reinhart koselleck - critica e crise

254
neri il lai t Crítica e crise m uer| conTiipeiTO

Upload: ritaelizabethcmouraalves

Post on 25-Sep-2015

145 views

Category:

Documents


6 download

DESCRIPTION

Uma Contribuição a Patogênese Do Mundo Burgues-Ed. Uerj 2009

TRANSCRIPT

  • n e r i il l a i t

    Crtica e crise

    muer|

    conTiipeiTO

  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    r e it o r Antonio Celso Alves Pereirav ic e -r e it o r a Nilca Freire

    EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    CONSELHO EDITORIAL

    Elon Lages LimaGerd BornheimIvo Barbieri (Presidente)Jorge Zahar (in memoriam)Leandro KonderPedro Luiz Pereira de Souza

  • Reinhart Koselleck

    CRTICA E CRISEUma contribuio

    patognese do mundo burgus

    TRADUO DO ORIGINAL ALEMO

    Luciana Villas-Boas Castelo-Branco

    conTRflPomo

  • Til iilo original: Kritik und Krise: Ein Beitrag zur Pathogenese der brgerlichen Welt

    ** Verla Karl Alber Gmbh Freiburg / Mnchen 1959

    Direitos adquiridos para a lingua portuguesa por Contraponto Editora Ltda.

    Vedada, nos termos da lei, a reproduo total ou parcial desto livro sem autorizao das editoras.

    CONTRAPONTO EDITORA LTDA.Caixa Postal 56066 - CEP 22292-970 Rio de Janeiro, RJ Brasil Telefax: (21) 2544-0206 / 2215-6148 Site: www.contrapontoeditora.com.br E-maU: [email protected]

    EDITORA DA UNIVERSIDADE DOESTADO DO RIO DE JANEIRORua So Francisco Xavier, 524CEP 20550-013Rio de Janeiro, RJBrasilTeL/fex (21) 2587-7788 / 2587-7789E-mait [email protected]

    Preparao de originais: Csar Benjamin Reviso tipogrfica: Tereza da Rocha Projeto grfico: Regina Ferraz

    1 edio: setembro de 1999 Tiragem: 2.000 exemplares

    2* reimpresso: julho de 2009 Tiragem: 2.000 exemplares

    catalogaAo na fo n teDO DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO

    K86c Koselleck, Reinhart.Crtica e crise : uma contribuio patognese do

    mundo burgus / Reinhart Koselleck ; traduo do original alemo [de] Luclana Villas-Boas Castelo-Branco. - Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999.

    256p.ISBN 978-85-85910-25-9Indui bibliografia e ndice.

    1. Cincia poltica - Histria. 2. Histria - Filosofia. 3. Iluminismo. 4. Despotismo. I. Ttulo.

    CDD-320-01

  • S U M R I O

    Introduo.................................................................................. 9

    primeiro capitulo A estrutura poltica do Absolutismo como pressuposto do Ilum inismo.......................................... 19

    I. A gnese do Estado absolutista a partir do contexto das guerras (civis) religiosas / O desenvolvimento de um domnio de poder soberano pela reduo da conscincia religiosa a um foro interior apoltico (Barclay, DAubign) / A subordinao da moral poltica e a legitimao temporal do Estado soberano....................................................................... 19

    II. Hobbes: a resposta da razo pluralizao das confisses /O conceito de soberania que decorre dos conflitos religiosos e da razo / A diviso do homem em homem e sdito como herana da guerra civil religiosa e como pressuposto do conceito absolutista de lei e ordem estatal / O foro interior apoltico, dentro do Estado, como o ponto de partida do Iluminismo....................................................................... 26

    III. Vattel: a separao entre a moral, fundada no direito natural, e a poltica como princpio estrutural da ordem dentro do Estado / O fim das guerras dvis e a restrio das guerras a meras guerras entre Estados como condio poltica para o progresso m oral.................................................................... 40

    s e g u n d o c a p I t u l o A compreenso que os iluministastinham de si mesmos e a resposta sua situaao dentro do Estado absolutista................................. .................................... 49

    I. Locke: a jurisdio moral fora do Estado (The Law of Pri- vate Censure), seu significado para a burguesia e sua ao poltica indireta..................................................................... 49

    II. A formao de poderes indiretos: a situao inicial da sociedade civil no Estado absolutista / Suas formas de orga-

  • nizao (Club de 1Entresol e as lojas da franco-maonaria) /A funo protetora do segredo das lojas / O arcanum como linha divisria entre moral e poltica e pressuposto da tomada indireta do poder............................................................. 56

    III. O desenvolvimento de poderes indiretos: a funo integradora do segredo nas lojas / O estabelecimento de hierarquias independentes / A ameaa indireta ao Estado / A jurisdio moral e sua ampliao ao Estado / A separao entre moral e poltica como expresso da tomada indiretado poder................................................................................ 68

    IV. A virada oculta contra o Estado: a funo poltica do segredo nas lojas (Lessing) / O planejamento secreto da tomada do poder e o uso do dualismo da moral e da poltica para encobrir seu significado poltico.......................................... 75

    V. O processo da crtica: a separao entre moral e poltica como pressuposto e via de execuo da crtica burguesa (Schiller) / As etapas da politizao; a crtica da Bblia no Estado (Simn) / A liberdade absoluta da repblica das letras apoltica dentro do Estado, um bellum omnium contra omnes (Bayle) / A extenso, ao Estado, da crtica aparentemente apoltica (Voltaire) / A dialtica da crtica ilumi- nista (Enciclopdie, Diderot) / O ofuscamento da crtica em hipocrisia / A submisso do Estado ao tribunal da razo(Kant).................................................................................... 88

    terceiro capitulo Criseefilosofiadahistria.............. l l i

    I. Filosofia do progresso e prognstico da revoluo na Alemanha pr-revolucionria: a formao de frentes polticas /As ordens secretas e o Estado / A filosofia da histria dos maons (iluminados) e a identificao entre planejamento e histria / A filosofia da histria como poder poltico indireto / O agravamento da crise pela sua dissimulao / A reduo da filosofia do progresso (dos iluminados) a seu ncleo poltico (Gchhausen) / O prognstico da revoluo......... 111

    II. Turgot: o reconhecimento da situao crtica na Frana / Prognsticos revolucionrios / A tentativa de dirigir a crise /

  • O dualismo moral de Turgot / A funo poltica do dualismo moral de Turgot: dissoluo da soberania e ocultamente do processo / O anonimato poltico / dialtica do homem e do prncipe / A totalidade moral como resposta ao Absolutismo poltico / O fracasso de Turgot / A legitimao indireta da guerra civil.......................................................... 121

    III. Crise: a crise como conceito poltico e moral, no como uma expresso da filosofia do progresso / O aparecimento do conceito (Rousseau) / A expanso da repblica das letras ao Estado / Revoluo permanente, Estado total, terror, ideologia e ditadura como resultado involuntrio do Ilumi- nismo e de seu anonimato poltico / A determinao da crise pela conscincia dualista (Diderot) / Prognsticos deterministas de carter dualista / Encobrimento e agravamento da crise / O carter processual da filosofia burguesa da historia / As antteses morais na construo da historia global /A diferena atlntica / A guerra civil como tribunal moral /The Crisis (Thomas Paine) / A historia como processo: unidade da crise e da filosofia da histria.................................. 137

    N otas........................................................................................... 163

    Bibliografia - Fontes prim rias............................................... 241

    Bibliografa - Fontes secundrias............................................ 247

    ndice onom stico..................................................................... 253

  • I N T R O D U O

    No calor de uma revoluo, quando os dios esto ferventes e o soberano dividido, difcil escrever a histria.

    RIVAROL

    De um ponto de vista histrico, a atual crise mundial resulta da histria europia. A histria europia expandiu-se em histria mundial e cumpriu-se nela, ao fazer com que o m undo inteiro ingressasse em um estado de crise permanente. Assim como o globo terrestre foi unificado pela primeira vez pela sociedade burguesa, a crise atual tambm se desenrola no horizonte de um auto-entendimento histrico-filosfico, predominantemente utpico. Este auto-entendimento utpico porque destina o homem moderno a estar em casa em toda parte e em parte alguma. A histria transbordou as margens da tradio e submergiu todas as fronteiras. A tecnologia de comunicao sobre a superfcie ilimitada do globo conduziu onipresena de foras que submetem tudo a cada um e cada um a tudo. Ao mesmo tempo, alm dos espaos e dos tempos histricos, explora-se o espao planetrio, ainda que seja apenas para fazer com que a hum anidade v pelos ares no processo em que ela mesma se empenhou.

    A crise poltica (que, um a vez deflagrada, exige uma deciso) e as respectivas filosofias da histria (em cujo nome tenta-se antecipar esta deciso, influenci-la, orient-la ou, em caso de catstrofe, evit-la) formam um nico fenmeno histrico, cuja raiz deve ser procurada no sculo XVIII.

    A sociedade burguesa que se desenvolveu no sculo XVin en- tendia-se como um m undo novo: reclamava intelectualmente o m undo inteiro e negava o m undo antigo. Cresceu a partir do espao poltico europeu e, na medida em que se desligava dele, desenvolveu um a filosofia do progresso que correspondia a esse

    9

  • 10 R E I N H A R T KOSELLECK

    processo. O sujeito desta filosofia era a humanidade inteira que, unificada e pacificada pelo centro europeu, deveria ser conduzida em direo a um futuro melhor. Hoje, seu campo de ao, o globo terrestre, reivindicado ao mesmo tempo por grandes potncias, em nome de filosofias da histria anlogas. Esta concepo da unidade do m undo, de carter histrico-filosfico, revela-se e nisto aparece seu carter fictcio como uma unidade poltica partida. Cada lado, to comprometido com o progresso quanto o outro, vive do pretenso retrocesso do outro. Cada lado cria obstculos ao caminho do outro; paradoxalmente, nisto reside sua eertza. Distinguem-se um do outro para criar a iluso de uma evidncia que no existe, a no ser pelo medo e o terror. A unidade utpica do m undo reproduz sua prpria dicotomia.

    No sculo XVIII, o planejamento utpico do futuro j tinha um a funo histrica especfica. Em nom e de um a humanidade nica, a burguesia europia abarcava externamente o m undo in teiro e, ao mesmo tem po, em nome deste mesmo argumento, minava internam ente a ordem do sistema absolutista. A filosofia da histria forneceu os conceitos que justificaram a ascenso e p papel da burguesia. O sculo XVIII a antecmara da poca atual, cuja tenso se acentuou progressivamente desde a Revoluo Francesa, que afetou o m undo inteiro, extensivamente, e to dos os homens, intensivam ente. Este trabalho pretende lanar luz sobr essa antecmara e, assim, trazer tona a relao entre a formao da moderna filosofia da histria e o incio da crise que desde 1789 a princpio, na Europa tem determinado os. eventos polticos.

    A pergunta foi delimitada e definida historicamente da seguinte maneira: no interrogamos o contedo e as metas utpicas das filosofias da histria da poca, e tampouco sua estrutura ideolgica, por exemplo, em relao ascenso da burguesia; procuramos entender a conscincia histrico-filosfica dessa poca para elucidar a conexo, que se estabelece em sua origem, com o incio da crise poltica, a partir da situao da burguesia no interior do Estado absolutista. Deixamos as filosofias da histria, enquanto tais, de lado salvo excees exemplares e exami-

  • CR T I CA E CRISE

    namos a funo poltica que o pensamento e as aspiraes da burguesia tiveram no mbito do Estado absolutista. Para elaborar o significado poltico do Iluminismo preciso indagar sobre a estrutura da primeira vtima da Grande Revoluo, o Estado absolutista, cujo desaparecimento possibilitou o desdobramento da modernidade utpica. Para um entendimento prvio do Absolutismo preciso voltar ao sculo XVII, quando o Estado soberano alcanou sua forma plena. Tal retorno no deve construir redes causais cujas sugestes fazem com que se retroceda irremediavelmente pr-histria e problemtica de todas a origens em suma, s questes da filosofa da historia que, para alm da ideo- logia, recorre realidade histrica para estabelecer a cincia histrica e, deste modo, abre um espao que exclui, precisamente, as explicaes ilusorias de um regressus a infinitum. Pois este re- gressus histrico no seria nada alm de um progresso voltado para trs, exatamente o que deve ser posto em dvida.

    As anlises concentram-se no presente que passou, e no em seu passado. O passado anterior s ser considerado se nele residirem elementos significativos para tratar da nossa pergunta sobre o sculo XVIII. Nosso tema a gnese da utopia em um contexto funcional historicamente determinado: o sculo XVIII. Por isto, a historia poltica pregressa s ser tratada na medida em que ela seja necessria para transmitir o valor que a conscincia dos cidados tinha durante a vigncia do sistema absolutista. Isto tambm traz tona o outro lado da nossa pergunta, que diz respeito crise poltica que se anunciava. A conscincia histrica e filosfica dos iluministas queira-se ou no s adquire sentido poltico como uma resposta poltica absolutista. O Estado, tal como era, exigia urna resposta, tal como seria ento encontrada. Portanto, renuncia-se conscientemente a consideraes sobre a historia das idias. O patrimnio de idias herdado, que j se encontrava quase completo, disposio dos iluministas, s foi retomado em uma situao determinada e nisto reside seu aspcto especificamente novo interpretado do ponto de vista da filosofia da histria. Evidentemente, a delimitao desta investigao ! situao histrica no deve apresentar aos homens da poca um acerto

    11

  • 12 R E I N H A R T KOSELLECK

    de contas moral que lhes atribua mais ou menos culpa. Isto, por princpio, est fora de cogitao, pois, na condio de ser histrico, o homem sempre responsvel pelo que quis e pelo que no quis. Mais ffeqentemente, talvez, pelo que no quis.

    O m todo deste trabalho combina anlises em histria das idias e anlises sociolgicas das condies. Estudam-se os movimentos das idias, mas somente na medida em que eles permitam explicitar seu acento poltico; examinam-se as situaes em que as idias foram concebidas e sobre as quais repercutiram em seguida, mas somente na medida em que elas permitam destacar o sentido de que as idias se investiram. No se trata, portanto, de descrever o desenrolar poltico, de um lado, e as transformaes das idias, enquanto meras idias, do outro. As condies gerais que originaram o Iluminismo e s quais ele reagiu no mudaram no decorrer do sculo XVIII. M udaram as circunstncias de uma maneira, claro, que acentuou ainda mais as dificuldades bsicas do sistema absolutista. Sobretudo o Estado francs perdeu poder e prestgio; com a prosperidade crescente da burguesia, endividava-se cada vez mais; no alcanava mais vitrias claras; perdia guerras e colnias; e, por ltimo, os prprios representantes do Estado foram arrebatados pelo Iluminis- mo. O Iluminismo tornou-se um aliado. Mas, no que diz respeito s condies polticas enquanto tais, no resta dvida de que a estrutura do prprio Estado no foi alterada. O monarca preservou seu poder soberano: decidia sobre a guerra e a paz, cassava a bei prazer o Parlamento e, a despeito de estar endividado, mantinha sua Corte. Quanto mais Lus XVI insistia em sua soberania, menos era capaz de impor com eficcia suas decises. O Estado mudou; permaneceu absolutista, mas tornou-se corrupto. O sistema absolutista, situao inicial do Iluminismo burgus, se manteve at a Revoluo. Constitui uma constante em nossa investigao. O desenvolvimento poltico do Ilminismo ser avaliado sucessivamente com base nesta constante e em diversos exemplos. O Iluminismo desenvolveu uma vertente prpria que, finalmente, passou a integrar suas condies polticas. O Absolutismo condiciona a gnese do Iluminismo, e o Iluminis-

  • CR I T I C A E CRI SE

    mo condiciona a gnese da Revoluo Francesa. Entre estas duas fases, movimenta-se, grosso modo, o presente trabalho.

    S recorremos a fontes do perodo anterior a 1789. No utilizamos nenhum testemunho para fazer declaraes sobre a pessoa de cada autor. Embora sempre faamos referncia a acontecimentos singulares e obras especficas, no se trata nunca deles prprios. Nosso tema a unidade dos eventos do Ilumi- nismo no Estado absolutista. Cada ato de pensamento e cada ao devero nos remeter a esse acontecimento. Do ponto de vista desta investigao, todos os autores so representativos. Poderamos facilmente substituir as citaes, ou casos tratados, por outros, sem afetar o rumo da investigao. As notas contm freqentemente passagens paralelas, embora a tese mesma no se corrobore pelo acmulo de documentos. Daremos a palavra, indistintamente, a grandes pensadores e a panfletos annimos, pois, na unidade dos eventos do Iluminismo, anonimato e importncia poltica geralmente coincidem. So raros os documentos que, por conterem de tal modo a marca da pessoa como, por exemplo, no caso de Hobbes e Diderot , permaneceram nicos em face do movimento como um todo. Mas seu carter nico, por assim dizer, ressalta o que tpico no centro dos acontecimentos.

    A abordagem heurstica, que visa a elucidar a ligao entre a utpica filosofia da histria e a Revoluo desencadeada a partir de 1789, reside na conexo pressuposta entre crtica e crise. O fato de que a conexo entre a crtica praticada e a crise emergente tenha escapado ao sculo XVIII no se encontrou nenhum a prova literal de uma conscincia desta conexo conduziu presente tese: o processo crtico do ilum inismo conjurou a crise na medida em que o sentido poltico dessa crise permaneceu encoberto. A crise se agravava na mesma medida em que a filosofia da histria a obscurecia. A crise no era concebida politicamente, mas, ao contrrio, permanecia oculta pelas imagens histrico-filosficas do futuro, diante das quais os eventos cotidianos esmoreciam. Assim, a crise encaminhou-se, ainda mais desimpedidamente, em direo a um a deciso inesperada. Esta

    1 3

  • 4 R E I N H A R T KOSELLECK

    dialtica funda-se no m odo especfico da crtica que se exercia no sculo XVIII e que lhe concedeu o seu nome. A crtica praticada pela inteligncia burguesa determinou o papel da burguesia ascendente e englobou o novo mundo.

    O perodo que estudamos oferece o quadro de um processo nico e poderoso. No sculo XVIII, a intelectualidade burguesa transform ou a histria em processo, sem tornar-se consciente desta transformao. Este acontecimento, que inaugura os tem pos modernos, idntico gnese da filosofia da histria. Na crtica, a histria transforma-se por si mesma em filosofia da histria, diz Ferdinand Christian Baur. O alto tribunal da razo, entre cujos membros naturais a elite ascendente se inseria, envolveu em seu processo, em diferentes etapas, todas as esferas da vida. Mais cedo ou mais tarde, a teologia, a arte, a histria, o direito, o Estado, a poltica e, finalmente, a prpria razo so citados e chamados a prestar contas. Neste comrcio jurdico, o esprito burgus desempenhava a funo de acusador, de instncia judicativa suprema e o que teria um a importncia decisiva para a filosofia da histria de partido. Os juzes burgueses estavam sempre do lado do progresso. Ningum e nada podia escapar nova jurisdio. O que no resistisse ao juzo dos crticos burgueses era entregue censura moral, que se encarregava de discriminar o condenado e executar a sentena: Quem no puder reconhec-lo / seja visto com desprezo.

    No rigoroso processo da crtica que era, ao mesmo tempo, um processo de efervescncia social formou-se a filosofia da histria: todos os domnios tratados pela crtica contriburam para promover o advento da filosofia burguesa da histria. A crtica da arte e a crtica da literatura foram as primeiras a articular, na repblica das letras, a oposio entre antigos e modernos e a elaborar uma concepo de tempo que separava futuro e passado. Um dos principais alvos da crtica, a religio crist, trouxe em suas mltiplas divises a herana de um a histria sagrada que foi retomada, das mais diversas formas, por um a viso de m undo voltada para o futuro. conhecido o processo de secularizao, no qual a escatologia foi transposta para uma histria progressis-

  • CR I T I C A E CRI SE 15

    ta. Nossa investigao, porm, mostrar que os elementos do juzo divino e do juzo final tam bm passam a ser aplicados, consciente e deliberadamente, prpria histria, sobretudo no m omento em que a crise se agrava. Desta forma, o fermento da crtica m uda o curso dos eventos polticos. A justia subjetiva, voltada rigorosamente para si mesma, no conta mais com grandezas dadas, mas transforma tudo que est dado historicamente (e a prpria histria) em um processo, cujo desenlace, claro, permanece em aberto, uma vez que as categorias do juzo privado no podem alcanar os acontecimentos que ajudaram a provocar. Finalmente, para ainda assim alcan-los, transforma-se o prprio plano divino de salvao, at ento insondvel: d e tam bm esclarecido, torna-se o planejamento do futuro, fd to por uma nova elite moralmente justa e conforme razo. Como peculiar crtica racional no reconhecer a autonom ia dos domnios que critica, seja a religio ou a poltica, ela precisou procurar um apoio que a remeteu para o amanh, em cujo nom e pde negligenciar o hoje com a consdncia tranquila. Para fazer valer seus direitos, a crtica do sculo XVIII teve que se tornar utpica. Finalmente, o ltimo objeto da crtica, o Estado absolutista, contribui, sua maneira, para estabelecer a viso utpica que a burguesia tinha da histria.

    Esta investigao concentra-se no lado poltico do processo. Para mostrar sua conexo com a crise que se insinuava lentamente, isto , para dar conta da unidade da formulao dupla da nossa questo, sero indicados os pontos de partida histricos que permitam comprovar o sentido poltico da filosofia burguesa da histria e detectar a crise latente em que incorreu e qual sucumbiu, em primeiro lugar, o Estado absolutista.

    A ordem poltica que o Estado produziu ao pacificar o espao devastado pelas guerras civis religiosas criou a condio necessria ao desenvolvimento do m undo moral. Contudo, na medida em que os indivduos sem poder poltico se desvencilham do vnculo com a religio, eles entram em contradio com o Estado, que os emancipa moralmente mas tambm Os priva da responsabilidade, ao reduzi-los a um espao privado. Os cidados entram

  • 16 R E I N H A R T KOSELLECK

    necessariamente em conflito com um Estado que, pela subordinao da moral poltica, entende a esfera poltica de maneira formal e age sem considerar a vertente prpria da emancipao. O objetivo dos cidados ser aperfeioar-se m oralmente at o ponto de saber efetivamente, e cada um por si, o que bom e o que mau. Assim, cada um torna-se um juiz que, em virtude do esclarecimento alcanado, considera-se autorizado a processar todas as determinaes heternomas que contradizem sua autonomia moral. Assim, a separao, realizada pelo Estado, entre poltica e moral volta-se contra o prprio Estado, que obrigado a aceitar um processo moral.

    No curso do desdobramento do cogito ergo sum cartesiano a autogarantia dada ao homem que se desliga da religio , a escatologia transforma-se em utopia. Planejar a histria torna-se to importante quanto dominar a natureza. O mal-entendido de que a histria seja planificvel favorecido por um Estado tec- nicista, incapaz de fazer-se compreender por seus sditos como uma construo poltica. O cidado, desprovido de poder poltico, sdito do senhor soberano, entendia-se de um ponto de vista moral e, na medida em que sentia que a autoridade estabelecida abusava do poder, condenava-a como imoral. Pela separao entre moral e poltica, a moral forosamente se aliena da realidade poltica. Isto se expressa no fato de a moral deixar de lado a aporia da poltica. A moral, que no pode integrar a poltica, precisa fazer da necessidade uma virtude, pois encontra-se no vazio. Alheia realidade, vislumbra no domnio da poltica uma determinao heternoma, nada alm de um estorvo sua autonomia. Por conseguinte, esta moral acha que, atingindo as alturas de sua prpria determinao, poderia varrer do mundo a aporia poltica. Que a poltica seja o destino, no exatamente no sentido de uma fatalidade cega, no compreendido pelos iluministas. Sua tentativa de negar, pela filosofia da histria, a facticidade histrica, de recalcar o poltico, tem em sua origem um carter utpico. Enquanto a histria alienada pela filosofia da histria, permanece a crise desencadeada pelo processo que a moral se empenha em mover contra a histria.

  • CR I T I C A E CRISE

    Quando nossa investigao tiver atingido sua meta, a dependncia e o entrelaamento recprocos da crise e da filosofia da histria e, por que no, sua identidade tero se tornado visveis em alguns pontos de partida no sculo XVIII. O utopismo originou-se de um mal-entendido em relao poltica, mal-entendido que foi condicionado historicamente e, em seguida, fixado pela filosofia da histria. No fogo cruzado da crtica, no se desmantelou apenas a poltica de ento. Neste mesmo processo, reduziu-se a prpria poltica, enquanto tarefa constante da existncia humana, a construes utpicas do futuro. A estrutura poltica do Estado absolutista e o desenvolvimento do utopismo so um processo complexo, no qual se inicia a crise poltica do presente.

    1 7

  • P R I M E I R O C A P T U L O

    I

    Dois acontecimentos que fizeram poca marcam o incio e o fim do Absolutismo clssico. Seu ponto de partida foi a guerra civil religiosa. O Estado moderno ergueu-se desses conflitos religiosos mediante lutas penosas, e s alcanou sua forma e fisionomia plenas ao super-los. Outra guerra civil a Revoluo Francesa preparou seu fim brusco.

    O efeito dessas duas sries de acontecimentos alastrou-se por toda a Europa. A posio singular da Inglaterra evidencia-se no fato de que l, por assim dizer, os dois acontecimentos coincidem. Na ilha, o Estado absolutista emergente foi destrudo pela guerra civil religiosa, e as lutas religiosas j significavam a revoluo burguesa. No continente, ao contrrio, o Estado absolutista permaneceu, at onde se pode rem ontar seu desenvolvimento,1 um acontecimento ligado aos conflitos posteriores Reforma. O Estado m oderno estabeleceu-se em duas fases distintas e em virtude de solues espacialmente distintas para as lutas religiosas. Sua poltica foi o tema do sculo XVII, e seus caminhos traam a histria do Absolutismo. O perodo seguinte, embora se caracterize pelo mesmo poder estatal, recebeu outro nome: Iluminismo. O movimento iluminista desenvolveu-se a partir do Absolutismo, no incio como sua conseqncia interna, em seguida como sua contraparte dialtica e como o inimigo que preparou sua decadncia.

    Assim como o ponto de partida do Iluminismo foi o sistema absolutista, o do Absolutismo foram as guerras religiosas. Amadurecimento e fim do Absolutismo esto internamente relacionados. Esta relao se torna visvel no papel que o Iluminismo pde desempenhar no mbito do Estado absolutista. O Ilumi- nismo floresceu justamente na Frana, o primeiro pas que supe-

    19

  • 20 R E I N H A R T KOSELLECK

    rou de maneira resoluta as guerras internas religiosas mediante a adoo do sistema absolutista.2 O abuso de poder por Lus XIV acelerou o movimento iluminista, em que o sdito se descobre cidado.3 Cidado que, na Frana, ir derrubar os basties da dominao absolutista. A estrutura poltica do Absolutismo, a princpio uma resposta s guerras civis religiosas, deixar de ser entendida enquanto tal pelo Iluminismo.

    A primeira tarefa desta investigao apreciar tal conexo. A situao de partida do Estado m oderno ser explicada na medida em que isso se mostre necessrio para explicitar o ponto de insero poltica do Iluminismo neste Estado. Assim, impe-se uma delimitao metodolgica anlise da estrutura poltica do Absolutismo para alm de questes sociais ou econmicas que traz em si uma justificativa factual. Com o apoio de magistrados e militares, o Estado dos prncipes forma uma esfera de ao supra-religiosa e racional que, em oposio s suas demais instncias, era determinada pela poltica estatal. No plano social, as monarquias permaneceram totalmente ligadas tradicional diviso estamental, a tal ponto que, em geral, se empenhavam em preserv-la. No plano poltico, porm, os monarcas procuravam extinguir ou neutralizar todas as instituies autnomas (mesmo o mercantilismo, enquanto sistema econmico, est submetido ao planejamento e conduo estatal). Tambm as questes relativas religio e Igreja foram tratadas em funo de sua utilidade para o Estado, fosse no mbito de uma igreja de Estado ou de uma tolerncia oportuna. A constelao inicial do Iluminismo se insere no domnio prprio desse sistema poltico que se estendia por toda a Europa.

    Esse sistema recebeu sua expresso terica na doutrina da razo de Estado.4 Criou-se um espao, livre de prescries morais, em que a poltica pde se desenvolver independentemente da moral. Nas monarquias, a poltica promove grandes coisas com o mnimo de moral possvel. 5 Quando, em 1748, Montesquieu caracterizou com esta frase a poltica da poca, empregou uma frmula que independentemente de seu contedo polmico no seria mais compreendida pelos iluministas, pois sua evi

  • CRI T I CA E CRISE 21

    dncia histrica remontava poca das guerras religiosas. No sculo XVI, a ordem tradicional estava em plena decadncia. E, em conseqncia da perda da unidade da Igreja, a ordem social como um todo saiu dos eixos. Antigos laos e alianas foram desfeitos. Alta traio e luta pelo bem comum tornaram-se conceitos intercambiveis, conforme as frentes de luta e os homens que nelas se locomoviam.6 A anarquia generalizada levou a duelos, violncias e assassinatos, e a pluralizao da Ecclesia Sancta foi um fermento para a depravao de tudo o que antes era coeso: famlias, estamentos, pases e povos. Assim, a partir da segunda metade do sculo XVI, um problema que no podia ser resolvido pelos meios da ordem tradicional tornava-se cada vez mais virulento: a poca impunha a necessidade de encontrar uma soluo em meio a igrejas intolerantes, que travavam duros combates e se perseguiam cruelmente, e em meio a fraes estamentais ligadas pela religio. Uma soluo que contornasse, apaziguasse ou abafasse a luta.7 Como era possvel restabelecer a paz? Na maior parte do continente, o Estado absolutista encontrou a resposta e constituiu-se a partir do que, de fato, era: um a resposta especfica guerra civil religiosa. Qual era esta resposta? O que ela significava para o monarca e o sdito?

    Uma vez que os partidos religiosos tiravam sua energia de fontes que se encontravam fora do domnio de poder dos prncipes, estes s podiam opor-se a eles rompendo o primado da religio. S assim foram capazes de submeter os diferentes partidos autoridade estatal. O princpio cujus regio, ejus religio [a religio de quem a regio] decorre do fato de que os prncipes se colocavam acima dos partidos religiosos, mesmo quando eram seguidores de alguma religio. O monarca absoluto no reconhecia nenhuma instncia superior a si mesmo, a no ser Deus, cujos atributos ele prprio assumia no espao poltico e histrico: Majestas vero nec a majore potestate nec legibus ullis nec tempore definitur [Na verdade, a autoridade no definida nem pelo maior poder nem por quaisquer leis nem pelo tem po] ,9

    Em seu roman clef, o Argenis, de 1621, Barclay forneceu para a m onarquia absoluta uma justificao bastante difundida n a

  • 22 R E I N H A R T KOSELLECK

    poca e traduzida em quase todas as lnguas europias. Hum anista e jurista, o autor partilhou o destino de muitos de seus contemporneos; era filho de uma famlia de refugiados, e suas im presses de juventude foram determinadas pelas lutas da Liga e pelo choque da conspirao da plvora, de 1605.10 Mais tarde, referindo-se a eventos como esses, confrontou o monarca com a seguinte alternativa: Ou restitus a liberdade ao pvo, ou lhe assegureis a liberdade interior, pela qual o povo sacrificou sua liberdade. 11 Esta passagem revela a misso histrica de que se incumbia a realeza da poca, e que a maioria dos pensadores da gerao de Richelieu contra os ligueurs, frondeurs e monar- cmacos declarava plenamente justificada.12 Servindo-se ainda da teoria do contrato de governo, Barclay tinha em vista o Estado absolutista, ao destituir os partidos em luta de seus direitos, transferidos e, junto com eles, toda a responsabilidade unicamente ao soberano. O Argenis estava entre as leituras regulares de Richelieu; seus pensamentos, topoi da poca, reencontram-se em seu testamento.13 Ser tolerante seria mais perigoso que ser severo ou cruel, pois as conseqncias de qualquer complacncia derramariam mais sangue e seriam mais devastadoras que a severidade momentnea. Se o monarca admitisse oposio, sem dvida se libertaria de responsabilidades, mas carregaria a culpa por todas as agitaes que nascessem da tolerncia.14 O postulado de que o monarca detm o monoplio do restabelecimento da paz impe ao soberano um a responsabilidade absoluta. Na poca, ela se expressou de forma cristalina na afirmao da responsabilidade exclusiva perante Deus.

    Em seu romance, Barclay tambm indica a direo que o rei deveria tomar para pacificar o pas. Ou fazia com que todos se curvassem ou ningum se submeteria.15 A responsabilidade absoluta do soberano exige e pressupe a dominao absoluta de todos os sujeitos. O governante s pode assumir a responsabilidade pela paz e a ordem quando submete da mesma forma todos os sditos. Ocorre assim um a profunda ruptura na posio dos sditos, que, at ento, tinham seu lugar no interior de um sistema mltiplo, embora frouxo, de responsabilidades: como membros

  • CR T I CA E CRISE 23

    de uma das igrejas, dependentes de vassalos, no quadro de uma instituio poltica prpria ou de uma das ordens estamentais. Quanto mais o sentido desse mundo pluralista se altera, gerando o sem-sentido da guerra civil, tanto mais os sditos e o prprio rei confrontam-se com uma alternativa premente: Saibam que quase todos os homens foram reduzidos ao mesmo ponto: ou ficam em desacordo com a prpria conscincia ou com os acontecimentos do sculo. 16 No vaivm dos perseguidores e perseguidos, que trocavam constantemente os papis de vtima e de carrasco, no sobreviveu quem se manteve fiel sua crena, mas quem buscou a paz pela paz. DAubign, froneur por toda a vida, cruzado rigoroso e proscrito, punha estas constataes na boca de seu companheiro dissidente, o poltico de Sancy.17 No era mais possvel conciliar a conscincia e as exigncias da situao. Por isso, prossegue o poltico incumbido por DAubign, deve-se distinguir claramente entre interior e exterior. O astuto refugia-se nos recantos secretos de seu corao, onde permanece seu prprio juiz, ao passo que os fatos externos devem ser submetidos ao juzo e ao tribunal do soberano. A voz da conscincia no deve nunca alcanar o exterior; deve, antes, ser abafada: s sobrevive quem se converte. Pode-se ver o sentido disto facilmente: os que esto mortos quiseram deixar viver sua conscincia, e foi sua conscincia que os matou.18 Por uma inverso irnica, a conscincia tornou-se culpada da sua prpria destruio. Os limites entre golpe mortal, execuo e assassinato eram ainda tnues e imprecisos;19 mas, para o poltico, qualquer morte violenta na guerra civil religiosa passou a equivaler a um suicdio. Quem se submete ao soberano vive por meio do soberano; quem no se submete a ele aniquilado, mas a culpa recai sobre o prprio aniquilado. Para sobreviver, o sdito deve esconder sua conscincia.

    Desfez-se a relao entre culpabilidade e responsabilidade, constitutiva da conscincia. Ambas encontraram um a nova correlao na pessoa do soberano e na do sdito. Diante do frum de sditos, o soberano foi eximido de qualquer culpabilidade, mas coube a ele toda responsabilidade. O sdito foi dispensado de qualquer responsabilidade poltica mas, em compensao, foi

  • 24 R E I N H A R T KOSELLECK

    ameaado de uma dupla culpabilidade: externamente, ao proceder contra os interesses do soberano, em assuntos cuja deciso cabia apenas ao soberano; internamente, pela culpa que assalta quem se recolhe no anonimato. Esta ciso abriu no horizonte da guerra civil religiosa um domnio em que a inocncia do poder tom ou seu lugar. Um domnio que competia apenas ao soberano. Mas o prncipe s podia preservar a inocncia do seu poder se estivesse consciente da responsabilidade que ele implicava. S assim poderia preservar uma autoridade que garantisse seu poder. O prncipe estava, portanto, constrangido a agir, obrigado constantemente a tomar novas decises, inclusive as que recorressem violncia. Abster-se delas poderia trazer conseqncias to graves quanto agir de modo inverso, extrapolando o poder. Os dois perigos desafiavam-se mutuamente. O que sustentava a deciso do soberano era, precisamente, o perigo de passar de um extremo ao outro.

    Para cumprir com sua responsabilidade universal, o prncipe era obrigado a procurar a medida de seus atos nos efeitos previsveis que suas aes trouxessem para a comunidade. Assim, a obrigatoriedade de agir impunha tambm a obrigatoriedade de ser o mais previdente possvel. O clculo racional de todas as possveis conseqncias tom ou-se o primeiro m andamento da poltica.20 No entanto, para manter sob controle pelo maior tempo possvel as conseqncias de suas aes que, uma vez iniciadas, escapavam interveno hum ana o prncipe foi novamente forado a ampliar seu poder. Deste modo, aumentou o perigo de no fazer uso ou de abusar do poder acumulado, ou seja, de renunciar inocncia do poder. A lgica da responsabilidade absoluta, qual Lus XIV sucumbiria, respeitar as suas leis, que se transformariam na arte da poltica. O espao de manobra da inocncia do poder permaneceu estreitamente limitado pelas prescries de um a moral de ao mais severa. Estes preceitos formavam as regras da poltica, que deviam permanecer essencialmente estranhas ao sdito, destitudo de poder.

    Polticos e doutrinadores de uma moral secular estavam de acordo neste ponto.21 No sculo XVIII eles j estariam separados

  • CR T I CA E CRI SE 25

    em campos opostos, mas no sculo XVII ainda tinham um inimigo comum: os telogos. Somente os telogos acreditavam, garantia Spinoza, que os estadistas tambm deviam observar as regras de piedade prescritas para os indivduos particulares.22 A excluso da moral na poltica no se opunha moral secular, mas moral religiosa com pretenso poltica.

    A doutrina da razo de Estado estava de tal modo condicionada pelas rivalidades confessionais que no se restringiu ao Absolutismo monrquico. No continente, infiltrou-se na tradio que defendia o fortalecimento da realeza, mas tambm ganhou terreno em pases que tinham um a constituio corporativa ou republicana. Nessa poca, todo poder que quisesse exercer autoridade e ter validade geral precisava negar a conscincia privada, que era o esteio dos vnculos religiosos ou dos laos estamentais d lealdade. At o Parlamento ingls, quando quis suspender em 1640 as prerrogativas de Carlos I, invocou rapidamente o argumento de que toda conscincia, mesmo a do rei, deveria subordinar-se ao interesse estatal. Na medida em que obrigou o rei a agir contra sua prpria conscincia, o Parlamento formulou a exigncia da soberania plena.23 Tambm Spinoza, na Holanda, longe de falar em nome do Absolutismo monrquico, achava to talmente razovel ver como pecado as boas aes que prejudicassem o Estado e como piedoso um pecado que servisse ao bem comum.24

    Hobbes, a quem Spinoza recorreu, um exemplo paradigmtico da gnese da m oderna teoria do Estado a partir da situao das guerras civis religiosas.

    Hobbes se presta de modo excelente para a exposio dessa gnese, pois renunciou a todos os argumentos tradicionais, como o da analogia Deus-rei. Queria, ao contrrio, pr em evidncia os fenmenos em sua crua realidade, seguindo, como afirma Dilthey,25 o fio condutor de um mtodo cientfico. Alm disto, a teoria Hobbesiana do Estado absolutista j contm in nuce a idia do direito de Estado civil, de forma que seu olhar, embora parta do contexto das guerras religiosas, alcana por si mesmo o sculo XVIII.

  • 26 R E I N H A R T KOSELLECK

    II

    Hobbes desenvolveu sua teoria do Estado a partir da situao histrica provocada pelas guerras civis religiosas. Para ele, que testem unhou a formao do Estado absolutista na Frana estava l no apenas quando Henrique IV foi assassinado, mas tambm quando La Rochelle se entregou s tropas de Richelieu , no havia outro objetivo a no ser evitar a guerra civil (que lhe parecia iminente na Inglaterra) ou, se ela fosse deflagrada, encontrar meios de termin-la.26 Em sua obra da maturidade, observava que no havia nada mais instrutivo em matria de lealdade e justia do que a recordao da guerra civil.27 Em meio s agitaes revolucionrias, procurava um fundamento sobre o qual se pudesse construir um Estado que garantisse paz e segurana. Enquanto Descartes, que se achava em um Estado j constitudo, evitava levantar essas questes fundamentais, Hobbes atribua a elas um significado central.28 Todos os telogos, filsofos da m oral e juristas constitucionais teriam falhado, pois suas doutrinas apoiavam os direitos de determinados partidos e, portanto, incitavam guerra civil, em vez de ensinar um direito que estivesse acima dos partidos ( non partium, sepacis studio ["no para aplicao pelas partes, mas para a paz]).29 Para poder encontrar este direito, Hobbes indaga-se sobre a causa da guerra civil, impelido pela idia de que preciso, em primeiro lugar, desmascarar os planos e interesses dos homens, dos partidos e das igrejas. Pois os homens, ofuscados por seus desejos e esperanas com- preensivelmente seriam incapazes de reconhecer a causa de todo o mal. Causa igitur belli civilis est, quod bellorutn ac pacis causae ignorantur [Existe o motivo da guerra civil, pois as causas da guerra e da paz so ignoradas].30 Tendo por fio condutor a causa belli civilis [o motivo da guerra civil], Hobbes desenvolve seu direito natural racional, que equivale a um a doutrina das causas da guerra e da paz.

    Para compreender o fundamento da guerra civil, Hobbes elabora uma antropologia individualista, correspondente a uma humanidade cujos vnculos sociais, polticos e religiosos tornaram-

  • CRI TI CA E CRISE 27

    se problemticos. Os conceitos bsicos desta antropologia so appetitus et fuga [desejo e fuga] ou desire andfear [desejo e medo],31 que, apreciados historicamente, formam os elementos de uma teoria da guerra civil. Mas, visto como um todo, o sistema de Hobbes se constri de tal forma que o resultado isto , o Estado j est contido nas premissas da guerra civil. Os indivduos so descritos de antemo em funo de suas existncias como sujeitos, isto , como sditos do soberano. Sem uma instncia estamental intermediria, so integrados ordem pblica de modo a poderem desenvolver-se livremente como indivduos. O individualismo de Hobbes o pressuposto de um Estado ordenado e, ao mesmo tempo, a condio de um livre desenvolvimento do indivduo.32

    A princpio, a humanidade dominada por uma paixo, pelo desejo incessante de poder, ao qual somente a m orte pe fim.33 Conflito, guerra e guerra civil, bellum omnium contra omnes [guerra de todos contra todos], so a sua conseqncia. O medo constante de uma morte violenta impede a humanidade de respirar.34 Por isso, o desejo de paz to fundamental quanto o desejo de poder.35 O homem vegeta, oscilando permanentemente entre a nsia de poder e a nostalgia de paz. No capaz de escapar deste vaivm; enquanto persiste nele, reina a guerra. Hunc statum facile omnes, dum in eo (bello) sunt, agnoscunt esse malum et per consequens pacem esse bonum [Evidentemente, enquanto esto em guerra, todos reconhecem que a situao m, e por conseqncia a paz boa].36 O estado de guerra pertence natureza humana; a paz s existe enquanto esperana e desejo. Embora se deseje a paz como bem supremo, tal desejo no basta, em si, para assegurar uma paz duradoura. Nisto reside, para Hobbes, o verdadeiro problema da filosofia moral.37

    Ao formular assim o problema, Hobbes supera a maneira pela qual ele era, em geral, tratado na poca. Nega a primazia das questes que inquietavam os nimos dos ingleses, fosse a relao das seitas com a igreja do Estado, do Parlamento com o rei ou dos direitos fundamentais com o protetor. A soluo encontrada por Hobbes nos interessa sob dois aspectos. Em primeiro lugar, mos-

  • 28 R E I N H A R T KOSELLECK

    tra a conscincia e o papel que ela exerce nos conflitos religiosos como uma construo ideolgica. Assim, destitui o problema de seu efeito explosivo. Para Hobbes, a subordinao da moral poltica, caracterstica da doutrina da razo de Estado, temticamente irrelevante. A razo suprime qualquer diferena entre as duas ordens.38 A necessidade de fundar o Estado transforma a alternativa moral entre o bem e o mal em uma alternativa poltica entre a guerra e a paz.

    Mas, em segundo lugar, a distino permanece relevante. Por isso, preciso indicar como esta distino quase contra a vontade de Hobbes surgiu de um modo que caracteriza o direito poltico absolutista. A se revela a lgica inerente a esse processo histrico. O problema, tratado at ento pela filosofia moral crist, reaparece sob outros traos distintivos, fora do mbito da teologia. Todo o sculo XVII ser dominado por essa problemtica.

    Externamente, Hobbes concorda com os filsofos morais de seu tempo no que diz respeito concepo de que o hom em regido por leis eternas e imutveis.39 As leis morais tm um carter obrigatrio universal e constrangem os homens a julgar suas aes em sua conscincia ( in foro interno), no pelo efeito mas pela inteno.40 Contudo, acrescenta Hobbes, as leis que s envolvem o querer, o querer em sua sinceridade e constncia, so fceis de observar. (Elas) so fceis de observar. Pois nisso nada exigem seno o empenho; aquele que se esfora em seu desempenho as cumpre; e aquele que cumpre a lei justo. Com uma vontade pura fcil ser justo. O sarcasmo contido com o qual Hobbes, duplamente refugiado, no interior e no exterior, reagiu a cada um a das justias dos partidos da guerra civil caracterstico de um pensador que experimentou na prpria carne a dialtica fatal entre a conscincia e a ao. A discrepncia entre atitude interna e ao externa aum entou de tal forma que o verdadeiramente justo tom ou-se totalmente intercambivel.41 A convico ou a ao, os dois ao mesmo tempo, ou somente um dos dois? O que viria antes, a convico ou a ao? Conhecendo a dialtica vigente entre as duas esferas, Hobbes investiga suas relaes recprocas de um a forma fundamentalmente nova. De-

  • C R T I C A E C R I S E 29

    para com o mesmo fenmeno a que alude Shakespeare ao dizer: Pois esta mesma palavra, Revoluo, separou-lhes da alma as aes do corpo.42

    A inteno de Hobbes j se torna clara quando se percebe que, desde o incio, ele se empenha em renunciar ao emprego habitual da palavra conscincia. Ele a destitui de valor, por causa do uso incerto, substituindo-a pelo conceito de opinio, despido de qualquer significado religioso.43 A conscincia no seria nada alm de uma convico subjetiva, ou seja, de um ponto de vista privado.

    Quando os presbiterianos e independentes invocam a graa religiosa para encontrar uma justificativa teolgica, trata-se, para Hobbes, apenas da expresso de sua paixo. Assim, ele elabora uma terminologia extra-religiosa e conquista um a posio suprapartidria que lhe permite analisar todos os partidos em seu conjunto, como parte de uma unidade de eventos.44

    Hobbes reconhece, sem iluses, a distncia entre as intenes dos partidos, guiadas pela teologia moral, e as prticas pelas quais procuravam realizar seus objetivos. Ainda que no houvesse nenhuma dvida quanto boa inteno de sua vontade de paz, obviamente no havia consenso quanto aos meios e caminhos apropriados para estabelecer essa paz.45 Alm disso, a convico de cada um, que produzia efeitos e aes variados, garantia aos partidos a pretenso de expressar proposies com um carter obrigatrio universal.46 Disto se segue que no somente as aes, mas tambm as convices, opunham-se umas s outras. E as convices levavam a aes cada vez mais radicais, com o objetivo de aniquilar o inimigo no s externamente, mas tam bm internamente.47 Reinava ento o conflito das convices, cuja estrutura, encoberta para os envolvidos, foi evidenciada por Hobbes: Na verdade, desagradvel lutar, mas tambm no decidir. ... Guerras sem importncia sero travadas, e sero mais violentas entre as seitas da mesma religio e as faces da mesma repblica (De ave, I, 5).

    Cem anos depois, Rousseau fez da guerra civil seu tema e a descreveu seguindo o fio condutor do pensamento de Hobbes:

  • 30 R E I N H A R T KOSELLECK

    Todos se tornam inimigos; alternadamente perseguidos e perseguidores, um contra todos e todos contra um; o intolerante o homem de Hobbes, a intolerncia a guerra da humanidade.48 O homem no pode escapar a essa guerra civil mesmo quando, em sua nostalgia de paz, reconhece um princpio moral de validade universal.49 Pois justamente a pureza subjetiva da sua vontade de paz, na medida em que representasse o nico preceito legitimador das aes, levaria a uma pretenso de totalidade por parte daqueles que invocavam sua conscincia; uma vez que h, de fato, diversos partidos, isso no conduziria paz, mas ao seu oposto, ao bellum omnium contra omnes. Quem invoca a conscincia, afirma Hobbes, quer alguma coisa. Na convico (a que Hobbes reduziu todos os contedos religiosos) reside a pretenso de exclusividade dos partidos inimigos, e a guerra civil nasce desta atitude comum. Ela advm do veneno de doutrinas rebeldes; uma delas afirma que cada um juiz das aes boas e ms, a outra que pecado o que se faz contra a prpria conscincia.50

    O movimento reformatrio e a conseqente diviso das instncias religiosas remeteram o homem de volta sua conscincia. A conscincia desprovida de amparo externo degenera em fetiche de uma justia em causa prpria. No surpreende que precisamente esta conscincia desse coragem e energia aos partidos beligerantes para continuarem a lutar. A simples conscincia, que, como diz Hobbes,51 tem a pretenso de subir ao trono, no juiz do bem e do mal, mas a prpria fonte do mal. No era apenas a vontade de poder que atiava a guerra civil e nisto reside o passo definitivo dado por Hobbes mas tambm a invocao da conscincia sem amparo externo. Em vez de ser uma causa pacis, a instncia da conscincia , em sua pluralidade subjetiva, uma causa belli civilis.

    Ao tecer reflexes de filosofia moral para examinar os pressupostos necessrios a um a paz duradoura, Hobbes ultrapassa a problemtica tradicional. Retoma a separao entre conscincia e ao, mas somente para redefini-las de maneira nova.52 Ao contrrio de seus contemporneos, no argumentava do interior para o exterior, mas no sentido oposto, do exterior para o interior.

  • CR I T I C A E CRISE

    Na guerra civil, no se pode mais dizer de maneira unvoca o que bom ou mau, e o desejo de paz no basta para esmorecer a vontade de poder. Em uma situao de guerra civil, em que o direito de todos prevalece sobre todos, como possvel desenvolver urna legalidade que permita realizar este desejo? A lei natural, antes de se tornar lei, precisa de uma garantia que viabilize seu cumprimento.53 O mandamento de estabelecer a paz, contido na lei natural, precisa ser transformado em urna lei cuja execuo concreta possa ser cumprida. A verdadeira tarefa da filosofia moral elaborar tal legalidade, e o tema apropriado matria em questo a poltica. O resultado a legitimao do Estado absolutista e de sua estrutura poltica.

    Hobbes introduz o Estado como uma construo poltica em que as convices privadas so destitudas de sua repercusso poltica. No direito constitucional de Hobbes, as convices privadas no encontram nenhuma aplicao s leis;54 as leis no so aplicveis ao soberano.55 O interesse pblico de Estado, sobre o qual somente o soberano tem o direito de decidir, no compete mais conscincia. A conscincia, da qual o Estado se separa e se aliena, transforma-se em moral privada: Autorictas, non veritas, facit legem [ a autoridade, e no a verdade, quem faz as leis]. O monarca est acima do direito e sua fonte; ele decide o que justo ou injusto; , ao mesmo tempo, legislador e juiz.56 O contedo deste direito, como direito pblico, no est mais ligado a interesses sociais e esperanas religiosas; para alm de igrejas, estamentos e partidos, ele marca um domnio formal de decises polticas. Este domnio pode ser ocupado por esse ou aquele poder, contanto que possua a autoridade necessria para proteger os homens, independentemente de seus interesses e esperanas.57 A deciso poltica do prncipe tem fora de lei.58

    Na medida em que uma ordem estatal assegurada de cima para baixo, sua estabilidade s se torna possvel quando a pluralidade de partidos e indivduos se reconhece em uma moral que aceita a soberania poltica absoluta do prncipe como uma necessidade moral. s teorias morais tradicionais, Hobbes ope uma moral cujo tema a razo poltica. As leis desta moral se realizam

    3 1

  • na construo do Estado. So dedues racionais e, ao mesmo tempo, experincias adquiridas na realidade cruel da guerra civil damnosum experientia [experincia perniciosa].59 No bellum omnium contra omnes cada um busca a destruio do outro. Por isto ningum teve medo disso ou daquilo, desse ou daquele m omento, mas temeu por todo o seu ser, pois sentiu o pavor da morte, do senhor absoluto.60 Mas o medo da morte impele o homem a refugiar-se no Estado.61 Oferecer proteo , portanto, a suprema obrigao moral do Estado. Contudo, o Estado s pode cumprir com esta obrigao se todos os homens transferirem seus direitos ao soberano, que os representa em seu conjunto.62 Mas a moral racional s legal e nisto reside a garantia poltica desta teoria moral a partir do momento em que o Estado garante o cumprimento deste mandamento racional. O desejo subjetivo de paz no basta em si mesmo, pois depende da sano estatal para ser investido de um carter moral. A razo exige o Estado, mas s se torna poltica e moral quando o Estado passa a existir. Hobbes, que a princpio pensou em fundar o Estado em um contrato temporal e, por assim dizer, anterior a ele, terminou por instituir o Estado justamente para tom ar possvel este contrato.63 O paradoxo lgico reside no fato de que, embora deva sua existncia a um contrato, o Estado existe, da em diante, como uma construo autnoma. O Leviat , ao mesmo tempo, causa e efeito da fundao do Estado. Assim, Hobbes acaba com a pretensa prioridade das resolues internas dos indivduos e tenta demonstrar o condicionamento congnito de qualquer moral que se realize pela ordem estatal. A conseqente eliminao absolutista dc qualquer dualidade entre estamentos e monarca, entre povo e soberano, se quisesse ser dotada de sentido, tambm interditava uma separao entre lei moral e legalidade poltica.64 A guerra civil, que vivida como ameaa mortal, alcana a paz no listado, liste Estado, como Estado terreno, um deus mortal.65 < Amo deus mortal, assegura e prolonga a vida dos homens, mas, ao mesmo tempo, permanece mortal, pois uma obra humana e pode sempre sucumbir ao estado de natureza que marcou sua origem, guerra civil.

    32 R E I N H A R T KOSELLECK

  • CRI T I CA E CRISE 33

    Para evitar que isto acontea, o Estado tambm deve ser construdo segundo as mesmas regras da razo que condicionam o seu surgimento. O Estado construdo segundo a razo no um puro Estado da razo, como o sculo seguinte esperaria, mas um Estado para homens que agem to freqentemente contra a razo quanto a razo se ope a eles.66 No a razo em si que d um fim guerra civil Hobbes no era um utpico , mas ela mostra as sodetatis sive pacis humanae conditiones [condies humanas da sociedade ou da paz]67 pelas quais o Estado pode tornar-se o juiz racional dos homens irracionais. A paz s assegurada se, no ato de formao do Estado, a moral poltica que incita os homens a transferir seus direitos ao soberano que os representa transformar-se em dever de obedincia. O que edifica o Estado no somente o poder absoluto do prncipe, mas a relao entre a proteo e a obedincia.68 S na associao que surge entre proteo e obedincia se pode formar um status neutro, em que as leis embora diferentes em seu contedo garantem, em virtude apenas de sua legalidade, a paz, a segurana e o contentment.69 Deste modo, a razo cria um espao neutro para a tcnica poltica, em que a vontade do prncipe a nica lei. Nesse Estado, racional apenas a legalidade formal das leis, no o seu contedo. Racional o mandamento formal, da moral poltica, de obedecer s leis independentemente de seu contedo.70 O Estado no apenas um deus mortal: torna-se tambm o auto- maton, a grande mquina, e as leis so as alavancas acionadas pela vontade absoluta do soberano para manter a mquina do Estado em funcionamento. O Estado s se realiza atravs das vias indicadas pela razo na medida em que pe um fim guerra civil e, aps encerr-la, cuida constantemente para que ela no irrompa de novo. Desse modo, o Estado, assim como a moral poltica dos indivduos, corresponde razo.

    Portanto, moral e poltica coincidem quando a razo est diante da alternativa histrica entre guerra civil e ordem estatal. O sistema de Hobbes s ganha coeso lgica quando se tem em vista a guerra civil e o supremo mandamento racional que dela resultou: a moral impe a submisso ao monarca; ao pr fim

  • 34 R E I N H A R T KOSELLECK

    guerra civil, o monarca cumpre com o mais alto mandamento moral. A qualificao moral do soberano reside em suas funes polticas, isto , em instaurar e m anter a ordem.

    Ao deduzir a soberania inviolvel do prncipe a partir da multiplicidade de partidos presentes na guerra civil, que se legitimavam pela teologia moral e pela religio, Hobbes d uma resposta situao histrica em que viveu. Assim como, no continente, o Estado superou as guerras religiosas e, deste modo, adquiriu sua forma absolutista, no mbito do direito pblico e da filosofia moral a mesma tarefa foi executada pela razo; razo que, em Hobbes, sabia-se to superior quele conflito desordenado de homens irracionais, supersticiosos e impulsivos quanto o m onarca absoluto era em relao aos sditos.71 Para Hobbes, a razo o fim da guerra civil; uma frase cujo significado histrico tambm pode ser invertido: o fim das guerras civis religiosas a razo. Aqui se manifesta a convergncia, inerente situao, entre o Absolutismo e a filosofia racionalista. A razo que se eleva das agitaes da guerra civil religiosa permanece, a princpio, na senda desta guerra e funda o Estado. Pode-se entender por que Hobbes no viu que a razo poderia emancipar-se pelo movimento iluminista. Ele no conhecia a vertente prpria da razo.

    A determinao do homem a sua emancipao pela razo. Mas, para Hobbes, esta no pode ser a determinao da histria, pois ele vivenciou a histria como histria das guerras civis. No o progresso que pede o Estado, mas a necessidade de pr fim guerra civil. A razo s pode progredir, no espao que lhe foi reservado, quando os antagonismos religiosos so neutralizados e contidos pelo Estado. A histria , para Hobbes, uma constante interao de guerra civil e Estado, Estado e guerra civil. Homo homini lupus, homo homini Dei [O homem o lobo do homem, o homem o Deus do homem].72 As dificuldades lgico-formais do sistema de Hobbes, tantas vezes tratadas, s podem ser apreciadas quando se deixa de lado esta ambivalncia, ao mesmo tempo ameaadora e auspiciosa, quando se ignora a questo histrica de que ele parte e se separa o seu sistema de um contexto histrico determinado.73

  • CR I T I C A E CRISE

    Tendo em vista o estabelecimento da paz e sua garantia pelo soberano, qualquer ordem do soberano tambm um m andamento moral. Para os homens ameaados pela guerra civil, no h diferena entre conscincia e poltica. Mas, o que acontece quando a paz est assegurada, a ameaa de morte est banida e o cidado se desenvolve livremente? Ser. que, tambm nesse caso, toda deciso ou ordem do monarca uma lei racional ou um mandamento moral?

    Esta pergunta, que em breve iria inquietar a ordem estabelecida, nos leva a apreciar de maneira mais acurada a relao entre moral e poltica, caracterstica do Estado absolutista. A soluo proposta por Hobbes mostra que seu conceito de Estado contm em si o mesmo conflito que ele procurou varrer do m undo mediante o prprio Estado. Hobbes, que conscientemente deixou de lado o contedo poltico ou religioso dos programas de partido, no se indagava sobre a estrutura de um Estado determinado, mas sobre aquilo que faz com que um Estado seja Estado, isto , o carter estatal do Estado. No se interrogava sobre a especificidade das leis, mas sobre por que as leis existem.74 No lhe interessava o contedo das leis, mas sua funo de garantir a paz. A legalidade destas leis no residia na qualificao de seu contedo, mas exclusivamente na sua origem, ou seja, no fato de serem a expresso da vontade do poder soberano. Mas, para possibilitar sua legalidade num sentido suprapartidrio, neutro e indiferente religio, Hobbes sempre recorreu diferena entre convico interna e ao externa, deduzida da realidade histrica; ele usou esta discrepncia, que motiva sua anlise aps a guerra civil, para coloc-la a servio da ordem estatal.

    A formalizao do conceito de lei soberana, alcanada por Hobbes, funda-se ainda que mediante uma avaliao nova e construtiva numa separao entre conscincia interior e ao exterior. Pois somente esta diferenciao permite separar o contedo de uma ao e a prpria ao, pressuposto necessrio para um conceito de lei formal. S assim possvel declarar, independentemente de seu contedo moral ou religioso, o carter legal de uma lei e, ao mesmo tempo, cumpri-la enquanto tal. A obe

    35

  • R E I N H A R T K O S E L L E C K

    dincia s leis soberanas s era possvel se o sdito continuasse a distinguir entre convico e ao, que j se contradiziam na guerra civil, para poder viver em harmonia consigo mesmo sem considerar o contedo das leis que deve cumprir. Deste modo, o pressuposto histrico da guerra civil tornou-se o pressuposto necessrio ao pensamento de Hobbes, pois lhe permitiu deduzir o seu conceito de soberania absoluta.

    O mrito do pensamento de Hobbes consiste em ter deslocado a ruptura entre conscincia e poltica, inevitvel entre os homens de orientao religiosa isto , irracionais , para um domnio que se situa fora da mquina estatal. Esta ruptura aparece em dois lugares: no soberano, que est acima do Estado, e no indivduo, pela ciso do homem em hom em e cidado.75 verdade que o soberano pode cometer uma iniqidade, mas no uma injustia.76 Um senhor absoluto poderia cometer uma injustia, mas nunca juridicamente: s em um sentido moral ou violando o princpio da utilidade. Se quisessem impedi-lo de cometer uma injustia, estariam suprimindo o pressuposto da paz, a soberania absoluta, e abrindo espao para novas aes ainda mais injustas. No se tratava, portanto, de um mal que distinguisse a monarquia, mas de um mal inerente natureza hum ana.77 A moral poltica liberta o prncipe de todos os vnculos; pode-se esperar, no obstante, que ele observe uma aequitas que, por assim dizer, no indispensvel, mas acessria, pois no necessria para que o Estado funcione como regulator dos homens irracionais.78

    Para manter o Estado em sua funo de guardio da paz, tam pouco preciso que o sdito deva identificar-se, como homem e segundo sua convico, com as leis polticas.79 Ao contrrio: o homem, como cidado, no deve mais buscar a prima causa das leis em Deus, mas em uma construo temporal, isto , no poder que pe fim guerra civil. As leis so morais no porque correspondam a um a legalidade eterna da moral embora este possa ser o caso mas porque se originaram em um mandamento ditado pela situao poltica. Estas so as leis da moral poltica, sobre as quais o soberano decide, por razes inerentes a

    3 6

  • CR T I C A E CRI SE 37

    esta mesma moral. Uma virtude um a virtude no por causa da convico ou da justa medida, mas do seu fundamento poltico.80 Contudo, para o homem como homem, a convico, ou a prpria conscincia, permanece o ltimo critrio da moral. Resta apenas esperar que a convico tambm se oriente pela necessidade poltica.81

    Assim, o homem partido em dois. Hobbes o divide em uma metade privada e outra pblica: os atos e as aes so submetidos, sem exceo, lei de Estado, mas a convico livre, uin secret free.S2 Da em diante ser possvel ao indivduo refugiar-se em sua convico sem ser responsvel. Na medida em que o indivduo tomava parte no mundo da poltica, a conscincia tornava-se apenas uma instncia de controle do dever de obedincia. A ordem soberana dispensava o indivduo de qualquer responsabilidade. A Lei a Conscincia pblica; Conscincias privadas ... so apenas opinies privadas.83 Mas, se o indivduo se atribui competncia em um domnio reservado ao Estado, ele deve mistificar-se para no ser obrigado a prestar contas.84 A diviso do homem em uma esfera privada e um a esfera pblica constitutiva da gnese do segredo. O Iluminismo ir sucessivamente ampliar o foro interior da convico; qualquer pretenso que incorresse em um domnio do Estado permanecia forosamente encoberta pelo vu do segredo. A dialtica entre segredo e movimento iluminista, desmascaramento e mistificao, surge desde o incio do Estado absolutista.

    Para a razo que s se importava em dar um fim guerra civil, era irrelevante a diferena entre a esfera moral e a esfera poltica. Esta razo, por assim dizer, tinha se tom ado racional o suficiente para reconhecer diferentes convices como realidades histricas. Podia permitir-se isto, pois a tecnicidade formal do conceito de lei absolutista oferecia um a elasticidade que evitava qualquer diferena entre conscincia e ao que ameaasse a ordem. A tranqilidade e a segurana estavam, pois, asseguradas. O Estado no se tornou somente o espao de um a imoralidade poltica, mas tambm o espao de um a neutralidade moral. Como um espao moral neutro, um autntico espao de exonerao.

  • 38 R E I N H A R T KOSELLECK

    bom que a autoridade seja notvel, porque til defesa; a segurana existe para a defesa.85 Mas o preo deste espao de exonerao a diviso do homem. O homem s livre em segredo, s homem em segredo. Como cidado, o homem est subordinado ao soberano, e s como sdito cidado.

    O exlio do homem transforma-se em um nus para o Estado. Ser hom em o segredo deste homem que, como tal, forosamente escapa ao soberano. Enquanto o sdito cumprir seu dever de obedincia, o soberano no se interessa por sua vida privada. Aqui est, como mais tarde se ver, o ponto de partida especfico do Iluminismo. O Iluminismo propagou-se numa brecha que o Estado absolutista abriu para pr fim guerra civil. A necessidade de estabelecer uma paz duradoura incita o Estado a conceder ao indivduo um foro interior que afeta pouco a deciso soberana, mas que se torna indispensvel. Que este foro interior seja politicamente indiferente uma necessidade constitutiva do Estado se ele quiser conservar sua forma poltica. No entanto, na medida em que desaparece a neutralidade moral que distingue a deciso soberana, o Estado absolutista perde seu carter evidente, que estava ligado situao histrica. O Estado criou um a nova ordem; historicamente, se tornaria um a vtima dela. J desde o incio, o foro interior da moral, delimitado pelo Estado e reservado ao homem como hom em , significava um foco de agitao que era, originariamente, peculiar ao Estado absolutista. A instncia da conscincia era o resqucio no superado do estado de natureza, que permaneceria mesmo quando o Estado houvesse alcanado sua forma perfeita.

    A neutralizao da conscincia pela poltica favorece a secula- rizao da moral. A mediatizao dos antagonismos eclesisticos, que acompanhou a formao do Estado, possibilita a expanso gradual da concepo de m undo fundada na natureza e na razo. O esmorecimento da religiosidade calcada na revelao,853 que condiciona o Estado, torna-se fatal na medida em que antigos temas se repetem sob uma forma secularizada. A moral que aspira poltica ser o grande tema do sculo XVIII. Na medida em que

  • CR I T I C A E CRI SE 39

    seu ponto de partida a guerra civil religiosa, qual o Estado deve sua existencia e sua forma esquecido, a razo de Estado aparece como imoralidade por excelncia.

    Como herdeiras legtimas da religio, as teorias morais orientavam-se conscientemente para o lado de c; contudo, no mbito do Estado absolutista, permaneceram exteriores ao Estado. O homem como hom em foi intencionalmente excludo do Estado, pois s possua qualidade poltica na condio de sdito.

    Com o Iluminismo, a separao entre homem e sdito deixa de ser compreensvel. Entende-se que o homem deve realizar-se politicamente como homem, o que provoca a desagregao do Estado absolutista. Hobbes no podia suspeitar que precisamente a separao entre moral e poltica desencadearia depois, aceleraria - este processo. A intelectualidade burguesa acolheu a herana do clero teolgico, e a frase do Novo Testamento Spiritualis homo judicat omnia, ipse autem a nemine judicatur [O homem espiritual, ao contrario, julga tudo, no se furta ao julgamento de nada]86 ganharia em breve uma nova e inesperada atualidade.

    Em suma, pode-se dizer que Hobbes no foi um historiador que tivesse reunido ou descrito fatos passados e presentes.87 Como pensador da histria, voltado para a superao da guerra civil, encontrou uma resposta que ultrapassa a situao de partida. A comprovao da historicidade de seu pensamento est precisamente na objeo, j levantada por seus contemporneos, de que, do que , Hobbes deduz o que deve ser; faz nascer o Estado de um estado de natureza,88 em que os homens so lobos uns dos outros; tal objeo motivou Dilthey a falar da subjetividade impetuosa em Hobbes. Na histria, sempre se produz algo a mais ou a menos em todo caso, algo diferente do que estava contido nas premissas. A est sua atualidade. Hobbes, alis, pensava de m aneira eminentemente histrica quando deu o salto lgico e paradoxal do estado de natureza da guerra civil para o Estado perfeito. Disse em palavras o que caracterizou o sculo XVII. A fora do seu pensamento revela-se neste elemento de prognstico que lhe inerente.

  • 40 RE I N H A R T KOSELLECK

    I I I

    A ordem jurdica supra-religiosa resultou no apenas na pacificao de cada um dos Estados nacionais; marcou, ainda mais, as relaes internacionais. O direito internacional europeu tornou- se eficiente porque criou um novo tipo de obrigatoriedade que se colocava acima da pluralidade de religies. Esta obrigatoriedade era poltica. Ao instituir o mbito das relaes internacionais, era anloga ao raciocnio pelo qual Hobbes deduziu o Estado. Somente a distino clara entre interior e exterior permitiu destacar do domnio de competncias religiosas um espao de ao extra- poltico, o que, sobre o pano de fundo histrico das paixes confessionais, equivalia necessariamente a um a racionalizao.

    No decorrer do sculo XVIII, a poltica secreta praticada nos gabinetes e o clculo racional transformado em rotina deveriam tornar-se, tanto quanto o prprio sistema absolutista,89 alvos de uma crtica que exigia publicidade. A universalidade das teorias morais iluministas ultrapassou todas as fronteiras que a poltica havia traado cautelosamente. Na medida em que a moral ilu- minista pretendia ter a mesma validade da China Amrica, de Paris a Beijing,90 ela desfez qualquer diferena entre interior e exterior: entre os Estados,91 entre Europa e alm-mar,92 assim como entre Estado e indivduo,93 homem e cidado. A poltica absolutista, que repousava nestas separaes, foi questionada em toda parte.93a Por isso, necessrio investigar tambm o significado histrico que a ordem jurdica internacional europia teve para o auto-entendimento da burguesia emergente.

    O fim das guerras religiosas quer dizer, a formao das instncias soberanas que, na poca, solucionaram, cada uma a seu modo, os problemas religiosos conduziu ao estabelecimento de Estados territoriais unificados. Por fora da soberania absoluta, o interior de um Estado foi delimitado rigorosamente em relao ao espao interior dos outros Estados. A conscincia do soberano era absolutamente livre e competente para moldar o grande foro interior do Estado que representava. Assim, o prprio Estado tornou-se uma persona moralis independentemente de sua

  • CR I T I C A E CRI SE 41

    constituio interna, fosse catlica ou protestante, monrquica ou republicana perante os outros Estados, que tambm se compreendiam como personae morales.94 A delimitao de um foro interior estatal independente de outros Estados cuja integridade moral, como Hobbes havia mostrado, fundava-se apenas em seu carter estatal fez com que se desenvolvesse no exterior, obrigatoriamente, um sistema internacional e coletivo. Vattel, representante clssico do direito internacional europeu no sculo XVIII,95 disse que Hobbes foi o primeiro a dar urna idia distinta, mas ainda imperfeita, do direito internacional.96

    Para Hobbes, urna vez que o bellum omnium contra omnes esteja superado no interior do Estado, o estado de natureza no reina mais entre os homens individualmente, mas somente entre os Estados, entendidos como magni homines [grandes homens].97 O direito natural dos indivduos pr-estatais pde ser transformado em um direito pblico internacional mediante a personificao dos Estados surgidos na realidade histrica. O juspublicum europaeum [direito pblico europeu] fundava-se na rgida separao entre o foro interior do Estado, moralmente inviolvel, e as relaes exteriores e polticas dos Estados entre si. Os Estados eram absolutamente livres, e os soberanos (como, em Hobbes, o homem na condio de homem) eram submetidos somente sua prpria conscincia, sem (como os homens na condio de cidados) subordinar-se a uma autoridade institucional superior comum. Mas, nessa liberdade do direito natural, os Estados reconheciam-se uns aos outros, e de um a maneira totalmente poltica diferena dos partidos da guerra civil , como personae morales. Mediante esta forma de reconhecimento recproco, a situao de bellum omnium contra omnes no foi, como a guerra civil, de todo encerrada, mas circunscrita ao mbito das relaes internacionais.98 Cada soberano tinha o mesmo jus a bellum [direito guerra], e a guerra tom ou-se um instrumento da poltica dos prncipes, que se deixava conduzir pela razo de Estado, encontrando sua formulao comum no equilbrio europeu.99 Com o fim da guerra civil e a consolidao interior dos Estados, a guerra foi, por assim dizer, deslocada para o exterior. Muitos te

  • 42 R E I N H A R T KOSELLECK

    ricos absolutistas viam nela um a instituio permanente, voltada para evitar a guerra civil. Aceitavam a guerra, em virtude das mesmas reflexes racionais e psicolgicas (situadas fora de uma moral de convico) que permitiram controlar as agitaes religiosas. O fim das guerras civis religiosas e a restrio da guerra guerra entre Estados so dois fenmenos correlatas que rem ontam separao entre moral e poltica, o primeiro de maneira implcita e o segundo de maneira explcita.100 No direito internacional, esta separao se expressa no fato de que os Estados em guerra como os homens no estado de natureza confrontavam-se em p de igualdade, sem qualquer considerao pela justa causa moral: compreendiam-se como justus hostis [inimigos legtimos], em virtude apenas de sua qualidade de Estado e independentemente da razo moral da guerra.101

    Mas a compreenso e o estabelecimento jurdicos de um mbito poltico externo que no recorria a argumentaes morais no significava a concesso de um a carta branca para agir levianamente em tempo de guerra ou de paz; baseava-se, como a deduo Hobbesiana do Estado, na idia de que a invocao da conscincia, ligada a leis morais eternas, no um meio suficiente para estabelecer uma ordem internacional, mas, pelo contrrio, uma ameaa a esta ordem. As naes soberanas diz Vattel em 1758, quando participava, como funcionrio do Estado da Saxnia, da luta exasperante contra a Prssia de Frederico o Grande [Frederico II] so livres e independentes, submetidas apenas sua prpria conscincia, como os homens no estado de natureza.102 A conscincia das diferentes naes permanece ligada lei natural, eterna e sempre idntica a si mesma e, neste sentido est sempre submetida ao jus internum [direito interno], ao droit des gens ncessaire.m Vattel se pergunta como possvel cumprir com esta pura lei moral: Mas, como fazer valer essa Regra nos desentendimentos entre os Povos e os Soberanos que vivem juntos em estado natural?104 Trata-se de uma questo an- log qu se levantava para Hobbes quando, na guerra civil, ele perguntava como se poderia realizar o mandamento moral unvoco da paz. Assim como Hobbes no plano estatal, Vattel, no pia-

  • C R T I C A E C R I S E 43

    no das relaes internacionais, chega concluso de que esta ordem s poderia ser preservada se a conscincia dos soberanos no se limitasse apenas s leis morais, mas considerasse, sobretudo, os dados da poltica. Isto implicava lidar sempre com vrias foras que se confrontam, o que na poca significava uma multiplicidade de Estados. Em caso de conflito, ainda que no sentido de uma moral eterna apenas um lado possa ter razo, todos os envolvidos agem de boa-f, dans la bonne fo i.105 Para dar conta deste estado de coisas esboou-se, ao lado do droit dsgens nces- saire, o droit des gens volontaire. Este direito, um jus externunt [direito externo], funda as regras de uma moral de ao internacional, essencialmente poltica.106

    Ambas as formas de direito fundamentam-se na razo, mas numa razo orientada pela realidade poltica que, eventualmente, suspende o jus internum moral em favor do jus externum poltico. S ento, diz Vattel, pode-se instaurar um a ordem de paz. Esta subordinao de leis morais a necessidades polticas salta aos olhos quando se l que a invocao da conscincia moral no apenas no ajuda a term inar um conflito, mas, como todos os envolvidos agem "dam la bonne fo i, antes o acirra e perpetua. A deciso do direito, da controvrsia, no ser por isso mais favorecida, e a luta se tornar mais cruel, mais funesta em seus efeitos, mais difcil de term inar.107 Alm disso, ele acrescenta que a moralizao da guerra levaria a um a extenso da guerra, pois os neutros, sob o mandamento de um a moral estrita, seriam forados a intervir no conflito. Tambm esta submisso da m oral poltica ainda pertence ao horizonte de experincias das guerras civis religiosas.

    Vattel polemiza violentamente contra Grotius, que, segundo ele, a partir de uma violao flagrante do direito natural moral, deduz um direito de interveno de outros Estados. No decorrer de sua argumentao, esqueceria totalm ente as conseqncias previsveis. "Seu sentimento abre as portas a todos os furores do Entusiasmo e do Fanatismo, e fornece aos Ambiciosos inmeros pretextos.108 Os horrores da Guerra dos Trinta Anos ainda estavam ntidos diante dos olhos de Vattel. Conforme estabelecem os

  • 44 R E I N H A R T KOSELLECK

    tratados de paz de Westflia para a Europa Central, todos os Estados so, em seu conjunto, os fiadores de um a ordem que reprime a guerra civil. Por isso, num a passagam significativa, o prprio Vattel transgride o princpio da no-interveno,109 que no mais defendia rigorosamente e que deveria garantir a ordem interior: ele pode ser violado quando um povo pede ajuda externa para escapar de uma tirania religiosa exercida com meios polticos.

    Com esta transgresso do princpio da no-interveno, Vattel est no limite entre uma argumentao moral-burguesa e um a argumentao poltico-estatal. Cidado protestante, procurava justificar o desembarque de Guilherme dOrange na Inglaterra, assim como j havia questionado o interior do sistema absolutista, alegando a situao do povo e a tolerncia.110 Mas, ao mesmo tempo, este trecho prova claramente que o pressuposto histrico do Estado moderno ou seja, o fim da guerra civil religiosa tinha sido retomado como pressuposto interno dos Estados na ordem internacional.111 Se um Estado pe em risco sua funo de neutralizador de contradies religiosas, admite-se, em caso de necessidade, a violao de sua soberania pela interveno de outros Estados. Esta forma de interveno (rara no sculo XVIII) no ocorreria, ento, por motivos morais. Serviria, sobretudo, para garantir uma ordem poltica encarregada de impedir que as religies fanticas interviessem na poltica.

    Na luta contra o despotismo religioso, os princpios de uma moral laica civil e de uma poltica nacional supra-religiosa ainda coincidem.112 Quando deixam de coincidir, a conscincia das conseqncias cruis de um utopismo religioso motiva Vattel a submeter inclusive a moral natural poltica, a fim de m anter a ordem estatal. Para ele, a verdadeira justia moral s se encontra no alm: mas uma moral voltada para o lado de c e para as exigncias polticas recalca forosamente a conscincia e a convico individuais, pois estas se referem a leis naturais eternas ou f.113 Deste modo, a despeito de reconhecer os deveres morais da conscincia aos quais, como cidado esclarecido do sculo XVIII, rendia homenagem , Vattel chegou concluso de que o direito internacional, para ser um direito, deveria, por sua

  • CRI T I CA E CRI SE 45

    natureza, necessariamente ser e permanecer imperfeito em sentido moral.114

    Da moral de uma razo poltica nasce o droit des gens volontai- re, que, diferena do direito natural internacional, representa a verdadeira conquista do pensamento absolutista: este direito to lera o que impossvel evitar sem introduzir males maiores.115

    Consciente da imperfeio hum ana e, assim, transformando racionalmente a herana da conscincia crist do pecado, o direito internacional renuncia voluntariamente a apresentar-se diante de qualquer tribunal presidido pela moral de convico. S assim os membros da comunidade do direito internacional podiam assegurar reciprocamente sua liberdade. Este reconhecimento puramente formal e sem contedo moral podia conter injustias; mas Vattel via justamente no primado da poltica a chance de satisfazer tambm s exigncias morais pelo desvio, por assim dizer, de uma racionalizao do Estado e da guerra. A condio da melhor ordem possvel era a separao do direito internacional em droit des gens ncessaire, ao qual se submetia apenas a conscincia do soberano, sem coao externa, e em droit des gens volontaire, que comportava as regras de um mbito poltico isento de argumentos morais.

    Assim, a partir da experincia cruel das guerras civis religiosas, desenvolveu-se a ordem estatal europia. A lei, sob a qual foi criada, significava subordinao da moral poltica e marcou a poca das guerras entre os Estados e dos grandes tratados de paz: os tratados de Westflia, que representam na Europa a primeira soluo de questes suscitadas por conflitos religiosos em mbito internacional, e o tratado de Utrecht, em que se formulou o princpio do equilbrio europeu, que repousava, entre outras coisas, no reconhecimento prvio pelo qual as partes, fossem catlicos ou protestantes, monarquistas ou republicanos, asseguravam a integridade estatal umas das outras. O guardio da paz , agora, uma guerra eternamente encouraada, e o amor-prprio de um Estado faz dele o guardio da prosperidade do outro. A sociedade de Estados europeus parece ter se transformado em uma grande famlia.116 Com estas palavras, proferidas em sua aula inaugural

  • 46 R E I N H A R T KOS E1 EECK

    em lena, Schiller resumiu o resultado desse desenvolvimento e expressou de maneira clara a conscincia dessa ordem poltica.

    Portanto, a constelao bsica do sculo XVni consiste no desdobramento da moral, em virtude da estabilidade poltica previamente assegurada. Somente com a neutralizao poltica dos conflitos religiosos e com a restrio das guerras a meras guerras entre Estados abriu-se um espao social em que a nova elite pde se desenvolver. Em comparao com o passado, o cidado sentia- se seguro e protegido. Havia passado a poca da Liga e da Fronda, da Guerra dos Trinta Anos e das agitaes confessionais, as guerras civis haviam terminado e as guerras afetavam o mnimo possvel a esfera civil da burguesia. Monarcas esclarecidos prom oviam planos para melhorar a sorte de seus povos. Ao equilbrio vigente associava-se a esperana otimista de que at mesmo as guerras pudessem ser gradativamente eliminadas. No importa quo longe as esperanas se alavam individualmente. Em todo caso, no eram apenas desejos utpicos, mas conseqncias da ordem de fato e, como tais, sintomas desta ordem. A crena histrico-filosfica do homem burgus no progresso moral s ganhou sua evidncia histrica sobre o pano de fundo da segurana vigente.117 Posto em seu contexto histrico, o progresso moral , portanto, produto da estabilidade poltica. Mas a estabilidade, por seu lado, repousava num a constituio poltica qual a m oral deveria necessariamente se subordinar. No curso do seu desenvolvimento, o mundo moral, que se baseava na ordem poltica, teve que se desvencilhar desta ordem.

    O caminho que deveria tom ar tinha sido traado ao separarse, de um lado, o direito natural e, de outro, um domnio de deciso livre, entregue ao prncipe. Aos defensores de um direito natural unificado e unificador, esta separao podia parecer uma dupla moral que deveria ser desmascarada. No decorrer do desmascaramento isto , do Iluminismo anulou-se tambm o sentido histrico original desta separao: delimitar um dom nio racional em proveito da responsabilidade poltica. Passou-se a considerar a poltica somente sob o ngulo da conscincia esclarecida.

  • C R T I C A E C R I S E

    Pode-se dizer, diz um crtico esclarecido da ordem jurdica internacional, que, na medida em que os reis aumentaram seu poder sobre os sditos e a arte de governar os uniu entre si m ediante uma convivncia mais precisa, sua honra e conscincia foram falncia.118 A relao indireta com a poltica determinante para o homem burgus. Ele permanece num a espcie de reserva privada, que torna o monarca culpado da sua prpria inocncia. Em comparao com a inocncia do prncipe, o sdito era potencialmente culpado; agora, em comparao com a inocncia dos cidados, o monarca sempre culpado.

    47

  • S E G U N D O C A P T U L O

    I

    O advento da inteligncia burguesa tem como ponto de partida o foro interior privado ao qual o Estado havia confinado seus sditos. Cada passo para fora uma passo em direo luz, um ato do esclarecimento. O Iluminismo triunfa na medida em que expande o foro interior privado ao domnio pblico. Sem renunciar sua natureza privada, o domnio pblico torna-se o frum da sociedade que permeia todo o Estado. Por ltimo, a sociedade bater porta dos detentores do poder poltico para, a tambm, exigir publicidade e permisso para entrar.

    A cada passo do Iluminismo, desloca-se o limite da competncia, que o Estado absolutista havia tentado traar cuidadosamente, entre o foro interior moral e a poltica. A prxima tarefa desta investigao mostrar como a sociedade burguesa, emergente e autoconfiante, j o havia deslocado. Para tal demonstrao, voltaremos mais uma vez Inglaterra, o pas em que a burguesia moderna alcanou pela primeira vez seus traos caractersticos e que serviu de modelo ao continente. Apreciaremos como se dava a atividade extra-estatal de julgar, constitutiva da burguesia, assim como sua eficcia especfica.

    Em 1670, sob o domnio absolutista dos Stuart, John Locke, pai espiritai do Iluminismo burgus, comeou a trabalhar em seu Ensaio sobre o entendimento humano. O Ensaio foi concludo durante o exlio de seis anos na Holanda e pde ser publicado na Inglaterra depois da queda de Jaime II. Nessa obra, que seria um dos escritos sagrados da burguesia moderna, Locke tambm trata das leis que deveriam orientar a vida dos cidados. Deste modo, segundo ele, entrou em um territrio que requer especial cuidado para evitar a obscuridade e a confuso.1

    49

  • 50 R E I N H A R T KOSELLECK

    Locke distingue trs espcies de leis: em primeiro lugar, a Lei divina, que regulamenta o que pecado e o que dever (The Divine Law the Measure of Sin and Duty) e se anuncia ao homem pela natureza ou pela revelao; em segundo, a Lei civil, que regulamenta o crime e a inocncia (The Civil Law the Measure of Crimes and Innocence), ou seja, a lei do Estado, ligada coero, cuja tarefa consiste em proteger o cidado; em terceiro lugar, Locke enuncia a lei especificamente inoral (The Philosophical Law the Measure o f Virtue and Vice),2 que a medida do vcio e da virtude.

    Ao traar essas distines, Locke submete a relao entre as leis morais e as leis polticas, tal como Hobbes a havia formulado, a um a profunda reviso. Mediante a separao entre lei divina e lei civil, concede novamente um carter obrigatrio s religies e, ao mesmo tempo, provoca um a ruptura entre o direito natural e o direito poltico, reunidos por Hobbes a fim de justificar o Estado. Mas, sem deter-se nestas questes, chama deliberadamente a ateno para a terceira espcie de lei que, de um modo inteiramente novo, aparece ao lado da lei divina e da lei civil. Trata-se da lei d