a sociedade tecnocientÍfica e a responsabilidade...

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Leal, Miranda. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt11):1-21 A SOCIEDADE TECNOCIENTÍFICA E A RESPONSABILIDADE COMO PRINCÍPIO ÉTICO GT 11 – Tecnociência e Ética Alesi Costa Lima Leal Angela Luzia Miranda Resumo: Segundo Hans Jonas (2006), a visão objetivista, tecnicista e utilitarista que a modernidade trouxe da ciência e da tecnologia preconizou grandes mudanças sociais, políticas e econômicas, transformando a compreensão da realidade e, principalmente, o modo de agir em sociedade. Abriram- se precedentes para a consolidação do Laissez Faire econômico, por exemplo, onde o lucro e a livre iniciativa privada foram as forças dominantes na sociedade, e para o desenvolvimento tecnológico sob as demandas industriais, que se tornou a mola propulsora do crescimento econômico. A configuração dessa sociedade, alimentada pela apropriação da natureza e extração de seus recursos, causando o desequilíbrio energético-material dos ecossistemas e gerando resíduos em quantidades nunca vistas anteriormente, trouxe um dilema ético singular à tona: a permanência ou não da vida humana na Terra. Por isso, Jonas formulou o Princípio Responsabilidade: uma proposta de ética nascida das consequências desastrosas de uma civilização tecnológica que, em contrapartida, baseia-se na valoração do ser, na preservação da vida e nas necessidades de estimar riscos e estabelecer prognóstico (JONAS, 2006). Desde uma pesquisa bibliográfica, qualitativa e de conteúdo filosófico, este trabalho pretende analisar o ensaio jonasiano, reconhecendo seus alcances como modelo ético aplicável para a resolução de dilemas sociotécnicos. Portanto, considerando essa conjuntura, esta pesquisa defende que a responsabilidade pode ser um princípio ético que contribui para resgatar valores que parecem suprir a eminente necessidade de se repensar a base desenvolvimentista atual do crescimento econômico que sonega a qualidade ambiental e o próprio desenvolvimento humano em suas aspirações sociais, centralizando-se na linearidade do consumo excessivo, esgotando os recursos naturais e gerando resíduos indiscriminadamente. Palavras-chave: Sociedade tecnocientífica. Ética. Responsabilidade. Hans Jonas.

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Leal, Miranda. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt11):1-21

A SOCIEDADE TECNOCIENTÍFICA E ARESPONSABILIDADE COMO PRINCÍPIO ÉTICO

GT 11 – Tecnociência e Ética

Alesi Costa Lima LealAngela Luzia Miranda

Resumo: Segundo Hans Jonas (2006), a visão objetivista, tecnicista e utilitarista que a modernidadetrouxe da ciência e da tecnologia preconizou grandes mudanças sociais, políticas e econômicas,transformando a compreensão da realidade e, principalmente, o modo de agir em sociedade. Abriram-se precedentes para a consolidação do Laissez Faire econômico, por exemplo, onde o lucro e a livreiniciativa privada foram as forças dominantes na sociedade, e para o desenvolvimento tecnológico sobas demandas industriais, que se tornou a mola propulsora do crescimento econômico. A configuraçãodessa sociedade, alimentada pela apropriação da natureza e extração de seus recursos, causando odesequilíbrio energético-material dos ecossistemas e gerando resíduos em quantidades nunca vistasanteriormente, trouxe um dilema ético singular à tona: a permanência ou não da vida humana naTerra. Por isso, Jonas formulou o Princípio Responsabilidade: uma proposta de ética nascida dasconsequências desastrosas de uma civilização tecnológica que, em contrapartida, baseia-se navaloração do ser, na preservação da vida e nas necessidades de estimar riscos e estabelecerprognóstico (JONAS, 2006). Desde uma pesquisa bibliográfica, qualitativa e de conteúdo filosófico, estetrabalho pretende analisar o ensaio jonasiano, reconhecendo seus alcances como modelo éticoaplicável para a resolução de dilemas sociotécnicos. Portanto, considerando essa conjuntura, estapesquisa defende que a responsabilidade pode ser um princípio ético que contribui para resgatarvalores que parecem suprir a eminente necessidade de se repensar a base desenvolvimentista atual docrescimento econômico que sonega a qualidade ambiental e o próprio desenvolvimento humano emsuas aspirações sociais, centralizando-se na linearidade do consumo excessivo, esgotando os recursosnaturais e gerando resíduos indiscriminadamente.

Palavras-chave: Sociedade tecnocientífica. Ética. Responsabilidade. Hans Jonas.

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INTRODUÇÃO

Segundo Hans Jonas (2006), o advento da modernidade trouxe uma visão de ciência e de

tecnologia baseada no modelo tecnicista, objetivista e utilitarista de compreensão da realidade. Uma

nova cosmovisão que se estabelece como um novo modelo paradigmático e um novo modo de agir

(ético, inclusive), o qual, diante da resolução dos problemas enfrentados, propiciou transformações

sociais profundas a partir de então. Dentre elas, uma das mais notáveis está relacionada à técnica,

que passa a ser o aspecto mais significativo e relevante do empreendimento das ações humanas.

Nesse contexto, passa a ser mais importante estabelecer relações e produções materiais que se

relacionam com o fazer (prática), ou seja, a ação é mais importante que o pensamento, e a vita

activa mais importante que a contemplativa.

Atrelada a essa conjuntura, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, ligado ao

mecanismo de dominação e transformação da natureza, gerou a nova base desenvolvimentista

(JONAS, 2006, p. 31-32). Abriram-se precedentes, por exemplo, para a consolidação do capitalismo

como sistema societário vigente pós-Revolução Industrial, o qual foi instituído através do Laissez

Faire econômico, onde o lucro e a livre iniciativa privada são as únicas forças que regem o bem-

estar social (JONAS, 2006, p. 235). Nesse sistema, o desenvolvimento científico e tecnológico

(sobretudo, o tecnológico), em seus fins práticos, ocupa o papel de mola propulsora no motor do

desenvolvimento (JONAS, 2006, p. 43), que é o crescimento econômico.

Instaura-se a dita sociedade tecnológica, que vem acompanhada, por conseguinte, da visão

de neutralidade da ciência e da técnica. Considerando que os avanços científicos e tecnológicos

pudessem ser tratados fora do âmbito social, esta nova visão produziu consequências nefastas para a

sociedade, com efeitos destrutivos não só à vida humana, mas também à sustentabilidade do planeta

(JONAS, 2006, p. 229). Esta análise, já constatada nos anos 60 do século passado pelos teóricos da

Sociologia do Conhecimento da Escola de Edimburgo, propôs a necessidade dos estudos das

relações entre ciência, tecnologia e sociedade (BLOOR, 2009). Proposta esta que também pode ser

identificada na obra de Jonas (2006), publicada pela primeira vez em 1979, sobre o princípio

responsabilidade. Para ele, o surgimento da sociedade tecnológica trouxe consigo ainda outro

problema: trata-se de um dilema ético cujas éticas anteriores sequer tinham levado em conta, isto é,

a permanência ou não da vida humana na Terra (JONAS, 2006, p. 18). Tal condição humana global

e atual que pressupõe a inclusão do bem da natureza como aspecto intrínseco ao bem humano

(JONAS, 2006, p. 229), revela ao homem a necessidade de repensar as bases valorativas de seu

desenvolvimento para redimensionar suas ações frente às gerações presentes e futuras.

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Dessa forma, considerando a ética como a coluna balizadora que nos permite emitir

juízo e avaliar o bem e o mal (ou o que é bom e o que é mau), o cenário adverso gerado pela

sociedade tecnocientífica na modernidade, estimula um direcionamento dos esforços

discursivos para o campo da ética, isto é, questionando e formulando princípios e valores

como norteadores das ações do homem em sociedade.

A percepção distorcida sobre a natureza e a racionalidade modificada do agir humano

constituíram uma sociedade em crise, marcada pelo mero fazer útil e instrumental e

evidenciada pela alta taxa de produção em massa, pelo consumo excessivo de bens e produtos

e pelo descarte indiscriminado destes últimos. É neste contexto que Jonas irá propor um

modelo de ética acurado pelo ser, este em seu sentido ontológico, discutindo o resgate da vida

em estado total e interdependente, ou o sentido biocêntrico do agir moral. Ou seja, um agir

que ultrapassa a mera condição antropocêntrica dos modelos das éticas tradicionais e que, por

sua vez, seja capaz de resgatar o ético da condição humana, sob a ótica da sustentabilidade da

biosfera ao longo dos próximos anos e considerando as gerações vindouras (ALENCASTRO,

2009, p. 19).

Porém, mesmo com a contextualizadora proposta de ética jonasiana, muito tempo se

passou desde 1979, quando Hans Jonas publicou a sua principal obra, primeira edição, em

alemão, Das Prinzip Verantwortung – Versuch einer Ethic für die Technologische Zivilisation.

Considerando que um modelo de ética é o produto de uma dada condição social do homem

em um determinado tempo e que este pode adquirir limitações mediante as mudanças sociais

que ocorrem constantemente e modificam ainda mais a natureza do agir humano, uma

investigação científica mais abrangente acerca do objeto de pesquisa deste trabalho fez-se

mais adequada. Sobre a ética da responsabilidade, realizou-se uma abordagem com base em

reflexões filosóficas contemporâneas que respondem aos estímulos sociais mais recentes,

imputando criticidade e sugerindo limites à proposta, a fim de comprovar (ou não), em

sentido geral, a sua aplicabilidade na sociedade tecnológica moderna.

1. METODOLOGIA

A pesquisa tem caráter qualitativo e especialmente bibliográfico, cujo conteúdo é

filosófico e interpretativo em sentido social, na qual perpassam três etapas metodológicas, tais

como serão descritas a seguir.

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Primeiramente, elaborou-se uma contextualização acerca do fenômeno da

mecanização da natureza, discutindo o conjunto das relações do homem com o meio natural e

a técnica, abordando esses aspectos desde seu sentido pré-moderno até a mudança do

pensamento moderno, os quais configuram as concepções de ciência e tecnologia, inclusive,

na atualidade. Esse trabalho de contextualização foi de fundamental importância para situar,

posteriormente, desde onde parte a proposta da ética jonasiana. Para tanto, foi utilizada a

própria obra principal de Jonas (2006), assim como outros autores: Capra (2002), Heidegger

(2001, 2002), Tonet (2002) e Miranda (2012).

Com base neste estudo analítico que embasa o contexto histórico e a mudança

paradigmática de onde emerge a proposta de Hans Jonas, foi analisada a sua proposta

formulada desde a responsabilidade como princípio para um modelo de ética, nascida dos

desafios emblemáticos da sociedade tecnológica do mundo contemporâneo. Por isso, nesta

segunda etapa da pesquisa, os aspectos biográficos de Hans Jonas, bem como sua trajetória

acadêmica que circundam, delineiam e fundamentam seu ensaio de ética, foram de

fundamental importância diante de tal propósito. Ainda nesta etapa da pesquisa, realizou-se a

leitura minuciosa e detalhada da principal obra de Jonas, que trata do assunto “O princípio

responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica” (2006), assim como

outras obras de sua autoria, como “Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio

responsabilidade” (2013). Também foi de fundamental importância a leitura de autores como

Apel (1994), Wolin (2001), Miranda (2012, 2015), entre outros comentadores da obra de

Jonas. Através desta etapa descritiva da pesquisa, pretendeu-se identificar, efetivamente, os

alcances da ética jonasiana e sua aplicabilidade na resolução de dilemas típicos da

modernidade.

A terceira e última fase deste trabalho de pesquisa consiste em suscitar e analisar os

aspectos limítrofes que também acompanham sua proposta, os quais emergem de reflexões

filosóficas contemporâneas e conferem teor crítico à ética da responsabilidade. Dentre estes

aspectos, destacam-se 1) o relacionamento explicativo (DE GREGORI, 1988) e a atividade de

produção material (MARX & ENGELS, 2002) como aspectos cruciais da relação homem-

natureza, os quais se situariam como processo de mútua e permanente transformação e

condição do comportamento do homem contemporâneo, respectivamente; 2) a problemática

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do prognóstico, que considera a reflexibilidade da contemporaneidade (GIDDENS, 1991)

(BECK; GIDDENS; LASH, 1995), e o surgimento de uma sociedade de risco (BECK, 2006),

onde incertezas e riscos coincidem em meio a uma infinidade de variáveis e possibilidades de

estimativas, cuja complexidade dificulta ainda mais a resolução do problema; e, em

consequência, 3) a referenciação indutiva de uma sociedade cada vez mais tecnológica, na

qual as estimativas de riscos e as demandas advindas de prognósticos desses riscos

requereriam a resolução de problemas técnicos com mais técnica (HEIDEGGER, 2002) e a

retroalimentação do sistema de desenvolvimento da tecnologia em si mesma (MIRANDA,

2012; 2015).

2. A MODERNIDADE E A MUNDAÇA PARADIGMÁTICA DA RELAÇÃO COM

A NATUREZA

Dada a complexidade de transformações em sociedade que configuram a transição da

Idade Média para a Idade Moderna, Fritjof Capra (2002) sugere que a mudança substancial

que caracteriza a modernidade surge nos séculos XVI e XVII, resultando em uma nova

mentalidade, uma nova forma de pensamento e de percepção do mundo.

Entre 1500 e 1700 houve uma mudança drástica na maneira como as pessoasdescreviam o mundo e em todo o seu modo de pensar. A nova mentalidade ea nova percepção do cosmo propiciaram à nossa civilização ocidentalaqueles aspectos que são característicos da era moderna. Eles tornaram-se abase do paradigma que dominou a nossa cultura nos últimos trezentos anos eestá agora prestes a mudar (CAPRA, 2002, p. 39).

Por isso, com base em Hans Jonas (2006) e alguns outros teóricos e comentadores que

dialogam com ele, inicialmente pretende-se fazer uma das possíveis leituras do conjunto de

transformações – de natureza política, econômica, social e cultural – que remontam a

instauração do período emblemático conhecido como “modernidade”. Vale ressaltar que

mesmo diferenciando tais transformações aqui, elas ocorreram simultânea e

contemporaneamente, por isso algumas destas acabaram coincidindo ou se relacionando uma

com a outra. Entretanto, importa compreender essa época, bem como o conjunto de

modificações últimas e seus processos desencadeados; esta condição pode ser a chave

explicativa para o entendimento da nova apreensão da realidade (cosmovisão) vigente e da

nova forma do homem relacionar-se com a natureza.

3.1 A mecanização da natureza

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Considerando a referida complexidade na determinação da instauração da

modernidade como realidade, partimos de uma reflexão primeira que busca diferenciar dois

estados distintos da relação do homem com a natureza: qual era a percepção da natureza para

os antigos e qual é a percepção dela para os modernos?

As origens dessa relação remontam, por exemplo, o hábito cultural dos gregos de

tentar explicar o universo através dos mitos. Neles era comum a personificação de fenômenos

da natureza através de figuras humanas, sugerindo uma relação homem-natureza harmônica e

respeitosa. Até determinado momento da história humana, o simples hábito de se contar as

histórias oralmente, induzindo no ouvinte a formação de representações imagéticas, ilustrando

e explicando determinado fenômeno, atendeu aos anseios de compreensão do mundo e

percepção da natureza. Por isso, era bastante comum a contemplação da natureza, carregada

de subjetividade, como condição resultante dessa representação (MARQUES, 2007, p. 505).

Evidenciando novamente o momento apontado por Capra (2002) como o marco da

modernidade, ele vai afirmar que até antes de 1500 d.C., a visão de mundo que se tinha na

Europa (aqui a consideramos como o berço das transformações que se seguiriam e

caracterizariam o tempo moderno) era orgânica (CAPRA, 2002, p.39). As pessoas viviam em

pequenos núcleos humanos e mantinham as suas relações em termos orgânicos, com as

explicações entre o material e o espiritual interdependentes, advindas de Aristóteles (vê-se

aqui a herança grega, dos antigos) e da Igreja (que tinha grande poderio e influência

sociopolítica). Porém, a partir do desenvolvimento das ciências naturais (física e astronomia,

por exemplo) essa confluência de sentidos da visão orgânica do mundo dá lugar a outra, que

consolidaria a modernidade como uma nova era.

A perspectiva medieval mudou radicalmente nos séculos XVI e XVII. Anoção de um universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída pela noçãodo mundo como se ele fosse uma máquina, e a máquina do mundoconverteu-se na metáfora dominante da era moderna. Esse desenvolvimentofoi ocasionado por mudanças revolucionárias na física e na astronomia,culminando nas realizações de Copérnico, Galileu e Newton. A ciência doséculo XVII baseou-se num novo método de investigação, defendidovigorosamente por Francis Bacon, o qual envolvia a descrição matemática danatureza e o método analítico de raciocínio concebido pelo gênio deDescartes. Reconhecendo o papel crucial da ciência na concretização dessasimportantes mudanças, os historiadores chamaram os séculos XVI e XVII dea Idade da Revolução Científica (CAPRA, 2002, p. 40).

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A busca por um conhecimento destituído das influências espirituais e das amarras

eclesiásticas culminou em uma ciência dita moderna do período que ficou conhecido como

Revolução Científica.

Nessa conjuntura, onde fica a figura humana? O homem moderno passa a ter uma

percepção da natureza totalmente diferente, com sua própria imagem destituída dela. A

metáfora newtoniana do mundo-máquina supracitada já começa a ilustrar bem essa

diferenciação. As imagens anteriormente imbrincadas, de sujeitos abstratos naturais

personificados e da produção natural da terra com os seres humanos, perdem sentido e valor e

uma nova tônica de relação homem-natureza dá-se a acontecer.

Através de um olhar estritamente exploratório e extrativista, o homem distancia-se da

natureza para conhecê-la e dominá-la: a carga subjetiva de percepção do homem é excluída,

objetivando e estabelecendo leis que o permitem utilizar dela os seus recursos disponíveis.

Nisto consiste os processos de distanciamento e dominação da natureza que perpassam a

cultura ocidental e ocasiona a referida mecanização da natureza.

3.2 O homem como homo faber

As práticas de produção e transformação da matéria, como um impulso infinito e

colocadas como prioridades na relação do homem com a natureza, sugerem uma completa

mudança no tipo dessa relação bem como uma nova condição da vida humana. Como efeito,

prevalece a sua vontade de criar uma “natureza adaptada”, uma espécie de “sobrenatureza”

para a sua existência, como por exemplo, a cidade. Para isso, o homem que anuncia o advento

da modernidade vai utilizar da própria natureza para criar esse espaço modificado. Essa

iniciativa é refletida por Jonas:

(...) ele constrói uma casa para a sua própria existência humana – ou seja, oartefato cidade. A violação da natureza e a civilização do homem caminhamde mãos dadas. (...) O homem é o criador de sua vida como vida humana.Amolda as circunstâncias conforme sua vontade e necessidade (JONAS,2006, p. 31-32).

A consideração da cidade como artefato evidencia, dentre outros aspectos, a primeira

nota de tecnologia no homem que foi potencializada com o processo de mecanização da

natureza. A construção do conhecimento que, antes da modernidade, estava ligada a

compreender o significado das coisas (CAPRA, 2002, p. 40), com a modernidade, foi

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direcionada para fomentar a produção e a transformação material já mencionada que, em

outras palavras, só é viabilizada pela aplicação da técnica.

A técnica se incutiu de tal forma na vida do homem que sua aplicação justificou-se sob

a ideia de uma “necessidade” de constante desenvolvimento e uso sobreposto incessante para

se alcançar o progresso. A técnica, em sentido moderno, se tornou o principal impulso do

homem e o empreendimento de maior significado de sua existência (JONAS, 2006, p. 43).

Nota-se aqui a completa mudança na natureza da ação do homem, transformando a sua

própria condição. O novo status da condição humana no mundo não é o saber, identificado

outrora pelo homo sapiens, mas o fazer, garantido agora pela categoria do homo faber. Hans

Jonas (2006) analisa esta passagem do seguinte modo:

A conquista de um domínio total sobre as coisas e sobre o próprio homemsurgiria como a realização de seu destino. Assim, o triunfo do homo fabersobre o seu objeto externo significa, ao mesmo tempo, o seu triunfo naconstituição interna do homo sapiens, do qual ele outrora costumava serservil (JONAS, 2006, p. 43).

Na condição de homo faber, a racionalidade se instrumentaliza e o pensar, cujo agir é

racional, compreende os fins instrumentais, ou um “agir-racional-com respeito-a-fins”, tal

como diria Habermas (2012). E é neste contexto que a tecnologia assume um novo

significado em sentido axiológico, isto é, de natureza ética, devido ao lugar central que ela

passa a ocupar nos fins da vida humana. Esse estado reestrutura completamente a base dos

valores que hão de ser levados em conta na conduta e no convívio social.

Em suma, pode-se dizer que a esfera da produção invade a da ação humana. Esta

situação é evidenciada pelo surgimento de um novo modo de produção que buscaria,

sobretudo, o aceleramento de todas as etapas produtivas a fim de gerar riquezas. Essa

condição conduz à prerrogativa urgente da invasão da moralidade sob a esfera produtiva,

analisa Jonas (2006, p. 43-44).

3.3 O surgimento do capitalismo e a questão valorativa

Como já é sabido, um dos principais acontecimentos históricos da modernidade foi a

Revolução Industrial. Ocorrida na Inglaterra, 1760-1830, instituiu-se como o grande marco da

passagem do modo de produção em curso, do feudalismo medieval para o capitalismo

moderno (TONET, 2002, p. 14).

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Esse fato resultou da atuação da burguesia como classe social que agiu dubiamente,

conforme interesses próprios em dois momentos distintos, tal como analisa Tonet (2002, p.

14). Inicialmente encabeçando o iluminismo, em defesa da emancipação social e da liberdade

individual, a fim de romper com o feudalismo e protagonizar o advento do capitalismo como

novo modo de produção, e, por último, condicionando uma reorganização conservadora das

forças feudais para a atividade produtiva, através da subjugação de uma classe trabalhadora

desprivilegiada e explorada.

A manufatura industrial como a transubstanciação do poder técnico do homem

engendrou na sociedade ocidental o ideal de progresso através da elevação das taxas de

produção e estímulo ao consumo. Como um fazer aplicado, o conhecimento científico e o

técnico, principalmente, deveria ser fomentado para possibilitar esse progresso do novo modo

de produção, gerando riqueza e bem-estar (leia-se felicidade) através do acúmulo do capital.

Não viria a ser essa a premissa do American way-of-life, doutrina social norte-americana que

demarcaria a invencibilidade do modo de produção capitalista originariamente inglês, da

Revolução Industrial? Assim, o utilitarismo ético, como corrente valorativa adotada nesse

sistema, tornou o capitalismo uma realidade político-econômica. Acerca disso, Miranda

observa: “Tanto o utilitarismo surgido no seio do mundo anglo-saxão (Inglaterra) como o

advento da sociedade baseada no modo de produção capitalista possuem uma estreita

vinculação com a técnica em sentido moderno” (MIRANDA, 2012, p. 64). A técnica passa a

ser pensada como um empreendimento humano eficiente, de modo a possibilitar o aumento

das taxas da manufatura industrial e, em retroação, a indústria capitalista, com suas demandas

e necessidades, passa a requerer cientistas e tecnólogos com respostas técnicas para o

atendimento e potencialização máxima de sua produção.

Veremos mais a frente que a consolidação do capitalismo, como modelo econômico na

modernidade, indica e pressupõe o surgimento de novas ideias e condições materiais,

especialmente, no que diz respeito ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Assim é

que, de forma objetivista, ambas ganharam o estatuto da objetividade, cujos avanços são

afirmados como neutros, livres de qualquer carga ideológica ou influência social, política ou

cultural (DAGNINO, 2008); de forma tecnicista, ambas vincularam-se à ideia de eficiência; e

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de forma utilitarista, ambas passaram a sustentar os pilares que regem a modernidade, no que

tange à dominação e à transformação da natureza (MIRANDA, 2012, p. 58-69).

3.4 O papel da ciência e da técnica no processo da racionalidade tecnocientífica

Assim, quando se visa viabilizar, acima de tudo, a dominação da natureza, a ciência agora

não pode ser caracterizada como um saber livre, desinteressado, puramente teórico e

especulativo. Em última instância, ela se torna um saber pragmático, essencial para garantir a

aplicabilidade da técnica. Por isso, muitas vezes, converteu-se em tecnologia, porque se aliou

à técnica.

Nessa aliança, em que se atrela a ciência à técnica, há uma razão bem determinada a

fim de possibilitar o dito progresso científico e técnico, no qual assim como a ciência

determina os rumos da técnica, a técnica também determina os rumos da ciência. Sobre isso,

Heisenberg observa: “Em todo esse processo (...) que se estende ao longo dos últimos

duzentos anos, a técnica tem sido ao mesmo tempo condição prévia e consequência da

ciência” (HEISENBERG, 1980, p. 15). Há uma interdependência e, como em uma via de mão

dupla, a ciência e a técnica se relacionam de tal forma que se justapõem, na qual ao mesmo

tempo em que uma depende da outra, esta também retroage sobre a primeira. Logo, a

chamada cientifização da técnica tratada por Habermas (2009, p. 45-47) faz todo sentido.

Esta última ideia é fundamentada, anteriormente, pela máxima baconiana, de que

“saber é poder”, a qual embasou toda a cultura ocidental de um desenvolvimento fundado na

suposta necessidade de avanços científicos e tecnológicos como prerrogativa para o

crescimento econômico. Acerca disso, Francis Bacon ilustra que “Ciência e poder do homem

coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se

vence, se não quando se lhe obedece.” (BACON, 1999, p.7).

Capra (2002) faz uma leitura interpretativa do ideal baconiano que resgata as origens

da dita racionalidade tecnocientífica. Ele diz:

O “espírito baconiano” mudou profundamente a natureza e o objetivo dainvestigação científica. Desde a Antiguidade, os objetivos da ciência tinhamsido a sabedoria, a compreensão da ordem natural e a vida em harmonia comela. A ciência era realizada “para maior glória de Deus” ou, como diziam oschineses, para “acompanhar a ordem natural “e” fluir na corrente do tao“.Esses eram propósitos yin, ou integrativos; a atitude básica dos cientistas eraecológica, como diríamos na linguagem de hoje. No século XVII, essaatitude inverteu-se totalmente; passou de yin para yang, da integração para a

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auto-afirmação. A partir de Bacon, o objetivo da ciência passou a ser aqueleconhecimento que pode ser usado para dominar e controlar a natureza e,hoje, ciência e tecnologia buscam, sobretudo, fins profundamenteantiecológicos (CAPRA, 2002, p. 42).

Tal conjuntura conceptual sobre a ciência e a tecnologia construída ao longo da

modernidade, que foi aqui tratada, ocasionou consequências que puseram em risco a

sustentabilidade planetária e a permanência da vida humana na Terra (JONAS, 2006, p. 39-

40). Estes aspectos mereceram também a atenção de Jonas ao formular o seu princípio de uma

ética, tal como veremos a seguir.

3.5 A instauração da crise ambiental e a necessidade de uma nova ética

Os riscos à sustentabilidade planetária e à permanência da vida humana se dão em uma

reação de feedback. Em meio aos seus atos, o homem colocou o planeta em risco,

desequilibrando os sistemas ambientais e extraindo os recursos naturais ao ponto de exaustão,

ocasionando “desastres” ambientais, eventos de condições naturais extremas e perdas

humanas. Essa conjuntura acaba por corroborar o ideal do homem como uma parte integrante

da natureza e não ao contrário, como pregou o advento da modernidade.

Assim, as consequências conflituosas ao planeta e à humanidade citadas

anteriormente, além de serem riscos socioambientais, configuram-se como dilemas

característicos da sociedade tecnológica moderna. Diante disso, compreendendo a ética como

o conjunto de princípios e valores norteadores das ações humanas em sociedade

(TUNGHENHAT, 2000, p. 30), capaz de propor medidas resolutivas a dilemas sociais, é

eminente a necessidade de revisar tais princípios e valores que estão sendo utilizados no

convívio social moderno e, enfim, propor uma nova ética.

Karl Otto-Apel dialogando sobre os desafios morais e a necessidade de uma ética

específica para a sociedade atual, observa:

Essas poucas indicações devem ser suficientes para deixar claro que osresultados da ciência representam um desafio moral para a humanidade. Acivilização tecnocientífica confrontou todos os povos (…), com umaproblemática ética comum a todos. Pela primeira vez, na história da espéciehumana, os homens foram praticamente colocados ante a tarefa de assumir aresponsabilidade solidária pelos efeitos de suas ações em medida planetária.Deveríamos ser de opinião que, a essa compulsão por uma responsabilidadesolidária, devera corresponder a validez intersubjetiva das normas, ou, pelomenos, do princípio básico de uma ética da responsabilidade (APEL, 1994,p. 72-74).

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Apel sugere uma ética da responsabilidade, que é o principal objeto e produto dos

estudos e reflexões valorativas de Hans Jonas. Porém, antes de entender os principais aspectos

do modelo ético referido, é importante conhecer como ele surgiu e identificar sua origem a

partir do contexto que ele emerge, apontado pela vida de Jonas.

3. A PROPOSTA DE JONAS

O filósofo Hans Jonas (1903-1993) nasceu na cidade de Mönchengladbach, Alemanha,

e foi aluno de Martin Heidegger na Universidade de Freiburg (1920), o qual foi seu mentor

intelectual por muito tempo (WOLIN, 2001, p. 10). De origem judaica, Jonas foi

contemporâneo do nazismo alemão e da atmosfera hostil da Primeira Guerra Mundial, tendo

que se mudar de seu país natal, vivendo na Inglaterra, Palestina e Estados Unidos.

Em meio aos fatos e acontecimentos emblemáticos de sua época, como a ascensão

nazista, a Primeira e a Segunda Grandes Guerras, bem como as bombas atômicas utilizadas ao

fim desse período, Jonas pôde perceber o papel que a tecnologia desempenhou nesse contexto,

o movendo em suas inquietações e questionamentos ao ponto de fundamentar uma proposta

de ética que considera a força da tecnociência e a formação de uma sociedade tecnológica na

modernidade, sugerindo princípios, valores e modos de agir nela para, portanto, atingir-se a

sustentabilidade planetária e a permanência da vida humana na Terra (MIRANDA, 2012).

Por isso, em resposta, Hans Jonas propõe a ética da responsabilidade: uma proposta de

ética nascida das consequências desastrosas da civilização tecnocientífica, a qual está descrita

em sua principal obra, O princípio responsabilidade – Ensaio de uma ética para a civilização

tecnológica (2006). Dentre suas principais características, podem ser identificadas: a

valoração do ser, a preservação da vida, a necessidades de estimar riscos e de estabelecer

prognóstico, bem como o seu aspecto prático, que diz respeito à heurística do medo.

A primeira característica a ser destacada é a valoração do ser, que pode ser

interpretada como a principal, uma vez que fundamenta a dimensão da ação humana. Jonas a

define, conceituando a responsabilidade, em seu sentido ontológico, como o princípio

fundamental e norteador de toda a sua proposta de ética. Ele diz: “Responsabilidade é o

cuidado, reconhecido como dever, por outro ser, cuidado que, dada a vulnerabilidade, se

converte em ‘preocupação’” (JONAS, 2006, p. 357).

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A responsabilidade é conceituada como o cuidado convertido em preocupação por

outro ser, o qual, por sua vez, é valorizado posto o poder que o homem detém em suas ações.

Nesse sentido, o que aspectos da ética anterior antropocêntrica discursava dizendo “podes

posto que deves”, em Jonas, essa lógica é invertida para “deves posto que podes”. Ademais,

outros valores também são convertidos, como, por exemplo, o ter pelo ser, revelando o novo

teor ético da práxis humana. “Age de tal maneira que os efeitos de tua ação sejam compatíveis

com a permanência de uma vida humana autêntica” ou formulado negativamente, “não

ponhas em perigo a continuidade indefinida da humanidade na Terra” (JONAS, 2006, p. 18).

Aqui, Jonas deixa claro o seu reconhecimento da potencialidade e poderio das ações humanas

em seus efeitos globais.

A segunda característica que pode ser destacada, a preservação da vida, trata-se de

um valor que também se mostra diferente no que tange à dimensão da ação humana, pois

considera a vida para além da humanidade. Ou seja, mais além das éticas anteriores que

sempre se ocuparam em estabelecer o homem como parâmetro e centro da ação moral, tal

como, por exemplo, predicava Kant em seu princípio do antropocentrismo: “Age de tal

maneira que o princípio da tua ação se transforme numa lei universal” (KANT, 1980, p. 429),

Jonas propõe o biocentrismo, posto que considera que o centro da ação moral reside na vida

presente em toda a biosfera. Em suma, em contrapartida à ética tradicional que visa preservar

apenas a vida humana, Jonas questiona:

E se o novo modo de agir humano significasse que devêssemos levar emconsideração mais do que somente o interesse “do homem”, pois nossaobrigação se estenderia para mais além, e que a limitação antropocêntrica detoda a ética antiga não seria mais válida? (...) Se assim for, isso requereriaalterações substanciais nos fundamentos da ética. Isso significaria procurarnão só o bem humano, mas o também o bem das coisas extra-humanas(JONAS, 2006, p. 41).

Nenhum sistema está isolado, especialmente os naturais. E considerando a

complexidade do meio ambiente e sua ocorrência de desastres nos últimos tempos, somente o

olhar total de cuidado sobre a vida se torna mais prudente a fim de realmente caminhar para

sua preservação.

Outra característica importante do modelo ético jonasiano refere-se à necessidade de

estimar riscos, que surge da preocupação sobre a influência que as ações que se praticam no

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presente podem ter, de forma a garantir a sustentabilidade e o equilíbrio do ambiente no

futuro. Em linhas gerais, Jonas discursa sobre isso dizendo: “(…) meu agir não pode pôr em

risco o interesse ‘total’ de todos os outros também envolvidos (que são, aqui, os interesses das

gerações futuras)” (JONAS, 2006, p. 85). Ou seja, o meu direito de ação não pode por em

risco o direito de outro indivíduo que esteja envolvido em uma dada relação social, pelo

contrário, esse direito inicial pode ser limitado a depender do contexto social que perpassa

essa relação. Sobre isso, Jonas também discursa:

Posso ter responsabilidade por outros cujo bem-estar depende do meu, porexemplo, como mantenedor de minha família, como mãe de criançaspequenas, como titular decisivo de uma tarefa pública; e taisresponsabilidades limitam, sem dúvida não legalmente, mas, sim,moralmente, minha liberdade (...) (JONAS, 2013, p. 255).

Logo, as ações humanas são pensadas, considerando o ato de estimar os riscos em

interface com o futuro da humanidade, isto é, as próximas gerações. Vejamos: atualmente,

quem vive ou age mediante ao que vai deixar para os seus filhos ou netos? É comum que

ninguém ou quase ninguém costume pensar sobre isso, pois a lógica incutida ao longo do

tempo e os valores e princípios que (naturalmente) se alojaram no subconsciente das pessoas

não leva isso em conta. Por isso, um dos propósitos jonasianos em seu modelo de ética é

trazer essa necessidade à tona, a fim de modificar substancialmente essa visão.

Desde aqui se pode avistar outra característica pertinente à ética da responsabilidade,

que é a necessidade de estabelecer prognóstico. Em termos conceituais e ilustrativos, pode-

se dizer que o prognóstico é a ferramenta necessária para estimar tais riscos possíveis e um

exercício recorrente para o levantamento de cenários vindouros decorrentes das ações

tecnocientíficas. Assim, mais que diagnosticar, a ciência também deve prognosticar, alerta

Jonas, e a previsibilidade deve fazer parte do ato de conhecer e descobrir. Sobre isso, ele

observa:

Portanto, esse saber (...) só pode operar com os seus diagnósticos hipotéticosrelativos ao que se deve esperar, ao que se deve incentivar ou ao que se deveevitar. Há de se formar uma ciência de previsão hipotética, uma “futurologiacomparativa” (JONAS, 2006, p. 70).

Nesse exercício acerca do futuro, o levantamento de cenários possíveis, hipóteses que

envolvem a previsibilidade são bem característicos.

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E por último, relacionado à prática e aplicabilidade do princípio responsabilidade nos

fundamentos da ética jonasiana, há uma característica crucial que é chamada por Jonas de

heurística do medo (ou do temor).

(...) o temor está já como um potencial da pergunta originária com a que sepode representar inicialmente toda a responsabilidade ativa (...). A teoria daética precisa de representação do mal tanto quanto da do bem e mais aindaquando o mal se tem visto pouco claro para os nossos olhos e somente podevoltar a fazer-se patente mediante um novo mal antecipado (JONAS, 2006,p. 357-358).

Ou seja, para que, efetivamente, a responsabilidade se torne um princípio ativo no

sistema social, sendo posto em prática através da ética da responsabilidade, o temor é um

conceito que funciona como um mecanismo filtrante/regulador das ações humanas, através de

conceitos de bem e de mal causados/vindouros. Sobre isso, Jonas ainda coloca:

O que nós não queremos, sabemos muito antes daquilo que queremos. Porisso, para investigar o que realmente valorizamos, a filosofia da moral temde consultar o nosso medo antes do nosso desejo. (...) embora, portanto, aheurística do medo não seja a última palavra na procura do bem, ela é umapalavra muito útil (JONAS, 2006, p. 71).

Portanto, considerando que os modelos éticos surgem da necessidade geral de propor

ações, medidas ou posições resolutivas a dilemas sociais e que a proposta de Hans Jonas

nasce levando em conta as doutrinas e paradigmas da sociedade tecnológica moderna, é

notável como a ética da reponsabilidade fornece as bases para proposições resolutivas de

diversos dilemas éticos típicos desta sociedade tecnocientífica, sugerindo princípios e valores

que, se aplicados, podem mitigar os processos negativos e consequências desses dilemas.

4.1 das críticas à proposta jonasiana

Contudo, a proposta de Hans Jonas possui alguns aspectos que podem ser

considerados limites, os quais são suscitados por reflexões filosóficas de pensadores

contemporâneos, que se contrapõem e, de certa forma, criticam a ética jonasiana. Dentre

estes, identifico três, a seguir.

(I) O primeiro aspecto da crítica diz respeito ao processo de humanização da

natureza, que considera a relação homem-natureza como necessária à produção da existência

humana, ainda que, por vezes, essa relação seja desarmônica hodiernamente e cause

desequilíbrios à natureza.

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Uma espécie de ambiente permanente de mútua transformação que pode ser

justificado pelo conceito de “relacionamento explicativo” (DE GREGORI, 1988, p. 18), pois

à medida que o homem e sua consciência interferem na natureza, modificando-a, a natureza

modificada tem a capacidade de transformar o homem e sua consciência também, no que se

referem às suas percepções, concepções, modos, hábitos e costumes.

Nesse processo está presente, fortemente, a produção material da natureza como

atividade recorrente e explicativa do comportamento humano. Marx & Engels observam:

A produção de idéias, de representações e da consciência está em primeirolugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio materialdos homens; é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, ocomércio intelectual dos homens surge aqui como emanação direta do seucomportamento material (MARX & ENGELS, 2002, p. 25-26).

Assim, a produção material pode ser justificada como uma condição do teor técnico de

resposta, estipulado ao longo da história, cabendo a nós, agora, equalizar as proporções que

esse fazer técnico da atividade material tem tomado, diminuindo e controlando os processos

de degradação ambiental, uma vez que estes não podem ser evitados.

(II) Outro aspecto crítico ainda mais relevante diz respeito à problemática no

estabelecimento do prognóstico. Vejamos: o princípio responsabilidade possui como objeto

e finalidade de ação o ser vulnerável, o ainda-não-existente, o frágil, o perecível, o mais-

ameaçado. Essa condição acaba por gerar o estado de reflexibilidade na contemporaneidade

(GIDDENS, 1991) (BECK; GIDDENS; LASH, 1995), onde incertezas e riscos são

manufaturados, configurando-se, assim, a chamada sociedade de risco (BECK, 2006).

A sociedade de risco inerente à globalização, individualização e reflexibilidade da

contemporaneidade é suscitada por Ulrich Beck (2006, p. 2-7), nos termos em que se

vislumbram os processos de produção globalizados e os efeitos da intensiva industrialização.

Aqui surge a reflexão sobre essa sociedade de risco, que analisa o estilo de vida, seus riscos e

efeitos para a população (BECK, 2006, p. 40).

(III) Levando em conta que a inovação da ciência é uma realidade, a qual se dá de

forma bastante difusa, permanente e, às vezes, imprevisível, como prever todos os riscos dos

avanços científicos e tecnológicos? “O problema da previsibilidade ou estimação dos riscos

reside em como viabilizar este processo e assegurar-se dele” (MIRANDA, 2012, p. 179). Em

meio a essa inquietação, surge, por fim, o último ponto crítico à proposta de Jonas: no que

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tange a referenciação de uma sociedade mais tecnológica. Pois, se é necessário estimar ou

prever os riscos da tecnologia difundida, como fazê-lo? Há uma infinidade de variáveis que

devem ser levantadas para se chegar à previsibilidade, logo, como estabelecer o prognóstico?

Quais ferramentas devem ser utilizadas a fim de obter-se as previsões e projeções desejadas?

Através de mais desenvolvimento científico e tecnológico? Em caso afirmativo, a resposta

para tal não mudaria em nada a diretiva técnica costumeira: a resolução de problemas técnicos

com a aplicação de mais técnica.

Esta reflexão, que é suscitada por Miranda em sua obra questionadora Una ética para

la civilización tecnológica? Possibilidades y limites del princípio de la responsabilidad de

Hans Jonas (2012) e também apresentada sinteticamente em artigo posterior, assim, pode ser

ilustrada:

Por exemplo, para estimar o risco do aquecimento global, não serianecessário criar tecnologias cada vez mais sofisticadas para tal prevenção?Então, nesse sentido, a Ética da Responsabilidade, que nasce da crítica àsociedade tecnocientífica, acabaria ela mesma por referendar tal modelosocietário, à medida que a exigência da estimação do risco, justificaria aindamais a sociedade tecnocientífica (MIRANDA, 2015, p. 14).

Martin Heidegger, em sua obra “A questão da técnica” (2002), adverte que antes dos

problemas técnicos serem propriamente considerados técnicos, isto é, possuírem e

necessitarem de uma resposta técnica, eles são de natureza filosófica. Ou seja, há uma

necessidade notável de se pensar sobre a aplicação social das tecnologias em questão, de

modo que seus impactos sejam considerados e que não haja o fortalecimento do sistema de

desenvolvimento da tecnologia em si mesma, mas haja uma mudança de posicionamento

quanto às políticas públicas e à tomada de decisões a serem adotadas em ciência e tecnologia.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerados a discussão e os resultados suscitados aqui, pode-se dizer que a

sociedade tecnocientífica está sujeita a riscos que têm proporcionado ganhos e danos,

benefícios e malefícios. Saber lidar com isso, mantendo seus custos inevitáveis em nível

mínimo é o caminho mais sensato que se deve almejar. Acerca disso, Kneller observa a

possibilidade de uma relação moderada entre a sociedade e a tecnologia para um equilíbrio e

melhor aproveitamento dessa relação:

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Alguma inovação tecnológica é essencial e desejável (...). Odesenvolvimento de novas tecnologias deve ser encorajado e o treinamentode tecnólogos imaginativos promovido. (...) A tecnologia pode criar oudestruir, tornar o homem mais humano ou menos. Mas as civilizações, comoos indivíduos, devem correr riscos (...). Se exercermos prudência paraminimizar os danos da tecnologia e incentivar o máximo seus benefícios,certamente valerá a pena aceitar o risco (KNELLER, 1980, p. 269-270).

É valido também retomar aqui a dominação da natureza como fundamento da ideia de

desenvolvimento, tão característico quanto a própria tecnologia. Nela predomina-se o

afastamento da natureza para a sua transformação e construção de algo “puramente” humano,

uma natureza modificada: a cidade, o urbano, as máquinas, o industrial (PORTO-

GONÇALVES, 2004, p. 24). Por isso, o papel que a ciência e, sobretudo, a tecnologia,

ocupam na vida das pessoas, deve ser amplamente discutido, a fim de se chegar a um estado

mais prudente dessa relação, pois o que se tem visto ultimamente é que a busca por esse

conhecimento não atende mais à prerrogativa da qualidade de vida humana como objetivo,

mas é utilizado “de acordo com os meios dos que detêm poder” (JONAS, 2006, p. 18).

É por isso que a responsabilidade, como princípio proposto por Jonas, parte

reconhecendo que o conhecimento científico e tecnológico pode estabelecer relações de poder

em sociedade, por exemplo, não sendo possível defender a ideia de neutralidade da ciência e

da tecnologia. Castro e Miranda (2017), observando este panorama configurado pelo

pensamento de Jonas sobre a ciência e a técnica e sua condição ética, fazem a seguinte leitura:

(...) a técnica e a ciência atingiram um notável espaço na sociedade, aomesmo tempo em que também revelaram seu caráter ameaçador para a vidana terra. Logo, a tecnologia não é neutra e, dada a sua importância e suaprofunda interação com a sociedade e com o meio ambiente, ela possui umcaráter eminentemente ético (CASTRO; MIRANDA, 2017, p. 247).

Não há busca despretensiosa pelo conhecimento. Este, assume um desvelar de busca e

de construção da realidade carregado de intencionalidades a fim de cumprir propósitos bem

específicos e determinados. Logo, é necessário propiciar espaços de discussão e decisões

públicas sobre os rumos da tecnociência. Essa ausência ou impotência e falta de controle

humano sobre a técnica, segundo Alencastro, produziu consequências não vislumbradas,

situação que coloca em cheque o real poder humano sobre esse domínio.

O domínio da técnica sobre a natureza, porém, veio acompanhado deinúmeros resultados inesperados. A incrível extensão do poder alcançadopelo progresso técnico-científico, e da necessidade imperativa do seu

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emprego, conduziu a humanidade a uma espécie de impotência emadministrar as consequências imprevisíveis e – muitas vezes – destrutivasdeste mesmo progresso (ALENCASTRO, 2009, p. 18).

Consequentemente, o crescimento econômico e a política societária configurada,

baseada na linearidade de consumo de produtos altamente tecnológicos, ambientalmente,

ocasiona o esgotamento dos recursos naturais, a geração indiscriminada de resíduos, poluição

e contaminações que põem em perigo o hábitat humano e acabam por comprometer a

sustentabilidade da biosfera; e, socialmente, gera o aumento da concentração de renda, a

exclusão social e o risco ao patrimônio comum da humanidade decorrente da manipulação

genética (ALENCASTRO, 2003, p. 1-2).

Pensar nas futuras gerações é condição chave para a reversão desse quadro de riscos.

Aliás, há condições sociais mais claras do que aquelas impostas pela natureza? “Nenhuma

sociedade escapa da natureza e, por isso, devemos cuidar (...) para que ela seja uma condição

da existência das gerações futuras” (PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 9). Assim, desde aqui, a

natureza deve ser tratada como mais que uma crítica ao capitalismo econômico, mas, sim,

como um valor fundamental da humanidade, movendo-nos para um alinhamento “entre

aqueles que buscam superar o capitalismo na medida em que ele coloca a humanidade e o

planeta em risco” (PORTO-GONÇALVES, 2004, p. 10).

Nesta realidade total, Castro e Miranda (2017) refletem a ética da responsabilidade

elucidando finalmente que,

Para Jonas, torna-se premente pensar num modelo de ética para a civilizaçãotecnológica que seja capaz de sair da esfera antropocêntrica e utilitarista, eque reconduza a ação humana baseada na responsabilidade e na prudência,no temor e na previsibilidade e em prol da biosfera (CASTRO; MIRANDA,2017, p. 245-246).

Portanto, apesar de suas limitações já sucitadas, os valores intrínsecos à proposta ética

de Hans Jonas, como a responsabilidade, a prudência, a prevenção e a preservação da vida,

podem fornecer as bases na mudança do agir em sociedade. Estes devem ser evidenciados, a

fim de que não mais o crescimento econômico, que aprofundou as diferenças sociais, seja a

prioridade política da sociedade, mas, sim, o cuidado com a natureza e a preservação da

dignidade da vida humana.

REFERÊNCIAS

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