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54 Pinheiro et al. ICFEN em Jovem Relato de Caso Rev Bras Cardiol. 2013;26(1):54-57 janeiro/fevereiro Relato de Caso 1 1 Programa de Pós-graduação em Ciências Cardiovasculares - Faculdade de Medicina - Universidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói, RJ - Brasil 2 Departamento de Medicina Clínica - Faculdade de Medicina - Universidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói, RJ - Brasil Correspondência: Tadeu Batista Pinheiro E-mail: [email protected] Av. Marquês do Paraná, 303 6º andar Cardiologia - Centro - 24030-215 - Niterói, RJ - Brasil Recebido em: 25/07/2012 | Aceito em: 01/11/2012 Introdução A IC é uma complexa síndrome clínica, constituindo- se em problema de saúde pública mundial. Caracteriza- se de duas formas: uma com a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) <50%, e outra em que a disfunção diastólica é dominante e a FEVE é >50%¹. A incidência de ICFEN tem aumentado devido ao envelhecimento da população e ao aumento do reconhecimento médico da síndrome que compromete principalmente mulheres idosas e com múltiplas comorbidades como hipertensão arterial sistêmica (HAS), obesidade e diabetes 2,3 . Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Normal em Paciente Adulto Jovem Heart Failure with Normal Ejection Fraction in a Young Adult Patient Tadeu Batista Pinheiro 1 , Cristiano Almeida Tiradentes 1 , Antonio José Lagoeiro Jorge 2 , Mario Luiz Ribeiro 2 , Evandro Tinoco Mesquita 2 Resumo A insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal (ICFEN) é uma síndrome complexa, caracterizada pela presença de sinais e/ou sintomas de insuficiência cardíaca (IC), fração de ejeção do ventrículo esquerdo >50% e presença de disfunção diastólica; é comum em mulheres idosas com hipertensão arterial e de difícil diagnóstico. Relata-se o caso de paciente feminina, 43 anos, portadora de hipertensão arterial que desenvolveu quadro de ICFEN e que apresentou regressão do quadro clínico e melhora das anormalidades morfofuncionais com o tratamento anti-hipertensivo e o emprego de medicamentos que atuam no remodelamento cardíaco. Palavras-chave: Insuficiência cardíaca; Disfunção diastólica; Acoplamento ventrículo-arterial Abstract Heart failure with normal ejection fraction (HFNEF) is a complex syndrome, characterized by the presence of signs and/or symptoms of heart failure (HF), left ventricle ejection fraction >50% and diastolic dysfunction; common in older women with hypertension, it is difficult to diagnose. This case report describes a hypertensive female patient (43 years old) who developed HFNEF, and who then achieved a regression in her clinical status with improved morphofunctional anormalies through antihypertensive treatment and the use of cardiac remodeling drugs. Keywords: Heart failure; Diastolic dysfunction; Ventricular arterial interaction HAS é o fator de risco mais comum para IC em particular a ICFEN. O risco de desenvolver IC em pacientes hipertensos quando comparados aos não hipertensos é cerca de três vezes mais elevado 4 . O diagnóstico de ICFEN é baseado na presença de sinais ou sintomas de IC em pacientes com FEVE >50% e que apresentem alterações da função diastólica avaliada pelo ecoDopplercardiograma e Doppler tecidual (EDT) 5 .

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Pinheiro et al. ICFEN em Jovem

Relato de Caso

Rev Bras Cardiol. 2013;26(1):54-57janeiro/fevereiro

Relatode Caso

1

1 Programa de Pós-graduação em Ciências Cardiovasculares - Faculdade de Medicina - Universidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói, RJ - Brasil2 Departamento de Medicina Clínica - Faculdade de Medicina - Universidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói, RJ - Brasil

Correspondência: Tadeu Batista PinheiroE-mail: [email protected]. Marquês do Paraná, 303 6º andar Cardiologia - Centro - 24030-215 - Niterói, RJ - BrasilRecebido em: 25/07/2012 | Aceito em: 01/11/2012

Introdução

A IC é uma complexa síndrome clínica, constituindo-se em problema de saúde pública mundial. Caracteriza-se de duas formas: uma com a fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) <50%, e outra em que a disfunção diastólica é dominante e a FEVE é >50%¹.

A incidência de ICFEN tem aumentado devido ao envelhecimento da população e ao aumento do reconhecimento médico da síndrome que compromete principalmente mulheres idosas e com múltiplas comorbidades como hipertensão arterial sistêmica (HAS), obesidade e diabetes2,3.

Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Normal em Paciente Adulto Jovem

Heart Failure with Normal Ejection Fraction in a Young Adult Patient

Tadeu Batista Pinheiro1, Cristiano Almeida Tiradentes1, Antonio José Lagoeiro Jorge2, Mario Luiz Ribeiro2, Evandro Tinoco Mesquita2

Resumo

A insuficiência cardíaca com fração de ejeção normal (ICFEN) é uma síndrome complexa, caracterizada pela presença de sinais e/ou sintomas de insuficiência cardíaca (IC), fração de ejeção do ventrículo esquerdo >50% e presença de disfunção diastólica; é comum em mulheres idosas com hipertensão arterial e de difícil diagnóstico. Relata-se o caso de paciente feminina, 43 anos, portadora de hipertensão arterial que desenvolveu quadro de ICFEN e que apresentou regressão do quadro clínico e melhora das anormalidades morfofuncionais com o tratamento anti-hipertensivo e o emprego de medicamentos que atuam no remodelamento cardíaco.

Palavras-chave: Insuficiência cardíaca; Disfunção diastólica; Acoplamento ventrículo-arterial

Abstract

Heart failure with normal ejection fraction (HFNEF) is a complex syndrome, characterized by the presence of signs and/or symptoms of heart failure (HF), left ventricle ejection fraction >50% and diastolic dysfunction; common in older women with hypertension, it is difficult to diagnose. This case report describes a hypertensive female patient (43 years old) who developed HFNEF, and who then achieved a regression in her clinical status with improved morphofunctional anormalies through antihypertensive treatment and the use of cardiac remodeling drugs.

Keywords: Heart failure; Diastolic dysfunction; Ventricular arterial interaction

HAS é o fator de risco mais comum para IC em particular a ICFEN. O risco de desenvolver IC em pacientes hipertensos quando comparados aos não hipertensos é cerca de três vezes mais elevado4.

O diagnóstico de ICFEN é baseado na presença de sinais ou sintomas de IC em pacientes com FEVE >50% e que apresentem alterações da função diastólica avaliada pelo ecoDopplercardiograma e Doppler tecidual (EDT)5.

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Pinheiro et al. ICFEN em Jovem Relato de Caso

Rev Bras Cardiol. 2013;26(1):54-57janeiro/fevereiro

Relato do Caso

Paciente feminina, 43 anos, afro-brasileira, procurou ambulatório com queixas de falta de ar e cansaço ao acordar e durante o dia ao realizar suas atividades, com piora nos últimos 30 dias. Refere ser portadora de hipertensão arterial, porém naquele momento não fazia uso de nenhuma medicação.

Ao exame: lúcida, taquipneica, ciclo menstrual normal, sedentária, sem turgência de jugular a 45º . R i tmo cardíaco regular com quarta bulha; ausculta pulmonar normal; membros inferiores sem edemas; peso: 72,60 kg; altura: 153 cm; IMC: 31,01 kg/m2; cintura abdominal: 90 cm; PA: 236x152 mmHg; pulso: 107 bpm; classe funcional II NYHA.

Exames Complementares

ECG ritmo sinusal, PR: 0,14s, AQRS: +30º a +60º; índice de Sokolow Lyon (ISL): 53 mm; hipertrofia do ventrículo esquerdo (HVE) e crescimento do átrio esquerdo (Figura 1).

Hemoglobina: 15,5 g/dL; glicose: 95 mg/dL; creatinina: 1,06 mg/dL; hemoglobina glicada: 5,4 mg/dL;

TSH: 3,61 UI/ml; colesterol: 222 mg/dL; triglicérides: 62 mg/dL; HDL colesterol: 73 mg/dL; proteína C-reativa ultrassensível: 0,10 mg/dL; BNP: 42 pg/mL.

Radiografia de tórax: transparência pulmonar normal, seios costofrênicos livres, aorta de calibre normal, aumento do volume cardíaco – índice cardiotorácico = 0,57.

Ecocardiograma com Doppler tecidual (Tabela 1)

FEVE: 58%; massa VE indexado: 115,50 g/m2.

Diâmetro de átrio esquerdo: 3,9 cm; volume do átrio esquerdo (VAE): 59 mL; VAE indexado: 35,03 mL/m2; E: 95 cm/s; A: 68 cm/s; relação E/A: 1,40; tempo de desaceleração da onda E: 272 ms; S’: 5 cm/s; E’: 5 cm/s; relação E/E’: 19.

Disfunção diastólica estágio II, HVE.

Evolução

Paciente foi medicada com clortalidona 25 mg 1x/dia, carvedilol 6,25 mg 2x/dia, besilato de anlodipina 5 mg e losartana potássica 100 mg 1 x/dia.

Figura 1ECG de 12 derivações realizado em 8/8/2011

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Pinheiro et al. ICFEN em Jovem

Relato de Caso

Rev Bras Cardiol. 2013;26(1):54-57janeiro/fevereiro

Um mês após a consulta inicial encontrava-se com queixas de cansaço aos médios esforços com PA: 160x100 mmHg; a dose de carvedilol foi aumentada até alcançar 25 mg 2 x/dia.

Tabela 1 Parâmetros ecocardiográficos iniciais e após seis meses de tratamentoParâmetros EDT (15/08/11) EDT (13/02/12)FEVE (%) 58 69VDF I mL/m2 94,20 72,70Massa VE-I g/m2 115,50 76,80VAE-I mL/m2 35,03 26,70Relação E/A 1,40 1,50S’ cm/s 5 8E’ cm/s 5 11Relação E/E’ 19 10EDT=ecocardiograma com Doppler tecidual; FEVE=fração de ejeção do ventrículo esquerdo; VDF I=volume diastólico final do ventrículo esquerdo indexado; VAE I=volume do átrio esquerdo indexadoE/A=relação enchimento/contração atrial; S’=avaliação da função sistolica do VD; E’=Doppler tecidual; E/E’=avaliação da função diastólica ventricular

Figura 2ECG de 12 derivações realizado em 23/1/2012

Cinco meses após queixava-se de cansaço aos grandes esforços conseguindo executar suas atividades sem sintomas.

Peso: 77,70 kg; PA: 140x98 mmHg; pulso: 61 bpm.

O ECG de controle mostrou uma redução do ISL para 32 mm (Figura 2).

Novo ecocardiograma foi realizado (Tabela 1).

Discussão

Hipertensão arterial é o principal fator de risco para desenvolver IC6. Pacientes com hipertensão apresentam maior espessamento da parede arterial que normotensos, mesmo após ajuste pela idade, e também está associada com o remodelamento concêntrico do VE e fibrose7. A interação do VE com o sistema arterial – acoplamento ventrículo-arterial – é um fator determinante do desempenho cardiovascular. O acoplamento ventrículo-arterial pode ser avaliado pela relação entre a elastância arterial (EA) e a elastância sistólica final do VE (ELv).

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HAS é capaz de alterar o acoplamento com aumento tanto do EA (15-60%) como do ELv (16-95%)8. O aumento da rigidez tanto do VE como das artérias exacerbada pela HAS ref le te a doença do acoplamento8, ou seja, a rigidez vascular e a ventricular interagem para limitar a resposta ao estresse cardiovascular (desempenho reduzido) e com isso promovem o aparecimento dos sintomas.

Na paciente relatada, o diagnóstico de ICFEN foi confirmado pela presença de sintomas de IC, FEVE: 58%, VDF-I: <97 mL/m2 e a relação E/E’: 19. De acordo com as Diretrizes de IC5, em pacientes com sinais e/ou sintomas de IC que apresentem FEVE >50% e volume diastólico final indexado do VE <97 mL/m2 o diagnóstico de ICFEN pode ser feito pela presença de uma relação E/E’>15, que é um marcador não invasivo das pressões de enchimento do VE.

BNP é uma ferramenta importante no diagnóstico de IC. A paciente apresentava uma dosagem de BNP: 42 pg/mL o que a princípio afastaria o diagnóstico de IC. Pacientes ambulatoriais com ICFEN diferentemente da ICFER podem apresentar valores de BNP <100 pg/mL. Recente estudo avaliou 159 pacientes com ICFEN: valores de BNP <100 pg/mL estavam presentes em 29% dos pacientes que eram mais jovens, mais obesos e com melhor função renal9.

A paciente relatada evoluiu com melhora do quadro c l í n i c o e re d u ç ã o d a p re s s ã o a r t e r i a l . O ecocardiograma realizado seis meses após o primeiro atendimento mostrou uma redução importante do VAE-I, da massa do VE indexada e das pressões de enchimento do VE. A redução da HVE reduz a ELV possibilitando a melhora do acoplamento ventrículo-arterial. O Estudo LIFE mostrou o impacto da losartana na redução da HVE em pacientes hipertensos6.

O acoplamento ventrículo-arterial é importante mecanismo de doença para o desenvolvimento de ICFEN em pacientes com HAS que ainda não desenvolveram rigidez arterial significativa. O tratamento desses pacientes com medicamentos que bloqueiam o sistema renina-angiotensina-aldosterona, betabloqueadores e diuréticos pode melhorar significativamente o quadro clínico e a função s istól ica e diastól ica do ventr ículo esquerdo.

Potencial Conflito de InteressesDeclaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Fontes de FinanciamentoO presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação AcadêmicaEste artigo é produto do Grupo de Pesquisa “Insuficiência cardíaca: da molécula à população” do curso de Pós-graduação em Ciências Cardiovasculares da Universidade Federal Fluminense.

Referências

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