investigao, como argumentar, elaborar e confrontar hipteses. Constatamos que a maioria dos sujeitos destacou, em alguma de suas res-postas, a importncia de problematizar e propor desafios nas aulas de matemtica. Contudo, em seu discurso, todas as professoras localizam em suas aulas momentos especficos para a realizao desse trabalho, previstos no planejamento. Nessas aulas, pudemos perceber que se preocupam em ensinar os alunos a resolverem problemas, tendo como foco o uso de heursticas, estratgias e outras ferramentas. Dessa forma, percebemos que, de maneira geral, entendem como dificuldade a no aplicabilidade imediata dos contedos aprendidos nas resolues, o que nos leva a pensar que acre-ditam na utilizao da resoluo de problemas depois da formalizao dos conceitos, como abordagem instituda implicitamente em sua prtica, e no para introduo dos mesmos. Portanto, nesse aspecto h um descompasso entre seu discurso e a prtica na sala de aula. Andrade (1998) e Onuchic (1999) enfatizam que, de modo geral, o pro-fessor, ao atuar no ensino de matemtica, no tem clareza da distino entre resoluo de problemas tratada como metodologia de ensino ou como aplicao de algoritmos e procedimentos. Outro ponto em comum que identificamos, tanto na fala como na prtica dessas professoras, que atribuem as dificuldades apresentadas pelos estudantes s ques-tes de leitura e entendimento, e no os compreendem como parte do processo in-vestigativo que necessita da mediao do professor, muitas vezes, para estimular ou desbloquear possveis entraves. Com isso, notamos, ainda, nas observaes de aula, um repertrio restrito de perguntas no momento em que o professor coloca o aluno em uma situao adidtica e este se depara com algum bloqueio no desenvolvimento de seu raciocnio. Tanto em seu discurso, como na prtica, a atitude em que investem limita-se solicitao de releitura. Uma perspectiva que emergiu nas respostas, e que depois pudemos verificar tambm nas aulas, a de que a interao predominante a que ocorre entre o professor e o aluno; o processo investigativo solitrio e o professor pouco fala sobre sua atua-o em mediar nessa instncia; todos citaram o painel de solues, ou plenria, como espao para que os alunos argumentassem, formulassem hipteses e expusessem ra-ciocnios, identificando-o, obviamente sem nome-lo nesses termos, como a dialtica da institucionalizao (BROUSSEAU, 2008). Observamos, tanto no discurso como na prtica, que h uma preocupao em garantir as aprendizagens nessa instncia, e a rees-truturao do conhecimento fica exclusivamente na mo do professor. Outra conside-rao que gostaramos de tecer a de que, conquanto as respostas a uma das questes fundamentais de nosso questionrio (Para voc, o que um problema?) trouxessem uma gama bastante diversificada de definies, a maioria delas apresentou o significado de desafio, de algo de que inicialmente se desconhece a resposta, na prtica, o que os professores trazem para os alunos, na maioria das vezes, so exerccios de aplicao.

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    As observaes das aulas, de um modo geral, trouxeram um panorama so-bre a prtica da resoluo de problemas nos anos iniciais dessa instituio e fizeram emergir alguns aspectos que condizem com nossos focos de observao na pro-blemtica investigada, os quais gostaramos de salientar, por agregarem sentido s questes geradoras desse estudo. Deste modo, destacamos nas aulas dos sujeitos desta pesquisa:

    A apresentao de problemas aos alunos e no a devoluo dos mesmos; A escolha de exerccios pelo professor, no lugar de problemas; Os problemas propostos foram resolvidos por operaes ou algoritmos; A ocorrncia, nas aulas observadas, de um processo de resoluo solit-

    ria, diferente da proposta de Brousseu (2008), que indica a importncia das interaes investigativas. Apesar de estarem organizados em duplas, muitos alunos resolveram o problema sem trocar informaes com os parceiros; em alguns casos, o processo de realizao foi individual e si-lencioso;

    O uso de painis de solues no final do processo de resoluo; Postura do professor sempre pronta a valorizar o pensamento do aluno,

    mesmo quando tal pensamento contm erros; Ausncia do papel mediador do professor durante o processo investigati-

    vo; seu protagonismo nessa situao ocorre na plenria final; Correo coletiva e exposio de resultados em alguns momentos no

    painel de solues; h um direcionamento na discusso, por parte do professor, no sentido de encontrar e corrigir os erros. A expectativa pelas respostas certas notria e o foco em tratar o erro fica mais em evidncia na proposta do que a priorizao de discusses e confronta-es pela turma;

    Elementos reveladores da prevalncia de um contrato didtico de carter prescritivo, ou seja, baseado em instrues procedimentais explcitas ou implcitas em relao s tarefas e a ocorrncia de alguns de seus efeitos;

    No fechamento da aula, intuitivamente, as posturas metodolgicas das professoras aproximam-se do modelo da dialtica de institucionalizao, porm, nem sempre ocorre a construo de novos significados.

    O trabalho tambm destacou algumas finalidades, que acabaram por cons-tituir-se no decurso da investigao pela coexistncia de aspectos relacionados com a temtica e por serem inerentes s situaes observadas:

    Observar e analisar as eventuais situaes didticas construdas pelos sujeitos (os professores polivalentes dos anos iniciais) nas quais so identificadas as interaes estabelecidas entre o professor, o aluno e o saber matemtico na perspectiva da resoluo de problemas;

    Verificar se os professores conseguem reconhecer, em sua prtica

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    a distino entre problemas e exerccios e como ocorrem as inte-raes com os alunos em cada caso.

    No que diz respeito s concepes e crenas dos professores em relao re-soluo de problemas, h uma amplitude de ideias e variveis que se constituram his-toricamente. Nos dados analisados neste artigo, pudemos observar que as professoras compreendem o conceito de problema relacionado a situaes de desafio. Em seu discurso, mencionam um trabalho nas aulas de matemtica permeado pela resoluo de proble-mas, mas, na prtica, a maioria entende que h uma aula, dentro do currculo, especfica para realizar este trabalho, o que revela, ainda, dubiedade quanto a consider-lo metodo-logia ou contedo a ser trabalhado. Pautando nossas observaes a partir da teoria das situaes didticas, pudemos concluir tambm que os professores, apesar de entenderem problemas como desafios, encontram dificuldades na escolha dos mesmos, selecionando, na maioria das vezes, exer-ccios de aplicao de contedos e conceitos, o que dificulta o procedimento de devolu-o, como definido por Brousseau (2008), medida que procedimentos dessa natureza (exerccios) dificilmente se prestam ao trabalho investigativo autnomo. Sobre isso, alis, notamos que os professores desta investigao ainda no percebem nitidamente seu pa-pel mediador no processo investigativo; por consequncia, interaes e parcerias quase no ocorrem, o que leva os alunos, na maioria das vezes, a trabalharem sozinhos; as intervenes vm somente no momento da validao, no entanto, com certa pressa em institucionalizar os conhecimentos: as discusses so privilegiadas no momento do Painel de Solues e o erro mais corrigido do que explorado. Os sujeitos desta pesquisa tendem a valorizar o pensamento dos estudantes, po-rm notvel a dimenso paradoxal, vivenciada por eles, com relao ao contrato didtico (RICARDO; SLONGO; PIETROCOLA, 2003). Esse paradoxo permeia suas media-es como gerenciadores do contrato. Assim, o foco das mediaes, que permanece na correo dos enganos, no desimpedimento dos entraves, no esclarecimento dos erros e na fala organizada, frequentemente se encerra na figura do professor. Nessa instncia, muitas vezes pudemos evidenciar que o professor, sem perceber, se apropria da fala do aluno, explicitando seus raciocnios, entendimentos e at mesmo suas dvidas. Isso posto, encontramos tambm, nas interaes observadas nas aulas, indcios que apontam para ocorrncia dos efeitos do contrato didtico. Foram descritos episdios dos efeitos Topaze, Jourdain e do deslize metacognitivo, alm das crenas relativas ao contrato didtico, descritas por Silva (2010), em vrias situaes da prtica, devidamente sinalizadas nas anlises deste estudo. Enfim, podemos concluir que os professores polivalentes, sujeitos dessa pesqui-sa, entendem a relevncia de seu papel problematizador nas aulas de matemtica, contu-do, ainda difcil para eles organizar um milieu antagonista, que provoque desequilbrios e adaptaes nos estudantes. Os alunos, por sua vez, acabaram se acostumando a deixar o processo investigativo ser conduzido pelo professor no final, desistindo de insistir diante dos entraves que aparecem no caminho. Mediante a natureza de todas essas reflexes e a partir da literatura consultada

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    sobre a prtica da resoluo de problemas, concepes dos professores a esse respeito e demais assuntos abordados neste trabalho, compreendemos a importncia da utilizao do espao da sala de aula como ambiente voltado investigao dos problemas relaciona-dos ao ensino e aprendizagem na matemtica. Neste sentido, julgamos importante, tam-bm, em funo do estudo aqui realizado, que os professores que ensinam matemtica dominem conceitos e prticas relativas resoluo de problemas, de forma a promover, entre seus alunos, processos de investigao que sejam efetivos como veculos da cons-truo do conhecimento.

    NOTAS

    1Esse tipo de problema assim denominado pelo grupo que faz assessoria externa aos professo-res. De forma geral, so problemas envolvendo espaos de estados, com operadores, estados ini-ciais e finais e operaes que levam (ou no) aos estados finais, por meio de heursticas. De forma mais simples, so problemas que simulam jogos, nos quais os personagens devem atravessar um rio, uma ponte ou um caminho qualquer com restries. Tais restries podem limitar o nmero ou tipo de personagens que podem atravessar juntos, o tempo de travessia, um limite para os movimentos, etc. So desse tipo problemas conhecidos e tpicos como Missionrios e Canibais, Lobo, Ovelha e Verdura, O problema da lanterna, entre outros. Via de regra, a resoluo pede dos jogadores a mobilizao de recursos lgicos e esquemas.2Nestas falas, como nas demais, a letra M designa a fala da professora Marlia, enquanto a letra C se refere fala da classe (resposta coletiva dos alunos).3Optamos, nesta transcrio e nas demais, pela manuteno das falas originais, sem corrigir os eventuais erros gramaticais, registrando integralmente o que foi dito.4Nesta sequncia de falas, a letra M representa as falas da professora Marlia, enquanto as falas dos alunos envolvidos so designadas por A1 at A8.5O nome dado a este efeito provm de uma pea de teatro, homnima, em que h uma cena que se passa em um colgio interno. O protagonista, Topaze, faz um ditado a um aluno que demon-stra muita dificuldade na execuo da tarefa. Como no consegue aceitar um excesso de erros grosseiros, mas tambm no pode dizer abertamente ao aluno quais so esses erros e a ortografia correta, comea a insinuar-lhe respostas, sutilmente, sob a forma de cdigos didticos cada vez mais transparentes.6Segundo explicaes dos sujeitos, o painel de solues consiste em uma plenria, apresentada sempre ao final do trabalho com os problemas, na qual so discutidas as solues apresentadas por cada aluno ou grupo envolvido.7Nestas falas, PA representa as intervenes da professora Ana, enquanto A1 e A2 representam falas de alunos. Da mesma forma, nas prximas falas, a letra A seguida de um nmero designa um aluno especfico.

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    Data recebimento: 20/01/2015Data Aprovao: 15/06/2015

    Contato:Gerson Pastre de OliveiraRua Marqus de Paranagu, 111 Prdio 1 2 Andar, Consolao, So Paulo SP, Brasil 01303-050

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