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Principia XXXVIII Rio de Janeiro, 2019

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Page 1: Principia XXXVIII - UERJ

Principia XXXVIII Rio de Janeiro 2019

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019

Publicaccedilatildeo semestral do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de Letras da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

Editora-Chefe

Elisa Figueira de Souza Correcirca

Editora Assistente

Maacutercia Regina de Faria da Silva

Conselho Editorial

Amoacutes Coecirclho da Silva

Dulcileide Virginio do Nascimento Braga

Eduardo da Silva de Freitas

Elisa Costa Brandatildeo de Carvalho

Elisa Massae Sasaki

Fernanda Lemos de Lima

Francisco de Assis Florecircncio

Isabel Arco Verde Santos

Janete da Silva Oliveira

Luciene de Lima Oliveira

Luiz Fernando Dias Pita

Maacutercio Luiz Moitinha Ribeiro

Marco Antocircnio Abrantes de Barros

Pedro Ivo Zaccur Leal

Satomi Takano Kitahara

Endereccedilo para correspondecircncia

Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais - Instituto de Letras

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

R Satildeo Francisco Xavier 524

Campus Maracanatilde Pavilhatildeo Joatildeo Lira Filho 11ordm andar sala 11026 Bloco B

Rio de Janeiro - RJ

CEP 20550-900

e-mail revistaprincipiauerjgmailcom

httpswwwe-publicacoesuerjbrindexphpprincipiaindex

SUMAacuteRIO

Apresentaccedilatildeo 6

Homem e mulher os criou

Isabel Arco Verde Santos 7

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

Carlos Eduardo Schmitt 13

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

Bruno Torres dos Santos 23

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher

alencariano

Heitor Victor 37

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli 45

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

Dulcileide V do Nascimento Braga 55

A agogeacute espartana

Luciene de Lima Oliveira 63

DOI httpsdoiorg1012957principia201946484

APRESENTACcedilAtildeO

Em seu primeiro volume de 2019 a Revista Principia traz agrave luz artigos

contemplando natildeo apenas o olhar para os princiacutepios de nossa cultura greco-romana-

judaico-cristatilde mas um diaacutelogo entre passado e presente

No primeiro artigo por exemplo temos uma retomada e uma anaacutelise reflexiva

sobre os termos hebraicos na narrativa da criaccedilatildeo da mulher segundo a Biacuteblia Com esta

reflexatildeo a Profa Me Isabel Arco Verde Santos (UERJ) nos leva a rever as questotildees de

gecircnero na atualidade para quiccedilaacute diminuiacute-las

No segundo artigo selecionado passando ao domiacutenio latino o Prof Me Carlos

Eduardo Schmitt (doutorando da USP) se debruccedila sobre a vida e mui extensa obra do

orador Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio no contexto do reinado de Valentiniano I

Em seguida acompanhamos o pesquisador bolsista da CAPES e doutorando da

UFRJ Bruno Torres dos Santos em sua anaacutelise comparada sobre o real trabalho do

bioacutegrafo de imperadores romanos Suetocircnio e o uso que dele fez Machado de Assis em

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Teria Machado partido do pressuposto de que tal

comparaccedilatildeo nunca seria feita

Seguindo para o domiacutenio grego outra anaacutelise comparada nos aguarda o Prof

Heitor Victor mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UERJ

analisa as marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar

utilizando-se para isso de diaacutelogo com texto de Walter Benjamin

Mergulhando ainda mais na cultura helecircnica o Prof Dr Marco Valeacuterio Colonnelli

(UFPB) nos demonstra o potencial de concisatildeo dos siacutemiles homeacutericos conforme

aparecem na Iliacuteada atraveacutes do valor simboacutelico de determinados animais conforme

anotados por Aristoacuteteles em sua Investigaccedilatildeo dos animais

Na sequecircncia dois artigos que nos fazem refletir mais sobre a vida na Antiga

Greacutecia No primeiro a Profa Dra Dulci Nascimento Braga apresenta sua pesquisa que

visa demonstrar a praacutetica registrada na literatura de diversos tipos de profissionais da

magia os quais em muito a influenciaram

No segundo a Profa Dra Luciene Oliveira reflete sobre a formaccedilatildeo educacional

belicosa dos espartanos segundo a qual a coragem parece ser o maior valor de caraacuteter

que esses homens poderiam ter

Desejamos a todos uma boa leitura

Elisa Figueira de Souza Correcirca

Editora-chefe da Principia XXXVIII

DOI httpsdoiorg1012957principia201946485

HOMEM E MULHER OS CRIOU

Isabel Arco Verde Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo retoma os textos da criaccedilatildeo e reflete reflete especificamente

na criaccedilatildeo da mulher Os termos hebraicos que acompanham a narrativa da criaccedilatildeo e se

relacionem com a figura feminina tecircm muito a nos contar Afinal qual o papel da mulher

e seu objetivo ao ser criada frente ao homem Haveria uma clara dimensatildeo de

superioridade ou inferioridade refletidas nestes relatos Em nossa sociedade de cultura

cristatilde o texto biacuteblico tem valor imensuraacutevel na relaccedilatildeo de gecircnero que vivemos em nossa

sociedade Voltar o olhar ao texto biacuteblico e buscar nele caminhos a partir da criacutetica textual

eacute uma forma de buscar respostas para diminuir as injusticcedilas que separam homens e

mulheres

PALAVRAS-CHAVE relatos de criaccedilatildeo relaccedilatildeo homem mulher Eva e Lilith

MALE AND FEMALE CREATED HE THEM

ABSTRACT This article analyzes the Hebrew texts of creation and reflects specifically

on the creation of women The Hebrew terms that accompany the creation narrative and

relate to the female figure have much to tell us What is the function of women and their

purpose when being created Would there be a clear dimension of superiority or

inferiority between men and women reflected in these texts In our Christian culture

society the biblical text has immeasurable value in the gender relationship we live in our

society Turning to the biblical text through textual criticism is a way of seeking answers

to reduce the injustices that separate men and women

KEYWORDS creation texts men and women relationship Eva and Lilith

Nosso objetivo neste primeiro momento eacute tratar do texto da criaccedilatildeo do homem e

da mulher Este texto eacute baacutesico para qualquer discussatildeo Os textos que iremos usar

encontram-se todos no livro de Bereshit ou Gecircnesis Eacute o primeiro livro da Torah ou

Pentateuco e traz nos seus primeiros capiacutetulos o relato da criaccedilatildeo

Eacute possiacutevel identificar dois relatos diferentes para esta histoacuteria Histoacuterias de

enfoques diferentes e origens tambeacutem diferentes O primeiro encontra-se em Gecircnesis

126-31 O segundo no capiacutetulo 215 a 24 deste mesmo livro Ambos tratam da criaccedilatildeo

do ser humano homem e mulher

No primeiro texto a designaccedilatildeo hebraica usada para homem eacute zakhar1 e neqebah2

para a mulher Estes termos indicam o que eacute masculino e o que eacute feminino E-mail verdesantosuolcombr 1 Zainkafresh 2 Nunqophbeit

Homem e mulher os criou

8 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a

memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para

o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino

Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser

androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto

porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem

a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o

chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos

(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila

No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam

vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o

artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo

abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma

indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o

ser humano criado

O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua

imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino

HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o

pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele

A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo

ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo

discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro

homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre

Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo

primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se

concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento

de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila

de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com

sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma

importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando

este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer

nome proacuteprio eacute especificado por natureza4

Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso

atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam

ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante

no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser

homem Adatildeo

O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo

seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida

dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A

BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o

colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem

3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino

mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a

coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino

e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito

ela ajuda a identificar o predicado

Isabel Arco Verde Santos

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eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro

homem ndash Adatildeo

Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo

cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No

verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam

e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe

seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais

especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo

hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo

havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse

eacutezer e neacuteged

Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo

acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece

ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo

desenvolvida

HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral

a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de

outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por

Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente

Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte

de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres

inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que

natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher

O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de

em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na

forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil

o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a

todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O

hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs

auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o

sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio

O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio

porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha

socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como

uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo

como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto

este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)

Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher

identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para

construir a mulher

Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus

com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que

ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute

feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de

Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua

costela

O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da

palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o

reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo

Homem e mulher os criou

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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -

semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da

humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas

entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de

homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma

narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar

que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo

que se faz da mesma mateacuteria

Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha

chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo

do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele

lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado

e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso

Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo

soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam

quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico

e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se

identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria

se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido

Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus

institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a

primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio

masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos

principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos

capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher

do povo e a estrangeira

Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos

desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser

encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe

denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de

Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo

tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa

noite)

Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou

problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa

miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de

Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa

imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por

fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES

ALMEIDA 2019)

Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a

recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta

Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o

5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv

(1986)

Isabel Arco Verde Santos

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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim

O texto mistura entatildeo as duas fontes

A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma

possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com

a qual ele HaAdam se identificasse

A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao

papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se

faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava

ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade

que culturalmente ainda se insiste afirmar

O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer

preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-

Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que

natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila

divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia

comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade

A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se

entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo

o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a

mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam

na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo

seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo

que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade

Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela

conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser

semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela

REFEREcircNCIAS

A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1958

BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967

BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995

EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer

1972 3 vol

FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa

15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira

GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de

Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital

de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt

Homem e mulher os criou

12 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo

Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988

KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix

1986

PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro

Brasiliense 1993

PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e

notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo

Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

DOI httpsdoiorg1012957principia201946508

AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO

REINADO DE VALENTINIANO I

Carlos Eduardo Schmitt

RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual

chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)

e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III

proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de

Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em

vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III

tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I

A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma

agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador

PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE

KINGDOM OF VALENTINIAN I

ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work

from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses

(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced

between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in

384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our

paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career

and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes

we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as

a bridge between the Senate and the emperor

KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I

LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL

REINADO DE VALENTINIANO I

RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la

cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes

(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I

Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

14 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como

prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo

auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes

I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de

Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador

enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador

PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

INTRODUCcedilAtildeO

Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco

foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas

obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo

em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego

(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de

seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de

estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem

que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1

(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da

religiatildeo tradicional romana

Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de

Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo

peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora

defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de

Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus

simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto

Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto

Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem

documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi

um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de

Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador

Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes

desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou

conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante

seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder

a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja

Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas

orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo

latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as

orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como

esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros

escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a

produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que

por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada

1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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ORATIONES I II E III

Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que

iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir

uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de

reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava

apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea

tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte

Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea

uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa

era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim

Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia

natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os

senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores

aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo

Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta

anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em

xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de

Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro

ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que

das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio

Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou

tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano

filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de

Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006

p 6)

A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um

sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter

solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade

e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de

que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o

que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles

de que ouviu o testemunho

Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano

como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da

Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o

estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros

anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico

como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da

nova dinastia

2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum

oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES

2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

16 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano

e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador

nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso

significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas

sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em

diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe

qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado

que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo

ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um

consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)

O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-

los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre

ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no

poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra

formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano

Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de

imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente

assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais

feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os

interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente

cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a

proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum

ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis

O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro

consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco

estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo

Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas

Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de

expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que

fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra

o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior

inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)

Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e

fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas

pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus

avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de

governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver

aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco

exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra

os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido

com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo

imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte

O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo

a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como

um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar

em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado

Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para

Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo

Carlos Eduardo Schmitt

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maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o

melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador

narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao

longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a

liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade

No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se

dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador

enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma

de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana

por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na

corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em

Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)

O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco

elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual

ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio

de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem

treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e

em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo

lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso

OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS

Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise

dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas

asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)

descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso

forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles

proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos

diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles

escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de

especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)

Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o

reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente

ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico

ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)

O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob

o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais

antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia

Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)

satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)

3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of

his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in

panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been

so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

18 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano

Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a

dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de

louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de

parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como

fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos

expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais

significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5

As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que

provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram

prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano

(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)

este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e

291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o

casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)

312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl

Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6

Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada

vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio

dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas

em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os

deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam

imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos

Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao

imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele

aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador

de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)

Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal

de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom

patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude

amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso

tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao

seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom

modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da

literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca

saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa

duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus

the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the

(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature

Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic

orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)

Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for

Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of

Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for

Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the

younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo

poliacutetica7

Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver

abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico

modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao

imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece

sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de

Domicianordquo8

CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS

As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De

acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano

havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo

auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados

a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma

foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a

criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se

agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos

traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)

Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell

(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano

vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas

proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-

57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em

395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos

internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais

de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das

quais os imperadores participavam pessoalmente

Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo

poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade

de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura

latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo

que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9

7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the

most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and

friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers

to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent

senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range

of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram

historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved

towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his

consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of

assailing the principate of Domitianrdquo

9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable

period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

20 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

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Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015b Disponiacutevel

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_______________ Oration III ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015c Disponiacutevel

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22 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

DOI httpsdoiorg1012957principia201946510

OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS

DE BRAacuteS CUBAS

Bruno Torres dos Santos

RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as

referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida

dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no

iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive

enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees

da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes

personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de

que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as

referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga

PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio

THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF

BRAS CUBAS

ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to

the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the

Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius

at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues

of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already

brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth

century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary

creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not

recover references to the culture literature and history of Ancient Rome

KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius

Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute

nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento

Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante

discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-

mail brunots_hotmailcom

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

24 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839

Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma

universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica

teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da

Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela

Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a

ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908

com 69 anos

Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio

Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e

adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos

filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta

Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos

requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser

reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de

universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO

2010 p 65)

Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute

singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses

traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e

interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo

utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio

primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras

(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia

Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do

romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps

termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se

mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho

com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de

nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida

pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)

Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os

merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero

romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute

todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para

usarmos termos proacuteprios da literatura latina

Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um

narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira

discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a

impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que

eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica

literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo

Bosi

1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 25

Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade

passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo

dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a

histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois

mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves

idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc

e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que

restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador

Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)

Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a

indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto

com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta

o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do

pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e

um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de

poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do

adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de

Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-

Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais

heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos

sem grandeza (BOSI 2006 p 180)

Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a

intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-

personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do

ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera

burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer

fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos

imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda

poliacutetica de modo velado

Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o

bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de

sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca

encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais

plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido

nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio

o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador

Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres

(ESTEVES 2015 p 1-7)

Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno

dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69

EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno

militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor

segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai

na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)

Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas

imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo

na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o

bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o

principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses

e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das

bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a

funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p

971)

A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as

referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes

fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze

primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano

Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros

anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC

Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi

usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo

agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos

O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII

designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas

antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o

panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)

A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um

gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria

sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e

agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)

Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo

iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por

uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e

seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia

adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um

medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse

projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da

cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a

primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio

A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor

de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea

fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas

cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna

loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou

ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de

Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous

ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama

Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu

um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio

tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3

3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual

Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin

Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)

Bruno Torres dos Santos

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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a

proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo

do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno

Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram

personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi

Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso

Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na

biografia suetoniana

Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus

variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne

progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet

Cl 21)

No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da

primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal

modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi

certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no

acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado

Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o

assassinato do sobrinho Caliacutegula

Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit

quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi

secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum

recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum

interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles

animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae

metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)

Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o

impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante

Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto

de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um

pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a

notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu

entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado

raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem

estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do

medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador

Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana

sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e

Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como

um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa

aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio

fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda

que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos

das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em

questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com

Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero

Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose

na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em

razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio

Rolim de Freitas explica que

O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que

o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego

Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois

aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)

Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na

Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos

iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o

argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio

relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico

legume

O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito

Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho

de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo

do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo

similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto

como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro

capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do

gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a

simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor

ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel

artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa

seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse

retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de

Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor

Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes

em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que

eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os

Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap

IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero

biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo

Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo

diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem

possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado

Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto

Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de

sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee

com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega

em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato

com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar

descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um

ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio

Bruno Torres dos Santos

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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general

em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance

Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me

encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia

a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum

cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas

amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de

Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias

Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)

Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato

ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido

firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de

Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva

adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel

por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo

historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu

opositor na Batalha de Tapso

Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo

direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso

natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo

denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua

biografia deste modo

Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui

primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu

in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem

ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar

Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus

est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul

sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore

corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad

primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti

dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)

Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava

sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como

se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um

gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua

toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas

jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com

um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma

outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos

os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu

a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte

inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado

por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem

uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria

dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo

Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram

grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para

qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente

teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia

Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o

defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um

despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente

este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente

o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o

encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso

natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser

um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta

com o fato de dispor do uacutenico tomo

Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro

e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo

natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-

se agrave janela e mostra-o ao sol

Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um

Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e

folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)

Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma

forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar

A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela

rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na

nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-

se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito

ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash

Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de

outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica

esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de

suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees

do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna

Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de

sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem

jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o

Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia

Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve

uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por

conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de

emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a

famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio

Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum

iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu

errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit

Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum

constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo

inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda

eruntrdquo (Suet Jul 31 2)

Bruno Torres dos Santos

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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o

veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as

luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um

guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas

coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e

calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos

recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas

atraveacutes das armasrdquo

Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo

sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores

plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab

uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram

ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas

vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)

Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente

ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em

grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados

das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de

um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque

introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal

dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo

Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta

desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida

pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico

no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de

Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo

antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no

capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na

tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento

Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe

derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era

descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma

meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a

Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia

com alvoroccedilo e submissatildeo

Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do

matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe

a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de

Assis Helena cap XIII p 133)

Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto

ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado

tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a

Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito

suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano

Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro

governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio

4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo

imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo

senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai

e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para

a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens

em bustos inscriccedilotildees etc

Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O

narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste

com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar

o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo

(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a

reflexatildeo

A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em

casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de

um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala

grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)

O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida

e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo

amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes

Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu

defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele

eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de

captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano

Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam

amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti

essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam

quidem (Suet Dom 3)

Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas

horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para

uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de

modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo

uma mosca

Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para

o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por

outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo

negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no

iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor

jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como

as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados

a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido

algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria

contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes

Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito

bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo

Bruno Torres dos Santos

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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores

favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado

graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo

de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos

depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal

retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o

Suetocircniordquo

Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a

uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal

capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais

precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha

traiacutedo com igual sinceridade

Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que

foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69

Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia

deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes

de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero

Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo

das Memoacuterias Poacutestumas em completude

Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-

me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos

os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso

de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com

sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em

casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute

faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave

origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a

minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste

pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)

Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador

Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem

e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas

entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a

resposta eacute Suetocircnio

Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex

prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante

ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)

Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre

a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro

pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia

incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute

proveniente da urinardquo

Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos

comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que

vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu

romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente

contraditoacuterios

Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo

de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos

concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se

mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de

Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria

Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da

traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da

Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos

os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as

referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de

Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis

podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo

IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES

Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)

Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)

Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)

Suet Tit (Suetocircnio Tito)

Suet Ves (Suet Vespasiano)

DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL

ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius

Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31

Cambridge MA Harvard University Press 1914

______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius

Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians

Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and

Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA

Harvard University Press 1914

Bruno Torres dos Santos

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REFEREcircNCIAS

BOSI Alfredo Histoacuteria concisa da literatura brasileira 43deged Satildeo Paulo Cultrix 2006

CANDIDO Antonio O sistema literaacuterio consolidado In Iniciaccedilatildeo agrave literatura Brasileira

6deg ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul 2010 p65-126

CITRONI Maacuterio (Dir) CITRONI MCONSOLINO FELABATE M NARDUCCI

(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas

Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006

ESTEVES Anderson Martins Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas

obras Principia ndash Revista do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de

Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Ano 18 nXXX p1-7

2015

FREITAS Horaacutecio Apoloquintose In SILVA Amoacutes FREITAS Horaacutecio (orgs) Um

estudo de Olmar Guterres da Silveira Apocolocintose de Secircneca Rio de Janeiro Editora

Caeteacutes 2010 p 13-18

LORIGA Sabina O limiar biograacutefico In O pequeno x da biografia agrave histoacuteria Traduccedilatildeo

Fernando Sheibe Belo Horizonte Autecircntica Editora 2011 p17-48

MELLOR Ronald The roman historians New York Routledge 1999

MORENO Isabel Historiografiacutea ndash Siglo II- Suetocircnio In CODONtildeER Carmen (Ed)

Historia de la literatura latina Madrid Catedra 1997 p643-652

SILVEIRA Francisco Maciel O conto machadiano ou ldquoa realidade eacute boa o Realismo eacute que

natildeo prestardquo Veredas ndash revista da Associaccedilatildeo Internacional de Lusitanistas Porto 4deg volume

p95-103 2001

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511

LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI

TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO

Heitor Victor

RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade

Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca

de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal

estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da

existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa

das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera

um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de

compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia

helecircnica

PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena

LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE

TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR

ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is

even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it

possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable

because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in

this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an

important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial

example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins

work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually

proved himself to be more important than the helenic tragedy itself

KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine

Introduccedilatildeo

O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua

presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente

uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de

composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende

Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E-mail heitor-victorhotmailcom

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da

seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro

grego e que perdura em nossa cultura

O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance

caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se

apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas

as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum

que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos

permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX

Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas

fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia

aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar

a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la

exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes

dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se

nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim

Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria

No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico

que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave

descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo

Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra

realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma

seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o

inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que

permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama

alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de

aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)

Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei

traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia

Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica

que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de

mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade

em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende

Benjamin por alegoria no drama traacutegico

Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das

concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao

ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com

transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter

proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo

romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular

para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma

alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo

(BENJAMIN 2011 p 171)

1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como

um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador

se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972

p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo

nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano

Heitor Victor

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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para

entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que

encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma

natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar

a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim

permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para

consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar

Benjamin reconhece que

o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o

desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido

psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso

atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso

a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o

caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)

Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa

relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A

comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer

a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como

uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no

abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode

desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral

a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que

trato neste trabalho

Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos

personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e

outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois

extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito

de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso

em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia

de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo

cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao

profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece

Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as

formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao

coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que

o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas

como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo

lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)

Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao

choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e

leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que

nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais

haacutebeis

Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce

claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e

um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos

desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos

surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)

Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da

corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os

momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da

anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance

Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de

Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o

reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de

que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente

e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de

valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas

Marcas do Heroacutei Traacutegico

As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos

de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia

uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei

neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para

si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre

da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena

consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o

ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo

dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico

Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a

abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua

proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais

indiviacuteduos Benjamin afirma

A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei

e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve

ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que

causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN

2011 p 108)

Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega

definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a

profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade

constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio

comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos

o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo

tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos

deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em

algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN

2011 p 108)

Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia

reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por

ele se sacrifica

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 41

ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se

crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes

tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em

minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR

1972 p 243)

O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega

completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O

sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se

direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua

protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento

da sua proacutepria vida

Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute

mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe

corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)

Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da

heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de

natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011

p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um

perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece

nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia

fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a

contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava

quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-

153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute

no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua

meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)

Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia

fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse

aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que

claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do

traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente

nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem

romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho

Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do

reconhecimento da proacutepria morte

Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente

heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis

moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo

mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)

Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da

morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes

de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute

sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo

quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)

Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa

Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida

contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A

culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas

se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face

angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para

clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico

No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo

as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la

na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como

todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa

consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua

lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)

Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro

ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e

genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece

e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que

expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela

ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa

heroiacutena rebate com acidez

ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais

quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de

quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite

Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe

prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos

saborosas (ALENCAR 1972 p 153)

Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais

sincera em um de seus momentos de maior entrega

ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de

minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A

dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica

do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo

que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma

(ALENCAR 1972 p 243)

Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois

precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha

entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-

se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a

projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia

Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim

encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu

papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais

beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute

melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres

Conclusatildeo

Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees

constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego

passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa

possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo

Heitor Victor

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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica

como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de

ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito

pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida

Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta

de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de

convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade

de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando

essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha

destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do

elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo

Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico

levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo

estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro

alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute

precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento

traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas

sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas

como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as

mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo

dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de

uma obra de arte

REFEREcircNCIAS

ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash

Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972

ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005

BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora

2011

CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo

Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986

PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo

Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946512

CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES

ANIMAIS NA ILIacuteADA

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)

RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero

produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste

estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra

de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de

determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o

poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela

forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega

arcaica e claacutessica

PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles

SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES

ANIMALS IN THE ILIAD

ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer

produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study

is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of

Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of

certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals

the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero

projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative

term in the archaic and classical Greek culture

KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle

1 Sobre o siacutemile homeacuterico

Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo

que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por

uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre

outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo

sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1

E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a

possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras

usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

46 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os

siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute

composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que

eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos

nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou

verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo

(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila

separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2

Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia

em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem

em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos

Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas

sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias

sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido

maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles

pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples

menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos

Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais

como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre

outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam

como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e

Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o

siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais

selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham

grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo

(Clarke 2006 p 2)

Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja

examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada

como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o

quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao

seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de

caracterizaccedilatildeo

2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador

Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto

pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter

atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das

personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que

Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa

habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em

ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre

elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo

aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de

uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de

Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e

psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e

Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 47

Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema

eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito

combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar

aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao

animal (Clark 2006 p 4)4

Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm

igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)

Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal

mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os

animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos

com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver

tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute

preciso recorrermos a Aristoacuteteles

Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece

se coadunar com o mundo homeacuterico

Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas

psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo

e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade

e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em

inteligecircncia

῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν

τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ

ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ

φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως

ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os

animais 588 a 19-25)

Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e

os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos

dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por

analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens

comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica

Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos

humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem

do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um

vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura

grega6 mas meramente empiacuterico

Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano

por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que

Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural

possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes

4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se

encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal

Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de

uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem

(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as

relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

48 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas

agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)

A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra

de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos

bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um

todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o

valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si

Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma

caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada

3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores

Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o

animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo

ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo

empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma

passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus

de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o

siacutemile

Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira

Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus

Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos

E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se

Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho

Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre

Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada

Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora

Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio

Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou

Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos

Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio

Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ

κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος

φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα

τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς

ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ

ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι

φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου

δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot

ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα

πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων

ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους

ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot

(Il VIII 17-28)

Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que

configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos

muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim

como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων

πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς

παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil

do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 49

Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois

que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e

tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece

sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar

Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por

causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma

flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar

Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι

ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ

πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί

τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν

διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ

ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-

27)

A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que

Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre

todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em

sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como

ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa

Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal

natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo

demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos

aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem

Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila

Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em

siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que

A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras

localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em

coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo

tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da

Lacocircnia

Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς

τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ

τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ

τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608

a 27-33)

Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens

e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada

no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus

De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem

E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira

Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila

Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees

Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres

As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira

Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos

Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot

οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot

῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων

ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος

ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων

ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει

ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς

αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο

(Il VIII 335-343)

Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus

nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada

animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na

representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico

natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do

animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos

deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria

muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador

Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o

caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais

ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o

leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui

iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que

Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde

outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes

entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo

que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se

ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos

golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte

Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ

οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον

Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται

λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ

πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται

πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν

(Arist HA 629 b 33- 639 a8)

A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior

como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso

jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes

Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis

satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax

Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos

De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne

Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel

τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω

σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν

ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν

(Il VII 255-257)

Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis

representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51

O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite

o combate foi interrompido pelos arautos

O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta

cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa

adversidade

Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma

multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a

face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra

entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que

de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir

para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua

corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo

᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ

διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ

σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει

ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς

ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει

κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι

κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)

Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais

intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns

siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de

alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira

Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax

E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas

E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera

Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas

Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral

Dos bois afugentam catildees e pastores

E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois

Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne

Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos

Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo

E tochas acesas que teme ainda que sedento

E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito

Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto

Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus

Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot

στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον

τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς

ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων

ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο

ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται

οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι

πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων

ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες

ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν

καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot

ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot

ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ

ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν

(Il XI 544-557)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

52 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei

em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices

psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso

feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a

situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa

bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo

Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo

comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o

nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo

Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como

voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito

gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado

do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito

e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio

A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um

desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se

trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para

a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do

comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem

exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos

depois em Aristoacuteteles

3 Conclusatildeo

O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais

produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam

muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas

tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com

maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute

descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante

Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do

conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem

o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas

REFEREcircNCIAS

ARISTOTLE Historia Animalium Transl by DArcy Wentworth Thompson Oxford

Clarendon Press 1910

___________ Historia Animalium Volume 1 Books I-X Text D M Balme amp Allan

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BOGDSON L Lacuteanimale nella morale coletiva e individuale dela antichitagrave greco-

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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

DOI httpsdoiorg1012957principia201946513

OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL

MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS

Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem

praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos

que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-

literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos

periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal

PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS

MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS

ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can

be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify

magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to

demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek

literature and influenced actions that go beyond the temporal bias

KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes

de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam

a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao

afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma

humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre

os seres humanos

Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos

no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica

Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas

(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos

dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de

bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que

haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos

de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de

outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos

(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos

E-mail dulcinascimentobragagmailcom

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

56 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como

tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal

como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de

verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar

aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito

de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que

encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou

talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a

menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm

opiniatildeo formada

Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se

restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)

mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras

Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades

eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela

eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica

O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber

que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-

nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai

maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis

que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de

atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a

sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e

ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees

direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente

Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que

determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os

mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por

impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira

Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas

mulheres

Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam

a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo

com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que

envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e

segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades

ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres

sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves

necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias

sobrenaturais

Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e

a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre

acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a

extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos

casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem

Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas

circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a

religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai

1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas

cantos e banquetes

Dulcileide V do Nascimento Braga

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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila

coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato

que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da

sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)

Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos

foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia

nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e

constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes

e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo

estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em

torno deles podendo ser controladas por certos meios

Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas

maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de

mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um

empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra

Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era

composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os

Magosrdquo

Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo

de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria

I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que

revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou

chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128

vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o

haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a

funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar

acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno

Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os

responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo

O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo

negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos

considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi

aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens

merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta

caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave

realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e

maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser

interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos

Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo

ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma

seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um

jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes

dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e

secretamente temidos por outrosrdquo

Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato

do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia

um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem

uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos

Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim

como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria

de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte

dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e

em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes

Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta

palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que

encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que

estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees

epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo

Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar

que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos

acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que

lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de

Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas

teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois

desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena

dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa

O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas

feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um

remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o

termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes

em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo

gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia

que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho

Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do

encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado

associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em

sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute

voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto

pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal

Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do

canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo

Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior

aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que

diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na

estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na

junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como

aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento

ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel

protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos

durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)

As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura

preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem

em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse

processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados

sagrados

Dulcileide V do Nascimento Braga

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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo

denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm

basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3

Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees

sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem

somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar

nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana

pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que

venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim

Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade

normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca

especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um

gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo

na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite

Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram

utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de

reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns

versos do poema

Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana

Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem

Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada

Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um

Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)

Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica

pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico

para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura

muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de

Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros

oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o

mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede

A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser

observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a

medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras

Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo

Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta

modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que

se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de

Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho

Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que

frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que

tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de

cura do deus

Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem

um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute

uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos

empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-

se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como

banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se

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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias

partes do seu corpo

A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como

tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa

teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo

de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de

se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos

eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como

magia

A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de

quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que

relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a

ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo

(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)

Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio

masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith

e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo

obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas

atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas

particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria

algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes

Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes

nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que

demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de

palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de

serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo

A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes

Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena

Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo

E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios

da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos

E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma

Cortai os peitos da mulher morena

Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono

E trazem cores tristes para os meus olhos

Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes

Traze-me para o contato casto de tuas vestes

Salva-me dos braccedilos da mulher morena

Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim

Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca

Satildeo como dois silecircncios que me paralisam

Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena

Livra-me do seu ventre como a campina matinal

Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria

Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena

Reza para murcharem as pernas da mulher morena

Reza para a velhice roer dentro da mulher morena

Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros

E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos

cantos

Dai morte cruel agrave mulher morena

Dulcileide V do Nascimento Braga

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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que

faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas

bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir

a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)

ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo

O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros

encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi

abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar

daquelea que emocionalmente lhe causa mal

A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento

concretizando-os atraveacutes das palavras

Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada

em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego

como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder

Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a

concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas

cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo

desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram

obtidas no passado

Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas

palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas

do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os

profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515

A AGOGEacute ESPARTANA

Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O

desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter

medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de

covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado

perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo

toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases

atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou

deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute

espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos

PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo

THE SPARTAN AGOGEacute

ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The

development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of

anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and

were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and

the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan

society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan

mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has

as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar

education with extremely bellicose objectives

KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus

Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A

criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado

representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto

sentido da palavra (Werner Jaeger)

E-mail oliveira-lluolcombr

A agogeacute espartana

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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo

denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio

Eurotas cercada de montanhas a nordeste

Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-

helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia

A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente

originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e

se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente

constituindo assim o povo helecircnico

Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e

foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os

espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica

peculiar a belicosidade

A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa

legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria

dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do

comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro

instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a

maneira de viver etc

Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo

tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e

desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram

expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo

comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali

comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)

Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador

da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria

I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia

Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees

culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de

expandir-se pelas armas

Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas

tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica

de los Lacedemonios I 1-2)

O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute

que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis

1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o

seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como

tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica

(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora

descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo

rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um

descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu

sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo

se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta

(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em

Vida de Licurgo

Luciene de Lima Oliveira

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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como

ldquoeducaccedilatildeordquo

Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e

chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o

exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a

educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como

tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)

Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar

constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza

grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza

Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra

ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo

adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte

a descreve (JAEGER 2001 p 114)

O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que

nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)

O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar

tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa

ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)

As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus

pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo

governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3

Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem

de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando

completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e

brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse

mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer

as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela

que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas

Paralelas)

Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente

nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida

Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um

pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta

com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees

militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas

Plutarco daacute o seguinte testemunho

Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o

aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria

em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-

lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os

cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior

parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze

anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam

somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e

3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem

seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

A agogeacute espartana

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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos

dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e

dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos

juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir

colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no

inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos

porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO

Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)

A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos

compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um

paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial

Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU

1966 p 42)

Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano

a) rhobiacutedas (termo obscuro)

b) promikkizoacutemenos (meninote)

c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)

Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano

a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)

b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)

c) melleiacuteren (futuro irene)

d) melleiacuteren (irene de segundo ano)

Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano

a) eireacuten de primeiro ano

b) eireacuten de segundo ano

c) eireacuten de terceiro ano

d) eireacuten de quarto ano

e) proteicircras (irene-chefe)

O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em

unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos

que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)

Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram

lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com

propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O

bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era

proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo

obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam

a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)

Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam

deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era

permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores

(Op cit X)

O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as

matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas

olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem

Luciene de Lima Oliveira

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 67

espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem

(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida

familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos

acampamentos militares

A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um

ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou

em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou

que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da

poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas

que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas

Paralelas)

Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando

a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se

preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma

disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros

guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto

da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)

O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com

moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em

prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos

Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato

de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir

suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)

Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como

objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como

resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram

em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na

verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra

disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)

Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo

diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na

Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta

por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)

A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas

(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se

rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana

Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma

revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam

em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos

Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o

estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro

ldquoacampamento militarrdquo permanente

Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era

dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras

pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam

participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei

A agogeacute espartana

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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de

hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve

Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e

o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees

dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos

neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada

pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que

vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que

tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar

papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito

muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar

os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo

teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes

esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por

Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que

eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que

espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que

tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)

Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que

frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada

por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois

de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem

que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os

conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan

eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo

concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994

pp 49-50)

Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de

um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os

covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que

natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a

kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja

algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara

entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana

O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo

presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p

82)

O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo

poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer

4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei

Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto

(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas

que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com

a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da

Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967

p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo

VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente

vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC

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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e

educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees

espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo

Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era

morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos

ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas

vidasrdquo (10 W 13-14)

Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A

propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha

(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)

Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade

de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um

homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)

A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave

morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa

morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo

de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus

direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)

A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo

geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da

Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute

proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos

literaacuterios diferentes

Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e

guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos

seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas

seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de

formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)

Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo

veementemente repelido do seio daquela sociedade

Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo

mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito

natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)

O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e

tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis

Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos

antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada

continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma

coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios

com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In

Vidas Paralelas)

Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por

exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um

caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)

Plutarco daacute testemunho dessa coletividade

A agogeacute espartana

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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes

antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se

acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de

si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo

de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In

Vidas Paralelas)

Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas

refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes

banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)

Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as

cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica

II 1262b 7-8)

O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia

Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta

Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que

tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era

que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o

limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das

refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)

De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios

(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue

Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La

Republica de los Lacedemonios)5

Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um

caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo

comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em

seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face

dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida

Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na

verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de

si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em

contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo

O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a

sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que

seraacute mais clara nos traacutegicos)

A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio

de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais

acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do

indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual

enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e

dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute

claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia

5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio

filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo

poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)

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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer

corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu

companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo

Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os

trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente

mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa

sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e

encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO

Histoacuteria IX 71)

Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio

nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa

em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles

se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor

belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos

abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo

tolerava

Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras

fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de

permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro

combateu furiosamente fora de seu posto

A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da

sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear

seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange

A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a

cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do

prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados

como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no

combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)

Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras

pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima

da famiacutelia vinha a poacutelis

Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto

quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada

cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o

esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)

As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam

exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos

ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo

com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do

parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)

Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos

mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos

fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de

eugenia dentro da sociedade espartana

Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas

crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou

deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses

A agogeacute espartana

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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente

natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6

Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia

disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se

dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que

natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela

vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para

ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres

que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda

parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam

se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles

que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem

resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e

ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes

(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos

fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de

que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos

(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)

A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que

Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII

aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a

rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de

uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas

de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois

do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute

e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por

principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e

Messecircnia que foram escravizados

A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as

aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo

VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da

riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o

dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes

quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute

intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo

para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)

Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo

confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem

apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os

espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica

de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente

belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros

6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a

matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes

Luciene de Lima Oliveira

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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser

destemidos diante do inimigo

Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para

a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar

maneira de viver aos adultos

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Publicaccedilatildeo semestral do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de Letras da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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Endereccedilo para correspondecircncia

Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais - Instituto de Letras

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

R Satildeo Francisco Xavier 524

Campus Maracanatilde Pavilhatildeo Joatildeo Lira Filho 11ordm andar sala 11026 Bloco B

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SUMAacuteRIO

Apresentaccedilatildeo 6

Homem e mulher os criou

Isabel Arco Verde Santos 7

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

Carlos Eduardo Schmitt 13

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

Bruno Torres dos Santos 23

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher

alencariano

Heitor Victor 37

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli 45

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

Dulcileide V do Nascimento Braga 55

A agogeacute espartana

Luciene de Lima Oliveira 63

DOI httpsdoiorg1012957principia201946484

APRESENTACcedilAtildeO

Em seu primeiro volume de 2019 a Revista Principia traz agrave luz artigos

contemplando natildeo apenas o olhar para os princiacutepios de nossa cultura greco-romana-

judaico-cristatilde mas um diaacutelogo entre passado e presente

No primeiro artigo por exemplo temos uma retomada e uma anaacutelise reflexiva

sobre os termos hebraicos na narrativa da criaccedilatildeo da mulher segundo a Biacuteblia Com esta

reflexatildeo a Profa Me Isabel Arco Verde Santos (UERJ) nos leva a rever as questotildees de

gecircnero na atualidade para quiccedilaacute diminuiacute-las

No segundo artigo selecionado passando ao domiacutenio latino o Prof Me Carlos

Eduardo Schmitt (doutorando da USP) se debruccedila sobre a vida e mui extensa obra do

orador Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio no contexto do reinado de Valentiniano I

Em seguida acompanhamos o pesquisador bolsista da CAPES e doutorando da

UFRJ Bruno Torres dos Santos em sua anaacutelise comparada sobre o real trabalho do

bioacutegrafo de imperadores romanos Suetocircnio e o uso que dele fez Machado de Assis em

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Teria Machado partido do pressuposto de que tal

comparaccedilatildeo nunca seria feita

Seguindo para o domiacutenio grego outra anaacutelise comparada nos aguarda o Prof

Heitor Victor mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UERJ

analisa as marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar

utilizando-se para isso de diaacutelogo com texto de Walter Benjamin

Mergulhando ainda mais na cultura helecircnica o Prof Dr Marco Valeacuterio Colonnelli

(UFPB) nos demonstra o potencial de concisatildeo dos siacutemiles homeacutericos conforme

aparecem na Iliacuteada atraveacutes do valor simboacutelico de determinados animais conforme

anotados por Aristoacuteteles em sua Investigaccedilatildeo dos animais

Na sequecircncia dois artigos que nos fazem refletir mais sobre a vida na Antiga

Greacutecia No primeiro a Profa Dra Dulci Nascimento Braga apresenta sua pesquisa que

visa demonstrar a praacutetica registrada na literatura de diversos tipos de profissionais da

magia os quais em muito a influenciaram

No segundo a Profa Dra Luciene Oliveira reflete sobre a formaccedilatildeo educacional

belicosa dos espartanos segundo a qual a coragem parece ser o maior valor de caraacuteter

que esses homens poderiam ter

Desejamos a todos uma boa leitura

Elisa Figueira de Souza Correcirca

Editora-chefe da Principia XXXVIII

DOI httpsdoiorg1012957principia201946485

HOMEM E MULHER OS CRIOU

Isabel Arco Verde Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo retoma os textos da criaccedilatildeo e reflete reflete especificamente

na criaccedilatildeo da mulher Os termos hebraicos que acompanham a narrativa da criaccedilatildeo e se

relacionem com a figura feminina tecircm muito a nos contar Afinal qual o papel da mulher

e seu objetivo ao ser criada frente ao homem Haveria uma clara dimensatildeo de

superioridade ou inferioridade refletidas nestes relatos Em nossa sociedade de cultura

cristatilde o texto biacuteblico tem valor imensuraacutevel na relaccedilatildeo de gecircnero que vivemos em nossa

sociedade Voltar o olhar ao texto biacuteblico e buscar nele caminhos a partir da criacutetica textual

eacute uma forma de buscar respostas para diminuir as injusticcedilas que separam homens e

mulheres

PALAVRAS-CHAVE relatos de criaccedilatildeo relaccedilatildeo homem mulher Eva e Lilith

MALE AND FEMALE CREATED HE THEM

ABSTRACT This article analyzes the Hebrew texts of creation and reflects specifically

on the creation of women The Hebrew terms that accompany the creation narrative and

relate to the female figure have much to tell us What is the function of women and their

purpose when being created Would there be a clear dimension of superiority or

inferiority between men and women reflected in these texts In our Christian culture

society the biblical text has immeasurable value in the gender relationship we live in our

society Turning to the biblical text through textual criticism is a way of seeking answers

to reduce the injustices that separate men and women

KEYWORDS creation texts men and women relationship Eva and Lilith

Nosso objetivo neste primeiro momento eacute tratar do texto da criaccedilatildeo do homem e

da mulher Este texto eacute baacutesico para qualquer discussatildeo Os textos que iremos usar

encontram-se todos no livro de Bereshit ou Gecircnesis Eacute o primeiro livro da Torah ou

Pentateuco e traz nos seus primeiros capiacutetulos o relato da criaccedilatildeo

Eacute possiacutevel identificar dois relatos diferentes para esta histoacuteria Histoacuterias de

enfoques diferentes e origens tambeacutem diferentes O primeiro encontra-se em Gecircnesis

126-31 O segundo no capiacutetulo 215 a 24 deste mesmo livro Ambos tratam da criaccedilatildeo

do ser humano homem e mulher

No primeiro texto a designaccedilatildeo hebraica usada para homem eacute zakhar1 e neqebah2

para a mulher Estes termos indicam o que eacute masculino e o que eacute feminino E-mail verdesantosuolcombr 1 Zainkafresh 2 Nunqophbeit

Homem e mulher os criou

8 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a

memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para

o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino

Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser

androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto

porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem

a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o

chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos

(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila

No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam

vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o

artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo

abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma

indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o

ser humano criado

O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua

imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino

HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o

pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele

A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo

ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo

discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro

homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre

Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo

primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se

concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento

de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila

de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com

sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma

importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando

este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer

nome proacuteprio eacute especificado por natureza4

Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso

atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam

ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante

no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser

homem Adatildeo

O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo

seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida

dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A

BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o

colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem

3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino

mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a

coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino

e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito

ela ajuda a identificar o predicado

Isabel Arco Verde Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 9

eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro

homem ndash Adatildeo

Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo

cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No

verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam

e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe

seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais

especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo

hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo

havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse

eacutezer e neacuteged

Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo

acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece

ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo

desenvolvida

HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral

a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de

outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por

Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente

Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte

de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres

inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que

natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher

O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de

em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na

forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil

o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a

todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O

hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs

auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o

sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio

O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio

porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha

socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como

uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo

como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto

este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)

Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher

identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para

construir a mulher

Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus

com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que

ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute

feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de

Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua

costela

O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da

palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o

reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo

Homem e mulher os criou

10 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -

semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da

humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas

entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de

homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma

narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar

que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo

que se faz da mesma mateacuteria

Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha

chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo

do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele

lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado

e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso

Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo

soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam

quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico

e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se

identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria

se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido

Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus

institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a

primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio

masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos

principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos

capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher

do povo e a estrangeira

Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos

desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser

encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe

denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de

Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo

tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa

noite)

Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou

problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa

miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de

Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa

imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por

fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES

ALMEIDA 2019)

Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a

recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta

Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o

5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv

(1986)

Isabel Arco Verde Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 11

capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim

O texto mistura entatildeo as duas fontes

A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma

possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com

a qual ele HaAdam se identificasse

A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao

papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se

faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava

ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade

que culturalmente ainda se insiste afirmar

O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer

preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-

Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que

natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila

divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia

comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade

A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se

entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo

o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a

mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam

na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo

seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo

que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade

Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela

conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser

semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela

REFEREcircNCIAS

A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1958

BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967

BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995

EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer

1972 3 vol

FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa

15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira

GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de

Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital

de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt

Homem e mulher os criou

12 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo

Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988

KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix

1986

PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro

Brasiliense 1993

PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e

notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo

Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

DOI httpsdoiorg1012957principia201946508

AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO

REINADO DE VALENTINIANO I

Carlos Eduardo Schmitt

RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual

chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)

e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III

proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de

Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em

vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III

tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I

A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma

agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador

PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE

KINGDOM OF VALENTINIAN I

ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work

from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses

(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced

between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in

384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our

paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career

and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes

we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as

a bridge between the Senate and the emperor

KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I

LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL

REINADO DE VALENTINIANO I

RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la

cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes

(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I

Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

14 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como

prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo

auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes

I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de

Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador

enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador

PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

INTRODUCcedilAtildeO

Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco

foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas

obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo

em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego

(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de

seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de

estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem

que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1

(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da

religiatildeo tradicional romana

Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de

Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo

peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora

defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de

Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus

simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto

Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto

Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem

documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi

um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de

Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador

Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes

desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou

conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante

seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder

a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja

Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas

orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo

latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as

orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como

esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros

escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a

produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que

por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada

1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 15

ORATIONES I II E III

Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que

iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir

uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de

reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava

apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea

tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte

Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea

uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa

era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim

Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia

natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os

senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores

aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo

Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta

anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em

xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de

Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro

ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que

das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio

Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou

tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano

filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de

Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006

p 6)

A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um

sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter

solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade

e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de

que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o

que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles

de que ouviu o testemunho

Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano

como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da

Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o

estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros

anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico

como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da

nova dinastia

2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum

oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES

2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano

e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador

nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso

significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas

sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em

diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe

qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado

que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo

ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um

consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)

O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-

los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre

ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no

poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra

formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano

Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de

imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente

assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais

feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os

interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente

cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a

proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum

ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis

O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro

consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco

estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo

Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas

Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de

expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que

fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra

o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior

inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)

Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e

fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas

pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus

avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de

governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver

aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco

exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra

os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido

com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo

imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte

O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo

a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como

um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar

em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado

Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para

Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo

Carlos Eduardo Schmitt

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maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o

melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador

narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao

longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a

liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade

No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se

dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador

enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma

de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana

por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na

corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em

Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)

O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco

elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual

ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio

de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem

treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e

em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo

lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso

OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS

Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise

dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas

asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)

descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso

forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles

proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos

diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles

escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de

especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)

Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o

reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente

ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico

ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)

O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob

o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais

antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia

Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)

satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)

3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of

his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in

panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been

so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano

Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a

dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de

louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de

parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como

fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos

expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais

significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5

As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que

provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram

prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano

(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)

este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e

291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o

casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)

312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl

Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6

Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada

vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio

dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas

em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os

deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam

imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos

Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao

imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele

aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador

de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)

Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal

de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom

patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude

amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso

tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao

seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom

modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da

literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca

saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa

duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus

the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the

(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature

Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic

orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)

Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for

Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of

Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for

Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the

younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo

poliacutetica7

Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver

abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico

modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao

imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece

sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de

Domicianordquo8

CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS

As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De

acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano

havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo

auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados

a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma

foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a

criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se

agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos

traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)

Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell

(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano

vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas

proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-

57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em

395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos

internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais

de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das

quais os imperadores participavam pessoalmente

Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo

poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade

de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura

latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo

que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9

7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the

most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and

friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers

to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent

senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range

of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram

historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved

towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his

consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of

assailing the principate of Domitianrdquo

9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable

period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015b Disponiacutevel

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_______________ Oration III ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015c Disponiacutevel

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_______________ Q Aurelii Symmachi Octo orationum ineditarum partes Ediccedilatildeo

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Christianity New York HarperCollins 2015

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construccedilatildeo do Dominato In SILVA Gilvan Ventura amp MENDES Norma Musco

Carlos Eduardo Schmitt

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22 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

DOI httpsdoiorg1012957principia201946510

OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS

DE BRAacuteS CUBAS

Bruno Torres dos Santos

RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as

referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida

dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no

iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive

enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees

da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes

personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de

que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as

referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga

PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio

THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF

BRAS CUBAS

ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to

the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the

Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius

at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues

of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already

brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth

century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary

creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not

recover references to the culture literature and history of Ancient Rome

KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius

Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute

nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento

Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante

discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-

mail brunots_hotmailcom

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839

Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma

universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica

teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da

Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela

Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a

ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908

com 69 anos

Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio

Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e

adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos

filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta

Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos

requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser

reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de

universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO

2010 p 65)

Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute

singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses

traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e

interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo

utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio

primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras

(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia

Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do

romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps

termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se

mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho

com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de

nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida

pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)

Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os

merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero

romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute

todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para

usarmos termos proacuteprios da literatura latina

Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um

narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira

discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a

impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que

eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica

literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo

Bosi

1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 25

Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade

passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo

dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a

histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois

mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves

idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc

e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que

restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador

Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)

Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a

indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto

com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta

o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do

pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e

um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de

poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do

adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de

Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-

Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais

heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos

sem grandeza (BOSI 2006 p 180)

Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a

intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-

personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do

ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera

burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer

fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos

imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda

poliacutetica de modo velado

Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o

bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de

sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca

encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais

plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido

nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio

o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador

Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres

(ESTEVES 2015 p 1-7)

Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno

dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69

EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno

militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor

segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai

na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)

Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas

imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo

na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o

bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

26 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o

principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses

e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das

bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a

funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p

971)

A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as

referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes

fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze

primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano

Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros

anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC

Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi

usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo

agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos

O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII

designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas

antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o

panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)

A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um

gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria

sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e

agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)

Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo

iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por

uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e

seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia

adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um

medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse

projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da

cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a

primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio

A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor

de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea

fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas

cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna

loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou

ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de

Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous

ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama

Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu

um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio

tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3

3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual

Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin

Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 27

Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a

proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo

do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno

Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram

personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi

Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso

Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na

biografia suetoniana

Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus

variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne

progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet

Cl 21)

No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da

primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal

modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi

certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no

acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado

Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o

assassinato do sobrinho Caliacutegula

Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit

quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi

secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum

recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum

interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles

animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae

metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)

Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o

impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante

Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto

de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um

pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a

notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu

entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado

raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem

estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do

medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador

Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana

sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e

Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como

um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa

aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio

fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda

que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos

das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em

questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com

Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero

Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose

na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em

razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio

Rolim de Freitas explica que

O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que

o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego

Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois

aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)

Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na

Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos

iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o

argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio

relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico

legume

O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito

Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho

de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo

do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo

similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto

como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro

capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do

gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a

simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor

ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel

artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa

seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse

retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de

Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor

Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes

em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que

eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os

Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap

IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero

biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo

Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo

diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem

possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado

Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto

Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de

sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee

com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega

em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato

com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar

descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um

ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio

Bruno Torres dos Santos

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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general

em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance

Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me

encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia

a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum

cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas

amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de

Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias

Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)

Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato

ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido

firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de

Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva

adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel

por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo

historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu

opositor na Batalha de Tapso

Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo

direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso

natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo

denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua

biografia deste modo

Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui

primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu

in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem

ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar

Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus

est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul

sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore

corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad

primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti

dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)

Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava

sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como

se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um

gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua

toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas

jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com

um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma

outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos

os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu

a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte

inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado

por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem

uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria

dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo

Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram

grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para

qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente

teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia

Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o

defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um

despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente

este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente

o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o

encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso

natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser

um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta

com o fato de dispor do uacutenico tomo

Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro

e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo

natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-

se agrave janela e mostra-o ao sol

Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um

Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e

folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)

Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma

forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar

A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela

rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na

nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-

se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito

ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash

Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de

outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica

esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de

suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees

do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna

Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de

sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem

jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o

Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia

Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve

uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por

conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de

emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a

famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio

Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum

iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu

errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit

Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum

constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo

inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda

eruntrdquo (Suet Jul 31 2)

Bruno Torres dos Santos

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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o

veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as

luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um

guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas

coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e

calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos

recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas

atraveacutes das armasrdquo

Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo

sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores

plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab

uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram

ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas

vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)

Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente

ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em

grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados

das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de

um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque

introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal

dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo

Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta

desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida

pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico

no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de

Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo

antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no

capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na

tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento

Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe

derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era

descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma

meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a

Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia

com alvoroccedilo e submissatildeo

Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do

matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe

a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de

Assis Helena cap XIII p 133)

Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto

ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado

tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a

Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito

suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano

Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro

governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio

4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo

imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo

senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai

e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para

a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens

em bustos inscriccedilotildees etc

Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O

narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste

com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar

o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo

(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a

reflexatildeo

A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em

casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de

um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala

grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)

O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida

e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo

amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes

Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu

defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele

eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de

captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano

Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam

amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti

essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam

quidem (Suet Dom 3)

Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas

horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para

uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de

modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo

uma mosca

Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para

o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por

outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo

negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no

iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor

jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como

as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados

a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido

algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria

contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes

Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito

bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo

Bruno Torres dos Santos

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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores

favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado

graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo

de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos

depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal

retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o

Suetocircniordquo

Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a

uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal

capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais

precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha

traiacutedo com igual sinceridade

Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que

foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69

Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia

deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes

de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero

Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo

das Memoacuterias Poacutestumas em completude

Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-

me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos

os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso

de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com

sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em

casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute

faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave

origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a

minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste

pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)

Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador

Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem

e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas

entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a

resposta eacute Suetocircnio

Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex

prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante

ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)

Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre

a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro

pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia

incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute

proveniente da urinardquo

Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos

comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que

vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu

romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente

contraditoacuterios

Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo

de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos

concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se

mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de

Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria

Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da

traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da

Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos

os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as

referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de

Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis

podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo

IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES

Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)

Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)

Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)

Suet Tit (Suetocircnio Tito)

Suet Ves (Suet Vespasiano)

DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL

ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius

Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31

Cambridge MA Harvard University Press 1914

______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius

Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians

Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and

Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA

Harvard University Press 1914

Bruno Torres dos Santos

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REFEREcircNCIAS

BOSI Alfredo Histoacuteria concisa da literatura brasileira 43deged Satildeo Paulo Cultrix 2006

CANDIDO Antonio O sistema literaacuterio consolidado In Iniciaccedilatildeo agrave literatura Brasileira

6deg ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul 2010 p65-126

CITRONI Maacuterio (Dir) CITRONI MCONSOLINO FELABATE M NARDUCCI

(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas

Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006

ESTEVES Anderson Martins Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas

obras Principia ndash Revista do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de

Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Ano 18 nXXX p1-7

2015

FREITAS Horaacutecio Apoloquintose In SILVA Amoacutes FREITAS Horaacutecio (orgs) Um

estudo de Olmar Guterres da Silveira Apocolocintose de Secircneca Rio de Janeiro Editora

Caeteacutes 2010 p 13-18

LORIGA Sabina O limiar biograacutefico In O pequeno x da biografia agrave histoacuteria Traduccedilatildeo

Fernando Sheibe Belo Horizonte Autecircntica Editora 2011 p17-48

MELLOR Ronald The roman historians New York Routledge 1999

MORENO Isabel Historiografiacutea ndash Siglo II- Suetocircnio In CODONtildeER Carmen (Ed)

Historia de la literatura latina Madrid Catedra 1997 p643-652

SILVEIRA Francisco Maciel O conto machadiano ou ldquoa realidade eacute boa o Realismo eacute que

natildeo prestardquo Veredas ndash revista da Associaccedilatildeo Internacional de Lusitanistas Porto 4deg volume

p95-103 2001

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511

LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI

TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO

Heitor Victor

RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade

Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca

de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal

estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da

existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa

das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera

um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de

compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia

helecircnica

PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena

LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE

TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR

ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is

even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it

possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable

because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in

this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an

important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial

example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins

work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually

proved himself to be more important than the helenic tragedy itself

KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine

Introduccedilatildeo

O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua

presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente

uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de

composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende

Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E-mail heitor-victorhotmailcom

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da

seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro

grego e que perdura em nossa cultura

O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance

caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se

apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas

as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum

que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos

permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX

Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas

fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia

aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar

a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la

exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes

dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se

nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim

Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria

No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico

que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave

descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo

Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra

realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma

seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o

inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que

permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama

alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de

aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)

Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei

traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia

Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica

que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de

mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade

em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende

Benjamin por alegoria no drama traacutegico

Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das

concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao

ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com

transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter

proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo

romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular

para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma

alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo

(BENJAMIN 2011 p 171)

1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como

um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador

se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972

p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo

nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano

Heitor Victor

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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para

entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que

encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma

natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar

a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim

permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para

consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar

Benjamin reconhece que

o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o

desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido

psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso

atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso

a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o

caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)

Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa

relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A

comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer

a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como

uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no

abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode

desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral

a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que

trato neste trabalho

Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos

personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e

outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois

extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito

de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso

em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia

de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo

cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao

profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece

Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as

formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao

coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que

o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas

como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo

lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)

Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao

choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e

leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que

nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais

haacutebeis

Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce

claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e

um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos

desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos

surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)

Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da

corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os

momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da

anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance

Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de

Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o

reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de

que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente

e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de

valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas

Marcas do Heroacutei Traacutegico

As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos

de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia

uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei

neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para

si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre

da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena

consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o

ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo

dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico

Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a

abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua

proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais

indiviacuteduos Benjamin afirma

A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei

e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve

ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que

causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN

2011 p 108)

Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega

definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a

profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade

constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio

comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos

o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo

tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos

deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em

algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN

2011 p 108)

Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia

reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por

ele se sacrifica

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 41

ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se

crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes

tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em

minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR

1972 p 243)

O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega

completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O

sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se

direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua

protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento

da sua proacutepria vida

Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute

mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe

corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)

Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da

heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de

natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011

p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um

perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece

nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia

fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a

contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava

quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-

153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute

no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua

meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)

Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia

fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse

aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que

claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do

traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente

nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem

romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho

Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do

reconhecimento da proacutepria morte

Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente

heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis

moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo

mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)

Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da

morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes

de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute

sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo

quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)

Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa

Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida

contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A

culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas

se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face

angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para

clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico

No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo

as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la

na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como

todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa

consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua

lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)

Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro

ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e

genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece

e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que

expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela

ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa

heroiacutena rebate com acidez

ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais

quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de

quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite

Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe

prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos

saborosas (ALENCAR 1972 p 153)

Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais

sincera em um de seus momentos de maior entrega

ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de

minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A

dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica

do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo

que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma

(ALENCAR 1972 p 243)

Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois

precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha

entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-

se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a

projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia

Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim

encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu

papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais

beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute

melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres

Conclusatildeo

Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees

constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego

passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa

possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo

Heitor Victor

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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica

como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de

ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito

pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida

Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta

de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de

convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade

de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando

essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha

destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do

elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo

Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico

levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo

estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro

alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute

precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento

traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas

sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas

como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as

mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo

dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de

uma obra de arte

REFEREcircNCIAS

ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash

Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972

ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005

BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora

2011

CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo

Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986

PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo

Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946512

CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES

ANIMAIS NA ILIacuteADA

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)

RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero

produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste

estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra

de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de

determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o

poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela

forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega

arcaica e claacutessica

PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles

SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES

ANIMALS IN THE ILIAD

ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer

produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study

is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of

Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of

certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals

the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero

projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative

term in the archaic and classical Greek culture

KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle

1 Sobre o siacutemile homeacuterico

Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo

que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por

uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre

outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo

sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1

E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a

possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras

usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

46 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os

siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute

composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que

eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos

nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou

verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo

(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila

separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2

Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia

em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem

em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos

Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas

sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias

sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido

maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles

pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples

menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos

Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais

como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre

outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam

como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e

Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o

siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais

selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham

grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo

(Clarke 2006 p 2)

Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja

examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada

como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o

quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao

seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de

caracterizaccedilatildeo

2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador

Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto

pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter

atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das

personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que

Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa

habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em

ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre

elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo

aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de

uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de

Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e

psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e

Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 47

Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema

eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito

combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar

aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao

animal (Clark 2006 p 4)4

Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm

igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)

Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal

mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os

animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos

com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver

tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute

preciso recorrermos a Aristoacuteteles

Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece

se coadunar com o mundo homeacuterico

Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas

psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo

e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade

e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em

inteligecircncia

῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν

τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ

ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ

φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως

ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os

animais 588 a 19-25)

Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e

os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos

dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por

analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens

comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica

Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos

humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem

do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um

vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura

grega6 mas meramente empiacuterico

Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano

por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que

Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural

possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes

4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se

encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal

Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de

uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem

(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as

relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

48 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas

agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)

A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra

de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos

bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um

todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o

valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si

Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma

caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada

3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores

Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o

animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo

ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo

empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma

passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus

de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o

siacutemile

Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira

Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus

Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos

E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se

Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho

Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre

Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada

Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora

Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio

Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou

Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos

Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio

Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ

κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος

φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα

τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς

ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ

ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι

φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου

δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot

ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα

πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων

ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους

ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot

(Il VIII 17-28)

Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que

configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos

muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim

como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων

πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς

παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil

do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 49

Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois

que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e

tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece

sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar

Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por

causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma

flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar

Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι

ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ

πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί

τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν

διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ

ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-

27)

A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que

Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre

todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em

sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como

ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa

Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal

natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo

demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos

aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem

Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila

Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em

siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que

A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras

localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em

coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo

tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da

Lacocircnia

Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς

τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ

τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ

τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608

a 27-33)

Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens

e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada

no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus

De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem

E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira

Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila

Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees

Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres

As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira

Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos

Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot

οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot

῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων

ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος

ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων

ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει

ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς

αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο

(Il VIII 335-343)

Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus

nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada

animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na

representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico

natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do

animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos

deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria

muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador

Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o

caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais

ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o

leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui

iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que

Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde

outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes

entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo

que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se

ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos

golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte

Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ

οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον

Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται

λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ

πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται

πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν

(Arist HA 629 b 33- 639 a8)

A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior

como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso

jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes

Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis

satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax

Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos

De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne

Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel

τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω

σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν

ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν

(Il VII 255-257)

Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis

representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51

O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite

o combate foi interrompido pelos arautos

O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta

cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa

adversidade

Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma

multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a

face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra

entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que

de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir

para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua

corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo

᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ

διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ

σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει

ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς

ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει

κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι

κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)

Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais

intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns

siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de

alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira

Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax

E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas

E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera

Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas

Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral

Dos bois afugentam catildees e pastores

E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois

Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne

Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos

Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo

E tochas acesas que teme ainda que sedento

E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito

Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto

Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus

Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot

στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον

τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς

ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων

ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο

ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται

οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι

πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων

ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες

ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν

καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot

ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot

ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ

ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν

(Il XI 544-557)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei

em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices

psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso

feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a

situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa

bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo

Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo

comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o

nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo

Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como

voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito

gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado

do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito

e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio

A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um

desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se

trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para

a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do

comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem

exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos

depois em Aristoacuteteles

3 Conclusatildeo

O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais

produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam

muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas

tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com

maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute

descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante

Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do

conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem

o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas

REFEREcircNCIAS

ARISTOTLE Historia Animalium Transl by DArcy Wentworth Thompson Oxford

Clarendon Press 1910

___________ Historia Animalium Volume 1 Books I-X Text D M Balme amp Allan

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BOGDSON L Lacuteanimale nella morale coletiva e individuale dela antichitagrave greco-

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Marco V C Colonnelli

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Parry Oxford Oxford University Press 1971

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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

DOI httpsdoiorg1012957principia201946513

OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL

MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS

Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem

praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos

que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-

literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos

periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal

PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS

MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS

ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can

be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify

magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to

demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek

literature and influenced actions that go beyond the temporal bias

KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes

de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam

a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao

afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma

humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre

os seres humanos

Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos

no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica

Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas

(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos

dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de

bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que

haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos

de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de

outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos

(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos

E-mail dulcinascimentobragagmailcom

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como

tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal

como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de

verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar

aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito

de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que

encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou

talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a

menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm

opiniatildeo formada

Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se

restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)

mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras

Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades

eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela

eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica

O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber

que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-

nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai

maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis

que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de

atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a

sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e

ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees

direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente

Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que

determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os

mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por

impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira

Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas

mulheres

Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam

a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo

com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que

envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e

segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades

ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres

sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves

necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias

sobrenaturais

Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e

a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre

acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a

extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos

casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem

Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas

circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a

religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai

1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas

cantos e banquetes

Dulcileide V do Nascimento Braga

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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila

coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato

que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da

sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)

Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos

foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia

nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e

constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes

e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo

estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em

torno deles podendo ser controladas por certos meios

Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas

maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de

mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um

empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra

Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era

composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os

Magosrdquo

Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo

de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria

I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que

revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou

chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128

vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o

haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a

funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar

acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno

Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os

responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo

O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo

negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos

considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi

aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens

merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta

caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave

realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e

maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser

interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos

Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo

ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma

seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um

jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes

dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e

secretamente temidos por outrosrdquo

Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato

do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia

um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem

uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos

Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim

como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria

de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte

dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e

em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes

Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta

palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que

encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que

estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees

epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo

Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar

que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos

acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que

lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de

Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas

teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois

desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena

dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa

O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas

feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um

remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o

termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes

em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo

gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia

que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho

Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do

encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado

associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em

sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute

voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto

pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal

Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do

canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo

Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior

aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que

diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na

estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na

junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como

aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento

ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel

protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos

durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)

As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura

preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem

em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse

processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados

sagrados

Dulcileide V do Nascimento Braga

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 59

Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo

denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm

basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3

Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees

sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem

somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar

nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana

pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que

venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim

Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade

normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca

especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um

gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo

na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite

Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram

utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de

reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns

versos do poema

Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana

Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem

Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada

Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um

Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)

Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica

pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico

para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura

muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de

Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros

oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o

mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede

A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser

observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a

medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras

Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo

Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta

modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que

se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de

Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho

Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que

frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que

tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de

cura do deus

Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem

um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute

uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos

empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-

se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como

banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias

partes do seu corpo

A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como

tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa

teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo

de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de

se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos

eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como

magia

A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de

quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que

relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a

ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo

(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)

Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio

masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith

e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo

obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas

atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas

particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria

algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes

Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes

nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que

demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de

palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de

serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo

A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes

Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena

Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo

E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios

da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos

E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma

Cortai os peitos da mulher morena

Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono

E trazem cores tristes para os meus olhos

Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes

Traze-me para o contato casto de tuas vestes

Salva-me dos braccedilos da mulher morena

Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim

Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca

Satildeo como dois silecircncios que me paralisam

Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena

Livra-me do seu ventre como a campina matinal

Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria

Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena

Reza para murcharem as pernas da mulher morena

Reza para a velhice roer dentro da mulher morena

Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros

E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos

cantos

Dai morte cruel agrave mulher morena

Dulcileide V do Nascimento Braga

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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que

faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas

bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir

a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)

ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo

O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros

encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi

abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar

daquelea que emocionalmente lhe causa mal

A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento

concretizando-os atraveacutes das palavras

Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada

em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego

como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder

Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a

concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas

cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo

desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram

obtidas no passado

Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas

palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas

do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os

profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515

A AGOGEacute ESPARTANA

Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O

desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter

medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de

covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado

perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo

toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases

atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou

deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute

espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos

PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo

THE SPARTAN AGOGEacute

ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The

development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of

anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and

were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and

the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan

society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan

mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has

as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar

education with extremely bellicose objectives

KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus

Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A

criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado

representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto

sentido da palavra (Werner Jaeger)

E-mail oliveira-lluolcombr

A agogeacute espartana

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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo

denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio

Eurotas cercada de montanhas a nordeste

Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-

helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia

A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente

originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e

se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente

constituindo assim o povo helecircnico

Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e

foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os

espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica

peculiar a belicosidade

A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa

legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria

dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do

comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro

instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a

maneira de viver etc

Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo

tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e

desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram

expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo

comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali

comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)

Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador

da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria

I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia

Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees

culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de

expandir-se pelas armas

Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas

tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica

de los Lacedemonios I 1-2)

O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute

que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis

1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o

seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como

tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica

(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora

descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo

rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um

descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu

sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo

se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta

(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em

Vida de Licurgo

Luciene de Lima Oliveira

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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como

ldquoeducaccedilatildeordquo

Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e

chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o

exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a

educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como

tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)

Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar

constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza

grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza

Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra

ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo

adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte

a descreve (JAEGER 2001 p 114)

O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que

nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)

O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar

tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa

ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)

As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus

pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo

governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3

Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem

de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando

completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e

brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse

mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer

as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela

que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas

Paralelas)

Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente

nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida

Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um

pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta

com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees

militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas

Plutarco daacute o seguinte testemunho

Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o

aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria

em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-

lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os

cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior

parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze

anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam

somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e

3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem

seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

A agogeacute espartana

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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos

dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e

dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos

juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir

colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no

inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos

porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO

Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)

A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos

compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um

paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial

Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU

1966 p 42)

Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano

a) rhobiacutedas (termo obscuro)

b) promikkizoacutemenos (meninote)

c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)

Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano

a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)

b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)

c) melleiacuteren (futuro irene)

d) melleiacuteren (irene de segundo ano)

Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano

a) eireacuten de primeiro ano

b) eireacuten de segundo ano

c) eireacuten de terceiro ano

d) eireacuten de quarto ano

e) proteicircras (irene-chefe)

O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em

unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos

que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)

Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram

lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com

propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O

bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era

proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo

obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam

a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)

Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam

deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era

permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores

(Op cit X)

O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as

matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas

olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem

Luciene de Lima Oliveira

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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem

(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida

familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos

acampamentos militares

A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um

ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou

em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou

que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da

poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas

que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas

Paralelas)

Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando

a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se

preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma

disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros

guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto

da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)

O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com

moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em

prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos

Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato

de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir

suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)

Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como

objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como

resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram

em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na

verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra

disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)

Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo

diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na

Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta

por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)

A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas

(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se

rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana

Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma

revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam

em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos

Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o

estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro

ldquoacampamento militarrdquo permanente

Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era

dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras

pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam

participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei

A agogeacute espartana

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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de

hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve

Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e

o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees

dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos

neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada

pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que

vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que

tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar

papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito

muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar

os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo

teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes

esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por

Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que

eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que

espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que

tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)

Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que

frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada

por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois

de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem

que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os

conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan

eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo

concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994

pp 49-50)

Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de

um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os

covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que

natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a

kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja

algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara

entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana

O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo

presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p

82)

O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo

poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer

4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei

Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto

(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas

que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com

a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da

Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967

p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo

VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente

vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC

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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e

educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees

espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo

Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era

morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos

ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas

vidasrdquo (10 W 13-14)

Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A

propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha

(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)

Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade

de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um

homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)

A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave

morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa

morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo

de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus

direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)

A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo

geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da

Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute

proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos

literaacuterios diferentes

Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e

guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos

seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas

seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de

formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)

Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo

veementemente repelido do seio daquela sociedade

Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo

mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito

natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)

O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e

tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis

Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos

antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada

continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma

coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios

com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In

Vidas Paralelas)

Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por

exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um

caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)

Plutarco daacute testemunho dessa coletividade

A agogeacute espartana

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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes

antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se

acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de

si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo

de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In

Vidas Paralelas)

Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas

refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes

banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)

Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as

cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica

II 1262b 7-8)

O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia

Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta

Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que

tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era

que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o

limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das

refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)

De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios

(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue

Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La

Republica de los Lacedemonios)5

Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um

caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo

comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em

seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face

dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida

Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na

verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de

si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em

contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo

O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a

sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que

seraacute mais clara nos traacutegicos)

A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio

de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais

acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do

indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual

enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e

dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute

claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia

5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio

filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo

poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)

Luciene de Lima Oliveira

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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer

corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu

companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo

Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os

trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente

mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa

sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e

encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO

Histoacuteria IX 71)

Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio

nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa

em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles

se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor

belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos

abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo

tolerava

Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras

fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de

permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro

combateu furiosamente fora de seu posto

A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da

sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear

seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange

A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a

cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do

prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados

como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no

combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)

Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras

pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima

da famiacutelia vinha a poacutelis

Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto

quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada

cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o

esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)

As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam

exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos

ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo

com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do

parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)

Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos

mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos

fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de

eugenia dentro da sociedade espartana

Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas

crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou

deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses

A agogeacute espartana

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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente

natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6

Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia

disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se

dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que

natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela

vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para

ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres

que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda

parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam

se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles

que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem

resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e

ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes

(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos

fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de

que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos

(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)

A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que

Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII

aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a

rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de

uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas

de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois

do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute

e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por

principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e

Messecircnia que foram escravizados

A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as

aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo

VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da

riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o

dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes

quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute

intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo

para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)

Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo

confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem

apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os

espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica

de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente

belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros

6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a

matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes

Luciene de Lima Oliveira

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 73

combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser

destemidos diante do inimigo

Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para

a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar

maneira de viver aos adultos

REFEREcircNCIAS

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Ediccedilatildeo Biliacutengue Traduccedilatildeo de Antocircnio Campelo Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes Lisboa Vega 1998

BAILLY Anatole Dictionnaire Grec-Franccedilais Ed Revista par L Seacutechan e

Chantraine Paris Hachette 2000

CAMPBELL David A Greek Lyric Poetry New York ST MartinrsquoS Press 1967

DETIENNE Marcel La Phalange problegravemes et controverses In Problegravemes de la

Guerre en Gregravece Ancienne VERNANT Jean-Pierre (org) Paris Eacuteditons de lrsquo Eacutecole

des Hautes Eacutetudes en Sciences Sociales Paris 1999

HEROacuteDOTO Histoacuteria Traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora

Universidade de Brasiacutelia 1988

JAEGER Werner Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Satildeo Paulo Martins Fontes

2001

JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios Traduccedilatildeo de Maria Rico Gomez

Madrid Centro de Estuacutedios Costitucionales 1989

LORAUX Nicole Les Experiences de Tireacutesias le feacuteminin et lrsquohomme grec Paris

Gallimard 1989 pp 77-123

MARROU Henri-Ireacuteneacutee Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade Satildeo Paulo Herder

1966

MOSSEacute Claude Dicionaacuterio da Civilizaccedilatildeo Grega Traduccedilatildeo de Carlos Ramalhete

Rio de Janeiro Zahar Editor 1998

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulkbenkian 1993

PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de J Guinsburg Satildeo Paulo Claacutessicos

GarnierDifusatildeo Europeia do Livro 1965

A agogeacute espartana

74 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Eduardo Menezes Satildeo Paulo Hemus Livraria

Editora 1970

PLUTARCO Licurgo In Vidas Paralelas Traduccedilatildeo de Aristides da Silva Lobo Satildeo

Paulo Ed das Ameacutericas sd

VERNANT Jean-Pierre O Homem Grego Lisboa Editorial Presenccedila 1994

________ Jean-Pierre As Origens do Pensamento Grego Rio de Janeiro Difel

2002

WEST Martin Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati New York Oxford

1992

Page 3: Principia XXXVIII - UERJ

SUMAacuteRIO

Apresentaccedilatildeo 6

Homem e mulher os criou

Isabel Arco Verde Santos 7

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

Carlos Eduardo Schmitt 13

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

Bruno Torres dos Santos 23

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher

alencariano

Heitor Victor 37

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli 45

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

Dulcileide V do Nascimento Braga 55

A agogeacute espartana

Luciene de Lima Oliveira 63

DOI httpsdoiorg1012957principia201946484

APRESENTACcedilAtildeO

Em seu primeiro volume de 2019 a Revista Principia traz agrave luz artigos

contemplando natildeo apenas o olhar para os princiacutepios de nossa cultura greco-romana-

judaico-cristatilde mas um diaacutelogo entre passado e presente

No primeiro artigo por exemplo temos uma retomada e uma anaacutelise reflexiva

sobre os termos hebraicos na narrativa da criaccedilatildeo da mulher segundo a Biacuteblia Com esta

reflexatildeo a Profa Me Isabel Arco Verde Santos (UERJ) nos leva a rever as questotildees de

gecircnero na atualidade para quiccedilaacute diminuiacute-las

No segundo artigo selecionado passando ao domiacutenio latino o Prof Me Carlos

Eduardo Schmitt (doutorando da USP) se debruccedila sobre a vida e mui extensa obra do

orador Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio no contexto do reinado de Valentiniano I

Em seguida acompanhamos o pesquisador bolsista da CAPES e doutorando da

UFRJ Bruno Torres dos Santos em sua anaacutelise comparada sobre o real trabalho do

bioacutegrafo de imperadores romanos Suetocircnio e o uso que dele fez Machado de Assis em

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Teria Machado partido do pressuposto de que tal

comparaccedilatildeo nunca seria feita

Seguindo para o domiacutenio grego outra anaacutelise comparada nos aguarda o Prof

Heitor Victor mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UERJ

analisa as marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar

utilizando-se para isso de diaacutelogo com texto de Walter Benjamin

Mergulhando ainda mais na cultura helecircnica o Prof Dr Marco Valeacuterio Colonnelli

(UFPB) nos demonstra o potencial de concisatildeo dos siacutemiles homeacutericos conforme

aparecem na Iliacuteada atraveacutes do valor simboacutelico de determinados animais conforme

anotados por Aristoacuteteles em sua Investigaccedilatildeo dos animais

Na sequecircncia dois artigos que nos fazem refletir mais sobre a vida na Antiga

Greacutecia No primeiro a Profa Dra Dulci Nascimento Braga apresenta sua pesquisa que

visa demonstrar a praacutetica registrada na literatura de diversos tipos de profissionais da

magia os quais em muito a influenciaram

No segundo a Profa Dra Luciene Oliveira reflete sobre a formaccedilatildeo educacional

belicosa dos espartanos segundo a qual a coragem parece ser o maior valor de caraacuteter

que esses homens poderiam ter

Desejamos a todos uma boa leitura

Elisa Figueira de Souza Correcirca

Editora-chefe da Principia XXXVIII

DOI httpsdoiorg1012957principia201946485

HOMEM E MULHER OS CRIOU

Isabel Arco Verde Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo retoma os textos da criaccedilatildeo e reflete reflete especificamente

na criaccedilatildeo da mulher Os termos hebraicos que acompanham a narrativa da criaccedilatildeo e se

relacionem com a figura feminina tecircm muito a nos contar Afinal qual o papel da mulher

e seu objetivo ao ser criada frente ao homem Haveria uma clara dimensatildeo de

superioridade ou inferioridade refletidas nestes relatos Em nossa sociedade de cultura

cristatilde o texto biacuteblico tem valor imensuraacutevel na relaccedilatildeo de gecircnero que vivemos em nossa

sociedade Voltar o olhar ao texto biacuteblico e buscar nele caminhos a partir da criacutetica textual

eacute uma forma de buscar respostas para diminuir as injusticcedilas que separam homens e

mulheres

PALAVRAS-CHAVE relatos de criaccedilatildeo relaccedilatildeo homem mulher Eva e Lilith

MALE AND FEMALE CREATED HE THEM

ABSTRACT This article analyzes the Hebrew texts of creation and reflects specifically

on the creation of women The Hebrew terms that accompany the creation narrative and

relate to the female figure have much to tell us What is the function of women and their

purpose when being created Would there be a clear dimension of superiority or

inferiority between men and women reflected in these texts In our Christian culture

society the biblical text has immeasurable value in the gender relationship we live in our

society Turning to the biblical text through textual criticism is a way of seeking answers

to reduce the injustices that separate men and women

KEYWORDS creation texts men and women relationship Eva and Lilith

Nosso objetivo neste primeiro momento eacute tratar do texto da criaccedilatildeo do homem e

da mulher Este texto eacute baacutesico para qualquer discussatildeo Os textos que iremos usar

encontram-se todos no livro de Bereshit ou Gecircnesis Eacute o primeiro livro da Torah ou

Pentateuco e traz nos seus primeiros capiacutetulos o relato da criaccedilatildeo

Eacute possiacutevel identificar dois relatos diferentes para esta histoacuteria Histoacuterias de

enfoques diferentes e origens tambeacutem diferentes O primeiro encontra-se em Gecircnesis

126-31 O segundo no capiacutetulo 215 a 24 deste mesmo livro Ambos tratam da criaccedilatildeo

do ser humano homem e mulher

No primeiro texto a designaccedilatildeo hebraica usada para homem eacute zakhar1 e neqebah2

para a mulher Estes termos indicam o que eacute masculino e o que eacute feminino E-mail verdesantosuolcombr 1 Zainkafresh 2 Nunqophbeit

Homem e mulher os criou

8 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a

memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para

o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino

Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser

androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto

porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem

a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o

chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos

(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila

No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam

vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o

artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo

abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma

indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o

ser humano criado

O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua

imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino

HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o

pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele

A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo

ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo

discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro

homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre

Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo

primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se

concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento

de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila

de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com

sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma

importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando

este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer

nome proacuteprio eacute especificado por natureza4

Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso

atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam

ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante

no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser

homem Adatildeo

O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo

seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida

dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A

BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o

colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem

3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino

mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a

coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino

e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito

ela ajuda a identificar o predicado

Isabel Arco Verde Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 9

eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro

homem ndash Adatildeo

Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo

cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No

verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam

e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe

seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais

especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo

hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo

havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse

eacutezer e neacuteged

Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo

acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece

ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo

desenvolvida

HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral

a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de

outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por

Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente

Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte

de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres

inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que

natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher

O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de

em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na

forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil

o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a

todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O

hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs

auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o

sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio

O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio

porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha

socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como

uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo

como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto

este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)

Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher

identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para

construir a mulher

Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus

com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que

ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute

feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de

Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua

costela

O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da

palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o

reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo

Homem e mulher os criou

10 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -

semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da

humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas

entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de

homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma

narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar

que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo

que se faz da mesma mateacuteria

Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha

chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo

do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele

lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado

e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso

Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo

soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam

quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico

e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se

identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria

se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido

Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus

institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a

primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio

masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos

principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos

capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher

do povo e a estrangeira

Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos

desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser

encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe

denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de

Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo

tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa

noite)

Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou

problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa

miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de

Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa

imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por

fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES

ALMEIDA 2019)

Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a

recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta

Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o

5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv

(1986)

Isabel Arco Verde Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 11

capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim

O texto mistura entatildeo as duas fontes

A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma

possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com

a qual ele HaAdam se identificasse

A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao

papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se

faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava

ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade

que culturalmente ainda se insiste afirmar

O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer

preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-

Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que

natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila

divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia

comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade

A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se

entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo

o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a

mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam

na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo

seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo

que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade

Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela

conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser

semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela

REFEREcircNCIAS

A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1958

BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967

BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995

EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer

1972 3 vol

FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa

15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira

GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de

Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital

de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt

Homem e mulher os criou

12 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo

Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988

KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix

1986

PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro

Brasiliense 1993

PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e

notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo

Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

DOI httpsdoiorg1012957principia201946508

AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO

REINADO DE VALENTINIANO I

Carlos Eduardo Schmitt

RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual

chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)

e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III

proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de

Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em

vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III

tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I

A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma

agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador

PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE

KINGDOM OF VALENTINIAN I

ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work

from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses

(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced

between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in

384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our

paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career

and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes

we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as

a bridge between the Senate and the emperor

KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I

LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL

REINADO DE VALENTINIANO I

RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la

cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes

(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I

Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

14 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como

prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo

auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes

I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de

Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador

enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador

PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

INTRODUCcedilAtildeO

Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco

foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas

obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo

em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego

(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de

seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de

estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem

que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1

(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da

religiatildeo tradicional romana

Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de

Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo

peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora

defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de

Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus

simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto

Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto

Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem

documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi

um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de

Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador

Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes

desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou

conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante

seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder

a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja

Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas

orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo

latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as

orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como

esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros

escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a

produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que

por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada

1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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ORATIONES I II E III

Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que

iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir

uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de

reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava

apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea

tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte

Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea

uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa

era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim

Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia

natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os

senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores

aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo

Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta

anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em

xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de

Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro

ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que

das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio

Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou

tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano

filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de

Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006

p 6)

A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um

sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter

solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade

e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de

que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o

que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles

de que ouviu o testemunho

Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano

como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da

Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o

estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros

anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico

como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da

nova dinastia

2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum

oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES

2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

16 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano

e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador

nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso

significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas

sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em

diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe

qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado

que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo

ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um

consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)

O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-

los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre

ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no

poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra

formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano

Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de

imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente

assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais

feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os

interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente

cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a

proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum

ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis

O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro

consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco

estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo

Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas

Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de

expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que

fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra

o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior

inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)

Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e

fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas

pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus

avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de

governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver

aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco

exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra

os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido

com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo

imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte

O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo

a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como

um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar

em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado

Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para

Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 17

maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o

melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador

narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao

longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a

liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade

No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se

dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador

enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma

de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana

por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na

corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em

Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)

O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco

elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual

ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio

de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem

treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e

em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo

lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso

OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS

Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise

dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas

asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)

descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso

forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles

proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos

diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles

escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de

especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)

Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o

reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente

ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico

ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)

O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob

o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais

antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia

Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)

satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)

3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of

his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in

panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been

so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

18 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano

Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a

dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de

louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de

parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como

fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos

expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais

significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5

As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que

provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram

prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano

(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)

este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e

291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o

casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)

312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl

Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6

Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada

vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio

dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas

em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os

deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam

imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos

Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao

imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele

aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador

de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)

Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal

de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom

patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude

amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso

tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao

seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom

modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da

literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca

saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa

duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus

the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the

(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature

Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic

orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)

Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for

Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of

Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for

Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the

younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo

poliacutetica7

Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver

abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico

modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao

imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece

sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de

Domicianordquo8

CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS

As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De

acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano

havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo

auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados

a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma

foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a

criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se

agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos

traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)

Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell

(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano

vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas

proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-

57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em

395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos

internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais

de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das

quais os imperadores participavam pessoalmente

Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo

poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade

de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura

latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo

que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9

7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the

most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and

friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers

to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent

senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range

of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram

historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved

towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his

consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of

assailing the principate of Domitianrdquo

9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable

period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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_______________ Oration II ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015b Disponiacutevel

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_______________ Oration III ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015c Disponiacutevel

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_______________ Q Aurelii Symmachi Octo orationum ineditarum partes Ediccedilatildeo

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Christianity New York HarperCollins 2015

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construccedilatildeo do Dominato In SILVA Gilvan Ventura amp MENDES Norma Musco

Carlos Eduardo Schmitt

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22 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

DOI httpsdoiorg1012957principia201946510

OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS

DE BRAacuteS CUBAS

Bruno Torres dos Santos

RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as

referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida

dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no

iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive

enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees

da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes

personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de

que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as

referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga

PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio

THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF

BRAS CUBAS

ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to

the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the

Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius

at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues

of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already

brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth

century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary

creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not

recover references to the culture literature and history of Ancient Rome

KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius

Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute

nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento

Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante

discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-

mail brunots_hotmailcom

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

24 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839

Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma

universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica

teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da

Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela

Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a

ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908

com 69 anos

Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio

Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e

adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos

filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta

Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos

requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser

reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de

universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO

2010 p 65)

Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute

singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses

traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e

interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo

utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio

primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras

(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia

Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do

romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps

termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se

mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho

com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de

nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida

pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)

Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os

merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero

romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute

todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para

usarmos termos proacuteprios da literatura latina

Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um

narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira

discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a

impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que

eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica

literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo

Bosi

1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 25

Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade

passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo

dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a

histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois

mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves

idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc

e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que

restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador

Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)

Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a

indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto

com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta

o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do

pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e

um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de

poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do

adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de

Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-

Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais

heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos

sem grandeza (BOSI 2006 p 180)

Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a

intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-

personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do

ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera

burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer

fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos

imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda

poliacutetica de modo velado

Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o

bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de

sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca

encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais

plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido

nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio

o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador

Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres

(ESTEVES 2015 p 1-7)

Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno

dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69

EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno

militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor

segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai

na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)

Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas

imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo

na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o

bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o

principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses

e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das

bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a

funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p

971)

A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as

referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes

fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze

primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano

Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros

anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC

Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi

usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo

agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos

O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII

designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas

antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o

panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)

A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um

gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria

sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e

agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)

Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo

iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por

uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e

seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia

adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um

medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse

projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da

cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a

primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio

A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor

de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea

fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas

cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna

loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou

ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de

Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous

ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama

Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu

um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio

tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3

3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual

Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin

Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)

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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a

proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo

do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno

Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram

personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi

Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso

Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na

biografia suetoniana

Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus

variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne

progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet

Cl 21)

No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da

primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal

modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi

certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no

acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado

Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o

assassinato do sobrinho Caliacutegula

Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit

quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi

secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum

recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum

interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles

animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae

metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)

Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o

impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante

Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto

de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um

pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a

notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu

entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado

raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem

estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do

medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador

Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana

sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e

Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como

um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa

aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio

fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda

que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos

das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em

questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com

Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero

Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose

na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em

razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio

Rolim de Freitas explica que

O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que

o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego

Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois

aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)

Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na

Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos

iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o

argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio

relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico

legume

O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito

Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho

de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo

do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo

similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto

como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro

capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do

gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a

simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor

ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel

artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa

seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse

retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de

Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor

Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes

em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que

eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os

Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap

IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero

biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo

Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo

diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem

possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado

Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto

Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de

sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee

com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega

em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato

com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar

descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um

ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio

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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general

em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance

Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me

encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia

a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum

cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas

amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de

Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias

Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)

Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato

ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido

firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de

Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva

adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel

por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo

historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu

opositor na Batalha de Tapso

Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo

direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso

natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo

denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua

biografia deste modo

Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui

primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu

in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem

ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar

Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus

est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul

sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore

corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad

primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti

dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)

Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava

sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como

se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um

gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua

toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas

jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com

um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma

outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos

os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu

a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte

inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado

por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem

uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria

dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo

Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram

grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para

qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente

teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia

Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o

defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um

despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente

este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente

o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o

encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso

natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser

um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta

com o fato de dispor do uacutenico tomo

Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro

e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo

natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-

se agrave janela e mostra-o ao sol

Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um

Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e

folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)

Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma

forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar

A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela

rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na

nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-

se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito

ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash

Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de

outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica

esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de

suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees

do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna

Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de

sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem

jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o

Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia

Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve

uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por

conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de

emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a

famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio

Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum

iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu

errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit

Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum

constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo

inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda

eruntrdquo (Suet Jul 31 2)

Bruno Torres dos Santos

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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o

veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as

luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um

guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas

coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e

calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos

recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas

atraveacutes das armasrdquo

Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo

sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores

plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab

uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram

ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas

vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)

Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente

ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em

grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados

das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de

um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque

introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal

dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo

Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta

desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida

pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico

no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de

Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo

antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no

capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na

tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento

Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe

derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era

descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma

meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a

Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia

com alvoroccedilo e submissatildeo

Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do

matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe

a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de

Assis Helena cap XIII p 133)

Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto

ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado

tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a

Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito

suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano

Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro

governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio

4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo

imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo

senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai

e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para

a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens

em bustos inscriccedilotildees etc

Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O

narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste

com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar

o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo

(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a

reflexatildeo

A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em

casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de

um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala

grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)

O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida

e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo

amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes

Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu

defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele

eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de

captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano

Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam

amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti

essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam

quidem (Suet Dom 3)

Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas

horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para

uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de

modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo

uma mosca

Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para

o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por

outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo

negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no

iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor

jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como

as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados

a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido

algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria

contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes

Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito

bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo

Bruno Torres dos Santos

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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores

favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado

graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo

de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos

depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal

retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o

Suetocircniordquo

Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a

uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal

capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais

precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha

traiacutedo com igual sinceridade

Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que

foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69

Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia

deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes

de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero

Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo

das Memoacuterias Poacutestumas em completude

Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-

me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos

os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso

de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com

sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em

casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute

faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave

origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a

minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste

pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)

Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador

Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem

e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas

entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a

resposta eacute Suetocircnio

Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex

prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante

ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)

Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre

a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro

pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia

incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute

proveniente da urinardquo

Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos

comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que

vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas

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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu

romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente

contraditoacuterios

Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo

de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos

concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se

mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de

Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria

Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da

traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da

Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos

os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as

referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de

Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis

podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo

IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES

Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)

Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)

Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)

Suet Tit (Suetocircnio Tito)

Suet Ves (Suet Vespasiano)

DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL

ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius

Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31

Cambridge MA Harvard University Press 1914

______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius

Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians

Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and

Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA

Harvard University Press 1914

Bruno Torres dos Santos

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REFEREcircNCIAS

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6deg ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul 2010 p65-126

CITRONI Maacuterio (Dir) CITRONI MCONSOLINO FELABATE M NARDUCCI

(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas

Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006

ESTEVES Anderson Martins Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas

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Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Ano 18 nXXX p1-7

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SILVEIRA Francisco Maciel O conto machadiano ou ldquoa realidade eacute boa o Realismo eacute que

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p95-103 2001

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511

LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI

TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO

Heitor Victor

RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade

Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca

de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal

estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da

existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa

das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera

um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de

compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia

helecircnica

PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena

LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE

TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR

ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is

even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it

possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable

because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in

this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an

important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial

example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins

work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually

proved himself to be more important than the helenic tragedy itself

KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine

Introduccedilatildeo

O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua

presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente

uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de

composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende

Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E-mail heitor-victorhotmailcom

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da

seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro

grego e que perdura em nossa cultura

O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance

caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se

apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas

as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum

que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos

permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX

Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas

fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia

aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar

a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la

exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes

dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se

nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim

Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria

No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico

que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave

descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo

Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra

realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma

seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o

inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que

permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama

alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de

aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)

Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei

traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia

Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica

que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de

mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade

em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende

Benjamin por alegoria no drama traacutegico

Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das

concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao

ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com

transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter

proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo

romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular

para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma

alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo

(BENJAMIN 2011 p 171)

1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como

um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador

se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972

p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo

nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano

Heitor Victor

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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para

entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que

encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma

natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar

a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim

permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para

consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar

Benjamin reconhece que

o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o

desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido

psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso

atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso

a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o

caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)

Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa

relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A

comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer

a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como

uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no

abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode

desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral

a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que

trato neste trabalho

Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos

personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e

outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois

extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito

de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso

em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia

de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo

cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao

profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece

Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as

formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao

coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que

o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas

como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo

lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)

Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao

choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e

leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que

nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais

haacutebeis

Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce

claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e

um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos

desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos

surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)

Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da

corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os

momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da

anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance

Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de

Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o

reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de

que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente

e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de

valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas

Marcas do Heroacutei Traacutegico

As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos

de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia

uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei

neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para

si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre

da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena

consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o

ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo

dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico

Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a

abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua

proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais

indiviacuteduos Benjamin afirma

A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei

e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve

ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que

causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN

2011 p 108)

Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega

definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a

profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade

constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio

comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos

o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo

tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos

deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em

algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN

2011 p 108)

Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia

reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por

ele se sacrifica

Heitor Victor

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ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se

crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes

tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em

minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR

1972 p 243)

O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega

completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O

sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se

direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua

protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento

da sua proacutepria vida

Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute

mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe

corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)

Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da

heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de

natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011

p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um

perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece

nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia

fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a

contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava

quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-

153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute

no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua

meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)

Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia

fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse

aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que

claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do

traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente

nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem

romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho

Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do

reconhecimento da proacutepria morte

Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente

heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis

moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo

mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)

Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da

morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes

de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute

sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo

quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)

Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa

Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida

contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A

culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas

se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face

angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para

clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico

No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo

as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la

na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como

todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa

consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua

lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)

Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro

ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e

genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece

e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que

expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela

ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa

heroiacutena rebate com acidez

ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais

quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de

quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite

Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe

prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos

saborosas (ALENCAR 1972 p 153)

Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais

sincera em um de seus momentos de maior entrega

ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de

minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A

dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica

do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo

que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma

(ALENCAR 1972 p 243)

Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois

precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha

entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-

se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a

projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia

Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim

encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu

papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais

beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute

melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres

Conclusatildeo

Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees

constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego

passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa

possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo

Heitor Victor

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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica

como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de

ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito

pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida

Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta

de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de

convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade

de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando

essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha

destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do

elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo

Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico

levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo

estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro

alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute

precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento

traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas

sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas

como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as

mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo

dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de

uma obra de arte

REFEREcircNCIAS

ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash

Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972

ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005

BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora

2011

CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo

Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986

PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo

Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

44 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

DOI httpsdoiorg1012957principia201946512

CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES

ANIMAIS NA ILIacuteADA

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)

RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero

produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste

estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra

de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de

determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o

poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela

forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega

arcaica e claacutessica

PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles

SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES

ANIMALS IN THE ILIAD

ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer

produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study

is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of

Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of

certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals

the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero

projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative

term in the archaic and classical Greek culture

KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle

1 Sobre o siacutemile homeacuterico

Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo

que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por

uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre

outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo

sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1

E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a

possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras

usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

46 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os

siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute

composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que

eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos

nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou

verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo

(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila

separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2

Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia

em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem

em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos

Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas

sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias

sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido

maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles

pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples

menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos

Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais

como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre

outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam

como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e

Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o

siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais

selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham

grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo

(Clarke 2006 p 2)

Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja

examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada

como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o

quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao

seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de

caracterizaccedilatildeo

2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador

Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto

pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter

atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das

personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que

Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa

habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em

ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre

elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo

aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de

uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de

Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e

psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e

Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 47

Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema

eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito

combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar

aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao

animal (Clark 2006 p 4)4

Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm

igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)

Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal

mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os

animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos

com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver

tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute

preciso recorrermos a Aristoacuteteles

Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece

se coadunar com o mundo homeacuterico

Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas

psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo

e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade

e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em

inteligecircncia

῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν

τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ

ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ

φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως

ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os

animais 588 a 19-25)

Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e

os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos

dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por

analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens

comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica

Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos

humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem

do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um

vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura

grega6 mas meramente empiacuterico

Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano

por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que

Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural

possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes

4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se

encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal

Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de

uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem

(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as

relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

48 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas

agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)

A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra

de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos

bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um

todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o

valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si

Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma

caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada

3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores

Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o

animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo

ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo

empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma

passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus

de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o

siacutemile

Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira

Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus

Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos

E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se

Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho

Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre

Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada

Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora

Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio

Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou

Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos

Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio

Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ

κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος

φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα

τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς

ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ

ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι

φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου

δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot

ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα

πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων

ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους

ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot

(Il VIII 17-28)

Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que

configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos

muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim

como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων

πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς

παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil

do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 49

Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois

que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e

tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece

sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar

Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por

causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma

flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar

Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι

ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ

πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί

τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν

διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ

ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-

27)

A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que

Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre

todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em

sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como

ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa

Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal

natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo

demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos

aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem

Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila

Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em

siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que

A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras

localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em

coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo

tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da

Lacocircnia

Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς

τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ

τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ

τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608

a 27-33)

Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens

e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada

no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus

De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem

E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira

Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila

Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees

Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres

As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira

Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos

Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot

οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot

῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων

ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος

ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων

ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει

ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς

αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο

(Il VIII 335-343)

Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus

nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada

animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na

representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico

natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do

animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos

deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria

muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador

Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o

caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais

ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o

leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui

iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que

Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde

outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes

entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo

que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se

ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos

golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte

Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ

οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον

Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται

λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ

πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται

πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν

(Arist HA 629 b 33- 639 a8)

A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior

como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso

jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes

Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis

satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax

Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos

De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne

Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel

τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω

σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν

ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν

(Il VII 255-257)

Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis

representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51

O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite

o combate foi interrompido pelos arautos

O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta

cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa

adversidade

Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma

multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a

face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra

entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que

de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir

para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua

corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo

᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ

διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ

σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει

ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς

ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει

κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι

κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)

Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais

intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns

siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de

alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira

Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax

E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas

E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera

Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas

Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral

Dos bois afugentam catildees e pastores

E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois

Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne

Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos

Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo

E tochas acesas que teme ainda que sedento

E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito

Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto

Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus

Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot

στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον

τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς

ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων

ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο

ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται

οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι

πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων

ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες

ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν

καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot

ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot

ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ

ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν

(Il XI 544-557)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei

em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices

psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso

feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a

situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa

bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo

Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo

comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o

nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo

Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como

voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito

gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado

do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito

e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio

A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um

desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se

trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para

a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do

comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem

exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos

depois em Aristoacuteteles

3 Conclusatildeo

O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais

produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam

muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas

tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com

maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute

descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante

Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do

conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem

o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas

REFEREcircNCIAS

ARISTOTLE Historia Animalium Transl by DArcy Wentworth Thompson Oxford

Clarendon Press 1910

___________ Historia Animalium Volume 1 Books I-X Text D M Balme amp Allan

Gotthelf (eds) Cambridge University Press 2002

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946513

OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL

MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS

Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem

praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos

que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-

literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos

periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal

PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS

MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS

ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can

be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify

magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to

demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek

literature and influenced actions that go beyond the temporal bias

KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes

de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam

a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao

afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma

humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre

os seres humanos

Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos

no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica

Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas

(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos

dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de

bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que

haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos

de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de

outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos

(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos

E-mail dulcinascimentobragagmailcom

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como

tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal

como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de

verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar

aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito

de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que

encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou

talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a

menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm

opiniatildeo formada

Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se

restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)

mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras

Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades

eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela

eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica

O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber

que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-

nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai

maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis

que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de

atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a

sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e

ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees

direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente

Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que

determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os

mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por

impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira

Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas

mulheres

Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam

a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo

com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que

envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e

segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades

ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres

sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves

necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias

sobrenaturais

Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e

a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre

acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a

extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos

casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem

Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas

circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a

religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai

1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas

cantos e banquetes

Dulcileide V do Nascimento Braga

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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila

coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato

que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da

sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)

Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos

foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia

nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e

constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes

e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo

estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em

torno deles podendo ser controladas por certos meios

Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas

maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de

mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um

empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra

Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era

composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os

Magosrdquo

Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo

de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria

I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que

revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou

chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128

vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o

haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a

funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar

acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno

Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os

responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo

O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo

negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos

considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi

aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens

merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta

caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave

realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e

maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser

interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos

Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo

ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma

seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um

jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes

dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e

secretamente temidos por outrosrdquo

Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato

do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia

um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem

uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos

Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim

como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria

de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte

dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e

em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes

Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta

palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que

encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que

estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees

epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo

Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar

que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos

acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que

lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de

Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas

teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois

desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena

dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa

O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas

feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um

remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o

termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes

em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo

gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia

que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho

Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do

encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado

associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em

sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute

voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto

pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal

Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do

canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo

Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior

aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que

diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na

estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na

junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como

aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento

ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel

protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos

durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)

As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura

preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem

em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse

processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados

sagrados

Dulcileide V do Nascimento Braga

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 59

Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo

denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm

basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3

Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees

sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem

somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar

nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana

pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que

venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim

Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade

normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca

especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um

gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo

na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite

Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram

utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de

reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns

versos do poema

Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana

Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem

Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada

Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um

Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)

Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica

pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico

para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura

muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de

Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros

oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o

mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede

A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser

observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a

medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras

Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo

Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta

modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que

se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de

Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho

Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que

frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que

tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de

cura do deus

Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem

um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute

uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos

empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-

se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como

banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias

partes do seu corpo

A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como

tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa

teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo

de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de

se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos

eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como

magia

A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de

quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que

relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a

ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo

(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)

Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio

masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith

e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo

obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas

atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas

particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria

algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes

Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes

nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que

demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de

palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de

serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo

A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes

Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena

Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo

E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios

da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos

E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma

Cortai os peitos da mulher morena

Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono

E trazem cores tristes para os meus olhos

Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes

Traze-me para o contato casto de tuas vestes

Salva-me dos braccedilos da mulher morena

Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim

Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca

Satildeo como dois silecircncios que me paralisam

Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena

Livra-me do seu ventre como a campina matinal

Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria

Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena

Reza para murcharem as pernas da mulher morena

Reza para a velhice roer dentro da mulher morena

Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros

E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos

cantos

Dai morte cruel agrave mulher morena

Dulcileide V do Nascimento Braga

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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que

faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas

bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir

a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)

ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo

O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros

encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi

abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar

daquelea que emocionalmente lhe causa mal

A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento

concretizando-os atraveacutes das palavras

Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada

em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego

como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder

Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a

concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas

cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo

desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram

obtidas no passado

Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas

palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas

do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os

profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515

A AGOGEacute ESPARTANA

Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O

desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter

medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de

covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado

perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo

toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases

atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou

deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute

espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos

PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo

THE SPARTAN AGOGEacute

ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The

development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of

anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and

were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and

the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan

society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan

mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has

as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar

education with extremely bellicose objectives

KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus

Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A

criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado

representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto

sentido da palavra (Werner Jaeger)

E-mail oliveira-lluolcombr

A agogeacute espartana

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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo

denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio

Eurotas cercada de montanhas a nordeste

Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-

helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia

A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente

originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e

se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente

constituindo assim o povo helecircnico

Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e

foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os

espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica

peculiar a belicosidade

A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa

legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria

dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do

comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro

instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a

maneira de viver etc

Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo

tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e

desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram

expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo

comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali

comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)

Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador

da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria

I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia

Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees

culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de

expandir-se pelas armas

Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas

tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica

de los Lacedemonios I 1-2)

O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute

que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis

1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o

seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como

tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica

(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora

descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo

rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um

descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu

sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo

se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta

(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em

Vida de Licurgo

Luciene de Lima Oliveira

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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como

ldquoeducaccedilatildeordquo

Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e

chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o

exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a

educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como

tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)

Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar

constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza

grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza

Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra

ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo

adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte

a descreve (JAEGER 2001 p 114)

O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que

nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)

O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar

tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa

ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)

As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus

pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo

governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3

Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem

de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando

completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e

brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse

mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer

as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela

que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas

Paralelas)

Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente

nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida

Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um

pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta

com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees

militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas

Plutarco daacute o seguinte testemunho

Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o

aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria

em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-

lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os

cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior

parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze

anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam

somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e

3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem

seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

A agogeacute espartana

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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos

dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e

dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos

juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir

colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no

inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos

porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO

Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)

A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos

compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um

paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial

Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU

1966 p 42)

Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano

a) rhobiacutedas (termo obscuro)

b) promikkizoacutemenos (meninote)

c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)

Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano

a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)

b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)

c) melleiacuteren (futuro irene)

d) melleiacuteren (irene de segundo ano)

Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano

a) eireacuten de primeiro ano

b) eireacuten de segundo ano

c) eireacuten de terceiro ano

d) eireacuten de quarto ano

e) proteicircras (irene-chefe)

O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em

unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos

que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)

Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram

lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com

propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O

bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era

proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo

obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam

a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)

Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam

deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era

permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores

(Op cit X)

O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as

matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas

olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem

Luciene de Lima Oliveira

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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem

(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida

familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos

acampamentos militares

A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um

ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou

em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou

que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da

poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas

que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas

Paralelas)

Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando

a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se

preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma

disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros

guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto

da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)

O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com

moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em

prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos

Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato

de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir

suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)

Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como

objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como

resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram

em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na

verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra

disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)

Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo

diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na

Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta

por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)

A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas

(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se

rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana

Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma

revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam

em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos

Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o

estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro

ldquoacampamento militarrdquo permanente

Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era

dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras

pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam

participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei

A agogeacute espartana

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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de

hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve

Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e

o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees

dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos

neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada

pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que

vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que

tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar

papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito

muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar

os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo

teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes

esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por

Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que

eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que

espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que

tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)

Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que

frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada

por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois

de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem

que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os

conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan

eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo

concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994

pp 49-50)

Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de

um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os

covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que

natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a

kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja

algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara

entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana

O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo

presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p

82)

O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo

poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer

4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei

Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto

(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas

que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com

a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da

Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967

p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo

VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente

vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC

Luciene de Lima Oliveira

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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e

educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees

espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo

Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era

morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos

ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas

vidasrdquo (10 W 13-14)

Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A

propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha

(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)

Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade

de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um

homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)

A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave

morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa

morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo

de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus

direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)

A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo

geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da

Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute

proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos

literaacuterios diferentes

Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e

guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos

seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas

seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de

formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)

Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo

veementemente repelido do seio daquela sociedade

Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo

mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito

natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)

O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e

tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis

Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos

antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada

continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma

coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios

com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In

Vidas Paralelas)

Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por

exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um

caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)

Plutarco daacute testemunho dessa coletividade

A agogeacute espartana

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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes

antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se

acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de

si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo

de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In

Vidas Paralelas)

Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas

refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes

banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)

Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as

cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica

II 1262b 7-8)

O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia

Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta

Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que

tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era

que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o

limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das

refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)

De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios

(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue

Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La

Republica de los Lacedemonios)5

Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um

caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo

comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em

seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face

dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida

Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na

verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de

si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em

contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo

O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a

sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que

seraacute mais clara nos traacutegicos)

A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio

de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais

acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do

indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual

enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e

dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute

claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia

5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio

filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo

poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)

Luciene de Lima Oliveira

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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer

corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu

companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo

Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os

trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente

mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa

sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e

encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO

Histoacuteria IX 71)

Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio

nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa

em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles

se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor

belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos

abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo

tolerava

Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras

fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de

permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro

combateu furiosamente fora de seu posto

A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da

sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear

seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange

A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a

cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do

prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados

como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no

combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)

Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras

pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima

da famiacutelia vinha a poacutelis

Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto

quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada

cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o

esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)

As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam

exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos

ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo

com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do

parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)

Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos

mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos

fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de

eugenia dentro da sociedade espartana

Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas

crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou

deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses

A agogeacute espartana

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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente

natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6

Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia

disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se

dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que

natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela

vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para

ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres

que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda

parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam

se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles

que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem

resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e

ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes

(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos

fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de

que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos

(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)

A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que

Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII

aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a

rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de

uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas

de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois

do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute

e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por

principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e

Messecircnia que foram escravizados

A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as

aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo

VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da

riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o

dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes

quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute

intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo

para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)

Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo

confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem

apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os

espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica

de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente

belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros

6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a

matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes

Luciene de Lima Oliveira

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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser

destemidos diante do inimigo

Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para

a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar

maneira de viver aos adultos

REFEREcircNCIAS

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Ediccedilatildeo Biliacutengue Traduccedilatildeo de Antocircnio Campelo Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes Lisboa Vega 1998

BAILLY Anatole Dictionnaire Grec-Franccedilais Ed Revista par L Seacutechan e

Chantraine Paris Hachette 2000

CAMPBELL David A Greek Lyric Poetry New York ST MartinrsquoS Press 1967

DETIENNE Marcel La Phalange problegravemes et controverses In Problegravemes de la

Guerre en Gregravece Ancienne VERNANT Jean-Pierre (org) Paris Eacuteditons de lrsquo Eacutecole

des Hautes Eacutetudes en Sciences Sociales Paris 1999

HEROacuteDOTO Histoacuteria Traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora

Universidade de Brasiacutelia 1988

JAEGER Werner Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Satildeo Paulo Martins Fontes

2001

JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios Traduccedilatildeo de Maria Rico Gomez

Madrid Centro de Estuacutedios Costitucionales 1989

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Gallimard 1989 pp 77-123

MARROU Henri-Ireacuteneacutee Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade Satildeo Paulo Herder

1966

MOSSEacute Claude Dicionaacuterio da Civilizaccedilatildeo Grega Traduccedilatildeo de Carlos Ramalhete

Rio de Janeiro Zahar Editor 1998

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulkbenkian 1993

PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de J Guinsburg Satildeo Paulo Claacutessicos

GarnierDifusatildeo Europeia do Livro 1965

A agogeacute espartana

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________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Eduardo Menezes Satildeo Paulo Hemus Livraria

Editora 1970

PLUTARCO Licurgo In Vidas Paralelas Traduccedilatildeo de Aristides da Silva Lobo Satildeo

Paulo Ed das Ameacutericas sd

VERNANT Jean-Pierre O Homem Grego Lisboa Editorial Presenccedila 1994

________ Jean-Pierre As Origens do Pensamento Grego Rio de Janeiro Difel

2002

WEST Martin Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati New York Oxford

1992

Page 4: Principia XXXVIII - UERJ

DOI httpsdoiorg1012957principia201946484

APRESENTACcedilAtildeO

Em seu primeiro volume de 2019 a Revista Principia traz agrave luz artigos

contemplando natildeo apenas o olhar para os princiacutepios de nossa cultura greco-romana-

judaico-cristatilde mas um diaacutelogo entre passado e presente

No primeiro artigo por exemplo temos uma retomada e uma anaacutelise reflexiva

sobre os termos hebraicos na narrativa da criaccedilatildeo da mulher segundo a Biacuteblia Com esta

reflexatildeo a Profa Me Isabel Arco Verde Santos (UERJ) nos leva a rever as questotildees de

gecircnero na atualidade para quiccedilaacute diminuiacute-las

No segundo artigo selecionado passando ao domiacutenio latino o Prof Me Carlos

Eduardo Schmitt (doutorando da USP) se debruccedila sobre a vida e mui extensa obra do

orador Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio no contexto do reinado de Valentiniano I

Em seguida acompanhamos o pesquisador bolsista da CAPES e doutorando da

UFRJ Bruno Torres dos Santos em sua anaacutelise comparada sobre o real trabalho do

bioacutegrafo de imperadores romanos Suetocircnio e o uso que dele fez Machado de Assis em

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Teria Machado partido do pressuposto de que tal

comparaccedilatildeo nunca seria feita

Seguindo para o domiacutenio grego outra anaacutelise comparada nos aguarda o Prof

Heitor Victor mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada da UERJ

analisa as marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar

utilizando-se para isso de diaacutelogo com texto de Walter Benjamin

Mergulhando ainda mais na cultura helecircnica o Prof Dr Marco Valeacuterio Colonnelli

(UFPB) nos demonstra o potencial de concisatildeo dos siacutemiles homeacutericos conforme

aparecem na Iliacuteada atraveacutes do valor simboacutelico de determinados animais conforme

anotados por Aristoacuteteles em sua Investigaccedilatildeo dos animais

Na sequecircncia dois artigos que nos fazem refletir mais sobre a vida na Antiga

Greacutecia No primeiro a Profa Dra Dulci Nascimento Braga apresenta sua pesquisa que

visa demonstrar a praacutetica registrada na literatura de diversos tipos de profissionais da

magia os quais em muito a influenciaram

No segundo a Profa Dra Luciene Oliveira reflete sobre a formaccedilatildeo educacional

belicosa dos espartanos segundo a qual a coragem parece ser o maior valor de caraacuteter

que esses homens poderiam ter

Desejamos a todos uma boa leitura

Elisa Figueira de Souza Correcirca

Editora-chefe da Principia XXXVIII

DOI httpsdoiorg1012957principia201946485

HOMEM E MULHER OS CRIOU

Isabel Arco Verde Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo retoma os textos da criaccedilatildeo e reflete reflete especificamente

na criaccedilatildeo da mulher Os termos hebraicos que acompanham a narrativa da criaccedilatildeo e se

relacionem com a figura feminina tecircm muito a nos contar Afinal qual o papel da mulher

e seu objetivo ao ser criada frente ao homem Haveria uma clara dimensatildeo de

superioridade ou inferioridade refletidas nestes relatos Em nossa sociedade de cultura

cristatilde o texto biacuteblico tem valor imensuraacutevel na relaccedilatildeo de gecircnero que vivemos em nossa

sociedade Voltar o olhar ao texto biacuteblico e buscar nele caminhos a partir da criacutetica textual

eacute uma forma de buscar respostas para diminuir as injusticcedilas que separam homens e

mulheres

PALAVRAS-CHAVE relatos de criaccedilatildeo relaccedilatildeo homem mulher Eva e Lilith

MALE AND FEMALE CREATED HE THEM

ABSTRACT This article analyzes the Hebrew texts of creation and reflects specifically

on the creation of women The Hebrew terms that accompany the creation narrative and

relate to the female figure have much to tell us What is the function of women and their

purpose when being created Would there be a clear dimension of superiority or

inferiority between men and women reflected in these texts In our Christian culture

society the biblical text has immeasurable value in the gender relationship we live in our

society Turning to the biblical text through textual criticism is a way of seeking answers

to reduce the injustices that separate men and women

KEYWORDS creation texts men and women relationship Eva and Lilith

Nosso objetivo neste primeiro momento eacute tratar do texto da criaccedilatildeo do homem e

da mulher Este texto eacute baacutesico para qualquer discussatildeo Os textos que iremos usar

encontram-se todos no livro de Bereshit ou Gecircnesis Eacute o primeiro livro da Torah ou

Pentateuco e traz nos seus primeiros capiacutetulos o relato da criaccedilatildeo

Eacute possiacutevel identificar dois relatos diferentes para esta histoacuteria Histoacuterias de

enfoques diferentes e origens tambeacutem diferentes O primeiro encontra-se em Gecircnesis

126-31 O segundo no capiacutetulo 215 a 24 deste mesmo livro Ambos tratam da criaccedilatildeo

do ser humano homem e mulher

No primeiro texto a designaccedilatildeo hebraica usada para homem eacute zakhar1 e neqebah2

para a mulher Estes termos indicam o que eacute masculino e o que eacute feminino E-mail verdesantosuolcombr 1 Zainkafresh 2 Nunqophbeit

Homem e mulher os criou

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respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a

memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para

o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino

Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser

androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto

porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem

a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o

chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos

(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila

No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam

vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o

artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo

abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma

indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o

ser humano criado

O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua

imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino

HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o

pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele

A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo

ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo

discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro

homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre

Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo

primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se

concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento

de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila

de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com

sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma

importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando

este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer

nome proacuteprio eacute especificado por natureza4

Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso

atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam

ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante

no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser

homem Adatildeo

O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo

seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida

dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A

BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o

colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem

3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino

mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a

coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino

e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito

ela ajuda a identificar o predicado

Isabel Arco Verde Santos

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eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro

homem ndash Adatildeo

Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo

cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No

verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam

e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe

seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais

especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo

hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo

havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse

eacutezer e neacuteged

Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo

acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece

ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo

desenvolvida

HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral

a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de

outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por

Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente

Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte

de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres

inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que

natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher

O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de

em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na

forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil

o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a

todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O

hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs

auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o

sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio

O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio

porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha

socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como

uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo

como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto

este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)

Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher

identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para

construir a mulher

Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus

com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que

ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute

feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de

Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua

costela

O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da

palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o

reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo

Homem e mulher os criou

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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -

semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da

humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas

entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de

homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma

narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar

que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo

que se faz da mesma mateacuteria

Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha

chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo

do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele

lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado

e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso

Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo

soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam

quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico

e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se

identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria

se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido

Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus

institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a

primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio

masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos

principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos

capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher

do povo e a estrangeira

Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos

desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser

encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe

denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de

Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo

tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa

noite)

Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou

problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa

miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de

Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa

imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por

fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES

ALMEIDA 2019)

Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a

recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta

Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o

5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv

(1986)

Isabel Arco Verde Santos

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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim

O texto mistura entatildeo as duas fontes

A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma

possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com

a qual ele HaAdam se identificasse

A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao

papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se

faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava

ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade

que culturalmente ainda se insiste afirmar

O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer

preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-

Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que

natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila

divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia

comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade

A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se

entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo

o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a

mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam

na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo

seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo

que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade

Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela

conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser

semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela

REFEREcircNCIAS

A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1958

BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967

BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995

EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer

1972 3 vol

FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa

15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira

GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de

Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital

de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt

Homem e mulher os criou

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GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo

Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988

KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix

1986

PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro

Brasiliense 1993

PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e

notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo

Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

DOI httpsdoiorg1012957principia201946508

AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO

REINADO DE VALENTINIANO I

Carlos Eduardo Schmitt

RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual

chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)

e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III

proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de

Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em

vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III

tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I

A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma

agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador

PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE

KINGDOM OF VALENTINIAN I

ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work

from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses

(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced

between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in

384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our

paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career

and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes

we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as

a bridge between the Senate and the emperor

KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I

LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL

REINADO DE VALENTINIANO I

RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la

cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes

(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I

Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como

prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo

auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes

I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de

Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador

enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador

PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

INTRODUCcedilAtildeO

Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco

foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas

obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo

em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego

(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de

seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de

estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem

que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1

(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da

religiatildeo tradicional romana

Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de

Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo

peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora

defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de

Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus

simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto

Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto

Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem

documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi

um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de

Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador

Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes

desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou

conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante

seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder

a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja

Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas

orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo

latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as

orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como

esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros

escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a

produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que

por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada

1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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ORATIONES I II E III

Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que

iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir

uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de

reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava

apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea

tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte

Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea

uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa

era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim

Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia

natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os

senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores

aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo

Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta

anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em

xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de

Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro

ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que

das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio

Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou

tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano

filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de

Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006

p 6)

A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um

sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter

solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade

e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de

que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o

que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles

de que ouviu o testemunho

Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano

como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da

Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o

estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros

anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico

como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da

nova dinastia

2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum

oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES

2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano

e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador

nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso

significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas

sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em

diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe

qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado

que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo

ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um

consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)

O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-

los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre

ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no

poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra

formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano

Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de

imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente

assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais

feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os

interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente

cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a

proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum

ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis

O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro

consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco

estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo

Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas

Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de

expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que

fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra

o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior

inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)

Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e

fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas

pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus

avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de

governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver

aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco

exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra

os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido

com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo

imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte

O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo

a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como

um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar

em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado

Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para

Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 17

maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o

melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador

narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao

longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a

liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade

No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se

dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador

enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma

de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana

por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na

corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em

Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)

O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco

elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual

ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio

de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem

treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e

em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo

lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso

OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS

Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise

dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas

asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)

descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso

forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles

proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos

diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles

escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de

especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)

Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o

reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente

ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico

ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)

O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob

o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais

antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia

Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)

satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)

3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of

his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in

panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been

so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

18 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano

Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a

dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de

louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de

parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como

fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos

expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais

significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5

As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que

provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram

prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano

(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)

este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e

291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o

casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)

312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl

Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6

Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada

vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio

dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas

em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os

deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam

imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos

Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao

imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele

aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador

de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)

Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal

de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom

patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude

amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso

tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao

seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom

modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da

literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca

saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa

duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus

the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the

(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature

Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic

orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)

Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for

Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of

Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for

Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the

younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo

poliacutetica7

Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver

abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico

modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao

imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece

sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de

Domicianordquo8

CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS

As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De

acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano

havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo

auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados

a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma

foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a

criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se

agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos

traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)

Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell

(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano

vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas

proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-

57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em

395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos

internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais

de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das

quais os imperadores participavam pessoalmente

Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo

poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade

de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura

latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo

que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9

7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the

most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and

friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers

to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent

senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range

of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram

historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved

towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his

consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of

assailing the principate of Domitianrdquo

9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable

period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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REFEREcircNCIAS DOCUMENTAIS

MEYER Gulielmus Q Aurelii Symmachi Relationes Leipzig Teubner 1872

QUINTILIANI M Fabi Institutiones oratoriae libri duodecim Edited by M

Winterbottom Oxford Clarendon Press 1970

SYMMACHUS Quintus Aurelius Aurelii Symmachi quae supersunt Otto Seeck (ed)

Muumlnchen Monumenta Germaniae Historica 1883

_______________ Oration I ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015a Disponiacutevel

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_______________ Oration II ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015b Disponiacutevel

emlthttpswwwuvmedu~bsaylorromeSymmachus2pdfgt Acesso em 19102016

_______________ Oration III ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015c Disponiacutevel

emlthttpswwwuvmedu~bsaylorromeSymmachus3pdfgt Acesso em 19102016

_______________ Q Aurelii Symmachi Octo orationum ineditarum partes Ediccedilatildeo

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Rome Edinburgh Edinburgh University Press 2013

MITCHELL Stephen A History of the Later Roman Empire AD 284-641 Oxford

Blackwell 2015

OrsquoDONNELL James J Pagans the end of traditional religion and the rise of

Christianity New York HarperCollins 2015

SILVA Gilvan Ventura amp MENDES Norma Musco Diocleciano e Constantino a

construccedilatildeo do Dominato In SILVA Gilvan Ventura amp MENDES Norma Musco

Carlos Eduardo Schmitt

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SOGNO Cristiana Q Aurelius Symmachus a political biography Michigan Michigan

Press 2006

22 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

DOI httpsdoiorg1012957principia201946510

OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS

DE BRAacuteS CUBAS

Bruno Torres dos Santos

RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as

referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida

dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no

iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive

enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees

da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes

personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de

que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as

referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga

PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio

THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF

BRAS CUBAS

ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to

the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the

Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius

at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues

of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already

brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth

century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary

creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not

recover references to the culture literature and history of Ancient Rome

KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius

Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute

nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento

Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante

discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-

mail brunots_hotmailcom

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

24 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839

Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma

universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica

teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da

Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela

Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a

ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908

com 69 anos

Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio

Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e

adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos

filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta

Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos

requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser

reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de

universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO

2010 p 65)

Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute

singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses

traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e

interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo

utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio

primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras

(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia

Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do

romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps

termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se

mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho

com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de

nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida

pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)

Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os

merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero

romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute

todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para

usarmos termos proacuteprios da literatura latina

Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um

narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira

discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a

impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que

eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica

literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo

Bosi

1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 25

Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade

passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo

dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a

histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois

mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves

idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc

e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que

restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador

Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)

Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a

indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto

com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta

o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do

pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e

um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de

poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do

adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de

Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-

Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais

heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos

sem grandeza (BOSI 2006 p 180)

Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a

intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-

personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do

ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera

burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer

fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos

imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda

poliacutetica de modo velado

Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o

bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de

sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca

encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais

plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido

nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio

o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador

Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres

(ESTEVES 2015 p 1-7)

Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno

dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69

EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno

militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor

segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai

na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)

Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas

imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo

na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o

bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

26 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o

principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses

e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das

bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a

funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p

971)

A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as

referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes

fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze

primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano

Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros

anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC

Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi

usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo

agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos

O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII

designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas

antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o

panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)

A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um

gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria

sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e

agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)

Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo

iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por

uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e

seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia

adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um

medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse

projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da

cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a

primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio

A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor

de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea

fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas

cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna

loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou

ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de

Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous

ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama

Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu

um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio

tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3

3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual

Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin

Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 27

Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a

proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo

do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno

Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram

personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi

Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso

Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na

biografia suetoniana

Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus

variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne

progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet

Cl 21)

No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da

primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal

modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi

certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no

acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado

Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o

assassinato do sobrinho Caliacutegula

Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit

quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi

secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum

recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum

interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles

animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae

metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)

Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o

impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante

Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto

de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um

pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a

notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu

entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado

raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem

estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do

medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador

Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana

sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e

Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como

um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa

aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio

fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda

que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos

das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em

questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com

Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero

Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose

na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em

razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio

Rolim de Freitas explica que

O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que

o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego

Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois

aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)

Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na

Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos

iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o

argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio

relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico

legume

O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito

Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho

de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo

do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo

similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto

como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro

capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do

gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a

simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor

ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel

artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa

seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse

retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de

Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor

Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes

em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que

eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os

Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap

IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero

biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo

Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo

diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem

possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado

Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto

Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de

sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee

com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega

em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato

com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar

descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um

ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio

Bruno Torres dos Santos

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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general

em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance

Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me

encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia

a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum

cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas

amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de

Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias

Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)

Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato

ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido

firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de

Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva

adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel

por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo

historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu

opositor na Batalha de Tapso

Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo

direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso

natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo

denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua

biografia deste modo

Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui

primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu

in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem

ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar

Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus

est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul

sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore

corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad

primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti

dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)

Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava

sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como

se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um

gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua

toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas

jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com

um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma

outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos

os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu

a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte

inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado

por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem

uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria

dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo

Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram

grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para

qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente

teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia

Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o

defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um

despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente

este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente

o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o

encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso

natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser

um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta

com o fato de dispor do uacutenico tomo

Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro

e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo

natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-

se agrave janela e mostra-o ao sol

Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um

Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e

folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)

Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma

forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar

A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela

rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na

nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-

se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito

ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash

Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de

outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica

esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de

suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees

do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna

Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de

sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem

jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o

Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia

Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve

uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por

conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de

emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a

famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio

Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum

iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu

errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit

Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum

constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo

inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda

eruntrdquo (Suet Jul 31 2)

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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o

veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as

luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um

guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas

coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e

calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos

recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas

atraveacutes das armasrdquo

Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo

sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores

plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab

uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram

ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas

vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)

Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente

ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em

grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados

das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de

um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque

introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal

dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo

Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta

desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida

pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico

no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de

Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo

antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no

capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na

tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento

Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe

derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era

descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma

meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a

Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia

com alvoroccedilo e submissatildeo

Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do

matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe

a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de

Assis Helena cap XIII p 133)

Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto

ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado

tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a

Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito

suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano

Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro

governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio

4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo

imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo

senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai

e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para

a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens

em bustos inscriccedilotildees etc

Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O

narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste

com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar

o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo

(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a

reflexatildeo

A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em

casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de

um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala

grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)

O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida

e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo

amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes

Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu

defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele

eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de

captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano

Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam

amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti

essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam

quidem (Suet Dom 3)

Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas

horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para

uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de

modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo

uma mosca

Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para

o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por

outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo

negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no

iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor

jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como

as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados

a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido

algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria

contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes

Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito

bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 33

historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores

favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado

graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo

de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos

depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal

retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o

Suetocircniordquo

Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a

uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal

capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais

precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha

traiacutedo com igual sinceridade

Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que

foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69

Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia

deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes

de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero

Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo

das Memoacuterias Poacutestumas em completude

Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-

me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos

os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso

de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com

sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em

casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute

faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave

origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a

minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste

pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)

Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador

Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem

e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas

entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a

resposta eacute Suetocircnio

Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex

prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante

ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)

Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre

a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro

pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia

incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute

proveniente da urinardquo

Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos

comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que

vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

34 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu

romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente

contraditoacuterios

Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo

de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos

concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se

mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de

Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria

Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da

traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da

Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos

os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as

referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de

Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis

podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo

IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES

Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)

Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)

Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)

Suet Tit (Suetocircnio Tito)

Suet Ves (Suet Vespasiano)

DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL

ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius

Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31

Cambridge MA Harvard University Press 1914

______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius

Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians

Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and

Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA

Harvard University Press 1914

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 35

REFEREcircNCIAS

BOSI Alfredo Histoacuteria concisa da literatura brasileira 43deged Satildeo Paulo Cultrix 2006

CANDIDO Antonio O sistema literaacuterio consolidado In Iniciaccedilatildeo agrave literatura Brasileira

6deg ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul 2010 p65-126

CITRONI Maacuterio (Dir) CITRONI MCONSOLINO FELABATE M NARDUCCI

(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas

Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006

ESTEVES Anderson Martins Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas

obras Principia ndash Revista do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de

Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Ano 18 nXXX p1-7

2015

FREITAS Horaacutecio Apoloquintose In SILVA Amoacutes FREITAS Horaacutecio (orgs) Um

estudo de Olmar Guterres da Silveira Apocolocintose de Secircneca Rio de Janeiro Editora

Caeteacutes 2010 p 13-18

LORIGA Sabina O limiar biograacutefico In O pequeno x da biografia agrave histoacuteria Traduccedilatildeo

Fernando Sheibe Belo Horizonte Autecircntica Editora 2011 p17-48

MELLOR Ronald The roman historians New York Routledge 1999

MORENO Isabel Historiografiacutea ndash Siglo II- Suetocircnio In CODONtildeER Carmen (Ed)

Historia de la literatura latina Madrid Catedra 1997 p643-652

SILVEIRA Francisco Maciel O conto machadiano ou ldquoa realidade eacute boa o Realismo eacute que

natildeo prestardquo Veredas ndash revista da Associaccedilatildeo Internacional de Lusitanistas Porto 4deg volume

p95-103 2001

36 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

DOI httpsdoiorg1012957principia201946511

LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI

TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO

Heitor Victor

RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade

Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca

de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal

estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da

existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa

das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera

um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de

compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia

helecircnica

PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena

LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE

TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR

ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is

even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it

possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable

because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in

this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an

important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial

example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins

work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually

proved himself to be more important than the helenic tragedy itself

KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine

Introduccedilatildeo

O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua

presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente

uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de

composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende

Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E-mail heitor-victorhotmailcom

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da

seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro

grego e que perdura em nossa cultura

O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance

caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se

apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas

as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum

que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos

permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX

Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas

fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia

aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar

a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la

exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes

dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se

nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim

Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria

No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico

que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave

descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo

Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra

realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma

seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o

inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que

permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama

alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de

aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)

Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei

traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia

Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica

que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de

mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade

em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende

Benjamin por alegoria no drama traacutegico

Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das

concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao

ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com

transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter

proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo

romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular

para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma

alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo

(BENJAMIN 2011 p 171)

1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como

um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador

se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972

p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo

nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano

Heitor Victor

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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para

entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que

encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma

natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar

a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim

permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para

consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar

Benjamin reconhece que

o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o

desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido

psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso

atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso

a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o

caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)

Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa

relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A

comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer

a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como

uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no

abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode

desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral

a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que

trato neste trabalho

Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos

personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e

outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois

extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito

de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso

em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia

de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo

cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao

profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece

Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as

formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao

coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que

o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas

como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo

lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)

Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao

choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e

leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que

nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais

haacutebeis

Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce

claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e

um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos

desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos

surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)

Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da

corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os

momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da

anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance

Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de

Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o

reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de

que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente

e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de

valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas

Marcas do Heroacutei Traacutegico

As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos

de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia

uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei

neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para

si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre

da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena

consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o

ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo

dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico

Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a

abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua

proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais

indiviacuteduos Benjamin afirma

A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei

e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve

ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que

causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN

2011 p 108)

Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega

definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a

profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade

constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio

comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos

o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo

tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos

deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em

algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN

2011 p 108)

Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia

reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por

ele se sacrifica

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 41

ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se

crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes

tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em

minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR

1972 p 243)

O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega

completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O

sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se

direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua

protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento

da sua proacutepria vida

Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute

mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe

corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)

Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da

heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de

natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011

p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um

perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece

nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia

fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a

contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava

quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-

153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute

no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua

meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)

Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia

fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse

aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que

claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do

traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente

nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem

romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho

Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do

reconhecimento da proacutepria morte

Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente

heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis

moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo

mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)

Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da

morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes

de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute

sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo

quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)

Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa

Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida

contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A

culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas

se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face

angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para

clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico

No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo

as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la

na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como

todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa

consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua

lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)

Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro

ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e

genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece

e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que

expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela

ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa

heroiacutena rebate com acidez

ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais

quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de

quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite

Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe

prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos

saborosas (ALENCAR 1972 p 153)

Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais

sincera em um de seus momentos de maior entrega

ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de

minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A

dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica

do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo

que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma

(ALENCAR 1972 p 243)

Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois

precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha

entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-

se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a

projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia

Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim

encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu

papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais

beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute

melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres

Conclusatildeo

Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees

constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego

passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa

possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo

Heitor Victor

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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica

como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de

ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito

pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida

Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta

de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de

convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade

de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando

essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha

destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do

elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo

Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico

levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo

estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro

alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute

precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento

traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas

sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas

como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as

mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo

dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de

uma obra de arte

REFEREcircNCIAS

ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash

Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972

ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005

BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora

2011

CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo

Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986

PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo

Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946512

CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES

ANIMAIS NA ILIacuteADA

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)

RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero

produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste

estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra

de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de

determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o

poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela

forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega

arcaica e claacutessica

PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles

SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES

ANIMALS IN THE ILIAD

ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer

produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study

is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of

Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of

certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals

the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero

projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative

term in the archaic and classical Greek culture

KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle

1 Sobre o siacutemile homeacuterico

Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo

que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por

uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre

outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo

sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1

E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a

possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras

usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

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O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os

siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute

composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que

eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos

nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou

verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo

(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila

separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2

Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia

em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem

em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos

Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas

sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias

sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido

maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles

pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples

menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos

Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais

como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre

outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam

como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e

Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o

siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais

selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham

grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo

(Clarke 2006 p 2)

Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja

examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada

como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o

quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao

seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de

caracterizaccedilatildeo

2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador

Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto

pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter

atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das

personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que

Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa

habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em

ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre

elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo

aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de

uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de

Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e

psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e

Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22

Marco V C Colonnelli

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Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema

eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito

combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar

aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao

animal (Clark 2006 p 4)4

Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm

igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)

Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal

mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os

animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos

com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver

tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute

preciso recorrermos a Aristoacuteteles

Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece

se coadunar com o mundo homeacuterico

Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas

psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo

e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade

e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em

inteligecircncia

῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν

τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ

ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ

φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως

ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os

animais 588 a 19-25)

Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e

os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos

dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por

analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens

comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica

Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos

humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem

do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um

vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura

grega6 mas meramente empiacuterico

Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano

por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que

Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural

possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes

4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se

encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal

Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de

uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem

(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as

relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

48 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas

agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)

A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra

de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos

bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um

todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o

valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si

Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma

caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada

3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores

Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o

animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo

ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo

empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma

passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus

de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o

siacutemile

Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira

Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus

Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos

E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se

Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho

Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre

Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada

Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora

Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio

Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou

Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos

Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio

Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ

κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος

φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα

τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς

ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ

ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι

φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου

δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot

ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα

πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων

ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους

ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot

(Il VIII 17-28)

Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que

configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos

muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim

como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων

πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς

παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil

do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 49

Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois

que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e

tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece

sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar

Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por

causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma

flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar

Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι

ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ

πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί

τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν

διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ

ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-

27)

A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que

Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre

todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em

sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como

ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa

Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal

natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo

demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos

aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem

Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila

Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em

siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que

A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras

localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em

coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo

tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da

Lacocircnia

Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς

τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ

τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ

τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608

a 27-33)

Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens

e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada

no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus

De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem

E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira

Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila

Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees

Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres

As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira

Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos

Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot

οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot

῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων

ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος

ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων

ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει

ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς

αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο

(Il VIII 335-343)

Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus

nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada

animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na

representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico

natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do

animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos

deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria

muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador

Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o

caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais

ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o

leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui

iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que

Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde

outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes

entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo

que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se

ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos

golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte

Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ

οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον

Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται

λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ

πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται

πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν

(Arist HA 629 b 33- 639 a8)

A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior

como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso

jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes

Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis

satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax

Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos

De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne

Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel

τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω

σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν

ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν

(Il VII 255-257)

Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis

representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51

O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite

o combate foi interrompido pelos arautos

O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta

cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa

adversidade

Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma

multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a

face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra

entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que

de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir

para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua

corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo

᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ

διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ

σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει

ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς

ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει

κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι

κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)

Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais

intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns

siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de

alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira

Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax

E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas

E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera

Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas

Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral

Dos bois afugentam catildees e pastores

E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois

Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne

Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos

Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo

E tochas acesas que teme ainda que sedento

E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito

Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto

Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus

Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot

στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον

τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς

ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων

ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο

ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται

οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι

πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων

ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες

ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν

καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot

ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot

ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ

ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν

(Il XI 544-557)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei

em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices

psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso

feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a

situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa

bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo

Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo

comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o

nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo

Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como

voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito

gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado

do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito

e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio

A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um

desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se

trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para

a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do

comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem

exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos

depois em Aristoacuteteles

3 Conclusatildeo

O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais

produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam

muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas

tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com

maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute

descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante

Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do

conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem

o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas

REFEREcircNCIAS

ARISTOTLE Historia Animalium Transl by DArcy Wentworth Thompson Oxford

Clarendon Press 1910

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Gotthelf (eds) Cambridge University Press 2002

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Marco V C Colonnelli

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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

DOI httpsdoiorg1012957principia201946513

OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL

MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS

Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem

praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos

que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-

literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos

periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal

PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS

MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS

ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can

be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify

magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to

demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek

literature and influenced actions that go beyond the temporal bias

KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes

de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam

a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao

afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma

humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre

os seres humanos

Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos

no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica

Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas

(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos

dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de

bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que

haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos

de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de

outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos

(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos

E-mail dulcinascimentobragagmailcom

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como

tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal

como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de

verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar

aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito

de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que

encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou

talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a

menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm

opiniatildeo formada

Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se

restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)

mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras

Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades

eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela

eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica

O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber

que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-

nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai

maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis

que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de

atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a

sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e

ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees

direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente

Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que

determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os

mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por

impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira

Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas

mulheres

Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam

a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo

com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que

envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e

segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades

ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres

sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves

necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias

sobrenaturais

Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e

a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre

acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a

extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos

casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem

Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas

circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a

religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai

1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas

cantos e banquetes

Dulcileide V do Nascimento Braga

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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila

coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato

que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da

sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)

Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos

foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia

nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e

constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes

e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo

estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em

torno deles podendo ser controladas por certos meios

Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas

maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de

mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um

empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra

Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era

composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os

Magosrdquo

Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo

de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria

I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que

revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou

chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128

vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o

haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a

funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar

acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno

Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os

responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo

O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo

negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos

considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi

aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens

merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta

caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave

realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e

maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser

interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos

Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo

ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma

seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um

jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes

dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e

secretamente temidos por outrosrdquo

Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato

do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia

um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem

uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos

Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim

como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria

de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte

dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e

em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes

Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta

palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que

encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que

estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees

epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo

Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar

que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos

acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que

lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de

Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas

teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois

desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena

dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa

O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas

feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um

remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o

termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes

em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo

gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia

que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho

Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do

encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado

associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em

sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute

voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto

pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal

Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do

canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo

Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior

aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que

diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na

estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na

junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como

aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento

ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel

protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos

durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)

As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura

preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem

em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse

processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados

sagrados

Dulcileide V do Nascimento Braga

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 59

Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo

denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm

basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3

Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees

sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem

somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar

nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana

pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que

venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim

Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade

normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca

especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um

gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo

na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite

Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram

utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de

reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns

versos do poema

Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana

Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem

Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada

Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um

Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)

Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica

pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico

para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura

muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de

Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros

oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o

mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede

A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser

observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a

medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras

Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo

Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta

modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que

se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de

Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho

Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que

frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que

tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de

cura do deus

Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem

um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute

uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos

empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-

se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como

banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias

partes do seu corpo

A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como

tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa

teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo

de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de

se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos

eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como

magia

A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de

quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que

relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a

ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo

(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)

Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio

masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith

e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo

obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas

atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas

particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria

algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes

Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes

nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que

demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de

palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de

serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo

A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes

Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena

Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo

E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios

da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos

E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma

Cortai os peitos da mulher morena

Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono

E trazem cores tristes para os meus olhos

Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes

Traze-me para o contato casto de tuas vestes

Salva-me dos braccedilos da mulher morena

Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim

Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca

Satildeo como dois silecircncios que me paralisam

Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena

Livra-me do seu ventre como a campina matinal

Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria

Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena

Reza para murcharem as pernas da mulher morena

Reza para a velhice roer dentro da mulher morena

Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros

E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos

cantos

Dai morte cruel agrave mulher morena

Dulcileide V do Nascimento Braga

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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que

faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas

bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir

a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)

ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo

O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros

encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi

abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar

daquelea que emocionalmente lhe causa mal

A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento

concretizando-os atraveacutes das palavras

Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada

em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego

como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder

Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a

concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas

cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo

desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram

obtidas no passado

Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas

palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas

do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os

profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais

REFEREcircNCIAS

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drsquoAuguste Paris Les Belles Lettres 1976

DOI httpsdoiorg1012957principia201946515

A AGOGEacute ESPARTANA

Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O

desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter

medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de

covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado

perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo

toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases

atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou

deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute

espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos

PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo

THE SPARTAN AGOGEacute

ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The

development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of

anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and

were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and

the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan

society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan

mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has

as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar

education with extremely bellicose objectives

KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus

Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A

criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado

representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto

sentido da palavra (Werner Jaeger)

E-mail oliveira-lluolcombr

A agogeacute espartana

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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo

denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio

Eurotas cercada de montanhas a nordeste

Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-

helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia

A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente

originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e

se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente

constituindo assim o povo helecircnico

Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e

foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os

espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica

peculiar a belicosidade

A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa

legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria

dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do

comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro

instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a

maneira de viver etc

Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo

tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e

desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram

expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo

comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali

comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)

Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador

da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria

I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia

Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees

culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de

expandir-se pelas armas

Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas

tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica

de los Lacedemonios I 1-2)

O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute

que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis

1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o

seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como

tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica

(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora

descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo

rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um

descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu

sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo

se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta

(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em

Vida de Licurgo

Luciene de Lima Oliveira

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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como

ldquoeducaccedilatildeordquo

Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e

chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o

exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a

educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como

tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)

Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar

constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza

grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza

Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra

ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo

adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte

a descreve (JAEGER 2001 p 114)

O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que

nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)

O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar

tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa

ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)

As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus

pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo

governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3

Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem

de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando

completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e

brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse

mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer

as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela

que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas

Paralelas)

Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente

nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida

Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um

pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta

com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees

militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas

Plutarco daacute o seguinte testemunho

Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o

aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria

em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-

lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os

cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior

parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze

anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam

somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e

3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem

seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

A agogeacute espartana

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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos

dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e

dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos

juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir

colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no

inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos

porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO

Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)

A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos

compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um

paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial

Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU

1966 p 42)

Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano

a) rhobiacutedas (termo obscuro)

b) promikkizoacutemenos (meninote)

c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)

Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano

a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)

b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)

c) melleiacuteren (futuro irene)

d) melleiacuteren (irene de segundo ano)

Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano

a) eireacuten de primeiro ano

b) eireacuten de segundo ano

c) eireacuten de terceiro ano

d) eireacuten de quarto ano

e) proteicircras (irene-chefe)

O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em

unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos

que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)

Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram

lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com

propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O

bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era

proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo

obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam

a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)

Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam

deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era

permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores

(Op cit X)

O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as

matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas

olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem

Luciene de Lima Oliveira

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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem

(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida

familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos

acampamentos militares

A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um

ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou

em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou

que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da

poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas

que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas

Paralelas)

Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando

a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se

preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma

disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros

guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto

da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)

O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com

moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em

prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos

Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato

de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir

suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)

Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como

objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como

resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram

em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na

verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra

disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)

Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo

diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na

Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta

por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)

A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas

(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se

rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana

Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma

revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam

em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos

Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o

estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro

ldquoacampamento militarrdquo permanente

Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era

dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras

pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam

participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei

A agogeacute espartana

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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de

hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve

Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e

o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees

dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos

neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada

pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que

vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que

tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar

papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito

muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar

os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo

teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes

esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por

Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que

eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que

espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que

tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)

Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que

frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada

por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois

de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem

que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os

conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan

eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo

concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994

pp 49-50)

Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de

um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os

covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que

natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a

kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja

algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara

entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana

O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo

presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p

82)

O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo

poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer

4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei

Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto

(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas

que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com

a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da

Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967

p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo

VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente

vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC

Luciene de Lima Oliveira

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 69

demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e

educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees

espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo

Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era

morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos

ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas

vidasrdquo (10 W 13-14)

Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A

propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha

(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)

Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade

de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um

homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)

A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave

morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa

morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo

de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus

direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)

A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo

geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da

Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute

proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos

literaacuterios diferentes

Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e

guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos

seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas

seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de

formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)

Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo

veementemente repelido do seio daquela sociedade

Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo

mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito

natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)

O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e

tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis

Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos

antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada

continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma

coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios

com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In

Vidas Paralelas)

Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por

exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um

caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)

Plutarco daacute testemunho dessa coletividade

A agogeacute espartana

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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes

antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se

acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de

si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo

de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In

Vidas Paralelas)

Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas

refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes

banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)

Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as

cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica

II 1262b 7-8)

O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia

Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta

Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que

tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era

que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o

limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das

refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)

De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios

(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue

Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La

Republica de los Lacedemonios)5

Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um

caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo

comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em

seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face

dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida

Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na

verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de

si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em

contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo

O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a

sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que

seraacute mais clara nos traacutegicos)

A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio

de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais

acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do

indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual

enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e

dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute

claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia

5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio

filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo

poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)

Luciene de Lima Oliveira

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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer

corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu

companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo

Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os

trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente

mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa

sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e

encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO

Histoacuteria IX 71)

Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio

nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa

em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles

se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor

belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos

abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo

tolerava

Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras

fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de

permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro

combateu furiosamente fora de seu posto

A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da

sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear

seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange

A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a

cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do

prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados

como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no

combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)

Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras

pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima

da famiacutelia vinha a poacutelis

Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto

quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada

cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o

esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)

As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam

exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos

ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo

com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do

parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)

Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos

mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos

fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de

eugenia dentro da sociedade espartana

Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas

crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou

deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses

A agogeacute espartana

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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente

natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6

Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia

disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se

dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que

natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela

vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para

ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres

que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda

parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam

se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles

que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem

resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e

ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes

(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos

fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de

que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos

(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)

A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que

Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII

aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a

rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de

uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas

de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois

do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute

e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por

principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e

Messecircnia que foram escravizados

A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as

aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo

VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da

riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o

dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes

quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute

intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo

para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)

Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo

confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem

apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os

espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica

de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente

belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros

6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a

matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes

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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser

destemidos diante do inimigo

Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para

a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar

maneira de viver aos adultos

REFEREcircNCIAS

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PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Lisboa

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PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de J Guinsburg Satildeo Paulo Claacutessicos

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A agogeacute espartana

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VERNANT Jean-Pierre O Homem Grego Lisboa Editorial Presenccedila 1994

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1992

Page 5: Principia XXXVIII - UERJ

DOI httpsdoiorg1012957principia201946485

HOMEM E MULHER OS CRIOU

Isabel Arco Verde Santos (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo retoma os textos da criaccedilatildeo e reflete reflete especificamente

na criaccedilatildeo da mulher Os termos hebraicos que acompanham a narrativa da criaccedilatildeo e se

relacionem com a figura feminina tecircm muito a nos contar Afinal qual o papel da mulher

e seu objetivo ao ser criada frente ao homem Haveria uma clara dimensatildeo de

superioridade ou inferioridade refletidas nestes relatos Em nossa sociedade de cultura

cristatilde o texto biacuteblico tem valor imensuraacutevel na relaccedilatildeo de gecircnero que vivemos em nossa

sociedade Voltar o olhar ao texto biacuteblico e buscar nele caminhos a partir da criacutetica textual

eacute uma forma de buscar respostas para diminuir as injusticcedilas que separam homens e

mulheres

PALAVRAS-CHAVE relatos de criaccedilatildeo relaccedilatildeo homem mulher Eva e Lilith

MALE AND FEMALE CREATED HE THEM

ABSTRACT This article analyzes the Hebrew texts of creation and reflects specifically

on the creation of women The Hebrew terms that accompany the creation narrative and

relate to the female figure have much to tell us What is the function of women and their

purpose when being created Would there be a clear dimension of superiority or

inferiority between men and women reflected in these texts In our Christian culture

society the biblical text has immeasurable value in the gender relationship we live in our

society Turning to the biblical text through textual criticism is a way of seeking answers

to reduce the injustices that separate men and women

KEYWORDS creation texts men and women relationship Eva and Lilith

Nosso objetivo neste primeiro momento eacute tratar do texto da criaccedilatildeo do homem e

da mulher Este texto eacute baacutesico para qualquer discussatildeo Os textos que iremos usar

encontram-se todos no livro de Bereshit ou Gecircnesis Eacute o primeiro livro da Torah ou

Pentateuco e traz nos seus primeiros capiacutetulos o relato da criaccedilatildeo

Eacute possiacutevel identificar dois relatos diferentes para esta histoacuteria Histoacuterias de

enfoques diferentes e origens tambeacutem diferentes O primeiro encontra-se em Gecircnesis

126-31 O segundo no capiacutetulo 215 a 24 deste mesmo livro Ambos tratam da criaccedilatildeo

do ser humano homem e mulher

No primeiro texto a designaccedilatildeo hebraica usada para homem eacute zakhar1 e neqebah2

para a mulher Estes termos indicam o que eacute masculino e o que eacute feminino E-mail verdesantosuolcombr 1 Zainkafresh 2 Nunqophbeit

Homem e mulher os criou

8 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a

memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para

o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino

Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser

androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto

porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem

a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o

chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos

(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila

No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam

vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o

artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo

abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma

indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o

ser humano criado

O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua

imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino

HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o

pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele

A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo

ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo

discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro

homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre

Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo

primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se

concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento

de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila

de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com

sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma

importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando

este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer

nome proacuteprio eacute especificado por natureza4

Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso

atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam

ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante

no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser

homem Adatildeo

O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo

seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida

dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A

BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o

colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem

3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino

mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a

coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino

e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito

ela ajuda a identificar o predicado

Isabel Arco Verde Santos

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eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro

homem ndash Adatildeo

Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo

cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No

verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam

e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe

seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais

especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo

hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo

havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse

eacutezer e neacuteged

Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo

acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece

ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo

desenvolvida

HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral

a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de

outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por

Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente

Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte

de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres

inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que

natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher

O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de

em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na

forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil

o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a

todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O

hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs

auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o

sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio

O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio

porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha

socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como

uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo

como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto

este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)

Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher

identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para

construir a mulher

Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus

com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que

ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute

feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de

Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua

costela

O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da

palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o

reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo

Homem e mulher os criou

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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -

semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da

humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas

entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de

homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma

narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar

que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo

que se faz da mesma mateacuteria

Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha

chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo

do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele

lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado

e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso

Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo

soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam

quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico

e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se

identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria

se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido

Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus

institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a

primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio

masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos

principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos

capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher

do povo e a estrangeira

Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos

desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser

encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe

denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de

Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo

tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa

noite)

Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou

problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa

miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de

Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa

imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por

fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES

ALMEIDA 2019)

Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a

recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta

Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o

5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv

(1986)

Isabel Arco Verde Santos

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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim

O texto mistura entatildeo as duas fontes

A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma

possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com

a qual ele HaAdam se identificasse

A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao

papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se

faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava

ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade

que culturalmente ainda se insiste afirmar

O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer

preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-

Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que

natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila

divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia

comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade

A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se

entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo

o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a

mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam

na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo

seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo

que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade

Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela

conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser

semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela

REFEREcircNCIAS

A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1958

BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967

BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995

EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer

1972 3 vol

FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa

15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira

GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de

Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital

de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt

Homem e mulher os criou

12 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo

Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988

KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix

1986

PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro

Brasiliense 1993

PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e

notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo

Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

DOI httpsdoiorg1012957principia201946508

AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO

REINADO DE VALENTINIANO I

Carlos Eduardo Schmitt

RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual

chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)

e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III

proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de

Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em

vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III

tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I

A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma

agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador

PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE

KINGDOM OF VALENTINIAN I

ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work

from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses

(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced

between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in

384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our

paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career

and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes

we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as

a bridge between the Senate and the emperor

KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I

LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL

REINADO DE VALENTINIANO I

RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la

cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes

(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I

Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

14 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como

prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo

auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes

I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de

Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador

enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador

PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

INTRODUCcedilAtildeO

Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco

foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas

obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo

em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego

(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de

seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de

estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem

que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1

(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da

religiatildeo tradicional romana

Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de

Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo

peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora

defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de

Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus

simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto

Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto

Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem

documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi

um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de

Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador

Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes

desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou

conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante

seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder

a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja

Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas

orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo

latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as

orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como

esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros

escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a

produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que

por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada

1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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ORATIONES I II E III

Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que

iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir

uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de

reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava

apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea

tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte

Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea

uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa

era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim

Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia

natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os

senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores

aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo

Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta

anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em

xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de

Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro

ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que

das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio

Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou

tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano

filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de

Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006

p 6)

A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um

sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter

solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade

e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de

que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o

que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles

de que ouviu o testemunho

Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano

como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da

Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o

estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros

anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico

como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da

nova dinastia

2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum

oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES

2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano

e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador

nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso

significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas

sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em

diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe

qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado

que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo

ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um

consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)

O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-

los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre

ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no

poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra

formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano

Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de

imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente

assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais

feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os

interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente

cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a

proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum

ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis

O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro

consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco

estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo

Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas

Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de

expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que

fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra

o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior

inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)

Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e

fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas

pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus

avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de

governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver

aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco

exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra

os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido

com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo

imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte

O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo

a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como

um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar

em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado

Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para

Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo

Carlos Eduardo Schmitt

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maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o

melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador

narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao

longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a

liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade

No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se

dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador

enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma

de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana

por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na

corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em

Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)

O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco

elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual

ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio

de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem

treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e

em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo

lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso

OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS

Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise

dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas

asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)

descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso

forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles

proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos

diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles

escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de

especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)

Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o

reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente

ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico

ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)

O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob

o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais

antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia

Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)

satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)

3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of

his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in

panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been

so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano

Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a

dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de

louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de

parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como

fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos

expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais

significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5

As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que

provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram

prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano

(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)

este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e

291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o

casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)

312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl

Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6

Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada

vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio

dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas

em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os

deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam

imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos

Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao

imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele

aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador

de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)

Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal

de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom

patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude

amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso

tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao

seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom

modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da

literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca

saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa

duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus

the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the

(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature

Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic

orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)

Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for

Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of

Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for

Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the

younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo

poliacutetica7

Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver

abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico

modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao

imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece

sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de

Domicianordquo8

CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS

As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De

acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano

havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo

auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados

a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma

foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a

criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se

agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos

traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)

Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell

(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano

vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas

proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-

57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em

395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos

internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais

de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das

quais os imperadores participavam pessoalmente

Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo

poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade

de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura

latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo

que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9

7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the

most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and

friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers

to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent

senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range

of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram

historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved

towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his

consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of

assailing the principate of Domitianrdquo

9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable

period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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REFEREcircNCIAS DOCUMENTAIS

MEYER Gulielmus Q Aurelii Symmachi Relationes Leipzig Teubner 1872

QUINTILIANI M Fabi Institutiones oratoriae libri duodecim Edited by M

Winterbottom Oxford Clarendon Press 1970

SYMMACHUS Quintus Aurelius Aurelii Symmachi quae supersunt Otto Seeck (ed)

Muumlnchen Monumenta Germaniae Historica 1883

_______________ Oration I ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015a Disponiacutevel

emlthttpswwwuvmedu~bsaylorromeSymmachus1pdfgt Acesso em 19102016

_______________ Oration II ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015b Disponiacutevel

emlthttpswwwuvmedu~bsaylorromeSymmachus2pdfgt Acesso em 19102016

_______________ Oration III ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015c Disponiacutevel

emlthttpswwwuvmedu~bsaylorromeSymmachus3pdfgt Acesso em 19102016

_______________ Q Aurelii Symmachi Octo orationum ineditarum partes Ediccedilatildeo

introduccedilatildeo e comentaacuterios de Angelo Mai Milatildeo Biblioteca Ambrosiana 1815

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GALLEGO Joseacute Antonio Valdeacutes Informes ndash Discursos Introducciones Traduccioacuten y

notas de Joseacute Antonio Valdeacutes Gallego Madrid Editorial Gredos S A 2003

GIBSON Bruce The High Empire AD 69-200 In HARRISON Stephen (ed) A

Companion to Latin Literature Oxford Blackwell 2005

LEE AD From Rome to Byzantium AD 363 to 565 ndash The Transformation of Ancient

Rome Edinburgh Edinburgh University Press 2013

MITCHELL Stephen A History of the Later Roman Empire AD 284-641 Oxford

Blackwell 2015

OrsquoDONNELL James J Pagans the end of traditional religion and the rise of

Christianity New York HarperCollins 2015

SILVA Gilvan Ventura amp MENDES Norma Musco Diocleciano e Constantino a

construccedilatildeo do Dominato In SILVA Gilvan Ventura amp MENDES Norma Musco

Carlos Eduardo Schmitt

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SOGNO Cristiana Q Aurelius Symmachus a political biography Michigan Michigan

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22 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

DOI httpsdoiorg1012957principia201946510

OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS

DE BRAacuteS CUBAS

Bruno Torres dos Santos

RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as

referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida

dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no

iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive

enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees

da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes

personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de

que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as

referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga

PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio

THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF

BRAS CUBAS

ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to

the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the

Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius

at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues

of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already

brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth

century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary

creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not

recover references to the culture literature and history of Ancient Rome

KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius

Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute

nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento

Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante

discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-

mail brunots_hotmailcom

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839

Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma

universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica

teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da

Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela

Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a

ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908

com 69 anos

Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio

Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e

adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos

filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta

Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos

requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser

reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de

universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO

2010 p 65)

Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute

singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses

traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e

interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo

utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio

primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras

(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia

Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do

romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps

termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se

mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho

com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de

nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida

pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)

Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os

merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero

romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute

todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para

usarmos termos proacuteprios da literatura latina

Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um

narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira

discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a

impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que

eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica

literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo

Bosi

1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum

Bruno Torres dos Santos

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Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade

passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo

dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a

histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois

mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves

idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc

e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que

restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador

Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)

Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a

indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto

com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta

o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do

pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e

um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de

poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do

adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de

Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-

Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais

heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos

sem grandeza (BOSI 2006 p 180)

Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a

intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-

personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do

ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera

burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer

fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos

imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda

poliacutetica de modo velado

Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o

bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de

sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca

encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais

plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido

nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio

o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador

Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres

(ESTEVES 2015 p 1-7)

Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno

dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69

EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno

militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor

segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai

na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)

Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas

imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo

na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o

bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o

principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses

e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das

bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a

funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p

971)

A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as

referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes

fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze

primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano

Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros

anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC

Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi

usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo

agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos

O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII

designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas

antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o

panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)

A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um

gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria

sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e

agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)

Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo

iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por

uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e

seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia

adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um

medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse

projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da

cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a

primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio

A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor

de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea

fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas

cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna

loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou

ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de

Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous

ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama

Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu

um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio

tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3

3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual

Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin

Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 27

Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a

proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo

do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno

Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram

personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi

Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso

Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na

biografia suetoniana

Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus

variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne

progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet

Cl 21)

No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da

primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal

modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi

certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no

acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado

Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o

assassinato do sobrinho Caliacutegula

Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit

quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi

secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum

recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum

interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles

animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae

metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)

Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o

impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante

Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto

de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um

pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a

notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu

entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado

raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem

estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do

medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador

Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana

sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e

Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como

um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa

aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio

fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda

que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos

das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em

questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com

Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero

Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose

na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em

razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio

Rolim de Freitas explica que

O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que

o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego

Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois

aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)

Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na

Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos

iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o

argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio

relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico

legume

O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito

Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho

de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo

do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo

similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto

como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro

capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do

gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a

simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor

ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel

artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa

seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse

retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de

Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor

Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes

em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que

eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os

Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap

IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero

biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo

Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo

diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem

possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado

Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto

Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de

sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee

com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega

em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato

com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar

descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um

ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio

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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general

em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance

Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me

encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia

a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum

cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas

amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de

Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias

Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)

Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato

ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido

firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de

Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva

adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel

por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo

historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu

opositor na Batalha de Tapso

Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo

direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso

natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo

denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua

biografia deste modo

Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui

primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu

in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem

ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar

Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus

est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul

sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore

corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad

primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti

dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)

Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava

sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como

se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um

gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua

toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas

jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com

um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma

outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos

os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu

a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte

inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado

por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem

uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria

dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo

Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram

grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para

qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente

teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia

Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o

defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um

despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente

este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente

o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o

encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso

natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser

um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta

com o fato de dispor do uacutenico tomo

Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro

e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo

natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-

se agrave janela e mostra-o ao sol

Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um

Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e

folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)

Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma

forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar

A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela

rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na

nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-

se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito

ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash

Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de

outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica

esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de

suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees

do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna

Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de

sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem

jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o

Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia

Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve

uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por

conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de

emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a

famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio

Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum

iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu

errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit

Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum

constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo

inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda

eruntrdquo (Suet Jul 31 2)

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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o

veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as

luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um

guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas

coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e

calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos

recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas

atraveacutes das armasrdquo

Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo

sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores

plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab

uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram

ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas

vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)

Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente

ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em

grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados

das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de

um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque

introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal

dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo

Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta

desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida

pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico

no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de

Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo

antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no

capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na

tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento

Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe

derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era

descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma

meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a

Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia

com alvoroccedilo e submissatildeo

Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do

matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe

a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de

Assis Helena cap XIII p 133)

Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto

ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado

tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a

Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito

suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano

Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro

governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio

4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo

imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo

senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai

e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para

a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens

em bustos inscriccedilotildees etc

Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O

narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste

com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar

o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo

(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a

reflexatildeo

A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em

casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de

um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala

grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)

O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida

e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo

amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes

Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu

defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele

eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de

captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano

Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam

amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti

essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam

quidem (Suet Dom 3)

Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas

horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para

uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de

modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo

uma mosca

Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para

o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por

outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo

negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no

iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor

jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como

as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados

a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido

algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria

contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes

Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito

bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo

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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores

favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado

graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo

de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos

depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal

retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o

Suetocircniordquo

Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a

uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal

capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais

precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha

traiacutedo com igual sinceridade

Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que

foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69

Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia

deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes

de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero

Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo

das Memoacuterias Poacutestumas em completude

Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-

me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos

os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso

de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com

sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em

casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute

faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave

origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a

minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste

pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)

Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador

Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem

e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas

entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a

resposta eacute Suetocircnio

Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex

prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante

ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)

Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre

a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro

pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia

incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute

proveniente da urinardquo

Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos

comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que

vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu

romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente

contraditoacuterios

Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo

de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos

concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se

mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de

Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria

Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da

traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da

Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos

os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as

referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de

Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis

podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo

IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES

Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)

Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)

Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)

Suet Tit (Suetocircnio Tito)

Suet Ves (Suet Vespasiano)

DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL

ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

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Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31

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______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius

Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians

Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and

Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA

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Bruno Torres dos Santos

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511

LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI

TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO

Heitor Victor

RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade

Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca

de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal

estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da

existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa

das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera

um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de

compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia

helecircnica

PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena

LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE

TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR

ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is

even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it

possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable

because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in

this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an

important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial

example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins

work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually

proved himself to be more important than the helenic tragedy itself

KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine

Introduccedilatildeo

O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua

presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente

uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de

composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende

Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E-mail heitor-victorhotmailcom

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

38 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da

seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro

grego e que perdura em nossa cultura

O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance

caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se

apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas

as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum

que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos

permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX

Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas

fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia

aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar

a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la

exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes

dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se

nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim

Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria

No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico

que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave

descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo

Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra

realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma

seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o

inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que

permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama

alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de

aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)

Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei

traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia

Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica

que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de

mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade

em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende

Benjamin por alegoria no drama traacutegico

Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das

concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao

ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com

transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter

proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo

romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular

para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma

alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo

(BENJAMIN 2011 p 171)

1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como

um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador

se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972

p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo

nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano

Heitor Victor

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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para

entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que

encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma

natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar

a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim

permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para

consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar

Benjamin reconhece que

o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o

desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido

psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso

atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso

a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o

caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)

Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa

relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A

comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer

a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como

uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no

abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode

desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral

a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que

trato neste trabalho

Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos

personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e

outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois

extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito

de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso

em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia

de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo

cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao

profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece

Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as

formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao

coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que

o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas

como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo

lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)

Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao

choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e

leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que

nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais

haacutebeis

Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce

claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e

um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos

desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos

surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)

Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da

corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os

momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da

anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance

Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de

Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o

reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de

que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente

e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de

valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas

Marcas do Heroacutei Traacutegico

As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos

de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia

uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei

neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para

si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre

da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena

consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o

ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo

dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico

Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a

abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua

proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais

indiviacuteduos Benjamin afirma

A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei

e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve

ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que

causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN

2011 p 108)

Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega

definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a

profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade

constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio

comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos

o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo

tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos

deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em

algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN

2011 p 108)

Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia

reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por

ele se sacrifica

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 41

ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se

crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes

tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em

minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR

1972 p 243)

O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega

completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O

sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se

direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua

protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento

da sua proacutepria vida

Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute

mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe

corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)

Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da

heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de

natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011

p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um

perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece

nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia

fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a

contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava

quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-

153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute

no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua

meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)

Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia

fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse

aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que

claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do

traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente

nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem

romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho

Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do

reconhecimento da proacutepria morte

Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente

heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis

moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo

mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)

Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da

morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes

de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute

sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo

quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)

Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa

Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida

contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A

culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas

se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

42 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face

angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para

clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico

No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo

as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la

na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como

todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa

consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua

lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)

Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro

ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e

genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece

e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que

expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela

ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa

heroiacutena rebate com acidez

ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais

quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de

quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite

Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe

prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos

saborosas (ALENCAR 1972 p 153)

Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais

sincera em um de seus momentos de maior entrega

ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de

minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A

dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica

do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo

que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma

(ALENCAR 1972 p 243)

Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois

precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha

entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-

se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a

projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia

Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim

encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu

papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais

beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute

melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres

Conclusatildeo

Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees

constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego

passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa

possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 43

dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica

como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de

ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito

pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida

Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta

de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de

convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade

de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando

essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha

destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do

elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo

Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico

levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo

estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro

alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute

precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento

traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas

sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas

como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as

mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo

dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de

uma obra de arte

REFEREcircNCIAS

ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash

Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972

ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005

BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora

2011

CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo

Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986

PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo

Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

44 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

DOI httpsdoiorg1012957principia201946512

CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES

ANIMAIS NA ILIacuteADA

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)

RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero

produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste

estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra

de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de

determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o

poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela

forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega

arcaica e claacutessica

PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles

SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES

ANIMALS IN THE ILIAD

ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer

produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study

is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of

Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of

certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals

the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero

projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative

term in the archaic and classical Greek culture

KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle

1 Sobre o siacutemile homeacuterico

Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo

que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por

uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre

outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo

sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1

E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a

possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras

usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

46 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os

siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute

composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que

eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos

nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou

verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo

(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila

separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2

Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia

em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem

em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos

Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas

sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias

sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido

maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles

pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples

menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos

Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais

como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre

outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam

como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e

Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o

siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais

selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham

grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo

(Clarke 2006 p 2)

Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja

examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada

como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o

quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao

seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de

caracterizaccedilatildeo

2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador

Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto

pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter

atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das

personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que

Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa

habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em

ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre

elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo

aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de

uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de

Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e

psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e

Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 47

Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema

eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito

combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar

aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao

animal (Clark 2006 p 4)4

Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm

igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)

Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal

mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os

animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos

com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver

tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute

preciso recorrermos a Aristoacuteteles

Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece

se coadunar com o mundo homeacuterico

Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas

psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo

e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade

e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em

inteligecircncia

῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν

τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ

ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ

φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως

ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os

animais 588 a 19-25)

Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e

os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos

dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por

analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens

comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica

Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos

humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem

do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um

vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura

grega6 mas meramente empiacuterico

Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano

por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que

Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural

possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes

4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se

encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal

Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de

uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem

(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as

relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

48 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas

agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)

A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra

de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos

bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um

todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o

valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si

Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma

caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada

3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores

Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o

animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo

ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo

empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma

passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus

de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o

siacutemile

Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira

Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus

Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos

E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se

Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho

Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre

Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada

Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora

Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio

Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou

Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos

Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio

Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ

κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος

φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα

τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς

ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ

ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι

φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου

δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot

ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα

πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων

ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους

ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot

(Il VIII 17-28)

Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que

configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos

muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim

como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων

πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς

παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil

do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 49

Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois

que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e

tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece

sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar

Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por

causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma

flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar

Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι

ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ

πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί

τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν

διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ

ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-

27)

A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que

Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre

todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em

sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como

ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa

Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal

natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo

demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos

aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem

Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila

Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em

siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que

A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras

localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em

coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo

tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da

Lacocircnia

Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς

τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ

τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ

τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608

a 27-33)

Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens

e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada

no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus

De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem

E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira

Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila

Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees

Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres

As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira

Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos

Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot

οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot

῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων

ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος

ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων

ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει

ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς

αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο

(Il VIII 335-343)

Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus

nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada

animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na

representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico

natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do

animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos

deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria

muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador

Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o

caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais

ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o

leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui

iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que

Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde

outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes

entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo

que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se

ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos

golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte

Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ

οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον

Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται

λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ

πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται

πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν

(Arist HA 629 b 33- 639 a8)

A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior

como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso

jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes

Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis

satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax

Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos

De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne

Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel

τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω

σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν

ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν

(Il VII 255-257)

Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis

representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51

O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite

o combate foi interrompido pelos arautos

O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta

cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa

adversidade

Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma

multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a

face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra

entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que

de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir

para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua

corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo

᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ

διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ

σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει

ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς

ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει

κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι

κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)

Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais

intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns

siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de

alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira

Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax

E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas

E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera

Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas

Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral

Dos bois afugentam catildees e pastores

E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois

Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne

Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos

Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo

E tochas acesas que teme ainda que sedento

E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito

Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto

Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus

Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot

στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον

τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς

ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων

ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο

ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται

οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι

πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων

ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες

ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν

καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot

ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot

ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ

ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν

(Il XI 544-557)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei

em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices

psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso

feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a

situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa

bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo

Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo

comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o

nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo

Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como

voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito

gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado

do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito

e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio

A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um

desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se

trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para

a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do

comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem

exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos

depois em Aristoacuteteles

3 Conclusatildeo

O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais

produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam

muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas

tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com

maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute

descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante

Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do

conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem

o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas

REFEREcircNCIAS

ARISTOTLE Historia Animalium Transl by DArcy Wentworth Thompson Oxford

Clarendon Press 1910

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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

DOI httpsdoiorg1012957principia201946513

OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL

MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS

Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem

praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos

que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-

literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos

periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal

PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS

MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS

ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can

be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify

magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to

demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek

literature and influenced actions that go beyond the temporal bias

KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes

de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam

a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao

afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma

humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre

os seres humanos

Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos

no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica

Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas

(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos

dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de

bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que

haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos

de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de

outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos

(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos

E-mail dulcinascimentobragagmailcom

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como

tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal

como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de

verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar

aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito

de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que

encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou

talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a

menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm

opiniatildeo formada

Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se

restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)

mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras

Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades

eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela

eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica

O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber

que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-

nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai

maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis

que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de

atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a

sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e

ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees

direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente

Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que

determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os

mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por

impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira

Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas

mulheres

Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam

a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo

com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que

envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e

segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades

ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres

sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves

necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias

sobrenaturais

Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e

a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre

acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a

extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos

casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem

Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas

circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a

religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai

1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas

cantos e banquetes

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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila

coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato

que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da

sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)

Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos

foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia

nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e

constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes

e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo

estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em

torno deles podendo ser controladas por certos meios

Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas

maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de

mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um

empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra

Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era

composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os

Magosrdquo

Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo

de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria

I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que

revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou

chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128

vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o

haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a

funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar

acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno

Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os

responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo

O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo

negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos

considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi

aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens

merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta

caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave

realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e

maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser

interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos

Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo

ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma

seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um

jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes

dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e

secretamente temidos por outrosrdquo

Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato

do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia

um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem

uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos

Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim

como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria

de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte

dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e

em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes

Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta

palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que

encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que

estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees

epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo

Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar

que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos

acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que

lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de

Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas

teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois

desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena

dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa

O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas

feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um

remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o

termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes

em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo

gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia

que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho

Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do

encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado

associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em

sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute

voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto

pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal

Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do

canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo

Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior

aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que

diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na

estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na

junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como

aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento

ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel

protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos

durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)

As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura

preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem

em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse

processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados

sagrados

Dulcileide V do Nascimento Braga

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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo

denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm

basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3

Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees

sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem

somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar

nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana

pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que

venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim

Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade

normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca

especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um

gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo

na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite

Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram

utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de

reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns

versos do poema

Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana

Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem

Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada

Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um

Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)

Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica

pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico

para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura

muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de

Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros

oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o

mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede

A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser

observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a

medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras

Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo

Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta

modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que

se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de

Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho

Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que

frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que

tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de

cura do deus

Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem

um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute

uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos

empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-

se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como

banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias

partes do seu corpo

A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como

tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa

teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo

de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de

se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos

eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como

magia

A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de

quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que

relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a

ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo

(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)

Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio

masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith

e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo

obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas

atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas

particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria

algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes

Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes

nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que

demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de

palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de

serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo

A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes

Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena

Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo

E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios

da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos

E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma

Cortai os peitos da mulher morena

Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono

E trazem cores tristes para os meus olhos

Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes

Traze-me para o contato casto de tuas vestes

Salva-me dos braccedilos da mulher morena

Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim

Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca

Satildeo como dois silecircncios que me paralisam

Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena

Livra-me do seu ventre como a campina matinal

Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria

Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena

Reza para murcharem as pernas da mulher morena

Reza para a velhice roer dentro da mulher morena

Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros

E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos

cantos

Dai morte cruel agrave mulher morena

Dulcileide V do Nascimento Braga

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 61

O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que

faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas

bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir

a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)

ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo

O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros

encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi

abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar

daquelea que emocionalmente lhe causa mal

A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento

concretizando-os atraveacutes das palavras

Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada

em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego

como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder

Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a

concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas

cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo

desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram

obtidas no passado

Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas

palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas

do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os

profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515

A AGOGEacute ESPARTANA

Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O

desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter

medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de

covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado

perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo

toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases

atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou

deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute

espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos

PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo

THE SPARTAN AGOGEacute

ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The

development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of

anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and

were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and

the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan

society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan

mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has

as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar

education with extremely bellicose objectives

KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus

Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A

criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado

representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto

sentido da palavra (Werner Jaeger)

E-mail oliveira-lluolcombr

A agogeacute espartana

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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo

denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio

Eurotas cercada de montanhas a nordeste

Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-

helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia

A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente

originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e

se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente

constituindo assim o povo helecircnico

Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e

foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os

espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica

peculiar a belicosidade

A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa

legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria

dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do

comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro

instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a

maneira de viver etc

Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo

tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e

desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram

expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo

comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali

comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)

Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador

da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria

I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia

Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees

culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de

expandir-se pelas armas

Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas

tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica

de los Lacedemonios I 1-2)

O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute

que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis

1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o

seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como

tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica

(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora

descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo

rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um

descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu

sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo

se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta

(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em

Vida de Licurgo

Luciene de Lima Oliveira

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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como

ldquoeducaccedilatildeordquo

Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e

chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o

exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a

educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como

tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)

Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar

constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza

grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza

Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra

ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo

adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte

a descreve (JAEGER 2001 p 114)

O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que

nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)

O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar

tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa

ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)

As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus

pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo

governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3

Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem

de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando

completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e

brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse

mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer

as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela

que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas

Paralelas)

Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente

nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida

Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um

pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta

com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees

militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas

Plutarco daacute o seguinte testemunho

Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o

aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria

em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-

lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os

cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior

parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze

anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam

somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e

3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem

seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

A agogeacute espartana

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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos

dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e

dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos

juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir

colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no

inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos

porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO

Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)

A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos

compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um

paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial

Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU

1966 p 42)

Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano

a) rhobiacutedas (termo obscuro)

b) promikkizoacutemenos (meninote)

c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)

Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano

a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)

b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)

c) melleiacuteren (futuro irene)

d) melleiacuteren (irene de segundo ano)

Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano

a) eireacuten de primeiro ano

b) eireacuten de segundo ano

c) eireacuten de terceiro ano

d) eireacuten de quarto ano

e) proteicircras (irene-chefe)

O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em

unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos

que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)

Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram

lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com

propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O

bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era

proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo

obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam

a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)

Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam

deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era

permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores

(Op cit X)

O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as

matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas

olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem

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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem

(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida

familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos

acampamentos militares

A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um

ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou

em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou

que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da

poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas

que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas

Paralelas)

Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando

a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se

preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma

disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros

guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto

da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)

O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com

moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em

prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos

Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato

de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir

suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)

Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como

objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como

resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram

em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na

verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra

disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)

Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo

diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na

Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta

por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)

A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas

(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se

rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana

Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma

revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam

em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos

Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o

estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro

ldquoacampamento militarrdquo permanente

Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era

dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras

pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam

participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei

A agogeacute espartana

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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de

hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve

Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e

o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees

dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos

neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada

pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que

vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que

tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar

papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito

muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar

os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo

teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes

esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por

Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que

eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que

espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que

tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)

Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que

frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada

por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois

de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem

que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os

conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan

eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo

concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994

pp 49-50)

Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de

um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os

covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que

natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a

kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja

algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara

entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana

O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo

presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p

82)

O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo

poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer

4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei

Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto

(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas

que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com

a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da

Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967

p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo

VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente

vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC

Luciene de Lima Oliveira

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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e

educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees

espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo

Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era

morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos

ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas

vidasrdquo (10 W 13-14)

Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A

propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha

(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)

Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade

de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um

homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)

A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave

morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa

morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo

de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus

direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)

A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo

geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da

Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute

proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos

literaacuterios diferentes

Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e

guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos

seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas

seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de

formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)

Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo

veementemente repelido do seio daquela sociedade

Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo

mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito

natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)

O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e

tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis

Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos

antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada

continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma

coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios

com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In

Vidas Paralelas)

Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por

exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um

caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)

Plutarco daacute testemunho dessa coletividade

A agogeacute espartana

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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes

antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se

acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de

si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo

de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In

Vidas Paralelas)

Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas

refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes

banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)

Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as

cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica

II 1262b 7-8)

O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia

Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta

Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que

tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era

que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o

limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das

refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)

De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios

(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue

Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La

Republica de los Lacedemonios)5

Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um

caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo

comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em

seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face

dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida

Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na

verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de

si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em

contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo

O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a

sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que

seraacute mais clara nos traacutegicos)

A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio

de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais

acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do

indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual

enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e

dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute

claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia

5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio

filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo

poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)

Luciene de Lima Oliveira

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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer

corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu

companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo

Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os

trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente

mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa

sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e

encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO

Histoacuteria IX 71)

Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio

nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa

em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles

se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor

belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos

abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo

tolerava

Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras

fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de

permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro

combateu furiosamente fora de seu posto

A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da

sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear

seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange

A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a

cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do

prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados

como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no

combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)

Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras

pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima

da famiacutelia vinha a poacutelis

Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto

quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada

cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o

esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)

As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam

exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos

ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo

com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do

parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)

Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos

mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos

fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de

eugenia dentro da sociedade espartana

Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas

crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou

deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses

A agogeacute espartana

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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente

natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6

Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia

disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se

dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que

natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela

vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para

ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres

que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda

parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam

se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles

que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem

resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e

ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes

(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos

fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de

que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos

(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)

A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que

Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII

aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a

rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de

uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas

de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois

do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute

e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por

principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e

Messecircnia que foram escravizados

A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as

aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo

VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da

riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o

dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes

quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute

intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo

para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)

Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo

confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem

apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os

espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica

de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente

belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros

6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a

matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes

Luciene de Lima Oliveira

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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser

destemidos diante do inimigo

Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para

a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar

maneira de viver aos adultos

REFEREcircNCIAS

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Carlos de Carvalho Gomes Lisboa Vega 1998

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Universidade de Brasiacutelia 1988

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Madrid Centro de Estuacutedios Costitucionales 1989

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MARROU Henri-Ireacuteneacutee Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade Satildeo Paulo Herder

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Rio de Janeiro Zahar Editor 1998

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PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de J Guinsburg Satildeo Paulo Claacutessicos

GarnierDifusatildeo Europeia do Livro 1965

A agogeacute espartana

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________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Eduardo Menezes Satildeo Paulo Hemus Livraria

Editora 1970

PLUTARCO Licurgo In Vidas Paralelas Traduccedilatildeo de Aristides da Silva Lobo Satildeo

Paulo Ed das Ameacutericas sd

VERNANT Jean-Pierre O Homem Grego Lisboa Editorial Presenccedila 1994

________ Jean-Pierre As Origens do Pensamento Grego Rio de Janeiro Difel

2002

WEST Martin Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati New York Oxford

1992

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Homem e mulher os criou

8 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

respectivamente O termo para masculino eacute da mesma raiz do verbo lembrar trazer a

memoacuteria O termo para feminino tem uma ideia mais ampla em sua raiz verbal mas para

o texto destaca-se a ideia de efeminar tornar feminino

Alguns autores interpretam a partir deste texto biacuteblico a criaccedilatildeo de um ser

androacutegino Adatildeo o primeiro homem seria ao mesmo tempo homem e mulher isto

porque no relato no verso 26 primeiramente acontece o termo Adam sem artigo e sem

a partiacutecula acusativa o que indicaria a criaccedilatildeo da humanidade uma coletividade o

chamado Adatildeo primordial3 Assim este verso no portuguecircs ficaria E disse Deus faccedilamos

(a) humanidade com nossa imagem e semelhanccedila

No verso 27 quando Deus abenccediloa a criaccedilatildeo desta humanidade o termo Adam

vem agora acompanhado de artigo HaAdam e da partiacutecula acusativa Aqui como haacute o

artigo antes do nome Adam entendemos que natildeo soacute o ser denominado Adatildeo estaacute sendo

abenccediloado pois em hebraico o artigo nunca ocorre antes de nome proacuteprio mas uma

indicaccedilatildeo definida daquilo que se estaacute abenccediloando Natildeo um ser humano qualquer mas o

ser humano criado

O texto pode ser traduzido entatildeo assim E abenccediloou Deus o ser humano com sua

imagem Com imagem de Deus o criou (ser humano - refere-se ao termo masculino

HaAdam) macho e fecircmea os criou A ideia androacutegina seria difiacutecil de contestar caso o

pronome que sucede o verbo criar no estivesse no plural Criou a eles e natildeo a ele

A ordem divina entende que o domiacutenio sobre a criaccedilatildeo eacute dado indiferentemente a Adatildeo

ao ser humano (bom enfatizar sem o artigo definido) subentende-se assim uma natildeo

discriminaccedilatildeo na ordem Ela eacute dada ao ser humano e natildeo exatamente a Adatildeo - o primeiro

homem - visto que a partiacutecula acusativa (Alephtaw) natildeo ocorre

Vale ainda salientar que a dimensatildeo da becircnccedilatildeo de Deus sobre Adatildeo

primeiramente e ressalvada a becircnccedilatildeo sobre macho e fecircmea sobre homemmulher se

concretiza em ser a imagem de Deus No verso 26 do capiacutetulo primeiro haacute o movimento

de criaccedilatildeo da humanidade ndash do ADAM sem artigo Este eacute criado agrave imagem e semelhanccedila

de Deus No verso 27 Deus abenccediloa Adatildeo ndash o homem especiacutefico o homem criado ndash com

sua imagem No verso 28 a becircnccedilatildeo se esclarece estendida sobre homem e mulher A ausecircncia ou presenccedila da partiacutecula de objeto direto (lsquoet ndash alephtaw) eacute de suma

importacircncia no estudo do texto isto porque ela ocorre indicando o objeto direto quando

este eacute especificado com o artigo ou quando ele por si mesmo como ocorre com qualquer

nome proacuteprio eacute especificado por natureza4

Esta questatildeo do artigo junto agrave palavra Adam merece um outro estudo e eacute preciso

atenccedilatildeo ao analisar o termo nestes primeiros capiacutetulos No capiacutetulo 3 por exemplo Adam

ainda aparece como nome plural (vide verso 17) designando um ser geral natildeo obstante

no verso 22 reaparece HaAdam indicando uma especificaccedilatildeo do termo entendendo o ser

homem Adatildeo

O texto da criaccedilatildeo do homem e mais objetivamente da mulher ocorre no capiacutetulo

seguinte em 215-24 O capiacutetulo dois retorna agrave histoacuteria da criaccedilatildeo de forma resumida

dando mais atenccedilatildeo agrave criaccedilatildeo do homem e da mulher Na traduccedilatildeo de Almeida (A

BIacuteBLIA 1958) o verso 15 se lecirc assim Tomou pois o SENHOR Deus ao homem e o

colocou no jardim do Eacuteden para o cultivar e guardar O termo traduzido aqui por homem

3 Em primeiro lugar trecircs eram os gecircneros da humanidade natildeo dois como agora o masculino e o feminino

mas tambeacutem havia a mais um terceiro comum a estes dois do qual resta agora um nome desaparecida a

coisa androacutegino era entatildeo um gecircnero distinto tanto na forma como nome comum aos dois ao masculino

e ao feminino enquanto agora nada mais eacute que um nome posto em desonra (PLATAtildeO 1991 p 57-58) 4 Esta partiacutecula eacute muito importante na anaacutelise sintaacutetica da frase hebraica No caso do verbo transitivo direito

ela ajuda a identificar o predicado

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eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro

homem ndash Adatildeo

Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo

cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No

verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam

e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe

seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais

especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo

hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo

havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse

eacutezer e neacuteged

Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo

acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece

ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo

desenvolvida

HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral

a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de

outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por

Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente

Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte

de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres

inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que

natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher

O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de

em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na

forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil

o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a

todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O

hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs

auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o

sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio

O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio

porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha

socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como

uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo

como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto

este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)

Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher

identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para

construir a mulher

Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus

com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que

ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute

feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de

Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua

costela

O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da

palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o

reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo

Homem e mulher os criou

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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -

semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da

humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas

entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de

homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma

narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar

que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo

que se faz da mesma mateacuteria

Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha

chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo

do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele

lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado

e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso

Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo

soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam

quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico

e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se

identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria

se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido

Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus

institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a

primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio

masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos

principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos

capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher

do povo e a estrangeira

Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos

desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser

encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe

denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de

Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo

tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa

noite)

Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou

problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa

miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de

Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa

imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por

fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES

ALMEIDA 2019)

Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a

recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta

Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o

5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv

(1986)

Isabel Arco Verde Santos

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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim

O texto mistura entatildeo as duas fontes

A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma

possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com

a qual ele HaAdam se identificasse

A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao

papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se

faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava

ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade

que culturalmente ainda se insiste afirmar

O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer

preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-

Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que

natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila

divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia

comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade

A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se

entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo

o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a

mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam

na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo

seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo

que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade

Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela

conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser

semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela

REFEREcircNCIAS

A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1958

BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967

BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995

EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer

1972 3 vol

FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa

15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira

GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de

Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital

de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt

Homem e mulher os criou

12 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo

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PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro

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notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo

Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

DOI httpsdoiorg1012957principia201946508

AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO

REINADO DE VALENTINIANO I

Carlos Eduardo Schmitt

RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual

chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)

e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III

proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de

Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em

vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III

tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I

A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma

agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador

PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE

KINGDOM OF VALENTINIAN I

ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work

from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses

(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced

between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in

384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our

paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career

and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes

we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as

a bridge between the Senate and the emperor

KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I

LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL

REINADO DE VALENTINIANO I

RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la

cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes

(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I

Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

14 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como

prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo

auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes

I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de

Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador

enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador

PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

INTRODUCcedilAtildeO

Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco

foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas

obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo

em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego

(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de

seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de

estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem

que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1

(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da

religiatildeo tradicional romana

Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de

Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo

peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora

defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de

Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus

simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto

Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto

Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem

documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi

um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de

Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador

Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes

desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou

conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante

seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder

a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja

Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas

orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo

latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as

orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como

esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros

escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a

produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que

por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada

1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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ORATIONES I II E III

Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que

iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir

uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de

reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava

apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea

tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte

Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea

uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa

era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim

Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia

natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os

senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores

aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo

Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta

anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em

xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de

Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro

ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que

das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio

Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou

tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano

filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de

Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006

p 6)

A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um

sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter

solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade

e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de

que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o

que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles

de que ouviu o testemunho

Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano

como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da

Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o

estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros

anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico

como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da

nova dinastia

2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum

oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES

2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

16 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano

e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador

nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso

significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas

sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em

diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe

qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado

que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo

ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um

consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)

O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-

los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre

ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no

poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra

formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano

Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de

imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente

assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais

feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os

interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente

cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a

proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum

ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis

O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro

consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco

estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo

Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas

Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de

expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que

fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra

o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior

inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)

Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e

fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas

pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus

avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de

governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver

aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco

exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra

os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido

com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo

imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte

O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo

a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como

um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar

em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado

Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para

Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 17

maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o

melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador

narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao

longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a

liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade

No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se

dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador

enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma

de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana

por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na

corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em

Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)

O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco

elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual

ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio

de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem

treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e

em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo

lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso

OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS

Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise

dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas

asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)

descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso

forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles

proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos

diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles

escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de

especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)

Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o

reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente

ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico

ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)

O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob

o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais

antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia

Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)

satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)

3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of

his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in

panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been

so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

18 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano

Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a

dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de

louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de

parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como

fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos

expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais

significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5

As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que

provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram

prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano

(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)

este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e

291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o

casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)

312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl

Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6

Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada

vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio

dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas

em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os

deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam

imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos

Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao

imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele

aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador

de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)

Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal

de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom

patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude

amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso

tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao

seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom

modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da

literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca

saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa

duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus

the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the

(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature

Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic

orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)

Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for

Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of

Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for

Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the

younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 19

pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo

poliacutetica7

Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver

abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico

modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao

imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece

sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de

Domicianordquo8

CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS

As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De

acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano

havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo

auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados

a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma

foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a

criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se

agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos

traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)

Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell

(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano

vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas

proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-

57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em

395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos

internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais

de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das

quais os imperadores participavam pessoalmente

Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo

poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade

de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura

latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo

que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9

7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the

most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and

friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers

to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent

senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range

of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram

historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved

towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his

consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of

assailing the principate of Domitianrdquo

9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable

period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946510

OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS

DE BRAacuteS CUBAS

Bruno Torres dos Santos

RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as

referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida

dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no

iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive

enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees

da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes

personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de

que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as

referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga

PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio

THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF

BRAS CUBAS

ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to

the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the

Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius

at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues

of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already

brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth

century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary

creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not

recover references to the culture literature and history of Ancient Rome

KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius

Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute

nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento

Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante

discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-

mail brunots_hotmailcom

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839

Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma

universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica

teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da

Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela

Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a

ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908

com 69 anos

Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio

Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e

adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos

filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta

Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos

requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser

reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de

universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO

2010 p 65)

Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute

singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses

traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e

interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo

utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio

primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras

(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia

Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do

romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps

termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se

mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho

com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de

nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida

pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)

Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os

merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero

romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute

todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para

usarmos termos proacuteprios da literatura latina

Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um

narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira

discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a

impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que

eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica

literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo

Bosi

1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum

Bruno Torres dos Santos

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Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade

passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo

dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a

histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois

mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves

idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc

e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que

restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador

Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)

Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a

indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto

com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta

o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do

pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e

um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de

poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do

adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de

Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-

Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais

heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos

sem grandeza (BOSI 2006 p 180)

Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a

intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-

personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do

ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera

burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer

fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos

imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda

poliacutetica de modo velado

Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o

bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de

sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca

encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais

plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido

nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio

o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador

Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres

(ESTEVES 2015 p 1-7)

Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno

dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69

EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno

militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor

segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai

na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)

Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas

imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo

na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o

bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o

principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses

e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das

bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a

funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p

971)

A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as

referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes

fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze

primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano

Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros

anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC

Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi

usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo

agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos

O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII

designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas

antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o

panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)

A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um

gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria

sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e

agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)

Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo

iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por

uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e

seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia

adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um

medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse

projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da

cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a

primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio

A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor

de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea

fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas

cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna

loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou

ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de

Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous

ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama

Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu

um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio

tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3

3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual

Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin

Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)

Bruno Torres dos Santos

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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a

proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo

do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno

Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram

personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi

Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso

Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na

biografia suetoniana

Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus

variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne

progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet

Cl 21)

No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da

primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal

modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi

certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no

acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado

Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o

assassinato do sobrinho Caliacutegula

Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit

quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi

secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum

recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum

interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles

animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae

metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)

Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o

impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante

Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto

de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um

pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a

notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu

entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado

raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem

estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do

medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador

Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana

sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e

Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como

um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa

aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio

fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda

que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos

das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em

questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com

Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero

Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose

na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em

razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio

Rolim de Freitas explica que

O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que

o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego

Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois

aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)

Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na

Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos

iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o

argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio

relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico

legume

O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito

Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho

de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo

do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo

similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto

como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro

capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do

gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a

simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor

ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel

artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa

seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse

retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de

Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor

Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes

em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que

eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os

Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap

IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero

biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo

Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo

diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem

possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado

Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto

Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de

sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee

com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega

em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato

com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar

descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um

ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio

Bruno Torres dos Santos

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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general

em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance

Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me

encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia

a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum

cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas

amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de

Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias

Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)

Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato

ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido

firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de

Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva

adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel

por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo

historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu

opositor na Batalha de Tapso

Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo

direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso

natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo

denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua

biografia deste modo

Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui

primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu

in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem

ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar

Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus

est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul

sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore

corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad

primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti

dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)

Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava

sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como

se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um

gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua

toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas

jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com

um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma

outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos

os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu

a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte

inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado

por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem

uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria

dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo

Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram

grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para

qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente

teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia

Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o

defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um

despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente

este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente

o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o

encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso

natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser

um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta

com o fato de dispor do uacutenico tomo

Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro

e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo

natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-

se agrave janela e mostra-o ao sol

Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um

Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e

folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)

Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma

forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar

A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela

rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na

nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-

se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito

ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash

Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de

outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica

esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de

suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees

do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna

Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de

sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem

jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o

Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia

Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve

uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por

conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de

emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a

famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio

Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum

iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu

errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit

Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum

constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo

inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda

eruntrdquo (Suet Jul 31 2)

Bruno Torres dos Santos

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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o

veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as

luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um

guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas

coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e

calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos

recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas

atraveacutes das armasrdquo

Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo

sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores

plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab

uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram

ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas

vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)

Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente

ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em

grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados

das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de

um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque

introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal

dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo

Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta

desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida

pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico

no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de

Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo

antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no

capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na

tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento

Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe

derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era

descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma

meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a

Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia

com alvoroccedilo e submissatildeo

Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do

matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe

a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de

Assis Helena cap XIII p 133)

Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto

ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado

tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a

Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito

suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano

Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro

governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio

4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo

imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo

senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai

e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para

a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens

em bustos inscriccedilotildees etc

Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O

narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste

com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar

o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo

(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a

reflexatildeo

A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em

casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de

um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala

grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)

O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida

e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo

amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes

Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu

defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele

eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de

captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano

Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam

amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti

essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam

quidem (Suet Dom 3)

Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas

horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para

uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de

modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo

uma mosca

Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para

o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por

outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo

negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no

iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor

jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como

as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados

a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido

algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria

contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes

Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito

bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo

Bruno Torres dos Santos

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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores

favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado

graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo

de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos

depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal

retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o

Suetocircniordquo

Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a

uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal

capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais

precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha

traiacutedo com igual sinceridade

Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que

foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69

Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia

deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes

de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero

Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo

das Memoacuterias Poacutestumas em completude

Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-

me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos

os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso

de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com

sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em

casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute

faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave

origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a

minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste

pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)

Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador

Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem

e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas

entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a

resposta eacute Suetocircnio

Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex

prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante

ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)

Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre

a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro

pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia

incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute

proveniente da urinardquo

Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos

comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que

vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu

romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente

contraditoacuterios

Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo

de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos

concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se

mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de

Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria

Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da

traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da

Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos

os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as

referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de

Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis

podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo

IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES

Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)

Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)

Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)

Suet Tit (Suetocircnio Tito)

Suet Ves (Suet Vespasiano)

DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL

ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius

Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31

Cambridge MA Harvard University Press 1914

______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius

Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians

Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and

Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA

Harvard University Press 1914

Bruno Torres dos Santos

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REFEREcircNCIAS

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CANDIDO Antonio O sistema literaacuterio consolidado In Iniciaccedilatildeo agrave literatura Brasileira

6deg ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul 2010 p65-126

CITRONI Maacuterio (Dir) CITRONI MCONSOLINO FELABATE M NARDUCCI

(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas

Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006

ESTEVES Anderson Martins Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas

obras Principia ndash Revista do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de

Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Ano 18 nXXX p1-7

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FREITAS Horaacutecio Apoloquintose In SILVA Amoacutes FREITAS Horaacutecio (orgs) Um

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natildeo prestardquo Veredas ndash revista da Associaccedilatildeo Internacional de Lusitanistas Porto 4deg volume

p95-103 2001

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511

LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI

TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO

Heitor Victor

RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade

Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca

de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal

estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da

existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa

das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera

um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de

compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia

helecircnica

PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena

LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE

TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR

ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is

even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it

possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable

because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in

this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an

important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial

example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins

work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually

proved himself to be more important than the helenic tragedy itself

KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine

Introduccedilatildeo

O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua

presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente

uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de

composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende

Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E-mail heitor-victorhotmailcom

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

38 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da

seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro

grego e que perdura em nossa cultura

O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance

caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se

apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas

as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum

que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos

permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX

Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas

fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia

aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar

a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la

exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes

dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se

nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim

Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria

No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico

que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave

descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo

Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra

realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma

seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o

inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que

permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama

alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de

aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)

Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei

traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia

Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica

que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de

mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade

em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende

Benjamin por alegoria no drama traacutegico

Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das

concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao

ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com

transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter

proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo

romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular

para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma

alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo

(BENJAMIN 2011 p 171)

1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como

um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador

se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972

p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo

nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 39

A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para

entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que

encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma

natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar

a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim

permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para

consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar

Benjamin reconhece que

o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o

desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido

psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso

atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso

a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o

caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)

Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa

relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A

comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer

a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como

uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no

abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode

desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral

a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que

trato neste trabalho

Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos

personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e

outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois

extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito

de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso

em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia

de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo

cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao

profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece

Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as

formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao

coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que

o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas

como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo

lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)

Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao

choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e

leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que

nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais

haacutebeis

Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce

claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e

um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos

desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

40 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos

surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)

Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da

corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os

momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da

anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance

Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de

Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o

reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de

que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente

e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de

valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas

Marcas do Heroacutei Traacutegico

As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos

de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia

uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei

neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para

si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre

da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena

consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o

ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo

dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico

Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a

abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua

proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais

indiviacuteduos Benjamin afirma

A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei

e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve

ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que

causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN

2011 p 108)

Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega

definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a

profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade

constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio

comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos

o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo

tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos

deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em

algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN

2011 p 108)

Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia

reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por

ele se sacrifica

Heitor Victor

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ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se

crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes

tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em

minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR

1972 p 243)

O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega

completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O

sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se

direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua

protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento

da sua proacutepria vida

Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute

mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe

corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)

Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da

heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de

natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011

p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um

perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece

nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia

fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a

contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava

quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-

153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute

no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua

meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)

Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia

fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse

aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que

claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do

traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente

nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem

romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho

Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do

reconhecimento da proacutepria morte

Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente

heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis

moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo

mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)

Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da

morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes

de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute

sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo

quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)

Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa

Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida

contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A

culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas

se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

42 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face

angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para

clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico

No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo

as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la

na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como

todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa

consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua

lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)

Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro

ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e

genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece

e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que

expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela

ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa

heroiacutena rebate com acidez

ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais

quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de

quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite

Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe

prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos

saborosas (ALENCAR 1972 p 153)

Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais

sincera em um de seus momentos de maior entrega

ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de

minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A

dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica

do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo

que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma

(ALENCAR 1972 p 243)

Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois

precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha

entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-

se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a

projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia

Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim

encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu

papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais

beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute

melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres

Conclusatildeo

Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees

constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego

passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa

possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 43

dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica

como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de

ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito

pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida

Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta

de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de

convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade

de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando

essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha

destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do

elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo

Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico

levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo

estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro

alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute

precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento

traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas

sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas

como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as

mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo

dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de

uma obra de arte

REFEREcircNCIAS

ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash

Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972

ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005

BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora

2011

CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo

Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986

PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo

Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

44 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

DOI httpsdoiorg1012957principia201946512

CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES

ANIMAIS NA ILIacuteADA

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)

RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero

produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste

estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra

de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de

determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o

poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela

forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega

arcaica e claacutessica

PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles

SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES

ANIMALS IN THE ILIAD

ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer

produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study

is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of

Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of

certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals

the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero

projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative

term in the archaic and classical Greek culture

KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle

1 Sobre o siacutemile homeacuterico

Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo

que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por

uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre

outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo

sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1

E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a

possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras

usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

46 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os

siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute

composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que

eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos

nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou

verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo

(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila

separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2

Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia

em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem

em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos

Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas

sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias

sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido

maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles

pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples

menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos

Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais

como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre

outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam

como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e

Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o

siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais

selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham

grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo

(Clarke 2006 p 2)

Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja

examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada

como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o

quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao

seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de

caracterizaccedilatildeo

2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador

Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto

pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter

atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das

personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que

Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa

habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em

ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre

elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo

aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de

uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de

Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e

psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e

Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 47

Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema

eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito

combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar

aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao

animal (Clark 2006 p 4)4

Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm

igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)

Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal

mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os

animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos

com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver

tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute

preciso recorrermos a Aristoacuteteles

Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece

se coadunar com o mundo homeacuterico

Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas

psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo

e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade

e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em

inteligecircncia

῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν

τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ

ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ

φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως

ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os

animais 588 a 19-25)

Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e

os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos

dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por

analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens

comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica

Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos

humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem

do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um

vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura

grega6 mas meramente empiacuterico

Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano

por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que

Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural

possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes

4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se

encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal

Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de

uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem

(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as

relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

48 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas

agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)

A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra

de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos

bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um

todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o

valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si

Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma

caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada

3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores

Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o

animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo

ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo

empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma

passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus

de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o

siacutemile

Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira

Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus

Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos

E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se

Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho

Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre

Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada

Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora

Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio

Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou

Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos

Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio

Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ

κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος

φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα

τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς

ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ

ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι

φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου

δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot

ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα

πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων

ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους

ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot

(Il VIII 17-28)

Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que

configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos

muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim

como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων

πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς

παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil

do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 49

Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois

que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e

tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece

sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar

Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por

causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma

flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar

Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι

ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ

πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί

τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν

διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ

ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-

27)

A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que

Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre

todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em

sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como

ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa

Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal

natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo

demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos

aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem

Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila

Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em

siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que

A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras

localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em

coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo

tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da

Lacocircnia

Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς

τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ

τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ

τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608

a 27-33)

Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens

e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada

no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus

De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem

E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira

Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila

Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees

Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres

As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira

Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos

Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot

οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot

῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων

ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος

ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων

ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει

ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς

αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο

(Il VIII 335-343)

Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus

nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada

animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na

representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico

natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do

animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos

deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria

muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador

Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o

caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais

ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o

leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui

iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que

Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde

outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes

entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo

que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se

ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos

golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte

Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ

οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον

Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται

λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ

πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται

πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν

(Arist HA 629 b 33- 639 a8)

A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior

como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso

jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes

Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis

satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax

Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos

De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne

Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel

τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω

σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν

ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν

(Il VII 255-257)

Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis

representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51

O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite

o combate foi interrompido pelos arautos

O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta

cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa

adversidade

Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma

multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a

face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra

entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que

de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir

para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua

corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo

᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ

διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ

σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει

ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς

ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει

κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι

κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)

Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais

intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns

siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de

alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira

Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax

E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas

E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera

Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas

Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral

Dos bois afugentam catildees e pastores

E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois

Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne

Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos

Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo

E tochas acesas que teme ainda que sedento

E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito

Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto

Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus

Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot

στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον

τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς

ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων

ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο

ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται

οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι

πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων

ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες

ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν

καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot

ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot

ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ

ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν

(Il XI 544-557)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

52 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei

em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices

psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso

feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a

situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa

bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo

Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo

comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o

nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo

Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como

voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito

gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado

do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito

e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio

A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um

desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se

trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para

a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do

comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem

exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos

depois em Aristoacuteteles

3 Conclusatildeo

O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais

produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam

muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas

tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com

maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute

descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante

Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do

conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem

o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas

REFEREcircNCIAS

ARISTOTLE Historia Animalium Transl by DArcy Wentworth Thompson Oxford

Clarendon Press 1910

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Marco V C Colonnelli

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Paris J Vrin 2007

54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

DOI httpsdoiorg1012957principia201946513

OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL

MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS

Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem

praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos

que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-

literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos

periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal

PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS

MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS

ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can

be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify

magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to

demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek

literature and influenced actions that go beyond the temporal bias

KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes

de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam

a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao

afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma

humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre

os seres humanos

Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos

no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica

Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas

(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos

dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de

bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que

haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos

de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de

outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos

(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos

E-mail dulcinascimentobragagmailcom

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

56 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como

tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal

como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de

verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar

aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito

de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que

encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou

talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a

menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm

opiniatildeo formada

Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se

restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)

mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras

Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades

eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela

eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica

O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber

que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-

nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai

maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis

que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de

atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a

sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e

ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees

direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente

Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que

determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os

mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por

impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira

Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas

mulheres

Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam

a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo

com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que

envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e

segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades

ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres

sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves

necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias

sobrenaturais

Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e

a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre

acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a

extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos

casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem

Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas

circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a

religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai

1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas

cantos e banquetes

Dulcileide V do Nascimento Braga

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 57

detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila

coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato

que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da

sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)

Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos

foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia

nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e

constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes

e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo

estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em

torno deles podendo ser controladas por certos meios

Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas

maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de

mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um

empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra

Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era

composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os

Magosrdquo

Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo

de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria

I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que

revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou

chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128

vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o

haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a

funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar

acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno

Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os

responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo

O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo

negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos

considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi

aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens

merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta

caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave

realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e

maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser

interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos

Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo

ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma

seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um

jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes

dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e

secretamente temidos por outrosrdquo

Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato

do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia

um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem

uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos

Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim

como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria

de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte

dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e

em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes

Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta

palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que

encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que

estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees

epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo

Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar

que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos

acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que

lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de

Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas

teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois

desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena

dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa

O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas

feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um

remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o

termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes

em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo

gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia

que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho

Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do

encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado

associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em

sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute

voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto

pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal

Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do

canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo

Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior

aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que

diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na

estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na

junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como

aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento

ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel

protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos

durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)

As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura

preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem

em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse

processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados

sagrados

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Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 59

Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo

denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm

basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3

Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees

sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem

somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar

nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana

pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que

venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim

Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade

normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca

especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um

gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo

na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite

Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram

utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de

reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns

versos do poema

Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana

Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem

Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada

Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um

Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)

Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica

pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico

para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura

muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de

Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros

oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o

mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede

A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser

observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a

medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras

Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo

Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta

modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que

se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de

Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho

Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que

frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que

tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de

cura do deus

Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem

um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute

uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos

empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-

se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como

banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias

partes do seu corpo

A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como

tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa

teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo

de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de

se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos

eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como

magia

A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de

quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que

relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a

ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo

(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)

Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio

masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith

e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo

obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas

atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas

particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria

algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes

Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes

nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que

demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de

palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de

serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo

A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes

Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena

Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo

E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios

da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos

E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma

Cortai os peitos da mulher morena

Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono

E trazem cores tristes para os meus olhos

Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes

Traze-me para o contato casto de tuas vestes

Salva-me dos braccedilos da mulher morena

Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim

Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca

Satildeo como dois silecircncios que me paralisam

Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena

Livra-me do seu ventre como a campina matinal

Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria

Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena

Reza para murcharem as pernas da mulher morena

Reza para a velhice roer dentro da mulher morena

Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros

E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos

cantos

Dai morte cruel agrave mulher morena

Dulcileide V do Nascimento Braga

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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que

faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas

bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir

a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)

ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo

O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros

encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi

abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar

daquelea que emocionalmente lhe causa mal

A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento

concretizando-os atraveacutes das palavras

Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada

em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego

como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder

Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a

concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas

cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo

desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram

obtidas no passado

Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas

palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas

do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os

profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515

A AGOGEacute ESPARTANA

Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O

desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter

medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de

covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado

perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo

toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases

atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou

deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute

espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos

PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo

THE SPARTAN AGOGEacute

ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The

development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of

anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and

were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and

the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan

society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan

mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has

as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar

education with extremely bellicose objectives

KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus

Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A

criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado

representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto

sentido da palavra (Werner Jaeger)

E-mail oliveira-lluolcombr

A agogeacute espartana

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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo

denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio

Eurotas cercada de montanhas a nordeste

Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-

helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia

A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente

originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e

se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente

constituindo assim o povo helecircnico

Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e

foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os

espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica

peculiar a belicosidade

A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa

legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria

dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do

comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro

instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a

maneira de viver etc

Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo

tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e

desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram

expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo

comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali

comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)

Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador

da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria

I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia

Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees

culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de

expandir-se pelas armas

Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas

tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica

de los Lacedemonios I 1-2)

O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute

que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis

1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o

seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como

tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica

(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora

descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo

rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um

descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu

sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo

se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta

(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em

Vida de Licurgo

Luciene de Lima Oliveira

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 65

659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como

ldquoeducaccedilatildeordquo

Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e

chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o

exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a

educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como

tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)

Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar

constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza

grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza

Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra

ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo

adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte

a descreve (JAEGER 2001 p 114)

O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que

nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)

O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar

tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa

ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)

As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus

pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo

governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3

Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem

de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando

completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e

brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse

mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer

as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela

que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas

Paralelas)

Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente

nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida

Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um

pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta

com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees

militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas

Plutarco daacute o seguinte testemunho

Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o

aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria

em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-

lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os

cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior

parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze

anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam

somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e

3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem

seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

A agogeacute espartana

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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos

dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e

dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos

juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir

colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no

inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos

porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO

Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)

A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos

compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um

paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial

Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU

1966 p 42)

Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano

a) rhobiacutedas (termo obscuro)

b) promikkizoacutemenos (meninote)

c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)

Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano

a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)

b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)

c) melleiacuteren (futuro irene)

d) melleiacuteren (irene de segundo ano)

Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano

a) eireacuten de primeiro ano

b) eireacuten de segundo ano

c) eireacuten de terceiro ano

d) eireacuten de quarto ano

e) proteicircras (irene-chefe)

O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em

unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos

que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)

Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram

lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com

propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O

bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era

proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo

obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam

a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)

Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam

deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era

permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores

(Op cit X)

O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as

matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas

olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem

Luciene de Lima Oliveira

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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem

(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida

familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos

acampamentos militares

A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um

ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou

em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou

que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da

poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas

que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas

Paralelas)

Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando

a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se

preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma

disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros

guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto

da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)

O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com

moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em

prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos

Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato

de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir

suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)

Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como

objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como

resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram

em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na

verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra

disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)

Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo

diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na

Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta

por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)

A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas

(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se

rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana

Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma

revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam

em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos

Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o

estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro

ldquoacampamento militarrdquo permanente

Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era

dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras

pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam

participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei

A agogeacute espartana

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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de

hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve

Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e

o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees

dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos

neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada

pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que

vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que

tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar

papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito

muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar

os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo

teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes

esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por

Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que

eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que

espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que

tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)

Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que

frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada

por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois

de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem

que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os

conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan

eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo

concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994

pp 49-50)

Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de

um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os

covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que

natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a

kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja

algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara

entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana

O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo

presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p

82)

O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo

poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer

4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei

Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto

(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas

que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com

a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da

Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967

p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo

VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente

vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC

Luciene de Lima Oliveira

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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e

educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees

espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo

Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era

morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos

ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas

vidasrdquo (10 W 13-14)

Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A

propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha

(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)

Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade

de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um

homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)

A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave

morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa

morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo

de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus

direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)

A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo

geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da

Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute

proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos

literaacuterios diferentes

Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e

guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos

seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas

seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de

formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)

Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo

veementemente repelido do seio daquela sociedade

Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo

mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito

natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)

O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e

tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis

Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos

antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada

continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma

coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios

com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In

Vidas Paralelas)

Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por

exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um

caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)

Plutarco daacute testemunho dessa coletividade

A agogeacute espartana

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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes

antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se

acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de

si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo

de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In

Vidas Paralelas)

Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas

refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes

banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)

Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as

cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica

II 1262b 7-8)

O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia

Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta

Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que

tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era

que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o

limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das

refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)

De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios

(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue

Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La

Republica de los Lacedemonios)5

Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um

caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo

comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em

seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face

dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida

Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na

verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de

si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em

contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo

O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a

sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que

seraacute mais clara nos traacutegicos)

A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio

de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais

acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do

indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual

enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e

dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute

claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia

5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio

filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo

poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)

Luciene de Lima Oliveira

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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer

corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu

companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo

Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os

trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente

mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa

sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e

encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO

Histoacuteria IX 71)

Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio

nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa

em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles

se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor

belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos

abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo

tolerava

Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras

fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de

permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro

combateu furiosamente fora de seu posto

A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da

sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear

seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange

A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a

cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do

prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados

como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no

combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)

Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras

pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima

da famiacutelia vinha a poacutelis

Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto

quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada

cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o

esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)

As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam

exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos

ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo

com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do

parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)

Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos

mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos

fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de

eugenia dentro da sociedade espartana

Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas

crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou

deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses

A agogeacute espartana

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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente

natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6

Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia

disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se

dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que

natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela

vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para

ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres

que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda

parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam

se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles

que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem

resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e

ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes

(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos

fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de

que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos

(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)

A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que

Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII

aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a

rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de

uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas

de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois

do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute

e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por

principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e

Messecircnia que foram escravizados

A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as

aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo

VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da

riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o

dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes

quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute

intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo

para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)

Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo

confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem

apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os

espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica

de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente

belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros

6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a

matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes

Luciene de Lima Oliveira

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 73

combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser

destemidos diante do inimigo

Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para

a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar

maneira de viver aos adultos

REFEREcircNCIAS

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Ediccedilatildeo Biliacutengue Traduccedilatildeo de Antocircnio Campelo Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes Lisboa Vega 1998

BAILLY Anatole Dictionnaire Grec-Franccedilais Ed Revista par L Seacutechan e

Chantraine Paris Hachette 2000

CAMPBELL David A Greek Lyric Poetry New York ST MartinrsquoS Press 1967

DETIENNE Marcel La Phalange problegravemes et controverses In Problegravemes de la

Guerre en Gregravece Ancienne VERNANT Jean-Pierre (org) Paris Eacuteditons de lrsquo Eacutecole

des Hautes Eacutetudes en Sciences Sociales Paris 1999

HEROacuteDOTO Histoacuteria Traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora

Universidade de Brasiacutelia 1988

JAEGER Werner Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Satildeo Paulo Martins Fontes

2001

JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios Traduccedilatildeo de Maria Rico Gomez

Madrid Centro de Estuacutedios Costitucionales 1989

LORAUX Nicole Les Experiences de Tireacutesias le feacuteminin et lrsquohomme grec Paris

Gallimard 1989 pp 77-123

MARROU Henri-Ireacuteneacutee Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade Satildeo Paulo Herder

1966

MOSSEacute Claude Dicionaacuterio da Civilizaccedilatildeo Grega Traduccedilatildeo de Carlos Ramalhete

Rio de Janeiro Zahar Editor 1998

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulkbenkian 1993

PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de J Guinsburg Satildeo Paulo Claacutessicos

GarnierDifusatildeo Europeia do Livro 1965

A agogeacute espartana

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________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Eduardo Menezes Satildeo Paulo Hemus Livraria

Editora 1970

PLUTARCO Licurgo In Vidas Paralelas Traduccedilatildeo de Aristides da Silva Lobo Satildeo

Paulo Ed das Ameacutericas sd

VERNANT Jean-Pierre O Homem Grego Lisboa Editorial Presenccedila 1994

________ Jean-Pierre As Origens do Pensamento Grego Rio de Janeiro Difel

2002

WEST Martin Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati New York Oxford

1992

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Isabel Arco Verde Santos

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eacute HaAdam ou seja o nome aparece com o artigo o que se entende o nome do primeiro

homem ndash Adatildeo

Natildeo haacute exatamente uma sequecircncia neste segundo relato A narrativa da criaccedilatildeo tatildeo

cuidadosa e minuciosa exposta no relato anterior neste capiacutetulo jaacute natildeo mais importa No

verso 18 o comentaacuterio divino aponta para a preocupaccedilatildeo com relaccedilatildeo agrave solidatildeo de Adam

e a necessidade de fazer algueacutem segundo traduccedilatildeo de Almeida uma auxiliadora que lhe

seja idocircnea A aplicaccedilatildeo do artigo aqui no termo Adam parece indicar algo mais

especiacutefico tendo em vista o autor deixar claro que ele Adam estaacute soacute A vocalizaccedilatildeo

hebraica confunde porque o termo que se usa no verso 20 do capiacutetulo 2 ao dizer que natildeo

havia para Adam ndash e desta vez a vocalizaccedilatildeo sugere a inexistecircncia do artigo - quem fosse

eacutezer e neacuteged

Ocorre que neste verso 20 aparece o termo LeAdam Se a forma com artigo

acontecesse a contraccedilatildeo do artigo com a preposiccedilatildeo suporia a forma LaAdam E parece

ser a forma mais correta de se ler o texto dando continuidade a ideia que estaacute sendo

desenvolvida

HaAdam ndash Adatildeo - daacute nome aos elementos da criaccedilatildeo mas eacute Adam ndash o nome geral

a humanidade - que natildeo encontrou algueacutem para estar ao seu lado De uma forma ou de

outra o que se quer eacute justificar o relato da criaccedilatildeo da mulher Os termos usados por

Almeida auxiliadora e idocircnea traduzem o hebraico eacutezer e neacuteged respectivamente

Ora eacutezer eacute a palavra usada no conhecido Salmo 121 (Elevo os olhos para o monte

de onde me viraacute o socorro) Ressalte-se que o socorro natildeo eacute encontrado natildeo em seres

inferiores O salmista eleva os olhos busca acima de si o socorro Isto deixa claro que

natildeo haacute qualquer tipo de inferioridade na criaccedilatildeo da mulher

O outro termo neacuteged eacute uma preposiccedilatildeo que pode ser traduzida por defronte de

em frente contra diante de em oposiccedilatildeo defronte comparado com Como verbo na

forma simples paal significa ser contra ou estar defronte Na forma causativa no hiphil

o verbo significa contar revelar dizer algo ainda natildeo conhecido Estes termos vatildeo reaparecer no verso 20 quando apoacutes o homem ter dado nome a

todos os seres se conclui mais uma vez que natildeo havia nada que lhe fosse eacutezer e neacuteged O

hebraico nos aponta ideias mais fortes que a traduccedilatildeo de Almeida No portuguecircs

auxiliador tem a ideia de ajudante assistente conforme explica o Aureacutelio Idocircneo tem o

sentido de conveniente e adequado ainda segundo este mesmo dicionaacuterio

O que se procura na criaccedilatildeo para HaAdam (Adatildeo) eacute o seu oposto o seu contraacuterio

porque o objetivo eacute crescer e encher a terra Por outro lado procura-se algo que lhe venha

socorrer em sua solidatildeo O interessante poreacutem eacute que embora se entenda neacuteged como

uma possibilidade contraacuteria porque haacute a necessidade de encher a terra tanto este termo

como o termo socorro (eacutezer) natildeo vecircm em forma feminina mas masculina apesar de tanto

este quanto aquele ter uma forma hebraica similar feminina (ezrah e negdah)

Se prosseguirmos a leitura naquilo que seria o relato da criaccedilatildeo da mulher

identificamos que apoacutes cair em sono profundo Deus retirou uma costela de Adatildeo para

construir a mulher

Trecircs termos agora se encontram neste texto da criaccedilatildeo tzeacutelem a imagem de Deus

com que a humanidade foi abenccediloada eacute o termo que associa a humanidade a Deus que

ficou no capiacutetulo primeiro tzeacutelarsquo a costela retirada de Adatildeo que eacute a mateacuteria da qual eacute

feita a mulher Por uacuteltimo temos o termo lsquoeacutetzem que aparece na fala deslumbrada de

Adatildeo ao acordar de seu sono e ver a criaccedilatildeo de Deus na forma da mulher oriunda de sua

costela

O novo ser criado eacute denominado lsquoyshah Sua denominaccedilatildeo eacute da mesma raiz da

palavra lsquoysh que quer dizer homem Esta semelhanccedila dos dois nomes demonstra o

reconhecimento de si mesmo no outro ser criado HaAdam reconhece a mulher como algo

Homem e mulher os criou

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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -

semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da

humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas

entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de

homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma

narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar

que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo

que se faz da mesma mateacuteria

Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha

chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo

do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele

lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado

e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso

Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo

soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam

quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico

e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se

identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria

se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido

Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus

institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a

primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio

masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos

principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos

capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher

do povo e a estrangeira

Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos

desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser

encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe

denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de

Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo

tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa

noite)

Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou

problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa

miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de

Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa

imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por

fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES

ALMEIDA 2019)

Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a

recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta

Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o

5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv

(1986)

Isabel Arco Verde Santos

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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim

O texto mistura entatildeo as duas fontes

A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma

possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com

a qual ele HaAdam se identificasse

A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao

papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se

faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava

ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade

que culturalmente ainda se insiste afirmar

O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer

preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-

Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que

natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila

divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia

comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade

A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se

entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo

o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a

mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam

na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo

seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo

que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade

Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela

conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser

semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela

REFEREcircNCIAS

A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1958

BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967

BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995

EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer

1972 3 vol

FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa

15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira

GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de

Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital

de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt

Homem e mulher os criou

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GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo

Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988

KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix

1986

PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro

Brasiliense 1993

PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e

notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo

Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

DOI httpsdoiorg1012957principia201946508

AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO

REINADO DE VALENTINIANO I

Carlos Eduardo Schmitt

RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual

chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)

e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III

proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de

Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em

vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III

tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I

A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma

agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador

PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE

KINGDOM OF VALENTINIAN I

ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work

from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses

(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced

between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in

384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our

paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career

and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes

we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as

a bridge between the Senate and the emperor

KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I

LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL

REINADO DE VALENTINIANO I

RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la

cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes

(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I

Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

14 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como

prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo

auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes

I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de

Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador

enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador

PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

INTRODUCcedilAtildeO

Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco

foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas

obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo

em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego

(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de

seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de

estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem

que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1

(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da

religiatildeo tradicional romana

Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de

Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo

peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora

defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de

Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus

simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto

Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto

Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem

documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi

um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de

Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador

Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes

desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou

conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante

seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder

a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja

Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas

orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo

latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as

orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como

esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros

escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a

produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que

por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada

1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 15

ORATIONES I II E III

Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que

iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir

uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de

reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava

apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea

tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte

Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea

uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa

era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim

Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia

natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os

senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores

aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo

Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta

anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em

xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de

Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro

ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que

das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio

Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou

tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano

filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de

Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006

p 6)

A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um

sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter

solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade

e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de

que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o

que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles

de que ouviu o testemunho

Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano

como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da

Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o

estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros

anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico

como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da

nova dinastia

2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum

oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES

2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano

e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador

nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso

significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas

sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em

diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe

qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado

que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo

ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um

consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)

O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-

los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre

ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no

poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra

formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano

Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de

imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente

assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais

feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os

interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente

cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a

proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum

ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis

O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro

consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco

estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo

Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas

Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de

expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que

fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra

o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior

inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)

Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e

fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas

pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus

avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de

governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver

aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco

exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra

os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido

com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo

imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte

O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo

a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como

um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar

em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado

Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para

Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 17

maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o

melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador

narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao

longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a

liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade

No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se

dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador

enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma

de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana

por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na

corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em

Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)

O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco

elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual

ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio

de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem

treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e

em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo

lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso

OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS

Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise

dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas

asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)

descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso

forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles

proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos

diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles

escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de

especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)

Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o

reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente

ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico

ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)

O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob

o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais

antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia

Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)

satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)

3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of

his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in

panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been

so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

18 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano

Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a

dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de

louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de

parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como

fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos

expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais

significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5

As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que

provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram

prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano

(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)

este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e

291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o

casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)

312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl

Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6

Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada

vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio

dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas

em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os

deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam

imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos

Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao

imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele

aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador

de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)

Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal

de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom

patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude

amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso

tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao

seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom

modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da

literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca

saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa

duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus

the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the

(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature

Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic

orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)

Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for

Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of

Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for

Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the

younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo

poliacutetica7

Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver

abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico

modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao

imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece

sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de

Domicianordquo8

CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS

As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De

acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano

havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo

auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados

a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma

foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a

criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se

agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos

traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)

Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell

(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano

vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas

proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-

57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em

395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos

internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais

de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das

quais os imperadores participavam pessoalmente

Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo

poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade

de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura

latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo

que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9

7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the

most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and

friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers

to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent

senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range

of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram

historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved

towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his

consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of

assailing the principate of Domitianrdquo

9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable

period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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Muumlnchen Monumenta Germaniae Historica 1883

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_______________ Oration II ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015b Disponiacutevel

emlthttpswwwuvmedu~bsaylorromeSymmachus2pdfgt Acesso em 19102016

_______________ Oration III ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015c Disponiacutevel

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_______________ Q Aurelii Symmachi Octo orationum ineditarum partes Ediccedilatildeo

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Christianity New York HarperCollins 2015

SILVA Gilvan Ventura amp MENDES Norma Musco Diocleciano e Constantino a

construccedilatildeo do Dominato In SILVA Gilvan Ventura amp MENDES Norma Musco

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 21

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22 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

DOI httpsdoiorg1012957principia201946510

OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS

DE BRAacuteS CUBAS

Bruno Torres dos Santos

RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as

referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida

dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no

iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive

enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees

da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes

personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de

que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as

referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga

PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio

THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF

BRAS CUBAS

ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to

the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the

Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius

at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues

of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already

brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth

century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary

creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not

recover references to the culture literature and history of Ancient Rome

KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius

Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute

nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento

Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante

discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-

mail brunots_hotmailcom

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

24 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839

Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma

universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica

teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da

Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela

Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a

ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908

com 69 anos

Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio

Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e

adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos

filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta

Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos

requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser

reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de

universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO

2010 p 65)

Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute

singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses

traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e

interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo

utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio

primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras

(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia

Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do

romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps

termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se

mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho

com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de

nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida

pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)

Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os

merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero

romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute

todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para

usarmos termos proacuteprios da literatura latina

Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um

narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira

discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a

impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que

eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica

literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo

Bosi

1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 25

Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade

passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo

dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a

histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois

mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves

idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc

e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que

restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador

Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)

Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a

indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto

com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta

o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do

pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e

um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de

poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do

adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de

Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-

Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais

heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos

sem grandeza (BOSI 2006 p 180)

Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a

intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-

personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do

ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera

burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer

fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos

imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda

poliacutetica de modo velado

Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o

bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de

sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca

encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais

plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido

nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio

o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador

Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres

(ESTEVES 2015 p 1-7)

Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno

dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69

EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno

militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor

segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai

na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)

Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas

imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo

na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o

bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o

principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses

e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das

bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a

funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p

971)

A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as

referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes

fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze

primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano

Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros

anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC

Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi

usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo

agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos

O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII

designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas

antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o

panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)

A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um

gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria

sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e

agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)

Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo

iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por

uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e

seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia

adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um

medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse

projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da

cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a

primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio

A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor

de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea

fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas

cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna

loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou

ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de

Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous

ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama

Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu

um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio

tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3

3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual

Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin

Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)

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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a

proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo

do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno

Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram

personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi

Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso

Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na

biografia suetoniana

Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus

variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne

progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet

Cl 21)

No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da

primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal

modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi

certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no

acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado

Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o

assassinato do sobrinho Caliacutegula

Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit

quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi

secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum

recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum

interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles

animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae

metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)

Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o

impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante

Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto

de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um

pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a

notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu

entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado

raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem

estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do

medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador

Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana

sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e

Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como

um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa

aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio

fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda

que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos

das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em

questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com

Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero

Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose

na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em

razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio

Rolim de Freitas explica que

O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que

o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego

Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois

aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)

Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na

Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos

iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o

argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio

relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico

legume

O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito

Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho

de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo

do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo

similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto

como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro

capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do

gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a

simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor

ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel

artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa

seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse

retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de

Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor

Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes

em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que

eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os

Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap

IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero

biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo

Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo

diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem

possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado

Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto

Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de

sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee

com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega

em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato

com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar

descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um

ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio

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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general

em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance

Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me

encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia

a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum

cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas

amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de

Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias

Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)

Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato

ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido

firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de

Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva

adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel

por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo

historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu

opositor na Batalha de Tapso

Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo

direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso

natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo

denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua

biografia deste modo

Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui

primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu

in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem

ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar

Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus

est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul

sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore

corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad

primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti

dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)

Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava

sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como

se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um

gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua

toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas

jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com

um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma

outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos

os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu

a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte

inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado

por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem

uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria

dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo

Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram

grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para

qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente

teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia

Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o

defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um

despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente

este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente

o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o

encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso

natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser

um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta

com o fato de dispor do uacutenico tomo

Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro

e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo

natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-

se agrave janela e mostra-o ao sol

Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um

Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e

folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)

Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma

forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar

A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela

rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na

nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-

se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito

ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash

Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de

outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica

esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de

suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees

do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna

Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de

sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem

jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o

Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia

Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve

uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por

conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de

emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a

famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio

Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum

iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu

errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit

Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum

constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo

inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda

eruntrdquo (Suet Jul 31 2)

Bruno Torres dos Santos

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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o

veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as

luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um

guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas

coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e

calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos

recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas

atraveacutes das armasrdquo

Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo

sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores

plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab

uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram

ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas

vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)

Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente

ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em

grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados

das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de

um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque

introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal

dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo

Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta

desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida

pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico

no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de

Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo

antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no

capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na

tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento

Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe

derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era

descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma

meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a

Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia

com alvoroccedilo e submissatildeo

Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do

matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe

a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de

Assis Helena cap XIII p 133)

Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto

ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado

tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a

Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito

suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano

Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro

governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio

4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo

imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo

senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai

e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para

a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens

em bustos inscriccedilotildees etc

Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O

narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste

com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar

o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo

(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a

reflexatildeo

A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em

casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de

um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala

grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)

O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida

e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo

amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes

Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu

defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele

eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de

captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano

Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam

amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti

essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam

quidem (Suet Dom 3)

Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas

horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para

uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de

modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo

uma mosca

Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para

o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por

outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo

negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no

iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor

jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como

as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados

a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido

algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria

contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes

Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito

bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 33

historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores

favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado

graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo

de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos

depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal

retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o

Suetocircniordquo

Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a

uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal

capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais

precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha

traiacutedo com igual sinceridade

Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que

foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69

Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia

deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes

de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero

Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo

das Memoacuterias Poacutestumas em completude

Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-

me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos

os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso

de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com

sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em

casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute

faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave

origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a

minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste

pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)

Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador

Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem

e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas

entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a

resposta eacute Suetocircnio

Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex

prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante

ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)

Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre

a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro

pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia

incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute

proveniente da urinardquo

Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos

comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que

vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

34 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu

romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente

contraditoacuterios

Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo

de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos

concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se

mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de

Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria

Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da

traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da

Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos

os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as

referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de

Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis

podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo

IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES

Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)

Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)

Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)

Suet Tit (Suetocircnio Tito)

Suet Ves (Suet Vespasiano)

DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL

ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius

Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31

Cambridge MA Harvard University Press 1914

______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius

Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians

Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and

Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA

Harvard University Press 1914

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 35

REFEREcircNCIAS

BOSI Alfredo Histoacuteria concisa da literatura brasileira 43deged Satildeo Paulo Cultrix 2006

CANDIDO Antonio O sistema literaacuterio consolidado In Iniciaccedilatildeo agrave literatura Brasileira

6deg ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul 2010 p65-126

CITRONI Maacuterio (Dir) CITRONI MCONSOLINO FELABATE M NARDUCCI

(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas

Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006

ESTEVES Anderson Martins Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas

obras Principia ndash Revista do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de

Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Ano 18 nXXX p1-7

2015

FREITAS Horaacutecio Apoloquintose In SILVA Amoacutes FREITAS Horaacutecio (orgs) Um

estudo de Olmar Guterres da Silveira Apocolocintose de Secircneca Rio de Janeiro Editora

Caeteacutes 2010 p 13-18

LORIGA Sabina O limiar biograacutefico In O pequeno x da biografia agrave histoacuteria Traduccedilatildeo

Fernando Sheibe Belo Horizonte Autecircntica Editora 2011 p17-48

MELLOR Ronald The roman historians New York Routledge 1999

MORENO Isabel Historiografiacutea ndash Siglo II- Suetocircnio In CODONtildeER Carmen (Ed)

Historia de la literatura latina Madrid Catedra 1997 p643-652

SILVEIRA Francisco Maciel O conto machadiano ou ldquoa realidade eacute boa o Realismo eacute que

natildeo prestardquo Veredas ndash revista da Associaccedilatildeo Internacional de Lusitanistas Porto 4deg volume

p95-103 2001

36 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

DOI httpsdoiorg1012957principia201946511

LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI

TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO

Heitor Victor

RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade

Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca

de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal

estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da

existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa

das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera

um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de

compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia

helecircnica

PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena

LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE

TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR

ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is

even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it

possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable

because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in

this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an

important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial

example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins

work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually

proved himself to be more important than the helenic tragedy itself

KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine

Introduccedilatildeo

O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua

presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente

uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de

composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende

Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E-mail heitor-victorhotmailcom

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da

seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro

grego e que perdura em nossa cultura

O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance

caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se

apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas

as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum

que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos

permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX

Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas

fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia

aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar

a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la

exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes

dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se

nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim

Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria

No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico

que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave

descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo

Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra

realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma

seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o

inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que

permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama

alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de

aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)

Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei

traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia

Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica

que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de

mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade

em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende

Benjamin por alegoria no drama traacutegico

Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das

concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao

ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com

transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter

proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo

romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular

para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma

alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo

(BENJAMIN 2011 p 171)

1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como

um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador

se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972

p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo

nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano

Heitor Victor

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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para

entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que

encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma

natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar

a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim

permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para

consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar

Benjamin reconhece que

o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o

desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido

psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso

atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso

a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o

caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)

Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa

relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A

comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer

a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como

uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no

abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode

desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral

a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que

trato neste trabalho

Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos

personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e

outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois

extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito

de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso

em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia

de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo

cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao

profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece

Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as

formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao

coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que

o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas

como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo

lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)

Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao

choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e

leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que

nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais

haacutebeis

Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce

claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e

um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos

desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos

surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)

Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da

corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os

momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da

anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance

Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de

Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o

reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de

que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente

e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de

valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas

Marcas do Heroacutei Traacutegico

As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos

de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia

uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei

neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para

si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre

da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena

consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o

ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo

dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico

Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a

abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua

proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais

indiviacuteduos Benjamin afirma

A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei

e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve

ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que

causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN

2011 p 108)

Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega

definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a

profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade

constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio

comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos

o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo

tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos

deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em

algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN

2011 p 108)

Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia

reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por

ele se sacrifica

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 41

ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se

crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes

tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em

minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR

1972 p 243)

O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega

completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O

sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se

direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua

protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento

da sua proacutepria vida

Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute

mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe

corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)

Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da

heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de

natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011

p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um

perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece

nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia

fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a

contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava

quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-

153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute

no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua

meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)

Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia

fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse

aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que

claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do

traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente

nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem

romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho

Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do

reconhecimento da proacutepria morte

Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente

heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis

moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo

mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)

Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da

morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes

de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute

sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo

quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)

Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa

Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida

contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A

culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas

se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face

angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para

clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico

No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo

as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la

na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como

todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa

consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua

lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)

Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro

ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e

genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece

e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que

expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela

ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa

heroiacutena rebate com acidez

ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais

quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de

quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite

Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe

prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos

saborosas (ALENCAR 1972 p 153)

Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais

sincera em um de seus momentos de maior entrega

ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de

minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A

dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica

do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo

que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma

(ALENCAR 1972 p 243)

Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois

precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha

entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-

se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a

projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia

Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim

encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu

papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais

beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute

melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres

Conclusatildeo

Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees

constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego

passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa

possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo

Heitor Victor

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dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica

como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de

ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito

pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida

Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta

de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de

convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade

de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando

essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha

destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do

elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo

Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico

levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo

estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro

alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute

precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento

traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas

sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas

como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as

mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo

dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de

uma obra de arte

REFEREcircNCIAS

ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash

Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972

ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005

BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora

2011

CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo

Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986

PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo

Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946512

CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES

ANIMAIS NA ILIacuteADA

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)

RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero

produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste

estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra

de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de

determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o

poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela

forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega

arcaica e claacutessica

PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles

SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES

ANIMALS IN THE ILIAD

ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer

produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study

is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of

Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of

certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals

the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero

projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative

term in the archaic and classical Greek culture

KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle

1 Sobre o siacutemile homeacuterico

Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo

que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por

uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre

outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo

sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1

E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a

possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras

usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

46 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os

siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute

composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que

eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos

nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou

verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo

(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila

separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2

Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia

em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem

em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos

Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas

sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias

sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido

maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles

pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples

menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos

Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais

como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre

outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam

como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e

Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o

siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais

selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham

grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo

(Clarke 2006 p 2)

Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja

examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada

como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o

quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao

seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de

caracterizaccedilatildeo

2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador

Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto

pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter

atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das

personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que

Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa

habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em

ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre

elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo

aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de

uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de

Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e

psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e

Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 47

Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema

eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito

combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar

aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao

animal (Clark 2006 p 4)4

Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm

igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)

Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal

mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os

animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos

com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver

tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute

preciso recorrermos a Aristoacuteteles

Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece

se coadunar com o mundo homeacuterico

Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas

psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo

e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade

e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em

inteligecircncia

῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν

τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ

ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ

φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως

ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os

animais 588 a 19-25)

Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e

os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos

dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por

analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens

comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica

Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos

humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem

do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um

vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura

grega6 mas meramente empiacuterico

Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano

por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que

Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural

possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes

4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se

encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal

Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de

uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem

(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as

relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

48 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas

agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)

A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra

de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos

bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um

todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o

valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si

Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma

caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada

3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores

Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o

animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo

ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo

empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma

passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus

de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o

siacutemile

Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira

Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus

Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos

E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se

Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho

Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre

Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada

Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora

Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio

Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou

Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos

Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio

Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ

κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος

φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα

τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς

ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ

ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι

φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου

δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot

ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα

πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων

ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους

ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot

(Il VIII 17-28)

Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que

configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos

muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim

como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων

πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς

παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil

do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 49

Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois

que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e

tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece

sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar

Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por

causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma

flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar

Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι

ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ

πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί

τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν

διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ

ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-

27)

A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que

Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre

todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em

sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como

ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa

Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal

natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo

demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos

aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem

Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila

Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em

siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que

A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras

localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em

coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo

tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da

Lacocircnia

Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς

τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ

τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ

τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608

a 27-33)

Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens

e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada

no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus

De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem

E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira

Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila

Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees

Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres

As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira

Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos

Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot

οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot

῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων

ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος

ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων

ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει

ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς

αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο

(Il VIII 335-343)

Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus

nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada

animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na

representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico

natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do

animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos

deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria

muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador

Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o

caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais

ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o

leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui

iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que

Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde

outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes

entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo

que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se

ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos

golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte

Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ

οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον

Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται

λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ

πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται

πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν

(Arist HA 629 b 33- 639 a8)

A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior

como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso

jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes

Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis

satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax

Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos

De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne

Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel

τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω

σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν

ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν

(Il VII 255-257)

Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis

representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo

Marco V C Colonnelli

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O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite

o combate foi interrompido pelos arautos

O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta

cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa

adversidade

Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma

multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a

face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra

entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que

de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir

para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua

corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo

᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ

διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ

σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει

ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς

ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει

κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι

κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)

Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais

intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns

siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de

alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira

Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax

E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas

E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera

Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas

Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral

Dos bois afugentam catildees e pastores

E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois

Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne

Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos

Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo

E tochas acesas que teme ainda que sedento

E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito

Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto

Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus

Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot

στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον

τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς

ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων

ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο

ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται

οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι

πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων

ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες

ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν

καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot

ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot

ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ

ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν

(Il XI 544-557)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei

em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices

psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso

feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a

situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa

bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo

Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo

comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o

nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo

Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como

voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito

gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado

do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito

e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio

A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um

desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se

trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para

a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do

comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem

exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos

depois em Aristoacuteteles

3 Conclusatildeo

O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais

produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam

muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas

tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com

maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute

descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante

Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do

conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem

o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas

REFEREcircNCIAS

ARISTOTLE Historia Animalium Transl by DArcy Wentworth Thompson Oxford

Clarendon Press 1910

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946513

OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL

MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS

Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem

praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos

que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-

literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos

periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal

PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS

MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS

ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can

be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify

magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to

demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek

literature and influenced actions that go beyond the temporal bias

KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes

de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam

a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao

afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma

humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre

os seres humanos

Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos

no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica

Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas

(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos

dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de

bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que

haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos

de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de

outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos

(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos

E-mail dulcinascimentobragagmailcom

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como

tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal

como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de

verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar

aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito

de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que

encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou

talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a

menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm

opiniatildeo formada

Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se

restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)

mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras

Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades

eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela

eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica

O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber

que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-

nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai

maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis

que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de

atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a

sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e

ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees

direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente

Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que

determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os

mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por

impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira

Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas

mulheres

Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam

a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo

com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que

envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e

segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades

ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres

sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves

necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias

sobrenaturais

Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e

a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre

acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a

extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos

casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem

Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas

circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a

religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai

1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas

cantos e banquetes

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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila

coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato

que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da

sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)

Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos

foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia

nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e

constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes

e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo

estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em

torno deles podendo ser controladas por certos meios

Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas

maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de

mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um

empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra

Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era

composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os

Magosrdquo

Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo

de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria

I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que

revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou

chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128

vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o

haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a

funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar

acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno

Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os

responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo

O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo

negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos

considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi

aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens

merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta

caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave

realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e

maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser

interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos

Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo

ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma

seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um

jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes

dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e

secretamente temidos por outrosrdquo

Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato

do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia

um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem

uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos

Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim

como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria

de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte

dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e

em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes

Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta

palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que

encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que

estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees

epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo

Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar

que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos

acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que

lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de

Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas

teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois

desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena

dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa

O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas

feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um

remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o

termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes

em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo

gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia

que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho

Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do

encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado

associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em

sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute

voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto

pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal

Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do

canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo

Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior

aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que

diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na

estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na

junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como

aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento

ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel

protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos

durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)

As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura

preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem

em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse

processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados

sagrados

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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo

denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm

basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3

Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees

sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem

somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar

nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana

pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que

venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim

Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade

normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca

especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um

gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo

na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite

Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram

utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de

reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns

versos do poema

Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana

Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem

Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada

Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um

Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)

Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica

pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico

para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura

muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de

Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros

oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o

mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede

A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser

observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a

medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras

Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo

Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta

modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que

se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de

Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho

Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que

frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que

tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de

cura do deus

Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem

um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute

uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos

empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-

se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como

banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias

partes do seu corpo

A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como

tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa

teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo

de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de

se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos

eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como

magia

A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de

quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que

relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a

ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo

(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)

Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio

masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith

e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo

obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas

atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas

particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria

algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes

Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes

nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que

demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de

palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de

serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo

A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes

Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena

Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo

E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios

da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos

E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma

Cortai os peitos da mulher morena

Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono

E trazem cores tristes para os meus olhos

Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes

Traze-me para o contato casto de tuas vestes

Salva-me dos braccedilos da mulher morena

Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim

Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca

Satildeo como dois silecircncios que me paralisam

Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena

Livra-me do seu ventre como a campina matinal

Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria

Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena

Reza para murcharem as pernas da mulher morena

Reza para a velhice roer dentro da mulher morena

Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros

E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos

cantos

Dai morte cruel agrave mulher morena

Dulcileide V do Nascimento Braga

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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que

faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas

bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir

a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)

ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo

O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros

encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi

abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar

daquelea que emocionalmente lhe causa mal

A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento

concretizando-os atraveacutes das palavras

Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada

em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego

como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder

Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a

concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas

cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo

desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram

obtidas no passado

Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas

palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas

do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os

profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais

REFEREcircNCIAS

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515

A AGOGEacute ESPARTANA

Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O

desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter

medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de

covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado

perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo

toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases

atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou

deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute

espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos

PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo

THE SPARTAN AGOGEacute

ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The

development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of

anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and

were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and

the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan

society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan

mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has

as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar

education with extremely bellicose objectives

KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus

Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A

criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado

representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto

sentido da palavra (Werner Jaeger)

E-mail oliveira-lluolcombr

A agogeacute espartana

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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo

denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio

Eurotas cercada de montanhas a nordeste

Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-

helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia

A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente

originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e

se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente

constituindo assim o povo helecircnico

Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e

foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os

espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica

peculiar a belicosidade

A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa

legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria

dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do

comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro

instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a

maneira de viver etc

Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo

tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e

desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram

expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo

comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali

comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)

Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador

da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria

I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia

Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees

culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de

expandir-se pelas armas

Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas

tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica

de los Lacedemonios I 1-2)

O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute

que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis

1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o

seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como

tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica

(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora

descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo

rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um

descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu

sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo

se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta

(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em

Vida de Licurgo

Luciene de Lima Oliveira

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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como

ldquoeducaccedilatildeordquo

Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e

chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o

exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a

educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como

tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)

Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar

constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza

grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza

Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra

ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo

adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte

a descreve (JAEGER 2001 p 114)

O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que

nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)

O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar

tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa

ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)

As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus

pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo

governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3

Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem

de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando

completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e

brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse

mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer

as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela

que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas

Paralelas)

Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente

nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida

Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um

pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta

com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees

militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas

Plutarco daacute o seguinte testemunho

Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o

aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria

em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-

lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os

cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior

parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze

anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam

somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e

3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem

seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

A agogeacute espartana

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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos

dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e

dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos

juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir

colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no

inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos

porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO

Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)

A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos

compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um

paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial

Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU

1966 p 42)

Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano

a) rhobiacutedas (termo obscuro)

b) promikkizoacutemenos (meninote)

c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)

Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano

a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)

b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)

c) melleiacuteren (futuro irene)

d) melleiacuteren (irene de segundo ano)

Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano

a) eireacuten de primeiro ano

b) eireacuten de segundo ano

c) eireacuten de terceiro ano

d) eireacuten de quarto ano

e) proteicircras (irene-chefe)

O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em

unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos

que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)

Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram

lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com

propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O

bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era

proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo

obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam

a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)

Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam

deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era

permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores

(Op cit X)

O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as

matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas

olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem

Luciene de Lima Oliveira

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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem

(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida

familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos

acampamentos militares

A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um

ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou

em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou

que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da

poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas

que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas

Paralelas)

Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando

a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se

preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma

disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros

guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto

da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)

O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com

moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em

prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos

Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato

de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir

suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)

Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como

objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como

resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram

em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na

verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra

disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)

Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo

diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na

Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta

por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)

A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas

(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se

rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana

Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma

revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam

em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos

Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o

estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro

ldquoacampamento militarrdquo permanente

Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era

dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras

pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam

participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei

A agogeacute espartana

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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de

hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve

Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e

o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees

dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos

neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada

pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que

vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que

tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar

papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito

muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar

os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo

teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes

esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por

Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que

eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que

espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que

tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)

Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que

frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada

por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois

de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem

que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os

conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan

eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo

concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994

pp 49-50)

Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de

um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os

covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que

natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a

kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja

algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara

entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana

O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo

presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p

82)

O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo

poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer

4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei

Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto

(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas

que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com

a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da

Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967

p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo

VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente

vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC

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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e

educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees

espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo

Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era

morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos

ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas

vidasrdquo (10 W 13-14)

Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A

propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha

(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)

Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade

de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um

homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)

A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave

morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa

morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo

de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus

direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)

A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo

geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da

Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute

proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos

literaacuterios diferentes

Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e

guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos

seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas

seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de

formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)

Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo

veementemente repelido do seio daquela sociedade

Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo

mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito

natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)

O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e

tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis

Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos

antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada

continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma

coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios

com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In

Vidas Paralelas)

Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por

exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um

caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)

Plutarco daacute testemunho dessa coletividade

A agogeacute espartana

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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes

antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se

acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de

si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo

de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In

Vidas Paralelas)

Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas

refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes

banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)

Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as

cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica

II 1262b 7-8)

O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia

Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta

Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que

tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era

que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o

limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das

refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)

De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios

(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue

Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La

Republica de los Lacedemonios)5

Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um

caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo

comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em

seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face

dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida

Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na

verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de

si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em

contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo

O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a

sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que

seraacute mais clara nos traacutegicos)

A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio

de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais

acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do

indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual

enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e

dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute

claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia

5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio

filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo

poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)

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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer

corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu

companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo

Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os

trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente

mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa

sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e

encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO

Histoacuteria IX 71)

Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio

nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa

em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles

se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor

belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos

abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo

tolerava

Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras

fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de

permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro

combateu furiosamente fora de seu posto

A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da

sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear

seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange

A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a

cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do

prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados

como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no

combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)

Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras

pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima

da famiacutelia vinha a poacutelis

Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto

quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada

cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o

esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)

As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam

exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos

ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo

com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do

parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)

Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos

mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos

fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de

eugenia dentro da sociedade espartana

Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas

crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou

deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses

A agogeacute espartana

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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente

natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6

Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia

disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se

dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que

natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela

vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para

ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres

que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda

parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam

se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles

que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem

resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e

ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes

(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos

fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de

que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos

(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)

A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que

Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII

aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a

rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de

uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas

de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois

do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute

e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por

principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e

Messecircnia que foram escravizados

A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as

aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo

VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da

riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o

dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes

quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute

intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo

para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)

Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo

confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem

apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os

espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica

de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente

belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros

6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a

matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes

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combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser

destemidos diante do inimigo

Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para

a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar

maneira de viver aos adultos

REFEREcircNCIAS

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PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Lisboa

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A agogeacute espartana

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Paulo Ed das Ameacutericas sd

VERNANT Jean-Pierre O Homem Grego Lisboa Editorial Presenccedila 1994

________ Jean-Pierre As Origens do Pensamento Grego Rio de Janeiro Difel

2002

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1992

Page 8: Principia XXXVIII - UERJ

Homem e mulher os criou

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semelhante a ele - daiacute o uso dos termos tsela e tselem (costela e osso) O termo lsquoeacutetzem -

semelhanccedila ndash une em sua raiz os dois termos que identificam a mulher como parte da

humanidade HaAdam natildeo a identifica como lsquoysh pois percebe que existem diferenccedilas

entre eles ndash afinal ela eacute seu contraacuterio Este texto biacuteblico como outros textos do Gecircnesis tenta explicar criaccedilatildeo de

homem e mulher como partes da humanidade Sua preocupaccedilatildeo em desenvolver uma

narrativa que explique a criaccedilatildeo da mulher se daacute para que natildeo se incorra no erro de ignorar

que a mulher tambeacutem eacute abenccediloada com a semelhanccedila de Deus corroborada na criaccedilatildeo

que se faz da mesma mateacuteria

Natildeo haacute uma preocupaccedilatildeo em inferiorizar a mulher Embora HaAdam a tenha

chamado de lsquoyshah seu nome apareceraacute somente no capiacutetulo seguinte apoacutes a expulsatildeo

do Eacuteden quando entatildeo ele a chamaraacute de Chawav ou Eva Se haacute superioridade porque ele

lhe daacute um nome esta superioridade eacute uma das consequecircncias do que se denominou pecado

e gerou a expulsatildeo do paraiacuteso

Os relatos cabaliacutesticos datildeo conta de criaccedilatildeo de uma outra mulher Esta ideia natildeo

soacute eacute desenvolvida pelos dois relatos de criaccedilatildeo mas tambeacutem pela fala de HaAdam

quando desperta de seu sono Ele diz segundo a traduccedilatildeo que fazemos aqui do hebraico

e disse o homem esta desta vez eacute osso dos meus ossos 5 Se desta vez HaAdam se

identifica com algo na criaccedilatildeo talvez teria acontecido algo antes com o qual ele natildeo teria

se adaptado ou natildeo se sentiria reconhecido

Lilith eacute a mulher que domina e seduz HaAdam que lhe aproxima de seus

institntos Chavah a segunda mulher eacute a que gera e constroacutei a histoacuteria Na religiatildeo a

primeira eacute tida como a mulher que deve ser desprezada apesar de figurar no imaginaacuterio

masculino pois retorna nos sonhos de Adatildeo Ela tambeacutem retorna aos textos biacuteblicos

principalmente nos sapiencieais mais especificamente no livro de proveacuterbios nos

capiacutetulos 1 a 9 quando se faz oposiccedilatildeo entre a sabedoria e a ignoracircncia entre a mulher

do povo e a estrangeira

Chavah vive com esta sombra - a mulher principal para a sociedade mas natildeo nos

desejos de seu marido A presenccedila de Lilith na cultura judaica natildeo eacute uacutenica Ela pode ser

encontrada no eacutepico de Gilgamesh que data de 2000 aEC na pseudoepiacutegrafe

denominada Testamento de Salomatildeo que data de 200 EC no Talmud e no Alfabeto de

Ben Sira6 do ano 800 de nossa era aproximadamente Alguns indicam haver menccedilatildeo

tambeacutem no livro biacuteblico de Isaiacuteas 3414 (a palavra Lilith vem da raiz laylah que significa

noite)

Lilith teria sido criada tatildeo bonita e interessante que logo arranjou

problemas com o primeiro o homem Ainda segundo a narrativa

miacutetica Eva foi criada para substituir Lilith Eva seria o oposto de

Lilith por sua vez reuacutene traccedilos marcantes de obediecircncia boa

imagem companheira submissa ao sacerdote ao Pai e agrave Lei e por

fim tambeacutem fonte de pecado e desobediecircncia (GOMES

ALMEIDA 2019)

Eacute importante tambeacutem observar que o capiacutetulo 2 de Gecircnesis este que se propotildee a

recontar a criaccedilatildeo focando a criaccedilatildeo do homem e da mulher eacute um texto javista-eloiacutesta

Observa-se que o capiacutetulo primeiro do gecircnesis eacute notoriamente um texto eloiacutesta Jaacute o

5 Cf capiacutetulo 2 versiacuteculo 23 do livro de Gecircnesis 6 Onde se tem o registro mais antigo sobre Lilith datado entre os seacuteculos VIII e X aC segundo Koltuv

(1986)

Isabel Arco Verde Santos

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capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim

O texto mistura entatildeo as duas fontes

A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma

possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com

a qual ele HaAdam se identificasse

A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao

papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se

faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava

ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade

que culturalmente ainda se insiste afirmar

O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer

preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-

Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que

natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila

divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia

comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade

A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se

entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo

o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a

mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam

na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo

seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo

que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade

Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela

conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser

semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela

REFEREcircNCIAS

A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1958

BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967

BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995

EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer

1972 3 vol

FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa

15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira

GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de

Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital

de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt

Homem e mulher os criou

12 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo

Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988

KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix

1986

PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro

Brasiliense 1993

PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e

notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo

Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

DOI httpsdoiorg1012957principia201946508

AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO

REINADO DE VALENTINIANO I

Carlos Eduardo Schmitt

RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual

chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)

e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III

proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de

Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em

vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III

tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I

A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma

agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador

PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE

KINGDOM OF VALENTINIAN I

ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work

from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses

(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced

between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in

384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our

paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career

and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes

we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as

a bridge between the Senate and the emperor

KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I

LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL

REINADO DE VALENTINIANO I

RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la

cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes

(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I

Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

14 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como

prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo

auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes

I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de

Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador

enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador

PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

INTRODUCcedilAtildeO

Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco

foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas

obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo

em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego

(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de

seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de

estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem

que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1

(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da

religiatildeo tradicional romana

Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de

Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo

peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora

defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de

Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus

simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto

Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto

Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem

documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi

um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de

Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador

Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes

desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou

conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante

seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder

a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja

Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas

orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo

latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as

orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como

esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros

escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a

produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que

por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada

1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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ORATIONES I II E III

Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que

iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir

uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de

reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava

apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea

tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte

Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea

uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa

era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim

Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia

natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os

senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores

aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo

Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta

anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em

xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de

Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro

ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que

das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio

Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou

tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano

filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de

Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006

p 6)

A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um

sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter

solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade

e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de

que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o

que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles

de que ouviu o testemunho

Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano

como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da

Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o

estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros

anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico

como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da

nova dinastia

2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum

oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES

2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

16 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano

e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador

nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso

significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas

sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em

diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe

qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado

que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo

ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um

consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)

O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-

los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre

ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no

poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra

formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano

Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de

imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente

assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais

feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os

interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente

cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a

proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum

ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis

O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro

consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco

estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo

Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas

Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de

expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que

fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra

o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior

inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)

Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e

fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas

pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus

avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de

governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver

aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco

exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra

os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido

com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo

imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte

O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo

a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como

um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar

em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado

Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para

Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 17

maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o

melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador

narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao

longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a

liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade

No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se

dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador

enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma

de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana

por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na

corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em

Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)

O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco

elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual

ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio

de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem

treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e

em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo

lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso

OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS

Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise

dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas

asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)

descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso

forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles

proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos

diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles

escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de

especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)

Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o

reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente

ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico

ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)

O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob

o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais

antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia

Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)

satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)

3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of

his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in

panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been

so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano

Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a

dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de

louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de

parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como

fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos

expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais

significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5

As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que

provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram

prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano

(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)

este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e

291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o

casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)

312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl

Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6

Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada

vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio

dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas

em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os

deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam

imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos

Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao

imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele

aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador

de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)

Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal

de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom

patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude

amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso

tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao

seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom

modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da

literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca

saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa

duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus

the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the

(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature

Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic

orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)

Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for

Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of

Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for

Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the

younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 19

pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo

poliacutetica7

Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver

abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico

modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao

imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece

sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de

Domicianordquo8

CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS

As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De

acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano

havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo

auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados

a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma

foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a

criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se

agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos

traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)

Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell

(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano

vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas

proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-

57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em

395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos

internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais

de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das

quais os imperadores participavam pessoalmente

Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo

poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade

de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura

latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo

que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9

7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the

most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and

friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers

to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent

senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range

of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram

historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved

towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his

consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of

assailing the principate of Domitianrdquo

9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable

period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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REFEREcircNCIAS DOCUMENTAIS

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946510

OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS

DE BRAacuteS CUBAS

Bruno Torres dos Santos

RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as

referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida

dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no

iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive

enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees

da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes

personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de

que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as

referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga

PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio

THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF

BRAS CUBAS

ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to

the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the

Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius

at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues

of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already

brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth

century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary

creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not

recover references to the culture literature and history of Ancient Rome

KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius

Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute

nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento

Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante

discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-

mail brunots_hotmailcom

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839

Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma

universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica

teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da

Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela

Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a

ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908

com 69 anos

Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio

Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e

adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos

filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta

Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos

requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser

reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de

universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO

2010 p 65)

Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute

singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses

traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e

interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo

utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio

primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras

(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia

Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do

romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps

termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se

mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho

com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de

nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida

pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)

Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os

merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero

romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute

todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para

usarmos termos proacuteprios da literatura latina

Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um

narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira

discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a

impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que

eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica

literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo

Bosi

1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum

Bruno Torres dos Santos

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Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade

passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo

dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a

histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois

mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves

idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc

e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que

restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador

Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)

Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a

indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto

com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta

o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do

pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e

um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de

poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do

adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de

Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-

Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais

heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos

sem grandeza (BOSI 2006 p 180)

Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a

intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-

personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do

ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera

burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer

fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos

imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda

poliacutetica de modo velado

Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o

bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de

sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca

encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais

plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido

nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio

o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador

Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres

(ESTEVES 2015 p 1-7)

Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno

dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69

EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno

militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor

segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai

na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)

Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas

imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo

na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o

bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o

principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses

e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das

bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a

funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p

971)

A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as

referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes

fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze

primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano

Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros

anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC

Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi

usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo

agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos

O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII

designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas

antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o

panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)

A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um

gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria

sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e

agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)

Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo

iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por

uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e

seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia

adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um

medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse

projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da

cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a

primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio

A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor

de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea

fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas

cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna

loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou

ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de

Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous

ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama

Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu

um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio

tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3

3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual

Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin

Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)

Bruno Torres dos Santos

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Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a

proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo

do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno

Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram

personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi

Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso

Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na

biografia suetoniana

Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus

variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne

progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet

Cl 21)

No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da

primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal

modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi

certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no

acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado

Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o

assassinato do sobrinho Caliacutegula

Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit

quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi

secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum

recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum

interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles

animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae

metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)

Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o

impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante

Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto

de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um

pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a

notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu

entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado

raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem

estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do

medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador

Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana

sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e

Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como

um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa

aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio

fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda

que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos

das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em

questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com

Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero

Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose

na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em

razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio

Rolim de Freitas explica que

O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que

o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego

Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois

aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)

Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na

Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos

iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o

argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio

relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico

legume

O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito

Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho

de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo

do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo

similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto

como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro

capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do

gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a

simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor

ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel

artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa

seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse

retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de

Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor

Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes

em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que

eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os

Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap

IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero

biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo

Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo

diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem

possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado

Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto

Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de

sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee

com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega

em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato

com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar

descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um

ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio

Bruno Torres dos Santos

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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general

em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance

Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me

encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia

a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum

cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas

amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de

Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias

Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)

Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato

ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido

firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de

Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva

adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel

por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo

historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu

opositor na Batalha de Tapso

Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo

direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso

natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo

denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua

biografia deste modo

Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui

primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu

in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem

ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar

Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus

est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul

sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore

corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad

primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti

dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)

Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava

sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como

se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um

gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua

toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas

jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com

um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma

outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos

os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu

a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte

inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado

por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem

uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria

dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo

Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram

grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para

qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente

teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia

Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o

defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um

despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente

este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente

o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o

encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso

natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser

um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta

com o fato de dispor do uacutenico tomo

Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro

e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo

natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-

se agrave janela e mostra-o ao sol

Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um

Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e

folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)

Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma

forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar

A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela

rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na

nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-

se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito

ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash

Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de

outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica

esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de

suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees

do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna

Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de

sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem

jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o

Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia

Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve

uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por

conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de

emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a

famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio

Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum

iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu

errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit

Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum

constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo

inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda

eruntrdquo (Suet Jul 31 2)

Bruno Torres dos Santos

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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o

veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as

luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um

guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas

coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e

calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos

recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas

atraveacutes das armasrdquo

Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo

sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores

plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab

uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram

ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas

vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)

Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente

ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em

grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados

das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de

um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque

introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal

dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo

Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta

desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida

pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico

no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de

Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo

antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no

capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na

tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento

Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe

derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era

descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma

meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a

Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia

com alvoroccedilo e submissatildeo

Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do

matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe

a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de

Assis Helena cap XIII p 133)

Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto

ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado

tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a

Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito

suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano

Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro

governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio

4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo

imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo

senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai

e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para

a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens

em bustos inscriccedilotildees etc

Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O

narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste

com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar

o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo

(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a

reflexatildeo

A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em

casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de

um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala

grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)

O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida

e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo

amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes

Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu

defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele

eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de

captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano

Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam

amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti

essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam

quidem (Suet Dom 3)

Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas

horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para

uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de

modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo

uma mosca

Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para

o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por

outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo

negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no

iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor

jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como

as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados

a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido

algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria

contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes

Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito

bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo

Bruno Torres dos Santos

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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores

favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado

graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo

de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos

depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal

retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o

Suetocircniordquo

Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a

uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal

capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais

precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha

traiacutedo com igual sinceridade

Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que

foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69

Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia

deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes

de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero

Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo

das Memoacuterias Poacutestumas em completude

Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-

me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos

os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso

de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com

sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em

casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute

faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave

origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a

minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste

pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)

Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador

Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem

e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas

entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a

resposta eacute Suetocircnio

Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex

prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante

ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)

Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre

a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro

pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia

incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute

proveniente da urinardquo

Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos

comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que

vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu

romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente

contraditoacuterios

Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo

de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos

concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se

mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de

Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria

Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da

traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da

Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos

os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as

referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de

Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis

podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo

IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES

Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)

Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)

Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)

Suet Tit (Suetocircnio Tito)

Suet Ves (Suet Vespasiano)

DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL

ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

SUETONIUS Lives of the Caesars Volume I Julius Augustus Tiberius Gaius

Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31

Cambridge MA Harvard University Press 1914

______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius

Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians

Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and

Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA

Harvard University Press 1914

Bruno Torres dos Santos

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REFEREcircNCIAS

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CANDIDO Antonio O sistema literaacuterio consolidado In Iniciaccedilatildeo agrave literatura Brasileira

6deg ed Rio de Janeiro Ouro Sobre Azul 2010 p65-126

CITRONI Maacuterio (Dir) CITRONI MCONSOLINO FELABATE M NARDUCCI

(orgs) Literatura de Roma Antiga Co-autores da traduccedilatildeo Margarida Miranda e Isaiacuteas

Hipoacutelito Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2006

ESTEVES Anderson Martins Biografia na biografia Vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas

obras Principia ndash Revista do Departamento de Letras Claacutessicas e Orientais do Instituto de

Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Ano 18 nXXX p1-7

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FREITAS Horaacutecio Apoloquintose In SILVA Amoacutes FREITAS Horaacutecio (orgs) Um

estudo de Olmar Guterres da Silveira Apocolocintose de Secircneca Rio de Janeiro Editora

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p95-103 2001

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511

LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI

TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO

Heitor Victor

RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade

Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca

de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal

estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da

existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa

das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera

um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de

compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia

helecircnica

PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena

LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE

TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR

ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is

even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it

possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable

because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in

this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an

important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial

example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins

work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually

proved himself to be more important than the helenic tragedy itself

KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine

Introduccedilatildeo

O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua

presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente

uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de

composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende

Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E-mail heitor-victorhotmailcom

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

38 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da

seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro

grego e que perdura em nossa cultura

O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance

caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se

apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas

as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum

que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos

permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX

Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas

fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia

aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar

a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la

exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes

dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se

nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim

Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria

No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico

que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave

descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo

Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra

realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma

seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o

inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que

permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama

alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de

aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)

Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei

traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia

Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica

que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de

mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade

em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende

Benjamin por alegoria no drama traacutegico

Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das

concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao

ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com

transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter

proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo

romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular

para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma

alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo

(BENJAMIN 2011 p 171)

1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como

um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador

se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972

p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo

nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 39

A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para

entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que

encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma

natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar

a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim

permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para

consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar

Benjamin reconhece que

o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o

desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido

psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso

atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso

a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o

caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)

Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa

relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A

comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer

a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como

uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no

abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode

desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral

a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que

trato neste trabalho

Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos

personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e

outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois

extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito

de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso

em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia

de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo

cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao

profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece

Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as

formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao

coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que

o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas

como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo

lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)

Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao

choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e

leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que

nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais

haacutebeis

Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce

claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e

um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos

desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos

surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)

Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da

corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os

momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da

anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance

Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de

Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o

reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de

que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente

e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de

valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas

Marcas do Heroacutei Traacutegico

As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos

de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia

uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei

neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para

si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre

da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena

consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o

ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo

dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico

Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a

abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua

proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais

indiviacuteduos Benjamin afirma

A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei

e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve

ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que

causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN

2011 p 108)

Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega

definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a

profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade

constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio

comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos

o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo

tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos

deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em

algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN

2011 p 108)

Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia

reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por

ele se sacrifica

Heitor Victor

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ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se

crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes

tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em

minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR

1972 p 243)

O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega

completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O

sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se

direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua

protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento

da sua proacutepria vida

Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute

mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe

corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)

Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da

heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de

natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011

p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um

perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece

nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia

fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a

contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava

quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-

153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute

no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua

meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)

Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia

fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse

aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que

claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do

traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente

nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem

romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho

Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do

reconhecimento da proacutepria morte

Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente

heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis

moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo

mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)

Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da

morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes

de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute

sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo

quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)

Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa

Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida

contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A

culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas

se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

42 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face

angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para

clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico

No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo

as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la

na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como

todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa

consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua

lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)

Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro

ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e

genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece

e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que

expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela

ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa

heroiacutena rebate com acidez

ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais

quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de

quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite

Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe

prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos

saborosas (ALENCAR 1972 p 153)

Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais

sincera em um de seus momentos de maior entrega

ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de

minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A

dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica

do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo

que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma

(ALENCAR 1972 p 243)

Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois

precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha

entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-

se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a

projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia

Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim

encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu

papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais

beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute

melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres

Conclusatildeo

Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees

constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego

passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa

possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 43

dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica

como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de

ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito

pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida

Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta

de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de

convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade

de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando

essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha

destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do

elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo

Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico

levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo

estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro

alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute

precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento

traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas

sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas

como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as

mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo

dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de

uma obra de arte

REFEREcircNCIAS

ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash

Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972

ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005

BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora

2011

CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo

Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986

PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo

Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946512

CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES

ANIMAIS NA ILIacuteADA

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)

RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero

produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste

estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra

de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de

determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o

poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela

forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega

arcaica e claacutessica

PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles

SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES

ANIMALS IN THE ILIAD

ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer

produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study

is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of

Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of

certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals

the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero

projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative

term in the archaic and classical Greek culture

KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle

1 Sobre o siacutemile homeacuterico

Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo

que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por

uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre

outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo

sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1

E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a

possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras

usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

46 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os

siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute

composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que

eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos

nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou

verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo

(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila

separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2

Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia

em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem

em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos

Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas

sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias

sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido

maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles

pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples

menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos

Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais

como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre

outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam

como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e

Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o

siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais

selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham

grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo

(Clarke 2006 p 2)

Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja

examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada

como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o

quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao

seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de

caracterizaccedilatildeo

2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador

Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto

pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter

atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das

personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que

Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa

habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em

ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre

elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo

aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de

uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de

Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e

psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e

Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 47

Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema

eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito

combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar

aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao

animal (Clark 2006 p 4)4

Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm

igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)

Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal

mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os

animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos

com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver

tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute

preciso recorrermos a Aristoacuteteles

Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece

se coadunar com o mundo homeacuterico

Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas

psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo

e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade

e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em

inteligecircncia

῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν

τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ

ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ

φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως

ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os

animais 588 a 19-25)

Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e

os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos

dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por

analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens

comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica

Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos

humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem

do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um

vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura

grega6 mas meramente empiacuterico

Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano

por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que

Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural

possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes

4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se

encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal

Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de

uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem

(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as

relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

48 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas

agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)

A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra

de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos

bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um

todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o

valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si

Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma

caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada

3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores

Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o

animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo

ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo

empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma

passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus

de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o

siacutemile

Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira

Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus

Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos

E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se

Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho

Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre

Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada

Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora

Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio

Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou

Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos

Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio

Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ

κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος

φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα

τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς

ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ

ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι

φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου

δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot

ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα

πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων

ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους

ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot

(Il VIII 17-28)

Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que

configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos

muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim

como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων

πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς

παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil

do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 49

Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois

que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e

tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece

sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar

Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por

causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma

flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar

Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι

ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ

πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί

τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν

διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ

ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-

27)

A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que

Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre

todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em

sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como

ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa

Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal

natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo

demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos

aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem

Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila

Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em

siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que

A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras

localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em

coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo

tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da

Lacocircnia

Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς

τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ

τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ

τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608

a 27-33)

Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens

e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada

no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus

De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem

E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira

Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila

Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees

Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres

As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira

Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos

Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot

οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot

῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων

ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος

ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων

ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει

ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς

αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο

(Il VIII 335-343)

Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus

nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada

animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na

representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico

natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do

animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos

deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria

muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador

Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o

caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais

ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o

leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui

iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que

Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde

outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes

entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo

que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se

ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos

golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte

Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ

οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον

Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται

λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ

πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται

πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν

(Arist HA 629 b 33- 639 a8)

A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior

como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso

jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes

Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis

satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax

Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos

De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne

Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel

τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω

σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν

ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν

(Il VII 255-257)

Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis

representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51

O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite

o combate foi interrompido pelos arautos

O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta

cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa

adversidade

Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma

multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a

face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra

entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que

de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir

para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua

corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo

᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ

διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ

σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει

ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς

ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει

κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι

κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)

Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais

intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns

siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de

alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira

Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax

E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas

E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera

Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas

Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral

Dos bois afugentam catildees e pastores

E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois

Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne

Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos

Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo

E tochas acesas que teme ainda que sedento

E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito

Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto

Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus

Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot

στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον

τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς

ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων

ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο

ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται

οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι

πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων

ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες

ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν

καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot

ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot

ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ

ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν

(Il XI 544-557)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

52 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei

em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices

psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso

feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a

situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa

bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo

Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo

comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o

nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo

Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como

voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito

gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado

do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito

e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio

A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um

desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se

trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para

a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do

comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem

exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos

depois em Aristoacuteteles

3 Conclusatildeo

O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais

produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam

muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas

tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com

maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute

descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante

Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do

conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem

o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas

REFEREcircNCIAS

ARISTOTLE Historia Animalium Transl by DArcy Wentworth Thompson Oxford

Clarendon Press 1910

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Paris J Vrin 2007

54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

DOI httpsdoiorg1012957principia201946513

OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL

MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS

Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem

praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos

que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-

literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos

periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal

PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS

MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS

ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can

be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify

magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to

demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek

literature and influenced actions that go beyond the temporal bias

KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes

de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam

a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao

afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma

humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre

os seres humanos

Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos

no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica

Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas

(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos

dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de

bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que

haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos

de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de

outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos

(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos

E-mail dulcinascimentobragagmailcom

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

56 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como

tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal

como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de

verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar

aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito

de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que

encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou

talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a

menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm

opiniatildeo formada

Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se

restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)

mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras

Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades

eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela

eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica

O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber

que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-

nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai

maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis

que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de

atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a

sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e

ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees

direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente

Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que

determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os

mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por

impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira

Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas

mulheres

Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam

a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo

com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que

envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e

segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades

ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres

sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves

necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias

sobrenaturais

Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e

a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre

acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a

extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos

casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem

Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas

circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a

religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai

1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas

cantos e banquetes

Dulcileide V do Nascimento Braga

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 57

detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila

coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato

que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da

sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)

Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos

foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia

nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e

constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes

e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo

estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em

torno deles podendo ser controladas por certos meios

Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas

maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de

mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um

empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra

Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era

composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os

Magosrdquo

Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo

de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria

I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que

revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou

chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128

vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o

haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a

funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar

acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno

Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os

responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo

O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo

negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos

considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi

aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens

merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta

caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave

realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e

maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser

interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos

Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo

ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma

seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um

jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes

dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e

secretamente temidos por outrosrdquo

Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato

do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia

um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem

uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos

Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim

como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria

de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte

dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e

em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes

Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta

palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que

encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que

estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees

epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo

Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar

que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos

acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que

lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de

Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas

teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois

desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena

dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa

O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas

feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um

remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o

termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes

em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo

gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia

que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho

Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do

encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado

associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em

sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute

voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto

pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal

Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do

canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo

Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior

aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que

diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na

estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na

junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como

aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento

ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel

protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos

durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)

As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura

preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem

em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse

processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados

sagrados

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Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 59

Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo

denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm

basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3

Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees

sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem

somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar

nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana

pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que

venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim

Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade

normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca

especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um

gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo

na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite

Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram

utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de

reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns

versos do poema

Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana

Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem

Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada

Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um

Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)

Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica

pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico

para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura

muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de

Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros

oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o

mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede

A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser

observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a

medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras

Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo

Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta

modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que

se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de

Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho

Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que

frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que

tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de

cura do deus

Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem

um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute

uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos

empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-

se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como

banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias

partes do seu corpo

A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como

tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa

teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo

de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de

se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos

eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como

magia

A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de

quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que

relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a

ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo

(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)

Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio

masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith

e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo

obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas

atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas

particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria

algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes

Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes

nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que

demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de

palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de

serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo

A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes

Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena

Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo

E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios

da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos

E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma

Cortai os peitos da mulher morena

Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono

E trazem cores tristes para os meus olhos

Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes

Traze-me para o contato casto de tuas vestes

Salva-me dos braccedilos da mulher morena

Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim

Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca

Satildeo como dois silecircncios que me paralisam

Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena

Livra-me do seu ventre como a campina matinal

Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria

Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena

Reza para murcharem as pernas da mulher morena

Reza para a velhice roer dentro da mulher morena

Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros

E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos

cantos

Dai morte cruel agrave mulher morena

Dulcileide V do Nascimento Braga

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O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que

faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas

bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir

a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)

ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo

O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros

encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi

abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar

daquelea que emocionalmente lhe causa mal

A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento

concretizando-os atraveacutes das palavras

Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada

em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego

como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder

Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a

concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas

cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo

desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram

obtidas no passado

Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas

palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas

do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os

profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515

A AGOGEacute ESPARTANA

Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O

desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter

medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de

covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado

perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo

toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases

atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou

deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute

espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos

PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo

THE SPARTAN AGOGEacute

ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The

development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of

anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and

were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and

the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan

society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan

mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has

as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar

education with extremely bellicose objectives

KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus

Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A

criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado

representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto

sentido da palavra (Werner Jaeger)

E-mail oliveira-lluolcombr

A agogeacute espartana

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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo

denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio

Eurotas cercada de montanhas a nordeste

Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-

helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia

A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente

originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e

se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente

constituindo assim o povo helecircnico

Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e

foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os

espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica

peculiar a belicosidade

A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa

legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria

dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do

comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro

instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a

maneira de viver etc

Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo

tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e

desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram

expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo

comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali

comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)

Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador

da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria

I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia

Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees

culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de

expandir-se pelas armas

Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas

tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica

de los Lacedemonios I 1-2)

O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute

que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis

1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o

seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como

tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica

(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora

descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo

rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um

descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu

sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo

se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta

(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em

Vida de Licurgo

Luciene de Lima Oliveira

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 65

659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como

ldquoeducaccedilatildeordquo

Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e

chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o

exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a

educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como

tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)

Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar

constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza

grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza

Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra

ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo

adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte

a descreve (JAEGER 2001 p 114)

O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que

nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)

O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar

tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa

ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)

As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus

pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo

governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3

Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem

de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando

completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e

brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse

mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer

as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela

que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas

Paralelas)

Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente

nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida

Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um

pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta

com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees

militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas

Plutarco daacute o seguinte testemunho

Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o

aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria

em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-

lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os

cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior

parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze

anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam

somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e

3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem

seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

A agogeacute espartana

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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos

dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e

dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos

juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir

colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no

inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos

porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO

Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)

A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos

compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um

paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial

Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU

1966 p 42)

Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano

a) rhobiacutedas (termo obscuro)

b) promikkizoacutemenos (meninote)

c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)

Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano

a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)

b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)

c) melleiacuteren (futuro irene)

d) melleiacuteren (irene de segundo ano)

Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano

a) eireacuten de primeiro ano

b) eireacuten de segundo ano

c) eireacuten de terceiro ano

d) eireacuten de quarto ano

e) proteicircras (irene-chefe)

O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em

unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos

que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)

Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram

lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com

propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O

bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era

proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo

obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam

a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)

Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam

deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era

permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores

(Op cit X)

O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as

matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas

olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem

Luciene de Lima Oliveira

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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem

(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida

familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos

acampamentos militares

A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um

ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou

em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou

que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da

poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas

que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas

Paralelas)

Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando

a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se

preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma

disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros

guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto

da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)

O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com

moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em

prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos

Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato

de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir

suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)

Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como

objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como

resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram

em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na

verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra

disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)

Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo

diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na

Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta

por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)

A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas

(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se

rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana

Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma

revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam

em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos

Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o

estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro

ldquoacampamento militarrdquo permanente

Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era

dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras

pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam

participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei

A agogeacute espartana

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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de

hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve

Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e

o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees

dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos

neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada

pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que

vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que

tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar

papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito

muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar

os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo

teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes

esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por

Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que

eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que

espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que

tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)

Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que

frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada

por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois

de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem

que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os

conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan

eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo

concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994

pp 49-50)

Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de

um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os

covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que

natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a

kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja

algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara

entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana

O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo

presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p

82)

O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo

poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer

4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei

Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto

(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas

que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com

a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da

Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967

p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo

VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente

vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC

Luciene de Lima Oliveira

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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e

educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees

espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo

Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era

morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos

ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas

vidasrdquo (10 W 13-14)

Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A

propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha

(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)

Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade

de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um

homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)

A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave

morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa

morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo

de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus

direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)

A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo

geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da

Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute

proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos

literaacuterios diferentes

Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e

guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos

seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas

seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de

formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)

Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo

veementemente repelido do seio daquela sociedade

Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo

mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito

natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)

O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e

tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis

Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos

antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada

continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma

coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios

com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In

Vidas Paralelas)

Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por

exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um

caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)

Plutarco daacute testemunho dessa coletividade

A agogeacute espartana

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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes

antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se

acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de

si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo

de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In

Vidas Paralelas)

Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas

refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes

banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)

Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as

cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica

II 1262b 7-8)

O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia

Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta

Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que

tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era

que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o

limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das

refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)

De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios

(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue

Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La

Republica de los Lacedemonios)5

Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um

caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo

comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em

seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face

dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida

Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na

verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de

si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em

contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo

O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a

sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que

seraacute mais clara nos traacutegicos)

A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio

de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais

acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do

indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual

enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e

dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute

claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia

5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio

filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo

poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)

Luciene de Lima Oliveira

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A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer

corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu

companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo

Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os

trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente

mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa

sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e

encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO

Histoacuteria IX 71)

Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio

nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa

em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles

se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor

belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos

abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo

tolerava

Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras

fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de

permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro

combateu furiosamente fora de seu posto

A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da

sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear

seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange

A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a

cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do

prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados

como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no

combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)

Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras

pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima

da famiacutelia vinha a poacutelis

Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto

quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada

cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o

esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)

As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam

exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos

ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo

com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do

parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)

Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos

mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos

fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de

eugenia dentro da sociedade espartana

Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas

crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou

deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses

A agogeacute espartana

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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente

natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6

Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia

disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se

dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que

natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela

vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para

ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres

que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda

parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam

se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles

que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem

resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e

ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes

(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos

fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de

que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos

(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)

A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que

Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII

aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a

rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de

uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas

de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois

do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute

e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por

principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e

Messecircnia que foram escravizados

A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as

aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo

VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da

riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o

dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes

quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute

intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo

para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)

Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo

confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem

apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os

espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica

de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente

belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros

6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a

matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes

Luciene de Lima Oliveira

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 73

combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser

destemidos diante do inimigo

Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para

a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar

maneira de viver aos adultos

REFEREcircNCIAS

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Ediccedilatildeo Biliacutengue Traduccedilatildeo de Antocircnio Campelo Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes Lisboa Vega 1998

BAILLY Anatole Dictionnaire Grec-Franccedilais Ed Revista par L Seacutechan e

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CAMPBELL David A Greek Lyric Poetry New York ST MartinrsquoS Press 1967

DETIENNE Marcel La Phalange problegravemes et controverses In Problegravemes de la

Guerre en Gregravece Ancienne VERNANT Jean-Pierre (org) Paris Eacuteditons de lrsquo Eacutecole

des Hautes Eacutetudes en Sciences Sociales Paris 1999

HEROacuteDOTO Histoacuteria Traduccedilatildeo de Maacuterio da Gama Kury Brasiacutelia Editora

Universidade de Brasiacutelia 1988

JAEGER Werner Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Satildeo Paulo Martins Fontes

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JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios Traduccedilatildeo de Maria Rico Gomez

Madrid Centro de Estuacutedios Costitucionales 1989

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MARROU Henri-Ireacuteneacutee Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade Satildeo Paulo Herder

1966

MOSSEacute Claude Dicionaacuterio da Civilizaccedilatildeo Grega Traduccedilatildeo de Carlos Ramalhete

Rio de Janeiro Zahar Editor 1998

PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulkbenkian 1993

PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de J Guinsburg Satildeo Paulo Claacutessicos

GarnierDifusatildeo Europeia do Livro 1965

A agogeacute espartana

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________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Eduardo Menezes Satildeo Paulo Hemus Livraria

Editora 1970

PLUTARCO Licurgo In Vidas Paralelas Traduccedilatildeo de Aristides da Silva Lobo Satildeo

Paulo Ed das Ameacutericas sd

VERNANT Jean-Pierre O Homem Grego Lisboa Editorial Presenccedila 1994

________ Jean-Pierre As Origens do Pensamento Grego Rio de Janeiro Difel

2002

WEST Martin Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum Cantati New York Oxford

1992

Page 9: Principia XXXVIII - UERJ

Isabel Arco Verde Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 11

capiacutetulo 2 refere-se a deus com o tetragrama sagrado (Yhwh) seguido da forma Elohim

O texto mistura entatildeo as duas fontes

A conclusatildeo de HaAdam natildeo necessariamente afirma a lenda mas abrem uma

possibilidade neste sentido O que se pode concluir eacute que natildeo havia nada na criaccedilatildeo com

a qual ele HaAdam se identificasse

A preocupaccedilatildeo da leitura biacuteblica e as possiacuteveis interpretaccedilotildees relacionando ao

papel da mulher na sociedade ainda precisam ser mais bem resolvidas Mesmo que se

faccedila a presenccedila de Lilith no texto como a histoacuteria omitida e natildeo contada porque precisava

ser reescrita na forma de Chawah ainda assim carece a ideia de submissatildeo e inferioridade

que culturalmente ainda se insiste afirmar

O texto Eloiacutesta que domina o capiacutetulo primeiro do Gecircnesis natildeo tem qualquer

preocupaccedilatildeo em distinguir homem e mulher O capiacutetulo segundo na comunhatildeo Javista-

Eloiacutesta tem a preocupaccedilatildeo em frisar que satildeo diferentes e ateacute mesmo contraacuterios mas que

natildeo perdem a noccedilatildeo da mesma mateacuteria e partilham da mesma becircnccedilatildeo da semelhanccedila

divina Natildeo haacute uma prioridade A confusatildeo que suscita a ideia androacutegina surge da essecircncia

comum dois elementos criados partes de uma soacute ideia a humanidade

A ordem na criaccedilatildeo tambeacutem natildeo gera conclusotildees de superioridade Se

entendecircssemos que os primeiros seriam submissos aos uacuteltimos seres criados entendendo

o homem a coroa da criaccedilatildeo o ser acima de toda a criaccedilatildeo poderiacuteamos supor que a

mulher criada depois dele lhe seria entatildeo superior Colocaccedilotildees deste tipo natildeo prosperam

na anaacutelise do texto biacuteblico porque haacute que se considerar o texto como um todo Ou entatildeo

seriam os astros celestes criados primeiros inferiores aos mares ou os animais Eacute certo

que a ordem natildeo sugere algum tipo de superioridade

Enfim o que se vecirc depois da criaccedilatildeo eacute uma luta constante da figura feminina pela

conquista de seu espaccedilo luta esta que infelizmente ainda persiste A necessidade de ser

semelhanccedila de Deus e natildeo soacute costela

REFEREcircNCIAS

A BIacuteBLIA Sagrada Trad Joatildeo Ferreira de Almeida Satildeo Paulo Sociedade Biacuteblica do

Brasil 1958

BIacuteBLIA Hebraica Stuttgartensia 4a Ed Stuttgart Deustsche Bibelgesellschaft 1967

BEREZIN Rifka Dicionaacuterio Hebraico-Portuguecircs Satildeo Paulo EDUSP 1995

EVEN-SHOSHAN Abraham Hamilon Hechadash 3 Ed Jerusalm Qryiat-sefer

1972 3 vol

FERREIRA Aureacutelio Buarque de Holanda Novo dicionaacuterio da liacutengua portuguesa

15a ed Rio de Janeiro Nova Fronteira

GOMES Antonio Maspoli de Arauacutejo ALMEIDA Vanessa Ponstinnicoff de O Mito de

Lilith e a Integraccedilatildeo do Feminino na Sociedade Contemporacircnea Revista acircncora digital

de Ciecircncias da Religiatildeo Disponiacutevel em ltwwwrevistaancoradigitalcombrgt

Homem e mulher os criou

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GOTTWALD Norman K Introduccedilatildeo socioliteraacuteria agrave Biacuteblia hebraica Traduccedilatildeo

Anacleto Alvarez revisatildeo H Dalbosco Satildeo Paulo Paulinas 1988

KOLTUV Barbara Black O Livro de Lilith psicologiamitologia Satildeo Paulo Cultrix

1986

PAIVA Vera Evas Marias e Liliths as voltas do feminino 2a Ed Rio de Janeiro

Brasiliense 1993

PLATAtildeO Diaacutelogos Seleccedilatildeo de textos de Joseacute Ameacuterico Motta Pessanha Traduccedilatildeo e

notas de Joseacute Cavalcante de Souza Jorge Paleikat e Joatildeo Cruz Costa 5 Ed Satildeo Paulo

Nova Cultural 1991 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

DOI httpsdoiorg1012957principia201946508

AS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO E SEU IMPACTO NO

REINADO DE VALENTINIANO I

Carlos Eduardo Schmitt

RESUMO Quinto Aureacutelio Siacutemaco Euseacutebio (c 340-402) possui uma extensa obra da qual

chegaram agrave contemporaneidade mais de 900 cartas (epistolae) 49 informes (relationes)

e 8 discursos (orationes) Suas obras de maior destaque satildeo as Orationes I II e III

proferidas entre 369-370 e sua Relatio III escrita durante seu tempo como prefeito de

Roma em 384 Tais obras lhe renderam a fama de melhor orador de seu tempo ainda em

vida Nosso trabalho tem como objetivo expor o impacto que as Orationes I II e III

tiveram na carreira do orador e na relaccedilatildeo entre o Senado e o reinado de Valentiniano I

A partir de suas Orationes ressaltaremos a delicada missatildeo do orador enviado de Roma

agrave Treacuteveris para servir como ponte entre o Senado e o imperador

PALAVRAS-CHAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

SYMMACHUSrsquo ORATIONES I II AND III AND ITS IMPACT IN THE

KINGDOM OF VALENTINIAN I

ABSTRACT Quintus Aurelius Symmachus Eusebius (c 340-402) has an extensive work

from which more than 900 letters (epistolae) 49 reports (relationes) and 8 discourses

(orationes) survived His most outstanding works are Orationes I II and III pronounced

between 369-370 and his Relatio III written during his time as praefectus of Rome in

384 Such works earned him the fame of the best speaker of his time being still alive Our

paper aims to expose the impact that Orationes I II and III had on the speakers career

and on the relation between the Senate and the reign of Valentinian I From his Orationes

we will highlight the delicate mission of the speaker sent from Rome to Trier to serve as

a bridge between the Senate and the emperor

KEYWORDS Symmachus Orationes Valentinian I

LAS ORATIONES I II E III DE SIacuteMACO Y SU IMPACTO EN EL

REINADO DE VALENTINIANO I

RESUMEN Quinto Aurelio Siacutemaco Eusebio (c 340-402) tiene una extensa obra de la

cual chegaron a la contemporaneidad maacutes de 900 cartas (epistolae) 49 informes

(relationes) e 8 discursos (orationes) Sus obras de mayor destaque son las Orationes I

Doutorando pela Universidade de Satildeo Paulo E-mail carlosschmitt90gmailcom

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

14 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

II y III pronunciadas entre el 369-370 y su Relatio III escrita durante su tiempo como

prefecto de Roma en 384 Tales obras le rindieron la fama de mejor orador de su tiempo

auacuten en vida Nuestro artiacuteculo tiene como objetivo exponer el impacto que las Orationes

I II y III tuvieron en la carrera del orador y en la relacioacuten entre el Senado y el reinado de

Valentiniano I A partir de sus Orationes resaltaremos la delicada misioacuten del orador

enviado de Roma a Treacuteveris para servir como puente entre el Senado y el emperador

PALAVRAS CLAVE Siacutemaco Orationes Valentiniano I

INTRODUCcedilAtildeO

Joseacute Antonio Gallego (2003 p 153) esclarece que a obra mais famosa de Siacutemaco

foi seu informe terceiro apesar de que durante a Idade Meacutedia as epistolae foram suas

obras mais valorizadas sendo utilizadas como modelo para escrever uma carta Contudo

em seu proacuteprio tempo ele era famoso por ser um grande orador Eacute por isso que Gallego

(2003 p 154) pondera como injusto o que a histoacuteria fez com Siacutemaco Apenas oito de

seus discursos chegaram ateacute noacutes sendo que estes satildeo dos iniacutecios de sua carreira aleacutem de

estarem num manuscrito palimpsesto com grandes lacunas Deve-se ter presente tambeacutem

que ldquoSiacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador romano se excetuarmos os escritores cristatildeosrdquo1

(GALLEGO 2003 p 154) Em outras palavras Siacutemaco eacute o uacuteltimo grande orador da

religiatildeo tradicional romana

Cristiana Sogno (2006 p viii) faz uma reconstruccedilatildeo da carreira poliacutetica de

Siacutemaco atraveacutes de uma anaacutelise minuciosa de seus escritos Ele ocupa uma posiccedilatildeo

peculiar entre os autores latinos pela quantidade de escritos que nos chegaram A autora

defende que a razatildeo pelo desconhecimento de Siacutemaco por parte dos estudantes de

Claacutessicas e de Histoacuteria Antiga eacute o fato de natildeo existir uma traduccedilatildeo completa do corpus

simaquiano em nenhuma liacutengua moderna Sogno clarifica tambeacutem que a ediccedilatildeo de Otto

Seeck do seacuteculo XIX continua sendo o modelo do texto

Sogno (2006 p 1) clarifica que a primeira fase da carreira de Siacutemaco estaacute bem

documentada em suas orationes Sua nominaccedilatildeo como embaixador senatorial em 368 foi

um marco em sua vida sendo que sua reputaccedilatildeo como orador foi estabelecida na corte de

Valentiniano I tornando-se uma ponte entre o Senado e o imperador

Apesar de que Siacutemaco tenha a fama de ser um grande orador suas orationes

desapareceram ateacute seu redescobrimento no seacuteculo XIX Sabe-se que Siacutemaco ficou

conhecido por ser um bastiatildeo em defesa da religiatildeo tradicional romana sobretudo durante

seu periacuteodo como Prefeito de Roma por volta de 384 E Sogno (2006 p 1) sem perder

a oportunidade relata uma ldquoironia do destinordquo sendo que foi um cardeal da Igreja

Catoacutelica Romana Angelo Mai quem descobriu e publicou os fragmentos de suas

orationes em 1815 Tratava-se de um palimpsesto onde por cima havia uma traduccedilatildeo

latina das atas do Conciacutelio de Calcedocircnia O cardeal destruiu o documento para que as

orationes pudessem ser recuperadas Apesar disso Sogno (2006 p 2) constata como

esses discursos de Siacutemaco satildeo ainda pouco estudados em comparaccedilatildeo com outros

escritos seus como suas epistolae Esses oito discursos satildeo apenas uma parte de toda a

produccedilatildeo simaquiana Haacute tambeacutem um panegiacuterico em honra do usurpador Maacuteximo que

por razotildees oacutebvias natildeo foi publicada

1 ldquoSiacutemaco es el uacuteltimo gran orador romano si dejamos a un lado a los escritores cristianosrdquo

Carlos Eduardo Schmitt

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ORATIONES I II E III

Foi no inverno do ano 368-369 que Siacutemaco naquele tempo um jovem senador que

iniciava sua carreira poliacutetica foi enviado de Roma agrave Treacuteveris com o objetivo de dirigir

uma laudatio uma oraccedilatildeo de louvor a Valentiniano I por motivo de seus cinco anos de

reinado (Quinquennalia) Sogno (2006 p 2) destaca que tal missatildeo natildeo significava

apenas um reconhecimento por parte do Senado de seus dotes retoacutericos mas constituiacutea

tambeacutem uma oportunidade iacutempar para crescer na carreira poliacutetica e fazer amigos na corte

Apesar de ser um momento festivo Sogno (2006 pp 1-2) esclarece que constituiacutea

uma situaccedilatildeo delicada Ateacute o momento Valentiniano I natildeo havia estado em Roma e essa

era a primeira vez que ele se encontraria com uma delegaccedilatildeo senatorial Sendo assim

Siacutemaco tinha a importante missatildeo de estabelecer boas relaccedilotildees com o imperador Havia

natildeo apenas o discurso mas tambeacutem certa quantidade de ouro (aurum oblaticium2) que os

senadores ofereciam ldquovoluntariamenterdquo ao imperador Em Roma os senadores

aguardavam ansiosos pelo regresso de Siacutemaco e por informaccedilotildees de primeira matildeo

Eacute estranho ver que um senador tatildeo jovem ndash Siacutemaco natildeo tinha ainda nem trinta

anos ndash recebesse tamanha honra e responsabilidade Sogno (2006 p 6) sem colocar em

xeque a capacidade do orador argui que isso foi possiacutevel em parte graccedilas ao Prefeito de

Roma naquele entatildeo Pretextato responsaacutevel direto pela arrecadaccedilatildeo da oferenda de ouro

ao imperador e pela escolha do ldquocorretordquo orador que a levaria Haacute de se ter presente que

das epistolae de Siacutemaco vaacuterias delas tecircm Pretextato como destinataacuterio

Siacutemaco natildeo se limitou a estreitar laccedilos de amizade apenas no Senado Buscou

tambeacutem amigos na corte imperial E um de seus principais foi Ausocircnio tutor de Graciano

filho de Valentiniano I Sabe-se que eles trocavam correspondecircncias antes mesmo de

Siacutemaco ter ido agrave Treacuteveris e que havia entre eles uma muacutetua admiraccedilatildeo (SOGNO 2006

p 6)

A prova de que o panegiacuterico (laudatio) de Siacutemaco dirigido a Valentiniano foi um

sucesso de acordo com Sogno (2006 pp 8-9) foi o fato do proacuteprio imperador ter

solicitado ao orador um segundo panegiacuterico Siacutemaco eacute consciente de sua responsabilidade

e da honra que lhe eacute aferida e expressa esses sentimentos em seu discurso Consciente de

que o objetivo primeiro de uma laudatio eacute agradar ao puacuteblico Siacutemaco expotildee que tudo o

que anuncia e proclama eacute verdadeiro baseado em fatos que vivenciou e tambeacutem naqueles

de que ouviu o testemunho

Sogno (2006 p 9) classifica o primeiro panegiacuterico de Siacutemaco a Valentiniano

como um encocircmio biograacutefico composiccedilatildeo descrita em detalhe no terceiro livro da

Institutio oratoria de Quintiliano Nele Siacutemaco reconhece e celebra publicamente o

estabelecimento da dinastia valentiniana realizando um resumo dos seus cinco primeiros

anos de reinado desde que tinha sido escolhido pelo exeacutercito O encocircmio biograacutefico

como detalha Sogno requer discorrer tambeacutem sobre os ancestrais e os descendentes da

nova dinastia

2 ldquoOs clariacutessimos ie os indiviacuteduos de categoria senatorial tinham ainda que contribuir com o aurum

oblaticium oferecido pelo Senado por ocasiatildeo dos aniversaacuterios dos imperadoresrdquo (SILVA amp MENDES

2006 p 212) Isso era parte da reforma fiscal iniciada por Diocleciano e ampliada por Constantino

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

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Satildeo estrateacutegicas as alusotildees que Siacutemaco faz do lugar de nascenccedila de Valentiniano

e daqueles onde ele acompanhou seu pai em campanhas militares O futuro imperador

nasceu na fria regiatildeo da Iliacuteria e acompanhou seu pai no calor escaldante da Aacutefrica Isso

significa natildeo soacute que ele estaacute preparado para qualquer dificuldade que advir mas

sobretudo que eacute um homem que conhece seu reino muito bem porque jaacute esteve em

diversas partes dele Todas essas dificuldades unidas aos inimigos enfrentados lhe

qualifica como a melhor pessoa para reger o Impeacuterio (SOGNO 2006 p 10) Um cuidado

que Siacutemaco tem em sua laudatio eacute o de reforccedilar a legitimidade de Valentiniano sobretudo

ao dizer que ningueacutem protestou quando o elegeram dando a impressatildeo de que houve um

consenso geral no exeacutercito (SOGNO 2006 p 12)

O conteuacutedo dos panegiacutericos eacute exagerado e por isso deve-se ter cuidado ao tomaacute-

los como fonte histoacuterica No entanto nos revelam muito sobre o tempo de Siacutemaco e sobre

ele mesmo No primeiro dedicado a Valentiniano I por motivo de seu primeiro lustro no

poder vemos como Siacutemaco enaltece a vida e a obras do imperador desde sua tenra

formaccedilatildeo nas diversas partes do Impeacuterio seguindo o bom exemplo de seu pai Graciano

Com verbosidade Siacutemaco atesta que natildeo havia outra pessoa melhor para o posto de

imperador que o proacuteprio Valentiniano superior a qualquer outro liacuteder Homem valente

assentou-se na parte mais perigosa do Impeacuterio Treacuteveris e lutou contra o inimigo mais

feroz dos romanos os alamanos Aleacutem de guerreiro eacute saacutebio e prefere defender os

interesses do Estado que os seus proacuteprios Eacute por isso que deixou a seu irmatildeo Valente

cuidar sozinho da rebeliatildeo de Procoacutepio uma guerra interna enquanto ele se dedicava a

proteger o Impeacuterio dos inimigos externos Foi um imperador que preferiu o bem comum

ao de sua proacutepria famiacutelia Realizou obras incriacuteveis

O comeccedilo do segundo panegiacuterico a Valentiniano indica sua razatildeo de ser o terceiro

consulado do imperador ao lado de seu irmatildeo Valente em 370 Siacutemaco

estrategicamente revela que iraacute relatar apenas alguns acontecimentos sem exaustatildeo

Deixaraacute todos os outros feitos natildeo mencionados para que sejam cantados pelos poetas

Parabeniza ao imperador por ser sua fonte de inspiraccedilatildeo e o restaurador da liberdade de

expressatildeo Ao mesmo tempo que Siacutemaco preza ao imperador por ter dado assunto que

fosse cantado e escrito como suas grandes vitoacuterias sobre os alamanos ele tambeacutem lembra

o imperador de que sem esses oradores e poetas haacute o silecircncio e que o silecircncio eacute o pior

inimigo da grandeza (SOGNO 2006 p 12)

Siacutemaco se dedica basicamente a enaltecer o imperador por suas conquistas e

fortificaccedilotildees ao longo do Reno e de que se impressionou ao ter visto as mesmas

pessoalmente Enaltece-o por seu terceiro consulado mas sobretudo se centra em seus

avanccedilos militares Entre outras exaltaccedilotildees Siacutemaco o parabeniza por ser exemplo de

governante ideal que eacute amado e temido por seu povo Tambeacutem o parabeniza por haver

aceitado o Impeacuterio de forma relutante (SOGNO 2006 p 14) Na verdade Siacutemaco

exaltou muito mais as fortificaccedilotildees erguidas por Valentiniano do que suas batalhas contra

os baacuterbaros Sogno (2006 p 15) pensa que isso se deve principalmente pelo acontecido

com Siaacutegrio uacutenico sobrevivente de uma batalha que foi considerado um desertor pelo

imperador E isso aconteceu exatamente quando o orador se encontrava na corte

O segundo panegiacuterico dedicado tambeacutem a Valentiniano I tinha por motivo

a designaccedilatildeo do imperador para o seu terceiro consulado que ele havia recebido como

um reconhecimento por seus feitos recentes Sendo assim o panegiacuterico deveria se centrar

em suas atividades recentes as quais lhe fizeram merecedor do terceiro consulado

Siacutemaco inicia dizendo que o consulado era uma recompensa insuficiente para

Valentiniano comparado com tudo o que perpetrou no Reno Mas como natildeo haacute algo

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 17

maior que eles possam ofertar Siacutemaco solicita ao imperador que se contente com o

melhor presente e honra que o Senado lhe pode oferecer E a partir de entatildeo o orador

narra as atividades beacutelicas de Valentiniano contra os alamanos e suas construccedilotildees ao

longo do Reno Em um determinado momento Siacutemaco o elogia por haver restaurado a

liberdade de expressatildeo no Impeacuterio Termina exaltando sua sobriedade

No panegiacuterico de Siacutemaco dedicado a Graciano vecirc-se claramente como ele se

dirige ao jovem imperador como a esperanccedila de Roma Durante todo o discurso o orador

enfatiza sua juventude enaltecendo-a Sogno acredita que essa insistecircncia seja uma forma

de favorecer a aceitaccedilatildeo do imperador possivelmente criticado pela aristocracia romana

por sua pouca idade (SOGNO 2006 p 18) Como recompensa por sua performance na

corte Siacutemaco recebeu o tiacutetulo honoriacutefico de comes tertii ordinis e trecircs anos depois em

Roma recebeu o proconsulado da Aacutefrica (373-374)

O panegiacuterico ao menino Graciano talvez tenha sido o mais difiacutecil para Siacutemaco

elaborar Devido a sua pouca idade objetivamente natildeo havia feitos grandiosos do qual

ele fosse sujeito No entanto Siacutemaco surpreendeu mesmo assim Vecirc em Graciano o iniacutecio

de uma nova eacutepoca porque eacute um imperador ainda menino e sendo assim estaraacute bem

treinado em todos os campos Seu louvor se centra entatildeo na juventude do imperador e

em seu governo ao lado de seu pai Valentiniano e de seu tio Valente Aos baacuterbaros natildeo

lhes restaraacute mais do que a escravidatildeo e eles jaacute sabem disso

OS DOZE PANEGIacuteRICOS LATINOS

Tendo em vista as trecircs orationes mencionadas podemos fazer uma breve anaacutelise

dos famosos doze panegiacutericos latinos com o intuito de entender melhor as diversas

asserccedilotildees simaquianas bem como seu estilo Susanna Morton Braund (2005 pp 90-91)

descreve que de forma convencional a oratoacuteria grega foi divida em trecircs tipos discurso

forense deliberativo e epidiacutectico O primeiro tambeacutem chamado de judicial eram aqueles

proferidos nos tribunais no foacuterum os discursos deliberativos eram aqueles proferidos

diante do Senado ou de uma assembleia do povo e os discursos epidiacutecticos eram aqueles

escritos para uma comemoraccedilatildeo especial Este uacuteltimo para Braund se revestiu de

especial importacircncia durante o principado como panegiacuterico (elogio)

Uma das coisas mais importantes para um aristocrata romano era o

reconhecimento pelas pessoas ao seu redor de seu valor puacuteblico e permanente

ndash sua auctoritas e sua dignitas Idealmente isso seria celebrado em panegiacuterico

ndash isto eacute louvor escrito em prosa ou verso3 (2005 p 110)

O panegiacuterico era um elemento central na poliacutetica romana e na vida puacuteblica sob

o Principado ndash e jaacute o era haacute muito tempo De fato alguns dos nossos mais

antigos textos latinos sobreviventes os epitaacutefios aos membros da famiacutelia

Cipiatildeo que datam do terceiro e segundo seacuteculos AEC (Scipionum elogia)

satildeo os louvores (poacutestumos) dos grandes homens4 (2005 p 112)

3 ldquoOne of the most important things for a Roman aristocrat was the recognition by people around him of

his public worth and standing ndash his auctoritas and his dignitas Ideally this would be celebrated in

panegyric ndash that is praise written in prose or verserdquo 4 ldquoPanegyric was a central element in Roman politics and public life under the Principate ndash and had been

so for a long time already In fact some of our earliest surviving Latin texts the epitaphs to members of

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

18 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

Ainda sobre o panegiacuterico e sua difusatildeo durante este periacuteodo do Impeacuterio Romano

Mitchell (2015 p 19) o relaciona agrave natureza autoritaacuteria do mesmo Segundo ele a

dissidecircncia aberta natildeo era tolerada e isso se vecirc pelos extremos dos discursos que satildeo de

louvor ou vituperaccedilatildeo mas raramente se encontram num meio termo Apesar de

parecerem pouco confiaacuteveis o autor defende a utilizaccedilatildeo de panegiacutericos e poemas como

fontes histoacutericas para o periacuteodo alegando que seus exageros omissotildees e estilos retoacutericos

expressam de forma criacutetica muito daquele momento Segundo Mitchell as obras mais

significativas neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos5

As obras-chave neste gecircnero satildeo os doze panegiacutericos latinos que

provavelmente foram compilados pelo orador gaulecircs Pacato e foram

prefaciados pelo longo panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem para o imperador Trajano

(I) Aleacutem do trabalho do proacuteprio Pacato de 389 em louvor a Teodoacutesio I (II)

este inclui discursos a Maximiano em 289 (X de Cl Mamertino o Velho) e

291 (XI) a Constacircncio pai de Constantino em 296 e 298 (IX) para o

casamento de Constantino e Fausta em 307 (VII) a Constantino em 310 (VI)

312 (V) 314 (XII) e 321 (IV de Nazaacuterio) e a Juliano em 362 (III de Cl

Mamertino o Jovem em sua proacutepria nomeaccedilatildeo para o consulado)6

Mitchell (2015 p 4) realccedila que conforme o Impeacuterio crescia foi se dando cada

vez mais ecircnfase agrave religiatildeo do Estado Acreditava-se que ele era mantido devido ao apoio

dos deuses e os imperadores romanos que em parte controlavam as atividades religiosas

em seus territoacuterios eram vistos como aqueles que mantinham o pacto de paz com os

deuses a pax deorum E segundo Mitchell todos os meios de propaganda estavam

imbuiacutedos desta ideologia inclusive os discursos panegiacutericos

Braund (2005 129) especifica que o cocircnsul Pliacutenio entregou seu panegiacuterico ao

imperador Trajano no iniacutecio de seu reinado Era um discurso de gratidatildeo onde ele

aproveita para contrastar a imagem do bom Trajano com a do mau Domiciano imperador

de 81 a 96 EC Para Braund (2005 p 130)

Este texto revela dois modelos contrastantes de patrono ou imperador - e afinal

de contas o imperador era apenas o patrono mais poderoso em Roma O bom

patrono ou imperador eacute marcado por sua abertura acessibilidade e atitude

amigaacutevel e tolerante O mau patrono ou imperador eacute marcado pelo abuso

tiracircnico de seus poderes para tomar decisotildees de vida e morte sobre todos ao

seu redor do menor escravo ao senador mais eminente A celebraccedilatildeo do bom

modelo e a condenaccedilatildeo do ruim encontram-se em toda a gama de textos da

literatura latina incluindo poesia eacutepica e pastoral poesia liacuterica e elegiacuteaca

saacutetira e epigrama historiografia oratoacuteria e romance Isso natildeo nos deixa

duvidar de que o modo como um homem poderoso se comportava com seus

the Scipio family dating from the third and second centuries BCE (the Scipionic elogia) are the

(posthumous) praises of great menrdquo 5 Ver tambeacutem BERRY D H Oratory In HARRISON Stephen (ed) A Companion to Latin Literature

Oxford Blackwell 2005 pp 267-268 6 ldquoKey works in this genre are the twelve Latin panegyrics which were probably compiled by the Gallic

orator Pacatus and were prefaced by the younger Plinyrsquos lengthy panegyric for the emperor Trajan (I)

Apart from Pacatusrsquo own work of 389 in praise of Theodosius I (II) this includes speeches for

Maximianus in 289 (X by the elder Cl Mamertinus) and 291 (XI) for Constantius the father of

Constantine in 296 (VIII) and 298 (IX) for the marriage of Constantine and Fausta in 307 (VII) for

Constantine in 310 (VI) 312 (V) 314 (XII) and 321 (IV by Nazarius) and for Julian in 362 (III by the

younger Cl Mamertinus on his own appointment to the consulship)rdquo

Carlos Eduardo Schmitt

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6 19

pares e seus subordinados era crucial para sua posiccedilatildeo social e reputaccedilatildeo

poliacutetica7

Bruce Gibson (2005 p 72) critica a postura deste gecircnero por natildeo se envolver

abertamente com a poliacutetica atual de seu tempo senatildeo de modo indireto e o panegiacuterico

modelo natildeo foi a exceccedilatildeo ldquoMesmo o Panegiacuterico de Pliacutenio um discurso em louvor ao

imperador Trajano dado por ocasiatildeo de seu consulado em setembro de 100 EC oferece

sua criacutetica de governo indiretamente atraveacutes da estrateacutegia de atacar o principado de

Domicianordquo8

CONSIDERACcedilOtildeES PARCIAIS

As condiccedilotildees do discurso representavam um novo momento para o Impeacuterio De

acordo com A D Lee (2013 p 1) foi por meados do seacuteculo IV que o Impeacuterio Romano

havia alcanccedilado quase tanto territoacuterio quanto durante o seacuteculo II periacuteodo conhecido pelo

auge do poder romano Foi o periacuteodo dos imperadores guerreiros que se viram forccedilados

a se retirar dos confortos de Roma para proteger suas fronteiras (LEE 2013 p 5) Roma

foi substituiacuteda como residecircncia imperial por Treacuteveris Milatildeo Sirmio e Antioquia Com a

criaccedilatildeo de Constantinopla por parte do imperador Constantino essa situaccedilatildeo soacute se

agravou De qualquer forma o tema que domina o seacuteculo e que dominou os discursos

traduzidos de Siacutemaco foi a histoacuteria militar (MITCHELL 2015 pp 11-12)

Natildeo eacute um Impeacuterio em decadecircncia mas sim um momento de transiccedilatildeo Mitchell

(2015 p 56) se daacute conta de como por exemplo Diocleciano Joviano e Valentiniano

vieram de origens semelhantes Eram todos militares de meia idade nascidos nas

proviacutencias da Iliacuteria o que plasma uma mudanccedila no eixo do poder Mitchell (2015 pp 56-

57) frisa como desde a ascensatildeo de Diocleciano em 284 ateacute a morte de Teodoacutesio I em

395 o Impeacuterio foi governado por esses imperadores guerreiros que aniquilavam inimigos

internos e externos O Estado estava centrado em guerras e batalhas Calcula-se que mais

de dois terccedilos de seu orccedilamento anual eram gastos em atividades militares atividades das

quais os imperadores participavam pessoalmente

Siacutemaco soube valer-se da situaccedilatildeo para estreitar laccedilos com a corte e obter ascensatildeo

poliacutetica Esse periacuteodo foi especial tambeacutem por sua produccedilatildeo literaacuteria e pela quantidade

de escritos que sobreviveu ao tempo Segundo OrsquoDonnel (2015 p 161) haacute mais literatura

latina que nos chegou entre 350 e 450 do que de qualquer outro periacuteodo mais ateacute mesmo

que a eacutepoca de ouro latina entre o final da Repuacuteblica e comeccedilo do Impeacuterio9

7 ldquoThis text reveals two contrasting models of patron or emperor ndash and after all the emperor was just the

most powerful patron in Rome The good patron or emperor is marked by his openness accessibility and

friendly and tolerant attitude The bad patron or emperor is marked by his tyrannical abuse of his powers

to make life and death decisions about everyone around him from the lowest slave to the most eminent

senator Celebration of the good model and condemnation of the bad model are found in the entire range

of texts of Latin literature including epic and pastoral poetry lyric and elegiac poetry satire and epigram

historiography oratory and the novel This can leave us in no doubt that how a powerful man behaved

towards his peers and his subordinates was crucial to his social standing and to his political reputationrdquo 8 ldquoEven Plinyrsquos Panegyricus a speech in praise of the emperor Trajan given on the occasion of his

consulship in September AD 100 offers its critique of rulership indirectly through the strategy of

assailing the principate of Domitianrdquo

9 ldquoWe have more surviving Latin literature from this century between 350 and 450 than for any comparable

period before that including the more famously golden age of Caesar Cicero and Vergilrdquo

As Orationes I II e III de Siacutemaco e seu impacto no reinado de Valentiniano I

20 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

REFEREcircNCIAS DOCUMENTAIS

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QUINTILIANI M Fabi Institutiones oratoriae libri duodecim Edited by M

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SYMMACHUS Quintus Aurelius Aurelii Symmachi quae supersunt Otto Seeck (ed)

Muumlnchen Monumenta Germaniae Historica 1883

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_______________ Oration II ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015b Disponiacutevel

emlthttpswwwuvmedu~bsaylorromeSymmachus2pdfgt Acesso em 19102016

_______________ Oration III ndash translation commentary bibliography Traduccedilatildeo de

Barbara Saylor Rodgers Burlington The University of Vermont 2015c Disponiacutevel

emlthttpswwwuvmedu~bsaylorromeSymmachus3pdfgt Acesso em 19102016

_______________ Q Aurelii Symmachi Octo orationum ineditarum partes Ediccedilatildeo

introduccedilatildeo e comentaacuterios de Angelo Mai Milatildeo Biblioteca Ambrosiana 1815

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MITCHELL Stephen A History of the Later Roman Empire AD 284-641 Oxford

Blackwell 2015

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Christianity New York HarperCollins 2015

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construccedilatildeo do Dominato In SILVA Gilvan Ventura amp MENDES Norma Musco

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22 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-732 | ISSN 1415-6881 6

DOI httpsdoiorg1012957principia201946510

OS IMPERADORES SUETONIANOS EM MEMOacuteRIAS POacuteSTUMAS

DE BRAacuteS CUBAS

Bruno Torres dos Santos

RESUMO O presente trabalho busca discutir atraveacutes da anaacutelise de traduccedilotildees proacuteprias as

referecircncias aos imperadores romanos descritos e consagrados pelo bioacutegrafo Suetocircnio em Vida

dos Ceacutesares na obra Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas de Machado de Assis Aquele no

iniacutecio do seacuteculo II da era comum demonstrou os viacutecios e as virtudes dos imperadores inclusive

enfatizando os escacircndalos de suas cortes Jaacute Machado trouxe agrave tona as vaidades e as ambiccedilotildees

da burguesia brasileira do seacuteculo XIX Entatildeo analisaremos e interpretaremos o uso destes

personagens histoacutericos para a criaccedilatildeo literaacuteria no referido romance partindo do pressuposto de

que eles poderiam passar despercebidos por leitores modernos que natildeo recuperassem as

referecircncias agrave cultura agrave literatura e agrave histoacuteria da Roma Antiga

PALAVRAS-CHAVE Machado de Assis Imperadores romanos Suetocircnio

THE SUETONIAN EMPERORS IN THE POSTHUMOUS MEMOIRS OF

BRAS CUBAS

ABSTRACT The present work aims through the analysis of own translations the references to

the Roman emperors described and consecrated by the biographer Suetonius in Life of the

Caesars in the novel Posthumous Memoirs of Bras Cubas by Machado de Assis Suetonius

at the beginning of the second century of the common age demonstrated the vices and virtues

of the emperors including emphasizing the scandals of their courts Machado has already

brought to light the vanities and ambitions of the Brazilian bourgeoisie of the nineteenth

century Then we will analyze and interpret the use of these historical characters for the literary

creation in the novel assuming that they could go unnoticed by modern readers who do not

recover references to the culture literature and history of Ancient Rome

KEYWORDS Machado de Assis Roman emperors Suetonius

Entre os mais diversos romancistas com que a literatura brasileira teve contato natildeo haacute

nome maior do que Machado de Assis Tal personalidade nasceu no Morro do Livramento

Eacute doutorando no PPGLC-UFRJ bolsista CAPES sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Anderson Esteves e integrante

discente do grupo de pesquisa ATRIVM ndash Espaccedilo Interdisciplinar de Estudos da Antiguidade (PPGLC-UFRJ) E-

mail brunots_hotmailcom

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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localizado na aacuterea central do Rio de Janeiro proacuteximo a zona portuaacuteria em junho de 1839

Oriundo de famiacutelia pobre estudou em escolas puacuteblicas mas nunca frequentou uma

universidade Dedicou-se aos mais diversos gecircneros literaacuterios escrevendo poesia crocircnica

teatro conto romance Tambeacutem foi criacutetico literaacuterio e jornalista Testemunhou a Aboliccedilatildeo da

Escravatura e as mudanccedilas poliacuteticas no Brasil quando o Impeacuterio foi entatildeo substituiacutedo pela

Repuacuteblica comentando e relatando os respectivos eventos poliacutetico-sociais Em 1897 funda a

ABL (Academia Brasileira de Letras) da qual permaneceu presidente ateacute sua morte em 1908

com 69 anos

Ao discorrer sobre a consolidaccedilatildeo do nosso sistema literaacuterio o professor Antonio

Candido opina sobre Machado afirmando que ele ldquoera dotado de raro discernimento literaacuterio e

adquiriu por esforccedilo proacuteprio uma forte cultura intelectual baseada nos claacutessicos mas aberta aos

filoacutesofos e escritores contemporacircneosrdquo (CANDIDO 2010 p 65) E ainda acrescenta

Sua obra eacute variada e tem caracteriacutestica das produccedilotildees eminentes satisfaz tanto aos

requintados quanto aos simples Ela tem sobretudo a possibilidade de ser

reinterpretada agrave medida que o tempo passa porque tendo uma dimensatildeo profunda de

universalidade funciona como se se dirigisse a cada eacutepoca que surge (CANDIDO

2010 p 65)

Eacute esse diaacutelogo entre o claacutessico e o contemporacircneo com pitada filosoacutefica que daacute

singularidade agrave sua obra fazendo com que suas produccedilotildees sejam sempre atemporais Satildeo esses

traccedilos que se mostram mais produtivos para o nosso estudo no qual pretendemos analisar e

interpretar como os imperadores romanos descritos pelo bioacutegrafo Suetocircnio em sua obra satildeo

utilizados por Machado em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas1 Para tal julgamos necessaacuterio

primeiramente contextualizar brevemente os autores em apreccedilo bem como suas obras

(Memoacuterias Poacutestumas e Vida dos Ceacutesares2) os gecircneros praticados (Romance e Biografia

Antiga) e os tipos de criacutetica social dos dois autores Depois disso analisaremos os excertos do

romance machadiano em questatildeo no qual as presenccedilas dos principes (no singular princeps

termo latino usado na Roma Antiga para se referir ao que entendemos hoje por imperador) se

mostrem mais evidentes para entatildeo coligirmos com trechos da obra suetoniana Para o trabalho

com esta obra utilizaremos a ediccedilatildeo da Loeb Classical Library (1914) mas com traduccedilotildees de

nossa proacutepria autoria para o trabalho com aquela utilizaremos a ediccedilatildeo criacutetica estabelecida

pela Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira (1975)

Como jaacute afirmado Machado praticou os mais diversos gecircneros literaacuterios E jaacute demos os

merecidos creacuteditos pelo conjunto da obra Mas devemos frisar que eacute na praacutetica sobre o gecircnero

romance que os creacuteditos se mostram mais merecidos pois eacute nele que o autor apresenta natildeo soacute

todo o seu ingenium (talento natural) mas tambeacutem toda a sua ars (habilidade teacutecnica) para

usarmos termos proacuteprios da literatura latina

Foi esse talento somado a seu espiacuterito galhofeiro que proporcionou a criaccedilatildeo de um

narrador mais que incomum em Memoacuterias Poacutestumas Sobre esse narrador Francisco Silveira

discorre que ldquoele vinha pelo menos agrave primeira vista infringir dois postulados realistas a

impessoalidade e o verismordquo (SILVEIRA 2001 p 97) Convergirmos com tal visatildeo posto que

eacute com a referida obra e seu respectivo narrador defunto-autor que o Realismo enquanto esteacutetica

literaacuteria vai ser ldquoinauguradordquo no Brasil em 1881 Natildeo menos importante eacute a visatildeo de Alfredo

Bosi

1 Nas proacuteximas remissotildees a essa obra usaremos apenas Memoacuterias Poacutestumas 2 Em liacutengua latina De uita caesarum

Bruno Torres dos Santos

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Quando o romancista assumiu naquele livro capital o foco narrativo na verdade

passou ao defunto-autor Machado-Braacutes Cubas delegaccedilatildeo para exibir com o despejo

dos que nada mais temem as peccedilas de cinismo e indiferenccedila com que via montada a

histoacuteria dos homens A revoluccedilatildeo dessa obra que parece cavar um fosso entre dois

mundos foi uma revoluccedilatildeo ideoloacutegica e formal aprofundando o desprezo agraves

idealizaccedilotildees romacircnticas e ferindo ao cerne o mito do narrador onisciente que tudo vecirc

e tudo julga deixou emergir a consciecircncia nua do indiviacuteduo fraco e incoerente O que

restou foram as memoacuterias de um homem igual a tantos outros o cauto e desfrutador

Braacutes Cubas (BOSI 2006 p 177)

Entendemos assim que o ser humano seraacute analisado sob seu cinismo e sob a

indiferenccedila por um narrador tambeacutem fraco e cheio de incoerecircncias rompendo nesse aspecto

com a esteacutetica Romacircntica Bosi ainda acrescenta

o ponto de vista um velho tema como o triacircngulo amoroso jaacute natildeo se carregaraacute do

pathos romacircntico que envolvia heroacutei-heroiacutena-o outro mas deixaraacute vir agrave tona os mil e

um interesses de posiccedilatildeo prestiacutegio e dinheiro dando a batuta agrave libido e agrave vontade de

poder que mais regem os passos do homem em sociedade Da histoacuteria vulgar do

adulteacuterio de Braacutes Cubas-Virgiacutenia-Lobo Neves agrave triste comeacutedia de equiacutevocos de

Rubiatildeo-Sofia-Palha (Quincas Borba) e desta agrave trageacutedia perfeita de Bentinho-Capitu-

Escobar (D Casmurro) soacute aparecem variantes de uma soacute e mesma lei natildeo haacute mais

heroacuteis a cumprir missotildees ou a afirmar a proacutepria vontade haacute apenas destinos destinos

sem grandeza (BOSI 2006 p 180)

Observamos o olhar aparentemente ldquodespretensiosordquo de Machado de Assis sem a

intenccedilatildeo de criar e de se defrontar com personagens heroicos mas ao lidar com homens-

personagens comuns lidaraacute tambeacutem com problemas comuns Ele analisa a psicologia do

ldquohomemrdquo com todas as suas peculiaridades inveja ganacircncia ambiccedilatildeo E eacute a atmosfera

burguesa que potencializa esses sentimentos De todo modo faz uma ldquocriacutetica socialrdquo sem querer

fazecirc-la Eacute isso que o aproxima e o distancia de Suetocircnio que analisa os retratos morais dos

imperadores romanos com todos os viacutecios e virtudes mas faz ldquocriacutetica socialrdquo e ateacute propaganda

poliacutetica de modo velado

Diferente do esforccedilo na anaacutelise da vida e obra de Machado quem se propotildee a estudar o

bioacutegrafo Caio Suetocircnio Tranquilo inicialmente se depara com algumas imprecisotildees acerca de

sua vida No tocante ao seu local de nascimento Anderson Esteves em seu artigo busca

encontrar vestiacutegios da vida de Suetocircnio em suas proacuteprias obras nos apontando como mais

plausiacutevel a ideia segundo a qual este teria nascido em Roma ou pelo menos se estabelecido

nessa cidade desde a infacircncia Ele nos informa sobre a origem e a condiccedilatildeo familiar de Suetocircnio

o avocirc era de uma condiccedilatildeo menos abastada visto que teria sido um liberto do imperador

Claacuteudio jaacute seu pai de uma condiccedilatildeo social mais elevada pois pertencia a ordem dos equestres

(ESTEVES 2015 p 1-7)

Eacute dado como certo que Suetocircnio teria nascido em 70 EC um ano apoacutes o conhecido ldquoAno

dos quatro imperadoresrdquo sobre o qual ainda falaremos Maacuterio Citroni esclarece-nos que em 69

EC o pai do bioacutegrafo foi combatente ao lado de Oto com o grau de tribunus militum (tribuno

militar) (CITRONI 2006 p 971) Natildeo menos importante eacute o que esclarece Ronald Mellor

segundo ele o cognomen ldquoTranquilordquo atribuiacutedo a Suetocircnio eacute decorrente do esforccedilo do seu pai

na busca pela estabilizaccedilatildeo da paz apoacutes esta terriacutevel guerra civil (MELLOR 1999 p 147)

Conforme observamos de alguma forma sua famiacutelia estava envolvida com as casas

imperiais e dada a condiccedilatildeo do seu pai Suetocircnio teve a possibilidade de ter uma boa educaccedilatildeo

na urbs dedicando-se aos estudos de gramaacutetica e de retoacuterica Nessa trajetoacuteria instrutiva o

bioacutegrafo torna-se amigo iacutentimo do renomado senador Pliacutenio o Jovem Por influecircncia dessa

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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amizade Suetocircnio consegue alguns cargos de prestiacutegio dentro das cortes imperiais Durante o

principado de Trajano ele ocupou os postos de a studiis (com a funccedilatildeo de cuidar dos interesses

e das obrigaccedilotildees culturais do imperador) e o de a bibliothecis (com a funccedilatildeo de cuidar das

bibliotecas puacuteblicas) Sob o principado de Adriano ocupou o posto de ab epistulis (com a

funccedilatildeo de redigir a correspondecircncia oficial) (MORENO 1997 p 645 CITRONI 2006 p

971)

A rede de contato iniciada por seu amigo Pliacutenio permitiu que Suetocircnio alcanccedilasse as

referidas ocupaccedilotildees e por consequecircncia o acesso direto aos arquivos imperiais muitas vezes

fundamentais para a feitura da sua obra De uita caesarum na qual discorre sobre os doze

primeiros ceacutesares de Roma desde o general Juacutelio Ceacutesar ateacute o polecircmico imperador Domiciano

Cabe considerar que ele iniciou a composiccedilatildeo desse seu opus magnum por volta dos primeiros

anos do principado de Adriano o qual se estendeu entre os anos de 117 e 138 EC

Acerca do gecircnero praticado por Suetocircnio devemos considerar que ateacute aqui muito foi

usada a terminologia moderna ldquobiografiardquo poreacutem conveacutem lembrarmos que esse gecircnero relativo

agrave escrita de uma vida na Antiguidade eacute referido por bios pelos gregos e uita pelos romanos

O termo ldquobiografiardquo como salienta Sabina Loriga soacute aparece ao longo do seacuteculo XVII

designando uma obra veriacutedica fundada numa descriccedilatildeo realista que se opotildee a outras formas

antigas de escritura idealizadoras do personagem e das circunstacircncias de sua vida tal qual o

panegiacuterico o elogio a oraccedilatildeo fuacutenebre e a hagiografia (LORIGA 2011 p 17)

A pesquisadora argumenta ainda que desde sua origem na Antiguidade a biografia eacute um

gecircnero hiacutebrido e composto que equilibrando-se entre a verdade histoacuterica e a verdade literaacuteria

sofreu ao longo do tempo profundas transformaccedilotildees sobretudo no que diz respeito agrave escolha e

agrave elaboraccedilatildeo dos fatos e do estilo de narraccedilatildeo (LORIGA 2011 p 18)

Frente a esses esclarecimentos avancemos aos excertos de Memoacuterias Poacutestumas em cujo

iniacutecio o narrador e protagonista Braacutes Cubas relata suas lembranccedilas apoacutes ter sido vitimado por

uma pneumonia Ele que pertencia a uma famiacutelia abastada do seacuteculo XIX narra sua morte e

seu enterro em que apareceram apenas onze amigos Relata diversos periacuteodos da vida infacircncia

adolescecircncia e fase adulta Ainda apresenta suas expectativas com o ldquoEmplastordquo um

medicamento por ele inventado com grande potencial de cura O narrador reconhece que esse

projeto se tornou uma ldquoideia fixardquo que entendemos como uma ideia difiacutecil de se retirar da

cabeccedila E eacute justamente no IV capiacutetulo intitulado A ideacutea fixa que o narrador machadiano faz a

primeira referecircncia a imperadores romanos e ao proacuteprio bioacutegrafo Suetocircnio

A minha ideacutea depois de tantas cabriolas constituiacutera-se ideacutea fixa Deus te livre leitor

de uma ideacutea fixa antes um argueiro antes uma trave no olho Vecirc o Cavour foi a ideacutea

fixa da unidade italiana que o matou Verdade eacute que Bismarck natildeo morreu mas

cumpre advertir que a natureza eacute uma grande caprichosa e a histoacuteria uma eterna

loureira Por exemplo Suetocircnio deu-nos um Claacuteudio que era um simploacuterio mdash ou

ldquouma aboacuteborardquo como lhe chamou Secircneca e um Tito que mereceu ser as deliacutecias de

Roma Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dous

ceacutesares o delicioso o verdadeiro delicioso foi o ldquoaboacuteborardquo de Secircneca E tu madama

Lucreacutecia flor dos Boacutergias se um poeta te pintou como a Messalina catoacutelica apareceu

um Gregorovius increacutedulo que te apagou muito essa qualidade e se natildeo vieste a liacuterio

tambeacutem natildeo ficaste pacircntano Eu deixo-me estar entre o poeta e o saacutebio (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap IV p 103)3

3 Para facilitar a leitura usaremos tal forma nas referecircncias a esta obra que compotildee nossa documentaccedilatildeo textual

Para as referecircncias agraves biografias de Vida dos Ceacutesares adotamos as abreviaccedilotildees do renomado The Oxford Latin

Dictionary (httpswwwoxfordscholarlyeditionscompageabbreviations acessado em 25102019)

Bruno Torres dos Santos

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 27

Nesse discurso metalinguiacutestico dirigido diretamente ao leitor a fim de exemplificar a

proacutepria noccedilatildeo de ldquoideia fixardquo Braacutes Cubas evidencia que Suetocircnio o qual ressignificou a ldquoideiardquo

do filoacutesofo estoico Secircneca teve a sua ldquoideiardquo ressignificada por um professor moderno

Diferentemente do bioacutegrafo Suetocircnio bem como os imperadores que ele ldquonos deurdquo que foram

personagens histoacutericas o referido professor natildeo o foi

Entatildeo passemos a essas referecircncias o primeiro imperador citado eacute Tibeacuterio Claacuteudio Druso

Braacutes Cubas adjetiva o Claacuteudio de Suetocircnio como um ldquosimploacuteriordquo que eacute assim descrito na

biografia suetoniana

Infans autem relictus a patre ac per omne fere pueritiae atque adulescentiae tempus

variis et tenacibus morbis conflictatus est adeo ut animo simul et corpore hebetato ne

progressa quidem aetate ulli publico privatoque muneri habilis existimaretur (Suet

Cl 21)

No entanto era crianccedila quando foi abandonado pelo pai e por quase todo o tempo da

primeira infacircncia e adolescecircncia foi acometido por vaacuterias doenccedilas persistentes de tal

modo que estivesse ao mesmo tempo com o espiacuterito e com o corpo debilitado foi

certamente por conta de sua idade avanccedilada estimado como natildeo apto para cargo no

acircmbito puacuteblico e no acircmbito privado

Posteriormente Suetocircnio faz o seguinte relato sobre a inesperada subida ao trono apoacutes o

assassinato do sobrinho Caliacutegula

Per haec ac talia maxima aetatis parte transacta quinquagesimo anno imperium cepit

quantumvis mirabili casu Exclusus inter ceteros ab insidiatoribus Gai cum quasi

secretum eo desiderante turbam submoverent in diaetam cui nomen est Hermaeum

recesserat neque multo post rumore caedis exterritus prorepsit ad solarium proximum

interque praetenta foribus vela se abdidit Latentem discurrens forte gregarius miles

animadversis pedibus studio sciscitandi quisnam esset adgnovit extractumque et prae

metu ad genua sibi accidentem imperatorem salutavit (Suet Cl10 1-2)

Por estas e outras coisas semelhantes tendo passado muito do tempo assumiu o

impeacuterio soacute com cinquenta anos atraveacutes de um caso extremamente interessante

Excluiacutedo entre os outros pelos assassinos de Caio Caliacutegula quando sob o pretexto

de expulsarem a multidatildeo e desejando ele um lugar isolado retirou-se para um

pavilhatildeo ao qual chamam de ldquoHermeacuteurdquo E natildeo muito depois aterrorizado com a

notiacutecia da morte avanccedilou se arrastando para uma galeria solar proacutexima e se escondeu

entre as cortinas postas diante das portas Tendo os peacutes sido observados um soldado

raso correndo de uma parte a outra com uma forte curiosidade procurou saber quem

estaria escondido e reconheceu quem por ele foi retirado do esconderijo Diante do

medo Claacuteudio se prostrou aos seus peacutes o soldado o saudou como imperador

Notamos que um eventual olhar do narrador machadiano sobre a dinastia julio-claudiana

sempre lembrada no pensamento ocidental pelos excelentes generais como Juacutelio Ceacutesar e

Augusto e pelos polecircmicos Tibeacuterio Caliacutegula e Nero pode justificar a anaacutelise de Claacuteudio como

um personagem simploacuterio Isso se daacute mesmo este tendo conquistado diversas regiotildees e tido boa

aceitaccedilatildeo pelo povo romano pois como percebemos nos excertos de sua biografia Suetocircnio

fez ressoar sua fraqueza de espiacuterito inaptidatildeo para o governo e a covardia Cabe lembrar ainda

que numa leitura completa da biografia do imperador ele aparece como um joguete nas matildeos

das proacuteprias esposas Primeiramente Valeacuteria Messalina (a mesma referida no capiacutetulo em

questatildeo das Memoacuterias Poacutestumas) tentou entregar o Impeacuterio nas matildeos de um de seus amantes

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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C Siacutelio mas sem sucesso foi por Claacuteudio condenada e executada Jaacute viuacutevo ele se casa com

Agripina que trama pela sua morte para legar o trono a seu filho Nero

Justifica-se assim tambeacutem o seu retrato como uma ldquoaboacuteborardquo na obra Apocoloquintose

na qual o filoacutesofo e tragedioacutegrafo Secircneca que foi banido de Roma por Claacuteudio em 41 em

razatildeo de intrigas palacianas critica ironicamente o receacutem-assassinado imperador Horaacutecio

Rolim de Freitas explica que

O tiacutetulo inicial seria Ludus de morte Claudii O historiador Dion Caacutessio sugeriu que

o tiacutetulo tenha sido Apocolocyntosis (transformaccedilatildeo em aboacutebora) do grego

Ἀποκολοκύνθοσις Tiacutetulo curioso mas era entendido pelos leitores da eacutepoca pois

aboacutebora (ποκολοκύντἡς) era siacutembolo da estupidez (FREITAS 2010 p 13)

Para compreendermos isso devemo-nos lembrar de um aspecto cultural importante na

Roma Antiga ndash a Apoteose A cerimocircnia de deificaccedilatildeo que ocorria durante os funerais dos

iminentes ceacutesares iniciada por Otaacutevio a partir da morte de seu tio Juacutelio Ceacutesar Ou seja o

argumento da obra senequiana eacute parodiar a narraccedilatildeo agraves avessas da apoteose de Claacuteudio

relatando como o morto foi recebido nos infernos pelos deuses transformando-se no alegoacuterico

legume

O segundo imperador citado nesse IV capiacutetulo de Memoacuterias Poacutestumas foi Tito

Vespasiano Augusto Tito foi o segundo princeps da dinastia flaviana Era o filho mais velho

de Vespasiano e irmatildeo de Domiciano os quais tambeacutem seratildeo citados por Braacutes Cubas ao longo

do romance Depois da morte de seu pai Tito assume as reacutedeas do Impeacuterio atuando de modo

similar a ele com excelecircncia no campo militar e com moderaccedilatildeo no campo poliacutetico foi visto

como um bom imperador por Roma Por essa razatildeo eacute descrito por Suetocircnio logo no primeiro

capiacutetulo de sua biografia como ldquoTito tendo o cognome do pai foi o amor e as deliacutecias do

gecircnero humano Tanto de inteligecircncia de habilidade e de fortuna abundava nele que ganhava a

simpatia de todos o que eacute muito difiacutecil durante um governordquo (Titus cognomine paterno amor

ac deliciae generis humani ndash tantum illi ad promerendam omnium voluntatem vel ingenii vel

artis vel fortunae superfuit et quod difficillimum est in impeacuterio () (Suet Tit 11) Com essa

seleccedilatildeo vocabular Suetocircnio ldquonos daacuterdquo o retrato de um imperador diferente de Claacuteudio Eacute esse

retrato com vastos predicados perante a humanidade que serviu de fonte para Machado de

Assis fazer o jogo de palavras com o termo ldquodeliacuteciardquo na ldquoideia fixardquo de um professor

Para encerrar a anaacutelise do capiacutetulo conveacutem observar a segunda referecircncia a tais principes

em ldquoViva pois a histoacuteria a voluacutevel histoacuteria que daacute para tudo e tornando agrave ideacutea fixa direi que

eacute ela a que faz os varotildees fortes e os doudos a ideacutea moacutebil vaga ou furta-cor eacute a que faz os

Claacuteudios mdash formula Suetocircniordquo (Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap

IV p 103) O Bruxo do Cosme Velho brinca com o gecircnero historiograacutefico ao qual o gecircnero

biograacutefico estaacute aparentado Chamando a histoacuteria de voluacutevel ele usa novamente o verbo ldquodarrdquo

Em nossa interpretaccedilatildeo o narrador quer reforccedilar que a histoacuteria ldquodaacuterdquo na acepccedilatildeo de ldquopromoverrdquo

diversos retratos sejam eles positivos ou negativos a depender da ldquoideiardquo que cada personagem

possui Esse modus operandi da formulaccedilatildeo de Suetocircnio muito se relaciona com o de Machado

Avancemos agora ao capiacutetulo XXIII de Memoacuterias Poacutestumas intitulado Triste mas curto

Em tal capiacutetulo Cubas narra sua chegada ao Rio de Janeiro e a sensaccedilatildeo de rever os locais de

sua infacircncia a tristeza de sua famiacutelia e o sofrimento de sua progenitora Quando vecirc sua matildee

com quem natildeo tinha contato haacute nove anos acha-a paacutelida e sem soltar uma palavra sequer pega

em suas matildeos No dia seguinte ela vem a falecer sendo a primeira vez que ele teria tido contato

com a morte de perto de uma pessoa amada Neste iacutenterim ele faz referecircncia a mais um ceacutesar

descrito por Suetocircnio o proacuteprio Juacutelio Ceacutesar que embora natildeo tenha chegado a ser um

ldquoimperadorrdquo enquanto chefe de estado eacute ele quem ldquodesenhardquo o que viria a ser o Impeacuterio

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romano iniciado por seu sobrinho-neto Otaviano Por essa razatildeo tambeacutem incluiacutemos tal general

em nossas anaacutelises e eacute assim referenciado no romance

Longa foi a agonia longa e cruel de uma crueldade minuciosa fria repisada que me

encheu de dor e estupefacccedilatildeo Era a primeira vez que eu via morrer algueacutem Conhecia

a morte de outiva quando muito tinha-a visto jaacute petrificada no rosto de algum

cadaacutever que acompanhei ao cemiteacuterio ou trazia-lhe a ideacutea embrulhada nas

amplificaccedilotildees de retoacuterica dos professores de coisas antigas mdash a morte aleivosa de

Ceacutesar a austera de Soacutecrates a orgulhosa de Catatildeo (Machado de Assis Memoacuterias

Poacutestumas de Braacutes Cubas cap XXIII p 145)

Nas referidas amplificaccedilotildees retoacutericas ressoa a morte do filoacutesofo Soacutecrates a qual de fato

ficou no imaginaacuterio ocidental como uma morte ldquoausterardquo dado o fato de ele ter se mantido

firme em suas ideias ldquocorruptorasrdquo dos jovens atenienses ateacute a hora de seu oacutebito A morte de

Catatildeo o Jovem tambeacutem eacute adjetivada por Braacutes Cubas poreacutem como ldquoorgulhosardquo A respectiva

adjetivaccedilatildeo se apresenta com ecircxito dado o fato de Catatildeo ter sido um poliacutetico romano notaacutevel

por sua integridade moral Sendo ele ainda partidaacuterio da filosofia estoica descrito pelo

historiador Saluacutestio como a antiacutetese direta de Juacutelio Ceacutesar suicidou-se apoacutes a vitoacuteria deste seu

opositor na Batalha de Tapso

Concentremo-nos poreacutem na morte de Ceacutesar mesmo que natildeo haja nenhuma associaccedilatildeo

direta dele com o bioacutegrafo diferentemente dos excertos com os imperadores anteriores isso

natildeo nos impede de relacionaacute-los O narrador machadiano adjetiva tal morte como ldquoaleivosardquo

denotando a atmosfera da traiccedilatildeo pela qual Ceacutesar passou no Senado romano relatada em sua

biografia deste modo

Assidentem conspirati specie officii circumsteterunt ilicoque Cimber Tillius qui

primas partes susceperat quasi aliquid rogaturus propius accessit renuentique et gestu

in aliud tempus differenti ab utroque umero togam adprehendit deinde clamantem

ldquoIsta quidem vis estrdquo alter e Cascis aversum vulnerat paulum infra iugulum Caesar

Cascae brachium arreptum graphio traiecit conatusque prosilire alio vulnere tardatus

est utque animadvertit undique se strictis pugionibus peti toga caput obvoluit simul

sinistra manu sinum ad ima crura deduxit quo honestius caderet etiam inferiore

corporis parte velata Atque ita tribus et viginti plagis confossus est uno modo ad

primum ictum gemitu sine voce edito etsi tradiderunt quidam Marco Bruto irruenti

dixisse καὶ σὺ τέκνον (Suet Jul 82 1-2)

Os que haviam concordado com a natureza do trabalho rodeavam aquele que estava

sentado Sem demorar Ciacutember Tiacutelio que se encarregava dos primeiros papeacuteis como

se houvesse de falar algo caminhou para mais perto Ceacutesar negando atraveacutes de um

gesto contraacuterio passou-o para outro momento Por ambos os lados aquele apertou sua

toga Entatildeo Ceacutesar clamou ldquoIsso eacute verdadeiramente uma violecircnciardquo Um dos Cascas

jaacute lhe tinha ferido por traacutes um pouco abaixo da garganta Com um ponteiro furou com

um ponteiro o braccedilo arrebatado de Casca e o impulso de arremeter foi detido por uma

outra ferida Mas quando observou que seria tomado por robustos punhais por todos

os lados cobriu a cabeccedila com a toga Ao mesmo tempo com a matildeo esquerda conduziu

a dobra da veste ateacute as extremidades das pernas de modo que jaacute estando com a parte

inferior do corpo coberta caiacutesse mais honrosamente Desta maneira foi dilacerado

por vinte e trecircs golpes Ateacute a primeira ferida teria produzido apenas um gemido sem

uma palavra sequer embora alguns afirmem que com o ataque de Marco Bruto teria

dito ldquoTambeacutem tu meu filhordquo

Como reconhecemos esses escritos de Suetocircnio com grande carga dramaacutetica foram

grandes responsaacuteveis por propagar no imaginaacuterio do mundo ocidental este evento que mudou

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os rumos da Roma Antiga Machado de Assis foi ciruacutergico ao usar a palavra aleivosa para

qualificar a morte de Ceacutesar a qual condensa toda a ideia da conjuraccedilatildeo Muito provavelmente

teve acesso a isso atraveacutes da referida biografia

Podemos avanccedilar ao capiacutetulo LXXII do romance cujo tiacutetulo eacute O bibliocircmano no qual o

defunto-autor confessa que deveria suprimir o capiacutetulo antecedente alegando haver nele um

despropoacutesito acerca do qual natildeo gostaria de receber criacuteticas Afirma que setenta anos agrave frente

este leitor que eacute por ele caracterizado e denominado ldquobibliocircmanordquo procuraria minuciosamente

o tal ldquodespropoacutesitordquo poreacutem sem ecircxito natildeo encontraria Em seguida explica que ele natildeo o

encontraria pelo simples fato de ele natildeo existir jaacute que foi suprimido Discorre ainda que isso

natildeo causaria o desinteresse do leitor sobre o livro e que pelo contraacuterio ele o adoraria por ser

um exemplar uacutenico O bibliocircmano continua sua procura mas mesmo sem sucesso se contenta

com o fato de dispor do uacutenico tomo

Jaacute prometeu a si mesmo escrever uma breve memoacuteria na qual relate o achado do livro

e a descoberta da sublimidade se a houver por baixo daquela frase obscura Ao cabo

natildeo descobre nada e contenta-se com a posse Fecha o livro mira-o remira-o chega-

se agrave janela e mostra-o ao sol

Um exemplar uacutenico Nesse momento passa-lhe por baixo da janela um Ceacutesar ou um

Cromwell a caminho do poder Ele daacute de ombros fecha a janela estira-se na rede e

folheia o livro de vagar com amor aos goles Um exemplar uacutenico (Machado de

Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap LXXII p 209-210)

Neste excerto em que Braacutes Cubas manteacutem sua divagaccedilatildeo sobre o despropoacutesito da mesma

forma que fez com a noccedilatildeo de ideia fixa notamos a segunda referecircncia ao general Juacutelio Ceacutesar

A menccedilatildeo a Ceacutesar e a Cromwell visa ilustrar o modo como uma pessoa estaria transitando pela

rua ldquoa caminho do poderrdquo Oliver Cromwell foi um comandante militar e poliacutetico nascido na

nobreza rural inglesa em 1599 Em 1630 passa por uma conversatildeo religiosa e reconhecendo-

se como um Puritano acreditava que Deus era quem o guiava em suas vitoacuterias sendo muito

ativo durante a Guerra Civil Inglesa Mas quem mais nos interessa eacute o outro poliacutetico e militar ndash

Juacutelio Ceacutesar ndash e este nome associado agrave expressatildeo ldquocaminho do poderrdquo leva-nos a lembrar de

outro aspecto cultural da Roma Antiga ndash a travessia ao Rio Rubicatildeo Jaacute durante a Repuacuteblica

esse rio que dividia a proviacutencia da Gaacutelia Cisalpina (ao norte) do resto da Itaacutelia (ao sul) era de

suma importacircncia visto que a lei romana proibia que fosse transpassado por quaisquer legiotildees

do exeacutercito romano caso isso fosse feito denotaria uma ameaccedila militar interna

Resumidamente os sucessos de Ceacutesar na Gaacutelia acarretaram o aumento de seu poder de

sua popularidade e da ira de seus inimigos Estes influenciados por Catatildeo o Jovem (tambeacutem

jaacute referido no romance de Machado) tentaram promover sua ruiacutena poliacutetica Em 50 AEC o

Senado aprovou uma moccedilatildeo para que Ceacutesar fosse retirado do cargo de governador na Gaacutelia

Marco Antocircnio embasado pelo poder de tribuno do povo vetou a proposta Apoacutes isso houve

uma intensa perseguiccedilatildeo aos partidaacuterios de Juacutelio Ceacutesar Antocircnio precisou deixar Roma por

conta da alta probabilidade de ser assassinado e sem oposiccedilatildeo do Senado declarou estado de

emergecircncia delegando poderes excepcionais a Pompeu Magno Ceacutesar retrucou isso com a

famosa cruzada assim relatada por Suetocircnio

Dein post solis occasum mulis e proximo pistrino ad vehiculum iunctis occultissimum

iter modico comitatu ingressus est et cum luminibus extinctis decessisset via diu

errabundus tandem ad lucem duce reperto per angustissimos tramites pedibus evasit

Consecutusque cohortis ad Rubiconem flumen qui provinciae eius finis erat paulum

constitit ac reputans quantum moliretur conversus ad proximos ldquoEtiam nuncrdquo

inquit ldquoregredi possumus quod si ponticulum transierimus omnia armis agenda

eruntrdquo (Suet Jul 31 2)

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Em seguida apoacutes o pocircr do Sol atadas as mulas desde o moinho mais proacuteximo ateacute o

veiacuteculo mais escondido comeccedilou o caminho com uma modesta caravana Com as

luzes acabando ia-se embora pelo caminho Entatildeo durante o dia tendo aparecido um

guia com peacutes errantes evadiu pelas mais estreitas veredas E acompanhado pelas

coortes ateacute o rio Rubicatildeo que traccedila o limite de sua proviacutencia parou um pouco e

calculou o quanto se moveu virou-se aos mais proacuteximos e disso ldquoAteacute agora podemos

recuar porque se atravessarmos a pequena ponte todas as coisas deveratildeo ser feitas

atraveacutes das armasrdquo

Cunctanti ostentum tale factum est Quidam eximia magnitudine et forma in proximo

sedens repente apparuit harundine canens ad quem audiendum cum praeter pastores

plurimi etiam ex stationibus milites concurrissent interque eos et aeneatores rapta ab

uno tuba prosilivit ad flumen et ingenti spiritu classicum exorsus pertendit ad alteram

ripam Tunc Caesar ldquoEaturrdquo inquit ldquoquo deorum ostenta et inimicorum iniquitas

vocat Iacta alea estrdquo inquit (Suet Jul 32)

Com ele ainda de tal modo titubeando foi eficaz um prodiacutegio Apareceu de repente

ali proacuteximo uma certa pessoa que estava sentada tocando com uma flauta exiacutemia em

grandeza e forma Para o ouvirem correram muitos pastores tambeacutem muitos soldados

das guarniccedilotildees entre eles alguns tocadores de trombeta Com a trombeta tomada de

um deles o muacutesico lanccedilou-se ao rio E com um imenso vigor realizou um toque

introdutoacuterio ateacute a outra margem do rio Entatildeo disse Ceacutesar ldquoVamos para onde o sinal

dos deuses e a hostilidade dos inimigos nos chamam A sorte estaacute lanccediladardquo

Como jaacute frisamos por parte do narrador de Machado natildeo haacute nenhuma referecircncia direta

desse Ceacutesar ao bioacutegrafo Suetocircnio mas vemos relaccedilotildees diretas entre o ato da desconhecida

pessoa ldquoa caminho do poderrdquo e os atos do general romano Mais uma vez o autor foi ciruacutergico

no uso da expressatildeo destacada para a qual muito provavelmente teve acesso ao excerto de

Suetocircnio cujo conteuacutedo tambeacutem faz parte do imaginaacuterio ocidental ndash a travessia ao rio Rubicatildeo

antecedida da frase ldquoA sorte estaacute lanccediladardquo Cabe lembrar que Machado jaacute usara a expressatildeo no

capiacutetulo XIII de seu romance Helena publicado em 1876 quando o personagem Estaacutecio na

tentativa de esquecer o amor pela protagonista Helena decide pedir Eugecircnia em casamento

Naquela mesma noite ouviu Eugecircnia a esperada palavra A alegria que se lhe

derramou nos olhos foi imensa e caracteriacutestica Um pouco mais de recato natildeo era

descabido em tal ocasiatildeo Natildeo houve nenhum o primeiro ato da mulher foi uma

meninice Eugecircnia ignorava tudo ateacute a dissimulaccedilatildeo do sexo Concedendo a matildeo a

Estaacutecio natildeo era uma castelatilde que entregava o precircmio mas um cavaleiro que o recebia

com alvoroccedilo e submissatildeo

Transposto o Rubicon natildeo havia mais que caminhar direito agrave cidade eterna do

matrimocircnio Estaacutecio escreveu no dia seguinte uma carta ao Dr Camargo pedindo-lhe

a matildeo de Eugecircnia carta seca e digna como as circunstacircncias a pediam (Machado de

Assis Helena cap XIII p 133)

Terminadas as referecircncias ao instaurador da dinastia juacutelio-claudiana faccedilamos um salto

ao capiacutetulo CXVI intitulado Filosofia das folhas velhas no qual Braacutes Cubas alega ter ficado

tatildeo triste com o capiacutetulo anterior a este4 pelo fato de sua amante Virgiacutelia ter embarcado para a

Europa No capiacutetulo CXVI vemos referecircncia a outro imperador associado ao escrito

suetoniano nesse caso trata-se do jaacute referido Domiciano

Apoacutes um governo moderado de dez anos o do seu pai Vespasiano seguido por outro

governo tambeacutem moderado de apenas dois anos o do seu irmatildeo Tito de modo contraacuterio

4 O capiacutetulo CXV intitulado O almoccedilo

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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Domiciano assume com bastante autoritarismo Durante seus quinze anos de governo o uacuteltimo

imperador flaviano cometeu assassinatos de diversos cidadatildeos importantes incluindo

senadores Essas razotildees acarretaram numa conjuraccedilatildeo para a sua morte E diferente do seu pai

e irmatildeo que foram divinizados apoacutes a morte Domiciano ldquorecebeurdquo do Senado um decreto para

a sua damnatio memoriae essa danaccedilatildeo da memoacuteria significava as retiradas de suas imagens

em bustos inscriccedilotildees etc

Esclarecidos esses pontos sobre o imperador Domiciano voltemos a Braacutes Cubas O

narrador inicia o referido capiacutetulo em questatildeo refletindo pela metalinguagem ldquoFiquei tatildeo triste

com o fim do uacuteltimo capiacutetulo que estava capaz de natildeo escrever este descansar um pouco purgar

o espiacuterito da melancolia que o empacha e continuar depois Mas natildeo natildeo quero perder tempordquo

(Machado de Assis Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258) e continua a

reflexatildeo

A partida de Virgiacutelia deu-me uma amostra da viuvez Nos primeiros dias meti-me em

casa a fisgar moscas como Domiciano se natildeo mente o Suetocircnio mas a fisgaacute-las de

um modo particular com os olhos Fisgava-as uma a uma no fundo de uma sala

grande estirado na rede com um livro aberto entre as matildeos (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CXVI p 258)

O narrador-personagem machadiano Braacutes Cubas discorre sobre seu desgosto pela vida

e sobre a monotonia agrave qual estava submetido apoacutes a partida da mulher ldquoextraconjugalmenterdquo

amada Virgiacutelia Notamos que para ilustrar de modo exagerado o desacircnimo por parte de Braacutes

Cubas sendo esse abatimento comparado a uma viuvez Machado de Assis apresenta seu

defunto-autor de um modo tatildeo ocioso que fisgava as moscas apenas com os olhos Ou seja ele

eacute apresentado mais ociosamente que o imperador Domiciano que espetava moscas A fim de

captarmos essa menccedilatildeo valemo-nos do capiacutetulo 3 da biografia de Domiciano

Inter initia principatus cotidie secretum sibi horarum sumere solebat nec quicquam

amplius quam muscas captare ac stilo praeacuto configere ut cuidam interroganti

essetne quis intus cum Caesare non absurde responsum sit a Vibio Crispo ne muscam

quidem (Suet Dom 3)

Durante os iniacutecios de seu principado solitaacuterio estava ele habituado diariamente pelas

horas a colher para si nada mais que moscas e prender com um estilete pontudo Para

uma certa interrogaccedilatildeo se acaso natildeo tinha ningueacutem dentro do local com Ceacutesar de

modo adequado teria sido respondido por Viacutebio Crispo que natildeo que nem mesmo

uma mosca

Notamos entatildeo que se por um lado atraveacutes da intertextualidade Machado se volta para

o Domiciano de Suetocircnio com o intuito de descortinar o estado de alma de Braacutes Cubas por

outro Suetocircnio apresenta essa anedota das moscas para condicionar seu leitor a um juiacutezo

negativo sobre o retrato moral de Domiciano que nada fazia em prol da burocracia puacuteblica no

iniacutecio de seu principado Essa anedota sobre Domiciano com Viacutebio Crispo enquanto locutor

jamais deixaria de ser apresentada por Suetocircnio haja vista que os atos burocraacuteticos bem como

as accedilotildees militares e diplomaacuteticas faziam parte das temaacuteticas de suas biografias Somos tentados

a crer que o fato de Suetocircnio ser oriundo da ordem dos equestres e mais tarde ter assumido

algumas funccedilotildees puacuteblicas durante o principado de Trajano e de Adriano tambeacutem teria

contribuiacutedo para sua atenccedilatildeo a esses tipos de chistes

Embora Suetocircnio natildeo seja visto como um historioacutegrafo mas sim como um erudito

bioacutegrafo e natildeo tenha pertencido agrave ordem senatorial sabemos que ele enveredou pela tradiccedilatildeo

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historiograacutefica senatorial isto eacute aquela que retratava moralmente bem os imperadores

favoraacuteveis ao Senado e moralmente mal os refrataacuterios a esse corpo Isso talvez tenha se dado

graccedilas ao seu contato com o influente senador Pliacutenio o Jovem e ao participar do seu ciacuterculo

de amizades tambeacutem teve contato com os historiadores Taacutecito e Faacutebio Ruacutestico Podemos

depreender que Domiciano natildeo deixou de apresentar motivos para ser exageradamente mal

retratado pela pena suetoniana e por isso a ressalva de Braacutes Cubas que diz ldquose natildeo mente o

Suetocircniordquo

Avancemos ao capiacutetulo CLII intitulado A moeda de Vespasiano no qual encontramos a

uacuteltima menccedilatildeo feita desde seu tiacutetulo a um imperador romano retratado por Suetocircnio Em tal

capiacutetulo na volta do enterro de Lobo Neves Braacutes Cubas refletia sobre o choro mais

precisamente sobre os soluccedilos sinceros da sua amante Virgiacutelia para o marido ao qual tinha

traiacutedo com igual sinceridade

Jaacute sabemos algumas informaccedilotildees acerca do ceacutesar em questatildeo todavia vale reforccedilar que

foi ele quem saiu vitorioso do conhecido historicamente Ano dos Quatro Imperadores em 69

Apoacutes o suiciacutedio ocorrido em 68 do uacuteltimo juacutelio-claudiano ndash o polecircmico Nero ndash que natildeo havia

deixado ningueacutem para linha sucessoacuteria os generais Galba Otatildeo Viteacutelio e Vespasiano atraveacutes

de sucessivos confrontos armados guerrearam entre si ansiando o trono deixado por Nero

Com a vitoacuteria de Vespasiano eacute instaurada a dinastia flaviana Entatildeo passemos ao curto capiacutetulo

das Memoacuterias Poacutestumas em completude

Tinham ido todos soacute o meu carro esperava pelo dono Accendi um charuto afastei-

me do cemiteacuterio Natildeo podia sacudir dos olhos a cerimocircnia do enterro nem dos ouvidos

os soluccedilos de Virgiacutelia Os soluccedilos principalmente tinham o som vago e misterioso

de um problema Virgiacutelia traiacutera o marido com sinceridade e agora chorava-o com

sinceridade Eis uma combinaccedilatildeo difiacutecil que natildeo pude fazer em todo o trajecto em

casa poreacutem apeando-me do carro suspeitei que a combinaccedilatildeo era possiacutevel e ateacute

faacutecil Meiga Natura A taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave

origem e tanto se colhe do mal como do bem A moral repreenderaacute porventura a

minha cuacutemplice eacute o que te natildeo importa implacaacutevel amiga uma vez que lhe recebeste

pontualmente as laacutegrimas Meiga trecircs vezes Meiga Natura (Machado de Assis

Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas cap CLII p 294)

Percebemos que na busca pela anaacutelise do estado de alma de sua amada Virgiacutelia o narrador

Braacutes Cubas reverbera que ldquoA taxa da dor eacute como a moeda de Vespasiano natildeo cheira agrave origem

e tanto se colhe do mal como do bemrdquo Mas de onde ele teria tirado essas relaccedilotildees semacircnticas

entre o imperador Vespasiano-moeda-taxa-cheiro Pois bem Mais uma vez quem nos traz a

resposta eacute Suetocircnio

Reprehendenti filio Tito quod etiam urinae vectigal commentus esset pecuniam ex

prima pensione admovit ad nares sciscitans num odore offenderetur et illo negante

ldquoAtquin inquit e lotio estrdquo (Suet Vesp 233)

Repreendeu seu filho Tito porque ele Vespasiano teria inventado um imposto sobre

a urina que por aquele foi advertido entatildeo aproximou o dinheiro do primeiro

pagamento desse tributo do nariz de Tito E perguntando-o se acaso natildeo se sentia

incomodado com odor e Tito negando Vespasiano respondeu No entanto eacute

proveniente da urinardquo

Na curiosa anedota Vespasiano criador de um imposto sobre a urina pois muitos

comerciantes as retiravam das latrinas puacuteblicas e as utilizavam para curtir os tecidos que

vendiam repreende o primogecircnito por ter discordado inicialmente da ideia Natildeo temos duacutevidas

Os imperadores suetonianos em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas

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de que Machado de Assis teve acesso a essa biografia para usar com propriedade em seu

romance nessa cena em que seu narrador busca explicaccedilotildees para fatos aparentemente

contraditoacuterios

Esse excurso pelas duas obras aparentemente distantes e des-relacionadas nos deu a liccedilatildeo

de que o narrataacuterio enquanto entidade leitora fictiacutecia compreende e decodifica os aspectos

concernentes agraves personalidades em apreccedilo os princepes no entanto para o leitor ideal isso se

mostra mais obscuro Machado de Assis aproveita os questionaacuteveis retratos dos ceacutesares de

Suetocircnio para enriquecer sua obra literaacuteria

Assim contribuindo mais para a compreensatildeo do romance machadiano pela anaacutelise da

traduccedilatildeo a qual nos permitiu o estudo sobre as referecircncias agrave histoacuteria agrave cultura e agrave literatura da

Roma Antiga cristalizados pelos Claacuteudio Tito Ceacutesar Domiciano e Vespasiano suetonianos

os esforccedilos empreendidos teratildeo alcanccedilado seu objetivo nessas ressignificaccedilotildees Se as

referecircncias e os eventos atrelados a esses ceacutesares que nos foram ldquodadosrdquo pelas biografias de

Suetocircnio tiverem sido descortinados dentro das Memoacuterias Poacutestumas de Machado de Assis

podemos ficar sem ldquoideias fixasrdquo de que criamos ldquodespropoacutesitosrdquo

IacuteNDICE DE ABREVIACcedilOtildeES

Suet Cl (Suetocircnio Claacuteudio)

Suet Dom (Suetocircnio Domiciano)

Suet Jul (Suetocircnio Juacutelio Ceacutesar)

Suet Tit (Suetocircnio Tito)

Suet Ves (Suet Vespasiano)

DOCUMENTACcedilAtildeO TEXTUAL

ASSIS Joaquim Maria Machado de Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas Rio de Janeiro

Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

______ Helena Rio de Janeiro Editora Civilizaccedilatildeo Brasileira 1975

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Caligula Translated by J C Rolfe Introduction by K R Bradley Loeb Classical Library 31

Cambridge MA Harvard University Press 1914

______ Lives of the Caesars Volume II Claudius Nero Galba Otho and Vitellius

Vespasian Titus Domitian Lives of Illustrious Men Grammarians and Rhetoricians

Poets (Terence Virgil Horace Tibullus Persius Lucan) Lives of Pliny the Elder and

Passienus Crispus Translated by J C Rolfe Loeb Classical Library 38 Cambridge MA

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Bruno Torres dos Santos

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946511

LUCIacuteOLA E O TRAacuteGICO ESTUDO ACERCA DAS MARCAS DO HEROacuteI

TRAacuteGICO EM UM PERFIL DE MULHER ALENCARIANO

Heitor Victor

RESUMO Recorrer aos claacutessicos para entender nosso tempo natildeo eacute mesmo nenhuma novidade

Apelar para a trageacutedia grega a fim de identificar o que persiste em nossa compreensatildeo acerca

de noacutes mesmos se tornou lugar comum de investigaccedilotildees em diversas aacutereas de interesse Tal

estrateacutegia se repete em razatildeo evidentemente de uma inesgotaacutevel potecircncia alegoacuterica acerca da

existecircncia humana O que pretendo neste breve trabalho eacute uma anaacutelise em linha comparativa

das marcas do traacutegico na heroiacutena Luacutecia de Alencar personagem que o proacuteprio autor considera

um de seus perfis de mulher Para tal dialogo com Benjamin que se apresenta como um elo de

compreensatildeo do heroacutei traacutegico figura esta que se mostrou mais longeva do que a proacutepria trageacutedia

helecircnica

PALAVRAS-CHAVE Luciacuteola Traacutegico Heroiacutena

LUCIacuteOLA AND THE TRAGIC ESSAY ABOUT THE MARKS OF THE

TRAGIC HERO IN A WOMAN PROFILE OF JOSEacute DE ALENCAR

ABSTRACT It is no novelty that a return to the classics helps to understand our own time It is

even a commonplace in many research fields that an approach to greek tragedy makes it

possible for us to better understand ourselves Such a strategy still turns out to be suitable

because there is an ongoing possibility of creating allegories of human existence My aim in

this short essay is to perform a comparative analysis of the tragical features of Luacutecia an

important character of Joseacute de Alencars prose who the author himself deems to be a crucial

example of his depictions of the feminine In order to do that I draw upon Walter Benjamins

work which provides us with a comprehensive overview of the tragic hero - who actually

proved himself to be more important than the helenic tragedy itself

KEYWORDS Luciacuteola Tragic Heroine

Introduccedilatildeo

O teatro traacutegico dos gregos natildeo pode mais retornar isso eacute um fato mas eacute marcante a sua

presenccedila ainda em nossa literatura ocidental Analisar o elemento traacutegico natildeo eacute necessariamente

uma novidade mas sempre se mostra desafiador relacionarmos o traacutegico agrave estrutura de

composiccedilatildeo da personagem do romance na literatura moderna O presente trabalho pretende

Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E-mail heitor-victorhotmailcom

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

38 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

pois fazer uma leitura da personagem Luacutecia da obra Luciacuteola de Joseacute de Alencar pioneira da

seacuterie perfis de mulher como construiacuteda sob o signo do traacutegico uma heranccedila legada pelo teatro

grego e que perdura em nossa cultura

O desafio que salta aos olhos eacute certamente as dificuldades de se transpor para o romance

caracteriacutesticas da personagem do texto dramaacutetico ou entender nesta a capacidade de se

apresentar com a profundidade comum ao romance Eacute possiacutevel entender contudo que retiradas

as divergecircncias praacuteticas do meio de veiculaccedilatildeo das narrativas sobram elementos em comum

que residem no imaginaacuterio coletivo e soacute fazem enriquecer o repertoacuterio de leituras que nos

permite a prosa alencariana do seacuteculo XIX

Luacutecia eacute uma das heroiacutenas mais complexas de seu autor capaz de em poucas paacuteginas

fazer o leitor se questionar sobre sua verdadeira natureza ora por sua candura ora por sua ironia

aacutecida apego e desprendimento iacutempares no cenaacuterio romanesco de um tempo que vecirc transbordar

a quantidade de novas e encantadoras personagens Nossa heroiacutena permite-nos destacaacute-la

exatamente por encerrar um signo que extrapola o estilo de seu tempo por meio de grandes

dicotomias autoconsciecircncia e culpa sacrifiacutecio e desejo silecircncio e seduccedilatildeo a personagem se

nos mostra uacutenica no cenaacuterio veloz e dinacircmico dos romances de folhetim

Sublime Decaiacutedo Uma Alegoria

No intuito de criar um elemento intermediaacuterio entre o heroacutei da trageacutedia e o heroacutei traacutegico

que mostrarei estar presente no romance Luciacuteola de Joseacute de Alencar seraacute preciso recorrer agrave

descriccedilatildeo desse heroacutei feita por Walter Benjamin (2011) acerca do drama traacutegico alematildeo

Enquanto aparato cecircnico ou mesmo de criaccedilatildeo literaacuteria encontramos outro contexto e outra

realidade mas o elemento fundamental ainda estaraacute laacute presente O heroacutei traacutegico manteraacute uma

seacuterie de aspectos essenciais que o transformam no portador da anguacutestia humana sem perder o

inexoraacutevel do mito despido ainda mais do movimento de ritualizaccedilatildeo religioso Eacute o traacutegico que

permanece e esse seraacute fundamental para a construccedilatildeo de uma identidade nacional do drama

alematildeo segundo o autor o que nos mostra o potencial desse heroacutei traacutegico no processo de

aproximaccedilatildeo entre o discurso formador e o seu espectador (BENJAMIN 2011)

Um primeiro elemento identificado por Benjamin (2011) que nos interessa no heroacutei

traacutegico eacute o seu caraacuteter alegoacuterico se eacute que posso falar em alegoria do mito que jaacute o eacute em essecircncia

Certamente contudo figura nesse elemento a grande potecircncia reflexiva da personagem traacutegica

que poderaacute ser transportado para Luacutecia Ao relevarmos a ambiccedilatildeo do autor de traccedilar perfis de

mulher1 a alegoria destaca Luacutecia de Emiacutelia e Aureacutelia o que faz evidenciar naquela a tragicidade

em comparaccedilatildeo com estas Deixe-me verificar antes e em linhas mais gerais o que entende

Benjamin por alegoria no drama traacutegico

Devo dispensar em razatildeo de objetivos praacuteticos a discussatildeo do autor acerca das

concepccedilotildees de alegoacuterico e simboacutelico para o barroco e para o romantismo para ir diretamente ao

ponto o alegoacuterico eacute entendido como aquele que supera a unidade da obra e se posiciona com

transcendecircncia agrave medida que o siacutembolo se encerra em si mesmo mostra identidade e um caraacuteter

proacuteprio da obra em que se coloca Benjamin recorre a Goethe para mostrar a concepccedilatildeo

romacircntica de siacutembolo e alegoria ldquoHaacute uma grande diferenccedila entre o poeta procurar o particular

para chegar ao geral e contemplar o geral no particular No primeiro procedimento temos uma

alegoria e o particular serve apenas como exemplo como caso exemplar do geralrdquo

(BENJAMIN 2011 p 171)

1 Natildeo devemos deixar de reconhecer que essa intenccedilatildeo descritiva de construccedilatildeo de um perfil apresenta-se como

um elemento romanesco do narrador de Luciacuteola Como visto no primeiro capiacutetulo da obra quando o narrador

se justifica a G M sua pretensa correspondente ldquoEacute um perfil de mulher apenas esboccediladordquo (ALENCAR 1972

p 121) A todo momento que eu tocar nesse ponto se deve reconhecer que a nossa base reside antes de tudo

nesse caraacuteter narrativo do romance alencariano

Heitor Victor

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A despeito da valoraccedilatildeo feita por Goethe seguiremos a leitura de Benjamin para

entender Luacutecia como o caso particular representativo de um perfil maior o da mulher que

encarna o anjo caiacutedo seu nome daacute a grande indicaccedilatildeo dessa relaccedilatildeo alegoacuterica mas a mesma

natildeo deixa de aparecer ao longo da obra Reconhecerei em minha anaacutelise na Luacutecia de Alencar

a alegoria da mulher sublime que decai em todo o seu caraacuteter duacutebio mas ainda assim

permanente que morre ao final do romance natildeo agrave toa mas de maneira necessaacuteria para

consolidar a aspiraccedilatildeo alegoacuterica desse perfil de mulher talvez o mais ousado de Alencar

Benjamin reconhece que

o seu (da alegoria) significado eacute aquele que o alegorista lhe atribuir Ele investe-o

desse significado e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele natildeo em sentido

psicoloacutegico mas ontoloacutegico Nas suas matildeos a coisa transforma-se em algo de diverso

atraveacutes dela ele fala de algo de diverso e ela torna-se para ele a chave que lhe daacute acesso

a um saber oculto que ele venera na coisa como seu emblema Eacute nisso que reside o

caraacuteter escritural da alegoria (BENJAMIN 2011 p 196)

Esse seraacute portanto o meu ponto de partida Para natildeo deixar qualquer duacutevida sobre essa

relaccedilatildeo devo me deter nesse tema ainda para mostrar na obra algumas marcas dessa relaccedilatildeo A

comeccedilar pelo elemento dramaacutetico de narraccedilatildeo o recado de G M ldquoao autorrdquo Apoacutes reconhecer

a grandeza da personagem e o valor da narrativa que se seguiraacute dramaticamente posta como

uma publicaccedilatildeo da mesma G M afirma ldquoNatildeo seraacute a imagem verdadeira da mulher que no

abismo da perdiccedilatildeo conserva a pureza drsquoalmardquo (ALENCAR 1972 p 120) Natildeo se pode

desaperceber que eacute usado natildeo a referecircncia definida dedicada agrave Luacutecia mas uma referecircncia geral

a todas as mulheres Eacute exatamente nesse caraacuteter geneacuterico que residiria o valor alegoacuterico de que

trato neste trabalho

Podemos tambeacutem recorrer aos eventos narrados no interior do romance para vermos

personificada a alegoria do anjo caiacutedo seja pela capacidade de transitar com primor entre um e

outro digo entre o angelical e o demoniacuteaco ou seja por encerrar em si mesma os dois

extremos Luacutecia se nos apresenta apenas pela narrativa de Paulo natildeo se pode esquecer e muito

de sua transitoriedade pode residir apenas nas impressotildees desse narrador personagem mas isso

em nada muda o seu caraacuteter alegoacuterico Um episoacutedio que expressa com clareza a ambivalecircncia

de Luacutecia eacute o de seu primeiro encontro iacutentimo com Paulo Em curto espaccedilo de tempo

cronoloacutegico e narrativo vemos uma transformaccedilatildeo que beira a ida pronta do sagrado ao

profano No momento em que avanccedila sobre Luacutecia Paulo reconhece

Quando poreacutem os meus laacutebios se colaram na tez de cetim e meu peito estreitou as

formas encantadoras que debuxavam a seda pareceu-me que o sangue lhe refluiacutea ao

coraccedilatildeo As palpitaccedilotildees eram bruscas e precipites Estava liacutevida e mais branca do que

o alvo colarinho do seu roupatildeo Duas laacutegrimas em fio duas laacutegrimas longas e sentidas

como dizem que chora a corccedila expirando pareciam cristalizadas sobre a face de tatildeo

lentas que rolavam (ALENCAR 1972 p 134-135)

Vemos aqui com a reaccedilatildeo genuiacutena de Luacutecia somada agraves laacutegrimas sua comparaccedilatildeo ao

choro da corccedila notamos aqui o temperamento puro que nos surpreende a todos narrador e

leitor Surpresa que se justifica com a mudanccedila abrupta de Luacutecia para entregar a imagem que

nos foi construiacuteda pelos pares de Paulo de que nossa heroiacutena se tratava de uma cortesatilde das mais

haacutebeis

Era outra mulher O rosto cacircndido e diaacutefano que tanto me impressionou agrave doce

claridade da lua se transformara completamente tinha agora uns toques ardentes e

um fulgor estranho que o iluminava Os laacutebios finos e delicados pareciam tuacutemidos dos

desejos que incubavam Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

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narina que tremiam com o aneacutelito do respiro curto e sibilante e tambeacutem nos fogos

surdos que incendiavam a pupila negra (ALENCAR 1972 p 136)

Nessa transformaccedilatildeo se apresenta a indistinguiacutevel transiccedilatildeo do sagrado do choro da

corccedila para a respiraccedilatildeo sibilante demoniacuteaca em lasciacutevia Seria inuacutetil continuar enumerando os

momentos em que se evidencia tal transformaccedilatildeo acredito que esses episoacutedios partem da

anteriormente citada alegoria que pode nortear nossa leitura do romance

Natildeo nos seraacute nunca possiacutevel bater o martelo sobre tal questatildeo seria Luacutecia o siacutembolo de

Goethe ou a alegoria de Benjamin Somando contudo as marcas supracitadas a ainda o

reconhecimento de outras marcas do traacutegico preferirei me manter na leitura de Benjamin de

que o alegoacuterico eacute ainda desejaacutevel mesmo no romance exatamente por seu valor transcendente

e assim poderemos entender Luacutecia e seu perfil exclusivo de mulher como tambeacutem dotado de

valor reflexivo e generalista das anguacutestias femininas

Marcas do Heroacutei Traacutegico

As laacutegrimas do episoacutedio transcrito acima servem como indicador do demais elementos

de proximidade entre o heroacutei traacutegico de Benjamin e a Luacutecia de Alencar Tal choro evidencia

uma dor suprimida mas acima de tudo encerra em si quatro aspectos sobre os quais tratarei

neste trabalho o silecircncio a culpa a consciecircncia e o sacrifiacutecio O silecircncio de quem guarda para

si o seu verdadeiro eu suas dores e reflexotildees Eacute nas laacutegrimas que temos o primeiro vislumbre

da profundidade traacutegica de Luacutecia A personagem demonstra nesse exato momento plena

consciecircncia de si de seu destino e sente a culpa que pesa sobre si as laacutegrimas expressam o

ardor do seu sacrifiacutecio pois satildeo sublimadas por sua candura Vejamos adiante o que pretendo

dizer com esses quatro aspectos e sua relaccedilatildeo com o traacutegico

Devo principiar contrariando a ordem anterior pelo sacrifiacutecio para manter a

abordagem de Benjamin O autor entende que o heroacutei traacutegico realiza sua atuaccedilatildeo maior em sua

proacutepria morte o sacrifiacutecio maior e que eacute exatamente entatildeo que o heroacutei se distingue dos demais

indiviacuteduos Benjamin afirma

A marca identificativa da trageacutedia natildeo estaacute pois num conflito de niacuteveis entre o heroacutei

e mundo circundante [] mas sim a forma uacutenica grega de tais conflitos E onde deve

ser procurada essa forma Que tendecircncia se esconde no fenocircmeno traacutegico Por que

causa morre o heroacutei A poesia traacutegica assenta na ideia do sacrifiacutecio (BENJAMIN

2011 p 108)

Luacutecia se sacrifica natildeo apenas porque morre mas se encerra em sua morte uma entrega

definitiva a Paulo e agrave sua irmatilde Ana A morte de Luacutecia eacute decisiva para a construccedilatildeo e para a

profundidade da personagem aleacutem de ser elemento fundamental para a generalidade

constitutiva da alegoria Ainda mais que o sacrifiacutecio do heroacutei traacutegico natildeo eacute um sacrifiacutecio

comum Seguindo ainda o raciociacutenio de Benjamin temos

o sacrifiacutecio traacutegico difere no seu objeto ndash o heroacutei ndash de todos os outros e eacute ao mesmo

tempo inaugural e terminal Terminal no sentido do sacrifiacutecio expiatoacuterio devido aos

deuses guardiatildees de um antigo direito e inaugural no sentido de uma accedilatildeo que em

algum lugar desse direito anuncia novos conteuacutedos da vida do povo (BENJAMIN

2011 p 108)

Ou seja o sacrifiacutecio de Luacutecia eacute terminal expiatoacuterio de sua vida de perfiacutedia Luacutecia

reconhece em seus uacuteltimos momentos para Paulo a sua importacircncia e exatamente por isso por

ele se sacrifica

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 41

ndash Paulo Paulo Tu bem sabes que com essa palavra me farias cometer crimes se

crimes fosse necessaacuterio para te provar que eu soacute vivo da vida que me daacutes e me podes

tirar com um sopro Natildeo sou eu criatura tua natildeo renasci pela luz que derramaste em

minha alma Natildeo eacutes meu senhor meu artista meu pai e meu criador (ALENCAR

1972 p 243)

O sacrifiacutecio de Luacutecia como se evidencia natildeo estaacute apenas na morte mas na sua entrega

completa Entrega que se apresenta como sua uacutenica forma de se redimir da vida que levara O

sacrifiacutecio reconhecendo ainda tais aspectos de Benjamin eacute tambeacutem inaugural quando se

direciona a Ana sua irmatilde em quem enxerga a uacutenica continuidade possiacutevel Seja para sua

protegida ou mesmo para a continuidade da vida de Paulo possiacutevel apenas com o encerramento

da sua proacutepria vida

Outro aspecto do heroacutei traacutegico de Benjamin presente em Luciacuteola eacute o silecircncio jaacute

mencionado anteriormente ldquoO heroacutei traacutegico tem apenas uma linguagem que plenamente lhe

corresponde precisamente a do silecircncio Assim eacute desde o iniacuteciordquo (BENJAMIN 2011 p 109)

Esse silecircncio eacute identificaacutevel em diversos momentos em Luacutecia pois evoca a resiliecircncia da

heroiacutena com o seu fardo Natildeo eacute um silecircncio de conformismo ou mesmo qualquer espeacutecie de

natildeo se importar que a toma mas ldquoo testemunho de um sofrimento mudordquo (BENJAMIN 2011

p 109) Eacute com esse silecircncio que Luacutecia arrebata o leitor para o seu drama pessoal natildeo como um

perseguidor ou inquisidor mas como partiacutecipe de seu pesar de sua dor Tal silecircncio aparece

nos momentos de prazer como quando se divertia no banquete noturno na casa de Saacute ldquoLuacutecia

fizera uma pausa na sua estrepitosa alegria e caiacutera no costumado abatimento e distraccedilatildeo Eu a

contemplava admirado do letargo que a tornava inteiramente estranha ao que ali se passava

quando ela voltou-se para mim com o seu sorriso de anjo decaiacutedordquo (ALENCAR 1972 p 152-

153) Ou mesmo em sua face mais sincera jaacute como Maria ldquoQuando cheguei Luacutecia estava soacute

no jardim debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujaacutes tatildeo absorvida em sua

meditaccedilatildeo que natildeo me percebeurdquo (ALENCAR 1972 p 245)

Seguindo com minha anaacutelise comparativa devo abordar o aspecto da consciecircncia

fundamental para a diferenciaccedilatildeo entre uma outra personagem qualquer e o heroacutei traacutegico Esse

aspecto em especial eacute importante para a leitura que apresento por se tratar de algo que

claramente distingue o heroacutei romacircntico convencional daquele que eacute regido pelo signo do

traacutegico O heroacutei do romance desconhece completamente o seu destino e reside precisamente

nisso suas duacutevidas e questionamentos Nossa heroiacutena traacutegica contudo ainda que tambeacutem

romacircntica ndash natildeo o desejamos negar em nenhum momento se mostra consciente do seu caminho

Para esclarecer esse sentido de consciecircncia Benjamin traz uma fala de Lukaacutecs acerca do

reconhecimento da proacutepria morte

Tambeacutem a escolha da morte pelo homem traacutegico eacute um heroiacutesmo soacute aparentemente

heroico soacute assim visto de um ponto de vista humano e psicoloacutegico os heroacuteis

moribundos da trageacutedia ndash escrevia haacute pouco tempo um jovem autor traacutegico ndash estatildeo

mortos muito tempo antes de morrerem (BENJAMIN 2011 p 117)

Apenas a cargo de exemplificaccedilatildeo que se encaixa bem na ideia de reconhecimento da

morte como marca do heroacutei traacutegico podemos citar a consciecircncia apresentada por Luacutecia antes

de sua proacutepria morte ldquondash Se eu pudesse viver haveria forccedilas que me separassem de ti Haveraacute

sacrifiacutecio que eu natildeo fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade Mas Deus natildeo

quis Sinto que a vida me fogerdquo (ALENCAR 1972 p 248)

Devo tratar por fim do quarto aspecto a que me reservei neste trabalho que eacute o da culpa

Sem duacutevidas o eixo central de todo o romance de Alencar A culpa natildeo pode ser entendida

contudo como o arrependimento de seus atos ou mesmo sujeiccedilatildeo completa ao proacuteprio erro A

culpa como elemento traacutegico traz um valor de compreensatildeo Nossa heroiacutena traacutegica natildeo apenas

se lamenta da vida que fora levada a ter mas por meio da culpa ela se reconstroacutei eacute precisamente

Luciacuteola e o traacutegico estudo acerca das marcas do heroacutei traacutegico em um perfil de mulher alencariano

42 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

por meio da culpa que no fim em meio ao embate entre anjo e democircnio prevalece sua face

angelical e a alegoria alcanccedila a sua plenitude Recorro ainda agraves palavras de Benjamin para

clarificar essa noccedilatildeo de culpa no drama traacutegico

No decorrer da accedilatildeo traacutegica um heroacutei assume e internaliza essa culpa que segundo

as antigas normas eacute imposta aos homens a partir de fora pela desgraccedila Ao refleti-la

na sua consciecircncia de si ele furta-se agrave sua tutela demoniacuteaca [] Paradoxal como

todas as manifestaccedilotildees da culpa traacutegica ela consiste apenas numa orgulhosa

consciecircncia de culpa na qual a figura heroica se liberta da servidatildeo que na sua

lsquoinocecircnciarsquo a sujeita agrave culpa demoniacuteaca (BENJAMIN 2011 p 135)

Essa culpa talvez seja dentre os aspectos ateacute aqui elencados o que mais se mostra claro

ao longo de Luciacuteola Nos momentos de maior comoccedilatildeo compartilhamos com Luacutecia esse seu e

genuiacuteno sentimento e eacute precisamente graccedilas a ele que o lado sagrado desse anjo caiacutedo prevalece

e nos faz criar a empatia entre leitor e personagem Vejamos portanto dois casos que

expressam os dois extremos da culpa vivida por Luacutecia Ora tal sentimento se expressa pela

ironia como quando Paulo no evento da casa de Saacute tenta singularizar a sua presenccedila e nossa

heroiacutena rebate com acidez

ndash Ora Haacute tanta mulher bonita Qualquer destas vale mais do que eu acredite Demais

quando tiver bebido alguns copos de clicot e sentir-se eletrizado saberaacute o senhor de

quem satildeo os laacutebios que toca Qual Eacute uma mulher Uma presa em que ceva o apetite

Que importa o nome Sabe porventura o nome das aves e dos animais que lhe

prepararam esta ceia Conhece-os Nem por isso as iguarias lhe parecem menos

saborosas (ALENCAR 1972 p 153)

Em outro momento contudo vemos a culpa sob outra roupagem da maneira mais

sincera em um de seus momentos de maior entrega

ndash Tu podes me fazer voltar agrave treva de que me arrancaste podes estancar as fontes de

minha existecircncia que manam de tua alma e natildeo me haacutes de ouvir uma soacute queixa A

dor como a alegria seratildeo sempre benditas por que viratildeo de ti Mas Paulo a suacuteplica

do humilde natildeo ofende Deus a permite e exalccedila Natildeo me retires a graccedila e a becircnccedilatildeo

que me deste Salva-me Paulo Salva-me a ti Salva-me de mim mesma

(ALENCAR 1972 p 243)

Natildeo agrave toa seleciono esta uacuteltima fala de Luacutecia para encerrar a argumentaccedilatildeo pois

precisamente aqui a culpa se mostra como o elemento libertador e eacute aqui que Luacutecia talvez tenha

entendido e absorvido o orgulho citado por Benjamin para livraacute-la da tutela demoniacuteaca Liberta-

se finalmente da servidatildeo que a acomete por toda a obra A projeccedilatildeo em Paulo eacute certamente a

projeccedilatildeo em um amor libertador que foi capaz de transfigurar a modalidade da culpa que sentia

Eacute entatildeo que Luacutecia deixa claro que compreende que a dor e a alegria se complementam e assim

encerra o perfil da mulher que decaiu mas que no fim projeta em sua alegoria a clareza do seu

papel em sua proacutepria narrativa Essa compreensatildeo faz de Luacutecia a heroiacutena de Alencar que mais

beira a perdiccedilatildeo a mais altiva e capaz de se assemelhar agrave heroiacutena da trageacutedia e assim como laacute

melhor do que se realmente apresentam homens e mulheres

Conclusatildeo

Ao recorrer portanto agraves estrateacutegias de identificaccedilatildeo da interioridade e de posiccedilotildees

constitutivas do heroacutei traacutegico acredito que se torna possiacutevel clarificar como o teatro grego

passou a atuar sobre o mito por meio de maior variabilidade narrativa do mesmo Essa

possibilidade de apresentar uma personagem mais profunda ainda que por meio da accedilatildeo

Heitor Victor

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 43

dramaacutetica eleva o texto teatral e especificamente a trageacutedia ndash que usa a personagem miacutetica

como forma de apresentar seres mais elevados do que os indiviacuteduos da sociedade ndash ao papel de

ressignificar o mito Eacute por meio dessas personagens dramaacuteticas que a fabulaccedilatildeo estaacutetica do mito

pode apresentar novos argumentos para o meio em que estaacute inserida

Reconhecendo nas estrateacutegias de interpretaccedilatildeo da personagem dramaacutetica a ferramenta

de atualizaccedilatildeo do mito despida do elemento religioso foi possiacutevel analisar com certo grau de

convicccedilatildeo o heroacutei da trageacutedia Evidenciou-se como isso o papel desse heroacutei e sua capacidade

de conduzir efetivamente a narrativa miacutetica para novos caminhos interpretativos possibilitando

essa narrativa a se apresentar sob nova perspectiva O heroacutei visto dessa maneira ganha

destaque como formador de questionamentos e permite ao leitorespectador por meio do

elemento traacutegico estabelecer nova compreensatildeo

Esse heroacutei traacutegico permanece com o seu poder reflexivo mesmo fora do contexto miacutetico

levando-nos ao reconhecimento do traacutegico como formador efetivo de questionamentos Satildeo

estes aspectos traacutegicos que Benjamin identifica como herdeiros do teatro grego no teatro

alematildeo que eu resgato como possiacuteveis na construccedilatildeo de profundidade do heroacutei do romance eacute

precisamente sob esses aspectos que Luacutecia ndash a heroiacutena romacircntica mas dotada do elemento

traacutegico ndash eacute capaz de saltar aos olhos do leitor como dona de seu proacuteprio destino jamais apenas

sujeita ao mesmo Com isso cada traccedilo da heroiacutena de Alencar eacute capaz de se mostrar natildeo apenas

como marca de um perfil de mulher mas tambeacutem o perfil de um aspecto comum a todas as

mulheres Somente por meio da alegoria do anjo caiacutedo se poderia alcanccedilar tamanha projeccedilatildeo

dentro de um cenaacuterio em que o indiviacuteduo eacute professado como ponto central da construccedilatildeo de

uma obra de arte

REFEREcircNCIAS

ALENCAR Joseacute de Obras Imortais da Nossa Literatura Joseacute de Alencar Iracema ndash

Luciacuteola Satildeo Paulo Editora Trecircs 1972

ARISTOacuteTELES Poeacutetica In A Poeacutetica Claacutessica Satildeo Paulo Cultrix 12ordf ediccedilatildeo 2005

BENJAMIN Walter Origem do Drama Traacutegico Alematildeo Belo Horizonte Autecircntica Editora

2011

CANDIDO Antonio A Personagem do Romance In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo Paulo

Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

ELIADE Mircea Mito e Realidade Satildeo Paulo Editora Perspectiva 2ordf ediccedilatildeo 1986

PRADO Deacutecio de Almeida A Personagem no Teatro In A Personagem de Ficccedilatildeo Satildeo

Paulo Perspectiva 13ordf Ediccedilatildeo 2014

44 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881

DOI httpsdoiorg1012957principia201946512

CARACTERIZACcedilAtildeO SIMBOacuteLICA ATRAVEacuteS DE SIacuteMILES

ANIMAIS NA ILIacuteADA

Marco Valeacuterio Classe Colonnelli (Universidade Federal da Paraiacuteba)

RESUMO O intuito deste artigo eacute demonstrar a partir de alguns siacutemiles como Homero

produz uma caracterizaccedilatildeo concisa de seus heroacuteis A perspectiva de abordagem neste

estudo eacute comprovar a eficaacutecia do uso dos siacutemiles pelo poeta em consonacircncia com a obra

de Aristoacuteteles Investigaccedilatildeo dos Animais que nos permite aferir certo valor simboacutelico de

determinados animais ainda no seacutec IV aC Partindo de comparaccedilotildees com animais o

poeta produz siacutemiles que formam um quadro imediato e eficaz do heroacutei projetado pela

forccedila simboacutelica e analoacutegica que o animal evoca como termo comparativo na cultura grega

arcaica e claacutessica

PALAVRAS-CHAVES Caracterizaccedilatildeo Iliacuteada Homero siacutemiles eacutepica Aristoacuteteles

SYMBOLIC CHARACTERIZATION THROUGH SIMILES

ANIMALS IN THE ILIAD

ABSTRACT The purpose of this article is to demonstrate from some similes how Homer

produces a concise characterization of his heroes The prospect of approach in this study

is to prove the efficacy of the use of similes by the poet in accord with the work of

Aristotle Research of the Animals which allows us to assess certain symbolic value of

certain animals even in the 4th century BC Starting from the comparison with animals

the poet produces similes that form an immediate and effective framework of the hero

projected by the symbolic and analogue force that the animal evokes as a comparative

term in the archaic and classical Greek culture

KEYWORDS Characterization Iliad Homero Facsimiles Epic Aristotle

1 Sobre o siacutemile homeacuterico

Desde o lanccedilamento do livro de Milman Parry ldquoThe Making of Homeric Verserdquo

que revelou novas facetas para o estudo de Homero o siacutemile passou a ser estudado por

uma infinidade de autores Foacutermulas funccedilotildees oralidade sequecircncias de imagens dentre

outras caracteriacutesticas foram tatildeo sistematicamente investigadas nos siacutemiles que um resumo

sobre essas principais teorias produziria um material muito denso1

E-mail mcolonnellihotmailcom 1 Desde os estudos de Milman Parry duas principais linhas de estudos tecircm debatido calorosamente a

possibilidade de uma caracterizaccedilatildeo de personagens a despeito das foacutermulas e repositoacuterios de palavras

usados nos dois poemas eacutepicos de Homero Adam Parry filho de Milman em seu artigo ldquoLanguage and

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

46 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

O siacutemile grosso modo eacute uma comparaccedilatildeo entre coisas Coffey que analisou os

siacutemiles na eacutepica homeacuterica encontra dois grupos um que eacute

composto de uma palavra introdutoacuteria tal como ὡς seguida por um nome que

eacute frequentemente qualificado por um adjetivo ou um particiacutepio [] e casos

nos quais uma ou mais oraccedilotildees relativas contendo uma forma infinitiva ou

verbos flexionados estatildeo ligadas a uma oraccedilatildeo anterior de comparaccedilatildeordquo

(Coffey 1957 60) e outro ldquoo siacutemile longo que consiste em uma sentenccedila

separada introduzida por ὡς ὅτε ou palavras similaresrdquo2

Aqui as duas formas de siacutemiles nos interessam jaacute que a primeira trata de uma economia

em termos de caracterizaccedilatildeo e a segunda um desenvolvimento da situaccedilatildeo da personagem

em conflitos eacuteticos e psicoloacutegicos

Um pouco mais tarde Moulton passa a estudar os siacutemiles a partir de suas

sequecircncias ultrapassando o esquema fechado dos siacutemiles e de suas correspondecircncias

sintaacuteticas para ampliaacute-los ateacute uma anaacutelise semacircntica demonstrando unidades de sentido

maiores na sequecircncia do enredo Duas tambeacutem satildeo as formas encontradas por ele siacutemiles

pares e ainda siacutemiles sucessivos ou seja respectivamente um siacutemile direto simples

menor e outro longo com unidades maiores e liames semacircnticos

Coffey ainda apresenta algumas funccedilotildees que o siacutemile homeacuterico desempenha tais

como movimentaccedilatildeo descriccedilatildeo notaccedilatildeo temporal enumeraccedilatildeo caracterizaccedilatildeo dentre

outras funccedilotildees Especificamente no tocante agrave caracterizaccedilatildeo diversos siacutemiles apresentam

como termo comparativo animais Clarke por exemplo em seu artigo ldquoEntre Homens e

Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo pontua em contraste com teoacutericos que soacute veem o

siacutemile como uma ornamentaccedilatildeo formulaica que ldquoo simbolismo envolvendo animais

selvagens e agressivos eacute muito maior que uma questatildeo de estilo e que eles desempenham

grande papel no retrato de Homero dos problemas eacuteticos e psicoloacutegicos do heroiacutesmordquo

(Clarke 2006 p 2)

Eacute desse ponto de vista entatildeo que partimos em nossa investigaccedilatildeo ou seja

examinar em suas duas formas o potencial que os siacutemiles animais possuem na Iliacuteada

como teacutecnica de caracterizaccedilatildeo3 Eacute necessaacuterio tambeacutem antes determinar para que o

quadro de comparaccedilatildeo seja efetivo o valor simboacutelico que cada animal pode atribuir ao

seu comparante dentro da estrutura do siacutemile e soacute assim procedermos com a anaacutelise de

caracterizaccedilatildeo

2 A simbologia dos animais como elemento caracterizador

Estudar a caracterizaccedilatildeo de uma personagem sem seu caraacuteter (ἦθος) manifesto

pode parecer uma empresa arriscada Entretanto eacute possiacutevel determinar este caraacutecter

atraveacutes de analogias que deixam entrever certos estados eacuteticos e psicoloacutegicos das

personagens Eacute dessa forma que entendemos com Clark que

Characterization in Homerrdquo jaacute havia contestado boa parte dos epiacutetetos formulaicos para demonstrar certa

habilidade do poeta eacutepico em sua construccedilatildeo de caracterizaccedilatildeo No tocante aos siacutemiles M Coffey em

ldquoThe function of the Homeric Similerdquo demonstra como os siacutemiles desempenham diversas funccedilotildees dentre

elas a de caracterizaccedilatildeo e ainda mais Carroll Moulton em ldquoSimiles in the Iliadrdquo e ldquoSimile Sequencesrdquo

aponta como os siacutemiles produzem caracterizaccedilatildeo e influenciam em toda narrativa posterior para aleacutem de

uma foacutermula meramente ornamental respectivamente Importante contribuiccedilatildeo tambeacutem eacute o artigo de

Michel Clark ldquoEntre Homens e Leotildees Imagens do heroacutei na Iliacuteadardquo que aponta comportamentos eacuteticos e

psicoloacutegicos nos siacutemiles animais 2 Todas as traduccedilotildees satildeo de responsabilidade do autor Texto grego extraiacutedo das ediccedilotildees de Paul Mazon e

Balme 3 Cf Adam Parry 1972 p 1-22

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 47

Os siacutemiles animais satildeo um excelente candidato para gerar tal tipo de sistema

eles satildeo tantos e tatildeo variados nas conexotildees que forjam que seu efeito

combinado pode natildeo apenas ampliar a narrativa mas de fato assimilar

aspectos da aparecircncia das personagens e da personalidade do guerreiro ao

animal (Clark 2006 p 4)4

Um dado relevante neste universo eacutepico eacute que ldquoos animais de Homero tecircm

igualmente o mesmo aparato emocional e cognitivo que os homensrdquo (Clark 2006 11)

Na Iliacuteada poreacutem jamais encontraremos algum tipo de eacutethos (ἦθος) aplicado ao animal

mas somente o contraacuterio disso o animal conferindo eacutethos ao homem Em Homero os

animais estatildeo encobertos por uma carga simboacutelica que os determina em certos aspectos

com traccedilos bem definidos Mas como eacute possiacutevel atribuir um eacutethos ao animal Como ver

tacitamente no animal um eacutethos humano Para entendermos melhor essa relaccedilatildeo eacute

preciso recorrermos a Aristoacuteteles

Em seu tratado Investigaccedilatildeo dos Animais o filoacutesofo faz uma afirmaccedilatildeo que parece

se coadunar com o mundo homeacuterico

Haacute pois tambeacutem em muitos desses outros animais traccedilos de caracteriacutesticas

psiacutequicas que nos homens possuem diferenccedilas mais claras Assim mansidatildeo

e ferocidade doccedilura e violecircncia coragem e covardia temor e ousadia vontade

e astuacutecia estatildeo em muitos animais semelhantes aos homens tambeacutem ateacute em

inteligecircncia

῎Ενεστι γὰρ ἐν τοῖς πλείστοις καὶ τῶν ἄλλων ζῴων ἴχνη τῶν περὶ τὴν ψυχὴν

τρόπων ἅπερ ἐπὶ τῶν ἀνθρώπων ἔχει φανερωτέρας τὰς διαφοράςmiddot καὶ γὰρ

ἡμερότης καὶ ἀγριότης καὶ πραότης καὶ χαλεπότης καὶ ἀνδρία καὶ δειλία καὶ

φόβοι καὶ θάρρη καὶ θυμοὶ καὶ πανουργίαι καὶ τῆς περὶ τὴν διάνοιαν συνέσεως

ἔνεισιν ἐν πολλοῖς αὐτῶν ὁμοιότητες [] (Arist Investigaccedilotildees sobre os

animais 588 a 19-25)

Aristoacuteteles reconhece duas caracteriacutesticas psiacutequicas diferentes entre os animais e

os homens A primeira eacute de grau ou seja entre os homens uns teratildeo mais outros menos

dessas caracteriacutesticas e a mesma relaccedilatildeo entre homens e animais A segunda eacute por

analogia ou seja por certa semelhanccedila entre as caracteriacutesticas psiacutequicas dos homens

comparadas a certas manifestaccedilotildees nos animais5 Partindo dessa premissa analoacutegica

Aristoacuteteles neste tratado delineia o caraacuteter de alguns animais com base em sentimentos

humanos A analogia que faz a ponte entre essas constituiccedilotildees psiacutequicas se vale tambeacutem

do simbolismo que cada animal possuiacutea jaacute entre os gregos Este simbolismo natildeo tem um

vieacutes religioso ainda que seja necessaacuterio reconhecer essa dimensatildeo simboacutelica na cultura

grega6 mas meramente empiacuterico

Eacute nesse sentido que vamos encontrar em Aristoacuteteles a aplicaccedilatildeo do eacutethos humano

por analogia aos animais Worther tambeacutem assinala que

Aristoacuteteles define o ἦθος como uma capacidade ou potecircncia primeira e natural

possuiacuteda por todos os animais em virtude da qual eles satildeo natildeo somente capazes

4 Moulton discorda de que isso seja possiacutevel 5 Diferenccedila segundo a analogia consiste em estabelecer que a capacidade natural de um dado animal se

encontra sob uma forma diferente mas com a mesma funccedilatildeo ou uma funccedilatildeo anaacuteloga em um outro animal

Assim a arte a sabedoria ou a inteligecircncia do homem existem em outros animais mas sob a forma de

uma capacidade que natildeo faz intervir o elemento racional que pertence propriamente ao homem

(Woerther 2007 138) 6 Natildeo se nega o valor das relaccedilotildees religiosas entre homens e animais mas deve-se tambeacutem ressaltar as

relaccedilotildees sociais e poliacuteticas que esta associaccedilatildeo releva (Bodson 1994 55)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

48 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

de ser afetados por paixotildees como tambeacutem suscetiacuteveis de desenvolver graccedilas

agraves accedilotildees repetidas disposiccedilotildees habituais da alma (Woerther 2007 p 138)

A observaccedilatildeo do filoacutesofo sobre o eacutethos animal tambeacutem eacute extraiacuteda da proacutepria obra

de Homero de quem ele muitas vezes cita passagens para justificar seus escritos

bioloacutegicos o que nos leva a crer que as observaccedilotildees homeacutericas e aristoteacutelicas formam um

todo empiacuterico de observaccedilotildees a respeito da natureza em geral Desse saber empiacuterico o

valor do eacutethos animal passa a figurar como um siacutembolo que o animal possui em si

Vejamos agora como certos valores simboacutelicos dos animais confluem para uma

caracterizaccedilatildeo taacutecita em algumas passagens da Iliacuteada

3 Siacutemiles animais como elementos caracterizadores

Muitos siacutemiles animais podem ser encontrados na Iliacuteada O leatildeo eacute de longe o

animal mais citado como imagem para os heroacuteis entretanto outros animais como o cervo

ou a cabra que satildeo presas tambeacutem abundam nas comparaccedilotildees Alguns animais satildeo

empregados especificamente em algumas passagens de modo natildeo muito usual Em uma

passagem do canto VIII da Iliacuteada Aquiles eacute comparado a um golfinho natildeo soacute pelo locus

de sua caccedila mas tambeacutem por algumas reconhecidas qualidades deste animal Vejamos o

siacutemile

Em seguida o divino Aquiles deixou sua lanccedila na ribeira

Inclinada nos arbustos e mergulhou semelhante a um deus

Portando apenas uma espada e na mente meditava maus atos

E golpeou dando giros dos feridos pela arma uma gritaria elevou-se

Indecorosa enquanto tingia a aacutegua de vermelho

Tal como quando outros peixes dos golfinhos de grande ventre

Fugindo enchem os recantos de uma baiacutea fundeada

Aterrados pois tudo aquilo que consegue apanhar devora

Assim os Troianos para as correntes do terriacutevel rio

Fugiam pelas iacutengremes ribanceiras Aquiles quando cansou

Suas matildeos de matar recolheu do rio doze jovens vivos

Paga pela morte de Paacutetroclo filho de Meneacutecio

Αὐτὰρ ὃ διογενὴς δόρυ μὲν λίπεν αὐτοῦ ἐπ ὄχθῃ

κεκλιμένον μυρίκῃσιν ὃ δ ἔσθορε δαίμονι ἶσος

φάσγανον οἶον ἔχων κακὰ δὲ φρεσὶ μήδετο ἔργα

τύπτε δ ἐπιστροφάδηνmiddot τῶν δὲ στόνος ὄρνυτ ἀεικὴς

ἄορι θεινομένων ἐρυθαίνετο δ αἵματι ὕδωρ

ὡς δ ὑπὸ δελφῖνος μεγακήτεος ἰχθύες ἄλλοι

φεύγοντες πιμπλᾶσι μυχοὺς λιμένος εὐόρμου

δειδιότεςmiddot μάλα γάρ τε κατεσθίει ὅν κε λάβῃσινmiddot

ὣς Τρῶες ποταμοῖο κατὰ δεινοῖο ῥέεθρα

πτῶσσον ὑπὸ κρημνούς ὃ δ ἐπεὶ κάμε χεῖρας ἐναίρων

ζωοὺς ἐκ ποταμοῖο δυώδεκα λέξατο κούρους

ποινὴν Πατρόκλοιο Μενοιτιάδαο θανόντοςmiddot

(Il VIII 17-28)

Em suas investigaccedilotildees Aristoacuteteles nos fornece certos traccedilos do animal que

configuram seu eacutethos Assim em 631a ele afirma que ldquodentre os animais mariacutetimos

muitos sinais de doccedilura e inteligecircncia satildeo anunciados a respeito dos golfinhos assim

como tambeacutem em relaccedilatildeo aos filhos satildeo amorosos e apaixonadosrdquo (Τῶν δὲ θαλαττίων

πλεῖστα λέγεται σημεῖα περὶ τοὺς δελφῖνας πραότητος καὶ ἡμερότητος καὶ δὴ καὶ πρὸς

παῖδας ἔρωτες καὶ ἐπιθυμίαι ndash Arist 631a 8-11) Natildeo obstante esta caracteriacutestica doacutecil

do animal a sua destreza na caccedila tambeacutem eacute exaltada Em outra passagem ele acrescenta

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 49

Fala-se tambeacutem coisas incriacuteveis a respeito da rapidez do animal Parece pois

que dentre todos os animais tanto da aacutegua quanto da terra eacute o mais raacutepido e

tambeacutem saltam por cima dos mastros dos grandes navios Isso lhes acontece

sobretudo quando perseguem algum peixe graccedilas a sua necessidade alimentar

Neste momento pois se o peixe fugir perseguem-no ateacute o fundo do mar por

causa de sua fome [] E girando sobre si mesmos lanccedilam-se como uma

flecha desejando percorrer com velocidade uma grande extensatildeo para respirar

Λέγεται δὲ καὶ περὶ ταχυτῆτος ἄπιστα τοῦ ζῴουmiddot ἁπάντων γὰρ δοκεῖ εἶναι

ζῴων τάχιστον καὶ τῶν ἐνύδρων καὶ τῶν χερσαίων καὶ ὑπεράλλονται δὲ

πλοίων μεγάλων ἱστούς Μάλιστα δὲ τοῦτ αὐτοῖς συμβαίνει ὅταν διώκωσί

τινα ἰχθὺν τροφῆς χάρινmiddot τότε γάρ ἐὰν ἀποφεύγῃ συνακολουθοῦσιν εἰς βυθὸν

διὰ τὸ πεινῆν [] καὶ συστρέψαντες ἑαυτοὺς φέρονται ὥσπερ τόξευμα τῇ

ταχυτῆτι τὸ μῆκος διελθεῖν βουλόμενοι πρὸς τὴν ἀναπνοήν (Arist 631a 20-

27)

A caracteriacutestica do golfinho em sua caccedila parece iluminar o curto siacutemile em que

Aquiles toma as presas de guerra A rapidez do ataque do animal o mais raacutepido dentre

todos alude a proacutepria destreza do heroacutei que tambeacutem eacute raacutepido em seu ataque e efetivo em

sua conquista O ataque eacute motivado pela voracidade da fome do animal e o modo como

ele caccedila tambeacutem estaacute representado atraveacutes dos giros que facilmente o animal executa

Aquiles golpeia girando tal como o golfinho Se o amor filial eacute a caracteriacutestica do animal

natildeo se pode negar que o iacutempeto que move o heroacutei eacute a vinganccedila pela morte de Paacutetroclo

demonstrando a amizade que os unia A comparaccedilatildeo com o golfinho eacute salutar em diversos

aspectos mas sobretudo pela inteligecircncia e pela destreza que o animal evoca na passagem

Outro animal natildeo menos mencionado em siacutemiles do que o leatildeo eacute o catildeo de caccedila

Apesar de ser um animal domesticado sua ferocidade na caccedila eacute muito representada em

siacutemiles Aristoacuteteles nos informa a respeito deles que

A raccedila dos catildees de caccedila em Molosso natildeo diferem em nada das raccedilas de outras

localidades mas a raccedila que pastoreia junto aos rebanhos difere em porte e em

coragem contra animais selvagens E diferem em coragem e dedicaccedilatildeo

tambeacutem a raccedila dos catildees gerados do cruzamento entre os de Molosso e da

Lacocircnia

Τὸ δ ἐν τῇ Μολοττίᾳ γένος τῶν κυνῶν τὸ μὲν θηρευτικὸν οὐδὲν διαφέρει πρὸς

τὸ παρὰ τοῖς ἄλλοις τὸ δ ἀκόλουθον τοῖς προβάτοις τῷ μεγέθει καὶ τῇ ἀνδρείᾳ

τῇ πρὸς τὰ θηρία Διαφέρουσι δ οἱ ἐξ ἀμφοῖν ἀνδρείᾳ καὶ φιλοπονίᾳ οἵ τε ἐκ

τῶν ἐν τῇ Μολοττίᾳ γινομένων κυνῶν καὶ ἐκ τῶν Λακωνικῶν (Arist HA 608

a 27-33)

Duas caracteriacutesticas satildeo apontadas no animal a coragem contra animais selvagens

e a sua dedicaccedilatildeo na caccedila Eacute com esse eacutethos que Heitor eacute pintado no canto VIII da Iliacuteada

no momento em que Zeus o favorece na batalha contra os Aqueus

De novo nos Troianos o Oliacutempio excitou a coragem

E eles impeliram os Aqueus direto agrave profunda trincheira

Heitor entre os primeiros movia-se fero em sua forccedila

Como quando um dos catildees de javalis selvagens ou de leotildees

Toca sucessivamente perseguindo-os com patas ceacuteleres

As coxas ou naacutedegas e tem olhos fixos em quem se vira

Assim Heitor perseguia os Aqueus de longos cabelos

Matando sempre o mais recuado enquanto os outros fugiam

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

50 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

῍Αψ δ αὖτις Τρώεσσιν ᾿Ολύμπιος ἐν μένος ὦρσενmiddot

οἳ δ ἰθὺς τάφροιο βαθείης ὦσαν ᾿Αχαιούςmiddot

῞Εκτωρ δ ἐν πρώτοισι κίε σθένεϊ βλεμεαίνων

ὡς δ ὅτε τίς τε κύων συὸς ἀγρίου ἠὲ λέοντος

ἅπτηται κατόπισθε ποσὶν ταχέεσσι διώκων

ἰσχία τε γλουτούς τε ἑλισσόμενόν τε δοκεύει

ὣς ῞Εκτωρ ὤπαζε κάρη κομόωντας ᾿Αχαιούς

αἰὲν ἀποκτείνων τὸν ὀπίστατονmiddot οἳ δὲ φέβοντο

(Il VIII 335-343)

Na passagem acima a coragem tambeacutem encontrada no ethos animal eacute insuflada por Zeus

nos Troianos O siacutemile parece de fato retomar a qualidade deste animal em colocar em debandada

animais ferozes Entretanto a diligecircncia e a dedicaccedilatildeo do animal natildeo fica para traacutes na

representaccedilatildeo jaacute que o catildeo tem os olhos fixos nos animais que lhe satildeo superiores em porte fiacutesico

natildeo descuidando daqueles que viram O siacutemile indica sobretudo o cuidado presente no eacutethos do

animal na dispersatildeo das feras reproduzindo a imagem de heroacuteis mais fracos que inspirados pelos

deuses potildeem em debandada heroacuteis mais robustos Nesse sentido apesar da coragem eacute necessaacuteria

muita cautela na perseguiccedilatildeo para que natildeo se invertam as posiccedilotildees entre caccedila e caccedilador

Retomando a relaccedilatildeo entre os animais acima tambeacutem eacute possiacutevel perceber que o

caraacuteter dessas feras natildeo como habitualmente satildeo representadas ou seja como animais

ferozes e corajosos mas como animais que algumas vezes satildeo covardes Neste caso o

leatildeo tatildeo usado em siacutemiles de batalha para denotar violecircncia ferocidade tambeacutem possui

iacutendice de covardia Aristoacuteteles nas Investigaccedilotildees sobre os Animais observa que

Haacute duas raccedilas de Leotildees haacute uma que eacute mais roliccedila juba encaracolada e covarde

outra mais larga de juba ericcedilada e mais corajosa Fogem algumas vezes

entretanto com o rabo entre as pernas como os catildees Jaacute se viu tambeacutem um leatildeo

que estava a ponto de se lanccedilar sobre um javali e como percebeu que esse se

ouriccedilava fugiu Eacute deacutebil contra golpes em sua barriga mas suporta muitos

golpes em outra parte do corpo e tem um cabeccedila forte

Γένη δ ἐστὶ λεόντων δύοmiddot τούτων δ ἐστὶ τὸ μὲν στρογγυλώτερον καὶ

οὐλοτριχώτερον δειλότερον τὸ δὲ μακρότερον καὶ εὐθύτριχον ἀνδρειότερον

Φεύγουσι δ ἐνίοτε κατατείναντες τὴν κέρκον ὥσπερ κύνες ῎Ηδη δ ὦπται

λέων καὶ ὑῒ ἐπιτίθεσθαι μέλλων καὶ ὡς εἶδεν ἀντιφρίξαντα φεύγων ῎Εστι δὲ

πρὸς τὰς πληγὰς εἰς μὲν τὰ κοῖλα ἀσθενής κατὰ δὲ τὸ ἄλλο σῶμα δέχεται

πολλὰς καὶ κεφαλὴν ἔχει ἰσχυράν

(Arist HA 629 b 33- 639 a8)

A informaccedilatildeo que Aristoacuteteles nos traz natildeo soacute ilustra o siacutemile homeacuterico anterior

como tambeacutem demonstra que o encontro entre javalis e leotildees eram decididos por acaso

jaacute que os dois animais satildeo comumente representados na Iliacuteada como animais ferozes

Assim uma passagem pode ser lida de forma interessante quando dois grandes heroacuteis

satildeo postos frente a frente no canto VII Heitor e Aacutejax

Ambos concomitantes retirando as longas lanccedilas com as matildeos

De suacutebito se encontram parecendo leotildees apreciadores de carne

Ou selvagens javalis cuja forccedila eacute inesgotaacutevel

τὼ δ ἐκσπασσαμένω δολίχ ἔγχεα χερσὶν ἅμ ἄμφω

σύν ῥ ἔπεσον λείουσιν ἐοικότες ὠμοφάγοισιν

ἢ συσὶ κάπροισιν τῶν τε σθένος οὐκ ἀλαπαδνόν

(Il VII 255-257)

Atraveacutes desse siacutemile a passagem demonstra como forccedilas equacircnimes os dois heroacuteis

representados aiacute pela forccedila descomunal do javali e pelo apreciador de carne crua o leatildeo

Marco V C Colonnelli

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 51

O choque entre os heroacuteis no resto da passagem natildeo terminaria jaacute que chegada a noite

o combate foi interrompido pelos arautos

O leatildeo em outros siacutemiles quando confrontado por caccediladores e catildees manifesta

cautela em seus ataques Aristoacuteteles descreve o comportamento do leatildeo face a essa

adversidade

Nas caccediladas sendo observado jamais foge ou se apavora mas se por uma

multidatildeo de caccediladores eacute forccedilado a se afastar retira-se passo a passo e com a

face voltada ao inimigo girando-se de pouco em pouco se ele se encontra

entre arbustos foge rapidamente ateacute chegar em uma clareira momento em que

de novo se afasta passo a passo Em campo aberto quando eacute forccedilado a fugir

para uma clareira por uma multidatildeo corre com passos raacutepidos e natildeo pula Sua

corrida eacute contiacutenua e extensa como a do catildeo

᾿Εν δὲ ταῖς θήραις ὁρώμενος μὲν οὐδέποτε φεύγει οὐδὲ πτήσσει ἀλλ ἐὰν καὶ

διὰ πλῆθος ἀναγκασθῇ τῶν θηρευόντων ὑπαγαγεῖν βάδην ὑποχωρεῖ καὶ κατὰ

σκέλος κατὰ βραχὺ ἐπιστρεφόμενοςmiddot ἐὰν μέντοι ἐπιλάβηται δασέος φεύγει

ταχέως ἕως ἂν καταστῇ εἰς φανερόνmiddot τότε δὲ πάλιν ὑπάγει βάδην ᾿Εν δὲ τοῖς

ψιλοῖς ἐάν ποτ ἀναγκασθῇ εἰς φανερὸν διὰ τὸ πλῆθος φεύγειν τρέχει

κατατείνας καὶ οὐ πηδᾷ Τὸ δὲ δρόμημα συνεχῶς ὥσπερ κυνός ἐστι

κατατεταμένονmiddot (Arist HA 629 b 12-20)

Ainda que muito forte a simbologia do leatildeo na Iliacuteada como o animal mais

intreacutepido dos que se encontram na obra eacute interessante tambeacutem notar que em alguns

siacutemiles de fuga o proacuteprio leatildeo o siacutembolo da coragem eacute usado para representar a fuga de

alguns heroacuteis No canto XI Aacutejax recua da seguinte maneira

Zeus pai de seu trono introduziu o medo em Aacutejax

E atocircnito ele estacou aos ombros laccedilou o escudo de sete camadas

E depois de ver uma multidatildeo fugiu semelhante a uma fera

Que se volta continuamente para traacutes alternando em breves passadas

Tal quando sobre um feroz leatildeo do curral

Dos bois afugentam catildees e pastores

E eles o impedem de arrebatar o melhor dos bois

Vigilantes por toda noite mas ele desejoso de carne

Avanccedila com zelo mas nada encontra pois dardos

Numerosos voam de corajosas matildeos em sua direccedilatildeo

E tochas acesas que teme ainda que sedento

E ao amanhecer retira-se com acircnimo aflito

Assim Aacutejax dos Troianos com o coraccedilatildeo inquieto

Afasta-se muito contrariado pois temia pelas naus dos Aqueus

Ζεὺς δὲ πατὴρ Αἴανθ ὑψίζυγος ἐν φόβον ὦρσεmiddot

στῆ δὲ ταφών ὄπιθεν δὲ σάκος βάλεν ἑπταβόειον

τρέσσε δὲ παπτήνας ἐφ ὁμίλου θηρὶ ἐοικὼς

ἐντροπαλιζόμενος ὀλίγον γόνυ γουνὸς ἀμείβων

ὡς δ αἴθωνα λέοντα βοῶν ἀπὸ μεσσαύλοιο

ἐσσεύαντο κύνες τε καὶ ἀνέρες ἀγροιῶται

οἵ τέ μιν οὐκ εἰῶσι βοῶν ἐκ πῖαρ ἑλέσθαι

πάννυχοι ἐγρήσσοντεςmiddot ὃ δὲ κρειῶν ἐρατίζων

ἰθύει ἀλλ οὔ τι πρήσσειmiddot θαμέες γὰρ ἄκοντες

ἀντίον ἀΐσσουσι θρασειάων ἀπὸ χειρῶν

καιόμεναί τε δεταί τάς τε τρεῖ ἐσσύμενός περmiddot

ἠῶθεν δ ἀπὸ νόσφιν ἔβη τετιηότι θυμῷmiddot

ὣς Αἴας τότ ἀπὸ Τρώων τετιημένος ἦτορ

ἤϊε πόλλ ἀέκωνmiddot περὶ γὰρ δίε νηυσὶν ᾿Αχαιῶν

(Il XI 544-557)

Caracterizaccedilatildeo simboacutelica atraveacutes de siacutemiles animais na Iliacuteada

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Diferente dos outros siacutemiles esse mais longo natildeo soacute caracteriza o recuo do heroacutei

em termos de movimentaccedilatildeo e comportamento mas tambeacutem em termos de iacutendices

psicoloacutegicos que abundam no siacutemile O leatildeo aqui ainda eacute visto como um animal corajoso

feroz sedento por carne em suma em sua simbologia completa Entretanto como a

situaccedilatildeo eacute de fuga e caacutelculo o comportamento animal descrito por Aristoacuteteles representa

bem a maneira como Aacutejax se encontra tanto em termos psicoloacutegicos quanto em situaccedilatildeo

Aacutejax recua foge mas sem a pressa dos covardes sua fuga eacute bem descrita pelo

comportamento do leatildeo que recua lentamente sempre se voltando para traacutes Ademais o

nuacutemero de inimigos na liccedila e os dardos em sua direccedilatildeo o forccedilam ao recuo

Quanto ao plano psicoloacutegico Aacutejax que em sua caracterizaccedilatildeo eacute visto sempre como

voluntarioso e corajoso torna-se temeroso por uma intervenccedilatildeo divina E o conflito

gerado por essas disposiccedilotildees psicoloacutegicas eacute bem expresso pelo comportamento calculado

do recuo do leatildeo Neste afastamento tanto o heroacutei quanto o leatildeo estatildeo com acircnimo aflito

e inquieto e por uacuteltimo Aacutejax deixa o campo de modo involuntaacuterio

A caracterizaccedilatildeo neste siacutemile eacute completa Ela cobre tanto a perspectiva de um

desenvolvimento da accedilatildeo quanto o conflito psicoloacutegico que ocorre com o heroacutei Natildeo se

trata aqui de um siacutemile curto em que teriacuteamos de projetar o comportamento animal para

a compreensatildeo da passagem mas de um siacutemile longo em que o desenvolvimento do

comportamento animal eacute tatildeo magistralmente descrito que podemos consideraacute-lo sem

exageros como o proacuteprio iniacutecio de toda ciecircncia empiacuterica encontrada quase quatro seacuteculos

depois em Aristoacuteteles

3 Conclusatildeo

O uso do siacutemile em Homero eacute extremamente complexo Aleacutem dos siacutemiles naturais

produzidos com as potecircncias da natureza haacute tambeacutem os siacutemiles animais que se tornam

muito impactantes sobretudo porque revelam natildeo soacute facetas de movimentaccedilatildeo mas

tambeacutem de caraacuteter que o animal comporta O mundo natural eacute usado por Homero com

maestria a ponto de produzir situaccedilotildees nos combates em que grande parte do que eacute

descrito jaacute eacute bem conhecido pela audiecircncia em contato com o mundo natural circundante

Hoje talvez para reconhecer a forccedila de seus siacutemiles nos seja preciso talvez aleacutem do

conhecimento do mundo arcaico grego um bom entendimento sobre a vida natural sem

o qual a complexidade das cenas na Iliacuteada pareceraacute meramente fantasiosas

REFEREcircNCIAS

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Clarendon Press 1910

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54 Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326

DOI httpsdoiorg1012957principia201946513

OS PROFISSIONAIS DO SOBRENATURAL

MAacuteGOS GOacuteES E PHARMAKEUacuteS

Dulcileide V do Nascimento Braga (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO O presente artigo objetiva ao pressupor que as accedilotildees maacutegicas constituem

praacuteticas passiacuteveis de aprendizado apresentar a anaacutelise da estrutura vocabular dos termos

que classificam os profissionais da magia Busca-se tambeacutem a partir da tradiccedilatildeo miacutetico-

literaacuteria grega demonstrar que tais profissionais tecircm uma praacutetica registrada em diversos

periacuteodos da literatura grega e influenciaram accedilotildees que extrapolam o vieacutes temporal

PALAVRAS-CHAVE Teacutechne maacutegica Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

THE SUPERNATURAL PROFESSIONALS

MAacuteGOS GOacuteES AND PHARMAKEUacuteS

ABSTRACT This article aims assuming that magical actions constitute practices that can

be learned to present the analysis of the vocabulary structure of the terms that classify

magic professionals It is also sought from the greek mythical-literary tradition to

demonstrate that these professionals have a practice recorded in several periods of greek

literature and influenced actions that go beyond the temporal bias

KEYWORDS Teacutechne magic Maacutegos Goacutees Pharmakeuacutes

Magia do grego mageiacutea segundo Tupet (1976 p X) eacute a praacutetica exercida atraveacutes

de palavras e gestos por um indiviacuteduo que deteacutem certos conhecimentos que o capacitam

a produzir resultados de toda ordem George Luck (1995 p 35) precisa essa definiccedilatildeo ao

afirmar que a magia eacute uma teacutecnica cuja crenccedila se baseia nos poderes localizados na alma

humana e no universo e que pretende impor a vontade humana sobre a natureza ou sobre

os seres humanos

Platatildeo em Leis XI 932e-933b jaacute enumera os principais procedimentos maacutegicos

no seacutec IV aC e a difiacutecil tarefa de analisar essa teacutecnica

Quanto aos malefiacutecios que uns podem causar aos outros por meio de drogas

(pharmaacutekois) jaacute tratamos dos de consequecircncias letais mas ainda natildeo falamos

dos incocircmodos provocados intencionalmente e com premeditaccedilatildeo por meio de

bebidas e alimentos ou com unguentos O difiacutecil na presente exposiccedilatildeo eacute que

haacute no gecircnero humano duas espeacutecies de envenenamento uma eacute a que acabamos

de nos referir e que consiste em causar dano ao corpo pela accedilatildeo natural de

outros corpos a outra por meio de sortileacutegios (magganeiacuteais) encantamentos

(epoidaicircs) e o que se denomina ligadura (katadeacutesesi) chega a persuadir aos

E-mail dulcinascimentobragagmailcom

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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que querem causar danos a terceiros que o conseguiratildeo com tal recurso como

tambeacutem convence a estes uacuteltimos que ningueacutem lhes pode ocasionar tanto mal

como as pessoas conhecedoras de artes maacutegicas O que possa haver de

verdadeiro em tudo isso natildeo eacute faacutecil conhecer nem depois de sabido deixar

aceitaacutevel para ningueacutem dada a desconfianccedila reinante nos espiacuteritos a respeito

de tais assuntos natildeo vale a pena procurar convencecirc-los sempre que

encontrarem na porta de casa bonequinhos de cera ou em encruzilhadas ou

talvez mesmo sobre a sepultura de seus antepassados de que natildeo devem dar a

menor importacircncia a essas praacuteticas pois acerca de tudo isto ningueacutem tecircm

opiniatildeo formada

Eacute relevante destacar que o conceito de pharmakeiacutea utilizado por Platatildeo natildeo se

restringe exclusivamente ao uso de um phaacutermakon (bebidas alimentos ou unguentos)

mas se prolonga atraveacutes de sortileacutegios encantamentos e ligaduras

Platatildeo ainda questiona a eficaacutecia dessas profissionais de magia cujas habilidades

eram difiacuteceis de se averiguar analisar ou compreender sendo a profissional julgada pela

eficiecircncia ou pelos danos causados por sua praacutetica

O fato de atribuir aos praticantes de magia um caraacuteter perigoso por conta do saber

que detinham e a necessidade de que essas praacuteticas fossem controladas por leis remetem-

nos aos diversos processos de impiedade sofridos por mulheres praticantes das teacutechnai

maacutegicas Dentre elas destacamos o nome de trecircs mulheres a hetaira Frinea de Thespis

que foi acusada pelo seu amante Euthias de utilizar lugares sagrados para a praacutetica de

atos iliacutecitos e por ter formado um thiacuteasos1 sem a autorizaccedilatildeo legal dos atenienses a

sacerdotisa Teoris de Lemos acusada de produzir phaacutermaka para curar a epilepsia e

ainda temos o processo sofrido pela sacerdotisa Ninos baseado nas mesmas acusaccedilotildees

direcionadas agraves duas mulheres citadas anteriormente

Tais atitudes eram consideradas desvios agrave ordem instituiacuteda pela poacutelis que

determinava que qualquer accedilatildeo envolvendo contato direto com uma divindade ou com os

mortos requereria a presenccedila de um sacerdote instituiacutedo pela cidade e responsaacutevel por

impedir qualquer praacutetica que pudesse contaminaacute-la de alguma maneira

Maria Regina Candido (2003 p 169) informa-nos sobre as praacuteticas dessas

mulheres

Acreditamos que Teoris de Lemos assim como Frinea de Thespis difundiam

a crenccedila na possibilidade de o homem efetuar de maneira direta a sua relaccedilatildeo

com as potecircncias sobrenaturais e controlar os processos mais complicados que

envolvem a vida como doenccedilas inimizades e maacute sorte de maneira eficaz e

segura Receitavam banhos infusotildees com ervas e oferendas agraves divindades

ctocircnicas estimulavam os praticantes a fazer incursotildees pelo mundo de seres

sobrenaturais como os mortos O mundo dos homens deixava de atender agraves

necessidades do cotidiano e a alternativa era solicitar auxiacutelio das potecircncias

sobrenaturais

Assim como Platatildeo Candido acredita que a puniccedilatildeo relacionada a estas praacuteticas e

a seus praticantes esteja baseada no resultado advindo das mesmas que nem sempre

acarretava proveito agravequele que solicitava um benefiacutecio maacutegico Portanto por temer a

extensatildeo do poder dessas praacuteticas os atenienses puniam seus praticantes na maioria dos

casos mulheres estrangeiras como uma forma de se precaverem

Tambeacutem salientamos que apesar de a praacutetica maacutegica ser em determinadas

circunstacircncias apontada como uma atividade marginal ou uma forma de corromper a

religiatildeo poliacuteade como mencionamos anteriormente os praticantes destas teacutechnai

1 Palavra utilizada para designar um grupo de pessoas que celebram um deus normalmente com festas

cantos e banquetes

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detinham um conhecimento e um poder cuja eficaacutecia seria sustentada por uma crenccedila

coletiva e por uma dependecircncia de uma ordem moral que buscava a autoproteccedilatildeo fato

que garantia a continuidade das diversas formas de magia em todas as classes da

sociedade helecircnica como afirma o texto de Luck (1995 p 42)

Pode a magia antiga se basear em ideias ldquoprimitivasrdquo mas a forma em que nos

foi transmitida natildeo era de nenhum modo primitiva Pelo contraacuterio a magia

nesse sentido existiu somente dentro de culturas altamente desenvolvidas e

constituiu uma parte importante delas Natildeo soacute as classes baixas os ignorantes

e incultos criam nela mas ateacute o final da Antiguidade os ldquointelectuaisrdquo

estiveram convencidos de que poderosas forccedilas sobrenaturais atuavam em

torno deles podendo ser controladas por certos meios

Em grego destacamos trecircs termos para designar os detentores das artes maacutegicas

maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

O nome mais comumente utilizado para designar a feiticeira eacute maacutegos cognato de

mageiacutea magia Segundo Pierre Chantraine (1984 v maacutegos) esta palavra constitui um

empreacutestimo iraniano e no plural maacutegoi designa uma das tribos dos Medos como narra

Herocircdoto I 101 ldquoDeioces unificou a naccedilatildeo dos Medos governando-a A Meacutedia era

composta de diferentes povos os Busos Paretacenos Estrucatos Arizantos Budios e os

Magosrdquo

Segundo ainda o relato de Heroacutedoto haacute entre os maacutegoi aqueles que tecircm a funccedilatildeo

de ser ldquointeacuterpretes de sonhosrdquo Podemos verificar esta atribuiccedilatildeo dos magos em Histoacuteria

I 107 Astiacuteages apoacutes ter um sonho solicitou aos magos inteacuterpretes de sonhos que

revelassem o seu significado em I 120 Astiacuteages para decidir a sorte de Ciro mandou

chamar os mesmos magos que anteriormente tinham interpretado o seu sonho em I 128

vemos isso quando Astiacuteages manda empalar os magos inteacuterpretes dos sonhos que o

haviam convencido a deixar Ciro partir No livro VII 37 haacute uma passagem que ratifica a

funccedilatildeo de inteacuterprete dos sonhos aos magos Nela Xerxes apoacutes ver um eclipse solar

acreditando ser um mau pressaacutegio pede aos seus magos que interpretem o fenocircmeno

Segundo Graf (1994 p 30) aleacutem de serem inteacuterpretes dos sonhos os maacutegoi seriam os

responsaacuteveis pelos sacrifiacutecios reais pelos ritos funeraacuterios e pela adivinhaccedilatildeo

O termo maacutegos parece ter adquirido com o advento da filosofia conotaccedilatildeo

negativa sendo entatildeo utilizado para estigmatizar opiniotildees e comportamentos

considerados socialmente desviados a julgar por Heraacuteclito frag 14 que associa maacutegoi

aos ldquovagabundos da noite bacantes mecircnades e aos mistosrdquo e acredita serem esses homens

merecedores de morte posto que praticam accedilotildees iacutempias Graf (1994 32) discute se esta

caracterizaccedilatildeo de Heraacuteclito reproduziria a atuaccedilatildeo dos maacutegoi pois se ela corresponder agrave

realidade este termo semanticamente poderaacute ganhar a conotaccedilatildeo dos termos aguacutertes e

maacutentis pedinte e adivinho utilizados por Platatildeo na Repuacuteblica II-364b ou ser

interpretada a partir da expressatildeo utilizada no papiro de Derveni profissional dos ritos

Com base nesta definiccedilatildeo poderiacuteamos afirmar que Heraacuteclito ao utilizar a expressatildeo

ldquovagabundos da noiterdquo estaria dizendo que os maacutegoi seriam especialistas de toda uma

seacuterie de ritos privados e secretos como nos afirma o proacuteprio Graf (1994 p 33) ldquoPara um

jocircnico do fim do periacuteodo arcaico o maacutegos era semelhante aos especialistas itinerantes

dos cultos privados homens agrave margem da sociedade ridicularizados por uns e

secretamente temidos por outrosrdquo

Outro termo utilizado para nomear o praticante da magia eacute goeacutes termo cognato

do verbo goaacuteo gemer lamentar-se e que inicialmente designava um cantor que proferia

um lamento ritual pelos mortos ou seja o goeacutes eacute aquele que ldquocombina o ecircxtase com um

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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lamento ritual e a cura ritual com a adivinhaccedilatildeordquo (GRAF 1994 p 35) e que manteacutem

uma relaccedilatildeo estreita com o mundo dos mortos

Formadas a partir da mesma raiz encontramos as palavras goeteiacutea magia assim

como goeacuteteuma procedimento maacutegico fascinaccedilatildeo Heroacutedoto (II 33) ao narrar a histoacuteria

de Etearco o amocircnio aplica o termo goacuteetes para informar-nos sobre a crenccedila por parte

dos nasamones de que os habitantes de uma cidade em que entraram eram feiticeiros e

em IV 105 discorre sobre os relatos que afirmam que todos os Neuros eram goeacutetes

Encontramos ainda o termo goacutees associado a epoidos cantor aquele que canta

palavras maacutegicas para curar por exemplo em Euriacutepides As Bacantes 234-235 em que

encontramos os dois termos na fala de Penteu para fazer referecircncia ao estrangeiro que

estaacute propagando o culto a Dioniso ldquoDizem que veio um forasteiro feiticeiro cantor (goacutees

epoidoacutes) da terra da Iacutediardquo

Em Platatildeo Leis 903b quando a personagem chamada Ateniense ao mencionar

que iraacute convencer algueacutem por meio de argumentos diz ldquoMas ainda precisamos

acrescentar algumas histoacuterias a fim de imobilizaacute-lo com o encantamento (epoidocircn) que

lhes eacute proacutepriordquo E da mesma maneira eacute associado a maacutegos no Elogio agrave Helena de

Goacutergias ao evocar o poder da arte goeacutetica que encanta persuade e transforma Essas

teacutecnicas associadas agrave magia segundo o sofista seriam teacutecnicas do engano pois

desvirtuariam a alma e a opiniatildeo com falsas ilusotildees Desse modo Goacutergias defende Helena

dizendo que ela foi viacutetima da persuasatildeo maacutegica de Paacuteris contra a qual natildeo haveria defesa

O terceiro nome eacute pharmakeuacutes ou pharmakoacutes e designa um preparador de drogas

feiticeiro ou por ser cognato de pharmakeuacuteo significa simplesmente aquele que daacute um

remeacutedio ou veneno a algueacutem ou aquele que realiza uma operaccedilatildeo maacutegica Haacute ainda o

termo pharmakiacutes -idos atribuiacutedo agrave mulher que prepara poccedilotildees ou agrave feiticeira Aristoacutefanes

em As Nuvens 749 utiliza esta palavra como qualificativo para a mulher A expressatildeo

gunaicircka pharmakiacuteda encontrada em Aristoacutefanes refere-se a uma feiticeira da Tessaacutelia

que fazia a lua baixar agrave noite prendendo-a em um espelho

Cabe-nos contudo falar um pouco mais da magia das palavras ou do

encantamento Como jaacute mencionamos o termo goeacutes tem sua funccedilatildeo e significado

associado ao termo epoideacute que revela a natureza maacutegica do emprego da palavra e traz em

sua composiccedilatildeo o termo aoideacute canto que por sua vez estaacute relacionado com o termo audeacute

voz humana O grego distingue a linguagem humana audeacute do termo phoneacute que tanto

pode representar a linguagem humana como o som produzido por um animal

Pierre Chantraine (v aeidocirc) assinala que o prefixo epi- destaca o valor maacutegico do

canto assim epoideacute significa ldquocanto ou palavra maacutegicardquo

Eacute notoacuterio entretanto que o canto faz parte da cultura grega seja atraveacutes do maior

aedo de todos os tempos Homero atraveacutes do teatro da vida privada ou da puacuteblica O que

diferencia portanto essas utilizaccedilotildees da arte maacutegica das goeteacutes A diferenccedila estaacute na

estrutura destes encantamentos na tonalidade com que as palavras eram pronunciadas na

junccedilatildeo de siacutelabas estranhas apresentadas como verdadeiras foacutermulas maacutegicas bem como

aos poderes e divindades invocadas Tal estrutura eacute apresentada no seguinte fragmento

ldquoFebo o que auxilia na adivinhaccedilatildeo vem contente filho de Leto arqueiro infaliacutevel

protetor do mal venha aqui neste momento Vem Vaticinador daacute-me teus oraacuteculos

durante a noite allala allala santalala talalardquo (PGM II)

As foacutermulas maacutegicas do ponto de vista formal portanto tinham uma estrutura

preacute-estabelecida (pronunciada e realizadas de uma determinada maneira) que consistem

em uma seacuterie de instruccedilotildees que foram transmitidas atraveacutes do processo de iniciaccedilatildeo Esse

processo de aprendizado pode ser no acircmbito familiar ou em lugares considerados

sagrados

Dulcileide V do Nascimento Braga

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Temos diversos registros de foacutermulas maacutegicas algumas por exemplo

denominadas eroacuteticas objetivam a realizaccedilatildeo do desejo de um solicitante e tecircm

basicamente a mesma estrutura Como exemplo cito o PGM IV 3

Que fulana me ame a mim fulano filho de cicrano que ela natildeo tenha relaccedilotildees

sexuais nem por frente nem por traacutes nem busque prazer com outro homem

somente comigo de modo que fulana natildeo possa beber nem comer nem amar

nem sofrer nem ter sauacutede que natildeo consiga dormir sem mim arrasta a fulana

pelos cabelos as entranhas sua alma em cada momento de sua vida ateacute que

venha ateacute mim e permaneccedila inseparavelmente unida a mim

Neste encantamento se invoca o espiacuterito de um morto ou de uma divindade

normalmente Tiacutefon Selene ou Heacutecate mas quando se trata de magia eroacutetica se invoca

especialmente a deusa Afrodite e seu filho Eros Essas praacuteticas satildeo acompanhadas de um

gesto do solicitante como por exemplo um suspiro diante da mulher desejada um beijo

na lacircmina que conteacutem o pedido ou a simples repeticcedilatildeo do nome de Afrodite

Teoacutecrito no Idiacutelio 2 com 166 versos demonstra-nos como essas foacutermulas eram

utilizadas ao narrar a histoacuteria de como Simeta executa um ritual maacutegico com o intuito de

reconquistar o amor de Deacutelfis um jovem atleta que a trocou por um novo amor Eis alguns

versos do poema

Trecircs vezes faccedilo uma libaccedilatildeo e trecircs vezes Soberana

Pronuncio estas palavras quer seja mulher quer seja homem

Que com ele dorme agora que um tatildeo grande esquecimento invada

Deacutelfis como aquele que ndash ao que dizem ndash fez Teseu esquecer um

Dia Ariadne de belas tranccedilas (43-47)

Essa ldquoteacutecnicardquo das palavras tambeacutem faz parte da tradiccedilatildeo de uma literatura meacutedica

pois aleacutem de apresentar vaacuterios deuses responsaacuteveis pela cura tinha um deus especiacutefico

para a medicina Ascleacutepio e um lugar de cura Epidauro Ascleacutepio tinha um poder de cura

muito grande acreditava-se que ele inclusive podia ressuscitar os mortos O filho de

Apolo curava a uns com as doces palavras da magia (contos poemas e muacutesica) a outros

oferecia poccedilotildees eficazes ou lhes aplicava ervas em torno de seus membros ou cortava o

mal com o ferro para devolver-lhes a sauacutede

A tradiccedilatildeo meacutedica incluiacutea uma mistura de curas que podiam genuinamente ser

observadas e uma medicina popular considerada maacutegica Uma parte dos que exerciam a

medicina maacutegica eram mulheres embora a maioria delas trabalhasse como parteiras

Os templos de Ascleacutepio foram encontrados em todo o mundo mediterracircneo

Nesses templos o processo de cura consistia mais em repouso massagem e uma dieta

modificada do que aquilo que poderiacuteamos chamar de medicina Um meacutetodo de cura que

se tornou conhecido foi a ldquoincubaccedilatildeordquo em que o doente dormia confinado no templo de

Ascleacutepio na esperanccedila de receber uma revelaccedilatildeo daquele deus por meio de sonho

Aqueles que haviam sido curados faziam contribuiccedilotildees especiais para os templos que

frequentemente incluiacuteam reproduccedilotildees de gesso de quaisquer partes de seus corpos que

tivessem sido curadas Estes eram colocados em exibiccedilatildeo como testemunhos do poder de

cura do deus

Um relato que corroborou esse processo foi o de Eacutelio Aristides orador e tambeacutem

um portador de doenccedila crocircnica que no seacuteculo da nossa era em seus Hieroigrave Loacutegoi nos daacute

uma visatildeo da necessidade que as pessoas tinham pela cura bem como os meacutetodos

empregados para esse fim Depois tentar vaacuterios procedimentos meacutedicos Aristides tornou-

se um devoto de Ascleacutepio As curas prescritas para ele nos sonhos incluiacuteam accedilotildees como

banhar-se em um rio agitado durante o inverno derramar lama em si mesmo antes de se

Os profissionais do sobrenatural maacutegos goacutees e pharmakeuacutes

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assentar no paacutetio do templo andar sem sapatos todo o inverno e fazer sangria de vaacuterias

partes do seu corpo

A teacutecnica maacutegica portanto ao longo da histoacuteria foi um recurso utilizado como

tentativa de controlar o mundo natural atraveacutes de forccedilas consideradas sobrenaturais Essa

teacutecnica era ensinada somente aos iniciados e envolviam a arte da adivinhaccedilatildeo o preparo

de feiticcedilos e poccedilotildees a realizaccedilatildeo de rituais e cerimocircnias bem como a maneira correta de

se invocar deuses e espiacuteritos Quando realizados dentro dos templos tais procedimentos

eram considerados parte da religiatildeo Quando realizados fora eram classificado como

magia

A ideia de inferioridade feminina que perpassa toda a histoacuteria natildeo tem registro de

quando comeccedilou Desde a Antiguidade temos concepccedilotildees como a de Pitaacutegoras que

relacionava a mulher ao lado negativo ao dizer que ldquoHaacute um princiacutepio bom que criou a

ordem a luz e o homem e um princiacutepio mau que criou o caos as trevas e a mulherrdquo

(PITAacuteGORAS apud BEAUVOIR 1997 p 6)

Os elos que ligaram a imagem da mulher ao obscuro ao caos e ao infortuacutenio

masculino foram delineados e reforccedilados por figuras arquetiacutepicas como Pandora Lilith

e a proacutepria Eva Da mesma maneira as goeteacutes foram chamadas de charlatatildees quando natildeo

obtinham o resultado desejado ao evocarem os deuses e tentarem por teacutecnicas diversas

atender agrave solicitaccedilatildeo de algueacutem que recorria agraves praacuteticas maacutegicas para resolver problemas

particulares Essas solicitaccedilotildees normalmente envolviam uma accedilatildeo que prejudicaria

algueacutem fato que serviu para atenuar a fama negativa das goeteacutes

Ainda hoje encontramos aspectos desse tipo de comportamento maacutegico presentes

nos procedimentos considerados maacutegico-religiosos ou na proacutepria literatura ficcional que

demonstram a forccedila da seleccedilatildeo vocabular e da sonoridade provocada pela repeticcedilatildeo de

palavras e desejos com o uacutenico objetivo de concretizar desejos nem sempre passiacuteveis de

serem expressos em outras circunstacircncias Este eacute o caso da poesia citada abaixo

A VOLTA DA MULHER MORENA Vinicius de Moraes

Meus amigos meus irmatildeos cegai os olhos da mulher morena

Que os olhos da mulher morena estatildeo me envolvendo

E estatildeo me despertando de noite Meus amigos meus irmatildeos cortai os laacutebios

da mulher morena Eles satildeo maduros e uacutemidos e inquietos

E sabem tirar a voluacutepia de todos os frios

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes que amais a poesia da minha alma

Cortai os peitos da mulher morena

Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono

E trazem cores tristes para os meus olhos

Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes

Traze-me para o contato casto de tuas vestes

Salva-me dos braccedilos da mulher morena

Eles satildeo lassos ficam estendidos imoacuteveis ao longo de mim

Satildeo como raiacutezes recendendo resina fresca

Satildeo como dois silecircncios que me paralisam

Aventureira do Rio da Vida compra o meu corpo da mulher morena

Livra-me do seu ventre como a campina matinal

Livra-me do seu dorso como a aacutegua escorrendo fria

Branca avozinha dos caminhos reza para ir embora a mulher morena

Reza para murcharem as pernas da mulher morena

Reza para a velhice roer dentro da mulher morena

Que a mulher morena estaacute encurvando os meus ombros

E estaacute trazendo tosse maacute para o meu peito

Meus amigos meus irmatildeos e voacutes todos que guardais ainda meus uacuteltimos

cantos

Dai morte cruel agrave mulher morena

Dulcileide V do Nascimento Braga

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 61

O texto de Viniacutecius dialoga com o texto de Platatildeo citado anteriormente em que

faz menccedilatildeo agraves bonequinhas de cera utilizadas para fazer magia A finalidade dessas

bonecas conhecidas posteriormente por bonecas de vodu era gradativamente extinguir

a funcionalidade de determinados oacutergatildeos (cegar calar impedir de andar roer por dentro)

ateacute provocar a morte ldquodaiacute morte cruel agrave mulher morenardquo

O princiacutepio ldquose natildeo eacute meu natildeo seraacute de mais ningueacutemrdquo estaacute impliacutecito em inuacutemeros

encantamentos contidos nos PGM e representa natildeo soacute o desejo daquelea que foi

abandonadoa de se vingar de quem oa abandonou como tambeacutem o desejo de se livrar

daquelea que emocionalmente lhe causa mal

A voz humana eacute portanto o instrumento que potencializa a forccedila do pensamento

concretizando-os atraveacutes das palavras

Portanto a palavra quer cantada pronunciada em forma de versos ou balbuciada

em forma de encantamentos ou foacutermulas invocatoacuterias faz parte do universo sonoro grego

como forma de perpetuar segredos e manifestar um poder

Ainda hoje tentamos aprender sobre esta teacutechne que capacitava o indiviacuteduo a

concretizar desejos entretanto esbarramos nas lacunas temporais miacuteticas e religiosas

cujas entrelinhas foram desfeitas com o passar dos anos e que intencionalmente ou natildeo

desabilitaram a humanidade a obter o desejado com a mesma constacircncia com que eram

obtidas no passado

Os ritos religiosos continuam a utilizar a magia das palavras mas algumas

palavras tornaram-se impronunciaacuteveis e permanecem trancafiadas nas prisotildees silenciosas

do descaso cabe portanto a noacutes pronunciaacute-las ou natildeo reconhecendo a influecircncia que os

profissionais da magia tiveram e tecircm nas accedilotildees atemporais denominadas sobrenaturais

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DOI httpsdoiorg1012957principia201946515

A AGOGEacute ESPARTANA

Luciene de Lima Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro)

RESUMO Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem O

desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo deviam ter

medo de nada sendo resistentes aos ferimentos odiando qualquer demonstraccedilatildeo de

covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Cada espartano tinha de ser um soldado

perfeito e sua maior gloacuteria era morrer em batalha retornar derrotado jamais Desse modo

toda a sociedade e educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases

atribuiacutedas agraves matildees espartanas era ldquoespero que meu filho volte com o seu escudo ou

deitado sobre elerdquo Assim eacute que este artigo tem por escopo discorrer a respeito da agogeacute

espartana que era um tipo de educaccedilatildeo peculiar com fins extremamente belicosos

PALAVRAS-CHAVE Esparta agogeacute guerra Licurgo

THE SPARTAN AGOGEacute

ABSTRACT In Sparta courage was part of the formation of a manrsquos character The

development of courage was a Spartan obsession Spartans should not be afraid of

anything showing themselves resistant to wounds They hated any type of cowardice and

were extremely dedicated to the poacutelis Each Spartan male had to be a perfect soldier and

the ultimate glory was to die in battle to never come back defeated Given this Spartan

society and education was focused on war One famous sentence related to Spartan

mothers was ldquoI hope my son comes back with his shield - or on itrdquo Thus this article has

as its scope the discussion of the practices of Spartan agogeacute their very peculiar

education with extremely bellicose objectives

KEYWORDS Sparta agogeacute war Lycurgus

Esparta tem de pleno direito um lugar na histoacuteria da educaccedilatildeo A

criaccedilatildeo mais caracteriacutestica de Esparta eacute o seu estado e o Estado

representa aqui pela primeira vez uma forccedila educadora no mais vasto

sentido da palavra (Werner Jaeger)

E-mail oliveira-lluolcombr

A agogeacute espartana

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Esparta tambeacutem intitulada Lacedemocircnia era a principal cidade de uma regiatildeo

denominada Lacocircnia na regiatildeo do Peloponeso A cidade localizava-se agraves margens do rio

Eurotas cercada de montanhas a nordeste

Os primeiros invasores da regiatildeo foram os aqueus esses expulsaram os povos preacute-

helecircnicos que ali habitavam e fundaram a cidade de Lacedemocircnia

A migraccedilatildeo doacuterica eacute o uacuteltimo dos movimentos de povos possivelmente

originaacuterios da Europa Central que a partir da Peniacutensula Balcacircnica entraram na Greacutecia e

se misturaram com os povos de outras raccedilas mediterracircneas ali fixadas primitivamente

constituindo assim o povo helecircnico

Os doacuterios ao se apoderarem da maior parte do Peloponeso invadiram Creta e

foram os responsaacuteveis pela colonizaccedilatildeo de algumas ilhas Ciclaacutedicas e Espoacuteradas Os

espartanos satildeo considerados descendentes dos doacuterios1 esses tinham por caracteriacutestica

peculiar a belicosidade

A cidade de Esparta era conhecida por usufruir de uma eunomiacutea ldquouma boa

legislaccedilatildeordquo De acordo com a tradiccedilatildeo Licurgo apoacutes consultar o oraacuteculo de Delfos2 teria

dado agrave Esparta leis para a vida social e econocircmica citem-se por exemplo a proibiccedilatildeo do

comeacutercio e a utilizaccedilatildeo de metais preciosos que foram substituiacutedos por moedas de ferro

instituiu uma educaccedilatildeo rigorosa as refeiccedilotildees coletivas regulamentaccedilatildeo do casamento a

maneira de viver etc

Os espartanos eram considerados xenofoacutebicos Plutarco escreve que eles natildeo

tinham permissatildeo para sair da cidade pois poderiam trazer costumes estranhos e

desordenados para dentro da cidade Os estrangeiros que residiam em Esparta foram

expulsos com exceccedilatildeo daqueles que faziam algo de uacutetil para a cidade Aleacutem do mais natildeo

comercializavam com o estrangeiro nenhum navio de fora entrava no porto para ali

comercializar (PLUTARCO Licurgo XIV LVII In Vidas Paralelas)

Ora foi o historiador Heroacutedoto o primeiro a retratar Licurgo como o idealizador

da eunomiacutea se dedicando ldquoagraves coisas relacionadas com a guerrardquo (HERODOTO Histoacuteria

I) Na Antiguidade jaacute havia duacutevidas sobre a sua eacutepoca e ateacute mesmo sua existecircncia

Os espartanos ndash ao contraacuterio de outros grupos ndash natildeo desenvolveram relaccedilotildees

culturais e comerciais externas sua crescente populaccedilatildeo soacute encontrou um meio de

expandir-se pelas armas

Xenofonte inclusive indaga como Esparta uma das cidades menos povoadas

tornou-se a mais poderosa e famosa dentre toda a Heacutelade (JENOFONTE La Republica

de los Lacedemonios I 1-2)

O vocaacutebulo que os espartanos empregavam para designar ldquoeducaccedilatildeordquo era agogeacute

que proveacutem do verbo aacutego ldquotransporto conduzordquo Os filoacutesofos Platatildeo (PLATAtildeO Leis

1 O helenista Jaeger faz a seguinte ponderaccedilatildeo a respeito dos doacuterios ldquoa raccedila doacuterica ofereceu a Piacutendaro o

seu ideal de homem loiro de alta estirpe tal como era representado natildeo soacute o Menelau de Homero como

tambeacutem o heroacutei Aquiles e de um modo geral os ldquohelenos de loira cabeleirardquo da antiguidade heroica

(JAEGER 2001 p 111) 2 Esparta pelo vieacutes poliacutetico constituiacutea uma diarquia hereditaacuteria real Acredita-se que Licurgo fora

descendente de uma das famiacutelias reais de Esparta a euripocircntida O legislador tinha um irmatildeo

rei mas apoacutes a morte daquele Licurgo subiria ao trono poreacutem o seu irmatildeo havia deixado um

descendente ainda no ventre de sua esposa Leobotas O legislador foi entatildeo tutor de seu

sobrinho Preocupado com a situaccedilatildeo de Esparta jaacute que o sobrinho era uma crianccedila Licurgo

se dirigiu a Delfos para receber conselhos diga-se leis escritas a rheacutetra em relaccedilatildeo a Esparta

(HEROacuteDOTO Histoacuteria I LXV) Sabe-se muita coisa de Licurgo por meio de Plutarco em

Vida de Licurgo

Luciene de Lima Oliveira

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659d) e Aristoacuteteles (ARISTOacuteTELES Poliacutetica 1321) tambeacutem se referem a agogeacute como

ldquoeducaccedilatildeordquo

Entrementes Marrou emprega o termo ldquoadestramentordquo para traduzir agogeacute e

chama a atenccedilatildeo para o fato de ser ldquouma condiccedilatildeo necessaacuteria senatildeo suficiente para o

exerciacutecio dos direitos ciacutevicosrdquo (MARROU 1966 p 41) O helenista considera que a

educaccedilatildeo em Esparta possui natildeo soacute um lugar especial na histoacuteria da educaccedilatildeo como

tambeacutem na cultura grega (Op cit p 33)

Todos os cidadatildeos espartanos tinham uma participaccedilatildeo ativa na educaccedilatildeo militar

constituindo uma casta aristocraacutetica a priori lembrando a educaccedilatildeo da antiga nobreza

grega Natildeo obstante foi mais tarde estendida agravequeles que natildeo faziam parte da nobreza

Jaeger expotildee que mesmo que Licurgo tenha realmente existido e criado a rheacutetra

ldquoleis escritasrdquo que o poeta Tirteu (4W 1-10) bem a conhecia jaacute no seacuteculo VII aC natildeo

adiantaria muito saber a respeito da origem da educaccedilatildeo espartana conforme Xenofonte

a descreve (JAEGER 2001 p 114)

O pesquisador considera tambeacutem a agogeacute como ldquoo adestramento espartanordquo que

nada mais era do que o ideal do movimento educativo do seacuteculo IV aC (Op cit p 115)

O helenista destaca que a crenccedila de que a educaccedilatildeo espartana era uma preparaccedilatildeo militar

tinha sua origem na Poliacutetica de Aristoacuteteles Platatildeo igualmente jaacute havia definido essa

ideia quando relata nas suas Leis o espiacuterito do Estado de Licurgo (Op cit p 110)

As crianccedilas futuros guerreiros de Esparta eram ldquocriadasrdquo anatropheacute por seus

pais em suas casas ateacute os sete anos de idade depois essa tarefa era assumida pelo

governo sendo treinados para a obediecircncia em situaccedilotildees penosas e difiacuteceis3

Desse modo Licurgo natildeo colocou a educaccedilatildeo nas matildeos nem de mercenaacuterios nem

de servos comprados os pais natildeo poderiam educar seus filhos a seu bel prazer Quando

completavam sete anos eram divididos em grupos a fim de serem educados juntos e

brincassem entre si aprender e estudar uns com os outros Aquele que sobressaiacutesse e fosse

mais valente em combate se tornaria o liacuteder de todo o grupo os outros deveriam obedecer

as suas ordens O legislador considerava a educaccedilatildeo das crianccedilas como a coisa mais bela

que um legislador pudesse estabelecer (PLUTARCO Licurgo XXV XXXIII In Vidas

Paralelas)

Dos sete aos quinze anos eram instruiacutedos nas letras e nos caacutelculos e naturalmente

nos hinos do poeta Tirteu que ressaltavam a bravura e a coragem destemida

Na etapa final entre dezesseis e vinte anos quando denominados de eireacuten um

pouco antes de entrarem no serviccedilo da poacutelis eram treinados a manusear as armas na luta

com lanccedilas e espadas no arco e flecha Com isso a carga dos exerciacutecios e as operaccedilotildees

militares simuladas nas montanhas ao redor da poacutelis eram aumentadas

Plutarco daacute o seguinte testemunho

Quanto agraves letras aprendiam somente o necessaacuterio e em suma todo o

aprendizado consistia em bem obedecer suportar o trabalho e obter a vitoacuteria

em combate Por essa razatildeo agrave medida que avanccedilavam em idade aumentavam-

lhes tambeacutem os exerciacutecios corporais raspavam-lhes os

cabelos faziam-nos andar descalccedilos e os constrangiam a brincar juntos a maior

parte do tempo inteiramente nus depois quando chegavam agrave idade de doze

anos natildeo mais usavam saios daiacute por diante pois todos os anos lhes davam

somente uma tuacutenica simples o que era causa de andarem sempre sujos e

3 Plutarco daacute testemunho que estrangeiros se dirigiam ateacute a Lacocircnia para contratarem amas para criarem

seus filhos (PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

A agogeacute espartana

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ensebados como aqueles que natildeo se lavavam nem se untavam senatildeo em certos

dias do ano quando os faziam gozar um pouco dessa doccedilura Deitavam e

dormiam juntos sobre enxergas que eles proacuteprios fabricavam com pontas dos

juncos e caniccedilos que cresciam no rio Eurotas os quais eles proacuteprios deviam ir

colher e quebrar somente com as matildeos sem nenhuma ferramenta mas no

inverno ajuntavam a isso e misturavam no meio o que se chama Lycophanos

porque parece que essa mateacuteria tem em si um pouco de calor (PLUTARCO

Licurgo XXIV In Vidas Paralelas)

A agogeacute propriamente dita se iniciava aos sete anos e finalizava ateacute os vinte anos

compreendendo portanto um periacuteodo de treze anos Havia a supervisatildeo de um

paidonoacutemos uma espeacutecie de magistrado especial

Marrou oferece a seguinte divisatildeo da agogeacute agrupados em trecircs ciclos (MARROU

1966 p 42)

Oitavo ano ao deacutecimo primeiro ano

a) rhobiacutedas (termo obscuro)

b) promikkizoacutemenos (meninote)

c) mikki(khi)zoacutemenos (menino)

Deacutecimo segundo ano ao deacutecimo quinto ano

a) pratopaacutempais (rapaz jaacute maduro de primeiro ano)

b) hatropaacutempais (rapaz jaacute maduro de segundo ano)

c) melleiacuteren (futuro irene)

d) melleiacuteren (irene de segundo ano)

Deacutecimo sexto ano ao vigeacutesimo ano

a) eireacuten de primeiro ano

b) eireacuten de segundo ano

c) eireacuten de terceiro ano

d) eireacuten de quarto ano

e) proteicircras (irene-chefe)

O historiador francecircs pontua que os meninos espartanos eram divididos em

unidades (iacutelai ou ageacutelai) comandadas pelos jovens maiores os proteicircrai de vinte anos

que eram os mais velhos dentre os irenes (Op cit p 43)

Plutarco lembra que os espartanos ldquonatildeo usam de muita linguagemrdquo eram

lacocircnicos ldquopessoas de poucas palavrasrdquo como resultado natildeo se expressavam com

propriedade mas nada os impedia de serem bem compreendidos pelos ouvintes O

bioacutegrafo sublinha que o proacuteprio Licurgo era breve no falar Interessante destacar que era

proibido entrar em Esparta algum retoacuterico para ensinar a arte da persuasatildeo ao povo Natildeo

obstante os espartanos eram exiacutemios compositores de belos cacircnticos em que incitavam

a coragem (PLUTARCO Licurgo XIV XL XLIV In Vidas Paralelas)

Quando estavam reunidos em Conselho os cidadatildeos espartanos natildeo poderiam

deliberar indagar seus superiores muito menos apresentar alguma opiniatildeo lhes era

permitido somente aprovar ou reprovar os informes propostos pelos reis ou senadores

(Op cit X)

O futuro guerreiro tinha de ter por haacutebitos a modeacutestia andar nas ruas com as

matildeos dentro do manto e caminhar em silecircncio sem dirigir o olhar a nenhum lugar apenas

olhando em direccedilatildeo a seus proacuteprios peacutes O historiador Xenofonte compara o jovem

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espartano que anda em silecircncio e de olhos baixos a uma estaacutetua de virgem

(JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Entre vinte e trinta anos os espartanos eram obrigados a se casar mas a vida

familiar natildeo era lhes permitida soacute depois dos trinta podiam deixar de dormir nos

acampamentos militares

A fim de dotar de coragem os seus infantes em Esparta havia a kryptiacutea um

ldquoesquadratildeo de extermiacuteniordquo que estimulava os jovens selecionados a caccedilarem sozinhos ou

em grupos os hilotas ou seja os escravos que por um acaso andassem desgarrados ou

que de alguma forma representassem pelo seu vigor fiacutesico uma ameaccedila agrave seguranccedila da

poacutelis Os hilotas quando localizados eram vitimados pela espada ou pela lanccedila armas

que o grupo de jovens sempre trazia consigo (PLUTARCO Licurgo LVIII In Vidas

Paralelas)

Os jovens espartanos estavam sempre forccedilando seus corpos ao limite cultivando

a excelecircncia da forccedila fiacutesica Aristoacuteteles destaca que de entre as cidades que mais se

preocupavam com a educaccedilatildeo infantil a maioria procurava aperfeiccediloaacute-la por meio de uma

disposiccedilatildeo atleacutetica O filoacutesofo sublinha que os espartanos davam para os futuros

guerreiros trabalhos aacuterduos como se essa atitude fosse vista como adequada para o culto

da bravura (ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1338b 10-15)

O estagirita ressalta que natildeo eacute contra a ginaacutestica mas deve-se praticaacute-la com

moderaccedilatildeo ateacute a adolescecircncia evitando exerciacutecios forccedilosos pois podem resultar em

prejuiacutezos para o corpo Daacute como exemplo que de entre os vencedores dos jogos

Oliacutempicos tem apenas dois ou trecircs espartanos vitoriosos Acredita que isso se daacute ao fato

de terem sido sujeitos desde crianccedila a treinos fiacutesicos extremos que acabaram por exaurir

suas forccedilas (Op cit II 1338b 35-40 1339a 1-5)

Aristoacuteteles sublinha que toda a organizaccedilatildeo legislativa dos espartanos tinha como

objetivo uma forma de virtude o valor guerreiro uma vez que eacute uacutetil para dominar Como

resultado disso o vigor e a forccedila dos espartanos foram preservados enquanto estiveram

em guerra mas houve um decliacutenio a partir do momento que alcanccedilaram a supremacia Na

verdade natildeo sabiam viver em paz aleacutem do mais natildeo haviam se exercitado em outra

disciplina superior agrave arte da guerra (Op cit II 1271b 1-10)

Jaeger sustenta que na vida dos espartanos por meio de uma educaccedilatildeo

diferenciada percebe-se um ideal de educaccedilatildeo anaacutelogo ao que Platatildeo propotildee na

Repuacuteblica A propoacutesito Platatildeo e outros teoacutericos da educaccedilatildeo posteriores tiveram Esparta

por paradigma em muitos aspectos (JAEGER 2001 p 112)

A necessidade de imposiccedilatildeo dos espartanos sobre a grande maioria de hilotas

(escravos que natildeo possuiacuteam direito algum) que a qualquer momento poderiam se

rebelar teve muita importacircncia na formaccedilatildeo da agogeacute espartana

Ora com as muitas conquistas espartanas havia sempre a iminecircncia de uma

revolta por parte dos povos conquistados Eacute fato que os povos conquistados constituiacuteam

em maior nuacutemero do que os conquistadores espartanos

Acredita-se que no final do seacuteculo VI aC depois da conquista da Messecircnia o

estado espartano completou sua organizaccedilatildeo transformando-se em um verdadeiro

ldquoacampamento militarrdquo permanente

Os resquiacutecios arqueoloacutegicos atestam que ateacute o seacuteculo VI aC Esparta era

dominada por uma aristocracia de grandes proprietaacuterios Devido agraves duas grandes guerras

pela conquista da Messecircnia houve um aumento consideraacutevel daqueles que poderiam

participar da funccedilatildeo guerreira e que se beneficiaram pela distribuiccedilatildeo de lotes de cleroacutei

A agogeacute espartana

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da regiatildeo conquistada Por outro lado os messecircnios foram reduzidos agrave condiccedilatildeo de

hilotas A respeito da segunda guerra da Messecircnia4 Mosseacute escreve

Esparta parece ter se fechado em si mesma com a decadecircncia do artesanato e

o desaparecimento do uso da moeda de prata Diante da massa de populaccedilotildees

dependentes (hilotas da Lacocircnia e da Messecircnia periecos da Lacocircnia motacos

neodamodos etc) a classe guerreira dos homoioiacute dos semelhantes formada

pelo conjunto dos cidadatildeos espartanos passa a ser um grupo privilegiado que

vive recluso em perpeacutetuo estado de defesa Essa eacute a origem da vida austera que

tanto impressionava seus contemporacircneos e permitia a Esparta desempenhar

papel preponderante no mundo grego (MOSSEacute 2004 p 121) Com efeito

muitas disposiccedilotildees referentes agrave educaccedilatildeo e ao casamento natildeo deixam de evocar

os programas educativos elaborados por Platatildeo na Repuacuteblica e nas Leis Platatildeo

teria tomado o modelo espartano como inspiraccedilatildeo ou nos seacuteculos seguintes

esse modelo teria sido construiacutedo a partir das disposiccedilotildees imaginadas por

Platatildeo para suas cidades ideais Essa eacute uma pergunta de resposta difiacutecil O que

eacute inquestionaacutevel eacute o caraacuteter peculiar da educaccedilatildeo espartana essa agogeacute que

espantava os atenienses da eacutepoca claacutessica especialmente na medida em que

tambeacutem atingia as mulheres (Op cit p 189)

Ressalte-se que a guerra eacute um dos fenocircmenos a ser evitado mas que

frequentemente ocorre nas sociedades humanas Em O Homem Grego obra organizada

por Vernant o ensaio de Garlan denominado ldquoO Homem e a Guerrardquo eacute relevante pois

de acordo com Garlan embora o homem grego ldquonatildeo pudesse ser definido como algueacutem

que gosta da violecircncia pela violecircnciardquo isto eacute como um homo militaris muitos satildeo os

conflitos em que eles se envolveram sobretudo na eacutepoca arcaica e claacutessica Para Garlan

eacute ldquocomo se a paz fosse desde o primeiro momento considerada precaacuteria ou mesmo

concebida como uma espeacutecie de treacutegua prolongadardquo (GARLAN apud VERNANT 1994

pp 49-50)

Em uma sociedade predominantemente guerreira como a espartana a covardia de

um guerreiro era vista com repugnacircncia assim a desonra em Esparta acompanhava os

covardes sendo preferiacutevel a morte a uma vida infame e desonrosa Eacute um guerreiro que

natildeo merecia nenhuma timeacute ldquohonrardquo pois tem como aliados a atimiacutee ldquodesonrardquo e a

kakoacutetes ldquocovardiardquo Consequentemente este homem eacute algueacutem sem aidoacutes ou seja

algueacutem que natildeo eacute digno ldquode respeitordquo ldquode consideraccedilatildeordquo Haacute pois uma conexatildeo clara

entre aidoacutes ldquorespeitordquo e timeacute ldquohonrardquo na sociedade espartana

O binocircmio aidoacutes ldquorespeitordquo e aiskhryacutene ldquovergonhardquo satildeo vocaacutebulos que estatildeo

presentes no estatuto ciacutevico de Esparta como pontua Nicole Loraux (LORAUX 1989 p

82)

O desenvolvimento da coragem era uma obsessatildeo espartana os guerreiros natildeo

poderiam ter medo de nada deveriam ser resistentes aos ferimentos odiando qualquer

4 Houve duas guerras entre Messecircnia e Esparta Na primeira os espartanos sob a lideranccedila do rei

Theopompo foram vencedores Os messecircnios eram comandados por Aristomenes Segundo Heroacutedoto

(HEROacuteDOTO Histoacuteria VIII 1312) o rei Theopompo pertencia agrave oitava geraccedilatildeo antes de Leoticidas

que governou de 491 a 469 aC Depois de cinquenta anos de opressatildeo os messecircnios se revoltaram com

a ajuda de aliados de Argos Arcaacutedia e Pisa Essa rebeliatildeo eacute conhecida como Segunda Guerra da

Messecircnia Campbell afirma que eacute difiacutecil estabelecer a cronologia das duas guerras (CAMPBELL 1967

p 169) Costuma-se contudo fixar o periacuteodo da primeira guerra em torno da segunda metade do seacuteculo

VIII aC mais precisamente entre 735 e 715 aC e a segunda guerra que teria durado aproximadamente

vinte e dois anos na segunda metade do seacuteculo VII aC por volta de 640-650 aC

Luciene de Lima Oliveira

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demonstraccedilatildeo de covardia e extremamente dedicados agrave poacutelis Toda a sociedade e

educaccedilatildeo espartana estavam voltadas para a guerra Uma das frases atribuiacutedas agraves matildees

espartanas era ldquoespero que o meu filho volte com o seu escudo ou deitado sobre elerdquo

Cada espartano era formado para ser um soldado perfeito e sua maior gloacuteria era

morrer em batalha retornar derrotado jamais Digno de nota satildeo os versos tirteanos

ldquoLutemos com ardor por esta terra e pelos filhos morramos sem pouparmos nossas

vidasrdquo (10 W 13-14)

Em Esparta a coragem fazia parte da formaccedilatildeo do caraacuteter de um homem A

propoacutesito Platatildeo era tambeacutem a favor da valentia de um guerreiro no campo de batalha

(PLATAtildeO Repuacuteblica 468e)

Os dois primeiros versos do fragmento 10W de Tirteu pontua dessa mentalidade

de morrer pela poacutelis ldquoeacute belo morrer caindo entre os combatentes das primeiras filas um

homem valente ao combater por sua terrardquo (10W 1-2)

A morte eacute bela quando eacute a de um heroacutei que morre pela cidade Esta ideia daacute agrave

morte o sentido de um ldquosacrifiacuteciordquo do proacuteprio cidadatildeo em prol de um bem mais alto ldquoa

morte gloriosardquo No mesmo fragmento aliaacutes o poeta contrasta a morte gloriosa no campo

de batalha com a vida desventurada e errante do homem que natildeo cumpriu na guerra seus

direitos de cidadatildeo e se viu na necessidade de deixar a cidade (10W 9-12)

A linguagem de Tirteu eacute em grande parte herdeira de tradiccedilatildeo eacutepica De um modo

geral as suas elegias demonstram um amplo conhecimento do vocabulaacuterio da Iliacuteada e da

Odisseia quando descreve a luta sangrenta e o heroiacutesmo guerreiro O ideal espartano eacute

proacuteximo da epopeia no que diz respeito agrave bravura apesar de pertencerem a tempos

literaacuterios diferentes

Jaeger destaca que os versos tirteanos eacute o primeiro testemunho do ideal poliacutetico e

guerreiro tendo mais adiante a sua realizaccedilatildeo na totalidade da educaccedilatildeo espartana ldquoos

seus poemas deixam ver claramente que a educaccedilatildeo espartana tal como as eacutepocas

seguintes a conheceram natildeo era uma coisa acabada mas estava em processo de

formaccedilatildeordquo (JAEGER 2001 p 115)

Qualquer fraqueza demonstrada era vista como pusilanimidade algo

veementemente repelido do seio daquela sociedade

Natildeo comeceis a fuga vergonhosa nem o medo

mas tornai grande e ardoroso o coraccedilatildeo no peito

natildeo ameis a vida ao combaterdes contra homens (10 W 16-18)

O modo de vida era regulamentado em funccedilatildeo das necessidades do Estado e

tinham consciecircncia de natildeo pertencerem a si proacuteprios mas agrave poacutelis

Em suma estimavam todos que natildeo tinham nascido para servirem a si mesmos

antes para servir o paiacutes e portanto se outra coisa natildeo lhes era recomendada

continuavam sempre a ir ver o que faziam os meninos e a ensinar-lhes alguma

coisa que resultasse em utilidade puacuteblica ou ainda a aprender eles proacuteprios

com os que eram mais idosos do que eles (PLUTARCO Licurgo LI In

Vidas Paralelas)

Licurgo teria imposto que os espartanos tivessem uma vida de austeridade por

exemplo diz-se que eram obrigados a fazerem as refeiccedilotildees em comum em torno de um

caldo negro (PLUTARCO Licurgo XXI In Vidas Paralelas)

Plutarco daacute testemunho dessa coletividade

A agogeacute espartana

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Em suma acostumou os cidadatildeos a natildeo quererem e natildeo poder jamais viver soacutes

antes serem por assim dizer colados e incorporados uns com os outros e a se

acharem sempre juntos como as abelhas em torno dos superiores saindo de

si mesmos quase por um arrebatamento de amor para com o paiacutes e de desejo

de honra para servir inteiramente ao bem da coisa puacuteblica (Op cit LIV In

Vidas Paralelas)

Eacute bom lembrar que Licurgo ordenou que os espartanos fizessem as mesmas

refeiccedilotildees juntos era proibido se alimentarem agrave parte e em particular em grandes

banquetes (Op cit XV In Vidas Paralelas)

Conveacutem citar Aristoacuteteles ldquoacreditamos que a amizade eacute o maior dos bens para as

cidades porquanto pode ser o melhor meio de evitar revoltasrdquo (ARISTOacuteTELES Poliacutetica

II 1262b 7-8)

O estagirita faz uma criacutetica a respeito das refeiccedilotildees comuns intituladas de phidiacutetia

Para o filoacutesofo essas refeiccedilotildees deveriam ser pagas pelo tesouro puacuteblico tal qual em Creta

Entretanto em Esparta os cidadatildeos tinham de fazer uma contribuiccedilatildeo ateacute os pobres que

tinham dificuldades de arrumar dinheiro para essas refeiccedilotildees O objetivo de Licurgo era

que essas refeiccedilotildees fossem democraacuteticas ldquoa maneira espartana tradicional de fixar o

limiar da cidadania consiste em privar de participaccedilatildeo o que natildeo pode pagar a taxa das

refeiccedilotildees comunsrdquo (Op cit II 1271a 26-30)

De acordo com o historiador Xenofonte nas accedilotildees de guerra os lacedemocircnios

(espartanos) usavam traje vermelho para que natildeo se percebessem as manchas de sangue

Se morressem em combate eram enterrados com essas tuacutenicas (JENOFONTE La

Republica de los Lacedemonios)5

Na agogeacute espartana a sophrosyacutene (temperanccedila moderaccedilatildeo autocontrole) tem um

caraacuteter social sendo um comportamento imposto regulamentado marcado pelo

comedimento que o jovem deve observar em todas as circunstacircncias comedimento em

seu andar em seu olhar em suas expressotildees comedimento diante das mulheres em face

dos mais velhos comedimento aos prazeres agrave bebida

Desse modo o futuro guerreiro era exercitado em dominar seus extintos Na

verdade a agogeacute era precisamente destinada a experimentar esse poder de domiacutenio de

si A sophrosyacutene submete assim cada indiviacuteduo em suas relaccedilotildees com o proacuteximo em

contraste com a hyacutebris a ldquodesmedidardquo a ldquotransgressatildeordquo

O ideal da sophrosyacutene era o nada em excesso haacute uma tendecircncia na qual a

sophrosyacutene e a hyacutebris se encarnam respectivamente nos velhos e nos jovens (ideia que

seraacute mais clara nos traacutegicos)

A bela morte espartana deve ter ligaccedilatildeo com a cidadania ou melhor um criteacuterio

de cidadania sendo uma manifestaccedilatildeo ciacutevica (12W 18 34) Uma das diferenccedilas mais

acentuadas entre o mundo de Tirteu e dos poemas homeacutericos estaacute nas relaccedilotildees do

indiviacuteduo com a comunidade pois os guerreiros de Homero lutam pela gloacuteria individual

enquanto os heroacuteis de Tirteu combatem pela comunidade por suas famiacutelias e

dependentes Assinale-se que haacute na Iliacuteada XV 494-9 um episoacutedio em que Heitor estaacute

claramente lutando pela sobrevivecircncia de Troia

5 Para Jaeger a Constituiccedilatildeo (Repuacuteblica) dos Lacedemocircnios de Xenofonte eacute resultado do romantismo ldquomeio

filosoacutefico meio poliacutetico do seacuteculo IV aC o qual via no Estado espartano uma espeacutecie de revelaccedilatildeo

poliacutetica primordialrdquo (JAEGER 2001 p 109)

Luciene de Lima Oliveira

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 71

A cidade espartana condena o ato de bravura de um soacute combater e permanecer

corajosamente no seu lugar na falange natildeo ceder agrave vontade de fugir encorajar seu

companheiro de linha eacute um bem comum para a cidade e para todo o povo

Heroacutedoto disserta a respeito do espartano Aristodamos que estava entre os

trezentos lacedemocircnios que tinham defendido as Termoacutepilas ele foi o uacutenico sobrevivente

mas preocupado em livrar-se do oproacutebio que os espartanos infligiram a essa

sobrevivecircncia o guerreiro saiu de seu posto do seu lugar na falange e procurou e

encontrou a morte em Plateia ao realizar faccedilanhas extraordinaacuterias (HEROacuteDOTO

Histoacuteria IX 71)

Aleacutem do exemplo de Aristodamos o historiador daacute testemunho de outro episoacutedio

nas Termoacutepilas em que os combatentes saindo de seus postos lutavam de maneira furiosa

em torno do corpo de Leocircnidas Quando as espadas dos espartanos foram quebradas eles

se defenderam com as matildeos e os dentes (Op cit VII 225) em um estado de furor

belicoso que se assemelhava aos heroacuteis homeacutericos Diomedes e Aquiles Os espartanos

abandonaram a sophrosyacutene e estavam claramente em estado de lyacutessa o que a cidade natildeo

tolerava

Todavia apesar de sua valentia os espartanos natildeo lhe concederam as honras

fuacutenebres devidas aos melhores isto eacute recusaram-lhe a aristeacuteia porque violara a lei de

permanecer em seu lugar na falange Possuiacutedo pela lyacutessa por um furor guerreiro

combateu furiosamente fora de seu posto

A virtude guerreira natildeo pertence agrave ordem do thymoacutes do impulso e sim da

sophrosyacutene a temperanccedila um domiacutenio muito grande para que o guerreiro pudesse refrear

seus impulsos e natildeo perturbasse a ordem da formaccedilatildeo em falange

A eacutetica militar espartana proiacutebe o estado de furor de lyacutessa Vernant destaca que a

cidade rejeita atitudes tradicionais da aristocracia que tem por costume a exaltaccedilatildeo do

prestiacutegio do poder dos indiviacuteduos e de colocaacute-los acima do comum satildeo considerados

como um descomedimento uma hyacutebris de igual modo o furor guerreiro e a busca no

combate de uma gloacuteria particular (VERNANT 2002 p 69)

Ateacute os sessenta anos os espartanos estavam sujeitos a participar das guerras

pertenciam ao Estado ate agrave morte As moccedilas natildeo eram tratadas de modo diverso acima

da famiacutelia vinha a poacutelis

Xenofonte destaca que Licurgo ordenou que o sexo feminino exercitasse tanto

quanto o masculino A mulher espartana tambeacutem tinha uma formaccedilatildeo regulamentada

cuja muacutesica a danccedila e o canto natildeo possuiacuteam tanta importacircncia quanto a ginaacutestica e o

esporte (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios 1 4)

As espartanas estavam a serviccedilo da cidade quando solteiras praticavam

exerciacutecios que a tornavam forte e saudaacutevel a fim de que seus corpos se tornassem riacutegidos

ao se exercitarem havia exerciacutecios de correr de lutar de jogar a barra e de lanccedilar o dardo

com o objetivo de gerarem filhos igualmente robustos e para suportarem as dores do

parto (PLUTARCO Licurgo XXV In Vidas Paralelas)

Havia a ideia entre os homens de que pai e matildee fortes gerariam igualmente filhos

mais vigorosos Por isso quando casada a missatildeo da mulher era dar ao Estado filhos

fortes grandes guerreiros e bons cidadatildeos Percebe-se que haacute uma preocupaccedilatildeo de

eugenia dentro da sociedade espartana

Os receacutem-nascidos eram observados e se constatada qualquer imperfeiccedilatildeo essas

crianccedilas consideradas ldquodefeituosasrdquo que tivessem qualquer tipo de doenccedila ou

deformidade eram sumariamente assassinadas sendo atiradas de um precipiacutecio Esses

A agogeacute espartana

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receacutem-nascidos natildeo estariam prontos para defender a cidade-estado e consequentemente

natildeo seriam bons guerreiros na fase adulta6

Entrementes depois que a crianccedila nascia [] mas se lhes parecia feia

disforme ou franzina mandavam atiraacute-la num precipiacutecio a que vulgarmente se

dava o nome de Apothetes isto eacute depositoacuterios pois tinham a opiniatildeo de que

natildeo era expediente nem para a crianccedila nem para a coisa puacuteblica que ela

vivesse visto como desde o nascimento natildeo se mostrava bem constituiacuteda para

ser forte satilde e rija durante toda a vida E por esse motivo as proacuteprias mulheres

que as governavam natildeo as lavavam com aacutegua simples como se faz por toda

parte mas com uma mistura de aacutegua e vinho e por esse meio experimentavam

se a compleiccedilatildeo e a tecircmpera de seus corpos era boa ou maacute porque dizem eles

que as crianccedilas sujeitas agrave epilepsia ou entatildeo catarrosas e doentias natildeo podem

resistir nem tolerar esse banho de vinho mas definham e caem em langor e

ao contraacuterio as que tecircm sauacutede se tornam mais rijas e mais fortes

(PLUTARCO Licurgo XXXII In Vidas Paralelas)

Aristoacuteteles sublinha que Licurgo com o objetivo de fazer com que os espartanos

fossem numerosos encorajava-os a terem o maior nuacutemero possiacutevel de filhos haacute a lei de

que o pai de trecircs filhos estaacute isento do serviccedilo militar e o de quatro livre de impostos

(ARISTOacuteTELES Poliacutetica II 1270b 1-5)

A renomada helenista Claude Mosseacute infere que seria interessante acreditar que

Esparta passou por uma seacuterie de etapas entre a adoccedilatildeo da falange hopliacutetica seacuteculo VII

aC e o ldquofechamento da cidade em si mesmardquo iniacutecio seacuteculo IV aC Aleacutem do mais a

rheacutetra que fora atribuiacuteda a um possiacutevel legislador Licurgo pode ter sido resultado de

uma possiacutevel abertura da falange aos membros do decircmos cuja participaccedilatildeo nas tomadas

de decisatildeo era reconhecida Em relaccedilatildeo agrave partilha de terras pode ter acontecido depois

do teacutermino da segunda guerra da Messecircnia (uacuteltimo quarto do seacuteculo VII aC) e a agogeacute

e o militarismo da cidade podem ter ocorridos no princiacutepio do seacuteculo VI aC tendo por

principal objetivo a defesa da cidade-estado espartana contra os povos da Lacocircnia e

Messecircnia que foram escravizados

A Esparta do seacuteculo VII aC estaacute empenhada em um movimento que leva as

aristocracias das diversas cidades ao luxo Depois a ruptura se daacute entre o final do seacuteculo

VII aC e o iniacutecio do VI aC concentra-se em si mesma repudiando a ostentaccedilatildeo da

riqueza proibindo o uso dos metais preciosos depois a moeda de ouro e de prata (o

dinheiro era feito de um ferro de maacute qualidade que natildeo deveria ser fundido em grandes

quantidades) permanece fora das correntes intelectuais fecha-se a tudo o que eacute

intercacircmbio com o estrangeiro comeacutercio atividade artesanal voltam-se sua preocupaccedilatildeo

para a guerra em defesa da poacutelis (MOSSEacute 2004 p 189-190)

Qualquer riqueza natildeo poderia ser exposta em puacuteblico os artesatildeos natildeo

confeccionavam luxos desnecessaacuterios como tapetes e adornos mas faziam muito bem

apenas o baacutesico pois a riqueza seria a causa de muitos males Xenofonte escreve que os

espartanos natildeo se adornavam com riquezas de vestuaacuterios exceto com a boa forma fiacutesica

de seus corpos (JENOFONTE La Republica de los Lacedemonios)

Pode-se conceituar a agogeacute como uma educaccedilatildeo estatal com fins extremamente

belicosos que se estendia da infacircncia ateacute a adolescecircncia Nessa educaccedilatildeo os futuros

6 Esse costume natildeo ocorreu soacute em Esparta a Lei das XII taacutebuas na Roma antiga autorizava os patriarcas a

matar seus filhos fraacutegeis ou deficientes

Luciene de Lima Oliveira

Principia Rio de Janeiro n 38 jan-jun 2019 e-ISSN 2358-7326 | ISSN 1415-6881 73

combatentes aprendiam as artes militares as manobras em campos de batalha e a ser

destemidos diante do inimigo

Infere-se que o principal objetivo da agogeacute era formar poderosos guerreiros para

a defesa da poacutelis Para isso uma riacutegida educaccedilatildeo foi imposta aos jovens e uma peculiar

maneira de viver aos adultos

REFEREcircNCIAS

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Universidade de Brasiacutelia 1988

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Madrid Centro de Estuacutedios Costitucionales 1989

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MARROU Henri-Ireacuteneacutee Histoacuteria da Educaccedilatildeo na Antiguidade Satildeo Paulo Herder

1966

MOSSEacute Claude Dicionaacuterio da Civilizaccedilatildeo Grega Traduccedilatildeo de Carlos Ramalhete

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PEREIRA Maria Helena da Rocha Estudos de Histoacuteria da Cultura Claacutessica Lisboa

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A agogeacute espartana

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________ A Repuacuteblica Traduccedilatildeo de Eduardo Menezes Satildeo Paulo Hemus Livraria

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1992

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