reis, josé carlos. o conceito de tempo histÓrico em ricoeur, koselleck e annales

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  • 5/28/2018 REIS, Jos Carlos. O CONCEITO DE TEMPO HIST RICO EM ricoeur, koselleck e annales ...

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    SNTESE NOVA FASEV. 23 N. 73 (1996): 229-252

    o CONCEITO DE TEMPO HISTRICO EMRICOEUR, KOSELLECK E " ANNAL ES":

    UMA ARTICULA O POSSVEL

    Jos Carlos ReisDep. de Histria - UFOP

    Resumo: O conceito de tempo histrico em Ricoeur, Koselleck e "Annales": uma arti-culao possvel. Entre os discursos filosfico e fsico sobre o tempo, este artigoapresenta a perspectiva do historiador sobre o tempo. Discute a condio de "terceirotempo" do tempo histrico e se detm nas anlises de Ricceur, Koselleck e "Annales"deste conceito. Finalmente, tenta articul-Ias na considerao das relaes entre tem-po histrico e conhecimento histrico.Palavras-chave: Tempo histrico, Epistemologia da Histria, Historiografia, Filosofiadas Cincias Sociais

    Abstract:The Concept of Historical Time in Ricceur, Koselleck an "Annales": a possiblearticulation. This article presents the historian's perspective about time between thephysicaland philosophical discourses abouttime. It discusses thecondition of thehistorical time as a "third time" and examinesthe analysis of Ricceur, Koselleck and"Annales" about this concepl Finally, it triesto articula te them in the study of therelations between historical time and historical knowledge.Key Words: Historical Time, Epistemology of History, Historiography, Philosophy ofthe Social Sciences

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    1-Discursandosobre otempo: ofs ico ,o f i lsofoe o histor iador.

    Sobre o tempo tem-se duas perspectivas inconciliveis: a da fsica e a da

    filosofia'. A fsica refere-se aos "movimentos naturais", a um tempo exterior,supra-lunar, imortal. Suas caractersticas so: a medida, a quantidade, aabstrao, a reversabilidade, a homogeneidade, a extenso. O tempo definido como o "nmerodos movimentosnaturais". Nesses movimentoshuma abolio da diferena entrepassado/presentee futuro. O ser que estno incio do movimento o mesmoque se encontrano seu final: no hesquecimento das condies iniciais. O tempo o nmero de posies queumcorpo ocupa no espao ao longo da sua trajetria. O movimentoreversvel: o ser que foi, volta. A referncia para a medida dos movimentos,isto , um movimentocontnuo, homogneo, regular, que sirva de base parauma contagemprecisa dos movimentos dos corpos o movimentodos astrose a velocidadeda luz. Como nmerodo movimentodoscorpos,o tempo pensvel em suarelao com o "espao". Os corpos se deslocamno espaoe seu deslocamento medido, segundo aquelas refernciasacima, o"tempo-espao".Aqui, na medida dos movimentos naturais, fala-se de "relaestemporais":usa-se os conceitosneutrosde anterioridade / posterioridade /anterioridade / instante abstrato. O movimento abstratamentesegmentvelem qualquerum de seus pontos.No se fala de"atribuiestemporais", isto ,no se usa os conceitos de passado/presentee futuro",No h, aqui, nenhumapreocupaocom a eternidade,com a salvao. Nose trata de um tempo "vivido", mas neutro, indiferente, "natural".O"vividohumano" postode lado como irrelevante para o conhecimento dotempo. H indiferena em relao s idias de vida e morte. verdade, noentanto, que o segundo Princpio da Termodinmica,que fala da entropia,se refere a um tempo evolutivoe irreversvelda natureza-- mas,trata-sedeuma "mortenatural",sem a inquietao da finitude'. um tempono"vivido". Os autores dessa tradio: Piato, Aristteles, Newton, Einstein. Os fsicos em geral...Quanto filosofia, ela se refere s "mudanasvividas" pela conscincia, a um tempo interior, sublunar, mortal'. Suascaractersticas so: a incomensurabilidade, a qualidade, o vivido concreto, airreversibilidade, a sucessividade, a intensidade, a curta durao. E,sobretudo,a "reflexo". A alma ou conscincia foi, e ser. Embora aconscincia se esforce para se reter, para se intensificar, ela deixa deser, torna-se, esquece-se de onde veio e do que era -- devir. A "mudana"no um movimentonatural-- um movimento que alterao ser que semove. O ser, enquanto"dura",no mais o mesmo. O ser que estava

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    na origem no o mesmo que chega ao final de alguns anos ou scu-los.Entre o ser inicial e o final, h o tempo, a durao que altera o ser. Queno uma "durao natural", isto , contnua, homognea, regu-lar, mensurvel; uma "durao humana", "vivida": descontnua,heterognea, irregular, qualitativa, no numervel. A mudana vivida irreversvel e incomensurvel. As duraes da conscincia so qua-litativas: preenchida de aes, a durao curta; esvaziada de aes,a durao longa. A durao estimada e no numervel. O tempo a relao da alma a si - ela se lembra e espera. Ela sofre no devirpois deixa constantemente de ser: ou muda ou morre; separa-se, es-quece-se e renova-se e deseja "salvar-se", isto , quer sair do devir,quer permanecer no ser, continuar a ser, nem mudar e nem morrer,nem durar, mas sair do tempo, reino das duraes.A reflexo sobre o devir acompanhada pela reflexo sobre a eterni -dade. O horizonte humano a finitude, a interrupo do ser, vividacomo uma ameaa. O transcurso do ser em direo morte marcado pelo "souci"(inquietao): perdas, sofrimentos, separaes,esquecimentos, opresses, escravides, violncias, corrupes,enfim, finitude. Evade-se desse devir terror, dessa eroso do ser,com as idias de infinitude, no transcurso, com a idia do ser que j e sempre : Uno, Deus, o Instante eternos. Mortal, esse tempo marcado pela reduo do ser ao nada. Os autores dessa tradio:Plotino, Santo Agostinho, Bergson, Bachelard, Husserl, Heidegger,Levinas, para citar somente os clssicos.Seria possvel segurar esse tempo humano que transcorre vertiginosa-mente, vivido na inquietao, no terror do horizonte mortal? Seriapossvel regular a clepsidra para que a areia/gua no desa de uma svez, sem deixar vestgios do ser que estava na parte superior? Omundo humano presente, que ocupa a parte superior da ampulheta,emboraparea slido e eterno, tende a desabar sobre a parte inferiore o que se torna visvel, ento, um monte indiferenciado de areia, serque foi e no mais. E na medida em que tende ao desabamento, emque tran s-corre, mesmo a parte superior tambm no visvel,abordvel, conhecvel. O presente, a parte superior, no se deixa apre-ender pois seu ser deixar de ser;o passado, a parte inferior, tambmno se deixa apreender,pois seu ser 11110 ser mais.Entretanto, ser preciso, de alguma forma, controlar essa descidahumana no tempo, ser necessrio acompanhar essa passagem doshomens. Como seria possvel? Essa a problemtica do tempo histrico:a do acompanhamento dos homens em suas mudanas e a sua "descrio eanlise ". Pode-se descrever e analisar um objeto que se auto-pulveriza,os homens em seu tempo? Pode-se, atravs de alguns artifcios. Faz-se,ento, uma cintura no vidro, um estreitamento em seu centro, para que oser que ainda passe lentamente, controlavelmente, visivelmen-

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    te, condio de "no mais". Assim, o mundo humano como que seestabiliza, ganha alguma durao, fixa-se. As sociedades vivas cria-ram este estreitamento do vidro, que o calendrio, e sua descida notempo numerada, uma sucesso organizada, diferenciada.O historiador, por sua vez, usando a mesma cintura do vidro, o calen-drio, realizar o trabalho de manuteno do ser que passou no ser.Para isso, ele opera uma reverso no conceito de passado, de vidapassada, que ele estabeleceu como seu objeto. Ocupando a parte su-perior da clepsidra, portanto, ainda no ser, ele a vira de ponta-cabeae faz retomarpelo vo do tempo o ser que se foi. O ser que se foi, ento, desaba a contrapelo sobrea sua cabea e sobre a sociedadepresente, espiritualizado, abstrato. Ao agir assim, para o historiador, opassado no considerado o que no mais, inacessvel,incognoscvel. Para ele, ao contrrio, o passado o que h de maisslido na estrutura do tempo", Ele existncia conhecvel; somentecomo "tendo sido" o vivido humano se d ao conhecimento. O pas-sado no seria uma queda no nada, mas, ao contrrio, umapassagem ao ser: o passado a consolidao do ser no tempo, durao realizada. Ele no o que no mais, mas o que foi e ainda. Ele penetra em nossa atividade presente e determina o futuro.Entretanto, embora seja "durao realizada", o passado no existeem si. Ele se confunde com a reconstruo que se faz dele. Ele existeno presente como memria, reconstruo. O ser do passado a sua"representao", que est situada no presente.O passado parece uma "espiritualizao do ser": ele no se d per-cepo sensvel, mas como lembrana e conhecimento retrospectivo.Ele significa a abolio concreta das coisas e sua entrada em umaesfera "abstrata" da existncia. Como conhecimento, o passado ilumi-

    na a partir de trs. A parte superior da ampulheta est repleta de vidaconcreta - no entanto, rpida, passageira, voltil; ao revert-Ia emseu esprito, o historiador impregna a si mesmo e ao seu presente deuma vida abstrata, j vivida, mas permanente, consolidada". Postan-do-se na cintura da clepsidra, olhando para o seu vo escuro eprofundo, o historiador faz retomar parte superior o p que enche aparte inferior, que retoma vida - uma vida ao mesmo temporeconstruda, representada, interpretada, tema de um dilogo e, dealguma forma, reconstituda, recriada, percebida, interlocutora.A questo, agora, : como pode o historiador realizar este "milagre"?Como poderia ele deter essa pulverizao do seu ser que a experi-ncia do tempo pelo homem? A perspectiva teolgica e filosfica

    decidiram no se interessar pelo tempo e a contemplar o que no passa,o que mesmo na passagem sempre : esse ser deixa-se apreender e cognoscvel", A perspectiva do historiador diferente: ele sabe que ohomem no tempo, sabe que ele muda, que finito, e no

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    deseja contemplar ou conhecer o que fora do tempo e que nomuda, que para ele inabordvel e incognoscvel. Seu interesse pelo "outro", pela alteridade humana, que sobretudo temporal. O

    que o historiador deseja produzir um "conhecimento da mudana",uma descrio do transcurso dos homens finitos em sua experinciada finitude, que ele considera paradoxalmente o nico apreensvel ecognoscvel. Seu objetivo "mediar" um dilogo entre vivos e "vivosainda". O que ele faz "diferenciar" duraes. Ele olha para a escu-rido do vo da clepsidra e lana sinais, interrogaes e, para a suasurpresa e alegria, para o seu encantamento, ele recebe mensagens,informaes, respostas. O fundo da ampulheta fala, expressa-se, capaz de dialogar com a parte superior, retirando os vivos da solidoem sua passagem inexorvel pelo vo.Para mediar esse dilogo, o historiadordeve produzir um novo con-ceito de tempo - ele ter de criar umterceiro tempo entre o da na-tureza e o da conscincia. Se o tempo da conscincia mortal, finitoe tendncia do ser ao nada e se o tempo da natureza permanncia, reversibilidade e tendncia ao ser, pois o que foi,retoma, ele procura-r inscrever o que passa no que no passa, oirreversvel no reversvel, as mudanas da vida sublunar nosmovimentos naturais supra-lunares. O risco que ele corre nestaoperao: o da naturalizao do tempo da conscincia, o seucongelamento, o apagamento da diferena dos dois tempos. Umterceiro tempo no poderia apagar a diferena, mas conectar,articular dialeticamente a diferena. Risco que o historiador precisacorrer e tentar controlar. Como se daria a construo desse terceirotempo? Eis as argumentaes de Ricceur, Koselleck e dos Annales.

    2 - Otempo histrico seria um ' 'terceirotempo" entre a natureza ea consc incia?

    2.1 -A Perspectivade Rcoeun os temposcalendrio, genealgico earqueolgico.Primeira Perspectivado tempohistrico como um terceirotempo".O tempo da conscincia, vivido e mortal, sobretudo individual. otempoda "carne humana", que a caa do historiador. Mas, interessadonesse tempo biogrfico, poro de vida concreta, e para torn-loconhecvel, dizvel, comunicvel, o historiador realiza uma primeiraoperao de inscrio dele em um tempo mais durvel: o tempo coletivo dassociedades, de suas mudanas e construes coletivas. O tempo histricono se refere somente ao tempo coletivo, annimo - este

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    um primeiro esforo de endurecimento-consolidao do passageiroindividual. O tempo histrico refere-se "vida humana", que indi-vidual e coletiva. Forar no coletivo contra o individual ou enfatizar oindividual contra o coletivo fracassar na apreenso da vida huma-na, que o objetivo do historiador.Ricoeur considera que o historiador produziria um terceiro tempo, umtempo mediador entre o da natureza e o da conscincia". Para darconsistncia conscincia, ele de certa forma a naturaliza ou a inscre-venos movimentos naturais permanentes. A prtica histrica, argumentaRicceur, produz "conexes", reinscreve o tempo vivido sobre o tempocsmico atravs de alguns artifcios: o calendrio, a sucesso degeraes, a preservao dos vestgios em arquivos, museus, bibliote-cas... O tempo histrico duplo: ele a organizao que a prpriavida coletiva se d - nesse sentido ele um vivido concreto, efetivo, uma auto-organizao da vida social; e conhecimento desse vivido.Enquanto conhecimento, o tempo histrico seria uma soluo potica,isto , prtica e imitativa e no terica da aporia do tempo fsico e da

    conscincia. Enquanto puro vivido o tempo da conscincia inorganizvel e inenarrvel- pura sucesso dispersiva, descontnua,sem costura possvel. Com o calendrio, as sociedades seorganizam, as geraes ganham uma posio em sua sucesso, osdocumentos so datados.Ainda com esses recursos, a experincia humana torna-se narrvel.Ohistoriador em sua narrativa constri uma intriga, que uma sntese do heterogneo, que integraem uma histria total, completa e com-plexa, eventos mltiplos e dispersos. A intriga no narra o vivido talcomo aconteceu, embora tenha essa ambio, pois o vivido humanono apreensvel em sua integralidade e pureza. Mas, e por isso um terceiro tempo, a intriga refigura a experincia temporal, cria uma

    concordncia discordante, e os homens imersos no tempo se douma localizao, uma direo, um sentido. Portanto, o tempo histricotan-to como organizao da vida coletiva, efetiva, como conhecimentoreconstrudo da vida passada, representaria um terceiro tempo, ummediador.A primeira ponte que a histria lana sobre o abismo entre a natureza e aconscincia o "calendrio". O calendrio no "naturaliza" o vividohumano. Ele mantm a diferena dos dois tempos, mas participa de um ede outro, no se restringe a um ou a outro, e por ser assim mediador, um terceiro tempo. O calendrio indispensvel vida dos indivduos esociedades. Eis a sua estrutura: sempre h um evento fundador, queabre uma nova poca, "ponto zero" a partir do qual se conta e se data os

    eventos; depois, deste ponto zero percorre-se o tempo em duas direes:do presenteao passado, do passado ao presente. Fixam-se unidadesde medida -dia, ano, ms, sculo. Sua234 | Sintese Nova Fase, Belo Horizonte. v.23. n. 73, 1996

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    estrutura ao mesmo tempo dupla e singular. Enquanto mediador, ele duplo. Do tempofsico,ele mantm as caractersticas de continuidade e

    uniformidade, a linearidade infinita, segmentvel vontade, a partir deinstantes quaisquer, no tem presente, reversvel, pois pode-se ir dopresente ao passado e deste ao presente, mensurvel e numervel. a astronomia que sustenta esta numerao e medida. Do tempo da conscincia, o calendrio mantm as caractersticas dairreversibilidade, da tendncia do passado/presente ao futuro, damudana,da memria e da espera. As datas (naturais-histricas) re-presentam mais do que os nmeros que as simbolizam. O calendrio duplo: astronomia e conscincia. A definio do pontozero no astronmica, mas a escolha de um evento, um presente determina-do, singularque teria aberto uma poca, rompendocom outra.Entretanto, se o calendrio em suaduplicidade rene aqueles dois

    tempos, ele os ultrapassa e se torna um tempo original: o "momento axial", isto , o "ponto-zero" central, no nem o instante qualquer dafsica e nem o presente vivido da conscincia, mas um passadovivido, que considerado capaz de dar curso novo histria. Este"momento axial" d posio a todos os outros eventos e nossa prpriavida individual recebe uma "situao" com relao aos outros eventosda vasta histria. Assim, eventos sem a menor relao entre si soorganizados a partir deste momento axial como sendo passados,presentes e futuros. Todos so "datados", situados no calendrioastronmico-histrico. Segundo Ricceur, a originalidade que o tempoaxial confere ao calendrio torna-o exterior ao tempo fsico e aotempo vivido. Ele mediador: cosmologiza o tempo vivido e humanizao tempo csmico'".Enfim, o calendrio insere a vida dispersa da sociedade em quadrospermanentes, os movimentos naturais regulares. O "ano" uma uni-dade de tempo natural - tem uma estrutura repetitiva, reversvel. sempre o mesmo ano, do ponto de vista da natureza, so sempre osmesmos movimentos. O que o calendrio faz numeraresta repetioanual e situar nessa sucesso as experincias humanas. Por isso, ele considerado como uma primeira ponte entre o vivido humano e onatural: ele uma rgua, uma escala posta ao lado da estrada humana -em cada uma de suas marcas um tipo de homem individual-social existiu,em sua singularidade, finitude e inefvel intensidade. O cu a rgua -sob e entre os 'astros a histria humana ganha uma nume rao.Para voltarmos metfora da clepsidra de ponta-cabea: o historiadorpostado no orifcio que separa o ontem do hoje, que define a alteridadedo presente, provoca o retorno do ontem/ outro e quando este apareceum nmero se inscreve na cintura da clepsidra marcando a data da suapassagem. O que era um monte indiferenciado de p ganha forma

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    e nmero, ganha uma organizao sucessiva, uma diferenciao, umatemporalizao. O escrpulo do historiador o de conferir a cadaontem que retorna

    o seu nmero

    preciso, a sua data. Se a sua tarefa

    a de distinguir datas, seu maior receio o de cometer o erro maior,a confuso das datas, que o "pecado mortal" do anacronismo: isto, fazer uma descrio inexata da vida, situar uma vida singular, finitae intensa em um ambiente/data estranha, onde ela seria impensvel.Isso seria trair os homens vividos; estes que seriam "vivos ainda"voltam vida natimortos.Portanto, na cintura da clepsidra de ponta-cabea h um olhar queobserva um nmero natural-histrico que organiza o retorno sucessi-vo dos homens. Esses voltam agrupados por "geraes". Para Ricoeur,a idia de "sucesso de geraes" - contemporneos, predecessorese sucessores, seria uma segunda ponte entre os tempos natural, agorano mais astronmico, mas biolgico, e o da conscincia". O que passa

    sucessivamente, marcadas pela data, so "geraes", vivos que viveramjuntos, que cabem na mesma data. A tal data, tal gerao. A idiade gerao antiga e liga-se s idias de "continuidade da tradio"e de "inovao". Se o calendrio um conceito/ponte astronmico-histrico, a gerao um conceito/ponte biolgico-histrico. Esse tempobiolgico-histrico apia-se sobre o tempo astronmico-histrico: s possvel falar de geraes se se puder dat-Ias. Assim como o calen-drio, o conceito de gerao duplo: biolgico e histrico. Enquantobiolgico, a sucesso de geraes refere-se imortalidade da espcie, reposio fsica dos indivduos. O tempo humano-biolgico sucessivo,mas imortal. As geraes se sucedem de 30 em 30 anos. Nessaduraode 30 anos, os homens conhecem os processos naturais donascimento, envelhecimento e morte. Aps 30 anos, homens novosvm substituir os velhos. A duraomdia da vida - o tempo biol-gico - medida pelo calendrio - o tempo astronmico.Mas, a idia de gerao no se restringe ao seu lado biolgico - o dareposio fsica de indivduos vivos. O seu lado histrico, para o his-toriador, o que interessa mais. Na perspectiva do historiador, a su-cesso biolgica fundamental, pois sem essa reposio fsica de cor-pos vivos a histria no seria pensvel. No haveria a histria sem aespcie. Mas, o historiador ultrapassa esse dado natural e concebe agerao de forma cultural. A sucesso de geraes no fsica, mashistrica. Pertencer a uma gerao ou suceder no ter a mesma idadeou ser mais jovem, mas possuir uma contemporaneidade de influncias,eventos e mudanas. Um todo com aquisies comuns, orientaescomuns e recusas comuns. Pertence-se a uma gerao por afinidadessutis, pela participao em um destino comum - um passado lembrado,um presente vivido, um futuro antecipado. Cria-se um tempointersubjetivo, com mediaes fracas. No se trata de uma"contemporaneidade annima" - vivida biologicamente juntos, mas236 I Sintese Nova Fase, Belo Horizonte, v.23, n. 73, 1996

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    culturalmente diferenciados, com mediaes simblicas fortes, porqueno imediatas. Na idia de gerao, onde predomina o tempo daconscincia, trata-se de vida compartilhada, interdependente, quedispensa a ostentao simblica: um "ns", uma relao direta,intuitiva, imediata, entre o eu e o voc.

    A idia de sucesso de geraes leva ao reconhecimento de que a histria a de homens mortais. Mas, como h substituio e comunicao, a morte visada indiretamente. Entidades coletivas, annimas, pblicas - povo,Estado, classes - sobrevivem aos indivduos mortais. A imortalidadesimblica se impe sobre a mortalidade biolgica. Sempre haversucessores biolgicos-simblicos - o homem espcie e histrico imortal;sucessores que sempre procuraro resgatar os antecessores da morte e doesquecimento. A noo de sucesso de geraes rene espcie e histria.H uma reposio biolgica e simblica dos homens. Enfim, enquanto ponteentre o tempo da conscincia e o natural-biolgico, o tempo histricorepresenta a permanncia de geraes sucessivas biolgica e culturalmente,vencendo do lado biolgico, a morte, do lado da conscincia, oesquecimento. Como segundo elemento constituinte do tempo histrico, queconecta conscincia e natureza, a idia de sequncia de geraes substituimortos por vivos, antepassados por descendentes, sucessores. A morte vencida - a espcie/humana imortal.Nosso historiador est l, abraado cintura da ampulheta de ponta-cabea. Sempre datando, do lado biolgico, ele se assegura de quesempre houve homens, de que no houve lacunas, rupturas da cadeiademogrfica. Ele constata que a populao tende ao crescimento, que senasce mais do que se morre. Ele conta as geraes, o nmero dehomens e suas oscilaes, descreve os movimentos das populaes. Dolado cultural, ainda sempre datando, ele distingue as geraes quepossuem afinidades, que participam de uma mesma memria, de umamesma espera, mesmo distantes entre si, quanto s suas datas. Eleidentifica as geraes que valorizam a tradio e as que inovam,interrompendo a tradio. Postado ali no buraco do tempo, ele realiza amediao, ele pe em dilogo homens que nunca se encontraram, nuncase viram e se conheceram, mas repletos de dados e informaes sobre asua prpria experincia da vida para se oferecerem reciprocamente.Mas, para mediar esse dilogo, para estabelecer o contato entre asgeraes, o historiador precisa de uma terceira conexo entre o tempo daconscincia e o natural: trata-se dos vestgios, arquivos, bibliotecas,acervos". Se as geraes podem se comunicar e se constiturem no sentidode co-participao, de compreenso recproca entre seus membros epredecessores / sucessores afins, isso s realizvel atravs da leitura,processamento e interpretao dos seus vestgios e sinais, pelo

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    historiador. As geraes, ao passarem pela parte superior da clepsidra,deixam sinais, marcas. O presente possui as marcas da sua passagem.

    O presente o "corpo do passado". O vestgio "coisa" e "sinal". O ladomaterial do vestgio - couro, metal, madeira, barro, argila, cermica,pedra, papel, tinta etc. - essencial na medida em que permite que amensagem dure. Quando o presente se debrua sobre um vestgio, elequer decifrar uma mensagem, e, ento, o prprio material suporte damensagem visto como pertencendo mensagem. No maisnatureza. O vestgio indica o aqui-agora da passagem de vivos, eleassegura que houve a passagem anterior de outros homens vivos.O historiador somente virou a clepsidra de ponta-cabea porque, antesde faz-lo, constatou na parte superioronde ele se encontra, coisas esinais enigmticos, que no pertencemaos vivos, ao seu tempo. Essessinais lhe asseguram que o tempo passa e que antes dele outrosesti-veram ali. E esses teriam informaes a oferecer, conhecimentos, con-quistas, um patrimnio cultural a oferecer. E, sobretudo, mesmo queno tenham nada de novo a oferecer, o que quase impossvel, pelofato de serem outros, diferentes, seriam talvez, uma boa conversa, umbom encontro - um tenso/amigvel encontro dos homens vivendoem tempos diferentes. Os vestgios permitema abordagemdo outro,eles trazem as mensagens e sinais dos outros passados. O vestgioenigmtico: ele significa sem "fazer aparecer"; nele, o passado no"aparece", mas afirma a sua existncia. A sua reconstruo,quem vaitentar faz-Io aparecer, a partir deseus traos, ser o historiador.Portanto, como ponte entre o vivido e o tempo natural,o vestgiouma coisa que garante a passagem dos vivos no tempo calendrio. Ovestgio para significar, para ser uma informao, para ter sentido,

    precisa ser datado. Um vestgio uma mensagem datada. Mais umavez, a vida humana que tende a desaparecer sem deixar rastros seentregue ao seu prprio tempo, ganha consistncia, durao, perma-nncia, quando seus vestgios so postos na sucesso do calendrioe corretamente datados.Enfim, para Ricoeur, o tempo histrico seria um terceiro tempo entre

    os tempos da natureza e da conscincia, que estavam separados porum abismo. O tempo histrico - tanto o das sociedades quantoo doconhecimento -com os mesmos recursos, com os mesmos conectores(calendrio, sucesso de geraes, vestgios) - organiza a vida huma-na transitria, mortal, finita e interior dentro do quadro permanente,duradouro e exteriorda natureza. O calendrio conta e narra a vidahumana, enumera-a, no quantificvel enquanto puro vivido huma-no. A vida ganha, entoincios e fins, recomeos, ritmos de trabalhoe repouso, festa, sagrado e profano. O tempo calendrio organiza asgeraes, a sua sucesso: conta os anos, marca continuidades e rup-turas, data seus feitos, suas obras, seus nascimentos, mortes, seqn-238 I Sntese Nova Fase, Belo Horizonte, v.23, n. 73, 1996

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    cias e descontinuidades. O calendrio organiza as fontes, osdocumentos, os sinais, as mensagens humanas. O calendrio seria o"nmero das mudanas das sociedades humanas" e estrutura o que,para Kant, uma contradio: a presena e ausncia de um mesmo

    ser em um mesmo lugar, isto , a "mudana". O calendrio "numera oinumervel", narra o inenarrvel: os ritmos mais rpidos e mais lentos,a singularidade e transitoriedade da vida humana. O tempo histrico um tempo hbrido, que solda uma fratura. A vida breve ganha o fundodo vasto tempo natural; o tempo da inquietao (souci) ganha aestabilidade do movimento dos astros.Entretanto, o tempo histrico realizaria tal pretenso? Seria de fato umterceiro tempo? Responder afirmativamente concordar com Ricoeurque o tempo calendrio faz esta mediao entre natureza e conscin-cia. Responder negativamente no negar que o calendrio faa estamediao, pois de fato ele a realiza, mas questionar os limites destamediao. Pode-se dar tanta nfase ao calendrio, quando se histo-

    riador, e esquecer a especificidade do tempo humano, que vivido,instabilidade, finitude e sucesso dispersiva? No seria recair em umcerto naturalismo positivista impor ao tempo humano a regularidadeda natureza? Alm disso, propor o calendrio como soluo definitivapara o problema do tempo histrico no seria encontrar uma soluofcil para umproblema bem mais complexo? Do ponto de vista "positivista" - positivista aquele que submete o tempo humano aos ritmos naturais, apagando a diferena entre eles - o tempo calendriose confunde com o prprio tempo histrico: as sociedades so postaslinear e sucessivamente umas em relao s outras, os eventos sopostos linear e sucessivamente uns em relao aos outros e localizadoscom preciso nessa sucesso. Se a sucesso dos eventos e sociedades corretamente datada uma "histria" vai se desdobrar objetivamente,independentemente das hiptesese construes do historiador.Con-cebido assim, o tempo histrico ganha uma objetividade, umapositividade, que desfaz todo enigma e oferece uma enganadora solu-o: ele a sucesso das sociedades e eventos humanos medidospela homogeneidade e regularidade do calendrio.Todavia, Ricoeur no positivista - longe disso, um historicista - e muitomenos ingnuo quando realiza reflexes sobre o tempo. Alis, estamosfazendo um uso elptico de suas teses sobre o tempo histrico - discutir oseu conceito de tempo histrico exigiria muito maior esforo. Ele sabeque o calendrio uma referncia objetivante do tempo da conscincia eque ele no o reduz sua estrutura. Dentro de suas medidas, prevalece oincomensurvel. Os ritmos heterogneos, descontnuos,as lembranas eesquecimentos, as esperas e desiluses, a inquietaovivida.

    SnteseNova Fase, Belo Horizonte,v. 23, n. 73, 1996I 239

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    2.2 - A perspectiva de R. Koselleck: a especificidade do tempohistrico e a crtica ao conceito de "tempo calendrio".

    Koselleck ser usado aqui para por em dvida a tese de Ricoeur sobreo tempo calendrio como terceiro tempo". Para ele, o tempo histricoest longe de ser resolvido pelo calendrioe continua a questo maisdifcil posta pelo conhecimento histrico".Datas corretas so essenci-ais, mas so somente as condies prvias e no poderiam definir o"tempo histrico". No na cronologia baseada em movimentos na-turais que pensa aquele que se interroga sobre as relaes entre o tempoe a histria. Ele observa rugas no rosto do velho, os meios decomunicao atuais convivendo com passados, a sucesso de gera-es-culturas. O passado chega ao presente em runas, aos pedaos, emfragmentos, pela ao erosiva do tempo: prdios, templos, imagenshumanas e sagradas, livros, idias, rituais, palavras, estrias, histrias,

    cemitrios, cones, instrumentos, tcnicas, artes, etc. Em geral chegamcortados, amputados, desviados, quebrados, incompletos, alterados,semi-destrudos mesmo quando, e sobretudo s vezes, quando soreconstrudos. So os restos de um mundo humano. Dat-los fundamental, mas s o comeo do trabalho do historiador. Oconceito de tempohistrico, portanto, no se refere ao tempo medidoda natureza. Essa noo se liga a conjuntos de aes sociais epolticas, a seres humanos concretos, agentes e sofredores, sinstituies e organizaes que dependem deles. Cada uma delascom o seu ritmo prprio de realizao.Koselleck no desvaloriza o calendrio, a datao rigorosa. O tempohistrico no poderia existir sem se referir s medidas e unidades do

    tempo natural. Mas, ele afirma, a interpretao das relaes entre osprocessos sociais obriga superao da medida natural. A datao indispensvel porque localiza um mundo histrico entre os mundoshistricos sucessivos. Localizado no calendrio, este mundo histricoganha alguma identidade em relao aos outros. Mas, feito isso, preciso adentrar, emptica e compreensivamente,o mundo humanorecortado, sem se protegercontra a sua instabilidade interna. Conhec-10 no somente situ-lo na sucesso; feito isso, preciso adentrarem seu interior, em sua especificidade, conhecer seus desvios, seusesfor-os, seu funcionamento interno instvel.Conhecer um mundo histrico, para Koselleck, responder a estaquesto maior: como, em cada presente, as dimenses temporais do

    passado e do futuro foram postas em relao? Sua resposta a essaquesto a sua hiptese sobre o "ser" do tempo histrico: determi-nando a diferena entre passado e futuro, entre "campo da experin-cia" e "horizonte de espera", em um presente, possvel apreenderalguma coisa que seria chamada de "tempo histrico". Passado e fu-turo reenviam-se um ao outro e esta sua relao que d sentido 240 | Sntese Nova Fase, Belo Horizonte, v.23, n. 73, 1996

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    idiade "temporalizao". Na experincia individual, por exemplo, oenvelhecimento modificaa relao entre espera e experincia. Quandose maisjovem ou maisvelho,o passado e o futuro significam dife-rentemente e suarelaose altera. Ainda usando o exemplo da expe-rincia individual, pode-sedistinguir uma idade cronolgica, medidapelo calendrio, euma idade interna, histrica. Os indivduos tmsempreum nmero de anos vividos, mas a sua relao interna com oseu passado e seu futuro, embora se relacione, no se submete suaidade numrica. As sociedades tambmexistem em umnmero, emuma data, e indispensvel conhec-Ia.Mas, ao historiador interessaa sua idade interna, isto, a relaoque emseu presente, que mudasempre,cadasociedadeestabelece com o seu passado e o seu futuro.Paraesclarecera sua hiptese, ele dalguns exemplosconcretos derelacionamento de presentes com seus passados e futuros. primeiro -o tempo europeu anterior ao tempo medieval: o espao da experincia seimpunha sobreo horizonte de espera. A histria era concebida como"mestra da vida". Oexemplo histrico que orientava a espera. Anatureza humanaeraconcebida comocontnua, repetitiva, as experi-ncias transmissveis.O futurose reuniaao passado,a espera expe-rincia, em uma continuidade; segundo - o tempocristo:o futuroser interrupo do passado - h umaacelerao do tempo do mun-do em direo ao seu fim - passado e futuro se separam. O passadoser a experinciado tempo; o futuro a esperada eternidade; tercei-ro - o tempomoderno, entre 1500 e 1800: a diferena entre "campo daexperincia" e "horizonte de espera"continua fortementeampliada. Ohorizontede esperapraticamente anulou o espao da experincia. Vive-se sob o signo da "revoluo": uma contrao do tempo,uma acele-rao que quis poro futuro no espaodaexperincia. A histria no portadora dinformaes sobre o futuro, a experincia no ensina.Vive-se em umtempo de plena inovao. O tempose desnaturaliza ese torna liberdade de criao dofuturo. A histria estdisponvel ao,podeser feita emliberdade.Aqui, passado e futuro se distanci-am muito e no se recobrem jamais;quarto - o tempodo Estado abso-lutista: ele temeessa acelerao moderna do tempo,promovida pelasfilosofias da histria, onde percebe o seu fim,e procura ampliar oespao da experincia pelo controle do horizonte de espera atravs doprognstico, do clculo, de umaconcepo naturalista do tempo ("nadade novo podeocorrer"); quinto - o tempo contemporneo,ps-moderno :o tempo histricoainda desnaturalizado, liberdade de criao, masa acelerao relativizada.H uma certa desacelerao por uma certanaturalizao dotempo humano. Se a natureza no impe seus rit-mos, a histria tambm no podeseguir um ritmo de plena liberdade.H umcontrole cientfico e tcnicoda natureza, que permite a aopoltica e social,mas no em total liberdade. O controle tcnico ecientfico obriga a atrasar aes e decises, leva ao planejamento.

    Sntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 23, n. 73, 1996 | 241

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    o que possibilitou a Koselleck pensar estes tempos histricos espe-cficos foi a sua hiptese terica sobre o conceito de "tempo histrico".Cada um desses cinco presentes europeus manteve com seus passados

    e futuros, relaes diferentes. Isto : o tempo histrico tornou-sepensvel por duas categorias principais: "campo da experincia" e"horizonte de espera. So categorias formais que tornam possvel oconhecimento histrico. So conceitos que constituem tanto a histria-vivida como a histria-conhecimento. Sem essas categorias a histriaseria impensvel. A experincia o "passado atualizado"; a espera, o"futuro atualizado". Experincia e espera so conceitos assimtricos: aespera no se deixa deduzir da experincia, passado e futuro no serecobrem. A presena do passado outra que a do futuro. Mas,assimtricos, no so conceitos antnimos. Da sua diferena e tensoaparece a "temporalizao". Um no se deixa transpor no outro sem quehaja ruptura. Sua diferena revela uma caracterstica estrutural dahistria: o futuro no o resultado simples do passado, embora este

    traga conselhos, experincia e esperas retroativas. a tenso entreexperincia e espera, portanto, que suscita diferentes solues eengendra o tempo histrico. Uma relao esttica entre eles inconcebvel.Em Ricoeur, ressalvas j consideradas, o calendrio era a base da su-cesso de geraes e do vestgio: uma gerao e um vestgio so, pri-meiro, "datas". H um predomnio do tempo cosmolgico sobre o tempoda conscincia. Ao lanar pontes, o tempo histrico d mais peso aosmovimentos naturais em relao s mudanas internas das sociedades.Em Koselleck, o calendrio mantm o seu valor, mas o peso maior serdado s geraes e sua comunicao por vestgios. Koselleckdar maisnfase mudana no numervel, mas apreensvel por conceitos, pela

    anlise, pela interpretao. O tempo histrico perde a sucessividadecontnua, uniforme e regular conferida pelo calendrio. Ele se torna umaexperincia particular de uma sociedade presente que se relaciona com oseu passado e futuro.Estamos, portanto, em pleno tempo humano, interno, de lembrana eespera, esquecimento e frustrao, finito, irreversvel, devir e desejo deser, de permanncia e eternidade. H tempos plurais, como so pluraisas sociedades; so tempos heterogneos e no lineares, pois asrelaes de uma sociedade com o seu passado e futuro variam. Apreciso do conceito inclui a preciso do nmero, mas no se submete aeste. O conhecimento histrico produzido a partir deste conceito detempo ser uma interpretao qualitativa, compreensiva, de um tempo

    humano tenso, inquieto entre o passado e o futuro. O conhecimentohistrico se desnaturaliza: perde o rigor do nmero e torna-se in-terpretao. Ao assumir as qualidades do tempo da conscincia, oconhecimento perde em rigor e exatido, imprecisa-se, torna-se um"conflito de interpretaes" (para usar uma expresso de Ricoeur).242 | Sntese Nova Fase, Belo Horizonte, v.23, n. 73, 1996

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    o historiador, aquele que est postado na articulao dos tempos, o daclepsidra de ponta-cabea, ter o seu papel de mediador intensificado -ser um mediador mais sensvel a um mundo histrico mais refinado,mais nuanado, menos estvel e coagulado. Datada a sociedade, eleentra em um mundo qualitativo, que se desloca do passado ao futuro e seretm, que se inquieta, sofre e espera, em suas relaes humanasintrincadas, em que nada est antecipadamente garantido ou dado. Comoum "faxineira", se esta metfora possvel, o historiador entra naintimidade da casa do "outro", que saiu, para coloc-Ia em ordem: nasala, na cozinha, nos quartos, nos banheiros, no escritrio, na capela,stos, pores, cmodos escondidos, armrios falsos, cofres, etc. eleencontra a moblia, a decorao, os papis, os livros, as contas, asimagens, as msicas, os cheiros e perfumes, o vesturio, hbitos dehigiene, a vida sexual, a dieta, a disposio das coisas... Tudo isso emdesordem e em restos: utenslios sujos, papis rasgados, banheiros mal

    cheirosos, roupas sujas, leituras pela metade, restos estranhos, enig-mticos, segredos ... O passado pode ser repugnante a um no-histori-adoro Como afirmar que a sala ou a cozinha ou o quarto determinam "emltima instncia" o mundo humano? Uma casa no tem centro: cadacmodo um centro. Em cada cmodo um homem diferente, ao mesmotempo em relao e estranho ao do cmodo ao lado.Enfim, ntimo, interior, revolvendo e organizando a vida do outro, emsua casa e na sua ausncia, o historiador ser mais que um mediador- ser um debatedor. Ele aprender com estes outros homens, tersua prpria vida transformada pela experincia indireta destas outrasvidas. Sua vida individual e a vida da sua sociedade, informada porele, se enchero de outras possibilidades e a vida presente perder adureza conferida pela iluso de ser a nica vida possvel, para sehistoricizar, se relativizar e se tornar somente uma vida possvel entreoutras, a vida deste tempo presente. Ele e sua sociedade,impregnados por este interesse pelo "outro", sero mais tolerantes,mais abertos e flexveis, mais disponveis diferena, alteridade.O tempo histrico pode ser encarado aqui como um terceiro tempo?Deixemos esta questo para o momento final em que se tentar con-cluir com uma "articulao possvel".2.3 - A perspectiva dos Annales: o "tempo histrico estrutural".

    Segunda perspectiva do tempo histrico como terceiro tempo.A histria que os Annales faro estar sob a influncia das cinciassociais, que apareceram nos sculos XIX/XX6.As cincias sociais ofe-recero uma nova abordagem do social que competir com a aborda-gem histrica. Haver uma tenso entre a milenar histria e as novas

    Sntese Nova Fase, Belo Horizonte, V. 23, n. 73, 1996 I243

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    cincias sociais". Nossa hiptese a de que o epicentro desseestremecimento est no conceito de "tempo humano". As cinciassociais no valorizam a abordagem sucessiva, gentica, da histria;

    elas no tm em grande conta o tempo calendrio. Sua crtica aotempo histrico tradicional comea pela reviso do seu conceito decalendrio. Para as cincias sociais, os historiadores, quanto aocalendrio, partiam de um pressuposto discutvel: a da suaincontestvel objetividade. Merton e Sorokin afirmam que o calendriono exterior, natural, mas uma construo cultural". Ele no umexterior que se imponha conscincia - o tempo csmico no oorganizado r da vida humana. O calendrio uma criao daconscincia, para se dar regularidade, homogeneidade, uniformidade,para melhor coordenar as suas atividades.O tempo calendrio ao mesmo tempo uma imposio astronmica euma criao subjetiva. Mas, ele sobretudo uma criao subjetiva,

    isto , tem uma objetividade social, humana. uma criao e no umdado. Uma vez criado, objetiva-se, torna-se um dado. Estaobjetivao de uma criao necessria para torn-Ia indiscutvel eeficaz. Imposio astronmica, ele sobretudo um coordenador dasatividades humanas e, portanto, uma construo cultural. Enquantoconstruo cultural, o tempo calendrio uma imposio do tempo daconscincia sobre o tempo csmico. Ele uma ponte frgil, que maisrevela o abismo que queria suprimir do que o supera. Os movimentosdos astros s tm um significado quando utilizados pelos grupossociais. E esses grupos no usam somente o calendrio comoreferncia, mas coordenam entre si os eventos sociais. Cria-se um"relgio social" - depois da primeira Guerra Mundial, por um semestreletivo, por um dia de trabalho, enquanto se come um quilo se sal,

    enquanto se cozinha o arroz . So intervalos sociais independentesdo calendrio. Os nomes dos dias, semanas, meses, estaes sofixados pelo ritmo da vida coletiva. O tempo social no astronmico,portanto, mesmo se se refere aos movimentos dos astros, mas umaconstruo cultural. A durao social sobretudo simblica: mltipla,descontnua, heterognea, no linear.Com sua crtica ao principal instrumento de organizao da vida humanapelos historiadores, as novas cincias sociais puseram em xeque aprpria relevncia do conhecimento produzido por eles". Sem aobjetividade natural do calendrio, a conscincia se perde em seus ritmosdesordenados, passado e presente se misturam, sonho e realidade seconfundem. Ela perde o seu principal instrumento de auto-organizao,

    de auto-coordenao. Entretanto, as cincias sociais oferecero umaoutra concepo do tempo social, que acreditam ser mais eficaz nacompreenso da sociedade e sem se referir ao calendrio. Elas criaro oconceito de "estrutura social", conceito que ameaa mais do que favoreceo tempo histrico dos historiadores tradicionais". Por244 I Sntese Nova Fase, Belo Horizonte, v.23, n. 73, 1996

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    este conceito,o tempo da fsica e da matemticaso aplicados soci-edade. O "tempo social" dascincias sociais imanente, circular euniforme, intrnsecoaos eventosou ao modelo criado para abord-los,No umtempo que se refira sucesso dos eventos, passagem dopassadoao futuro. Este "tempo social" tende simultaneidade, o queera impensvelatento para o mundo humano. Ele se desfaz dasucesso dos eventos, enfatiza menosas mudanas qualitativas e va-loriza as transformaes estruturais, quesocomo "movimentos na-turais" na sociedade. Busca-sena sociedade o quea fsica encontra nanatureza: uniformidade, reversiblidade, homogeneidade, quantidade,permanncia. O tempo social, portanto, anti-sucesso - ele daordem dasimultaneidade, da reversibilidade e interdependncia doseventoshumanos.As ordens sucessivas do calendrioe das filosofiasda histria, que antes organizavam a vida humana,perderam sentido.As cincias sociais tm uma orientao conservadora em qualquer dassuas tendncias", Seu objetivo o de dominar o evento, a instabilida-de do tempo da conscincia. Elassurgiram contra a acelerao dotempo produzida pelamodernidade revolucionria, contra a mudan-a brusca,febril, barulhenta e vm propor a desacelerao do tempodas sociedades,isto, querem tornar mais lenta ouat apagar a su-cesso e, para isso, tendem "simultaneidade atrasada" dos eventos:querem tornar o presente mais contemporneo/solidrio do passadodo quedo futuro. Seu objetivo o de controlar a mudana social,tornando-a segura e previsvel, gradual e harmoniosa, e evitar as ace-leraes revolucionrias quequebram as estruturas sociais e nadaoferecem. O conceito de "estruturasocial" desvitaliza o evento, desfaza mudana substancial. Os mais radicais estruturalistas at eliminamo tempo histrico, que a consideraodamudana, daassimetriapassado/futuro. Ele substitudo por um tempo lgico, formal, ma-temtico. A anlise estrutural da sociedade recupera a inspiraomitolgica - a do tempo abolidoem um eternopresente", Os even-tos-choque so amortecidosquando integradosna estrutura social comoelementos,que a transformam, mas no mudam.O presente se liga aopassadoe o passado ao presente de tal forma queo passado se tornapresentee o presente se imuniza de sua sorteque tornar-se passado.Presente e passado ligados,abole-sea suadiferena e o que esta repre-senta- a temporalidade. A perspectiva estrutural anti-histrica:recusa a sucesso,o vivido, o evento, o singular, enfim, a "mudana"e prope o sistema,a simultaneidade, o modelo,a quantidade, o for-mal, a abstrao".Os Annales, das trs geraes, se mostraro sensveis a esta argumen-tao das cincias sociais sobre o tempo histrico e empreendero areconstruo desse conceito. Sob a influncia das cincias sociais, ahistria, antes estudo exclusivo da sucesso dos eventos, da mudana,da passagem do passado ao futuro, da diferena temporal sucessiva,

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    a histria que sempre privilegiou o evento e sempre quis ser uma"descrio da mudana", ser obrigada a incluir em seu conceito detempo a permanncia, a simultaneidade", Os Annales, e Braudel em

    particular, construiro o conceito de "longa durao", que ao mesmotempo incorpora e se diferencia do conceito de "estrutura social" dascincias sociais. A "longa durao" a traduo para a linguagemtemporal dos historiadores da "estrutura" atemporal dos socilogos,antroplogos e lingistas". Ao passarem considerao da dialticade mudana e permanncia, de longa durao e evento, os Annalesproduziram uma mudana substancial no conceito de tempo histri-co. Eles teriam criado uma segunda perspectiva sobre o tempohistricocomo terceiro tempo. Na primeira perspectiva, a vida humanasucessiva e dispersiva, assimetria entre passado e futuro, continuavasucessiva e artificialmente contnua, linear e regular, quando enquadradapelo calendrio. Nessa segunda perspectiva, os eventos humanos soinseridos em uma ordem no sucessiva, mas simultnea. A relaodiferencial entre passado / presente / futuro se enfraquece, isto , apercepo sucessiva do tempo histrico enquadrada por umapercepo simultnea. A referncia ao calendrio, sucesso degeraes torna-se secundria. As "mudanas humanas"se naturalizam:endurecem-se, desaceleram-se. Tornam-se semelhantes aosmovimentos naturais e incorporam as qualidades desses:homogeneidade, reversibilidade, regularidade, medida.

    O historiador abraado cintura da clepsidra transforma o tempohumano em "placas vivas", "lminas temporais", "bandejas de vida","quadros vivos" ... Os homens no tendem mudana, eles nem mesmoapreciam mudar". O que eles apreciam continuar, permanecer -- elesquerem levar o passado ao futuro, apagar a sua diferena e assimetria,para evitarem o atrito, o barulho, a tenso, o desconforto da mudana.Os homens preferem viver em um mundo reconhecvel, sem planos ereflexes, inovaes, fraturas. Eles preferem morar, demorar em suavida rotineira, pacfica, eterna. A prpria noo de "sociedade", de"tempo coletivo", j revela o esforo dos indivduos em criarem aestabilidade, em vencerem a sua condio efmera. "Social","econmico", "mental", o mundo humano slido, permanente,estruturado: coeso, regrado, compartilhado, involuntrio, inconsciente,repetio dos mesmos gestos, palavras, atitudes. H uma resistncia aofuturo: passado e presente se unem, endurecem-se, resistem ao futuro.

    A vida ganha datas amplas, ela oscila e se agita no interior de limites,

    beiradas, bordas, molduras largas ...Os Annales abordam o mundo humano com esta concepo do tempohistrico. Constatam, ento, que agir ("faire l'histoire") e conhecer ("fairede l'histoire") so atividades distintas, que no se recobrem". Oconhecimento no "narra" o vivido tal com ele se passou, no a246 | Sntese Nova Fase, Belo Horizonte, v.23, n. 73, 1996

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    sua conscincia, mas diferenciado dele. A realidade histrica no transparente. Ela resiste ao conhecimento e ao. Nem a sua anlisee nem a interveno

    podem se realizar de forma especulativa. Antes

    de se pretender agirsobre a realidade, alterando-a, provocando mu-danas, forando-a a passar ao futuro, preciso conhecer as suas re-sistncias, perceb-Ia como um"n grdio" de passado e presente.Desat-lo com a espada,porque "de acordo com a Razo", porqueseconhece o seu sentido, produzir o drama, a tragdia. Como um "n-passado/presente", a sociedadeser considerada como coisa,perma-nncia, continuidade inerte, repetio constante do mesmo, tendncia rotinae ao repouso do cotidiano. E este"n" dever ser desatado como sedesmonta umabomba, isto , de forma lenta, gradual,tcnica, infor-mada, serena e prudente. Seno o drama, o barulho e o furor doevento.Os Annales perceberam, que o sentido da histria, das suas mudan-as, no se da um conhecimento especulativo, mas pela pesquisacientfica, que implica em coleta de dados e teorizao particularizada.No se podepropor o futuro j, pois este desconhecido einantecipvel. Pretender implantar este desconhecido no presente sacrificar o presente e o passado; implantar a tragdia, o horror dainiciativa sem peso, sem gravidade. Entretanto, no tempo histricodos Annales,a mudana preservada, contra a atemporalidade daestruturadas cincias sociais. Mas, uma mudanalimitada, que ten-de ao retornoao cho do mundo conhecido -jamais a ruptura des-controlada. O evento pode at ter repercusses substanciais, podeatser como uma nave espacial que desafia a lei da gravidade,mas res-peitandoa estruturaque o sustenta e o torna possvel. Para os Annales,o homem

    no s sujeito, consciente, livre, potente

    criador

    da hist-

    ria; ele tambm e, emmaior medida, resultado, objeto,feito pelahistria. O tempo histrico dos Annales uma desacelerao cautelo-sa, uma reao acelerao revolucionria baseada em um conheci-mento especulativo do sentido da histria.Ao incorporar a considerao da simultaneidade, que a do(i)minaoda assimetriaentre passado e futuro, a histria tornou-se outra que atradicional: mudou seus objetos, mudou os seus historiadores, mudou osseus objetivos, mudaram-se os seus problemas disciplinares. Apareceu oque antes parecia no existir, quando a histria era dominadapela considerao exclusiva da sucesso: um mundo histrico maisdurvel, mais estruturado, mais resistentes mudanas - as estrutu-ras econmicas,sociais e mentais". Neste mundo as aes humanasso coletivas, inconscientes, annimas, repetitivas; a documentao involuntria, massiva, menos poltica e biogrfica; o conhecimentohistrico pode incluir a quantidade, o conceito, a anlise, aproblematizao, pois no um mundo que se esvai,voltil, masdurvel.

    Sntese Nova Fase, Belo Horizonte, v.23, n. 73, 1996 I247

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    I

    No tempo histrico dos Annales h uma conscincia opaca, inconsci-ente, que possui algumas das caractersticas do tempo natural: cons-tncia, regularidade, repetio, ciclos, homogeneidade, quantidade. Otempo histrico incorpora as qualidades da considerao da simulta-

    neidade. Entretanto, repetimos, os Annales no abrem mo da quali-dade, da sucesso, no deixam de considerar a mudana qualitativa,o evento. E por isso mantm a identidade de historiadores. A longadurao inclui e explica o evento; ela no o abole". Ela o superadialeticamente. No final, nesta dialtica da durao, que o tempohistrico dos Annales, percebe-se confessada ou no, consciente ouinconscientemente, a recusa da idia de "revoluo" e tudo o que elaimplica: acelerao do tempo dos eventos, isto , nfase na mudanaacelerada, na assimetria intensificada entre passado e futuro econhecimento especulativo do sentido da histria. A histria estruturalenfatiza os movimentos lentos e representa uma desacelerao dasmudanas, um quase apagamento da assimetria/ diferena temporal

    entre passado e futuro, que a considerao da simultaneidade nasociedade".Conc lu so: uma art ic u lao possvel

    Para se afirmar a existncia de um terceiro tempo preciso repor ascaractersticas do primeiro e do segundo. O tempo natural "nmerodo movimento": reversvel, no direcionado, contnuo, uniforme,irreflexivo, repetitivo, circular. No h assimetria entre passado efuturo, nada de novo h na natureza, que uma constncia, um serque permanece no ser. Quanto ao tempo da conscincia, ele o das"mudanas humanas": irreversvel, direcionado, heterogneo,

    descontnuo, mltiplo e reflexivo; evento, inovao,liberdade. umtempo "vivido" - sofrimento do devir e esperana na alegria daeternidade, "a delcia do que vem e no passa"". Aqui, h assimetriaentre passado e futuro, sempre h novidade, pois o mundo humano o da diferena constante, da alteridade. Aqui, deixa-se sempre deser, h um ser que se separa constantemente de si pela mudana oupela morte. Um terceiro tempo que fizesse a mediao entre oprimeiro e o segundo e o segundo e o primeiro deveria ser um tempooriginal, diferenciado do primeiro e do segundo, mas reunindo-os.Entretanto, reunir os dois primeiros parece impossvel. Seria reunircaractersticas temporais que revelam antes uma ruptura, umaanttese: natureza e conscincia, movimento e mudana, repetio e

    evento, continuidade e descontinuidade, reversibilidade e irrever-sibilidade, ordem e disperso, simultaneidade e sucesso.Se to difcil essa mediao, porque no ficaramos na diferena?Para que procurar um terceiro tempo mediador? Resposta possvel:248 I Sntese Nova Fase, Belo Horizonte, v.23, n. 73, 1996

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    porque o tempo da conscincia, que mudana permanente, no teriacondies de se auto-coordenar e se conhecer sem uma certa relao com otempo natural, que s permanncia. O mundo humano fugidio, fluido, voltil,que tende ao no ser, precisar, para permanecer, pelo menos enquanto

    conhecimento, de apoios/ganchos exteriores que possibilitem a suamanuteno no ser. O tempo histrico precisa ser uma intermediao entreconscincia e natureza, pois o historiador quer conhecer as "mudanashumanas", o incognoscvel, pois no se pode conhecer o que deixa de ser equase nunca . O historiador no poderia realizar o seu objetivo semendurecer, de alguma forma, sem congelar esse fluxo incessante e semretorno.A partir das anlises anteriores, a questo que se pe: o tempo histrico,nas trs perspectivas consideradas, realizaria uma tal intermediao?Uma intermediao perfeita seria a garantia de um conhecimento histricoperfeito. Como esse no perfeito, mas existe assim mesmo e eficaz, decerta forma, existe a intermediao. Mas, ela imperfeita. Tentemos aarticulao possvel:1 - O tempo calendrio uma primeira perspectiva do tempo histrico comoterceiro tempo. Ele realiza essa intermediao apenas parcialmente. Namedida em que ele correlaciona a sucesso histrica sucesso natural, elerene o tempo natural e o humano. Ele atribui nmero mudana,enquadrando-a e tornando-a abordvel. A datao do descontnuo e mortaloferece a esse continuidade e imortalidade: ele existiu em certa data e local.Os indivduos concretos, com seus nomes e aes, as geraes e seusvestgios so fixados no movimento repetitivo dos astros. Ganharam umasucessividade mais ou menos rigorosa. Entretanto, o calendrio s realizauma intermediao imperfeita, pois ele no incorpora a simultaneidade danatureza, mas s a numerao dos seus processos repetitivos. Ele uma

    organizao sucessiva da natureza. Submetidas a ele, as mudanas humanasque so essencialmente sucessivas continuam sendo sucessivas, inscritasem ordens astronmicas. A histria no encontra a simultaneidade, mas asucesso numerada. O mundo humano no ganha densidade, ser: continuasendo devir, s que numerado. Se j era sucesso, a histria continuasucesso. Isto : se j era incognoscvel, por ser mudana sucessiva, ahistria, ao ganhar datas, pe nmero na sua sucesso, mas continuaimperfeitamente cognoscvel.2 - Koselleck dar importncia ao calendrio, mas como uma refernciasecundria, operatria apenas. Em sua concepo do tempo histrico,estamos em pleno tempo humano, em um tempo que possui sobretudo ascaractersticas da conscincia. Ele no produz um terceiro tempo, mas

    introduz o que nos parece essencial para a constituio de um terceiro tempo:a perspectiva da simultaneidade. No ainda a perspectiva estrutural, masmais historicista: a capacidade da cons-

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    cincia de se reter e de se relacionar consigo mesma e de permanecerno ser sem precisar se naturalizar. A conscincia permanece sem seendurecer. Pelo contrrio, ela sempre transio do passado ao futu-ro, sempre sucesso, diferena temporal. Mas, ela tambm articu-lao de passado/presente/futuro. Em Koselleck, o tempo histrico percebido como diferena temporal (sucesso) e como articulaotemporal (simultaneidade). O presente inclui em sua identidade as di-menses do passado e do futuro: ele inclui o espao da experincia eo horizonte de espera. Enquanto articulao de passado e futuro emum presente, a idia de simultaneidade formulvel no prpriomundo humano.Naqueles exemplos de Koselleck, o que se tem so presentes longos,seculares, em que se mantm uma mesma relao entre experincia eespera. Mas, no uma simultaneidade do tipo natural: regular, re-versvel, repetitiva. Cada presente articula-se com o passado e o futu-ro em ritmos diferenciados. A simultaneidade pode ser avanada - opresente solidrio do futuro, contra o passado; ou atrasada - o pre-sente solidrio do passado, contra o futuro. Aqui se tem um terceirotempo? Por um lado, o calendrio preservado; por outro, a noode simultaneidade, por estar mais do lado da conscincia, nopermite a medida, a reversibilidade, a comparatividade etc., massomente interpretaes e avaliaes qualitativas. No seria esse otempo histrico mais fecundo, mais adequado produo de umconhecimento histrico que respeite a especificidade do mundohumano? Se se aceita a sua impreciso ...3 - Entretanto, a noo de um terceiro tempo parece ganhar maisconsistncia com o conceito de "longa durao", de "histria estrutu-

    ral". Os eventos humanos, sem deixarem de ser sucessivos, so inse-ridos em uma ordem no sucessiva, simultnea. A referncia aocalendrio continua essencial, mas apenas operatria tambm. Tem-se uma noo mais crtica do conceito de calendrio o que aumenta asua eficcia. A nfase temporal a da coordenao dos eventosentre si. Um tempo matemtico se impe sociedade e encontra nelaas caractersticas naturais. O que tendia a no ser, a passar,permanece, continua, muda menos. Descobre-se o mundo humanocomo reversibilidade, uniformidade, quantidade, previsibilidade,simultaneidade. Sem nenhuma referncia exterior, natural. Asociedade no se diferencia mais da natureza, parece no haver maisum abismo entre elas. Um tempo matemtico abole a sua diferena,pois vazio de realidade. A sucesso articulada permanncia.O tempo histrico dos Annales articula mudana e estrutura, sucesso esimultaneidade. O mundo humano invertebrado ganha uma colunadorsal, vrtebras, ossos, estrutura-se. O risco que o historiador corre aousar esse tempo estrutural o da abolio da historicidade, minimizandoa assimetria passado/futuro, mundo do souci,da sua250 | Sntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 23, n. 73, 1996

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    caa, a carne humana. Seria perder, ento, a sua capacidade mediadorae no conhecer mais a histria. A "longa durao" um conceitorico se mantm a sucesso, a mudana, se no se atemporaliza emurna "estrutura".A longa durao "materializa o humano", naturali-za-o, para torn-lo abordvel e conhecvelnumericamente. Mas seapaga a sucesso, ameaa a especificidade do tempo humano, perdea sua caa, fracassa no conhecimento do que e deixa de ser. E ahistria permanecer incognoscvel, mesmo que o historiador se armecom os cuidados metodolgicos mais sofisticados e as tcnicas maisfinas e originais.G. G. Granger otimista: ele considera que nesta dialtica de estruturae evento que estaria a possibilidade de um conhecimento histricoseguro". Mas, atento ameaa do conceito de estrutura historicidade,considera, agora mais prudente,que o problema essencial das cinciashumanase da histria em particular o da conceptualizao do seutempo. E com esse mesmo esprito entreotimista e prudente, sempredisposto considerao e reconsiderao, que encerro estas refle-xes e notas sobre o tempo histrico.

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    18. Cf. Merton e Sorokin (1937).19. Cf. Lvi-Strauss (1983).20. Cf. Piaget (1970), Boudon (1968)e Lvi-Strauss(1983).21 Cf. Nisbet (1972) e Reis (1994b),p. 93 ss.22. Cf. Lvi-Strauss (1971), p. 533 ss.23. Cf. Reis (1994a).24. Idem.25. Cf. Vovelle (1982) e Braudel (1969).26. Cf. Pomian (1988): p. 118.27. Cf Pomian (1984), p. 92 ss.28. Cf. Vovelle (1982), p. 208 ss.29. Cf. Braudel (1969).30. Cf. Burguire (1971), p. Iv e VII.31. Cf. Saint Augustin (1982).

    32. Cf. Granger (1957), p. 37 ss.

    Endereo do Autor:Rua Niquelna, 58 / 70230260-100 Belo Horizonte -MG252 | Sntese Nova Fase, Belo Horizonte, v.23, n. 73, 1996