protecção internacional dos direitos humanos - apontamentos

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Protecção Internacional dos Direitos Humanos Relações Internacionais | Apontamentos das Aulas 1 1. Evolução Histórica do Conceito de Direitos Humanos 1.1. Documentos de Âmbito Nacional sobre a Protecção dos Direitos do Homem 1) Os Grandes Textos Ingleses a. A Magna Carta de 1215 A Magna Carta foi o documento que numa primeira instância limitou o poder dos monarcas de Inglaterra, especialmente do Rei João Sem-Terra, subscrevendo-lhe a obrigação de se sujeitar a uma lei que tem autoridade sobre a lei terrestre – o Direito Divino – impedindo o exercício do poder absoluto. CONTEXTO – O rei Ricardo I, «Coração de Leão», envolve-se nas campanhas da Terceira Cruzada contra os muçulmanos no sentido de reconquistar Jerusalém, a terra-santa, da posse de Saladino, pelo que o príncipe João passa a ocupar o trono como novo monarca inglês. No entanto, o novo rei abusa de forma prepotente dos seus poderes políticos, pelo que passa a receber severas críticas da Igreja Católica. A Carta prevê a fiscalização do cumprimento pelo rei das normas impostas, e entre outros estabelece: (1) que o juiz, entidade especializada e autónoma, pode julgar, mas apenas mediante culpa formada dos acusados; (2) que o julgamento deve acontecer o mais depressa possível (assegurando o princípio da celeridade da justiça), (3) primeiramente as disposições sobre as heranças das(os) viúvas(os) e dos descendentes (filhos), (4) que o pagamento de dívidas deve acontecer no menor prazo possível e (5) as disposições quanto ao pagamento de impostos e os seus limites. O documento compõe-se de 63 artigos, a maioria referente a assuntos do século XIII e de importância datada (por exemplo, redução das reservas reais de caça). Um dos artigos que maior importância teve ao longo do tempo é o artigo 39º: nenhum homem livre será preso, aprisionado ou privado da sua propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de alguma maneira destruído, nem se agirá contra ele ou mandar-se-á alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra. Significa isto que o rei devia julgar os indivíduos conforme a lei, seguindo o devido processo legal, e não segundo a sua vontade, até então absoluta. O artigo 40º dispõe: "A ninguém se venderá, a ninguém se recusará ou atrasará, direito e justiça." Artigos desta génese representavam um primeiro passo de um longo processo que levou à monarquia constitucional e ao constitucionalismo. b. Petition of Rights de 1628 Este documento, produto da conjuntura política britânica do século XVII, foi enviado pelo parlamento inglês ao rei Carlos I, sob a forma de um conjunto de recomendações ao modo de governo do monarca, porque a legislatura considerava inaceitável a recorrência a empréstimos forçados por parte dos súbditos para financiar a política externa. Dispunha que (1) a prisão arbitrária é proibida (princípio «habeas corpus»), (2) a lei marcial, ou seja, a suspensão excepcional e temporária dos direitos das pessoas, não pode ser aplicada em tempo de paz, e (3) os soldados não podem invadir a propriedade privada, nem para se alojarem caso isto se tornaria necessário. c. Bill of Rights de 1689 A Bill of Rights é um acto do Parlamento inglês que reformulou, à data da sua aprovação pelas duas câmaras, sob a forma de estatuto, a Declaration of Rights de 1689. CONTEXTO: Quando o rei Jaime II foi forçado a abdicar do trono e executado publicamente na sequência da Guerra Civil inglesa, o parlamento enviou um conjunto de recados – a Declaration of Rights – por forma a regular e dirigir o governo dos novos monarcas Guilherme de Orange e Maria II. (1) Direito de petição ao rei (poder apresentar um apelo directamente ao monarca que irá avaliar a situação); (2) liberdade de expressão. 2) A Declaração dos Direitos da Virgínia e a Declaração da Independência dos EUA A ideia de Protecção dos Direitos Humanos foi inaugurada através de dois momentos históricos, (1) a Independência dos Estados Unidos da América e (2) a Revolução Francesa, em finais do século XVIII. A questão é definida através dos documentos subjacentes. a) A Declaração dos Direitos da Virgínia, 1776 [p. 26-27]; Este foi o documento que ajudou a construir a Declaração da Independência dos EUA, e deve a maior parte do seu conteúdo à redacção do proprietário e estadista George Mason. O Preâmbulo menciona que os direitos dos cidadãos são o fundamento do governo, sendo que a soberania reside no povo e é dever do governante garantir a essência da democracia. Secção 1 – todos os Homens são por natureza iguais, livres e independentes, com direitos intrínsecos e indissociáveis aos próprios, de que ninguém os

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Protecção Internacional dos Direitos Humanos Relações Internacionais | Apontamentos das Aulas

1

1. Evolução Histórica do Conceito de Direitos Humanos

1.1. Documentos de Âmbito Nacional sobre a Protecção dos Direitos do Homem 1) Os Grandes Textos Ingleses

a. A Magna Carta de 1215

A Magna Carta foi o documento que numa primeira instância limitou o poder dos monarcas de Inglaterra,

especialmente do Rei João Sem-Terra, subscrevendo-lhe a obrigação de se sujeitar a uma lei que tem autoridade sobre

a lei terrestre – o Direito Divino – impedindo o exercício do poder absoluto. CONTEXTO – O rei Ricardo I, «Coração de

Leão», envolve-se nas campanhas da Terceira Cruzada contra os muçulmanos no sentido de reconquistar Jerusalém, a

terra-santa, da posse de Saladino, pelo que o príncipe João passa a ocupar o trono como novo monarca inglês. No

entanto, o novo rei abusa de forma prepotente dos seus poderes políticos, pelo que passa a receber severas críticas da

Igreja Católica. A Carta prevê a fiscalização do cumprimento pelo rei das normas impostas, e entre outros estabelece:

(1) que o juiz, entidade especializada e autónoma, pode julgar, mas apenas mediante culpa formada dos acusados; (2)

que o julgamento deve acontecer o mais depressa possível (assegurando o princípio da celeridade da justiça), (3)

primeiramente as disposições sobre as heranças das(os) viúvas(os) e dos descendentes (filhos), (4) que o pagamento de

dívidas deve acontecer no menor prazo possível e (5) as disposições quanto ao pagamento de impostos e os seus

limites. O documento compõe-se de 63 artigos, a maioria referente a assuntos do século XIII e de importância datada

(por exemplo, redução das reservas reais de caça).

Um dos artigos que maior importância teve ao longo do tempo é o artigo 39º: nenhum homem livre será

preso, aprisionado ou privado da sua propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de alguma maneira destruído,

nem se agirá contra ele ou mandar-se-á alguém contra ele, a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da

terra. Significa isto que o rei devia julgar os indivíduos conforme a lei, seguindo o devido processo legal, e não segundo

a sua vontade, até então absoluta. O artigo 40º dispõe: "A ninguém se venderá, a ninguém se recusará ou atrasará,

direito e justiça." Artigos desta génese representavam um primeiro passo de um longo processo que levou à monarquia

constitucional e ao constitucionalismo.

b. Petition of Rights de 1628

Este documento, produto da conjuntura política britânica do século XVII, foi enviado pelo parlamento

inglês ao rei Carlos I, sob a forma de um conjunto de recomendações ao modo de governo do monarca, porque a

legislatura considerava inaceitável a recorrência a empréstimos forçados por parte dos súbditos para financiar a política

externa. Dispunha que (1) a prisão arbitrária é proibida (princípio «habeas corpus»), (2) a lei marcial, ou seja, a

suspensão excepcional e temporária dos direitos das pessoas, não pode ser aplicada em tempo de paz, e (3) os

soldados não podem invadir a propriedade privada, nem para se alojarem caso isto se tornaria necessário.

c. Bill of Rights de 1689

A Bill of Rights é um acto do Parlamento inglês que reformulou, à data da sua aprovação pelas duas

câmaras, sob a forma de estatuto, a Declaration of Rights de 1689. CONTEXTO: Quando o rei Jaime II foi forçado a

abdicar do trono e executado publicamente na sequência da Guerra Civil inglesa, o parlamento enviou um conjunto de

recados – a Declaration of Rights – por forma a regular e dirigir o governo dos novos monarcas Guilherme de Orange e

Maria II. (1) Direito de petição ao rei (poder apresentar um apelo directamente ao monarca que irá avaliar a situação);

(2) liberdade de expressão.

2) A Declaração dos Direitos da Virgínia e a Declaração da Independência dos EUA

A ideia de Protecção dos Direitos Humanos foi inaugurada através de dois momentos históricos, (1) a

Independência dos Estados Unidos da América e (2) a Revolução Francesa, em finais do século XVIII. A questão é

definida através dos documentos subjacentes.

a) A Declaração dos Direitos da Virgínia, 1776 [p. 26-27]; Este foi o documento que ajudou a construir a

Declaração da Independência dos EUA, e deve a maior parte do seu conteúdo à redacção do proprietário e estadista

George Mason. O Preâmbulo menciona que os direitos dos cidadãos são o fundamento do governo, sendo que a

soberania reside no povo e é dever do governante garantir a essência da democracia. Secção 1 – todos os Homens são

por natureza iguais, livres e independentes, com direitos intrínsecos e indissociáveis aos próprios, de que ninguém os

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pode privar (segundo uma fonte racional e já não tanto religiosa). Os Direitos Humanos nesta acepção, traduzem-se nos

direitos (1) à propriedade (a propriedade privada), (2) à felicidade e (3) à segurança. A Secção 2 refere-se à inovadora

ideia de que o poder político deriva do povo e o poder do governante deve ser escrutinado; Secção 3 – defende que o

melhor governo é aquele que nos defende de todos os excessos de má administração, e o povo tem o direito de

derrubar com esses governos se este aspecto não for comprometido; na Secção 5 advém a separação de poderes

dentro do Estado, designadamente que o legislativo e o executivo devem estar desvinculados do judicial; a Secção 6

explica o direito de votar nos representantes (ideia da eleição democrática), mas o sufrágio reservado aos cidadãos de

suficiente evidência sobre os seus interesses e vinculo com a comunidade; a Secção 7 transmite a ideia de que a

Assembleia ou o Parlamento deve decidir sobre a autorização da suspensão das leis; a Secção 8 do direito penal

declara, segundo a tradição norte-americana, a existência de um júri imparcial composto por cidadãos para intervirem

num julgamento, de forma que a sentença possa ser tomada em posição de igualdade (já que o juiz, entidade

autoritária, não compromete esse indulto); Secção 9 – proibição de impostos excessivos e de tratamentos cruéis [dará

início à Convenção contra a Tortura]; Secção 12 – Liberdade de Imprensa; Secção 13 – uma vez que as forças armadas

devem estar sempre sob estrita subordinação e controlo do poder político, o exército não pode ser organizado em

tempos de paz e é por isso substituído pelas designadas Milícias Populares, no sentido de comprometer a segurança

(existem ainda hoje nos EUA; ex.: intervenção armada em clínicas para prevenir o aborto por grupos religiosos

extremistas); Secção 16 – Sobre a plena liberdade religiosa.

b) A Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, 4 de Julho de 1776 [p. 29-30]; A

população tem o direito de votar no poder político e de o destituir, todos os homens são iguais perante o seu criador (a

entidade divina). Reúnem de novo os três direito inalienáveis, os direitos (1) à vida, (2) à liberdade e (3) à felicidade. A

Declaração introduz-se ao explicar a repressão e tirania com que a Grã-Bretanha teria subordinado as treze colónias

americanas [enumeração das maldades cometidas pela metrópole; p. ex.: colocando os militares acima do poder civil,

não permitindo que se beneficiasse de tribunais, insurreições domésticas contra os civis, prejudicando o comércio com

o exterior, etc.]. Em Congresso Geral e «com a protecção da divina providência», os seus representantes declaram-se

independentes, podendo a partir daqui (1) fazer a guerra, (2) concluir a paz, (3) estabelecer alianças e (4) estimular o

comércio, através da libertação do julgo inglês.

3) A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789 [p. 33-35]; Um documento impulsionado pela

Revolução Francesa, expõe como principal direito a felicidade geral e reúne um conjunto de direitos simples e

incontestáveis; segundo o Preâmbulo: a ignorância, o esquecimento e o desprezo dos Direitos do Homem são a

principal causa da corrupção dos governos; a formulação dos direitos vai ser feita sempre não no sentido de deveres

adjacentes (ideia desenvolvida mais tarde). Artigo 1º – Somos livres e iguais em termos de direito e a discriminação

social não é aceite; Artigo 2º – explicam -se quais são os direitos humanos do pondo de vista imprescritível, (1)

liberdade, (2) prosperidade (factor económico), (3) segurança e (4) resistência à opressão; Artigo 3º – A Soberania

reside no Povo; De seguida explicam-se os limites da liberdade e as abrangências das leis, e a igualdade de acesso a um

cargo público ou político pela via da meritocracia. Artigo 9º – Presunção da Inocência, até então teria sido sempre

aplicado a presunção da culpa, sendo que «todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa é proibido pela lei» [em

caso de dúvida, o julgamento rege-se sempre a favor do acusado, em proibição da tortura]; Artigos posteriores definem

a garantia da ordem pública (p. ex.: a Constituição da República Portuguesa proíbe propaganda partidária que incite à

guerra ou que encoraje propósitos racistas); Artigo 15º – A sociedade tem o direito de pedir contas a qualquer

funcionário público pela sua administração; Princípio da Separação dos Poderes (Artigo 16º) e inviolabilidade do Direito

à Propriedade Privada (Artigo 17º); em determinadas condições expressamente previstas pela lei e que recorram a

indemnização, o Estado tem o Direito de expropriar.

Os Direitos Humanos subscrevem-se assim, a duas gerações distintas. Em cima declaram-se

essencialmente (1) os Direitos Civis e Políticos (Direitos de 1ª Geração), aqueles de que dispomos

individualmente e que são imediatos. Mas existem ainda (2) os Direitos Económicos, Sociais e Culturais

(Direitos de 2ª Geração), traduzidos em textos que passaremos a enunciar de seguida. Estes referem-se

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aos Direitos que recorrem à intervenção activa do Estado para serem concretizados no campo colectivo;

[p. ex.: o direito à saúde, à educação, ao trabalho, à sindicalização, a bens culturais, entre outros].

4) A Constituição do México

No início do século XX surgem os primeiros documentos que abrangem, primeiramente, os Direitos de

Segunda Geração. A Constituição do México, de 1917 [p. 36-55], de inspiração marxista, é a primeira constituição do

mundo sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Devido ao seu carácter radical, vai abolir o ensino religioso e

os títulos nobiliárquicos e fiscalizar os bens da Igreja. O Artigo 4º refere a liberdade de escolha de profissão e direito ao

produto do nosso trabalho; Artigo 5º – sobre a proibição das ordens religiosas; Artigo 6º – existe liberdade de

expressão, de imprensa, de escrever e publicar, e proibição da censura (pelo Artigo 7º); Artigo 9º - liberdade de

associação pacífica; Artigo 10º – os cidadãos têm o direito de se armar para se autodefenderem, em acto de legítima

defesa previsto pelas leis; seguem-se, na área do direito penal, a prevenção de prisão arbitrária, a regulação da prisão

preventiva (a detenção só pode durar até três dias) e a proibição de maus-tratos aos prisioneiros, entre outros. Artigo

22º – enuncia-se a proibição da pena de mutilação e da pena de morte em geral, por razões políticas (perseguição

política); de seguida são enumerados os direitos relativos ao trabalho, a questões de remuneração, às cooperativas, à

educação gratuita, à cultura, etc […]; Artigo 34º – direito de voto das mulheres.

5) A Constituição da República de Weimar

A Constituição da República de Weimar, 1919 [p. 56-78], foi o documento que, após o termo da Primeira

Guerra Mundial, instituiu uma república parlamentarista naquilo que fora o Império Alemão, com o afastamento do

Kaiser Wilhelm II. A impossibilidade de se estabelecer um partido governante, a enorme instabilidade política nesta

nova situação, a humilhação das pesadas indemnizações de guerra a pagar e os problemas económicos da década de

1930 levaram mais tarde à ascensão de Hitler. No entanto, este é um texto mais equilibrado do que a Constituição do

México, pois mistura melhor os direitos civis e políticos, económicos, sociais e culturais; é a primeira vez que se

reconhece a igualdade entre géneros e o texto reúne a estrutura política e jurídica da Confederação. [p. 69] Artigo 109

– todos os alemães são iguais perante a lei e, em princípio, todos os homens e mulheres têm os mesmos direitos e

obrigações. Refere-se a inviolabilidade da propriedade; Artigo 119º - direito à família, sendo o matrimónio a base da

família e da preservação e expansão da Nação (são protegidos os direitos dos indivíduos sob vínculo de casamento

jurídico, baseando-se tal aliança, mais uma vez, na igualdade entre géneros); as crianças têm o direito de conhecer os

seus progenitores e de viver com eles (Artigo 122º protege as crianças e sobretudo os adolescentes, com formas de

trato especiais). O Artigo 137º e seguintes declaram que não existe nenhuma religião oficial, mas qualquer religião é

permitida, e que a instrução é livre (mas já não é proibida para as ordens religiosas), portanto: existência de (1) ensino

público e (2) ensino privado e, dentro deste, (a) o ensino privado genuíno e (b) de natureza religiosa. O Artigo 158º já

considera os direitos de autor, enquanto do Artigo 159º advém o direito dos sindicatos e de todos os direitos dos

trabalhadores.

1.2. A Internacionalização da Protecção dos Direitos Humanos

1) A Carta das Nações Unidas

A designada Carta de São Francisco, de 1945 [p. 82-106], evoluiu a partir da extinta Sociedade das Nações

(SDN), que reunia um conjunto de prolemas que a tornaram pouco efectiva: (1) a não adesão dos EUA, desde o início,

Estado que se encontrava na sua génese, (2) a ineficiência da sua organização interna (compreendia um órgão plenário,

a Assembleia, e um órgão restrito, o Conselho, que abrangia elementos permanentes e não-permanentes; como todos

eles tinham direito de veto, era difícil encontrar consensos sobre as matérias discutidas [encorajar o desarmamento e a

cooperação, etc.]); (3) uma história de consequentes abandonos, primeiro por parte dos vencidos da guerra, depois

outros que se consideravam desconsiderados pelas cláusulas, e (4) o problema com o mecanismo de Segurança

Colectiva, pois o Conselho não tinha capacidade de coacção pelo seu sistema descentralizado de actuação mediadora. A

Carta introduz-se com os Direitos das Minorias; Artigo 23º – cria organizações internacionais, p. ex. a OIT (Organização

Internacional do Trabalho), cuja estrutura faz representar (1) os Estados, (2) os Sindicatos e (3) o Patronato, diferente

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de outras Organizações; fala-se sobre condições de trabalho equitativas, tratamento equitativo das populações

indígenas, proibição do tráfico de mulheres e crianças (de ópio e de outras drogas nocivas [inserção de lacuna na lei]),

etc.

A Organização das Nações Unidas

A Carta das Nações Unidas foca-se essencialmente no dilema da Segurança Internacional, tema central do

imediato segundo pós-guerra, e não se preocupava tanto com os Direitos Humanos. A ONU é uma organização para-

universal, no sentido em que compreende como membros praticamente todos os países do mundo. Como consta no

sítio oficial das Nações Unidas [ver: www.un.org], Portugal aderiu como membro de pleno direito em 1955, após a sua

entrada na organização ter sido vetada, já que qualquer nova adesão tem de ser aprovada pelo Conselho de Segurança

– durante a guerra fria, a União Soviética exercia frequentemente o seu direito de veto sobre os candidatos aliados dos

EUA. No mesmo ano, ouve um pacote de entrada na organização que compreendia vários países ao mesmo tempo

(Espanha, Itália, Áustria e Irlanda, mas também países do Sudeste Asiático e da Europa do Leste). Começando por ter 55

estados-signatários em 1955, a ONU tem neste momento 193 estados-membros; destaca-se a entrada da Suíça (em

2002) como caso particular, por ter sido sempre (1) um estado-observador das Nações Unidas, e como tal, não sendo

um Estado de pleno direito, não pôde votar nos órgãos, embora tenha acompanhado os seus trabalhos e contribuído

para o seu orçamento. Após o lançamento de um referendo à população sueca sugerindo a entrada nas Nações Unidas,

em 2002, aderiu no mesmo ano juntamente com o recém-formado Timor-Leste (outros novos Estados que entraram

recentemente são Montenegro e o Sudão do Sul, porque a principal forma de reconhecimento internacional da

independência de um Estado tem passado pela admissão de entrada nas Nações Unidas). Um outro estado-observador

de grande importância é (2) a Santa Sé, que em nome do Vaticano tem o direito de se expressar, mas não vota. Tem

havido discussão sobre a entrada da Palestina como estado-membro, já que a sua consideração como Estado Soberano

tende a ser duvidosa nas Relações Internacionais, à semelhança de Israel, daí que seja classificado como um «estado-

observador como entidade». O problema resolveu-se aquando da existência de uma maioria na Assembleia a favor da

causa palestiniana, aprovando-se-lhe o estatuto de membro não-permanente. Existem ainda as organizações

internacionais, como por exemplo (1) a União Europeia, (2) a Interpol, (3) a Organização Internacional das Migrações,

(4) o Tribunal internacional sobre o Direito do Mar, que vigia e controla a aplicação da respectiva convenção, (5) a Liga

dos Estados Árabes e (6) a União Africana, todas estas como membros observadores. Outras organizações receberam

um convite para participarem como observadores nas sessões de trabalho da Assembleia Geral, mas que não têm

escritórios permanentes em Nova Iorque (quartel-general, onde a ONU se encontra sedeada, detendo ainda missões

permanentes em Genebra e Viena – as agência especializadas encontram-se em vários pontos do mundo). Outros

exemplos são (7) o Comité Internacional da Cruz Vermelha, (8) o Comité Olímpico Internacional e (9) a Ordem Soberana

de Malta.

As Nações Unidas são financiadas através de uma escala de quotas para cada Estado, proporcional à sua

capacidade económica, que subscreve a respectiva contribuição a pagar para o orçamento e despesas da organização.

Os maiores contribuidores são, por ordem decrescente (segundo os dados oficiais para 2013), os EUA, o Japão, a

Alemanha, a França, o Reino Unido e a China, sendo que a Alemanha tem vindo a aumentar o seu contributo de forma

voluntária para se tornar um membro-permanente do Conselho de Segurança. Segundo o artigo 19º da CNU, o não

pagamento desta quota resulta na perda da capacidade de votar na Assembleia Geral, sansão o que nunca tem sido

utilizada.

A estrutura das Nações Unidas compreende (1) os seus órgãos principais, que invocam quase todos os

direitos humanos: (a) a Assembleia Geral, (b) o Conselho Económico e Social, (c) o Conselho de Segurança, (d) o

Secretariado, (e) o Tribunal Internacional de Justiça e (f) o Conselho de Tutela. Para alcançarem os seus objectivos,

estes órgãos estão autorizados segundo a CNU de criarem os seus próprios (2) órgãos subsidiários.

(a) A Assembleia Geral tem como órgãos subsidiários a Comissão do Direito Internacional, o Conselho

dos Direitos Humanos, a Comissão para o Desarmamento, etc.; as Nações Unidas têm um conjunto de fundos e

programas que se confundem com as agências especializadas, comportando-se de forma semelhante, mas que, ao

contrário destas últimas, são financiadas pelo orçamento da ONU e não têm personalidade jurídica independente.

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Aqueles que reportam à Assembleia Geral são o PNUD, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (que

funciona em Genebra e cujo Alto Comissário é António Guterres), a UNICEF, o Programa Alimentar Mundial, a

Universidade das Nações Unidas (sedeada no Japão), a UNIVIR (investigação para o desarmamento) e outras entidades

(Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/SIDA), tal como organizações relacionadas, por exemplo, a Comissão

Preparatória para a Organização do Tratado de Proibição Completa de Ensaios Nucleares, a Agência Internacional da

Energia Atómica, que monitoriza o Tratado sobre a Não-Proliferação nuclear negociado pelas Nações Unidas, assim

como a Organização para a Proibição das Armas Química (detentora mais recente do Prémio Nobel da Paz/2013) e a

Organização Mundial do Comércio. A Assembleia Geral discute todos os temas e faz cooperação entre todas as

matérias, através de comissões especializadas, tendo um mandato que lhe permite agir num vasto campo de

intervenção. A Assembleia Geral produz recomendações juridicamente não-vinculativas – todos os Estados

representados têm um voto sobre cada recomendação, adoptando-se, segundo a norma prevista na CNU, maioria

absoluta em geral, e qualificada para casos particulares. A AG é interdita de recomendar o uso da força, pelo que a

questão da prática da violência é transferida para o Conselho de Segurança. Pode recomendar operações de paz pela

via dos capacetes azuis, sem que esta seja uma intervenção armada de peace inforcement (segundo o Tribunal

Internacional de Justiça). A agenda do CS precede sobre a agenda da AG em nível de obrigatoriedade, como prova o

exemplo da Guerra Fria.

(b) O Conselho Económico e Social, constituído por 54 membros, é o órgão que reporta à Assembleia

Geral o seu trabalho e coordena-se com as agências especializadas, que têm tanto um tratado jurídico como um

orçamento próprios.

(c) O Conselho de Segurança tem quinze estados-membros: cinco membros permanentes e dez

membros não-permanentes (todos os anos termina o mandato de dois anos para cinco destes dez membros). Há uma

cláusula que impede a imediata reeleição dos Estados, condicionando a sua candidatura para impedir membros semi-

permanentes [caso da SDN]. Estes são eleitos na Assembleia Geral, distribuídos por grupos regionais pelo princípio da

distribuição geográfica equitativa, (o grupo português é o Grupo dos Estados da Europa Ocidental e Outros). O Conselho

de Segurança pode, segundo o artigo 6º da Carta, proceder à resolução pacífica de conflitos (1) de forma pacífica, fazer

mediação, propor formas de conciliação e de aproximação entre as partes e recomendar arbitragem, mas também (2)

[segundo o artigo 7º] utilizar a coacção. A coacção pode ser (2.1) não militar, através do regime de sansões, como

embargos comerciais, proibição de certos armamentos (p. ex. na sequência da invasão do Kuwait pelo Iraque em 1990),

inibição de líderes políticos de viajarem para o exterior, congelamento de bens e capitais, e (2.2) militar. Esta

implementa o uso da força, uma competência que só este órgão tem. A Carta prevê que, em caso de agressão entre

Estados, o uso da força pode ser decidido de três formas: (1) pela criação de uma força semi-permanente das Nações

Unidas que não foi aprovada de início, porque a partir de 1948 os Estados se recusavam, com o início da Guerra-Fria, a

exercer esse compromisso, concebendo para este efeito o mecanismo dos capacetes azuis, exércitos capazes de usar

selectivamente a força como terceiros agentes (não previstos pela CNU); (2) pela existência de um artigo que autoriza o

Conselho de Segurança de indicar um país ou grupo (coligação) de países para utilizar a força em seu nome; p. ex. a

Guerra da Coreia ou a intervenção no Koweit na primeira Guerra do Golfo; (3) pelo envolvimento das organizações

regionais (NATO), apesar de estas não terem direito de iniciativa no que respeita o uso da força – p. ex. a intervenção

no Kosovo. O CS detém alguns órgãos subsidiários, como os Comités do Contra-Terrorismo (criados após o 11/9), os

Tribunais Penais Internacionais para a ex-Jugoslávia e o Ruanda (Tribunais Ad Hoc), todas as comissões de sansões

especializadas para regimes particulares de sansões, Comissão para a Consolidação da Paz que reporta não só ao CS

mas também à AG sobre como fazer a reconstrução pós-conflito. Incluem-se agências especializadas, designadamente a

FAO (a Organização das Nações Unidas para a Agricultura), a ICAO, a UNESCO, a União Internacional das

Telecomunicações, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial de Saúde e o Grupo do Banco

Mundial.

(d) O Secretariado é a maior administração pública internacional cujo chefe, o secretário-geral, detém

competências políticas segundo a CNU, porque pode fazer recomendações ao Conselho de Segurança. Este órgão está

dividido em vários departamentos: o departamento executivo do próprio secretário-geral e dos seus funcionários, o

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Departamento de Assuntos Políticos, o Departamento de Operações de Paz (DPKO), o Departamento do Alto-

Comissariado para os Direitos Humanos (OHCHR), etc.

(e) No Tribunal Internacional de Justiça, só os Estados podem intentar acções de justiça contra outros

Estados sobre a interpretação de artigos, a limitação de fronteiras, assuntos consulares; p. ex. a Sérvia considerou a

intervenção no Kosovo uma guerra de agressão, intentando acções contra todos os países que reconhecem a jurisdição

do TIJ.

(f) O Conselho de Tutela é um órgão das Nações Unidas inactivo desde 1994. Foi criado para assegurar

que territórios sob tutela (protectorados das Nações Unidas, formados através de mandatos da SDN ou a partir de

Estados derrotados durante a SGG) fossem administrados a favor no interesse dos habitantes locais, promovendo a paz

e a segurança dentro dos mesmos. Hoje, todos esses territórios conseguiram estabelecer um governo próprio ou

alcançar a independência.

No final da Segunda Guerra Mundial, o assunto da Segurança era o tema mais premente, em desfavor dos

Direitos Humanos, pelo que a Carta não reflecte quase este tema. Seguem-se as três breves passagens da CNU (ou

Carta de São Francisco), em que é referido o tema dos Direitos Humanos. (1) No Preâmbulo [p. 82], anuncia-se logo de

início que a Guerra é a grande preocupação do documento, seguindo-se a referência à «fé nos direitos fundamentais do

homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como

das nações […]». O 1º Capítulo dedica-se aos objectivos e princípios que vão ser perseguidos pelas Nações Unidas,

sendo eles (1) manter a paz e a segurança internacionais, (2) desenvolver relações de amizade entre as nações

baseadas no respeito do principio de igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, e sobretudo (3) «realizar

a cooperação internacional […] promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades

fundamentais». Os capítulos seguintes são dedicados aos já mencionados órgãos das Nações Unidas; [p. 94] Capítulo IX

– a cooperação económica e social internacional; o artigo 55º faz referência, mais uma vez, aos Direitos Humanos,

completando-se com uma referência às agências especializadas no artigo 57º. Nesta altura, o assunto da Protecção dos

Direitos do Homem é ainda completamente secundário.

2) Declaração Universal dos Direitos Humanos

Em 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprova uma resolução (recomendação) que constitui a

Declaração Universal dos Direitos do Homem, que com efeito são três documentos (os mais recentes complementam a

declaração universal). São eles: (1) a já referida Declaração Universal, concluída através de dois documentos jurídicos

obrigatórios, (2) o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, e (3) o Pacto Internacional sobre os Direitos

Económicos, Sociais e Culturais, ambos ratificados em 1966 e postos em vigor em 1976.

Uma declaração, não sendo um tratado, é uma recomendação da Assembleia Geral que não traz na sua

essência nenhum vínculo de obrigatoriedade jurídica, ao contrário do Pacto/Tratado. A Declaração foi votada na

Assembleia e não teve nenhum voto contra, e poucas abstenções – reunindo um significativo apoio internacional. «Soft

Law», são documentos que não constituem uma acepção plenamente jurídica de origem, e cujo poder vinculativo é

menos intenso que aquele de um documento jurídico tradicional (Tratado). A Declaração foi projectada pela Comissão

dos Direitos do Homem; algumas passagens são produto de costume internacional, embora reúnam sobretudo direitos

civis e políticos [p. 107]. A Assembleia Geral proclama, no Preâmbulo, o princípio da universalidade dos Direitos

Humanos – direitos como a igualdade de estatuto [artigo 1º], a igualdade de tratamento como base no princípio da

não-discriminação; direitos civis e políticos [artigo 3º até 21º] como o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal;

e direitos económicos, sociais e culturais [artigo 22º e seguintes]. O direito à vida é discutível e têm havido evoluções

em sua consideração, sendo a sua génese ligada à proibição da pena de morte, mas pode ter outras dimensões, p. ex.: a

questão da eutanásia, o aborto, a preocupação em diminuir as situações em que a pena de morte seja aplicada; [artigo

4º] a proibição da escravatura ou servidão perpétua; o artigo 5º menciona a proibição da tortura e de tratamentos

cruéis, desumanos e degradantes; o artigo 6º alude à personalidade jurídica; o artigo 7º invoca a igualdade perante a

lei; o artigo 8º menciona que esta declaração é invocável nos tribunais nacionais e pode interferir na jurisdição interna

dos Estados; artigo 9º – ninguém pode ser arbitrariamente preso; artigo 10º – a imparcialidade dos tribunais em

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Protecção Internacional dos Direitos Humanos Relações Internacionais | Apontamentos das Aulas

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qualquer julgamento; artigo 11º – a presunção da inocência1 substitui a presunção da culpabilidade e ninguém deve ser

condenado por um acto ou omissão que na altura da sua prática não constituía uma conduta delituosa ou criminosa;

artigo 12º – direito à vida privada, sendo que a questão da honra pessoal ocupa uma posição tradicionalmente

importante; artigo 15º – direito à nacionalidade; artigos 16º e 17º demonstram bem uma tensão ideológica entre o

ocidente e o leste no que respeita os direitos de homens e mulheres no casamento, a protecção da família e o direito à

propriedade privada; artigos 18º e 19º – liberdade de consciência e religião, e de opinião e expressão respectivamente

(de não se ser inquietado pelas suas crenças); artigos seguintes – direito de reunião e de associação pacífica [artigo

20º]; direito de se tomar parte no negócio das funções públicas e igualdade de acesso a tais cargos pela via da

meritocracia [artigo 21º].

3) Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio

Aprovada e proposta para assinatura e ratificação ou adesão em 1948, entrando em vigor na ordem

internacional em 1951, apenas foi ratificada por decreto do Presidente da República na sequência do 25 de Abril de

1974, porque o regime receava que as suas disposições contrariassem a política seguida pelo Estado Novo nos seus

territórios ultramarinos (caindo sobre a definição de genocídio). O documento entrou em vigor na ordem jurídica

portuguesa em 1999, declarando a República Portuguesa que irá interpretar o artigo VII da Convenção como

reconhecendo a obrigação de aí prevista de conceder extradição nos casos em que tal extradição não seja proibida pela

Constituição da República ou outra legislação interna.

O crime de genocídio é um crime contra a humanidade porque, e segundo o constante no artigo 1º,

sendo cometido tanto em tempo de paz como em tempo de guerra, é considerado pelas Partes Contratantes como um

crime do Direito dos Povos, que essas partes se comprometem a prevenir e a punir.

O crime de genocídio define-se aqui na perspectiva dos Direitos Humanos, em que a população civil lança

uma queixa contra o Estado porque este comete um crime de tal natureza, no ambiente do direito penal internacional.

É de sublinhar que aqui existe uma entidade pessoalmente responsável pelo crime internacional e que vai ser julgada

por isso, comprometendo a responsabilidade dos Estados (por ex. em Nuremberga e Tóquio, ou nos tribunais ad-hoc da

Ex-Jugoslávia e Ruanda). A definição do conceito é muito discutível, sendo aquela que se encontra presente na

Convenção precisamente idêntica à definição que aparece no Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal

Internacional, apesar de haverem países e delegações que pretendem melhorar a definição do crime de modo a torna-

la menos restritiva poder compreender outros delitos de instância presumivelmente menor. Estaline foi um dos

grandes opositores deste alargamento da definição, já que procedia às purgas dentro do território da União Soviética.

A definição é restritiva quanto (1) à população alvo, às pessoas que podem ser objecto de genocídio, e (2)

às provas da existência deste crime. Segundo o artigo 2º da presente Convenção, entende-se por genocídio os actos

cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. As Nações

Unidas constituíram uma comissão de inquérito liderada pelo professor italiano António Cassese, destinada a analisar

se havia crime de genocídio no território do Darfur, concluindo que a limpeza étnica é de facto um crime desta

natureza, mas que a falta de provas neste caso tornaria impossível identificar a intenção de destruir qualquer categoria

mencionada. O assunto foi levado pelo Conselho de Segurança para o Tribunal Penal Internacional, onde a acusação

veio afirmar que na verdade havia provas suficientes. O Pinochet não cometeu tecnicamente nenhum acto de

genocídio segundo a mencionada definição. A jurisdição universal permite aos Estados identificar um crime contra a

humanidade como sendo de tal forma gravoso que justifica a intervenção através da sua jurisdição interna, mesmo que

não estejam directamente envolvidos ou ligados ao crime, colmatando as limitações dos tribunais internacionais.

Na Ciência Política, as Relações Internacionais introduziram o conceito de democídio que abarca todas as

outras formas de genocídio que não se encontram formalmente consideradas pela definição da Convenção. A política

que existia na China sobre o filho único não é considerada um crime de genocídio, facto que levanta diversas dúvidas, já

1 Este princípio jurídico aplicado ao direito penal estabelece o estado de inocência como regra, em relação ao acusado da prática de

uma infracção penal. Prevê-se que só após conclusão do processo (se for demonstrada a culpabilidade do réu) é que se pode aplicar

uma pena ou sansão.

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Protecção Internacional dos Direitos Humanos Relações Internacionais | Apontamentos das Aulas

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que, ainda neste artigo, se considera: (a) o assassinato de membros do grupo, (b) atentado grave à integridade física e

mental aos membros do grupo, (c), submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua

destruição física, total ou parcial, (d) medidas destinadas a impedirem os nascimentos no seio do grupo e (e)

transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo. No artigo 3º apontam-se os actos que serão punidos nas

disposições da presente Convenção, designadamente, o genocídio em si, o acordo com vista a cometer genocídio, o

incitamento, directo e público, ao genocídio, a tentativa de genocídio e a cumplicidade no genocídio.

No artigo 5º dispõe-se que os Estados-parte têm de ter legislação penal nacional que criminalize o

genocídio, tendo uma definição semelhante daquela que aqui se apresenta (introdução do crime no direito interno).

Segundo o artigo 6º, as pessoas acusadas de genocídio ou de qualquer um dos actos enumerados no artigo 3º serão

julgados pelos tribunais competentes do Estado em cujo território o acto foi cometido ou pelo tribunal criminal

internacional que tiver competência quanto às Partes Contratantes que tenham reconhecido a sua jurisdição. Nesta

altura, não havia nenhum tribunal deste género, pelo que apenas os Estados teriam competência para o julgamento. O

artigo 7º menciona que os crimes de genocídio serão considerados crimes políticos para efeitos de extradição.

No artigo 8º é susceptível de ser introduzido o caso da Líbia – as Partes Contratantes podem recorrer a

órgãos competentes das Nações Unidas para que estes, de acordo com a Carta das Nações Unidas, tomem as medidas

que julguem apropriadas para a prevenção e repressão dos actos de genocídio ou dos outros actos enumerados no

artigo 3º. O artigo permite que o Conselho de Segurança se reúna para decidir se houve um acto de genocídio, e enviar

o caso para o TPI que isso se justifique, no sentido de julgar os indivíduos suspeitos, e, se houver um crime de genocídio

a acontecer no Estado em questão, ser aprovada uma resolução capaz de autorizar uma intervenção humanitária. No

caso da Líbia foi desta forma que se tentou argumentar para prevenir o crime que estava iminente no leste do país,

sendo aprovada pelas Nações Unidas uma operação de guerra para esse efeito.

4) Convenção contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes

Uma Convenção que se baseia já na perspectiva da protecção internacional dos Direitos Humanos e não

no Direito Penal Internacional, entende a tortura como crime de guerra, crime contra a paz e crime de genocídio, e por

isso responsabiliza pessoas criminalmente. Mas a grande distinção entre a tortura apresentada na Convenção como

instrumento dos Direitos Humanos e aquela que é entendida pelo Direito Penal Internacional é que neste último o

crime pode ser levado a efeito em relação a todas as pessoas e não apenas quando praticado por um agente público. A

Convenção [p. 234] foi adoptada e aberta a assinatura, ratificação e adesão por uma resolução da Assembleia Geral das

Nações Unidas em 1984, entrando em vigor em 1987, com base num projecto da Comissão dos Direitos Humanos

(CNUDH). O artigo 1º [p. 236] define o conceito de «tortura» como qualquer acto por meio do qual uma dor ou

sofrimento agudos, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa com os fins de, nomeadamente,

(1) obter dela ou de uma terceira pessoa informações ou confissões a punir por um acto que ela ou uma terceira pessoa

cometeu ou se suspeita que tenha cometido, (2) intimidar ou pressionar essa ou uma terceira pessoa, (3) ou por

qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminação, desde que essa dor ou esses sofrimentos sejam

infligidos por um agente público ou qualquer outra pessoa agindo a título oficial, o seu incentivo ou com o seu

consentimento expresso ou tácito. Este termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente de

sansões legítimas, inerentes a essas sansões ou por elas ocasionados. Esta definição torna-se ambígua porque (1)

compreende apenas o conceito de tortura, e não das outras penas mencionadas pelo título da Convenção; (2) não

aprofunda a expressão «dor ou sofrimento agudos», o que passa a admitir uma vasta margem de manobra para

interpretações distintas e dificulta a tomada de resoluções a respeito deste crime; (3) entende ser imprescindível a

actuação de um agente público para a existência do crime.

O comité que faz a interpretação da Convenção (Comité contra a Tortura) considera que, para além da

questão típica dos interrogatórios a prisioneiros, também os maus-tratos (mutilação genital feminina em hospitais

públicos, o assédio sexual na função pública e maus-tratos a crianças por funcionários do serviço social) devem ser

integrados nas disposições da Convenção. A proibição da tortura é absoluta (artigo 2º), vigorando tanto em tempos de

paz como em tempos de guerra, sendo o cenário mais discutido para a sua legitimação o cenário limite, e não como

técnica geralmente aplicável para (por exemplo) a punição de terroristas. Muitos dos prisioneiros de Guantánamo

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Protecção Internacional dos Direitos Humanos Relações Internacionais | Apontamentos das Aulas

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envolvidos com a Al-Qaeda que foram acusados de terrorismo, não beneficiam de tratamento humano enquanto civis,

já que não foram reconhecidos como combatentes pelos Estados Unidos na altura da sua detenção, porque como

prisioneiros de guerra teriam um estatuto favorecido.

O artigo 2º afirma ainda que os Estados-parte devem aplicar medidas nacionais para ter presente no seu

ordenamento jurídico o crime de tortura e nenhuma circunstância excepcional poderá ser invocada para justificar este

crime. O artigo 3º proíbe a expulsão ou extradição por um Estado-parte de uma pessoa para outro Estado quando

existam motivos sérios para crer que possa ser submetida a tortura; segundo o artigo 4º o crime atende a uma

infracção penal e a jurisdição aplicada deve ser a jurisdição nacional; artigo 5º – os Estados partes deverão tomar as

medidas necessárias para estabelecer a sua competência relativamente às infracções previstas (no artigo anterior), nos

seguintes casos: (a) sempre que a infracção tenha sido cometida em qualquer território sob a sua jurisdição, (b) sempre

que o presumível autor seja um nacional desse Estado; e (c) sempre que a vítima seja um nacional desse estado e este o

considere adequado (o objectivo é o de que vários Estados possam chamar até si o julgamento da pessoa ou entidade

que tortura). O artigo 7º fala sobre as possibilidades de julgamento e de extradição; Artigo 10º (informação às

autoridades e agentes públicos – (1) os Estados partes deverão providenciar para que a instrução e a informação

relativas à proibição da tortura constituam parte integrante da formação do pessoal civil ou militar encarregado da

aplicação da lei, do pessoal médico, dos agentes da função pública e de quaisquer outras pessoas que possam intervir

na guarda, no interrogatório ou no tratamento dos indivíduos sujeitos a qualquer forma de prisão, detenção ou

encarceramento; (2) os Estados partes deverão incluir esta proibição nas normas ou instruções emitidas relativamente

às obrigações e atribuições das pessoas referidas na alínea anterior. Artigo 11º – as técnicas de interrogatório têm de

ser vigiadas pelos Estados, afim de evitar qualquer caso de tortura (os relatórios nacionais denunciam o Estado

português como infractor neste aspecto). Artigo 13º – direito de apresentar queixa e de receber indemnização, sendo

que os Estados são responsáveis de providenciar reparação e reabilitação às vítimas e de fornecer todos os cuidados

médicos necessários a esse fim. Artigo 15º – confissão sob tortura (os Estados partes deverão providenciar para que

qualquer declaração que se prove ter sido obtida pela tortura não possa ser invocada como elemento de prova num

processo, salvo se for utilizada contra a pessoa acusada da prática de tortura para aprovar que a declaração foi feita);

Artigo 17º – as queixas são direccionadas ao Comité contra a Tortura, composto por 10 peritos especializados em

Direitos Humanos; Artigo 19º – o Comité recebe de quatro em quatro anos o relatório português sobre a tortura,

enviado para Genebra e defendido perante os especialistas pelas autoridades nacionais; todas as entidades (pessoas,

ONG’s e ministérios) que tenham informações sobre alegações de tortura por um agente público a nível interno devem

fornecer essas informações ao Comité e serão submetidas a um inquérito confidencial para atestar sobre a sua

validade. Artigo 21º do mecanismo de queixa de Estados contra Estados, nunca utilizado, que subentende a existência

de um prévio acordo para se poder proceder desta forma. O artigo 22º afirma que os particulares se podem queixar ao

Comité contra a Tortura por terem sido torturados, nas seguintes condições de admissibilidade: alínea (2) a queixa não

pode ser anónima, alínea (5) a queixa só pode ser analisada se não for objecto de outra instância internacional de

inquérito ou de decisão (outro comité ou o Tribunal Internacional), se o particular esgotou já todos os recursos internos

disponíveis (não se aplica em casos em que os processos de recurso excederam prazos razoáveis. Segundo o artigo 28º,

a Convenção admite reservas.

2. Os Fundamentos Político-Filosóficos da Protecção Internacional dos Direitos Humanos

2.1 Universalismo vs. Relativismo na Questão dos Direitos Humanos

Aqui entramos na discussão sobre se os Direitos Humanos são (1) universais ou (2) relativos. Existem

várias exposições teóricas sobre esta matéria, contempladas nas Relações Internacionais. A Protecção Internacional dos

Direitos Humanos nasce no final da Segunda Grande Guerra, a partir das Nações Unidas, com suporte numa perspectiva

teórica universal, já que se entende que a dignidade do Homem é igual em todo o tempo e em todo o lugar

(indivisibilidade e igualdade). Esta presunção é característica de correntes de pensamento ocidentais, e desenvolveu-se

ao longo do tempo através da Revolução Americana, da Revolução Francesa, dos direitos de 2ª geração como na

Constituição do México, etc. As Convenções das Nações Unidas (Direitos das Crianças, Repressão do Crime de

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Protecção Internacional dos Direitos Humanos Relações Internacionais | Apontamentos das Aulas

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Genocídio, Discriminação Racial, Discriminação das Mulheres, etc.) foram particularmente ratificadas pelos países

ocidentais ao longo das primeiras décadas do segundo pós-guerra (anos 1950 e 1960), mas, apesar disto, tem-se

registado recentemente uma maior distribuição geográfica neste aspecto, no momento em que outros países atípicos

decidem ser Estados partes destas Convenções. Na prática, esta dispersão dos Direitos Humanos para países da Ásia, da

África e das Américas significa que existe algum reconhecimento da universalidade dos direitos.

O facto de os países serem Estados-parte das Convenções que ratificam não significa necessariamente

que estes se comprometem, na prática, a seguir as disposições desses documentos. (1) Alguns Estados criam reservas

para poderem contornar algumas das responsabilidades de cumprimento da Convenção:

Os Estados Unidos fizeram uma reserva (uma declaração interpretativa) sobre a Declaração contra a

Tortura (da qual são Estado-parte), de tal maneira abrangente que alterou o sentido da definição de

tortura, medida que foi por isso desaprovada pelo Comité contra a Tortura, órgão político que mesmo

assim detém alguma capacidade de criar jurisprudência no sentido interpretativo. Este órgão afirmou que

as alterações seriam ilegais à luz do direito internacional, embora estivessem de acordo com a

Constituição norte-americana – a alteração do conceito alargaria muito as possibilidades de utilização da

violência para causar dor e sofrimento. Um Estado democrático por excelência não tortura, ideal que se

prende com a sua matriz identitária.

(2) O facto de essas Convenções se limitarem a lançar recomendações políticas, juridicamente não-

vinculativas aos Estados partes, procedendo em certos casos, a inquéritos ou visitas aos territórios se o Estado permitir.

(3) A questão dos Estados que não ratificaram as Convenções, como tal não sendo Estados partes das mesmas, e, a não

ser que sejam obrigados pelo direito consuetudinário, não se encontram vinculados pelas disposições do Direito

Internacional. Foi criado no Conselho dos Direitos Humanos um mecanismo – a Revisão Periódica Universal – que

obriga todos os Estados, até aqueles que não sejam Estados partes de nenhuma Convenção, a elaborar um relatório

num certo espeço de tempo sobre o seu cumprimento dos Direitos Humanos, de maneira a atestar se estão a ser

seguidos os padrões mínimos nesta matéria.

A perspectiva universalista deriva da razão (a dignidade humana é igual em todo o sítio e em todo o

tempo) e entende uma aplicação homogénea dos Direitos Humanos; em oposição, o relativismo entende os Direitos

Humanos como produto de entendimentos distintos consoante a diversidade cultural. Existem ainda as posições

intermédias, que variam entre (1) tendencionalmente universalistas e (2) tendencionalmente relativistas – as Nações

Unidas são oficialmente universalistas absolutos, já que entendem os Direitos Humanos como sendo universais,

indissociáveis, etc., embora a organização tenha feito um esforço nos últimos anos em atender ao direito das minorias e

dos povos indígenas, o que na prática coloca em causa a sua posição original.

Na tabela seguinte, partem-se de duas disciplinas teóricas diferentes: (1) a ontologia, que reporta ao

«ser», ou seja, questiona-se cobre o que é que são os Direitos Humanos – em termos ontológicos, existem as escolas

Relativistas e Universalistas; e (2) a epistemologia, que se prende com o «conhecimento», o que leva a duas posições

teórico-filosóficas dispares: os Anti-fundacionistas (verificam se existem critérios neutros e objectivos para fundar os

Direitos Humanos) e os Fundacionistas (rejeitam pontos fixos, verdades absolutas e narrativas homogéneas – são os

pós-modernistas, que defendem a impossibilidade de haver uma âncora de fundamento para os Direitos Humanos).

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Protecção Internacional dos Direitos Humanos Relações Internacionais | Apontamentos das Aulas

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ONTOLOGIA (SER)

Relativismo Universalismo

EPIS

TEM

OLO

GIA

(CO

NH

ECIM

ENTO

)

An

ti-

fun

dac

ion

ista

s

Pragmatismo Comunitarista Os relativistas tendenciais (moderados) Os Direitos Humanos na sua concepção clássica são de origem ocidental, mas o

modelo pode ser exportado por ser mais satisfatório que outros alternativos

Pragmatismo Cosmopolita

Os universalistas tendenciais (moderados)

Ken Both – pelo seu potencial emancipatório, os Direitos Humanos têm a

tendência de se tornarem universais, embora não o sejam ainda

Fun

dac

ion

ista

s Comunitarismo Tradicional (Hegel e os Realistas das Relações Internacionais)

Só existem Direitos Humanos em situações específicas, e as pessoas só têm direitos enquanto se inserem numa comunidade política (cada qual tem os seus próprios

valores e visão)

Posição Liberal do Direito Natural

Deriva da razão e afirma que os Direitos Humanos são inalienáveis das pessoas e

independentes das comunidades políticas (posição da ONU e das ONG’s); o indivíduo é

o centro Thomas Frank

2.1 A Intervenção Humanitária Armada

A intervenção humanitária armada não se encontra prevista nem permitida no quadro normativo da

Carta das Nações Unidas, embora desafie alguns fundamentos deste documento, designadamente a alínea 4 do artigo

2º, segundo a qual é proibido ameaçar ou utilizar a força nas Relações Internacionais excepto (1) em legítima defesa ou

(2) se o Conselho de Segurança decide pôr em prática uma operação de segurança colectiva contra um agressor e

mandatar para esse fim um Estado ou uma coligação de Estados, ou ainda uma organização regional para utilizar a

força em seu nome. Estas excepções põem em causa a inviolabilidade da soberania dos Estados – a alínea 7 deste artigo

fala sobre o princípio de proibição de ingerência nos assuntos internos dos Estados, exceptuando-se a isto o Conselho

de Segurança, que pode envolver-se num assunto interno a um país porque a carta lhe atribui essa capacidade,

passando o mesmo a ser um interesse internacional. Esta intervenção caracteriza-se por ser violenta, tradicionalmente

de curto prazo, pontual e cirúrgica, e dedicada a proteger civis em perigo, e faz-se sem autorização (ou à revelia) do

governo desse país, já que é o próprio governo que desempenha a fonte de insegurança da sua população.

A questão que se coloca é sobre qual a medida que o Conselho de Segurança tenderá a aplicar numa

situação de crise humana de limite (por exemplo, de limpeza étnica). Em primeira instância, não é tarefa fácil aprovar

uma intervenção militar, já que Estados como a China e a Rússia têm enorme probabilidade de votar contra tal decisão

– pretendem desta forma evitar a fragilização do princípio da soberania que poderia vir a fragmentar os seus vastos

territórios. Dada a dificuldade de se chegar a um consenso, discute-se sobre a necessidade de encontrar alternativas:

na década de 1990, as Nações Unidas procederam a uma série de operações de imposição da paz (peace inforcement),

como na Somália, no Timor, na antiga Jugoslávia, que não eram intervenções em que uma terceira parte (em vez das

Nações Unidas ou da NATO) utilizava a força ofensiva, não no sentido de preservação violenta da segurança colectiva

mas sim como operação de paz musculada.

Os resultados não foram comprometedores, o que levou o Canadá e a Noruega a apresentar em 2001 o

Relatório sobre a Responsabilidade de Proteger (mote de estratégia para serem eleitos como membros permanentes do

Conselho de Segurança). As prerrogativas do relatório foram no entanto afastadas da prioridade dos Estados Unidos

devido aos atentados terroristas do 11 de Setembro, passando a doutrina do War on Terror a ter preponderância.

Dados os pontos em certa medida controversos deste Relatório, a Sociedade Internacional tem debatido sobre a

redução dos seus excessos e do seu alcance político, já que o conceito de responsabilidade de proteger precisa de ser

consensualizado. Um Estado é definido pelas suas características tradicionais: (1) população, (2) território e (3) poder

político (governo). A isto, o relatório acresce uma quarta característica – (4) a responsabilidade pelas pessoas que vivem

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Protecção Internacional dos Direitos Humanos Relações Internacionais | Apontamentos das Aulas

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dentro do seu território, protegendo os seus Direitos Humanos. Como alguns governos são irresponsáveis por não

cumprirem esta obrigação e serem eles o foco de insegurança, a Comunidade Internacional procede à suspensão

temporária da sua soberania. O Relatório reúne três pilares de construção da responsabilidade de proteger: (1) a

responsabilidade de prevenir, (2) a responsabilidade de reagir (criar tribunais penais internacionais, julgar os culpados

de genocídio ou crimes de guerra; intervenção humanitária e convenções de paz), e (3) a responsabilidade de construir

(peace building, operações de construção da paz, ajuda ao desenvolvimento). A Cimeira Mundial de 2005 integrou uma

referência à responsabilidade de proteger, inaugurando a aceitação das Nações Unidas de discutir este conceito, sendo

que o actual secretário-geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, é um grande entusiasta desta ideia – o consenso tem

existido apensa na vertente nos mecanismos preventivos. O Relatório define critérios para a abordagem de uma

intervenção humanitária armada, como (1) os critérios da Guerra Justa, como a recta-intenção e a proporcionalidade na

acção, (2) perspectivas razoáveis de sucesso, (3) entre outros critérios enunciados no documento.

3. Os Sistemas Regionais de Protecção dos Direitos Humanos

Existem três sistemas regionais: (1) o Sistema Europeu, (2) o Sistema Africano e (3) o Sistema Inter-

Americano. De todos os sistemas regionais de protecção dos Direitos Humanos, o Sistema Europeu foi o primeiro

modelo a nascer e é hoje o mais aperfeiçoado e avançado, servindo de base aos outros dois. Todos prevêem a criação

de tribunais penais para os Direitos Humanos; as convenções do sistema internacional têm apenas uma forma de

monitorização política, enquanto na esfera regional existe um processo jurisdicional capaz de receber queixas e proferir

acórdãos juridicamente vinculativos.

Dentro do Sistema Europeu existem três organizações internacionais que têm como trabalho a integração

regional e a competência sobre assuntos de Direitos Humanos. Essas organizações são: (1) o Conselho da Europa, (2) A

União Europeia e (3) a OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, sedeada em Viena e de que fazem

parte todos os Estados europeus, os Estados Unidos e o Canadá). A dimensão dos Direitos Humanos nas comunidades

europeias aparece com a criação da União Europeia, e a aprovação do Tratado de Maastricht.

3.1 O Sistema Europeu

1) O Conselho da Europa

O Conselho da Europa encontra-se sedeado em Estrasburgo, tendo sido criado em 1949, e compreende

hoje 47 Estados membros, na sua grande maioria europeus. É uma organização internacional inter-governamental (de

mera cooperação, não havendo delegação de competências ou de soberania) e não se relaciona com os modelos de

integração económica da União Europeia. A organização trabalha, entre outros assuntos, os Direitos Humanos, o

desporto, a tortura, o património, e abarca dezenas de convenções sobre, por exemplo, as comunidades ciganas, a

liberdade de imprensa, o advento de novos direitos como aqueles relacionados com a genética, etc. Foi especialmente

importante no segundo pós-guerra, porque foi esta organização que lançou as comunidades europeias – no final da

Segunda Guerra Mundial surgiram movimentos federalistas, constituídos por ONG’s, grupos de cidadãos e partidos

políticos, que entendiam que a única maneira de a Europa permanecer em paz a fim de ser evitada uma nova guerra

era transformá-la em federação. Reuniram-se no Congresso da Haia para discutir esta possibilidade de união política,

entrando em contradição com outras vertentes que sugeriam soluções inter-governamentais, lideradas sobretudo pelo

Reino Unido, que, recusando de início entrar nas comunidades europeias, criou uma organização alternativa designada

de EFTA. Com base nas discussões entre federalistas e não-federalistas no Conselho da Europa, são lançados os

fundamentos para um modelo geral de integração económica, e para a criação das comunidades europeias: (1) a CEE,

(2) a CECA e (3) a EURATOM. Teve ainda um papel preponderante no termo da Guerra Fria em 1989, quando na

sequência da Queda do Muro de Berlim muitos países do leste ambicionaram entrar na União Europeia e na NATO, um

processo duradouro e complicado, estabelecendo-se a prévia adesão ao Conselho da Europa como passo indispensável

a esse objectivo. Foi por isso através do Conselho da Europa que a relação com estes países se começou a normalizar.

Em 1950, dois anos após ter sido aprovada a Declaração Universal dos Direitos do Homem pela Assembleia Geral das

Nações Unidas como documento político, o Conselho da Europa aprova em Roma a Convenção Europeia dos Direitos do

Homem [p. 507], acordo juridicamente vinculativo para os seus Estados partes que entrou em vigor em 1953. Esta

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Protecção Internacional dos Direitos Humanos Relações Internacionais | Apontamentos das Aulas

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Convenção reúne um conjunto de direitos essencialmente civis e políticos, e todos os Estados da União Europeia fazem

parte dela. Ao longo do tempo, outros direitos têm surgido para serem integrados nesta Convenção – para esse efeito,

têm sido acrescentados protocolos, sendo que todas as disposições modificadas ou acrescentadas por estes protocolos

são substituídos pelo Protocolo nº 11, a partir da sua entrada em vigor em 1998, que faz a reestruturação do Tribunal.

O Tribunal recebe queixas dos indivíduos à semelhança dos comités, embora não fosse de início um órgão

totalmente independente, já que uma Comissão especializada, localizada em Estrasburgo, fazia uma triagem política

prévia das queixas conforme a sua admissibilidade. Este procedimento acabou por sofrer desaprovação na década de

1990, e o critério da admissibilidade passou a ser decidido por juízes especializados. Numa reforma mais recente, o

Tribunal assumiu que não lhe é possível julgar todos os casos de violação dos Direitos Humanos que cumpram os

critérios de admissibilidade por serem demasiados, designadamente por causa da entrada de novos países do leste

europeu – o processo de admissibilidade e de proferimento de um acórdão começou, agora demasiado vagaroso,

violava o princípio da celeridade da justiça presente na Convenção Europeia, pelo que hoje são considerados apenas os

casos mais prementes, com o objectivo de julgar pelo menos estes em tempo útil. De outro modo, isto fere o princípio

da igualdade de acesso.

O artigo 2º [p. 510] consagra o direito à vida, e ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida,

salvo em execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena

pela lei – em 1950 não se proíbe ainda a pena de morte. O artigo 3º invoca a proibição da tortura; artigo 4º – proibição

da escravatura e do trabalho forçado; artigo 5º – direito à liberdade e à segurança, ninguém pode ser privado da sua

liberdade, salvo nos casos previstos pelo artigo, ou seja, se for preso em consequência de condenação por tribunal

competente ou se for preso ou detido legalmente, por desobediência a uma decisão tomada, em conformidade com a

lei, por um tribunal, ou para garantir o cumprimento de uma obrigação prescrita pela lei; o artigo 6º menciona o direito

a um processo equitativo, qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente,

num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a

determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em

matéria penal dirigida contra ela. O ponto 2) fala sobre a presunção de inocência, ser-se informado num curto prazo, da

natureza e da causa da acusação formulada, direito à defesa da acusação (defender-se a si próprio ou recorrer à

assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor, poder ser assistido

gratuitamente por um defensor oficioso (pago pelo Estado), etc.); Artigo 7º – princípio da legalidade, ninguém pode ser

condenado por uma acção ou por uma omissão que, no momento em que foi praticada, não constituía ainda uma

infracção, segundo o direito nacional ou internacional; Artigo 8º – direito ao respeito pela vida privada ou familiar;

artigo 9º – Liberdade de pensamento, de consciência e de religião; o artigo 10º menciona a liberdade de expressão, que

compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa

haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras; o artigo 11º abarca a liberdade

de reunião e de associação, incluindo o direito de, com outrem, uma pessoa fundar e filiar-se em sindicatos para a

defesa dos seus interesses; artigo 13º – direito ao recurso efectivo: qualquer pessoa cujos direitos e liberdades

reconhecidos na presente Convenção tiverem sido violados tem direito a recurso perante uma instância nacional,

mesmo quando a violação tiver sido cometida por pessoas que actuem no exercício das suas funções oficiais. O artigo

19º e seguintes [p. 515-523] criam o Tribunal Europeu, explicando o artigo 34º os seus poderes (Petições Individuais) –

o tribunal pode receber petições de qualquer pessoa singular, organização não-governamental ou grupo de particulares

que se considere vítima de violação por qualquer Alta Parte Contratante dos direitos reconhecidos na Convenção ou

nos seus protocolos. O artigo 33º sobre os Assuntos Interestaduais consagra que qualquer Alta Parte Contratante pode

submeter ao Tribunal qualquer violação das disposições da Convenção e dos seus protocolos que creia poder ser

imputada a outra Alta Parte Contratante, uma disposição à qual na prática nunca se procede. O artigo 35º sobre as

Condições de Admissibilidade refere que (1) o Tribunal só pode ser solicitado a conhecer de um assunto depois de

esgotadas todas as vias de recurso internas, em conformidade com os princípios de direito internacional geralmente

reconhecidos e num prazo de seis meses a contar da data de decisão interna definitiva; (2) o Tribunal não conhecerá de

qualquer petição individual formulada em aplicação do disposto no artigo 34º se tal petição: (a) for anónima, (b) for, no

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Protecção Internacional dos Direitos Humanos Relações Internacionais | Apontamentos das Aulas

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essencial, idêntica a uma petição anteriormente examinada pelo Tribunal ou submetida a outra instância internacional

de inquérito ou de decisão e não contiver factos novos.

Num caso de violação dos Direitos Humanos na Europa, o indivíduo tem de decidir a que entidade irá

recorrer para encontrar a resolução a este crime, conforme a via jurisdicional a ser implementada para cada situação

concreta, não sendo válido apresentar a mesma queixa tanto ao Tribunal como a um ou vários Comités das Nações

Unidas (artigo 38º - Apreciação contraditória do assunto e processo de resolução amigável). Existe a possibilidade de

esgotamento dos recursos internos quando invocado o artigo que consagra a justiça célere, designadamente em caso

de incumprimento do princípio de celeridade; o artigo 44º define ainda que a sentença do Tribunal é definitiva e é

juridicamente vinculativa (artigo 46º). É o Comité de Ministros, órgão do Conselho da Europa, que vai monitorizar o

cumprimento destes acórdãos pelos Estados, podendo ver-se obrigados a indemnizar a pessoa/o queixoso em questão,

podem mandar repetir o julgamento quando a prova foi obtida sob influência de tortura.