[re]pensando valores no contexto das pesquisas científicas...

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Alves et Al. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 9(gt25):1-13 [Re]pensando valores no contexto das pesquisas científicas na produção de ciência e tecnologia: os comitês de ética em pesquisa são espaços para disseminar essa reflexão? GT25 – Interdisciplinaridade em CTS Silvia Cardoso Bittencourt Fernando Hellmann Resumo: A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) foi criada em 1996 com a função de implementar normas e diretrizes regulamentadoras relativas à pesquisa envolvendo seres humanos. É vinculada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS)/Ministério da Saúde (MS) e, em conjunto com os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), examina aspectos éticos de protocolos de pesquisa envolvendo seres humanos. A formação do Sistema CEP/CONEP é multidisciplinar, incluindo pesquisadores de diferentes áreas, profissionais de saúde e representantes de usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), o que permite o olhar interdisciplinar na avaliação de aspectos éticos da pesquisa. Entre os principais objetivos do sistema CEP/CONEP está a proteção dos participantes/sujeitos envolvidos na pesquisa. Ainda que esse sistema esteja ameaçado no que se refere ao controle social (o Projeto de Lei 7082/17, entre outras mudanças, inclui a desvinculação do sistema CEP/CONEP do CNS) e receba críticas de pesquisadores tanto das Ciências da Saúde como das Ciências Sociais e Humanas, a proposta deste ensaio é apontar para possíveis contribuições desse espaço para a reflexão sobre os valores envolvidos na produção de ciência e tecnologia. Nem sempre, nos processos de construção do conhecimento científico e do desenvolvimento de novas tecnologias, através das pesquisas científicas, são visíveis os valores (pessoais, sociais) subjacentes e que os impulsionam. Talvez para aqueles que se ocupam em estudar e “destrinchar” esses processos (do ponto de vista da sociologia, da história da ciência ou da antropologia, por exemplo) as opacidades que “escondem” esses valores não sejam “tão opacas”. No entanto, para os pesquisadores (de diferentes áreas) essas opacidades permitem naturalizar a visão de neutralidade e autonomia da ciência e do desenvolvimento tecnológico e justificar a realização de suas pesquisas. A questão que se coloca está no espaço privilegiado dos CEPs (que têm entre suas atribuições a função educativa) para trazer à tona reflexões sobre a influência de diferentes valores no âmbito da pesquisa científica e as repercussões desta na sociedade. A disseminação dessa reflexão no ambiente acadêmico, em linguagem acessível a diferentes áreas a partir de um olhar interdisciplinar, pode contribuir para capilarizar a discussão que já acontece, de alguma forma, nas Ciências Sociais e Humanas. Palavras chave: Interdisciplinaridade; Ciência, Tecnologia e Sociedade; Ética em Pesquisa

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Alves et Al. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 9(gt25):1-13

[Re]pensando valores no contexto das pesquisascientíficas na produção de ciência e tecnologia: oscomitês de ética em pesquisa são espaços paradisseminar essa reflexão?

GT25 – Interdisciplinaridade em CTS

Silvia Cardoso BittencourtFernando Hellmann

Resumo: A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) foi criada em 1996 com a função deimplementar normas e diretrizes regulamentadoras relativas à pesquisa envolvendo seres humanos. Évinculada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS)/Ministério da Saúde (MS) e, em conjunto com osComitês de Ética em Pesquisa (CEPs), examina aspectos éticos de protocolos de pesquisa envolvendoseres humanos. A formação do Sistema CEP/CONEP é multidisciplinar, incluindo pesquisadores dediferentes áreas, profissionais de saúde e representantes de usuários do Sistema Único de Saúde(SUS), o que permite o olhar interdisciplinar na avaliação de aspectos éticos da pesquisa. Entre osprincipais objetivos do sistema CEP/CONEP está a proteção dos participantes/sujeitos envolvidos napesquisa. Ainda que esse sistema esteja ameaçado no que se refere ao controle social (o Projeto de Lei7082/17, entre outras mudanças, inclui a desvinculação do sistema CEP/CONEP do CNS) e recebacríticas de pesquisadores tanto das Ciências da Saúde como das Ciências Sociais e Humanas, aproposta deste ensaio é apontar para possíveis contribuições desse espaço para a reflexão sobre osvalores envolvidos na produção de ciência e tecnologia. Nem sempre, nos processos de construção doconhecimento científico e do desenvolvimento de novas tecnologias, através das pesquisas científicas,são visíveis os valores (pessoais, sociais) subjacentes e que os impulsionam. Talvez para aqueles que seocupam em estudar e “destrinchar” esses processos (do ponto de vista da sociologia, da história daciência ou da antropologia, por exemplo) as opacidades que “escondem” esses valores não sejam “tãoopacas”. No entanto, para os pesquisadores (de diferentes áreas) essas opacidades permitemnaturalizar a visão de neutralidade e autonomia da ciência e do desenvolvimento tecnológico ejustificar a realização de suas pesquisas. A questão que se coloca está no espaço privilegiado dos CEPs(que têm entre suas atribuições a função educativa) para trazer à tona reflexões sobre a influência dediferentes valores no âmbito da pesquisa científica e as repercussões desta na sociedade. Adisseminação dessa reflexão no ambiente acadêmico, em linguagem acessível a diferentes áreas apartir de um olhar interdisciplinar, pode contribuir para capilarizar a discussão que já acontece, dealguma forma, nas Ciências Sociais e Humanas.

Palavras chave: Interdisciplinaridade; Ciência, Tecnologia e Sociedade; Ética em Pesquisa

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Sistema CEP/CONEP

A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), criada em 1996, é vinculada ao

Conselho Nacional de Saúde (CNS)/Ministério da Saúde (MS) e, em conjunto com os

Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), examina aspectos éticos de protocolos de pesquisa

envolvendo seres humanos em nosso país. A formação do Sistema CEP/CONEP é

multidisciplinar, incluindo pesquisadores de diferentes áreas, profissionais de saúde e

representantes de usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Essa composição diversa

permite o olhar interdisciplinar na avaliação de aspectos éticos das pesquisas propostas, e

entre os principais objetivos desse sistema está a proteção dos participantes/sujeitos nelas

envolvidos (BRASIL, 2012). Além disso, o CEP/CONEP tem entre suas atribuições um

“papel consultivo e educativo, fomentando a reflexão em torno da ética na ciência” (BRASIL,

2007).

Ainda que esse sistema esteja ameaçado no que se refere ao controle social pelo

Projeto de Lei 7082/87, que, entre outras mudanças, inclui a desvinculação do sistema

CEP/CONEP do CNS (BRASIL, 2017), e mesmo que receba críticas de pesquisadores tanto

das Ciências da Saúde como das Ciências Sociais e Humanas, a proposta deste ensaio é

apontar para possíveis contribuições desse espaço para a reflexão sobre os valores envolvidos

na produção de ciência e tecnologia. Vale lembrar que as diretrizes do Sistema CEP/CONEP

foram construídas a partir de documentos internacionais, como a Declaração Universal dos

Direitos Humanos, de 1948, e são direcionadas para esse espaço de interação entre o ser

humano e o desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico que é a pesquisa

científica.

Valores e conhecimento científico

Aparentemente, todas as pesquisas que envolvem seres humanos, no âmbito da ciência

e do desenvolvimento de novas tecnologias, são desenvolvidas para melhorar a qualidade de

vida e proporcionar bem-estar, se não aos envolvidos diretamente, à coletividade de forma

geral (ainda que essa premissa possa ser questionada, partiremos desse ponto para fins desta

reflexão). Porém, sabemos que diferentes valores podem estar em disputa quando se fala na

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construção do conhecimento científico. Lacey (1998) lembra que, se por um lado a ciência

desenvolvida a partir de certos valores cognitivos1 tem gerado conhecimento exemplar por

tornar a ação e a prática fundamentadas no conhecimento científico bem-sucedidas (e com

isso permitir a ação da tecnologia moderna), por outro, está sujeita à influência de valores2,

tais como os valores pessoais e sociais.

Os valores pessoais podem ser tanto pontos de referência quanto produtos dos

processos com (e sobre) os quais refletimos e avaliamos nossos desejos (e nossos desejos

apontam para o caráter pessoal de um valor). Além disso, podem ser (e, em geral, são)

manifestados em comportamentos, expressos em práticas e articulados em palavras, o que

permite que se tornem objeto de investigação (psicológica, epistêmica e avaliativa), de

reflexão, de discussão e de argumento crítico. Quando alguém descobre, em consequência

dessa articulação, que compartilha valores com outros, tais valores podem se tornar a base da

participação em práticas conjuntas e de construção da comunidade.

Os valores pessoais costumam estar articulados a valores sociais que, por sua vez, se

manifestam em programas, leis e políticas de uma sociedade e são expressos nas práticas

cujas condições eles proporcionam, conforme aponta Lacey (p.40-45). Os cientistas são

agentes que interagem com pessoas e coisas, e o conhecimento tecnocientífico gerado é

resultado da prática científica, que sofre influência, em grande medida, das instituições a que

os cientistas estão vinculados e aos valores de ambos. Os efeitos e a direção dos resultados da

pesquisa em nossas vidas estão relacionados, segundo aponta Lacey (2012), às escolhas feitas

pelos cientistas (por exemplo, do que será objeto de pesquisa), às formas como acontece a

educação científica em uma instituição, aos interesses políticos e dominantes e aos valores

implícitos das instituições. Vale lembrar que o crescimento econômico tem sido priorizado na

maioria das instituições que desenvolvem pesquisas.

Assim, concordamos com Lacey quando ele diz que a neutralidade da ciência, ou seja,

a crença de que a ciência se desenvolve apenas a partir dos valores cognitivos, parece não ser

1 Lacey (1998, p.62) aponta os valores cognitivos como sendo constitutivos da ciência, aqueles “critérios a seremsatisfeitos por uma boa teoria científica”, tais como adequação empírica, consistência, simplicidade, fecundidade, poder explicativo e certeza.2 A palavra valor, segundo Lacey, tem usos variados e complexos, refletindo uma vasta extensão da tarefa desempenhada em nossas práticas comunicativas, e também porque a profundidade de seu significado depende parcialmente dos valores que sustentamos (LACEY, 1998, p.35). Pode-se dizer que “valor” refere-se a algo que ébom, que tem valia, que merece ser considerado.

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algo possível, em especial na etapa de escolha do objeto de pesquisa. Outro aspecto levantado

pelo autor refere-se à imparcialidade da ciência, relativa à escolha de teorias com base apenas

em valores cognitivos e, dessa forma, a imparcialidade pressupõe que não deve importar

como se relaciona a teoria com valores sociais (morais, políticos, religiosos) (LACEY,1998).

Lacey e Mariconda (2014) destacam que a imparcialidade pode, e deve, ser alcançada na

etapa em que se escolhe determinada teoria científica para estudar determinado fenômeno.

Sobre o ideal de autonomia da ciência, que implicaria em considerar que as práticas de

pesquisa e as instituições científicas estivessem livres de influências externas e

desproporcionais de valores (sociais e pessoais) e vinculadas apenas aos valores cognitivos

que são constitutivos da ciência, parece não ser algo efetivo (LACEY; MARICONDA, 2014).

Por exemplo, a escolha de certo recorte de pesquisa, por aluno de mestrado e doutorado pode

estar vinculada aos apoios que o Programa de Pós-Graduação recebe de determinadas

empresas ou instituições, com interesses específicos naquele recorte. A não divulgação de

resultados de pesquisa se estes forem desfavoráveis à instituição financiadora também aponta

para essa não neutralidade do processo de pesquisa, bem como a forma como será aplicado o

conhecimento gerado por essa pesquisa (levando em conta aspectos do contexto social como,

por exemplo, a questão de quais grupos de pessoas se beneficiarão da pesquisa.). Assim, essas

interferências são dissimuladas por “estratégias descontextualizadoras”, em que os fenômenos

pesquisados

[...] são dissociados de qualquer lugar que possam ter no

mundo da vida, de qualquer lugar que eles tenham com

relação à organização social, vidas e experiências humanas,

de qualquer vínculo com a agência humana, as qualidades

sensoriais e o valor, e de quaisquer possibilidades que eles

possam ter em virtude de seus lugares em contextos sociais,

humanos e ecológicos particulares. (LACEY; MARICONDA,

2014, 186)

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Essa abordagem permite, segundo os autores, que as práticas experimentais e

tecnológicas se desdobrem a partir desse repertório de possibilidades e criem mais desse

mesmo tipo de prática e de abordagem. Ainda que tais práticas permitam entender

determinados fenômenos em dado recorte, por exemplo, no caso de uma gripe, não permitem

investigar as causas sociais de uma epidemia de gripe. Quais seriam os valores que mantêm

esse tipo de abordagem, que parece ser naturalizada a ponto de não haver questionamento

sobre como e por que determinadas pesquisas são desenvolvidas?

Lacey e Mariconda (2014) destacam que o papel desempenhado pela ciência moderna

no controle dos objetos naturais tornou-se um valor social, que se vincula às perspectivas de

progresso tecnológico e de valorização do capital e do mercado, e seria responsável por

manter esse tipo de abordagem descontextualizada da pesquisa tecnocientífica. Cupani (2002)

lembra que a autonomia da ciência não deve ser entendida como sinônimo de independência

ou de isolamento de condicionantes sociais, materiais e intelectuais, pois a ciência existe

misturada a interesses e preconceitos, e por tal razão, as pesquisas científicas, ainda que

imparciais, não são neutras ou neutrais.

São muitas as considerações que podem ser feitas sobre a influência de valores

“externos” ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia. No âmbito da pesquisa, vale

destacar: (a) a escolha de pesquisas para a produção de conhecimento sobre determinados

problemas valorizando determinado recorte descontextualizado, como apontam os autores

acima; e (b) a supervalorização dos fins de uma pesquisa, ou seja, do conhecimento sobre o

funcionamento ou a ação de um procedimento, como valor principal, em detrimento dos

direitos dos participantes da pesquisa.

Sobre o primeiro aspecto, tomando como exemplo a pesquisa com medicamentos,

podemos citar a valorização de determinadas formas de abordar questões de saúde a partir do

“descobrimento” de causas biológicas que pretendem ser tratadas (e até “curadas”) com

drogas específicas, priorizando a pesquisa descontextualizada dessas substâncias. A indústria

farmacêutica influencia médicos, pesquisadores e a população em geral no sentido de trazer

“a resposta” para problemas complexos, como aqueles relativos à saúde mental, a partir de

drogas que podem “consertar” determinados sintomas (ANGELL, 2007; BARROS, 2008;

CONRAD, 2007), ainda que a própria farmacologia alerte para a multidimensionalidade do

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problema de saúde e situe o medicamento apenas como parte da abordagem desse problema

(BITTENCOURT; CAPONI; MALUF, 2013). Assim, ao trazer a abordagem reducionista

sobre o medicamento a diferentes segmentos sociais, o incentivo a pesquisas que se ocupem

em encontrar medicamentos como resposta a problemas complexos passa a ser respaldado

pela sociedade de forma geral, e determinados estudos passam a ser incentivados. Ao propor-

se uma pesquisa ou um programa de pesquisa envolvendo pesquisadores em diferentes etapas

de atuação (estudantes de graduação e pós-graduação, por exemplo) com esse recorte, esse

modo de produção científica passa a se estabelecer como algo válido e, na maioria das vezes,

não é questionado.

Vale lembrar que entender o “funcionamento das coisas” e controlar a natureza têm

sido características da ciência e do desenvolvimento tecnológico moderno e esses valores

parecem ser compartilhados socialmente, para além do núcleo daqueles que atuam nessas

áreas. No caso da área da saúde, como lembra Foucault (2006), a partir do final do século

XVIII e início do século XIX, o foco do conhecimento médico passa do doente para a doença,

e estudar minuciosamente a anatomia, pesar e medir tornam-se requisitos para conhecer a

doença, que passa a ser uma entidade ideal, independente do doente. O conhecimento do

corpo, o olhar que objetiva e torna científica a medicina, definindo os parâmetros do que é

normal e do que é desejável, vai direcionar o que deve ser feito.

Se inicialmente essa abordagem se referia a aspectos biológicos do processo saúde-

doença e à medicina, aos poucos foi expandida para o âmbito da saúde de forma ampla,

chegando à saúde coletiva, à psicologia e aos diferentes campos de conhecimento que se

ocupam da saúde e do comportamento humano. Essa percepção sobre a doença como mais

importante que o indivíduo parece ser um valor dominante e oculto, não explicitado, que

passa despercebido por muitos profissionais que atuam e desenvolvem pesquisas em saúde

(no sentido mais amplo, que vai além do corpo biológico, incluindo as pesquisas sobre

comportamento humano, por exemplo). Assim, é esse olhar sobre os processos de saúde e

doença que, mesmo não estando explícito, vai direcionar grande parte das pesquisas que se

ocupam de problemas de saúde. Se levado ao extremo, esse olhar, ainda que o pesquisador

tenha “a melhor das intenções”, que seria entender o funcionamento de problemas específicos

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e encontrar soluções para estes, pode nos levar à segunda situação apontada acima, de

violação dos direitos humanos.

Nesse sentido, em especial no âmbito do desenvolvimento da pesquisa experimental

(que costuma ser tema cotidiano no sistema CEP/CONEP), Lacey e Mariconda destacam que

“o valor ético/social de obter conhecimento científico passa a ser subordinado [ou deveria

ser], por exemplo, ao respeito para com os direitos humanos [e nessa etapa da pesquisa] há

um papel para os comitês e códigos de ética” (2014, p.183). Assim, o olhar focado no

resultado da estratégia em avaliação ou sobre o modo de funcionamento pode estar

descontextualizado a ponto de permitir pesquisas que violem os direitos humanos, tal como

aconteceu na época da Segunda Guerra Mundial. Pesquisas científicas realizadas em campos

de concentração nazistas foram referidas como de alta qualidade quanto ao desenho

metodológico. Declarações de pesquisadores renomados (não simpáticos ao nazismo)

afirmaram que “do ponto de vista científico, a preparação desses experimentos havia sido

esplêndida”, conforme nos lembra Agamben (2004). Parece óbvio que situações como essa

não deveriam acontecer, e espera-se que não mais aconteçam. No entanto, o espectro do que

significa violar direitos humanos em nome do desenvolvimento científico e tecnológico é

amplo. Se assim não fosse, não haveria justificativa para existir um sistema de avaliação ética

como o do CEP/CONEP.

Um dos pontos desse espectro de pesquisas em que os seres humanos estão em plano

secundário em relação aos resultados, é a pesquisa com uso de placebo em contextos

multinacionais, em especial naqueles países de maior vulnerabilidade socioeconômica

(HELLMANN et al, 2014; PETRYNA, 2011). Em especial, é possível citar a situação de

desamparo dos participantes em ensaios clínicos nos países de poucos recursos, com a

aplicação do chamado duplo standard, ou seja, a adoção de critérios de proteção diferentes

dos usados em países ricos. Essas pesquisas, patrocinadas por instituições de nações ricas,

costumam ser moralmente inaceitáveis nos seus países de origem. Como alternativa, são

conduzidas em países periféricos, transformando populações pobres em cobaias de ensaios

clínicos placebo-controlados, mesmo com a existência de terapias eficazes para as doenças em

estudo (HELLMANN, 2014).

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Esses crimes têm sido apontados desde a década de 1980, com destaque para os casos

da pesquisa placebo-controlada, realizada em países africanos, do uso de meia dose de

zidovudina para evitar a transmissão vertical do HIV. Novos crimes continuam sendo

praticados, como a pesquisa placebo-controlada, publicada em 2014 pelo Lancet, de vacina

para rotavírus, conduzida com crianças na Índia, mesmo na existência de outras duas vacinas

(BHANDARI et al., 2014). Esses fatos revelam a desigualdade na proteção dos participantes

em pesquisas – em que uns têm as vidas maximizadas e outros, vidas expostas aos riscos

inerentes da pesquisa – e colocam os valores científicos frente aos direitos humanos.

Talvez para aqueles que se ocupam em estudar e “destrinchar” esses processos (quer

seja do ponto de vista da sociologia, da história da ciência ou da antropologia, por exemplo)

as opacidades que “escondem” esses valores (sociais, pessoais, econômicos) que influenciam

o desenvolvimento das pesquisas científicas não sejam “tão opacas”. No entanto, para muitos

pesquisadores (de diferentes áreas) essas opacidades permitem naturalizar a visão de

neutralidade, autonomia e imparcialidade da ciência e do desenvolvimento tecnológico e

justificar a realização de suas pesquisas.

Interdisciplinaridade e CEPs

Ainda que a segunda questão apontada (a da supervalorização dos fins da pesquisa em

detrimento dos direitos dos participantes) esteja clara no que se refere às atividades

desenvolvidas nos CEPs, ela vem sendo flexibilizada de forma sutil. O discurso dos

pesquisadores, difundido a partir dos interesses da indústria, sobre estratégias que “podem

trazer benefícios, ainda que para alguns”, no caso das pesquisas clínicas com medicamentos

nos países de média e baixa renda, como lembra Petryna (2011), vem se capilarizando.

Os estudos do tipo duplo standard (DS), permitindo o uso de placebo ainda que exista

um tratamento conhecido, mas não disponível, têm sido aceitos por algumas instituições,

como é o caso da Associação Médica Brasileira. Essa associação corrobora as mudanças da

Declaração de Helsinke de 2013 (que traz diretrizes sobre ética em pesquisa no âmbito

internacional), possibilitando o uso do DS (GARRAFA, 2014), diferentemente do Conselho

Federal de Medicina, da Sociedade Brasileira de Bioética e do CNS. Ao final,

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posicionamentos adotados por diferentes instituições acabam por se traduzir nas

argumentações para levar a cabo trabalhos de conclusão de curso, mestrado e iniciação

científica, por exemplo, “criando mais do mesmo”, como apontam Lacey e Mariconda (2014).

As justificativas para determinados recortes de pesquisa sem conexão com o contexto

social, ainda que não levem a danos os participantes da pesquisa, também parecem ser

recorrentes em trabalhos submetidos aos CEPs. Harayama (2011) ao realizar a etnografia de

um CEP, aponta as seguintes falas dos membros do comitê nesse sentido, quando avaliam

pesquisa a ser desenvolvida no âmbito do Sistema Único de Saúde e fica a dúvida se essa

contextualização da pesquisa seria aspecto ético a ser avaliado:

Eu não sei, essa coisa de vir gente da universidade e ficar usando osusuários do SUS para fazer pesquisa... Eu concordo com o pedido daassinatura porque assim o diretor da unidade sabe o que está acontecendodentro dela..[S 5][...]Mas eu não entendi uma coisa, ela quer fazer o quê? Avaliar o projetode promoção de saúde? Isso é pesquisa científica? Esse trabalho é feitopor quem? É de uma ONG? [S5] [...] Eu acho que isso é um conflito de interesse, eu sou defensor do SUS enão sei por que o dinheiro do SUS é gasto com essas coisas... [S7] [...] Mas isso não interessa para a avaliação da ética em pesquisa dessapesquisadora. [S5]É, mas eu acho que tem um conflito de interesse aqui, porque se ela é daprópria OSs que faz esse tipo de atividade de promoção da saúde e vaiavaliá-la, é quase um chefe conferindo os funcionários. [S13] [...] Eu não sei, eu estou achando esse projeto estranho, está parecendoaqueles estudos observacionais que o pessoal faz no SUS patrocinado pelaindústria farmacêutica, aquele jeito que a indústria conseguiu para criar ademanda do medicamento... Será que ela não está querendo criar umademanda pelo serviço que ela presta? Eu acho isso perigoso, porque o quea gente decide aqui ganha status de científico. [S7][...] Eu acho que não chega a isso, porque ela está dentro de um programade pós-graduação sério, a gente precisa acreditar que o pesquisador ésério. Mas pode ser sim que tenha um conflito de interesse, de repente nemela ache que isso seja problemático, mas se a gente pensar que ela épraticamente um tipo de chefe [...]. [S2][...] A gente não pode ficar achando que todo pesquisador é mal-intencionado. [S2][...] Não está? [mal intencionada] [S5][...] Bom, eu concordo com os dois, acho que esse projeto dá e não dápara fazer de forma ética. Mas, gente, a menina é do mestrado, talvez elanão saiba o quão complicado é esse projeto. E se a gente mandar umapendência e ver o que ela responde? [...] [S8][...] Eu acho que é válido perguntar, o parecer de pendência tem essepapel educativo mesmo, mas eu acho que essa pergunta não está boa,porque se a gente perguntar isso ela vai responder qualquer coisa para

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dizer que não há conflito de interesse. Ela precisa esclarecer antes quemela vai pesquisar, quem são esses sujeitos de pesquisa, e como ela pretenderealizar essa coleta de dados. Não nos cabe ficar imaginando como sejapor meio do texto dela, ela é que precisa deixar isso claro. [S1](p. 118-122)

É nesse espaço, em que diferentes olhares se colocam e questionam quais situações e

indivíduos se entrelaçam no panorama de uma pesquisa, que as opacidades podem ganhar

certa transparência. É certo que não há certezas. Mas, no desdobramento das possibilidades a

partir de campos de conhecimento e experiências diferentes, o parecer sobre a situação é

elaborado. Mais que isso, ocorre a construção de um olhar interdisciplinar que pode ser

difundido e passa a permear espaços institucionais que se ocupam do tema “pesquisa

científica”. Nossa experiência em dois CEPs corrobora a existência de discussões como a

acima relatada, ainda que em outros momentos as discussões possam ficar restritas a aspectos

burocráticos e legais sobre os protocolos de pesquisa, situação esta que tem sido alvo de

críticas de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento.

É certo que esse tipo de discussão ocupa lugar nas avaliações e, como pesquisadores,

já tivemos projetos “devolvidos” após avaliação de um CEP por ausência de uma palavra no

título do trabalho e que constava em outro local do projeto. Como também destaca Harayama

em sua etnografia do CEP, na maioria dos casos “o pesquisador tem o seu projeto de pesquisa

recusado na primeira tentativa de entrega no CEP. Grande parte apresenta um ou outro

documento incorreto [...]” (p. 90). Essas ações burocráticas acabam por se tornar a imagem

predominante que os pesquisadores têm do que significa o papel do CEP. No entanto, para

além das limitações e das críticas que possam ser feitas ao Sistema CEP/CONEP, a questão

que se coloca está no espaço privilegiado dos CEPs (que têm entre suas atribuições a função

educativa) para trazer à tona reflexões sobre a influência de diferentes valores no âmbito da

pesquisa científica e das repercussões desta na sociedade.

Considerações finais

Nossa avaliação é que a disseminação dessa reflexão no ambiente acadêmico, no

espaço dos CEPs, em linguagem acessível a diferentes áreas a partir de olhar interdisciplinar,

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pode contribuir para capilarizar a discussão que já acontece, de alguma forma, nas Ciências

Sociais e Humanas. O encontro de diferentes disciplinas, algumas delas já constituídas como

campos interdisciplinares, como é o caso da Saúde Coletiva3, tem permitido discussões como

aquela ilustrada por Harayama (2011). Essa não é tarefa fácil diante do volume de protocolos

a serem avaliados cotidianamente pelos CEPs e de suas “funções burocráticas” que ocupam

boa parte do tempo de quem analisa os protocolos de pesquisa. No entanto, o que não parece

ser a solução é a saída desses espaços dos pesquisadores da área de Ciências Sociais e

Humanas, alegando especificidades em seus trabalhos e incompatibilidade com o que se faz

nas ditas ciências “duras” por ser o diálogo entre as duas áreas difícil.

Não ocupar esses espaços significa deixar que o modo como as pesquisas envolvendo

seres humanos vêm sendo direcionadas, em especial no âmbito da saúde (não só para

medicamentos, mas também para o campo ampliado da saúde, envolvendo comportamentos e

aspectos epidemiológicos, por exemplo) passe a produzir um conhecimento científico

descontextualizado no sentido apontado por Lacey e Mariconda (2014). Não há certezas sobre

como essa capilarização da discussão (que já ocorre nas Ciências Sociais e Humanas,

inclusive como tema de seus trabalhos acadêmicos) possa ocorrer nos CEPs. Nem há receita

pronta de como seja possível trazer, na prática, espaço para discussões como as aqui

apresentadas e que, ao serem iniciadas, são consideradas por alguns como “perda de tempo”

nas reuniões dos CEPs. Outras vezes sequer há entendimento da linguagem que os cientistas

da área de Ciências Humanas e Sociais utilizam pelos cientistas que produzem o que aqui

chamamos de pesquisa descontextualizada.

Abrir espaço para essas discussões só se torna possível se aqueles que compartilham

desse olhar ocuparem os espaços que ainda estão legitimados em nosso país, como é o caso

dos CEPs (ainda que estes não sejam o único espaço para essa reflexão). Como já foi

mencionado, segundo Lacey (1998), quando alguém se dá conta de que compartilha valores

com outros, tais valores podem se tornar a base da participação em práticas conjuntas e de

construção da comunidade, e acabam por se refletir em valores sociais, que por sua vez

influenciam escolhas no campo da ciência. Essa é, ao menos, a nossa esperança.

3 Ainda que, até mesmo nesse campo interdisciplinar da Saúde Coletiva, o olhar direcionado ao “pesar,medir e quantificar” pareça estar ganhando destaque em relação às outras duas áreas do conhecimento que o constituem (Ciências Humanas e Sociais; Política, Planejamento e Gestão), apontando para umanova hierarquia nesse campo, como indicam Russo e Carrara (2015).

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Agradecimentos

Ao Professor Alberto Cupani pela leitura do texto e sugestões.

Referências

AGAMBEN, G. VP. In: Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Humanitas, 2004 [1995]. p.161-166.

ANGELL, M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Rio de Janeiro: Record, 2007 [2004].

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