das narrativas do controle centralizado às narrativas da...

20
VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20 Das narrativas do controle centralizado às narrativas da emancipação: uma revisão das histórias da informática no Brasil GT5 - novas dimensões da história da informática no brasil: ressignificando saberes e tecnologias Alberto Jorge Silva de Lima

Upload: vanthuy

Post on 12-Feb-2019

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

Das narrativas do controle centralizado àsnarrativas da emancipação: uma revisão dashistórias da informática no Brasil

GT5 - novas dimensões da história da informática no brasil:ressignificando saberes e tecnologias

Alberto Jorge Silva de Lima

Page 2: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

Introdução – as Tecnologias da informação e comunicação em cenaÉ inegável a presença das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) em capítulos

diversos da história do Brasil. Longe de pretender constituir um apanhado exaustivo desses capítulos, a seguinte seleção procura destacar algumas cenas, em épocas e contextos distintos, nas quais essas tecnologias despontaram como protagonistas, a saber:

• nas denúncias de Snowden que revelaram ao mundo as atividades da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América – e suas congêneres em países como Canadá, Inglaterra e Nova Zelândia – em esquemas globais de vigilância sobreas comunicações eletrônicas da população mundial, de governos e de empresas1 e nascrises diplomáticas e respostas regulatórias brasileiras para a garantia da privacidade nas redes e da soberania nacional, como o decreto que determinou o uso de sistema de e-mail próprio no âmbito da administração federal2;

• nas redes sociais como espaços de articulação e mobilização da sociedade civil nas jornadas de junho de 2013, em protestos que reuniram milhões de brasileiros em centenas de cidades – em um primeiro momento, em torno de pautas contrárias ao aumento das tarifas dos transportes públicos – e a perseguição dirigida a militantes, através do monitoramento de redes sociais, pelo Estado3;

• na controversa Política Nacional de Informática no Brasil entre os anos de 1976 e 1992, idealizada e implementada com o objetivo de fomentar o desenvolvimento local de tecnologias (DANTAS, 1980; MARQUES, 2003) através de instituição de uma reserva de mercado de minicomputadores;

• nas experiências das cooperativas de desenvolvimento de software voltadas para o fortalecimento de movimentos sociais, através do software livre, como a criação do Portal “Quem são os proprietários do Brazil?” pela cooperativa Educação, Informação e Tecnologia para a Autogestão (EITA), no ano de 2013, dentro da perspectiva da construção de ferramentas de visualização de dados, por meio de grafos, sobre a composição acionária de empresas, visando o fortalecimento das lutasanticapitalistas4.

Tais cenas colocam lado a lado entidades com características diversas (computadores pessoais, redes de computadores, celulares, programas de e-mail, redes sociais, minicomputadores, grafos para visualização de dados, governos, jornalistas, engenheiros, sociólogos, cineastas,

1Para maiores detalhes, consultar a página NSA Files Decoded, do jornal The Guardian, disponível em <http://www.theguardian.com/world/interactive/2013/nov/01/snowden-nsa-files-surveillance-revelations-decoded>, acesso em 10 jan. 2016.

2Para uma apreciação preliminar sobre as respostas brasileiras à espionagem global, ver Lima, 2016.

3Para uma porta de entrada interessante sobre as jornadas de junhos de 2013 no Brasil e suas conexões com as TICs e as práticas de vigilância do Estado ver Sobral, 2016.

4Portal disponível para consulta em <http://proprietariosdobrasil.org.br>. Acesso em 19 jun. 2016.

Page 3: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

militantes, cooperativas, agências de inteligência, etc.), bem como locais e momentos tambémdiversos, estabelecendo uma inesperada conexão entre elementos que, segundo uma narrativa mais linear do ponto de vista historiográfico, poderia soar, no mínimo, como um exagero metodológico.

No episódio da reserva de mercado, por exemplo, estamos diante de uma máquina de operação restrita a especialistas, presente, no máximo, em ambientes empresariais e escritórios de governos. No episódio das jornadas de junho de 2013, estamos diante de uma multidão portando celulares conectados em rede (e parcialmente mobilizadas através deles), reprimidas por um sistema de controle retroalimentado formado por câmeras e centrais de comando e controle. No primeiro episódio, a computação é um elemento distante do cotidianoda população, embora apresentada como elemento central dentro de um projeto de construção de nação, isto é, o desenvolvimento de tecnologia autóctone. No segundo, a computação é ubíqua, portada pela maior parte dos indivíduos e também presente, embora não de maneira evidente, nos mecanismos de controle da própria dinâmica da cidade e nas práticas de vigilância dos governos.

Diante dessas diferenças evidentes, o que, então, justifica a opção de apresentar esses episódios lado a lado?

Uma primeira resposta à pergunta pode ser representada pelo próprio elemento que as une, isto é, os artefatos computacionais ou Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs),sejam as máquinas eletrônicas digitais voltadas ao cálculo automático dos anos 1950 e 1960, sejam o que Lev Manovich, em um esforço de refletir e sistematizar o entendimento sobre a profusão, a produção e os efeitos das TICs a partir da década de 1990, chamou de novas mídias, isto é, objetos resultantes da “convergência de duas trajetórias históricas distintas: computação e tecnologias das mídias […] [ou da] translação de todas as mídias existentes para a forma de dados numéricos acessíveis através de computadores” (MANOVICH, 2001, p. 20).

Uma segunda resposta reside em uma característica que parece acompanhar o desenvolvimento histórico dessas tecnologias, a saber, uma certa tensão entre, de um lado, umcaráter emancipatório e libertário e, do outro, um caráter distópico associado ao potencial dessas tecnologias como elementos de controle centralizado e de repressão.

O argumento contido nesta segunda resposta está longe de ser uma novidade no campo da história da ciência e da tecnologia e dos estudos sobre as TICs e novas mídias, sobretudo na tradição norte-americana, como pode ser conferido, para citar apenas alguns exemplos, nostrabalhos de autores como Edwards (1995), Roszak (1998), Medina (2011) e Chun (2011). Damesma maneira, poderíamos citar as promessas de emancipação (e ansiedades) presentes nas

3

Page 4: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

experiências construídas em torno da cibernética (PICKERING, 2010; HAYLES, 1999; TURNER, 2006; HEIMS, 1991).

Este artigo tem como objetivo apresentar alguns resultados preliminares de minha pesquisa de doutorado, em desenvolvimento na linha de pesquisa em Informática e Sociedade do Programa de Engenharia de Sistemas e Computação da COPPE/UFRJ, que, por sua vez, tem como um de seus objetivos construir uma narrativa sobre a presença das TICs no Brasil, guiando-se pelos ideais de autonomia, liberdade e emancipação que nortearam, não sem conflitos e tensionamentos, algumas políticas voltadas a estas tecnologias em determinados períodos.

Resgato, a partir desta linha condutora, parte da produção da história da informática no Brasil, no esforço de, parafraseando a historiadora Márcia Regina Barros da Silva, percebermos que há “um lugar para a história da informática no presente” (SILVA, 2012, p. 5)5 do Brasil, contribuindo

para a discussão de uma forma de ver a história das ciências como algo queé totalmente conectada com as histórias nacionais, pois que não podem sercompreendidas em separado das negociações, vivências, memórias e açõessociais mais amplas (Ibidem, p. 5).

Em outras palavras, parto da consideração de que narrar as histórias da informática no Brasil representa narrar a própria história recente do país e dos próprios brasileiros e, adicionalmente, fazer uma reflexão sobre os modos de existência postos em cena pela informática e os projetos de Brasil a eles relacionados.

As portas de entrada deste esforço de revisão historiográfica estão relacionadas a dois períodos importantes na história da informática no Brasil, em que vigoraram no país a PolíticaNacional de Informática (1976-1992) e a política de fomento à implementação do software livre (2003-2016).

2 Narrativa(s) sobre a informáticaHá uma longeva e respeitada historiografia que evidencia como as tecnologias

computacionais estão imbricadas nas redes industriais e militares de alguns Estados Nacionais,

com destaque para os estudos e casos norte-americanos6.

5No artigo original, a autora faz um movimento ligeiramente distinto, refletindo sobre o lugar da história da informátca não somente no Brasil, mas em toda a América Latina.

6O termo "computador", nesta tradição historiográfica, refere-se, em geral, às máquinas eletrônicas digitais do século XX capazes de não somente processar, mas também armazenar os seus programas

4

Page 5: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

Nesta linha, destaco, sobretudo, o livro The Closed World – Computers and the Politics

of Discourse in Cold War America, de Paul Edwards (1995), onde os primeiros computadores

eletrônicos norte-americanos, e tecnologias a eles associadas, são apresentados como suportes

materiais do que o autor chama de discurso do “mundo fechado” e como metáforas, em

relação à sua constituição e estrutura, desse mesmo mundo.

A narrativa tecida segundo este argumento é permeada por histórias que relacionam

máquinas, pessoas, discursos e metáforas, em eventos como a Guerra do Vietnã, a Segunda

Guerra Mundial e a Guerra Fria e em territórios tão diversos como os centros de pesquisa

militares e universidades dos Estados Unidos, as florestas vietnamitas e estações espaciais.

Nesta narrativa, o computador é peça fundamental na constituição de sistemas de comando e

controle centralizados, de caráter panótico e totalitário, e na construção de um mundo

distópico onde tudo pode ser mapeado e controlado, das variáveis macroeconômicas aos

corpos e mentes humanos, compondo o chamado “mundo fechado”.

Se esta tradição narrativa dá conta, no contexto norte-americano, dos períodos iniciais

das TICs, o advento do computador pessoal, a partir da década de 1970, está ligado a uma

tradição distinta, que, apesar de não desprezar as raízes distópicas da computação, destaca

outras metáforas e discursos.

Nesta tradição, o computador aparece associado a movimentos de cunho progressista

e libertário, onde as máquinas não mais seriam utilizadas para construir, nem representariam,

mundos distópicos, mas seriam peças-chave na construção de um mundo sem controle

centralizado e conectado, onde a informação estaria disponível para todos e todas e o

ciberespaço surgiria como lugar por excelência do exercício de um ideal de cidadania

humanista.

Os exemplos de narrativas nesta tradição são também múltiplos e estão, de maneira

geral, relacionados ao surgimento e estabelecimento do computador pessoal, da internet e da

Web e, mais recentemente, das redes e mídias sociais. É exemplar, nesta tradição, o livro O

culto da informação – o folclore dos computadores e a verdadeira arte de pensar, de

(software) em memória. A ressalva é importante pois o termo poderia se referir às máquinas analógicas e/ou (eletro)mecânicas em um período anterior à Segunda Guerra Mundial.

5

Page 6: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

Theodore Roszak, onde o autor resgata episódios nos quais o computador eletrônico ganha,

nas mãos dos chamados “hackers guerrilheiros” dos anos da contracultura norte-americana, o

status de “instrumento da política democrática”, isto é, um meio de permitir a “milhões de

pessoas acesso a bancos de dados de todo o mundo, os quais – assim se encaminhava a

argumentação – eram a condição essencial para uma cidadania autoconfiante” (ROSZAK,

1998, p. 225). Nesta perspectiva, em vez de situados em salas frias e envolvidos nas redes do

complexo industrial-militar, onde os computadores eram construídos segundo esquemas de

organização do trabalho hierarquizados e verticalizados, as máquinas são fruto de esquemas

mais coletivos e horizontais, em clubes ou garagens onde a palavra de ordem, pelo menos

naqueles anos da contracultura, era o 'faça-você-mesmo' e onde imperava uma certa

concepção de engenharia reversa em sua construção.

A historiografia das TICs, passando por narrativas que as posicionam em redes de

controle centralizado, por um lado, e por narrativas que enfatizam uma promessa das TICs

como instrumentos de liberdade e emancipação, evidenciam uma dificuldade em atribuir-lhes

uma natureza ou essência, como se tais tecnologias ocupassem um lugar simultâneo entre o

terror e a esperança, entre o controle total e a liberdade, podendo adquirir uma ou outra forma

– ou ambas – a partir do lugar que eventualmente ocupem em cada caso particular.

Se os artefatos computacionais, entidades das novas mídias e das TICs e peças

importantes na sustentação de um mundo globalizado, são filhos do complexo militar-

industrial da Segunda Guerra, da Guerra Fria e, por que não dizê-lo, da Guerra ao Terror, é

interessante notar que são também frutos da contracultura (TURNER, 2006; ROSZAK, 1998)

e das promessas de libertação e proteção da cultura de compartilhamento presentes, por

exemplo, nos primeiro anos da Internet (WYATT, 2004).

3 histórias da informática no brasil: Da Política Nacional deinformática à política de fomento ao software livre

As primeiras narrativas colocadas em cena e constituintes desta revisão parcial e preliminar estão relacionadas à experiência brasileira de incentivo à implantação do software livre na administração pública, institucionalizada em 2003 a partir da criação, no âmbito das políticas de governo eletrônico (e-GOV) do Governo Federal, do Comitê Técnico Para

6

Page 7: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

Implantação do Software Livre (CISL)7, responsável por “coordenar e articular o planejamento e a implementação de projetos e ações” sobre software livre.

Contando com representações de diversas órgãos da administração federal8, o primeiro planejamento estratégico do CISL definiu diretrizes que apontavam para uma gradativa substituição dos sistemas proprietários em uso no governo federal por sistemas baseados em software livre e para o fomento do uso do software livre para além das ações ligadas ao governo eletrônico, como, por exemplo, a formulação de uma política nacional para o software livre, a popularização do uso do software livre, a utilização do software livre como base dos programas de inclusão digital e o incentivo e fomento ao mercado nacional em relação a adoção de novos modelos de negócios em tecnologia da informação e comunicação baseados em software livre9.

Sem a pretensão de realizar um apanhado exaustivo da produção bibliográfica sobre esta experiência, apresento a seguir alguns estudos que configuram uma aproximação inicial com as narrativas já desenvolvidas sobre a política brasileira de incentivo ao software livre.

Machado et al. (2010, p. 742), em artigo de avaliação sobre os primeiros anos das ações do CISL, estabelecem uma articulação direta entre o uso de padrões abertos e do software livre e argumentos relativos à soberania na gestão de TI, à liberdade na escolha de ferramentas e independência de fornecedores. Para eles,

7Para maiores detalhes, acessar o Decreto Não Numerado de 29 de outubro de 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/DNN/2003/Dnn10007.htm>. Acesso em: 06 mar. 2017.

8Os registros oficiais mostram que o CISL contava, inicialmente com representantes dos Ministérios, da Secretaria Geral da Presidência da República, da Advocacia Geral da União, da Agência Nacional deVigilância Sanitária (ANVISA), da Controladoria Geral da União (CGU), da Imprensa Nacional, da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), dos comandos das três forças armadas e de empresas públicas como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO), a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), a Empresa Brasileira de Comunicação S.A. (Radiobrás), o Instituto Nacional de Tecnologia (ITI) e a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB). Para uma lista completa dos primeiros integrantes do CISL e órgãos que representavam, consultar a Portaria Interministerial n. 793 de 17 de setembro de 2004, publicada na Seção 2, p. 1-2, do DOU de 20 de setembro de 2004.

9Para uma apreciação geral das diretrizes definidas no planejamento estratégico do CISL em 2003, consultar seção específica na página do Comitê, em <http://www.softwarelivre.gov.br/planejamento-anteriores/diretrizes-da-implementacao-do-software-livre-no-governo-federal-2003/>. Acesso em: 27ago. 2017.

7

Page 8: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

[a] economia de recursos com contratação e manutenção de licenças, apossibilidade de desenvolver tecnologia e o fomento de iniciativas deinovação são objetivos que passam inevitavelmente pela garantia daindependência de fornecedores, não aprisionamento a ferramentas etecnologias complementares [...] e pela soberania na gestão da Tecnologiado governo (grifos nossos).

Deslocando-se da retórica para as práticas, os autores destacam, em análise sobre diagnóstico realizado pelo CISL em 69 órgãos, as dificuldades de implementação do software livre na administração pública, quando “[v]erifica-se que a adoção de Software Livre encontra-se restrita, na maioria dos casos a Servidores e provimento de serviços […] [e] a completa falta de planejamento para Software Livre em um grande número de órgãos” (Ibidem, p. 751).

A menção, pelos autores, a uma instrução normativa do Ministério do Planejamento (Instrução Normativa n. 4/2009) como “primeira ação normativa no Brasil” (Ibidem, p. 752) para a implementação do software livre – exigindo, no caso, que os órgãos da administração pública direta verificassem a existência de uma alternativa livre sempre que vislumbrassem a aquisição de um software proprietário –, evidencia uma fragilidade desta política, tendo vista o período de seis anos que a separa do decreto de criação do CISL.

Birkinbine (2016) realizou um estudo sobre os mecanismos de avaliação de alguns projetos de softwares livres governamentais e a relação com sua efetividade. Na contextualização dos projetos analisados, o autor destacou o papel central do que Shaw (2011), em estudo sobre o papel da militância do software livre na construção das políticas públicas brasileiras sobre o tema no governo de Luís Inácio Lula da Silva, chamou de ‘especialistas insurgentes’, responsáveis por articular, dentro do governo, o discurso da inclusão digital via software livre como meio de se atingir a inclusão social da população.

Destaques semelhantes a essas políticas podem ser encontrados em Horst (2011), em estudo sobre os usos e apropriações das novas mídias no Brasil, e em tese de doutorado de Milano (2016) sobre as mesmas políticas públicas e a configuração do mercado colaborativo de software livre no governo até 2010, com estudo de caso sobre um projeto de inclusão digital neste contexto.

Pinheiro e Cukierman (2004) construíram uma interessante narrativa, em busca das traduções entre, por um lado, a tradição libertária/liberal da democracia norte-americana e do movimento pelo software livre naquele país e, por outro lado, o coletivo brasileiro que iniciava a construção dessas políticas no governo federal, destacando a grande promessa, nas ações e declarações de governo, de fomentar o uso do software livre como reafirmação de ideais democráticos e, replicando em parte a experiência da reserva de mercado de

8

Page 9: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

minicomputadores nas décadas de 1970 e 1980, potencializar um mercado autônomo e nacional de produção de software.

De fato, já em seus primeiros anos, tal política recebeu destaque na imprensa internacional, seja em relação à determinação de se priorizar o uso de softwares livres na administração pública, seja em relação ao seu uso nos programas de inclusão digital que estavam sendo gestados na época (BENSON, 2005).

Esta seleção bibliográfica inicial contém estudos que se debruçaram sobre ações delimitadas principalmente ao período dos dois primeiros governos do Partido dos Trabalhadores no Brasil, isto é, ao período que vai de 2003, quando o CISL é criado, a 2010. O período que vai de 2010, quando tem início o governo de Dilma Rousseff, também do PT, a2016 – quando, já em seu segundo governo, a presidenta é impedida de continuar seu mandato por um golpe jurídico parlamentar – carece de estudos mais sistemáticos sobre as ações do CISL e seus efeitos. A extinção do CISL, no apagar das luzes do governo petista, com o estabelecimento de nova política que omitia, como diretriz, qualquer menção de fomento ao software livre na administração pública, parece configurar um desenredamento das políticas públicas de fomento ao software livre no governo brasileiro.

O Decreto n. 8638 de 15 de janeiro de 2016 instituiu a Política de Governança Digital erevogou os decretos que instituíram, em 2000, o Comitê Executivo do Governo Eletrônico e, em 2003, seus comitês técnicos, dentre eles o CISL. Este mesmo decreto de 2016 prevê a criação, nos órgãos e entidades da administração pública federal, de um Comitê de Governança Digital com poderes deliberativos e composto por membros da administração superior e um titular da área de TIC, delegando ao Ministério do Planejamento a criação de Redes de Conhecimento como espaços meramente consultivos que, em teoria, deverão informar e dar suporte às decisões do Comitê de Governança Digital. É somente na Portaria n.290 do Ministério do Planejamento, publicada em 29 de setembro de 2016 e que disciplina a implantação, a promoção e o acompanhamento dessas Redes de Conhecimento, que aparece uma menção ao termo software livre, como assunto, dentre outros, em torno do qual uma determinada rede pode se formar. A materialidade destas redes, ainda segundo a portaria ministerial, é ampla o suficiente para englobar as ideias de “comunidades de prática, mídia social, grupo de correio eletrônico ou forma diversa”. Embora somente uma aproximação sociotécnica possa permitir ensaiar algum tipo de comentário mais preciso sobre os efeitos destas mudanças, o deslocamento que o termo software livre experimenta – isto é, de uma diretriz central articulada em um espaço formal como o CISL para algo difuso como uma redede conhecimento sem estrutura formal definida – reforçam a tese do enfraquecimento desta bandeira como política pública10.

10O Decreto n. 8638/2016 e a Portaria do Ministério do Planejamento n. 290/2016 estão disponíveis,respectivamente, em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/d8638.htm> e em <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?

9

Page 10: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

Retrocedendo cerca de 40 anos, o debate sobre a superação da dependência tecnológicana produção de artefatos de computação, no Brasil dos anos 1970, mobilizava a linha editorialda revista Dados e Ideias, publicação bimestral do serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO), entidade ligada ao governo federal. Em textos que se dirigiam, principalmente, à comunidade de técnicos no campo da informática e aos formuladores das políticas de ciência, tecnologia, educação e trabalho na burocracia governamental, engenheiros como Ivan da Costa Marques destacavam, por exemplo, a divisão internacional do trabalho que, por um lado, concentrava nos países do chamado centro do capitalismo global, o trabalho de know-how e concepção de tecnologias (altamente remunerado), enquanto, por outro, distribuía entre os países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento (como o Brasil) o trabalho menos qualificado e menos remunerado voltado à fabricação/montagem de artefatos.

Destacando deste quadro seus efeitos deletérios ao país, seja pela assimetria de remuneração do trabalho, seja pelo reforço à dependência tecnológica (e, consequentemente, política), tais publicações defendiam, como alternativa, um ensaio de autonomia tecnológica apartir do encontro entre a recém formada e relativamente madura comunidade acadêmica de informáticos, presente nas universidades e institutos tecnológicos, e uma indústria nacional deequipamentos eletrônicos e de processamento de dados, que, protegida por instrumentos legais e lançando mão de estratégias comerciais transitórias (como o uso de componentes OEM), daria vida, ao longo do processo, a “uma indústria de computadores genuinamente brasileira” (MARQUES, 1975, p. 16)11.

Entre os anos de 1976 e 1992 tal política se concretizou a partir de um arcabouço legal que instituiu uma Política Nacional de Informática (PNI), que, em termos gerais, criava uma reserva do mercado de minicomputadores para projetos de empresas nacionais que contemplassem a concepção local de tecnologia – ou, se alinhados a indústrias estrangeiras, previssem a transferência de tecnologia para o país. A PNI logrou, por exemplo, que o númerode empresas brasileiras atuando no setor saltasse de 14, em 1976, para 71, em 1984, ou que a divisão da receita entre empresas sob controle nacional e estrangeiro sofresse uma inversão, uma vez que as empresas brasileiras detinham 23% da receita em 1979 e passaram a deter 60% em 1987 (MARQUES, 2003).

A partir da constituição do que Marques (2003) denominou “coletivo técnica e politicamente agenciador”, a comunidade sui generis de

jornal=1&pagina=131&data=30/09/2016>. Acesso em: 27 ago. 2017.

11Para um quadro mais ampliado dos argumentos apresentados na revista Dados e Ideias em favor da construção da PNI, ver Marques (1974; 1975; 1976a; 1976b e 1977).

10

Page 11: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

profissionais especializados em computação originários das universidades,das forças armadas e das empresas estatais de processamento de dados[… ] [, aos quais juntaram-se] jornalistas especializados, empresários,políticos e alguns líderes de associações profissionais (Ibidem, p. 669),

performou a PNI a partir de um movimento de contínua avaliação de seus rumos e da interferência nas ações da Coordenação das Atividades de Processamento Eletrônico de Dados(CAPRE)12, configurando, assim, um exercício de “democracia relativa” no seio do governo ditatorial que comandava o Brasil no período.

O reconhecimento historiográfico ao sucesso econômico da PNI em seus primeiros anos é contrastado com avaliações controversas em relação a seus rumos, sobretudo em relação ao seu abandono nos anos 1990 e à percepção geral que atribui à PNI a causa de um suposto atraso tecnológico do país neste setor. Segundo Marques (2003, p. 660), a historiografia deixa

entrever a explicação do seu esgotamento e conseqüente abandono em1990 como um resultado previsível da combinação da oferta ao mercado deprodutos tecnicamente defasados a preços altos com a pressão norte-americana para que o Brasil abrisse o mercado dos computadores.

Entretanto, o autor abre uma linha narrativa alternativa ao retomar o processo de perseguição e desmantelamento da comunidade reunida em torno da PNI pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) do regime militar, que culminou, em outubro de 1979, na extinção da CAPRE e na criação da Secretaria Especial de Informática (SEI), como órgão complementar do Conselho de Segurança Nacional e a partir de então responsável pela PNI, sem previsão de instâncias consultivas.

Ocupada e dirigida pelos coronéis do SNI, a SEI manteve, em um cenário no qual surgiam como paradigma de computação os microcomputadores, as mesmas diretrizes da PNIconstruídas e voltadas a um mercado totalmente distinto, o dos minicomputadores.

Para Marques (2003, p. 674),

[e]sperava-se que o microcomputador, como fenômeno novo, exigissemudança e renegociação da política que havia sido gestada na comunidade

12Comissão ligada à então Secretaria de Planejamento da Presidência da República, responsável, dentre outras atribuições, pela "orientação governamental nos vários campos da informática". Para maiores detalhes, ver o Decreto n. 77118 de 9 de fevereiro de 1976. Disponível em <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-77118-9-fevereiro-1976-425743-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: 27 ago. 2017.

11

Page 12: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

de profissionais de informática e posta em prática pela CAPRE. Mas, aocontrário da reserva de mercado para minicomputadores, que foi precedidade vários anos de discussões públicas em uma comunidade, a reserva demercado para microcomputadores foi adotada sem discussão.

Assim, Marques (2003) desloca a narrativa sobre os rumos e sobre o legado da PNI, de argumentos centrados em uma causalidade exclusivamente ‘técnica’ ou econômica (oferta de máquinas defasadas em um mercado renovado pelos microcomputadores) ou em uma causalidade exclusivamente ‘social’ ou geopolítica (as pressões norte-americanas) para argumentos de ordem mais sociotécnica, que lançam mão dessas ‘causalidades’ sem deixar de levar em conta diferenças nos enredamentos construídos em torno da PNI antes e depois da intervenção do SNI.

4 notas metodológicas e (IN)CONCLUSÕESEmbora seja um movimento arriscado, a articulação entre as experiências da PNI e da

política de incentivo ao software livre permite levantar questões importantes para os objetivoselencados no início deste artigo, sobretudo quando se verifica, em ambas as iniciativas, o papel emancipatório atribuído às TICs no que se refere à garantia da soberania nacional e à produção local de artefatos, ainda que em tempos e contextos totalmente distintos.

Esta constatação, entretanto, não pode ser realizada sem maiores problematizações, como se as intenções inscritas em leis, decretos e diretrizes pudessem, por si só, determinar a natureza das redes sociotécnicas em cada experiência.

Para evitar simplificação de tal ordem, retomo as reflexões de John Law (2004) em seu instigante livro After Method. Começando com uma interrogação: “Como o método pode lidarcom a desordem?”, Law procura problematizar um traço comum nas iniciativas de pesquisa em ciências sociais, que, embora importantes para a construção de uma série de entendimentos acerca das “realidades”, não costumam captar muito bem o que elas tem de complexo e difuso. Em geral, segundo este autor, as pesquisas em ciências sociais estão atadas a uma tradição metafísica 'anglo-norte-americana' onde o real é concebido como algo primitivo (que existe “fora de nós”, ou como define o autor, em inglês, uma 'out-thereness'), independente (que independe de nós e de nossas ações), definido (que possui uma forma específica), anterior (que antecede à tentativa de apreendê-lo) e singular (é único, embora possa ser visto/experienciado sob diferentes perspectivas).

O problema com essa tradição metafísica, segundo Law, é que ela ignora que tais

atributos do real em geral são construídos, postos em cena (enacted), em um trabalho de

12

Page 13: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

justaposição de métodos (method assemblage) que torna certos traços presentes enquanto, no

mesmo movimento, alteriza outros (torna-os ausentes)13.

Para o autor, reconhecer esse caráter 'construtor de realidades' do método é uma ação

necessária para se atentar à multiplicidade de realidades latentes no ato de pesquisar. O

argumento, que não pode ser tomado como uma tentativa desesperada em tornar tudo presente

– uma vez que para haver presença necessariamente deve haver ausência –, caminha em

direção ao que Law, inspirado pelo trabalho de Anemarie Mol, chama de política ontológica.

Em outras palavras,

se as realidades são colocadas em cena, então a realidade não é, emprincípio, fixa ou singular e a verdade não é mais a única base para seaceitar ou rejeitar uma representação. A implicação é que há várias razõespossíveis, incluindo a política, para colocar em cena um tipo de realidadeem vez de outro e que essas bases podem em alguma medida serdebatidas. Isto é política ontológica (LAW, 2004, p. 162).

A ideia de política ontológica radicaliza a noção de que há uma indissociabilidade entre

'objeto pesquisado' e pesquisador e, no contexto deste artigo e do projeto de tese a ele

articulado, tais diretrizes metodológicas são importantes para estabelecer novas narrativas e

novos significados para a constituição do campo da história da informática no Brasil e, mais

importante, novas possibilidades para a própria existência e papel das TICs no Brasil e,

consequentemente, para novos Brasis.

Ainda citando Anemarie Mol, John Law defende que “as realidades não são explicadas

pelas práticas e crenças; são, em vez disso, produzidas nelas. Elas são produzidas e tem uma

vida, em relações” (LAW, 2004, p. 59, grifos nossos). Nessa perspectiva, a explicação sobre o

que algo “é” só faz sentido quando se faz um deslocamento “de uma apreciação

epistemológica da realidade para uma apreciação praxiográfica” (MOL, 2002, apud LAW,

2004, p. 59, grifos nossos), que nos permita

13A experiência com o real teria atributos muitas vezes opostos aos apresentados anteriormente, istoé, o real, tal como costumamos vivenciá-lo, nem sempre existe independentemente de nós, nem sempre tem forma definida, muitas vezes (ou quase sempre) é forjado durante a ação de tentar apreendê-lo e certamente pode se apresentar segundo um corpo múltiplo. Para maiores detalhes, ver Law (2004).

13

Page 14: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

investigar as vidas incertas e complexas de objetos em um mundo onde nãohá encerramento. Onde, querendo ou não, não há singularidade […]. [Quenos permita] investigar a multiplicidade dos referidos objetos, as maneirasatravés das quais eles interagem uns com os outros (LAW, 2004, p. 59).

Proponho, como exercício historiográfico a ser desenvolvido futuramente, a partir

desses enquadramentos metodológicos – e de outros próprios do campo dos Estudos CTS,

como a Teria Ator-Rede (TAR)14 –, a construção de uma narrativa que trabalhe com as

contradições dos ‘complexos objetos de vida incerta’ urdidos nas experiências postas em cena

nas histórias das informáticas relatadas anteriormente.

Para tanto, levanto as seguintes questões como (in)conclusões deste artigo:

• de que forma é possível conciliar as metáforas de emancipação e independência que

parecem nortear, simultaneamente, uma política industrial no contexto de uma

ditadura civil-militar violenta e repressiva e uma política de fomento ao uso do

software livre no contexto de um governo sustentado por uma coalizão de centro-

esquerda e em um período de relativa normalidade democrática?

• de que maneira é possível conceber práticas típicas de períodos democráticos, como a

realização de consultas e de fóruns de debate, como elementos constituintes de

políticas de Estado no primeiro caso, em que um governo reconhecidamente

repressivo e supressor de direitos fundamentais assumira o poder?

• ou, alternativamente, de que maneira é possível conceber as aparentes dificuldades de

implementação e consolidação da política de incentivo ao software livre no segundo

caso, em que um governo supostamente progressista assumira o poder?

• sem querer estabelecer comparações entre os dois períodos, que outras metáforas

contribuíram para estabilizar suas versões específicas de informática?

14Para apreciações diáticas sobre a Teoria Ator-Rede, ver Callon (1986), Latour (1995 e 2000) e Law (1992).

14

Page 15: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

• que entidades, humanas e não humanas, contribuíram para estabilizar, ao lado das

metáforas, as versões específicas de informática nas duas histórias aqui apresentadas e

que contribuições uma pesquisa tal como a anunciada neste artigo poderia legar para

os campos dos Estudos CTS e da história da informática.

• que versões de Brasil, manifestas ou alterizadas, estiveram em jogo na tessitura das redes

sociotécnicas de cada período?

Para exemplificar os caminhos potenciais de uma historiografia que caminhe a partir deste mapa de questões, armada com os referenciais metodológicos citados anteriormente, poderíamos, por exemplo, retomar a experiência do CISL no contexto das políticas de fomento ao software livre.

Neste contexto, os ideais de independência tecnológica e de liberdade em um mundo globalizado – onde, apesar de suportado por práticas descentralizadas e aparentemente desterritorializadas, o desenvolvimento de software é norteado por valores e modelos situados em locais privilegiados e bem determinados, como o Vale do Silício (TAKHTEYEV, 2012) –, podem ser relacionados às reflexões de dois importantes pensadores da brasilidade em tempos de tecnociência globalizada.

Por um lado, a ideia de um atraso tecnológico no desenvolvimento de software poderia caminhar na direção do que Laymert Garcia dos Santos, resgatando conceito elaborado por Alfredo Bosi, chamou de “obsessão do descompasso”, isto é:

aquela que mede a distância entre o Brasil e as sociedades capitalistasavançadas […]. Uma eterna corrida entre dois polos: de um lado, asociedade capitalista existente, cujos efeitos capitalistas são, no entanto,negados; de outro, uma sociedade capitalista avançada ideal e inatingívelque poderia existir, mas não existe (SANTOS, 2003, pp. 49-50).

A obsessão do descompasso possui, na obra de Laymert, uma qualificação negativa, uma vez que o autor a apresenta como uma manifestação da colonialidade da elite do país, que atribui a um pretenso comportamento atrasado do povo as razões do subdesenvolvimento brasileiro, “pois ela [a mente colonizada] está sempre partindo do que falta, e não do que realmente existe” (SANTOS, 2003, p. 57).

Ao analisar a retórica do CISL, percebemos uma relação parcial entre o conceito de obsessão do descompasso e os esforços de fomento ao software livre levados a cabo pelo governo brasileiro. Por um lado, a angústia do descompasso está presente quando se naturaliza a necessidade de criação de um governo eletrônico face às experiências de outros países, lembrando que o CISL era um comitê de assessoramento ligado a um comitê superior que, por sua vez, tinha como principal atribuição a implantação de um e-GOV no Brasil, como reflexo de uma política estabelecida ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso. Por outro lado, são dignos de nota os esforços de superação deste

15

Page 16: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

descompasso através de um movimento de não adesão ao status quo, isto é, a escolha pelo software livre seria, em princípio pelo menos, um caminho não hegemônico, na direção contrária à indicada porgrandes corporações e governos imperialistas, isto é, o caminho de softwares patenteados e proprietários.

A hipótese, a ser trabalhada em estudo mais aprofundado e aderente às práticas de produção desoftware eventualmente tributárias das políticas formuladas pelo CISL, é de que este funcionaria comoum espaço de qualificação positiva de uma percepção de atraso tecnológico até então muito atrelada aum pensamento colonizado. A superação da colonialidade, neste sentido, teria como uma dascondições a progressiva adoção de softwares livres e modelos abertos na administração pública.

Essa qualificação positiva, contudo, não parece se dar sem riscos. Embora articulem ouso do software livre como um caminho necessário para a autonomia tecnológica do país e para adefesa de sua soberania, a ideia de que as práticas e valores podem ser traduzidos – quase queliteralmente – com pouco esforço para o contexto brasileiro está presente na trajetória das políticas emquestão. Machado et al. (2010), por exemplo, destacam, como defesa da adaptação de “casos desucesso” à realidade brasileira, “a tradução do Roadmap de Desenvolvimento de Tecnologia Aberta doDepartamento de Defesa dos Estados Unidos da América feita pelo Instituto Nacional de Tecnologiada Informação – ITI, [cuja] versão brasileira recebeu o Título de ‘DTA: Desenvolvimento deTecnologia Aberta’” [DTA 2007] (MACHADO et. al., 2010, p. 745).

Tal concepção ecoa fortemente as ações e princípios de outra política de governo do período, a saber, a de inclusão digital, fortemente pautada, pelo menos em seus primórdios, por um ideal de inclusão social via garantia de acesso às TICs (computadores, celulares e Internet), como tradução de uma política global localizada e construída pelo Departamento de Comércio dos Estados Unidos da América (LIMA, 2012).

Além de Laymert Garcia dos Santos, os ideais do software livre, tal como articulado pelo CISL, se aproximam fortemente das alternativas utópicas apontadas por Milton Santos em seu clássicolivro Por Uma Outra Globalização, onde o autor atribui às TICs uma espécie de dupla face, considerando que

[o]s sistemas técnicos de que se valem os atuais atores hegemônicos estãosendo utilizados para reduzir o escopo da vida humana sobre o planeta. Noentanto, jamais houve na história sistemas tão propícios a facilitar a vida e aproporcionar a felicidade dos homens. […] As famílias de técnicasemergentes com o fim do século XX – combinando informática e eletrônica,sobretudo – oferecem a possibilidade de superação do imperativo datecnologia hegemônica e paralelamente admitem a proliferação de novosarranjos, com a retomada da criatividade. Isso, aliás, já está se dando nasáreas da sociedade em que a divisão do trabalho se produz de baixo paracima. Aqui, a produção do novo e o uso e a difusão do novo deixam de sermonopolizados por um capital cada vez mais concentrado para pertencer aodomínio do maior número, possibilitando afinal a emergência de umverdadeiro mundo da inteligência. Desse modo, a técnica pode voltar a sero resultado do encontro do engenho humano com um pedaço determinado

16

Page 17: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

da natureza – cada vez mais modificada -, permitindo que essa relação sejafundada nas virtualidades do entorno geográfico e social, de modo aassegurar a restauração do homem em sua essência (SANTOS, 2015, pp.163-165).

Embora se possa, nesta passagem, problematizar uma categoria tal como “homem em sua

essência”15, a concepção de Milton Santos é exemplar das análises sobre as TICs que destacam suas

potencialidades como instrumentos de libertação do indivíduo, de empoderamento dos de baixo, dos

homens (humanos) lentos – para citar um conceito articulado no mesmo livro –, de descentralização

das estruturas organizativas, etc., apesar do papel central que desempenham na sustentação das redes

globais de concentração de poder e na redução “do escopo da vida humana sobre o planeta”.

ReferênciasBENSON, Todd. Brazil: Free software’s biggest and best friend. The New York Times, v. 29,n. 3, p. 2005, 2005.

BIRKINBINE, Benjamin. Free Software as Public Service in Brazil: An Assessment of Activism, Policy, and Technology. International Journal of Communication, v. 10, pp. 3893-3908, 2016.

CALLON, Michel. Some elements of a sociology of translation: domestication of the scallopsand the fishermen of St Brieuc Bay. In LAW, John. Power, action and belief: a new sociology of knowledge? London: Routledge, 1986, pp.196-223.

CHUN, Wendy Hui Kyong. Programmed visions: software and memory. Cambridge, MA: MIT Press, 2011.

DANTAS, Vera. A guerrilha tecnológica: a verdadeira história da política nacional de informática. Rio de Janeiro: LTC-Livros Técnicos e Científicos Ed., 1988.

EDWARDS, Paul N. The Closed World: Computers and the Politics of Discourse in Cold War America. Cambridge, MA: MIT Press, 1995.

HAYLES, N. Katherine. How we became posthuman: virtual bodies in cybernetics, literature, and informatics. Chicago: The University of Chicago Press, 1999.

HEIMS, Steve Joshua. The Cybernetics Group. Cambridge, MA: MIT Press, 1991.

15Para uma interessante problematização das tradições epistemológicas que atribuem uma essencialidade ao chamado "mundo natural" e, consequentemente, à categoria humano, ver Latour (2000).

17

Page 18: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

HORST, Heather A. Free, social, and inclusive: Appropriation and resistance of new media technologies in Brazil. International Journal of Communications, v. 5, 2011.

LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford University Press, 1995.

______. Ciência em ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

LAW, John. Notes on the theory of the actor-network: Ordering, strategy, and heterogeneity. Systemic Practice and Action Research, v. 5, n. 4, p. 379-393, ago. 1992.

______. After method: mess in social science research. London; New York: Routledge, 2004.

LIMA, Alberto Jorge Silva de. Mídias digitais como quimeras contemporâneas: o caso do ExpressoBr e a resposta brasileira à vigilância global. In: Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, 2016, Florianópolis. Anais do 12o Seminário Nacional de história da Ciência e da Tecnologia. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de História da Ciência, 2016. v. 3.

______. No rastro da inclusão digital: uma jornada por metáforas e alegorias. In: 13º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, 2012, São Paulo. Anais do 13o Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia. São Paulo: Escola de Artes, Ciências e Humanidades - EACH/USP, 2012. v. 1. p. 73-89.

MACHADO, Carlos R.; HERNANDEZ, Juliana; KUHN, Deivi L.; CAMARA, Frederico; PASTORE, Paulo F. Uso de Software Livre no Governo Federal: Investigando o Estágio Atuale definindo (novos) Parâmetros de Acompanhamento. In: WORKSHOP DE COMPUTAÇÃO APLICADA EM GOVERNO ELETRÔNICO. 2010. pp. 742-753.

MANOVICH, Lev. The language of new media. Cambridge, MA: MIT Press, 2001.

MARQUES, Ivan da Costa. Computação na UFRJ: Uma Perspectiva. CAPRE – Boletim Informativo, Rio de Janeiro, v. 2, n.2, pp. 21-28, 1974.

_________. O Momento Decisivo para o Computador Brasileiro. Dados e Idéias, v. 1, n.1, pp. 13-16, 1975.

__________. A Opção Urgente: Autonomia ou Dependência Tecnológica? Dados e Idéias, v. 1, n.3, pp. 6-16, 1976a.

__________. Uma Etapa Histórica Desmentida. Dados e Idéias, v. 1, n.6, p. 48-56, 1976b.

__________. Uma Politica Industrial de Informática. Dados e Idéias, v. 2, n.5, pp. 4-10,

18

Page 19: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

1977.

__________. Minicomputadores brasileiros nos anos 1970: uma reserva de mercado democrática em meio ao autoritarismo. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 10(2),pp. 657-81, maio-ago. 2003.

MEDINA, Eden. Cybernetic revolutionaries: technology and politics in Allende's Chile. Cambridge, MA: MIT Press, 2011.

MILANO. Mariana T. A construção social do mercado colaborativo de software livre durante o Governo Lula: agentes, estratégias e discursos. 2016. 197f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” (Campus Araraquara), Araraquara, 2016.

PICKERING, Andrew. The cybernetic brain: sketches of another future, Chicago: The University of Chicago Press, 2010.

PINHEIRO, Alexandre; CUKIERMAN, Henrique. Free software: Some Brazilian translations. First Monday, [S.l.], nov. 2004.

ROSZAK, Theodore. O computador e a contra-cultura. In: ROSZAK, Theodore, O culto da informação – o folclore dos computadores e a verdadeira arte de pensar. Rio de Janeiro: Ed. Brasiliense, 1998, Capítulo 7.

SILVA. Marcia Regina Barros. Para que fazer história da informática. In: II Simpósio de História da Informática na América Latina e Caribe, 2012, Medellin. Anais do II Simpósio de História da Informática na América Latina e Caribe. Medellin: XXXVIII Conferencia Latinoamericana en Informatica, CLEI, 2012.

SANTOS, Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias: o impacto sócio-técnico da informação digital e genética. São Paulo: Editora 34, 2003.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro/São Paulo: Editor Record, 2000.

SHAW, Aaron. Insurgent expertise: The politics of free/livre and open source software in Brazil. Journal of Information Technology & Politics, v. 8, n. 3, p. 253-272, 2011.

SOBRAL, André Vinicius Leal. Ações coletivas em redes: um estudo de caso sobre o Anonymous Rio. 2016. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Sistemas e Computação) – COPPE, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

TAKHTEYEV, Yuri. Coding places: Software practice in a South American city. Cambridge, MA: MIT Press, 2012.

19

Page 20: Das narrativas do controle centralizado às narrativas da ...esocite2017.com.br/anais/beta/trabalhoscompletos/gt/5/esocite2017... · outras metáforas e discursos. Nesta tradição,

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716∕ Lima. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 1(gt5):1-20

TURNER, Fred. From counterculture to cyberculture: Stewart Brand, the Whole Earth network, and the rise of digital utopianism. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.

WYATT, Sally. Danger! Metaphors at Work in Economics, Geophysiology, and the Internet. Science, Technology, & Human Values, v. 29, n. 2, p. 242-261, 2004.

20