resenha sobre o filme memória do corpo

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RESENHA SOBRE O FILME MEMRIA DO CORPO

O filme dirigido por Mrio Carneiro mostra ao pblico as tcnicas usadas por Lygia Clark que intentam fazer um novo contato do corpo com o mundo. Entre a arte e a terapia, Lygia explora a sensibilidade do paciente por um vis reconfigurador das experincias corporais, ampliando o conceito de corpo como casa do eu para o de corpo como possibilidade de contato entre interior e exterior pessoal. Entre o esttico e o teraputico, Lygia acredita que seus mtodos de trabalho experimental podem fazer que a interioridade de um paciente possa ser transferida para um objeto exterior ao corpo, curando assim possveis traumas do sujeito.Se os quacres acreditavam na cura dos loucos atravs de uma interiorizao de conceitos morais nos insanos e Pinel, ao tirar as correntes dos insensatos, procurava faz-los exteriorizar a animalidade com o trabalho metdico e com recompensas e punies como estratgias de mant-los sob controle, Lygia Clark busca a interao dos objetos com o corpo a partir de um vis esttico e teraputico, para que atravs da linguagem quase inconsciente, o paciente pudesse liberar seus traumas e suas frustraes. Ainda que haja como sempre h uma relao de poder entre o terapeuta e o paciente, em Lygia ela se d atravs do prazer que o paciente pode sentir nessas experincias. Parece ser impossvel que as relaes de poder entre terapeuta e paciente no ocorram, mas pode ser perfeitamente vivel que esta relao seja menos traumtica e o uso da violncia se torne mais uma questo conceitual do que uma estratgia que vise pura e simplesmente dominao de um pelo outro. A violncia da relao passa a ser no um mtodo de cura, mas uma condio natural da prpria relao, uma vez que se algum se entrega, conscientemente ou no, aos cuidados de outrem, h uma relao de poder que pressupe a dominao de um sobre o outro.Logo nas primeiras cenas, Lygia aparece sentada em um quarto. Ela se senta como que em posio de meditao enquanto apresenta seus instrumentos de trabalho e explica suas tcnicas. H de se notar que os instrumentos so feitos de objetos simples e quase todos podem ser encontrados no cotidiano de uma grande cidade. O quarto est desarrumado o que j de sada nos sugere que uma nova ordem se d a partir do caos. Essa metfora parece muito clara. Lygia se senta como em posio de ltus e o quarto bagunado faz o contraponto entre o equilbrio e a desordem. O corpo se mantm calmo, em perfeita harmonia com o ambiente, por mais que este seja-esteja-parea tumultuado. Quando Lygia pe mel em sua boca e depois a ilumina, a cmera filma os olhos da artista que parece extasiada, experimentando uma nova sensao e um prazer arrebatador. Esta experincia , antes de ser usada nos pacientes, usada pela prpria terapeuta que ressignifica suas sensaes e, com isso, no as usa em seus pacientes como se fossem cobaias de um experimento irresponsvel: ela as usa primeiro em si mesma para que o mtodo adotado possa ter certo rigor cientfico, embora mais sensorial do que racional, o que no exclui a possibilidade da sensibilidade e da razo manterem um dilogo.Aps explicar seus mtodos de trabalho e mostrar os objetos que sero usados para esse fim, temos a terapia usada em Paulo Srgio Duarte. Diz o paciente, aps a sesso, eu era, sobretudo, pele; sobretudo, superfcie. No h palavras no tratamento, mas h sons. No h gestos, mas h toques. No h imagens, mas h um contraste entre luz e escurido. Lygia explicara anteriormente que se um paciente quebrasse algum dos objetos utilizados na terapia, era, para a terapeuta, como se o paciente tivesse transferido para o objeto quebrado aquilo que havia no interior do corpo do sujeito. Assim, se o objeto no se quebrasse, o paciente continuava a manter a sua configurao inicial anterior experincia. Paulo Srgio no quebra o objeto.Essa relao com os objetos importante para Lygia. Eles podem ser o canal por onde o interior do paciente se comunique com o mundo exterior, expurgando, assim, o que no estiver causando conforto interno ao paciente. Lygia comenta sobre um caso no qual um homem acreditava possuir uma vagina. Este relato no deixa de ser um modo s avessas o Complexo de dipo freudiano. Se no Complexo de dipo, o menino sente o temor de perder seu pnis, ao perceber que a me no tem um pnis, diferentemente do pai, o que causa no menino um dio paterno e o medo da castrao, na declarao desse paciente de Lygia acontece o inverso: o homem acredita ter uma vagina que precisa ser expurgada pela terapeuta. Lygia comenta sobre isso que h em alguns homens um canal que se estender do nus at ponta do pnis sem nenhuma interrupo, enquanto em outros, esse canal interrompido por um espao onde, possivelmente, haveria uma vagina. Essa vagina deve ser expurgada no porque exista um pnis, mas porque no existe vagina alguma. Essa desconexo entre o corpo e o imaginrio do paciente corrigida nessa terapia. Em um dos casos, Lygia faz suco no umbigo de um paciente como se estivesse realizando um aborto. O tratamento do expurgo, neste caso, d certo.Os pontos altos desse filme so o documentrio trazer as palavras de Lygia Clark e deix-la expor sua teoria e sua prtica sem a tutela de alguma teoria anterior. A linguagem da artista flui: Lygia e seus mtodos explicados por ela mesma. No se trata de mostrar uma verdade absoluta por ter sido a prpria Lygia a falar, mas mostrar o como a terapeuta pensa suas teorias e quais as explicaes e concluses a que ela chega. Ela utilizar em si mesma os objetos, mostrar a prtica em Paulo Srgio Duarte, ele aceitar comentar essa experincia, so escolhas do diretor que no invadem a privacidade de cada envolvido: o filme se aproxima de uma linguagem cientfica.

Walace Rodrigues da Silva.