orlando homem invisível-resenha do filme

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    ORLANDO: HOMEM INVISÍVEL?GÊNERO, RAÇA E (IN) VISIBILIDADE NAS RELAÇÕES DE ALTERIDADE.

    Lady Selma Ferreira Albernaz1 

     A grande vantagem dos Zodíacos, Cartas de Baralhos, bandeiras, Brasões, (...) era que, com eles, eu enchia o Buraco cego e vazio do Mundo e o Deserto-assírio da minha alma. Sentindo meu sangue pulsar

    com violência, não havia mais como duvidar de mim. Meu sangue me garantia a existência do meu corpo, e o corpo, a de minha Alma.

    Ariano Suassuna, Romance d‟A Pedra do Reino 

    Resumo 

    Este trabalho examina duas obras de ficção (o filme “Orlando, a mulher imortal” e o romance,“Homem Invisível”), focando o tratamento dado às relações de raça e gênero, as quaisaparecem como marcas de alteridade e diferença, que constroem o „outro‟ como invisível, nassociedades ocidentais. A análise dessas relações, conforme seu tratamento ficcional, baseia-senos debates contemporâneos sobre identidade, igualdade, diferença, desigualdade, dos quaisresultam críticas e negação às dicotomias teóricas clássicas: universal e particular; corpo erepresentação; e, cultura e sociedade. Procura-se evidenciar, como as obras ficcionais podemnos inspirar soluções para problemas e impasses científicos e políticos, a partir da forma comoresolvem as dicotomias teóricas, que foram desestabilizadas pela crítica à identidade e seustermos afins, posterior à década de 1960.

    Introdução

    Este trabalho examina construções de alteridade em duas obras de ficção: o filme

    “Orlando –  A mulher imortal” de Sally Potter (1991), adaptação cinematográfica da obra de

    Virginia Woolf; e o romance, “Homem Invisível”, de Ralph Ellison. O argumento principal

    considera que as relações de raça e gênero  –   como marcas de alteridade e diferença  –  

    constroem o „outro‟ como invisível, nas sociedades ocidentais. Procura-se demonstrar: (1)

    como essas duas obras de ficção re-significam as representações hegemônicas de raça e

    gênero, nos Estados Unidos (Ellison) e Inglaterra (Potter) de forma a desvendar suas

    invisibilidades específicas; (2) o fato de que essas duas dimensões, conforme tratadas nessas

    obras, antecipam propostas atuais do campo de gênero, que questionam a identidade como

    fixa, essencial e imutável, revelando sua historicidade, por um lado, e por outro, oferecendo

     pistas para recompor binômios teóricos das ciências humanas e sociais; (3) e para a

    1Professora do PPGA-UFPE, Departamento de Ciências Sociais  –  CFCH; pesquisadora do FAGES, membro doLECC (Laboratório de Estudos de Cultura Contemporânea). E-mail [email protected]

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    necessidade de abordar a subjetividade contemporânea, considerando a inter-relação entre

    gênero e raça.

    A análise das obras está ancorada em dois debates teóricos recentes e inter-

    relacionados. De um lado, nas discussões sobre identidade, igualdade, diferença,

    desigualdade, termos submetidos a críticas contundentes, a partir do final dos anos 1960, que

    desestabilizaram suas oposições clássicas (igualdade=identidade; diferença=desigualdade), re-

    configurando-os em novas posições (igualdade x desigualdade; diferença x identidade). De

    outro lado, ancora-se no debate correlato sobre a possibilidade da teoria social continuar

    afirmando dicotomias teóricas clássicas entre universal/particular; corpo/representação; e,

    cultura/sociedade, as quais passaram a ser negadas no bojo da crítica dos termos citados antes.

    O trabalho tem também a preocupação de evidenciar como as obras ficcionais podem

    nos inspirar soluções de problemas e impasses científicos e políticos, tento em vista sua

    liberdade frente às armadilhas do método, as quais esses dois campos de conhecimento e

     prática podem estar presos2. A partir desse diálogo, entre ciência e obras ficcionais, realizo

    algumas considerações que procuram elucidar limites nas discussões sobre universalidade e

    diferença, subjacentes à instabilidade conceitual, posterior aos anos 1960, apontando

     possibilidades de relação entre elas. Não serão desconsiderados os outros binômios,

    anteriormente citados, que no geral acompanham o debate sobre universalidade e diferença.

     Nesse sentido, vejo na arte uma possível mediadora de nossas reflexões científicas

     para alcançar dimensões e complexidades da vida social que, conjunturalmente, podem ser

    inviáveis para a ciência, devido ao controle de algumas de suas epistemes. Posto que, a arte,

    mesmo quando desestabiliza racionalidades e regularidades, ao evidenciar o particular das

     pequenas ou grandiosas trajetórias humanas, não retira do seu horizonte discussão de

    universais e das generalizações. Tem a liberdade de recolocar a humanidade no mundo e em

    relação consigo mesma. Há sempre o indizível para o cientista que o artista recupera e desafia

    a ciência a continuar tentando, o melhor entendimento da grande aventura de estarmos vivos, pensantes e sensíveis. Não proponho uma quebra de fronteiras entre ciência e arte. Penso que

    a relação entre elas será sempre inconclusa, contraditória, complementar, que não se finde...3 

    2 Esta discussão se dará como um exercício de reflexão, não tem a intenção de explorar os limites e contribuiçõesda relação entre ciências sociais e arte, que fugiria aos objetivos deste trabalho.3 As reflexões sobre as duas obras aqui analisadas foram iniciadas durante o seminário Questões de Gênero,ministrado pela Profª Mariza Correa, Doutorado em Ciências Sociais, IFCH  –   UNICAMP (2000). Elas sedesdobraram no trabalho apresentado no III Encontro Enfoques Feministas e as Tradições Disciplinares nasCiências e na Academia, no Grupo de Trabalho: Gênero e Representações Sociais  –   Niterói, 24, 25 e 26 de

    Setembro de 2001. Agradeço as contribuições recebidas tanto durante o curso, como no seminário, estimulantes para elaborar esta versão atual. Sou grata ao Fages pela oportunidade de publicação e às sugestões de RobertaCampos, enquanto editora. Meu reconhecimento à solidariedade e amizade de Marion Quadros, cuja leitura

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    Esclareço que, não serão realizados uma resenha dessas duas obras de ficção, nem

    tampouco um diálogo com trabalhos dessa natureza, o que seria bem-vindo. Diante dos

    objetivos propostos, limito-me a utilizá-las como recursos para pensar sobre alteridade. De

    certa maneira estou me dando uma licença para tomar as obras como fontes para um ensaio

    etnográfico4. Situada a partir da crítica à cultura como causalidade última do social (Cf.

    Kuper, 2002), procuro evidenciar o sistema de relações sociais que as obras analisadas podem

    nos revelar, sem perder de vista, à maneira de Sahlins (2004), as dimensões culturais que lhes

    dão suporte5. O sentido desse exercício, portanto, é captar as interpretações dos autores que

     possam nos ajudar a compreender a relação cultura/sociedade; corpo/representação;

    universal/particular –  inspirando-nos soluções para impasses teóricos sobre essas relações no

    campo da antropologia, após a crítica a identidade.

    As questões que me coloco, para orientar a leitura das obras, são: como discutir raça

    sem discutir gênero, e vice-versa, nas formações sociais nas quais esses marcadores norteiam

    a estrutura das relações sociais? Como discutir as representações sociais destas diferenças,

    sem desprezar sua dimensão concreta de marcas corporais, especialmente tendo em vista a

    ênfase atual sobre o discurso? Por fim, quais as articulações políticas a serem construídas para

    dirimir as desigualdades sem negar ou invisibilizar as diferenças que estas marcas implicam?

    Orientada por estas questões, é que realizo uma reflexão sobre identidade e seus termos

    correlatos, bem como, sobre as discussões dos binômios teóricos correspondentes.

    O artigo está organizado em quatro partes. A primeira apresenta uma rápida discussão

    teórica dos termos gênero e raça, indicando o percurso de suas transformações e as

     possibilidades de suas relações para discutir identidade, diferença, igualdade e desigualdade,

    tendo em vista tipos de alteridade que podem constituir. A segunda e a terceira tratam

    separadamente da apresentação das duas obras em análise, destacando as relações e

    representações sociais sobre raça e gênero. Na ultima parte, retomo as duas obras para discutir

    como as interpretações da ficção podem nos ajudar a repensar pares de opostos das ciênciassociais, (corpo/representação, universal/particular, cultura/sociedade), que nas nossas teorias

    cuidadosa e paciente, alertaram-me para argumentos insuficientes e de demonstração ainda obscura. Os erros elimites de argumentação são de minha inteira responsabilidade.4  Foi inspirador, para compreender esta possibilidade interpretativa, o trabalho de Corrêa (2003a) sobre algumasobras ficcionais brasileiras, cujos personagens eram mulheres antropólogas, bem como o trabalho de Alvim ePaim (2005), que explora o uso de obras cinematográficas para abordar o cotidiano de crianças e adolescentes.As autoras sugerem a possibilidade do uso de filmes de ficção como aludindo “a problemas reais em situaçõesimaginadas” (p. 39). 5 Compreendo que Kuper e Sahlins têm posições teóricas distintas quanto ao valor heurístico da cultura nas duas

    obras citadas. O primeiro, negando esta possibilidade e o outro afirmando-a veementemente. Entretanto, estas posições opostas e radicais, na minha opinião, podem nos ajudar a encontrar um ponto de equilíbrio pararelacionar cultura e relações sociais, e como elas operam explicando-se reciprocamente em dadas situações.

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    foram criticadas ou abandonadas, durante o percurso de re-elaboração dos conceitos de

    identidade e seus termos afins.

    Gênero e raça: mapeando diferenças

    A condição da mulher e das raças não brancas, particularmente o negro, nas

    sociedades ocidentais, foi tema de estudos e propostas políticas liberais ou socialistas, desde o

    final do séc. XIX, quase sempre pautados pelos pressupostos do Iluminismo. A partir do final

    dos anos 1960, este debate ganhou novos matizes, com o desenvolvimento de uma crítica à

    epistemologia e aos fundamentos iluminista e positivista da ciência6.

    Em decorrência dessas mudanças, interessa ressaltar aqui, que o tema da identidade

    coletiva e individual foi profundamente alterado, bem como as discussões sobre alteridade. A

    unidade do sujeito e a homogeneidade de grupos sociais, pressupostos básicos do iluminismo

     para a igualdade entre os indivíduos (implicando na definição de identidade como ser sempre

    idêntico) foram confrontados pela diferença. Os binômios igualdade=identidade e

    diferença=desigualdade foram deslocados, passando-se a considerar que poderia haver

    igualdade entre sujeitos ou grupos sociais diferentes, devendo-se agora recompor os binômios

     para: igualdade x desigualdade e diferença x identidade7. Orientada por essas mudanças,

    recupero a seguir aspectos do percurso conceitual sobre gênero e raça, que se tornaram temas

    de grande destaque na crítica da identidade.

    Gênero e raça apresentam histórias conceituais distintas como marcadores de

    diferença, bem como, propostas políticas diversas de acordo com conjunturas específicas.

     Nem sempre estes dois termos foram inter-relacionados na abordagem sócio-antropológica da

    cultura e da sociedade. Este emprego conjunto é recente e, de certa forma, mais consensual a

    compreensão da necessidade de seu uso analítico simultâneo, pelo menos em sociedades e

    culturas nas quais estes marcadores operem estruturando significados e relações sociais.

    6  Há muitas correntes teóricas e denominações para esta crítica, todas muito polêmicas. Aqui fiz um esboçoconciso e panorâmico com o intuito de oferecer um contexto do debate, aprofundar a discussão poderia fugir aos

     propósitos deste trabalho. Para uma crítica a estes movimentos, especialmente o pós-moderno, ver Gellner(1992), para uma posição de defesa, no campo dos estudos culturais, ver Hall (1997, 2004).7  Para uma revisão do conceito de identidade veja-se Hall (1997, 2004) e Woodward (2004). No caso estasoposições indicam que igualdade tinha como pressuposto a identidade, e a diferença implicava na desigualdade.Com a inversão, a igualdade se opõe à desigualdade no sentido político; e, a identidade somente é afirmada em

    face do que se considera como diferente, dando-se relevo ao fato de ser relacional, e portanto, decorrente deconjunturas históricas que permitiam sua possibilidade de transformação  –  ter identidade não implicava em sersempre o mesmo, compartilhar a mesma identidade não implicava em ser idêntico (especialmente, Hall, 2004).

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     No que se refere ao gênero, houve um longo percurso de elaboração deste conceito até

    que se desprendesse do significante “mulher” (ainda preso ao sexo biológico), vindo a

    substituir este último termo entre as feministas, na passagem da década de 1970 para 19808. A

     periodização dessa trajetória conceitual apresenta variadas versões e denominações, às vezes

    discordantes entre si9. Entretanto, parece haver uma recorrência entre os autores em

    identificar a existência de, pelo menos, dois grandes momentos teóricos. No primeiro

    momento, as discussões tenderam para abordar as mulheres como idênticas entre si e em

    oposição aos homens, devendo-se superar estas diferenças para se alcançar a igualdade entre

    os sexos. Ou seja, para ser igual era necessário não haver diferenças, de acordo com a visão

    iluminista do individuo livre e universal. Num segundo momento, aproximadamente nos anos

    1980, a partir da crítica das mulheres de „cor‟ do terceiro mundo ao feminismo, as teorias

    acentuaram as diferenças entre as mulheres, criticando-se o essencialismo, suposto numa

    irmandade feminina10.

    Um dos resultados dessa crítica foi defender a não fixidez das identidades, afirmando-

    se a fragmentação do sujeito, e paralelamente, intensificando-se o debate sobre as inter-

    relações entre raça e gênero e suas conseqüências na produção de desigualdade e de

    dominação. Friedman (1995), por exemplo, realiza uma periodização do debate entre

    mulheres negras e brancas, indicando a necessidade de incorporar classe e raça às analises de

    gênero. Nesse sentido, as explicações teóricas e as propostas políticas do feminismo

    tornaram-se mais complexas, passando-se a defender identidade como posicional, no sentido

    de que não teria a mesma fixidez apontada pelo iluminismo (Hall 1997), mas não estaria

    totalmente descolada da estrutura social, que estabelece posições para seus membros,

    conformando suas ações e autodefinição, nem sempre tão fáceis de serem mudadas (Friedman

    1995).

     No que se refere à raça, periodizar o debate e delimitar momentos teóricos, é uma

    tarefa mais delicada, aparentemente havendo menos consenso entre os estudiosos do tema.Pode-se considerar como uma das mais importantes clivagens, no desenvolvimento do termo,

    a negação de fundamentos biológicos para raças humanas, que eram usados para explicar as

    diferenças e desigualdades entre negros e brancos (Gould 1999)  –   negação amplamente

    8 Situa-se como uma das pioneiras no emprego deste termo no estudo sobre a dominação das mulheres G. Rubin(1993), propondo a existência de um sistema de sexo/gênero.9 Para se ter uma idéia dessa trajetória, veja-se Machado (1992a), para o caso brasileiro, e Yannoulas (1994) parao feminismo como um todo. Estas autoras identificam os pressupostos epistemológicos das diferentes etapas dadiscussão e as possibilidades e limites políticos de cada uma dessas fases do feminismo, mas elaboram

    denominações e periodizações distintas. Ver também Friedman, que cito mais adiante.10 Um bom exemplo é Fox-Genovese (1992), que destaca a crítica das mulheres negras às teorias da irmandadedas mulheres brancas e de classe média, que excluíam as especificidades das mulheres de cor e pobres.

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    consensual. Entretanto, como esta negação não apagou o racismo, o qual é constituído em

     bases políticas e classificações culturais de acordo com os fenótipos da espécie (Hall

    2003a:67-69;71)  –   o debate neste terreno continua aberto, variando a forma adequada de

    definir raça e racismo (Appiah 1997). Mas, a despeito dessa variação, o termo raça continuou

    a ser utilizado para compreender relações de desigualdades sociais e políticas, elaboradas

    cultural e historicamente, porém vinculadas às diferenças de conformação física entre grupos

    humanos11.

    Para os propósitos que tenho aqui, vale notar que a preocupação com relações entre

    homens e mulheres de fenótipos distintos, chamou a atenção de estudiosos sobre raça muito

    antes das teorias atuais12. Bem como, a preocupação com a inter-relação entre raça e classe,

    desdobrando-se para suas conseqüências para a luta política, também não é recente e perdura

    até os dias atuais (Fanon s.d.; Appiah 1997). Por sua vez, a tensão entre ser negro  –  o que

     parecia igualar todos as pessoas de cor a partir da raça –  mas apresentar histórias, culturas e

    disputas políticas distintas, além de uma grande dispersão geográfica, perpassou o debate

    sobre o tema durante quase todo o século XX13. Este conjunto de preocupações, no campo da

    raça, convergiu para críticas equivalentes àquelas empreendidas no campo do gênero,

    conforme apontei acima: negação de identidades fixas, limites das explicações universais, e

    especialmente, recusa dos argumentos fundamentados em essencialismos biológicos ou

    culturais.

     No campo da raça fica mais evidente, na minha opinião, uma polarização teórica e

     política entre a ênfase no reconhecimento da diferença e a defesa da universalidade, para

    explicar e resolver relações de desigualdade e dominação, decorrente dos desafios postos

     pelas discussões sinalizadas acima. Identifico aqui, pelo menos duas soluções teóricas e

    11 O termo gênero foi adotado para se referir às elaborações da cultura sobre masculino e feminino, portantodeixando mais claro, no plano conceitual, sua diferença frente às diferenças biológicas de sexo, possibilitando

    uma critica mais contundente ao essencialismo biológico. Entretanto, não há para raça um termo equivalente. Nocaso brasileiro, raça quase sempre é sinônimo de negro. Veja-se Corrêa (2003b), esta autora indica também quemesmo a sofisticação atual da teoria de gênero não conseguiu superar o fato de que, nos dois casos, tratam-se demarcas corporais, sendo nos corpos dos sujeitos dessas teorias que tais marcas, de gênero e raça, se exibem (p.239 –  nota 1).12 No livro Pele negra, máscaras brancas, cuja primeira edição é de 1958, seu autor, Franz Fanon (s.d.), dedicaum capítulo para analisar a relação entre mulheres negras com homens brancos, e outro para homens negros commulheres brancas. As discussões da inter-relação entre raça e gênero se intensificam no final dos anos 1980.Corrêa (2003b) considera os estudos de Ruth Landes (década de 1950) sobre o candomblé na Bahia pioneiro nainter-relação de gênero e raça entre os antropólogos.13 Para uma discussão sobre esta questão e seu desdobramento entre diferentes gerações de intelectuais negrostanto nascidos em colônias européias na África, como de outras nacionalidades, veja-se Appiah (1997). Esteautor procura encontrar uma solução política para luta anti-racista  –  que buscou por muito tempo uma unidade

     para „negro‟ –  diante do atual reconhecimento de clivagens culturais entre africanos continentais e da diáspora.Discutir as diferenças culturais entre negros é um desafio para solucionar os prejuízos do racismo, que não deixade ter como referente às diferenças de fenótipos. Ver também Hall (2003d)

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     políticas que se apresentam opostas: o multiculturalismo (defendido por Hall), que se

    caracteriza pela defesa do reconhecimento da diferença dos grupos que convivem numa

    mesma sociedade; e o cosmopolitismo (defendido por Appiah –  1998), que se caracteriza pela

    crença liberal na liberdade individual, garantida pelo estado de direito. O cosmopolitismo tem

    como base política e filosófica um tipo de universalidade elaborada no ocidente, que

    miniminiza as diferenças entre grupos em favor da igualdade entre os indivíduos, garantida

     pelo Estado (ver também Habermas 1998). Portanto, estas duas soluções políticas e teóricas

    remetem à relação entre o particular e o universal na definição do humano, pelas ciências

    humanas e sociais.

    Mas esta tensão também preocupa as feministas, sendo um exemplo o trabalho de

    Collin (1993a e b), que salienta as dificuldades para a construção do conhecimento, o

    acatamento da desconstrução (que embasa filosoficamente uma boa parte do debate sobre raça

    e sobre gênero) pelas feministas. Segundo ela, a desconstrução põe em cheque a possibilidade

    de verdade, tendo como conseqüência a dificuldade de alianças entre mulheres, mesmo que

    diferentes. Por sua vez, o anúncio da morte do sujeito, se tem o aspecto positivo de crítica ao

    essencialismo, poderia ameaçar a constituição de um sujeito feminino 14. No trabalho de

    Collin, repetem-se preocupações relativas aos impasses de como equacionar o universal e o

     particular na definição do que pode ser o homem.

    Portanto, apesar dos campos de gênero e de raça terem se constituído, em quase todo

    século XX, de forma relativamente autônoma, pôde-se observar, a partir desse rápido esboço

    de revisão conceitual, várias convergências de interesses teóricos, filosóficos e políticos entre

    seus estudiosos. Gostaria de acrescentar mais um ponto em comum aos dois campos, tendo

    em vista a análise das obras que faço a seguir, exatamente o tema da invisibilidade das

    mulheres e dos negros na relação de alteridade.

    A discussão de invisibilidade das mulheres na relação com os homens, no campo das

    ciências humanas e sociais, tem uma longa trajetória, e dependendo das interpretações sobre asua constituição, distintos marcos de fundação. Neste campo de gênero pode-se pensar

    invisibilidade das mulheres em pelo menos dois sentidos: 1. na relação de alteridade em que a

    mulher se constitui como o „outro‟ reflexo do „um‟, que seria o homem, portanto, sem a

     possibilidade de transcendência, conforme uma interpretação de Beauvoir (1980); 2. como

    „ausência‟ enquanto objeto de investigação e na teoria social, que define „o homem universal‟

    14 Veja-se Butler (1998) que rebate este tipo de crítica e reafirma a desconstrução.

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    a partir do masculino, portanto sem ferramentas para compreender a posição das mulheres na

    sociedade e na cultura15. Nesse último sentido há uma invisibilidade empírica e teórica.

    Acredito que a metáfora da invisibilidade empregada por Ellison, para abordar a

    relação de alteridade entre brancos e negros na sua obra, é semelhante às discussões de

    Beauvoir para compreender as mulheres na relação com os homens, ou seja, a negação do

    outro na relação de alteridade. Sentido que também parece ser utilizado por Fanon (s.d.), ao

    discutir a situação do negro nas sociedades ocidentais, ainda na década de 1950. A discussão

    sobre raça no Brasil indica uma invisibilidade empírica, que se consolidou com a teoria do

     branqueamento, difícil de ser quebrada até mesmo na obra de cientistas estrangeiros como,

     por exemplo, Pierson (1945). Fernandes (1972, 1978) é um marco para apontar as fraquezas

    da teoria do branqueamento, reivindicando a existência de racismo no Brasil. Mais

    recentemente, Hasenbalg (1996) fez um esforço de demonstrar estatisticamente as

    desigualdades raciais no Brasil e o racismo correspondente. Isso não significa deixar de

    reconhecer as diferenças de significados constituídos a partir dos marcadores de gênero e

    raça, mas sugerir que, ainda assim, mulheres e negros podem ter posições de alteridade

    semelhantes ou equivalentes (Hall 2003a e d; 2004)16.

     Neste ensaio, o sentido de invisibilidade, portanto, será empregado à maneira de

    Beauvoir e Ellison, de forma que possa orientar a crítica ao tipo de alteridade decorrente da

    negação do outro. Procuro, também, mostrar como representações sobre raça e gênero foram

    transformadas em hierarquias estruturais e sociais, as quais concorrem para construção da

    invisibilidade nas relações de alteridade.

    Considero ainda que, os marcadores de gênero e raça apresentam outros desafios para

    os cientistas sociais por, pelo menos, duas razões: de um lado a concretude com que se

    inscrevem nos corpos; de outro, as representações abstratas preenchidas por símbolos plenos

    de qualidades essencialistas, ainda que sejam definidas cultural, social e historicamente. Esta

    essência –  pela facilidade com que as marcas inscritas no corpo se aproximam da natureza  –   por sua vez, é chamada a ser abolida e transmutada plasticamente na vida social, naquilo que

    quer o pólo dominante da relação  –  neste caso, as pessoas brancas e os homens da espécie.

    Portanto, no processo de interação, aquilo que se tem de mais concreto nos corpos humanos

    15  Ver Machado (1998), para uma rápida discussão sobre alteridade nos dois sentidos; e Machado (1992b),Rosaldo e Lamphere (1979) para o segundo sentido.16  Esta aproximação também é feita por Bordo (2000). O sentido da aproximação não trata dos conteúdos

    específicos e históricos investidos sobre raça e mulher, mas sobre a posição de cada um deles na relação dealteridade frente aos brancos (no caso da raça) e frente aos homens de qualquer cor (no caso das mulheres), que édo „outro‟ que nunca pode ocupar o lugar do „um‟. Retomo esta discussão na última parte deste trabalho.

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    torna-se invisível –  permitindo a sua constante negação, restando o desafio de como resolver

    lógica e teoricamente este impasse, sem cair no empirismo ou no absolutismo idealista.

    Por fim, gostaria de salientar, que somente após escolher as duas obras que analiso a

    seguir (o filme de Potter e o romance de Ellison), foi que percebi como cada uma delas tratava

    a questão dando maior força a um ou outro marcador. “Orlando”, enfatizando gênero e

    “Homem Invisível”, centrando-se nas relações raciais. Entretanto, as duas obras, com ou sem

    intenção, traziam à tona injunções de gênero e raça para evidenciar as desigualdades, contidas

    nas relações mais realçadas em cada uma delas. Pareciam se antecipar no tempo,

    corroborando as propostas dos estudiosos atuais das relações de gênero, quanto à

    impossibilidade de estudar este tema, sem incluir a dimensão racial. Ao primeiro olhar, esta

    inter-relação entre gênero e raça parecia resolvida. Mas não nos antecipemos. Vamos

    apresentar um pouco de cada uma das obras...

    Solidão e tempo como metáforas da invisibilidade

    “Orlando –  A mulher imortal”, filme de Sally Potter (Inglaterra, 1991), baseia-se na

    obra de Virgínia Woolf, o que já indica a magnitude do seu objetivo de colocar em imagens

    uma história tão densa. Aqui não me coloco o desafio de entender os limites desta

    transposição semiótica entre texto e imagem; nem tampouco, outro grande desafio, analisar a

    importância de Virgínia Woolf para a reflexão sobre a condição da mulher  –   enquanto

    escritora e pensadora inserida num importante movimento literário londrino, com as

    subseqüentes contribuições para a literatura moderna. Dou-me a liberdade de refletir apenas

    sobre as inter-relações entre gênero, nação/etnia/raça17  e tempo que texto e imagem,

    veiculados na obra cinematográfica, me instigaram. 

    O início (a declaração de Orlando da sua solidão) e o final do filme (quando

    Orlando/mulher-mãe afirma-se feliz por libertar-se do passado e do futuro) sugerem aintenção da diretora de refletir sobre o tempo, por um lado, e a solidão, por outro. Solidão por

    mim percebida pela (im)possibilidade de encontro entre os seres humanos na dimensão

    temporal –  quando pensa passado, presente e futuro; e, na dimensão do tempo histórico das

    criações sócio-culturais que nos indicam a quem nos é permitido, ou não, encontrar e assim

    17  Propositalmente não estou separando estes três marcadores sociais, tendo em vista tê-los percebidos

    imbricados nas imagens retratadas no filme. Eles serão dissociados na perspectiva analítica à medida que se fizernecessário. Geertz (2001) faz uma excelente discussão sobre as dificuldades de separar conceitualmente estado,nação, povo, etnia, entre outros termos correlatos em muitas obras recentes das ciências sociais.

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    alcançar o reconhecimento de si mesmo e do outro18. Tempo e solidão, para serem

    transcendidos, são apresentados na alegoria da mulher/homem imortal que desafia a finitude

    corpórea, tanto em termos da morte, que não se realiza, quanto em termos do sexo, que se

    transmuta ao longo de uma mesma vida. Mais que sexo, a polaridade de gênero é desafiada na

    androginia de Orlando, esteja ele/a apresentado/a socialmente como mulher ou homem.

    Parece que o desejo de Orlando é encontrar o gênero neutro, banido da gramática desde os

    gregos (Varikas 1999).

    De certa forma, Sally Potter, está a brincar com o tempo. Brincadeira arriscada que é

    apresentada ao espectador através de imagens esmaecidas, pouco coloridas e numa luz que

    não explode  –   nem mesmo na luminosidade do deserto  –  para não se tornar uma tragédia.

    Apenas no final, transposto para um suposto presente contemporâneo, Potter se permite

    explorar luz e cor, intensificando azuis, verdes e brancos. Talvez na intenção de nos infundir

    esperança na solução desta relação de solidão e tempo, que parecem decorrer das diferenças

    que elaboramos para definir o humano, implicando numa alteridade irreversível (o outro não

     pode ocupar o lugar do um). Diferenças que usamos, na maioria das vezes, para organizar,

    não a troca plena, mas a separação, seja criando grupos fechados de idênticos (Birman, 1997),

    seja acentuando as diferenças, que hierarquizam posições com poderes assimétricos, levando

    à subordinação e ao distanciamento dentro do mesmo grupo de identificação social e cultural.

    A sobriedade de imagens combina-se com um enredo linear, de diálogos curtos entre

     poucos personagens, reveladores da intensa busca de Orlando de si mesmo. A marcação das

    mudanças, através da morte simbólica das  personas que Orlando assume na sua trajetória de

    vida, imprime mais ritmo a narrativa lenta  –   com pequena intensidade discursiva, gestos

    contidos e planos demorados –  evitando a monotonia.

    Conhecemos Orlando como um rico nobre inglês, predileto da rainha, já idosa e

    alquebrada, que lhe pede, incisiva e mansamente, que não perca a juventude  –  numa evidente

    alusão ao tempo. Quem é este Orlando? Além de jovem e erudito, que declama poesias comsuave dramaticidade, tem como principal adorno um brinco de pérola negra na forma de gota.

    Jóia rara, que parece acentuar sua rara masculinidade, difusa, lânguida, quase virginal, em

    contraste com as atitudes e os gestos dos outros homens a sua volta. Poder e velhice parecem

    dar à rainha uma aura masculina, juventude e beleza feminilizam o homem Orlando. Somos

    18  Este tratamento da solidão provocada pela impossibilidade do encontro com o „outro‟, tendo em vista oslimites sócio-culturais e temporais mostrados alegoricamente no filme é que me permitiu assemelhar, estasoperações de Orlando, com a metáfora da invisibilidade de Ellison. Ou seja, a solidão de Orlando é uma forma

    de evidenciar relações de alteridade em que o „outro‟ é negado, sendo a solução que ele encontra, para ainsatisfação daí decorrente, viver cada outro „invisível‟. Porém, como cada  persona é abandonada por Orlandoquando há um impasse, o „outro‟ permanece na sua condição de invisível.

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    desafiados ao primeiro deslocamento de sexo/gênero, da necessidade de correspondência

    entre macho/masculino, fêmea/feminino. Mas, por outra parte, somos convidados a re-visitar

    a representação do poder das mulheres na maturidade, socialmente sancionado, que lhes

     possibilita o controle sobre os jovens machos –  recolocando a correspondência de significado

    entre sexo e gênero.

    Ainda nesta persona, Orlando noiva com uma nobre inglesa (modelo de feminilidade

    distante e recatada, asséptica, que pouco difere da ambígua masculinidade dele), e vive um

    romance morno e socialmente legitimado. Mas, em presença de uma jovem russa em visita às

    terras inglesas  –   marcadamente sexualizada, estrangeira, natureza selvagem, de cheiro

    desagradável e paladar torpe19  –  Orlando se transmuta no apaixonado. Há um novo modelo

    masculino em cena, o que deseja e quer o objeto perto e pertencente a si mesmo  –  

    representando o macho conquistador da natureza, a qual é simbolizada pela racialização da

    estrangeira/selvagem e pela mulher/erotizada, que se fundem na jovem russa. As duas

    mulheres, a russa e a inglesa, são colocadas em rivalidade nas suas formas polarizadas de

    exercer o feminino, numa a natureza parece lhe facilitar a conquista do sexo masculino,

    noutra a sociedade parece ultrajada por não conseguir vencer a natureza. Este pólo é quebrado

     pela construção de gênero em Orlando, cuja masculinidade transita entre natureza e cultura e

    será vencida por ambas. É dominado pela natureza –  por ser traído pela amante russa, portanto

    sem realizar o desejo de domina-la. Em seguida, sucumbe à cultura, posto que recusa

    transformar concretamente o modelo de dominação masculina (que lhe oferece a possibilidade

    de subjugar a amante russa pela violência), escolhendo a morte simbólica dessa  persona. A

    solução de Orlando é procurar um novo tipo social, que lhe ofereça a possibilidade de

    encontrar-se consigo mesmo, refugiando-se no sono simbólico da morte, parecendo nos dizer,

    “quero ser uma nova pessoa”. 

    A poesia surge como novo refúgio e lugar da transcendência da fixidez do masculino e

    do feminino, que aprisionam Orlando na sua solidão e descontrole sobre o tempo. Tãoinebriado da busca, Orlando aparenta se deixar enganar por um poeta  –   que para além da

     poesia quer lhe extorquir uma gorda pensão. Este impasse mostra a Orlando que a

    masculinidade diferenciada, proporcionada aos homens das artes, é apenas aparente. Sob a

    liberdade criadora está o homem que agressivamente luta pela sobrevivência e canta as musas

    também para conquistá-las.

    19  Veja-se Schiebinger (1993, especialmente cap. 5), para uma discussão sobre a selvageria suposta para osestrangeiros nos discursos de definição da nação.

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    Orlando, nesta altura do enredo, parece estar chegando aos dois últimos modelos

    adequados ao masculino: a política e a guerra. Embaixador no Oriente conhece um príncipe

    árabe que lhe desvenda a amizade e a lealdade  –   caríssimos valores masculinos ainda não

    experimentados por Orlando, sempre cercado de criados na posição da subserviência. Orlando

    cruza a nacionalidade e a raça, torna-se simbolicamente árabe, trajando-se como um deles,

    compartilhando comidas, bebidas, costumes. Aqui se tem um primeiro momento para refletir

    a nação e a raça como elaborações e construções humanas, no rol das escolhas possíveis. Mas

    que também são marcas para solidão. Afinal todos podem escolher? A dificuldade política de

    cruzar fronteiras é colocada na linguagem da guerra, que se inicia entre ingleses e árabes.

    Surge um impasse: como ser embaixador de um império e ceder aos valores do conquistado?

    É possível ser leal ao amigo –  príncipe árabe –  e ao império inglês –  do qual era embaixador?

    Orlando, até então, aparentemente feliz na experiência da amizade masculina, com um leve

    toque de homoerotismo, vê-se novamente triste. O masculino da amizade não permite o

    encontro pleno entre os humanos, tem um travo de violência, e na busca de si Orlando não

     parece aceitar este valor. Aparece, mais uma vez, a morte do outro que Orlando havia

    incorporado, diante do impasse gerado pela guerra, que inviabiliza ser árabe, ele novamente

    escolhe a morte simbólica para ser uma nova persona. Assim, sugere, que no limite, ser árabe

    é ser invisível quando se confronta com os brancos (no caso os ingleses).

     Na nova morte simbólica Orlando renasce Mulher. Afinal é um mesmo corpo, não há

    qualquer diferença na passagem entre um sexo e o outro, reafirmando a busca de um humano

    que possa ser universal, ou que comporte a neutralidade do gênero. Que possa fundir a

    androginia, tão intensamente, que lhe permita ir além do gênero e alcance o próprio sexo,

    comportando-os num só corpo, pois Orlando descobre-se mulher ao desnudar-se das vestes

    masculinas na frente do espelho. Após os limites de cruzar as fronteiras elaboradas pelo

    social, pela política e pela história, que o indivíduo possa cruzar sua própria fronteira inserida

    no corpo. Orlando prenuncia a pós-modernidade no momento em que a modernidade se firma.Orlando viverá duas mulheres. A primeira, uma vitoriana, sente-se impotente, pois só

     poderá ter uma identidade de mulher e continuar proprietária dos seus bens, se realizar um

    casamento  –   que sancionaria socialmente sua transformação de sexo. Descobre assim que,

     para as mulheres, a existência só era possível através do homem. Outro desafio é entender o

    que é ser mulher, em quais códigos ela delineia seu comportamento. Não é apenas mudar de

    corpo, é aprender uma nova linguagem. Conhecedora dos códigos masculinos já rejeitados,

    como se encontrar e superar a solidão não aceitando a mulher que lhe é imposta? Resta-lheexperimentar ser mais um outro.

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    Pela primeira vez Orlando muda de  persona  trajando-se de forma inadequada para

    época, sugerindo a consciência da mudança do tempo, conseguindo transcendê-lo ao dominá-

    lo. Também, pela primeira vez, Orlando não escolhe o outro, mas é escolhido. Desperta pelo

    amor de um homem, Orlando, finalmente encontra a liberdade vivendo uma nova  persona.

    Salva-se pelo masculino que ela própria não parece ter vivido, o aventureiro. Aventureiro

    apaixonado não pela conquista, mas pelo desconhecido e inesperado. Uma imagem

    cristalizada da liberdade, mas também o novo e o misterioso. Literalmente o homem que

    encarna o seu amor é representado pelo novo  –  vem do novo mundo e vem do futuro –  e, ao

    mesmo tempo, pela mestiçagem, que representa a fusão de opostos, semelhante a Orlando que

    se fundiu como homem-mulher. Todas estas imagens dão a idéia da explosão de fronteiras, a

    América é integrada ao mundo, ainda que vindo ao encontro da Europa. O homem que vem

    mistura e embaralha as raças no seu corpo, simboliza a aventura  –   metáfora dos que não

    respeitam os limites do estabelecido. O Orlando renascido tem nova consciência da sua

    androginia, e enfatiza o embaralhamento dos gêneros e reconhece o embaralhamento dos

    sexos. O amor vivido é livre, por isso mesmo Orlando recusa a aventura e a continuidade do

    romance. Queda-se na maternidade, que seria o símbolo do presente  –  livre do passado e do

    futuro. Mas, paradoxalmente, parece sugerir a eternidade, na continuidade da vida a partir de

    outro ser, que enquanto infante, andrógino e aparentemente assexuado, estaria livre das

    amarras do tempo e da solidão, forjadas nas falsas diferenças que escondem a essência do

    humano.

     Nesta trajetória Orlando apareceu vivenciando masculinidades não hegemônicas

    (Almeida 1995), a despeito da sua posição superior de classe e raça (um nobre inglês branco).

    Entretanto, parece haver outra discussão subjacente neste deslocamento por variadas

    identidades que, na nossa opinião, é a invisibilidade do pólo dominado na construção das

    relações de alteridade, pois Orlando descarta sucessivamente cada uma delas quando

    impedem a interação. A insatisfação de Orlando com a solidão dos diferentes tipos humanosse expressa na escolha de viver identidades alternativas à brancura e a nobreza. Sua estratégia

    de viver experiências de subalternidade nas masculinidades não hegemônicas (como poeta e,

    em seguida, como árabe) e finalmente a subalternidade de gênero como mulher, possibilita-

    lhe perceber as invisibilidades dessas identidades. Mas, o fascínio pelo excluído, parece ter

    como resultado acentuar suas invisibilidades, na medida que as situações de impasse levam

    Orlando ao abandono da identidade já experimentada, e não à sua transformação, re-

    significando este tipo de alteridade portadora da invisibilidade. Estes excluídos são originados pelo cruzamento de gênero e raça –  tratada também pela luz da etnia ou nação –  e pela relação

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    entre natureza e cultura. O estar preso ao corpo é acentuado nas representações que remetem a

     posições inferiores, como a mulher russa, sensual, luxuriosa, próxima da natureza, pela

    selvageria destas imagens/símbolos sintetizada na nacionalidade subalterna.

    A invisibilidade, especialmente da mulher, parece ter sido evidente para Virgínia

    Woolf, quando ela afirma:

    “Inevitavelmente, nós consideramos a sociedade um lugar de conspiração, que engole

    o irmão que muitas de nós tem razão de respeitar na vida privada, e impõe em seulugar um macho monstruoso, de voz tonitruante, de pulso rude, que, de forma pueril,inscreve no chão signos em giz, místicas linhas de demarcação, entre as quais os

     seres humanos ficam fixados, rígidos, separados, artificiais. Lugares em que, (...) [ohomem] usufrui dos prazeres suspeitos do poder e da dominação, enquanto nós,„suas‟ mulheres, nos vemos fechadas na casa da família, sem que nos seja dado

     participar de nenhuma das numerosas sociedades de que se compõe a sociedade.” 

    (Woolf, apud, Bourdieu: 1999:8-9).

    Mesmo que no filme Orlando a metáfora do invisível não seja explícita, mas expressa

    através da solidão e do controle do tempo, a situação de dominação da mulher não lhe permite

    definir-se por si mesma, o que para Woolf, na passagem anterior, resulta do espaço e posição

    sociais limitados que a mulher pode ocupar: a família e a casa. A alegoria da solidão, que vejo

    como metáfora da invisibilidade do outro, repete-se nas masculinidades não hegemônicas,

    mais claramente percebidas quando são inter-relacionadas com raça, nação etnia.

    Tornando o invisível visível 

    A obra de Ralph Ellison (1990)  –   Homem Invisível  –   tornou-se um clássico da

    literatura americana, não apenas pela constante republicação, mas pela influência que teve na

    reflexão sobre a condição do negro nos Estados Unidos. A partir da sua primeira edição

    (1947), a invisibilidade tornou-se uma metáfora para falar da definição dos brancos sobre o

    que é o “negro” naquela sociedade. A narrativa é densa em conteúdos simbólicos e imagensque desvendam as relações raciais. Mesmo que privilegie a polarização entre negros e

     brancos, no fundo explora a relação de alteridade em que elas se fundam. Analogicamente

     poder-se-ia dizer que o negro seria a segunda raça, assim como a mulher é o segundo sexo, na

    concepção de Beauvoir (1980)20.

    20 Com isso não quero dizer que as diferenças de raça e gênero são do mesmo tipo, conforme já anunciei na

     primeira parte deste trabalho. Por exemplo, retomando o caso brasileiro, a ideologia do branqueamento tinhacomo objetivo a supressão de pessoas de cor pela miscigenação com os brancos, enquanto que para mulher brasileira, mesmo que em posição de desigualdade, nunca houve um pressuposto ideológico desse tipo.

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    Ellison, além de tratar da alteridade, aborda um outro conjunto de questões que

     poderiam ser vistas em separado. Assim, ele salienta as diferenças estruturais das relações

    raciais entre o Norte e Sul dos EUA21. Preocupa-se com as relações entre homens negros e

    mulheres brancas, que invocam tanto a alteridade, como as diferenças entre os racismos

    regionais. Em paralelo, o autor reflete sobre o movimento político e social dos negros, para

    transcender a desigualdade construída desde a escravidão. A discussão centra-se no sentido de

    qual seria a melhor estratégia política de superação do racismo: o diálogo pacífico entre as

    raças, com a ascensão dos negros semelhante às dos brancos, mas separados em duas

    comunidades; ou, o confronto  –   propondo também a segregação  –  para obtenção rápida de

    riqueza e posições sociais; ou, uma luta conjunta de classe, inclusive com a possibilidade da

    miscigenação racial. Desta forma o autor também analisa os diversos tipos de relações entre

    negros e negros, decorrentes das diferenças de classe, de região, de educação.

    A obra é narrada pelo personagem central, alter  ego de Ralph Ellison, não fugindo à

    regra da literatura feita por negros nos EUA, quanto ao seu conteúdo confessional e, no mais

    das vezes, autobiográfico. Este personagem não é “nominado” e funciona como emblema da

    invisibilidade. Este recurso dá força à narrativa, posto que o nome é um dos principais

    símbolos da identidade na sociedade ocidental. Não ter nome simboliza “não ser”22.

    A narrativa inicia-se com um Prólogo, onde o personagem, doravante aqui

    denominado de homem invisível, coloca-se no seu momento presente, vivendo num porão,

    dando-se conta da grande descoberta de sua vida: sua invisibilidade decorrente de ter vivido

    em função das definições dos outros, daquilo que ele é. Este recurso estilístico permite a

    Ellison iniciar uma narrativa linear em  flash back , com o homem invisível recordando da

    morte do avô, cujas últimas palavras foram de ódio contra o branco: “Quero que você os

     subjugue de tanto dizer sim, que você os afogue com seus sorrisos subservientes, que você os

    obrigue a engoli-lo, até eles vomitarem ou estourarem de vez”. (Ellison, 1990:19).

    A passagem acima apresenta a grande tensão que marca todo o livro: somos aquilo quenos definimos? Ou somos aquilo que o outro diz que somos? Ou na verdade, resultamos do

     processo de interação entre o que somos e aquilo que o outro vê de nós nos processos

    interativos, cuja síntese só é possível por se compartilhar um substrato comum de humanidade

     –   o “princípio”, nas palavras de Ellison? A questão colocada por trás dessa metáfora da

    21 Como Zora N. Hurston (1984), Ellison empreende uma discussão ousada do disfarçado racismo do Norte Vertambém Hemenway (1978), ao comentar a obra de Hurston.22

     A obra de Mauss (2003) é um clássico sobre o tema da nominação e a construção da noção de pessoa. O nometem uma vasta simbologia de relação com o cosmos e as divindades, com posições sociais que orientam asinterações e a relação de alteridade.

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    trajetória individual da construção da personalidade do homem invisível é: como as relações

    de poder entre os grupos sociais  –   que convivem numa mesma sociedade  –   impossibilitam

    que um dos grupos se expresse pelos seus próprios processos sociais, com conteúdos

    simbólicos e culturais específicos, em suma que ele “seja”? 

    Depois de colocar esta questão, deixando o leitor em suspenso com a afirmação do avô

    do homem invisível, Ellison apresenta o personagem ingressando numa universidade para

    negros, no sul dos EUA, o que demarca, simultaneamente, uma ascensão de classe e sua

    autonomia como indivíduo. Sugere que o homem invisível tem consciência dos seus

     processos de autoconhecimento, que pode expressar-se por si próprio, como o branco tem o

    direito de fazer acerca de si mesmo. Mas se existe esta consciência, o autor não minimiza as

    dores do personagem, para negar a identidade negra constituída pela ótica dos brancos. Na

    verdade, negação do status quo do negro nos EUA.

    Para mostrar a magnitude dos processos enfrentados pelo personagem, Ellison escolhe

    descrever como primeiro episódio de sua vida uma festa, promovida pela elite branca da

    cidade natal do homem invisível, quando ele supostamente seria homenageado. Homenagem

    simbolizada na bolsa de estudos para a universidade, oferecida pela elite branca, como um

     prêmio pelo seu brilhante discurso de formatura do curso secundário. Simbolizada, também,

     pela oportunidade de repetir o “discurso de formatura”, outra justificava da presença do

    homem invisível naquela comemoração.

    O pronunciamento do discurso de formatura seria a grande atração da festa, entretanto,

    foi precedido por uma luta –  um vale tudo sem regras entre os jovens negros23  –  e pelo desfile

    de uma jovem branca inteiramente nua. Nesses dois últimos episódios estão concentradas

    representações significativas que liga o negro à natureza, particularmente no Sul dos EUA,

    como também das regras de etiqueta e de interação entre eles e os brancos. Sangue, suor e

    sexo são as imagens da festa que simbolizam as emoções de medo e pavor dos negros  –  

    convidados como atração e não como convivas. O suor dos negros é uma constante lembrançada escravidão recente; o sangue, da continuidade dos linchamentos decorrentes de qualquer

    quebra da etiqueta –  especialmente quanto à distância que deve haver entre mulheres brancas

    e homens negros, ameaça de estupros iminentes24. Mais ainda, porque a circulação de bebida,

    23 A luta parece remeter também à fetichização dos negros, sua objetificação –  como demonstrado pelos cartões postais africanos que circulavam das colônias para Europa na passagem entre os séculos XIX e XX (Corbey,1988).24

     Leonardi (1997) aponta a delicada intersecção gênero/raça nos EUA. Para esta autora o negro estuprador de brancas não corresponde às estatísticas que indicam a predominância de estupradores brancos. Há umaconstrução de um estereótipo baseado na representação de homens e mulheres brancas sobre a bestialidade da

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    comida e fumo durante a festa, chamava ao desregramento, sintetizado no desfile da mulher

     branca, estímulo à incontinência dos jovens negros, justificativa para o linchamento25.

    Por sua vez, a luta exacerbava a competição entre os negros, opondo rivalidade e

    solidariedade dentro de um grupo rigidamente estratificado entre vencedores e fracassados.

    Talvez por isso, o orgulho de vencedor e o medo do fracasso (que seria o seu linchamento

    moral) sejam as emoções que filtram as impressões do homem invisível sobre a festa. Pois,

    como se comportar para continuar merecendo o prêmio conquistado, diante do inusitado da

    situação para qual ele estava convidado como representante da “intelectualidade” negra, mas

    devendo antes afirmar sua animalidade? Submeter-se a esta pantomima ou rebelar-se?

    Esta ambigüidade é acentuada porque o homem invisível, somente pôde recitar seu

    discurso, após o teste da proximidade da fêmea branca e da dramática luta recentemente

     perdida, o que lhe deixou um gosto de sangue em cada palavra que lhe saia da boca

    dilacerada. Dessa forma, o discurso de formatura aparece como outro vale tudo. Representar

    que é capaz de manter-se em seu lugar, mesmo que pareça se distanciar da bestialidade pela

     palavra burilada do discurso. Envolto em suor manter-se próximo da escravidão, mostrar-se

    humilde, agradecido, nunca revoltado ou amargurado, nunca em fuga ou desafio. O prêmio é

    garantido. Sendo também dourado por um presente  –  um símbolo da passagem para a nova

     posição de universitário e intelectual: uma bela pasta de couro.

     Na universidade acompanhamos a angústia do homem invisível, no eterno papel de

    tentar agradar e ter o melhor desempenho, através da subserviência. Quem segue a sua

    trajetória, se não leu o prólogo, poderia sentir-se nauseado pelas suas intenções e ações. Mas,

    dizer sim, como sugeriu o avô parece mesmo levar a ser regurgitado. É o que acontece. O

    homem invisível é expulso da universidade por Bledsoe  –   o reitor do campus  –   ao tentar

    agradar ao Sr. Norton –  empresário do Norte e provedor da universidade.

     Norton conquista a confiança do homem invisível ao dizer lhe que um é o destino do

    outro, convencendo-o fazer um passeio de carro fora do campus  para conhecer uma casatípica dos negros, estreitando assim, a aliança entre brancos e negros. A família que visitam

    tem uma mácula: o chefe da casa mantinha relações incestuosas com uma filha. Ellison

    insinua que Norton está fascinado por esta história, porque este homem branco perdera uma

    filha recentemente, a qual ele desejou sexualmente, deixando no ar o mistério sobre a morte

    dela e sobre a prática do incesto. O episódio diz, implicitamente, que o branco projeta no

    sexualidade negra, que resulta da aproximação dos negros da selvageria e da natureza (Cf. Corbey, 1988;

    Schiebinger 1993).25  Em outras passagens o homem invisível irá retomar este tema, invertendo o estereótipo, colocando nasmulheres brancas a fantasia e o desejo sobre e pelo homem negro, bem dotado sexualmente e estuprador.

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    homem negro as fantasias sexuais condenadas por sua moral puritana (Corbey, 1988), pois

     Norton não consegue superar a visão de sua imagem invertida e adoece. Bledsoe decide,

    então, expulsar o homem invisível da universidade, com um requinte de maldade: não lhe diz

    que foi expulso e o estimula a procurar trabalho no norte, junto a provedores de universidades

    negras, de forma a conseguir recursos para custear seus estudos posteriormente.

    Dessa forma, o autor questiona a irmandade entre os negros e a tolerância racial dos

    homens do norte. Brancos do norte e do sul bestializam os negros, e têm neles fontes de

     projeção de suas fantasias. Desvenda intrincadas relações de raça e gênero, bem como de

    classe e raça. As identidades tidas como unificadas são rompidas, revelando-se suas

    diferenças internas. Mostra a alteridade sem autonomia dos negros, que devem seguir as

    regras prescritas nos códigos do branco. Esta situação remete ao debate sobre os mecanismos

    de superação do racismo. Será ou não a educação elemento suficiente para retirar o povo

    negro da desigualdade racial? O esforço pessoal e pacífico, sem alterar a segregação que

    caracteriza o Sul, sem discutir as bases das diferenças que sustentam as desigualdades,

     propiciará aos negros a almejada dignidade?

     No novo cenário do Norte, o homem invisível passará a refletir sobre si mesmo e sobre

    a condição do negro através de novos elementos, destacadamente, organizações políticas de

    combate ao racismo. Ele viverá muitas aventuras na cidade de Nova York, situado a partir do

    Harlem. De início lhe assusta a freqüência de negros e brancos aos mesmos lugares, que

     propicia uma proximidade física inusitada, dando lugar à sensação de liberdade e sofisticação,

     propiciada pela suposta igualdade racial. Negar o Sul torna-se uma meta a ser alcançada.

    Bledsoe é seu parâmetro de comparação, a medida do máximo de humanidade que um homem

    negro pode alcançar. É também seu permanente fantasma do fracasso desta empreitada.

    Pouco a pouco a esperança vai sendo perdida, substituída por um vaguear sem rumo e

    nebuloso, desaparecendo de vez com a descoberta de sua expulsão do campus por Bledsoe. O

    homem invisível perde a memória, depois de uma explosão por ele provocada no seu primeiroemprego em Nova York entrando num período de liminaridade (Turner 1974), ponto de

    inflexão para novas experiências de identidade. Neste período permanece internado num

    hospital, seu corpo será submetido a experiências científicas por médicos brancos. Estes

    acontecimentos soam como um apagamento daquilo que foi o homem invisível e,

    simultaneamente, como uma afirmação da materialidade do seu corpo, porém um corpo

    objeto, antes escravo –  força bruta; agora cobaia –  vigor inerte. O corpo negado e reafirmado,

    ora quase símbolo, ora apenas o físico, a carne com a qual se manipula. O homem invisívelreflete como se mantém preso ao corpo físico pelo seu cheiro, pela cor, pelo suor, pelo

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    cabelo26  e, ao mesmo tempo, percebe o quanto se procura nega-lo, pelo esforço de

     branqueamento que persegue os negros e negras do Harlem através do alistamento de cabelo,

    clareamento de pele e do casamento com uma pessoa branca. Ellison parece querer evidenciar

    uma hierarquia de um corpo sobre o outro, decorrente da estrutura social (Bordo 1997).

    Este período liminar teve como conseqüência a perda das ilusões sobre a ascensão

    através da educação e a adesão a novos valores, através de um movimento de luta contra o

    racismo. O ingresso num movimento é antecedido pelo consumo de alimentos sulistas, como

    se quisesse demarcar uma nova apropriação do corpo. Logo após comer batatas doces à moda

    do Sul, ele faz um discurso que incita as massas a resistir a um despejo. A partir daí ele torna-

    se membro da Confraria  –   organização implicitamente socialista, que considera a luta de

    classes o principal elemento para unir negros e brancos, afinal todos são trabalhadores

    expropriados dos meios de produção. Vale notar que, assim como o discurso de formatura

    marcou a entrada na universidade, esta nova posição de liderança política, dar-se-á pelo poder

    da palavra. A palavra aparece como metáfora da definição social do homem invisível, sendo

    que aqui ela é proferida sem negar o corpo, ao contrário do que aconteceu na festa, na qual a

     palavra serviu para apagar o corpo e sua associação com a animalidade.

    O homem invisível chega a acreditar que é possível, neste novo cenário de interações

    raciais, existir relações de alteridade entre negros e brancos que não impliquem na negação do

    negro. O tratamento pelo termo „Irmão‟ entre os membros da Confraria –  independente da cor

    da pele  –   parece concretizar a igualdade entre as raças. A política, baseada na análise

    científica da história, indica as soluções para a desigualdade baseada em qualquer marcador

    que seja, desde que primeiro solucione-se a de classe. Ele reavalia seus sonhos anteriores de

    ascensão individual e abraça projetos coletivos, referentes à comunidade negra.

    Entretanto, as interações dentro da Confraria, recobre-se de tensão, simbolizada

     principalmente nas mulheres brancas, revelada nas palavras de medo e incompreensão do

    homem invisível: “Porque eles (os brancos) sempre colocam as mulheres no meio quando há  tensão racial ou de poder entre as raças?”. Através delas ele será punido pelos membros da

    Confraria, os quais, ao perderem a confiança na sua liderança no Harlem, incumbem-no de

    discutir a condição da mulher.

    26 As reflexões desenvolvidas por Ellison lembram os argumentos de Bordo (1997), se o corpo é compreendido a partir de um conjunto de significados, daí não se pode negar sua existência física, e o muito que ela pode nosdizer. A autora critica o apagamento do corpo físico nas elaborações recentes sobre corpo, que privilegiam odiscurso e o significado, que parecem negar os limites para fazer sua construção, as quais são orientadas pela

    hierarquia de um corpo sobre o outro, e restritas de acordo com as posições sociais dos agentes. Ou seja, muda-se o corpo em consonância com uma hierarquia assimétrica de tipos corporais, e somente alguns podem faze-lode acordo com a posição social que ocupa.

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    Ellison usa esta situação para refletir sobre os tipos de organização política anti-

    racista, exposta na oposição entre a Confraria e a liderança política de Rás  –  o Exortador, o

    Rei Negro Etíope. Rás tem uma proposta política contrária à da Confraria: prega a violência e

    segregação entre negros e brancos; a apropriação das riquezas pelos negros; o retorno aos

    costumes africanos. O homem invisível tem vergonha da primitividade de Rás, continua

     partidário dos valores universais da educação branca, liberal ou socialista. Mas, ao mesmo

    tempo, subjaz uma certa admiração ao seu estilo e propostas políticas.

    Esta discussão é nuançada, pois a insatisfação do homem invisível com a Confraria,

    decorre também das observações de tipos que ele encontra nas ruas: os desempregados

    violentos; o contraventor; os pastores charlatões; as mulheres negras sedutoras ou símbolos da

    grande mãe etc. Esses tipos parecem contradizer as afirmações „científicas‟ dos dirigentes da

    Confraria –  cujo discurso incita a ação das massas, mas a prática política relega o momento da

    ação ao curso da história. Tentando alertá-los sobre a necessidade de uma política mais

    específica, imediata e contundente para os negros do Harlem, o homem invisível não

    consegue ser ouvido. Mas por confiar tanto nos valores brancos, não insiste na sua

    discordância, parecendo que prefere sempre dizer sim. Até que o Harlem explode, o homem

    invisível a tudo assiste, mas não pode por em prática suas teorias de liderança das massas,

    será Rás quem estará à frente do levante da comunidade negra.

    Este ápice da narrativa é o momento em que o homem invisível finalmente descobre

    sua invisibilidade. E parece desejar concretiza-la, posto que, a última cena, mostra o

    isolamento clandestino do homem invisível num porão, porém, ironicamente, feericamente

    iluminado pela energia roubada do Estado americano.

    Portanto, a obra de Ellison nos remete para toda uma reflexão antropológica sobre

    alteridade. Por exemplo, Corbey (1993) analisa as feiras universais como eventos que

    construíam tanto a história do ocidente, definida pelo progresso, como o lugar dos povos

     primitivos, dando para humanidade a medida do “homem”, da sociedade e da cultura. Mas, adespeito do método utilizado para defini-los ser pertinente e certos conteúdos descritivos

     parecerem fidedignos, estes povos foram posicionados, por alguns autores, para

    complementar a história do ocidente. E, em grande parte, uma diferença cognitiva real foi

    aliada com a diferença física também real, o que resultou numa conclusão falsa que afirmava

    a diferença de raça, de cor, de traços fisionômicos como a causa das especificidades culturais;

    além de ter implícito uma hierarquia cognitiva com os europeus alocados no topo. Esta

    relação causal impossibilitava a transcendência, pois tais marcas corporais se

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    consubstanciavam em diferenças intrínsecas de pensar e agir  –  o que colocava a humanidade

     plena acessível apenas a poucos privilegiados, de acordo com sua conformação corporal27.

    Mas não podemos esquecer que estas representações sociais sustentam visões de

    mundo, rebatem na elaboração científica, legitimam ações políticas, reproduzem ideologias.

     Nesses cruzamentos a estrutura social cria estabilidade, perde sua memória histórica e

    reflexiva, naturaliza-se em comportamentos fundamentalistas para negros e brancos. Natureza

    e cultura, numa relação ambígua e dialética, sustentam desigualdades, onde a diferença é fator

    de fixidez e distanciamento, deixando de compor a definição de humano. Humanidade sendo

    realizada no mesmo, na similitude, o contraste é manipulado para apresentar a negatividade da

    diferença dos grupos alocados nas posições inferiores da estrutura social. A corporeidade,

    através do valor negativo de suas representações, aprisiona o diferente inferior,

    contraditoriamente, através do corpo, aqueles que são significados positivamente, podem

    alcançar a transcendência.

    Ellison fustiga o determinismo da natureza da raça sobre as construções psicológicas e

    sociais dos personagens em cena. E é pelo uso da palavra, a característica humana mais

    reivindicada para distanciá-la da animalidade, que são marcadas as mudanças mais

    importantes da trajetória do homem invisível, mudanças que o leva a compreender sua

    invisibilidade. Ellison parece querer demonstrar que ao falar por si mesmo o negro pode se

    definir e alcançar uma relação de alteridade que não seja de negatividade da sua existência,

    inclusive da sua corporeidade diferente, mas não imanente.

    Teoria, invisibilidade e política ou o universal constituído pela diferença

    Como disse no início, este trabalho foi construído com um intuito subjacente de nos

    inspirar soluções de problemas e impasses científicos e políticos, através da análise de obras

    ficcionais, de forma que sua liberdade criadora ajudasse a avançar limites metodológicos, queàs vezes podem aprisionar esses dois campos de conhecimento e prática. A seguir, retomo

    sugestões implícitas nas duas obras, através das quais, os autores procuram resolver relações,

    consideradas tensas pelas ciências sociais, entre universal/particular, cultura/sociedade,

    corpo/representação. Penso assim contribuir, de modo ainda incipiente, para o debate sobre

    essas mesmas tensões, especialmente no campo da teoria antropológica. Impasses

    27 Ver também Schiebinger, 1993, para uma discussão sobre natureza e constituição da nação, especialmente olugar das mulheres neste processo.

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    intensificados pela re-conceituação de identidade, reposicionada frente aos seus termos afins:

    igualdade, diferença e desigualdade.

    Por caminhos distintos as obras  –  “Homem invisível” e “Orlando” –  estão discutindo

    como a diferença pode ser uma base de elaboração sócio-cultural para o isolamento e a

    negação da existência de grupos humanos. E, nos convidando a entender o universal, não mais

     pela invariância, mas pela sua relação com a diferença. As duas obras apresentam seus

     personagens com compreensões distintas do que é ser diferente e de suas implicações para

     pensar o humano. Orlando inicia seu percurso mostrando que a posição fixada socialmente

    causa isolamento e negação da interação entre grupos humanos. Homem invisível, por sua

    vez, principia sua trajetória aceitando que a diferença produza o isolamento de grupos sociais,

    deste que, dentro de cada um deles, as regras de ascensão dos seus membros sejam cumpridas.

    Daí que cada obra apresenta uma solução diversa para o problema. Orlando, deslocando-se

     por identidades subalternas, que lhe permite experimentar sair da posição superior de classe,

    nação, gênero e raça para viver como “outro” invisível. Homem invisível, realizando um

    mergulho na identidade de homem negro, cuja elaboração diferente pelos vários grupos com

    os quais interage ou pertence, cada vez mais evidencia sua condição de invisibilidade.

    Conseqüentemente, as reflexões políticas e iluminações sobre impasses teóricos, que as duas

    obras oferecem ao leitor/espectador, são opostas, apresentando sugestões diversas para

    relações entre corpo/representação, universal/particular, cultura/sociedade.

    A solução política apresentada em “Orlando” sugere que se desafie o limite das

    diferenças de forma individual, que cada um faça a política do desejo  –  “cada um pode ser

    aquilo que deseja ser”. Entretanto, esta política parece restrita por, pelo menos, duas razões

    que se expressam na própria maneira de tentar solucioná-la no desenlace da obra. A primeira

    dessas razões é o reforço da individualidade e o abandono da diferença, com a qual ele,

    Orlando, interagiu apenas para realizar seus próprios desejos. Faço esta interpretação

     baseando-me na decisão de Orlando de desistir de manter a interação com o único outro noqual não se transmutou (o homem estrangeiro, mestiço e aventureiro), o único outro que

    experimentou através de uma troca plena, simbolizada na relação amorosa, livre e autônoma

    com este outro. Nesse sentido, conforme sugerido por Hall, a diferença, de fato, não faz

    diferença. Ou, conforme a ironia de Bauman (1998), a convivência com o outro é de „fim de

    semana‟, ou seja, ela se realiza dentro do limite do suportável, com o retorno p osterior ao

    grupo de idênticos. Portanto, esta solução não parece contribuir para resolver politicamente e

    teoricamente as desigualdades causadas pelas diferenças.

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    A segunda razão decorre da primeira, pois Orlando desiste da continuidade da relação

    com o aventureiro, em troca da maternidade geradora de uma criança, síntese das diferentes

    identidades vividas por Orlando, por ser mestiça, andrógina e, aparentemente, assexuada,

    dessa forma, afastando-o da solidão. Esta solução sugere libertá-lo das amarras do tempo, o

    qual apresenta-se condensado em presente, passado e futuro na criança que nasceu. Portanto,

    os desencontros causados pelas diferenças, entre homens e mulheres, raças e nações, são

    resolvidos no retorno a uma unidade que consente, ao humano pleno, viver todas as personas 

    elaboradas culturalmente.

    Há uma dimensão positiva nesta proposta por afirmar que o universal é possível,

     porque cada um de nós possui todas as possibilidades do humano. Mas será que ela não

    suprime a diferença, na medida que o universal se consubstancia numa síntese de todas as

    diferenças num novo tipo de ser? Não haveria aí um retorno à idéia iluminista de que para ser

    igual precisamos ser idênticos, mesmo que impuros, porque misturados? Entretanto, a própria

    narrativa linear do filme evidencia que cada possibilidade humana necessita ser vivida

    separadamente, então, como viver tudo que é possível? Ou seja, não somos, e nem podemos

    ser, simultaneamente, todas as dimensões possíveis do humano. Somos diferentes em

    diferentes tempos e lugares. E mesmo os que se apresentam híbridos, são submetidos a

    classificações, reinstituindo o ciclo de novas diferenças28.

    Além do mais, se a compreensão da diferença, para suplantar a solidão que inviabiliza

    o encontro e o reconhecimento de si e do outro, depender da experiência individual, completa

    e concreta, de todas as possibilidades humanas, será muito difícil superar a invisibilidade que

    algumas alteridades comportam. Mas, sobretudo, esta solução, por ser individual, parece

    negar a base coletiva e construída da verdade dessas diferenças e, assim, da interação que as

    sustenta, interação negada por Orlando ao preferir a maternidade à continuidade de uma troca

    com um diferente. Nesse sentido, a negociação, que depende da interação entre „um‟ e

    „outro‟,  é também negada, e sem ela não há a possibilidade da transformação política dascategorias e marcas que organizam a diferença, base de hierarquias e desencontros que

    constrangem a liberdade individual.

    28  As discussões atuais sobre híbrido, impuro, misturado etc, que decorrem das trocas culturais e sociais, procuram resolver a desigualdade baseada na diferença, bem como criticar concepções de identidade livre deimpureza, tida como imutável, imemorial e autêntica (ver Hall 2003a e Haraway 2000). Todavia, considero quenessas discussões não são abordadas como aquilo que é híbrido pode ser re-significado e ser aceito como puro ou

     pode receber nova categorização e alterar um quadro de classificações pré-existentes, sem necessariamenteacabar com a desigualdade baseada na diferença. Considero que a idéia de evento de Sahlins (1990, 2004b,

    2004c) ajuda a pensar estas transformações. Ou ainda, parece que não se tem atentado para o fato de que a defesado hibridismo pode suprimir a diferença, no caso brasileiro, por exemplo, a ideologia do branqueamento, atravésda miscigenação, tinha como fim último criar o branco brasileiro, veja-se Romero (1977).

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    Por sua vez, esquecer o passado como faz Orlando, oblitera a compreensão das

    dificuldades políticas, econômicas, culturais, históricas e sociais de cruzar fronteiras de

    nacionalidade, sexo e gênero. Talvez por isso, curiosamente, Orlando tenha contribuído para

    invisibilidade dos vários outros que viveu, pois os abandonou a cada vez que aconteceram

    impasses desses tipos. Por fim, a solução última da maternidade mestiça, paradoxalmente,

     parece insuficiente na perspectiva de gênero, que critica ser mãe como destino.

    Estas considerações não são para negar a contribuição das reflexões de Orlando para

    uma apreciação dos modelos construídos de gênero, raça, nação, sendo muito pertinente com

    a recente produção acadêmica sobre gênero e raça, a qual aponta sua relação com a

    elaboração de desigualdades. Também concorda com esta literatura ao denunciar a essência

    de identidade de gênero, raça ou nação, ao mostrar a fluidez dessas identidades, indo na

    direção de, alegoricamente, propor que as identidades são posicionais, assumidas de acordo

    com situações e interações/relações. Entretanto, sua estratégia de superar as desigualdades é

    limitada, é uma forma de negação da negociação política, como bem aponta a crítica de bell

    hooks: “Não precisamos de política. Não precisamos de luta. Tudo que precisamos é desejo.

     É o desejo que se torna o lugar da conexão. Esta é uma versão bem pós-moderna do desejo,

    como o novo lugar da transgressão que elimina a necessidade da política radical”  (apud

    Friedman 1995).

    Essa discussão contém outra tensão da teoria social, a relação entre corpo e

    representação/significado. Pois Orlando procurou desafiar os limites corporais de sexo e raça,

    transpostos através de uma fusão numa pessoa mestiça e andrógina29. Mas, como nos lembra

    Bordo (1997), as teorias atuais pautadas na ênfase do significado sobre matéria, que sustenta a

     proposta da construção do corpo de forma livre pelos indivíduos, apresentam-se limitadas em

    duas direções: primeiro por incorrer no erro teórico da dualidade corpo/mente da teoria de

    Descarte, que pretendiam romper, pois a matéria corporal parece ser esquecida nas

    explicações em favor do significado, nesse sentido estas teorias, ao invés de resolver a relaçãodicotômica, apagam um dos seus termos. Segundo, ao apregoarem, como acessível a todos, a

    29 Butler (1998a), é um bom exemplo dessa discussão com uma proposta teórica radical da determinação dosignificado sobre o corpo biológico, que torna possível construir o corpo de maneira muito livre através da ação

     política, sendo essa uma possibilidade de dirimir as desigualdades de gênero. Noutro artigo a autora procuraresponder aos críticos que viram na sua teoria uma negação da materialidade dos corpos, explicando a relaçãoentre corpo físico e significado da seguinte forma (baseada em Foucault e Wittig): o sexo não descreve  umamaterialidade prévia, mas produz e regula a inteligibilidade da materialidade   dos corpos. (Butler 1998b:39,ênfase no original). Entretanto, justamente por usar o sexo como exemplo, a parte do corpo de homens emulheres que se apresenta notavelmente distinta, parece-me que ela contradiz sua própria afirmação, pois no

    sexo podemos observar uma diferença que se consubstancializa numa materialidade prévia, mesmo que suaapreensão cognitiva seja mediada pela cultura e pelo significado sustentando e sendo sustentado por relaçõessociais, mais ou menos desiguais, entre seres humanos.

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    transformação do corpo pelas novas tecnologias, justificada exatamente pelo significado.

    Estas transformações, no geral, direcionam-se para a estética branca, reforçando sua

    superioridade na hierarquia corporal, bem como, elas são constrangidas pelas posições sociais

    e por isso são um desejo realizável para alguns. Neste sentido Orlando, rico, nobre, branco,

    inglês  –   pôde realizar muitas experiências de identidades, mas será que ele/ela poderia se

    ocupasse outra posição de classe, outra cor, outra nacionalidade?

    Voltando-nos agora para a segunda obra, ao acompanhar o mergulho identitário do

    Homem invisível, Ellison realiza, em paralelo, uma reflexão sobre o movimento político e

    social da população negra nos EUA. Durante todo o processo, o personagem elabora suas

    descobertas em interação com o outro, levando-nos a refletir sobre relações sociais variadas,

     bem como, sobre os significados correlatos que servem para sustentar o social. Dessa forma,

    as descobertas subjetivas estão ancoradas em processos sócio-culturais, ressaltando a

    mediação de estratégias políticas coletivas para resolver, tanto as desigualdades sociais, como

    as escolhas pessoais. Neste percurso, Ellison vai valorizando, mesmo que sutilmente, a

    organização coletiva para elaboração da política racial nos EUA. Entretanto, não perde de

    vista que todas as estratégias serão limitadas, se não discutirem como a diferença é

    fundamento da invisibilidade.

     Nesse sentido, é uma proposta política que tem por base a interação com o outro,

    mesmo que seja pelo enfrentamento e pela dor. O homem invisível vive cada posição que lhe

    é oferecida até que seja expulso, e é nesse processo que se descobre invisível, porque sua

     possibilidade de negociação é quase inexistente. Por isso ele se encontra constantemente

    ameaçado, em dúvida sobre as ações adequadas para se relacionar com brancos, negros de

    condição superior e mulheres brancas. Por esta razão, talvez, a reflexão da possibilidade do

    universal, seja um „princípio‟ que todos temos. 

    Veja-se aqui que a proposta é inversa à de Orlando, não é conter todos os humanos

     possíveis no „um‟, mas sim sugerir que todos os humanos, mesmo que muito diferentes e atédesiguais, compartilham de algo comum. Da síntese do híbrido, que comportaria todas as

    diferenças, passa-se à consideração de que, a despeito das diferenças, existe uma unidade,

    unidade esta que parece ser a base para a interação, compreensão de si e compreensão do

    outro.

     Nesse sentido, retomando a discussão sobre como a ficção pode iluminar a teoria

    social, considero que esta sugestão de Ellison recupera, para nós cientistas, a plausibilidade da

    generalização. Todavia, o autor parece retorcer o argumento que baseia a presunção dageneralização, nele não é a unidade que é transversal às diferenças, mas a diferença é que é

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    transversal a esta unidade. Ou seja, admite que o humano se realiza de forma diferente social

    e historicamente, e mantém a sua unidade exatamente, porque, a diferença, é a condição de

     possibilidade do humano30. Precisamos recuperar esta compreensão, na medida em que

    somente nos reconhecemos, como „um‟ ou como „outro‟, num processo de interação.

    Dependemos da diferença para reconhecer nossa especificidade, nisso reside nossa unidade,

     bem como a possibilidade das relações sociais. Talvez, dessa forma se consiga resolver o tipo

    de alteridade invisível que Ellison identifica na sua obra, pois na base dessa reflexão está uma

     proposta ontológica que pressupõe a reversibilidade da posição de „outro‟, para a posição de

    „um‟. Nesse sentido, o „outro‟ invisível porque não pôde nunca ter autonomia para se definir,

    ao conseguir fazer com autonomia sua definição e ser reconhecido no lugar do „um‟, também

    inclui sua diferença entre as possibilidades do humano. Esta reversibilidade entre „um‟ e

    „outro‟ oferece uma nova forma de perceber a diferença, através da qual nos reconhecemos

    como grupo ou individualmente, e ao mesmo tempo como o que compartilhamos como a

    unidade31.

    Estas afirmações anteriores, baseadas na obra de Ellison, não parecem distintas da

    discussão de Hall sobre a produção incessante da diferença no processo de identidade

    (baseado no pós-estruturalismo de Derrida). Contudo, considero que há uma distância entre

    ambas, posto que Hall sinaliza para necessidade de descartar generalizações, ao radicalizar a

    historicidade da teoria, em paralelo com a centralidade do discurso para explicar esta

     produção de diferença. Nesse percurso, afirma-se que a generalização não é possível nem

    objetiva, tendo em vista a constatação da complexidade do ocidente contemporâneo,

    caracterizado por relações fragmentadas, fluidas e não fixas, que acentuam cada vez mais a

    diferença em detrimento da unidade, qualquer que seja32. No extremo desse raciocínio o

    conhecimento não é possível, na medida que haveria um limite quase intransponível entre as

    subjetividades distintas do observador e do observado. Com essa virada teórica, o risco que

    30  Até certo ponto estas discussões lembram Geertz (1973, cap. 2), quando ele sugeria a possibilidade doconceito de homem universal através da compreensão de suas particularidades, no sentido do particular nos levara compreender todos os limites do humano.31 Estas são reflexões livres que a obra de Ellison me sugere. Não sei de suas contradições ou possibilidades, poismeus conhecimentos em filosofia não me permitem avaliar seu alcance, filiação ou mesmo novidade. Senti-meum pouco mais à vontade para registrar estas impressões sobre a relação „um‟ e „outro‟, porque, quando fazia as  ultimas correções deste trabalho, li o texto de Bordo de 2000 (que citei anteriormente). Nele a autora reflete ecritica a posição de „outro‟ (no sentido dado por Beauvoir para as mulheres) ocupado pelas feministas nos artigoscientíficos que identificam os principais autores da crítica cultural pós-moderna e pós-estruturalista. Percebo nasdiscussões de Bordo aproximações com as reflexões que faço aqui. Entretanto, a autora não se estende para

     pensar o universal, mas indica que todo universal estará incom pleto e será autoritário enquanto houver „outros‟

    que não sejam incluídos no „um‟.  32 Estas afirmações não são apenas de Hall, mas de uma plêiade de autores, inclusive muitas feministas, queforam citadas ao longo deste trabalho, mais destacadamente Butler.

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    corremos é subsumir condições objetivas de existência em favor do discurso (como por

    exemplo, os constrangimentos decorrentes de posições econômicas), inviabilizar comparações

     pertinentes, apagar causalidades evidentes, que nos levariam novamente a acatar a

    generalização como positiva para o conhecimento.

    Estas considerações estão inspiradas nas críticas de Gellner (1992) ao pós-modernismo

    na antropologia, baseado numa densa discussão sobre epistemologia33. Todavia, acatar essas

    considerações de Gellner, não implica concordar com todas as outras que ele apresenta. Tenho

    dúvidas, por exemp