epistemologia. anais do iv simpósio internacional principia, parte1

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Coleção Rumos da Epistemologia 7 Luiz Henrique Dutra e Cézar Mortari (orgs.)

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Epistetnologia

Anais do IV Simpósio

Internacional Principia

Parte 1

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Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC Lúcio José Botclho, reitor

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Gradua.yao Valdir Soldi, pró-reitor

NEL- Núcleo de Epistemología e Lógica Gustavo Caponi, coordenador

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RUMOS DA EPISTEMOLOGIA, VOL 7

Luiz Henrique de A. Dutra

Cézar A. Mortari (orgs.)

Epistemologia

Anais do IV Simpósio

Internacional Principia

Parte 1

NEL -Núcleo de Epistemologia e Lógica Univcrsidadc Federal de Santa Catarina

Florianópolis, 2005

Page 5: Epistemologia. Anais do IV  Simpósio Internacional Principia, Parte1

© 2005, NEL - Núcleo de Epistemología e Lógica, UFSC.

ISBN: 85-87253-08-5

UFSC, Centro de Filosofía e Ciencias Humanas, NEL. Cx. Postal476, 88010-970 Florianópolis, SC (48) 3331.8811 , fax: 3331.9751 [email protected] http://www .cfh. ufsc. brl- nel

Esta publica~ao foi realizada com recursos da FAPESC - Funda­~ao de Amparo a Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado de Santa Catarina.

Ficha Catalográfica

(Cata loga~ao na fontc fcita na DECTI da Biblioteca da UFSC)

S612a Simpósio Internacional Principia (4.: 2005: Florianópolis. SC) Epistemología : anais do IV Simpósio lntcmacional Principia

: parte 1 f Luiz Hcnrique de A. Dutra. Cézar A. Monari. orgs. -Florianópolis : UFSC. NEL. 2005.

303p. -(Rumos da epistemología : v. 7)

lnclui bibliogralia.

l. Epistemologia. 2. Tcoria do conhccimcnto. l. Dutra. Luiz Hcnriquc de Araújo. 11. Monari. Cézar Augusto. 111. Univcrsidadc Federal de Santa Catnrina . Núcleo de Epistemología e Lógica. IV. Titulo

CDU: 165

Reservados todos os dírcitos de reproduyao total ou parcial por NEL - Núcleo de Epistemología e Lógica, UFSC

lmpresso no Brasil

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Apresenta~ao

Os textos reunidos neste vo lume sao parte dos trabalhos apresentados no IV Simpósio lntemacional Principia, realizado em Florianópolis, de 8 a 11 de agosto de 2005, organizado pelo NEL - Núcleo de Epis­temología e Lógica e pelo NECL - Núcleo de Estudos sobre Conhe­cimento e Linguagem, da Universidade Federal de Santa Catarina. O evento eontou com apoio financeiro das agencias de fomento FINEP, CAPES, CNPq, FAPESC E FAPESP. Contou também com apoio das Pró-reitorias de Cultura e Extensao e de Apoio a Pós-Gradua~ao, da UFSC, do Programa de Pós-gradua~ao em Filosofia e do Depattamen­to de Filosofia desta mesma universidade.

O tema principal do encontro foi a filosofia de Donald Davidson. Diversos dos trabalhos específicamente a este respeito foram publica­dos no volumc 9 da revista Principia. Este volume reúne alguns des­ses trabalhos, além de outros que nao tratam diretamente da filosofia de Davidson, mas cuja temática está relacionada com os assuntos que ele discutiu. O grande número de textos enviados para publicayao nos levou a fazer uma divisao em dais volumes. Neste, estao reunidos os textos de epistemologia e das áreas afins, tais como: filosofia da cien­cia, filosofia da linguagem, lógica e filosofia da mente. Os textos de ética e filosofia moral ou política csHio publicados na segunda parte dos anais, no volume 8 desta mesma cole~ao.

Além das agencias financiadoras e instituiyoes acima mencionadas, os organizadores deste volume e o editor desta cole¡yao gostariam de agradecer as contribuiyoes dos diversos autores dos textos aquí reuni­dos e a atuayao da equipe de apoio do evento, cujo trabalho inestimá­vel tomou possível nao só sua realiza~ao, mas também esta publiea­~ao. Por fim, agradecemos a F APESC - Funda~ao de Amparo a Pes­quisa Científica e Tecnológica do Estado de Santa Catarina, que fi­nanciou esta publica~ao.

Florianópolis, novembro de 2005.

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cole.;ao RUMOS DA EPISTEMOLOGIA

Editor: Luiz Henrique de A. Dutra

Conselho Editorial: Alberto O. Cupani, Cézar A. Mortari, Décio Krause, Gustavo A. Caponi, José A. Angotti, Luiz Henrique de A. Dutra, Marco A. Frangiotti, Sara Albieri.

Núcleo de Epistemología e Lógica Universidade Federal de Santa Catarina

Criado pela portaría 480/PRPG/96, de 2 de outubro de 1996, o NEL tem por objetivo integrar grupos de pesquisa nos campos da lógica, teoria do conhe­cimento, filosofía da ciencia, história da ciencia, e outras áreas afins, na pró­pria UFSC ou de outras universidades. Um primeiro resultado expressivo de sua atua~iio é a revista Principia, que iniciou em julho de 1997 e já tem nove volumes publicados, possuindo corpo editorial intemacional. Principia aceita artigos inéditos, além de resenhas e notas, sobre temas de epistemología e filosofia da ciencia, em portugues, espanhol, frances e ingles. A Cole~ao Rumos da Epistemología é publicada desde 1999, e aceita textos inéditos, coletaneas e monografias, nas mesmas línguas acima mencionadas.

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Sumário

Alberto O. Cupani 9 A ciencia como prática

Ale~andre Meyer Luz 21 E o premio da virtude o conhecimento: Linda Zag-zebski e uma teoria aretéica das virtudes intelectuais

Araceli R. S. Velloso 47 Dois caminhos que /evam ao holismo "moderado" de Quine

Carlos D. C. Tourinho 67 O problema da intencionalidade: da idéia de 'objetivi-dade imanen te' na filosofia de Franz Bren/ano ao de-safio da parte V das Jnvestiga96es Lógicas de Edmund Husserl

Celso R. Braida 79 Para uma crítica da semántica inferencia!

Flávio M. de O. Zimmermann O círculo cartesiano

123

Giovanni Queiroz 145 Sobre o conceito de superveniencia em Davidson

Jorge Alberto Molina 169 Identidad y prueba geométrica

Marco António Sousa Alves 191 Habermas critico de Davidson: hermenéutica x obje­tivismo

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Maria Cristina T. Sparano lrracionalidade: enigma da racionalidade

Maria Cristina T. Sparano Eduardo Viccnzi Sílvia Maria Monteiro Patrícia Pereh·a

Naturalismo e construc;ao da verdade

213

227

Rcgina A. Rebollo 241 A estrutura lógica do diagnóstico hipocrático

Renato Nunes Bittcncourt 249 A natureza da linguagem nafilosojia de Nietzsche e suas convergéncias como nominalismo

Rodrigo Borgcs 267 O problema do regresso epistémico reconsiderado

Samuel Simon 289 Descoberta ejustijicac;ao

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A ciencia como prática

Alberto O. Cupani Universidade Federal de Santa Catarina

Em seus livros Conhecimento e Poder (Knowledge and Power, 1987) e Engaging Science (1996), o filósofo americano Joseph Rouse faz objeto da sua reflexao o fenómeno, aparentemente óbvio, da aplicac;ao em grande escala da ciencia, da transformac;ao social daí derivada e do entusiasmo com que ela foi aceita. Os filósofos da ciencia - argu­menta Rouse - nao tem percebido que aquele fenómeno induz a revi­sar a concepc;ao tradicional da ciencia como essencialmente teórica, como urna representa<;cio do real, e sugere a conveniencia de concebe­la antes como urna prática específica. Ao mesmo tempo, a aplicac;ao bem sucedida e crescente da ciencia abriga a reconsiderar a noc;ao de poder vinculada ao conhecimento. Com efeito, o poder tem sido visto semprc como um fator extrínseco ao conhecimento, no sentido de que, embora o conhecimento permita o poder ou pennita que dele nos li­bertemos, e o poder possa impedir o distorcer o coohecimento, o po­der nao pode por si mesmo justificar o conhecimento. Rouse acredita que o poder, enguanto capacidade de domínio, é mais inerente a aqui­sic;ao do saber científico do que a concepc;ao tradicional supoe.

Para mostrá-lo, Rouse apela para certas correntes filosóficas atuais que destacam o caráter prático da ciencia, inclusive das teorías. A pró­pria doutrina de Kuhn é passível - para Rouse - de urna leitl1l·a em que a ciencia é antes um campo de práticas do que uma rede de enun­ciados. Aceitar um paradigma equivalería a aprender um conjunto de habilidades, principalmente tratar situac;oes novas como as "exempla­rcs"; deparar-se com uma "anomalía" significaría detectar que algo

Dutra. L. 11. de A. e l'vlortari. C. A. (orgs.). :!005. Epistemología: A11ai.\' do IV Simpósiolmema­cio•wf. Pri11cipia - {'(ll't<' l . Florianóp()lis: NELIUFSC. pp. 9- 20.

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10 Alberto O. Cupaui

nao "encaixa" bem no modo de agir costumeiro; e as mudans;as de pa­radigma scriam passagens a novos modos de vida, nao apenas a novas cren¡yas. Autores posteriores a Kuhn teriam contudo evidenciado mais o caráter prático da ciencia. Por um lado, os neopragmatistas (do tipo Rorty e Bernstein), o fariam ao frisar que a prática da pesquisa é a fon­te de todo critério e paddio científicos. Por outro, os autores que Rou­se denomina "neoempiristas" (como Hacking, Hesse e Cartwright), deslocam o "lugar" do conhecimento, da representa¡yao para a manipu­lar;ao do real. A ciencia tem aspectos técnicos essenciais: a investiga­¡yao se a1ticula conforme habilidades e um know how prático que cons­trói e estabiliza fenómenos, capacitando o cientista para intervir e ma­nipulá-los de urna maneira informativa. O laboratório, e nao o obser­vatório, é o símbolo da ciencia "O poder- comenta Rouse - torna­se a marca do conhecimento." E se é questionável que a ciencia repre­sente o real (basta lembrar o famoso livro de Rorty A Filosofia e o Es­pelho da Natureza), pouca dúvida cabe de que a ciencia aumenta a nossa capacidade de lidar como real.

Nao obstante, nao deveria entender-se que esse " lidar com a reali­dade" seja urna sorte de "tatear" cegamente. Resgatando de urna forma original a doutrina heide&geriana de Ser e Tempo, Rouse nos pede pa­ra advertir que toda prática implica um "ver em tomo" (Umsicht) nao contemplativo, porém eficaz, scm o qua! a prátíca nao seria o que ela é: a apreensao de possibilidades e assim, a compreensao do nosso ser­no-mundo. Com outras palavras: a prátiea, incluida a prática científi­ca, é interpretativa. Além disso, a compreensao inerente a prática é sempre local, vinculada a circunstancias concretas e a uma dada tradi­¡yao interpretativa. Como resultado desta abordagem, ternos urna con­ceps:ao da atividade científica como uma exploras:ao do mundo, influ­enciada tanto pelo interesse prático e as habilidades como pela teoría, cxercida em situas:oes particulares e rcinterpretada permanentemente pelos seus agentes.

Contrastando com a visao tradicional da ciencia, que destaca o pa­pel da teoria como representas:ao geral de um dominio de objetos, sendo-lhe acidentais "o Local da pesquisa, a constru¡yao experimental,

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A Ciénci(l como Prálic(l 11

as facilidades técnicas, a rede particular de rela¡yoes sociais e as difi­culdades práticas" (p. 71 ), a nova concep¡yao defendida por Reuse sa­licnta o caráter local e prático do conhecimento científico. As teorías, antes que esquemas conceituais, constituem modelos ou conjuntos de modelos que podem ser estendidos por analogía. Elas sao usadas mais do que aplicadas ou testadas. Os problemas ou assuntos de pesquisa nem sempre resultam de dificuldades teóricas; também surgem de o­portunidades oferccidas pelos recursos existentes. Os critérios para avaliar a adequa¡yao dos resultados dependem dos usos que se queira dar aos mesmos, e o que conta como uma reivindica¡yao científica jus­tificada depende em parte da compreensao prático-local em que as o­portunidades se manifestam. Em resumo:

... a pesquisa científica é uma atividade circunspectiva, que tem Jugar contra um pano de fundo de habilidades, práticas e equipamentos (in­cluindo modelos teóricos), mais do que de um pano de fundo sistemá­tico de teorías ( 1987: 95-6).

Esta nova visao da atividade científica exige, naturalmente, mna reconsideras;ao da relas;ao entre teoría e experimento. Apoiando-se em idéias de Kuhn e de Hacking, Reuse frisa que os experimentos criam "fenómenos" (no sentido de regularidades manifestas), que sao dis­cemíveis e repetíveis em circunsHincias apropriadas, mediante deter­minadas tecnologías. Os experimentos sao destarte claros ( em contras­te com a complexidade e confusao da experiencia comum) e confiá­veis. A experimentas;ao {vale dizer; a tecnología que a possibilita) permite-nos introduzir urna ordem manifesta cada vez maior no mun­do. Vale notar que os experimentos amiúde tomam um rumo próprio, explorando áreas ainda nao teoricamente articuladas, o que indica que o experimentador tem sua própria maneira de captar as possibilidades das suas técnicas e aparelhos.

Junto com a experimentac;:ao, merece reconsiderac;:ao o laboratório, cost11meiramente entendido como lugar de teste de teorías. Reuse pro­poe ve-lo antes como local de fabrica¡yao de "micro-mundos fenome-

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12 Alberto O. Cupani

nicos," sistemas de objetos e eventos construidos sob condi~ocs co­nhccidas e isolados de Olttras influencias, de modo a serem manipula­dos e a que seja possívcl seguir seu curso. As vezes, introduzimos

ncsscs micro-mundos objetos já conhecidos para estudá-los cm condi­

~ocs controladas; outras, o micro-mundo é um sistema que cstudamos como base de comparas:oes ou para introduzir um efeito em outros sis­temas. Cabe destacar que "seguir o curso" de um experimento nao se rcduz a observar os seus resultados: trata-se de um monitorar (com "a­tcn~ao circunspecta") todo o percurso do experimento, cu idando que as coisas funcionem bem. Implica em identificar e classificar seus componentes, bem como registrá-los. Os micro-mundos, eventos or­denados, constituem a contrapartida instrumental dos modelos teóri­cos. Quanto a rcprodu~ao dos experimentos, essencial para a corrobo­

ras;ao do conhecimento, responde a idiossincrasias locais que fazem com que e la nunca possa ser mecanica. Além do mais - observa Rousc -, os cientistas deliberadamente desenvolvem modifica~oes e abordagens alternativas: existe urna "lógica situacional" da a~ao de laboratório. Cabe ainda advertir que os laboratórios nao consistem no seu lugar físico, mas no contexto de cquipamentos e a redc de relas;oes humanas que torna possívcl a sua atividade específica. Por último, Rouse indica a existencia de "alinhamentos epistemicos," isto é, se­qüencias organizadas de elementos (incluindo sujeitos), adaptados, es­

tendidos, destocados, cte., para conseguir determinado efeito infomla­tivo ( 1996: 185). Esses alinhamentos ou "configuras:oes de práticas" (que já foram mencionados por Fleck 1935) sao análogos aos alinha­mentos sociais que permitem a circula<;ao do poder.

O saber científico é, de ac01·do com esta perspectiva de análisc, co­nhecimcnto local, encamado em práticas que nao sao completamente abstraídas cm teorías e rcgras, produzido mediante habi lidades (inclu­

indo as de trabalhar cm equipe) exercidas segundo as oportunidades. A aparente transcendencia do conhecimento científico (a sua "univcr­salidade") explica-se por uma padroniza{:cio dos procedimentos, resul­

tados, ferramentas e até problemas (análoga a padroniza~ao de qual­quer produto humano). Dcssa maneira, a referencia local dos elemen-

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A Cié11cia como Prático 13

tos da prática científica torna-se indefinida ( 1987: 118). As teorías, cm pat1icular, dcvem ser vistas como estratégias para liclar com os fenó­menos, ou como políticas de a9ao, em vez ele credos ou sistemas de enunciados. Os padroes, por sua vez, nao constituem critérios abstra­tos, mas nonnas continuamente negociadas, quanto a sua adcquada aplicat;:ao, entre os cientistas. Isso significa que os padroes sao tam­bém situados e dinamicos: corrcspondem ao que é ou será aceito como contribuit;:ao a um determinado projeto (compartilhado) de pesquisa, e nao como contribuit;:ao a uma colet;:ao de enunciados impessoalmente conoborados (p. 122). Se as considerat;:oes anteriores sugcrem uma imagcm da racionalidade científica marcada pelas circunstancias, as oportunidades e os acidentes, há de se mencionar também que o traba­lho no laboratório disciplina essa racionalidade ao disciplinar a condu­ta dos c icntistas (p. 237). Junto com a padronizat;:ao, a discipl ina in­troduz um elemento de regularidade que impede que o raciocinio cien­tífico seja puramente circunstancial. De resto, o conhecimento nao e­xiste, para Rouse, como um "conteúdo" ou um "estado cognitivo," mas como urna "situat;:ao no mundo" (1996: 187), que existe enguanto circula, na sua contínua reprodut;:ao, enfrentando resistencias, conflitos e desvíos (e por isso, as práticas científicas incluem sempre re lat;:oes de poder) (ibid., p. 192).

Como já foi adiantado, esta concept;:ao eminentemente prática da atividade científica visa salientar a present;:a inerente do poder dentro dela. Esse poder nao eleve ser mais pensado como algo "possuído" por determinados agentes (individuos ou grupos), senao (seguindo Fou­cault), como algo que "circula," ou que vincula os agentes e as suas atividades. As relat;:oes de poder, no duplo sentido de capacidadc e domínio, sao as relat¡:oes que possibilitam o controle técnico da natu­reza que é para nosso autor a razao de ser da ciencia modema. E a tec­nologí a, cm vez de ser entendida como aplicat;:ao posterior e extrínse­ca do saber previamente adquirido, dcve ser perccbida como a prolon­gat;:ao do fazer próprio do experimento, em que precisamos a lterar o mundo para que o experimento "funcione" (conforme a tese de B. La-

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14 t flberro O. Cupani

tour). As práticas de laboratório sao de resto para Rouse a base da

compreensao do mundo em termos de "recursos" (p. 242). Na concepyao de Rousc, pot1anto, a atividade científica é uma

forma de des-velamento prático do mundo. Uma fom1a específica ca­

racterizada pela inten9ao de dominio, e que tem sua contrapartida na visao da natureza como objeto inerte, nao comunicativo, submetido aos nossos fins. E a ciencia é política, no sentido de que a sua prática transforma nosso campo de possível ayao. Senda o "mundo" scmpre um "campo de atividades," a ciencia muda o mundo. Nao apenas o mundo material, considerando que influencia nossos modos de pensar e agir, particulannente definindo o que é "nonnal" (187:23 1 ss). E a

sua influencia se faz sentir na configura9ao das práticas dentro das quais acorre a política stricto.sensu

*

A análise que Rouse ofercce da atividade científica é original, embora possamos situá-la muna linha de interesse pela prática científica a que contribuíram Flcck ( 1935), Polanyi (1958) e Ravetz ( 1971 ), cada um

deles a seu modo. A sua originalidade deriva, acredito, mais da manei­ra como articula diversas fontes de inspirayao que da proposta de teses completamente novas.

A cnfase na relevancia da prática, nao como mero complemento o suporte da teoria, mas como modo de ser - por assim dizer - da ci­encia, é em princípio promissora de urna melhor compr~ensao dcsta última, especialmente contra uma possívcl supervaloriza9ao da tcoria na filosofia e história da ciencia tradicionais.

Particulannente valioso parece-me o resgate do "olhar em torno" prático (a diferenya da "contemplayao") como a fotma cm que o saber relativo ao mundo busca os seus caminhos, instmmentos e sobre tuda, suas oportunidades. Esse "olhar em torno" é aliado (ou faz parte) do

"sa~er tácito" salientado por Polanyi como essencial a ciencia .. É também interessante a maneira como Rouse explica a transcen­

dencia do conhecimcnto científico por rela9ao as suas condiyoes sem-

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A Ciimcia como Prárica 15

pre particulares e locais de produ.yao, destacando o papel de uma pa­

dronizavao que toma as reivindica.yocs de conhecimento aplicáveis fo­

ra do contexto originário, implicando novas interpreta.yoes para tomá­las accssívei s aos nao especialistas. Essa explica.yao da transcendencia

é importante por ajudar a evitar uma concep.yao talvez demasiado ob­

jetivista do saber científico como posse comum dos seres humanos (a mane ira do "mundo tres" popperiano ).

Nao menos importante julgo o fato de que a enfase na prática, e no caráter obviamente social da mesma, nao conduza Rouse a afirmar ou insinuar que os objetos de conhecimento científico sao pura constru­vao da atividade científica. Essa impressao é provocada freqüentcmen­te pelas análises sociológicas da ciencia. Para Rouse, pelo contrário, a prática científica é uma específica maneira de permitir que o mundo se nos " revele" ( 1996: 186). Embora crítico do realismo científico ( em sua versao representacional), Rouse rejeita também o instrumcntalis­mo, questionando (desde seus supostos heideggerianos e pragmatistas)

a validadc do problema do "accsso ao mundo" no esforvo de conhe­cimento. "O mundo é aquilo com que estamos [sempre] implicados," argumenta Rouse (1987: 143). A ciencia ocupa-se do que é, mais isso

é, para ela, o resultado das suas práticas (nao de uma "confronta9ao" de teorías e observav5es, entendidas como entidades diferentes).

Junto com a idéia de representa.yao, cai também a necessidadc de

sustentar a novao de verdadc como conespondencia. A validade práti­ca dos resultados da pesquisa é traduzida cm termos de ''verdade" pela confoqnidade com os padroes da comunidade científica. O julgamcpto

desta última define o que tem significado para ser verdadeiro ou falso (p. 124), de modo que para Rouse basta uma noc;:ao semantica (a la Tarski), nao epistemológica, da verdade das teorías (p. 147).

Particular original idade alcanva Rouse ao examinar o conceito de comunidade científica, questionando a sua coercncia em termos de um "paradigma." Sem descartar, é claro, a posse de elementos comuns, Rouse destaca o papel da reconstnu;:iío narrativa da prática científica

( 1996:169 ss). Essa reconstruvao nao seria apenas posterior (v. gr. , na forma de História da Ciencia), mas inerentc a prática científica. As

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16 A Iberio O. Cuptmi

nanativas scriam o vcrdadciro patrimonio comum aos cientistas de um

campo. A intcrprctas:ao que cada um faz do campo, do seu passado e futuro tem que ser compatibilizada com a dos outros, o que equilibra­ría a tendencia dispersiva da atividade individual

Por último- but not leas!- cabe destacar o csfors:o que faz Rou­se para compreender a cumplicidadc entre saber e poder, entre ciencia e política, como algo cuja genese podemos remontar ao próprio pro­cesso de obtenc;ao do saber, aparentemente isento de intenc;:oes de do­minio. A combinas;ao dos pontos de vista de autores como Hacking, Cartwright e Foucalt !he permite propor a existencia de urna continui­dade entre a forma de intcrvenc;:ao na rcalidade própria da ciencia ex­perimental, a transformac;ao do mundo própria da tecnología e o con­trole próprio da autoridadc política. O "fechamento" [closure] das si­tuac;oes, a padronizas;ao ("normalizac;ao") das atividades, a disciplina

dos sujeitos e o "alinhamcnto" [alignment] dos agentes e recursos sc­riam aspectos comuns ao mundo da ciencia e á socicdade extracicntí­fica , e explicariam a facilidade com que a ciencia serve a política.

*

Se as idéias de Rouse cstimulam urna nova maneira de refletir filoso­ficamente sobre a ciencia, elas nao estao isentas de dificuldades. Co­mento na seqüencia as que resultam mais evidentes. Poder-se-ia perguntar, por exemplo, se a imagem da prática científica com que o autqr trabalha nao está demasiado limitada as ciencias que Hacking denomina "de laboratório." a diferenc;:a das ciencias mera­mente experimentais. As primeiras sao as disciplinas que produzem "fenómenos" que nao ocorrem naturalmente, como a Física ou a Fisio­logía; as segundas limitam-se á clássica manipulas:ao de variáveis no sentido tradicional de "experimento., (como a Psicología ou a Botani­ca) (Hacking 1992: 33ss). Se essa distinc;ao faz sentido- e eu acho

que o faz - boa parte das conclusoes de Rousc, especialmente as rela­

tivas a conexao entre saber e poder, ficam amca<;adas, ou pelo menos

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1

' ' Cic11cia como Prárica 17

necessitadas de uma reintcrprcta~ao para que scjam válidas nos casos

de ciencias nao cxpcrimcntais.

Também o conccito de poder com que Rousc trabalha é discutivel.

Evidentemente, ele se empcnba em "des-reificar" a nos;ao de poder, que nao consiste em "algo" que possa ser "possuído" ou "usado," mas

na caracterizas:ao de uma organiza~ao de práticas que permite a efici­encia ou eficácia de uma prática determinada. A no~ao de poder aqui usada oscila entre (ou compreendc) as nos:oes de capacidade e de do­minio, como foi já mencio nado. Sobre essa ambigüidade repousa, pa­rece-me, boa parte da maneira como Rouse mostra o poder como algo que se exerce e circula sem ter realidade substancial. Em todo caso,

cabe perguntar-se se da constatavao de que o modo de proceder da ci­encia experimental (que na análise de Rouse pode sintetizar-se como

um "dominar o ambiente para tornar informativo") que se prolonga na tecnología (dominio aberto do mundo), pode concluir-se que "a cien­cia é política," sem que isso signifique a introdus:ao de um conceito artificial, ad hoc, de política. De maneira análoga, nao resulta convin­

cente a afirmas:ao de que "natureza" seja um conceito político (1987: 188) .

Também o conceito de "conhecimento" com que Rouse opera é questionável. Devido a adotar a perspectiva heideggeriana de análise e a correspondente nos:ao de "ser-no-mundo," Rousc rcjeita a nos:ao do conhecimento como algo que um sujeito "possui ," substituindo-a pela

nos:ao ele "mna caracterizas:ao da situa~ao em que os conhccedores se encontram" ( 1996: 133). Desde a perspectiva dos agentes, a cogni~ao nao consistiría cm adquirir, elaborar, rcjeitar, etc., um determinado "conteúdo," mas no estar inserido em urna seqüéncia e recte de práti­cas informativas, continuamente refeitas. Reciprocamente, o conheci­mento como produto social tampouco consistiria em algo objetivo (um sistema de enunciados, v. gr.), nao configuraria um dominio autóno­mo. Rouse propoe substituir a nos:ao da existencia de "algo" denomi­

nado "conhecimcnto" (ou no caso, "conhccimento científico"), que seria o "suporte" das práticas de pesquisa e crítica , pelo reconheci­

mento de que o que chamamos conbecimento existe apenas eme pelas

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18 Alberto O. Cuptmi

práticas mencionadas (Rouse denomina esta concepc;ao conceito "de­flacionário" do con hec imento) (1996: J 99). As práticas informativas (porque disso se trata) nao tem limites naturais, nem - por conse­qüencia - permitcm nem requcrcm um conceito (explicativo) do "conhecimento. " Para Rouse, todas as dificuldades que suscitam o de­bate entre realistas, historicistas, empiristas e construtivistas sociais, derivam de que nao se abandona, junto com o realismo, a idéia de que o conbecimento deva ser representativo e a pretensao de justificá-lo in tolo. Essa pretensao conseguiría ser abandonada com sua proposta de re-situar o conhecimento nas práticas.

Essa concepc;ao do conhecimento tcm sido criticada por M. Lun­tley (1997), quem assinala urna falta de definic;ao de "prática" que permita fazer jus ao aspecto propriamente epistemológico da prática científica. Rouse trata indiscriminadamente todos os modos de "práti­ca," o que lhe facilita faJar dos "alinhamentos" que tomam "significa­tiva" uma determinada prática (por ex., a proposta de uma teoría), a través da superatyao de obstáculos e desvíos (c<?nstituídos por outras prátieas de variado tipo). Ora, essa descric;ao deixa sem explicar por que sao espeeificamente " infom1ativas" certas práticas (e outras, nao), principalmente, porque nao define o que seja a "signifieatyao" em cau­sa, e sobre tudo, passa por cima da diferenc;a entre a correc;ao ou incor­rec;ao epistemicas de uma crenc;a, e a sua aceitac;ao social. Para Lun­tley, renunciar a uma concepc;ao representacional da verdade e ao rea­lismo metafisico (como o faz Rouse), bem como a tentativa de justifi­car o conhecimento in loto, nao equivale a abandonar toda e qualquer pretcnsao de justificar as crenc;as, mesmo que as concebamos como práticas e nao como rcpresentac;:oes. Em palavras de Luntley:

A tarefa de legitimayao sobrevive na medida em que se tem um mode­lo da cren9a científica que aceita a idéia de que o requerimento mais básico a uma cren9a é que e la seja verdadeira ( 1997: 366)

O conteúdo da prática cognitiva pode ser verdadeiro ou falso ( epis­tcmicamente coneto ou incorreto), e nao apenas dependcntc de tais ou

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A Ciéncia como Pdl/ica 19

quais fatores sociais. Nao precisamos para concebe-lo assim admitir um conceito metafísico da vcrdade. Basta cndossar o conceito scman­tico da mesma (no que Luntley denomina um "simples realismo" [pla­in realism]) . Com outras palavras, é esscncial para ele reconheccr a nos;ao de crens;a errada , "uma crcns;a a resistencia a qual é indepen­dentc da vontade" (ib., p. 367), a diferenc;a das resistencias de outra natureza que podemos vencer individual ou coletivamente.

Este seria, portanto, o ponto fraco da proposta de Rouse: a rigor, ele nao desenvolve "um conceito cognitivo da prática" (p. 369). No entanto, Luntley considera fecundo o ponto de vista de Rouse, pois sugere a possibilidade de apreciar o aspecto nao teoricamente articulá­vel da atividade científica, a condic;ao ele perccber que crens;as práticas podem ser todavía legitimadas, isto é, indagadas quanto a sua correc;ao epistemica.

Coincido com Luntley, e atribuo as teses de Rouse um valor sobre tudo heurístico, no que diz respeito a encontrar um enfoque intermedi­ário - e por isso, mais adequado - em Filosofía da Ciencia entre a concep<;ao tradicional que sublinhava talvez excessivamente o aspecto proposicional-representativo do conhecimento científico, e a tendencia atual a dissolver a especificidade da ciencia em virtude de .sua depen­dencia do contexto social.

Referencias bibliográficas

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Kegan Paul.

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20 Alberro O. Cupani

Ravctz, J. 1971. Scientific Knowledge and lts Social Problems. Ox­ford: Clarendon Press.

Rouse, J. 1994 [ 1987]. Know/edge and Power. Towards a Política/ Phílosophy of Science. Ithaca e Londres: Comell University Press

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Alberto O. Cupani Departamento de Filosofia

Universidade Federal de Santa Catarina e-mail: [email protected]

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l. Introdu~ao

É o premio da virtude o conhecimento? Linda Zagzebski e urna teoria aretéica

das virtudes intelectuais

Alexandre Meyer Luz Universidade Federal de Sergipe

Linda Zagzebski, em seu Virtues of The Mind - An /nquily into the Nature of Virtue and the Ethica/ Foundations of Knowledge, 1 propoe um ambicioso redirecionamento do debate epistemológico, sugerindo que alguns dos príncipais problemas da epistemología contemporanea podem ser resolvidos por urna teoría "pura" das virtudes intelectuais, ou seja, urna teoría epistemológica elaborada a partir do modelo da ética aretéica aristotélica.

Na ética moderna o objeto de avalias;ao tem sido, tradicionalmen­te, o ato; na epistemología, as crens;as. Os epistemólogos tcm discuti­do sobre cren9as "justificadas," "garantidas," "bem-fuQdadas" e assim por diante, e tem divergido sobre o caráter das crens;as que cfetiva­mente merecem taís títulos. Como é sabido, há duas respostas recor­rcntcs na literatura contemporanea para a questiio das propriedades desejadas para crens;as (assim como há duas espécies de rcspostas para a questao sobre o que toma urna as;ao correta): a primeira delas se preocupa com a taxa de produyao de verdades, e é análoga ao conse­qüencialismo ético; a segunda se preocupa com o que é permissível, do ponto de vista epistemológico, ou seja, preocupa-se com coisas como violas;ao de regras e cumprimento de deveres e, por isso, Zag-

Dulra. L. H. de A. e Mortari. C. A. (orgs.). 2005. Epistemolugia: Anais do 11' Simpósio /mema· ciumrl. Principia- Parte l . Florianópolis: NEUUFSC. pp. 21-46.

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22 tllexcmdre M. Lu:

zcbskí classifica as teorias que se preocupam com tais questoes num grupo correlacionado ao dcontologísmo ético. É inelevante, para nos­sos objetivos neste ensaio, investigar a correvao desta classificavao2

Mas é relevante percebennos que os dois grupos ("deontologismos" e "consequencialismos") sao compostos por teorías baseadas-em­crcnva, cstruturalmente simi lares as teorías éticas baseadas-cm-ato. Nestc sentido, a proposta zagzebskiana é, segundo a sua própria avali­avao, original: em substítuíc;:ao a qualídades de cren9as (a verdade ou a justíficavao) como primeíro objeto de avaliac;:ao, sua teoría das virtu­des se ocupará primeiramente de características [traits] internas das pessoas. Os confiabi listas, por exemplo, tem se ocupado disto, alguém podería lembrar; os confiabilístas tcm se preocupado com característi­cas internas dos indivíduos, tendo, inclusive, como vimos, nomeado algumas destas características como "virtudes."

Os confiabilístas nao se ocupam, porém, primeiramente de virtu­des. Uma vi1tude, segundo a proposta confiabilista, é definida, antes, em te1mos de sua condutividade-a-verdade. Zagzebskí propoe algo bcm distinto disto: "uma teoría que trate a avaliavao como algo deri­vado do caráter do agentc."3 Ou seja, assim como no debate ético ternos nas teorías da virtude uma alterna ti va ao consequencialismo e ao deontologismo (que tem como objeto primário de avaliavao os atos), teríamos, no debate epistemológico, uma alternativa aos mode­los que tem na crenc;:a seu objeto primário de avaliac;:ao (as teorías internalistas e externalistas da justificavao e as teorías do conhecimen­to .destas derivadas).

Quais, porém, as vantagens desta mudanc;:a de orientavao? Elas nao seriam poucas: prímeiramente, sustenta Zagzebski, conceitos are­teicos "tem a vantagem de maior riqueza'"'; por exemplo,

a reac;:ao das pessoas comuns a impropriedade epistemica nao consiste apenas em clizer que a crenc;:a de uma pessoa é injustificada, mas em direcionar a avaliac;:ao para a pessoa mesma, denominando-a de [pos­suir uma] "mente estreita," "descuidado," " intelectualmente covarde," " rasteiro," "desatento," "preconceituoso," "rígido" ou "obtuso" ( ... ) . É claro que as crenc;:as formadas como resultado destes defeitos siio

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f.: o prémio da vinude o conhecimem o?

avaliadas negativament·e, mas quaisquer termos para esta avaliac,:ao negativa, tais como " injustificado" ou " irracional," falham em infor­mar qualquer outra coisa além da avaliac,:ao negativa isolada ( ... ). Conceitos como aqueJes apresentados mais acima tem um conteúdo mais rico. Eles nao sao apenas tennos normativos, avaliando negati­vamente, mas eles indicam o modo pelo qua! o crente está a agir de modo impróprio. 5

23

Em segundo lugar, Zagzebski considera que se pretendemos re­alizar a avaliac;:ao de u m ato (o u crenc;:a) julgando o ato (o u crenc;:a) segundo um conjunto de regras, acabamos por exigir conjuntos de regras mais e mais complexo, chegando, por fim, a conclusao de que nao podemos oferecer um conjunto de regras capaz de permitir a ava­liac;:ao de todas as as:oes (crens:as). Ela oferece como exemplo a vittu­de intelectual da introspecs:ao, lembrando que ela "é uma virtude inte­lectual que nao é governada por regras, mas difere de modo significa­tivo na forma que toma de uma pessoa para outra, e de urna área do conhecimento para outra."6 Um tratamento baseado na noc;:ao de vittu­de escaparía de tal problema.

Uma terceira vantagem de uma teoría de inspiras:ao aretéicase­ria a de que ela é capaz de avaliar mais adequadamente certas qualida­des amplamente aceitas como valiosas. A epistemología contempora­nea, sustenta Zagzebski, é "impessoal," enquanto "foca sobre valores epistemicos que sao impessoais: o valor que consiste na posse da ver­dade e o valor da racionalidade e da crent¡:a justificada."7 Há, porém, ela sustenta, outro "valor epistemico tao importante quanto estes, que é a sabedoria,"8 e este valor nao é impessoal, já que a sabedoria deve ser desenvolvida por cada indivíduo em particular. A sabedoria, en­tendida como a posse hannonica das diversas vittudes, unifica as pro­posis:oes conhecidas, unifica suas motivac;:oes e seus valores.

Uma virtude integradora, como phronesis (a funs:ao da nos:ao de phronesis na teoría zagzebskiana será discutida posteriormente), nao pode ser analisada em termos de crens:as, já que ela nao é uma quali­clade de crens:as isoladas. Urna pessoa que possui uma virtude integra­dora "possui atitudes de ordem superior em relac;:ao ao seu próprio

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2-1 Ale.umdre M. Luz

caráter e a qualidade das cren~as e o nível de entendimento que seu

caráter produz. "9

Por fim, a o permitir uma avaliayao do caráter intelectual (e mo­

ral) dos individuos, uma teoria aretéicapermitiria a supcra~ao de uma avaliaryao polarizaclora, colocando a no¡yao ele cren~ajustificada (ou de ato corTeto), de um lado, e a de crenr;a injustificada (ou de ato incorre­to ou culpável), do outro. N este sentido, a "ética [e a epistemología) das virtudes permite uma gama mais ampla de níveis de avaliayao e valoriza o fato de que nosso objetivo moral [e epistemico] nao é ape­nas o de evitar o grau mais baixo da escala de avaliaryiio. " 10

Assim, esta capacidade de fomecer um modelo de avalia¡yao para

nossa vida intelectual e moral (e nao apenas para crenryas e atos isola­dos) pennitirá a superaryao do atomismo que, segundo Zagzebski, ca­racteriza a epistemología contemporanea, centrado na ava lia¡yao de crenqas. Este atomismo nao nos permitiría perceber, por exemplo, que

há problemas subjacentes ao conceito de justificayao que conduziram ao impasse entre internalismo e extemalismo. Ao considerannos a justificac;:iio como uma propriedade de uma crcnya, torna-se muito di­fícil julgarmos as disputas sobre este conceito se a crenc;:a é tratada como o objeto máximo da avaliac;:ao. Se, ao contrário, nós nos concentramos sobre o conceito mais profundo de virtude intelectual e tratamos a justilicabilidade de uma crenc;:a como algo derivado, podemos descobrir que a justificabilidade é apenas uma dentre outras propriedades nonnativas das crcn9as e que as intuic;:oes competidoras de internalistas e externalistas requerem a análise de mais do que uma propricdade das crenc;as, cada uma das quais está baseada de · certo modo no conceilo ele virtude. 11

Pretendemos mostrar que a teoría zagzebskiana, primeiro, nao é bcm sucedida em seu objetivo de superar o impasse entre intcrnalistas e cxtemalistas e, além disso, que a teoría falha em oferecer uma defi­niryao de conhecimento adequada. Antes, porém, elevemos proceder á reconstru¡yao da teoría.

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t o prémio da virtude o coulrecimeuro? 25

2. A teoría geral da virtude e do vício

Atentemos para a definivao de conhecimento sugerida em Virtues of !he Mind:

Def: Conhecimento é um estado de cren¡ya verdadeira resultante de atos de virtude intelectual. 12

Como a defini¡yao já indica, a no¡yao de virtude suposta em Virtues of the Mind está ligada, como mostraremos, a novao de sucesso. Nao poderia ser diferente, já que o conceito de conheeimento traz implícita tal novao (manifesta na condi9ao de verdade). Como veremos, urna das vantagens da abordagem Zagzebskiana sobre a confiabilista con­siste exatamente na apresenta9ao de urna explicayao da conexao ne­cessária entre virtude e verdade mais sofisticada do que a eonfiabilista, sob um aspecto que será esclarecido posteri01mente. Por outro lado, mostraremos que a conexao entre virtude e verdade nao é levada a cabo de modo apropriado.

2.1. Virtudes

Cabe perguntar, agora, como Zagzebski conceberá a no¡yao de virtude. Vamos, seguindo-a, proceder a urna reconstruviio analítica do concei­to. Quando falamos de virtudes, utilizando a no¡yao em seu sentido mais popular (que remete a ética nicomaqueica aristotélica) deparamo­nos com algumas características amplamente aceitas. Em primeiro lugar, por exemplo, parece ser amplamente aceito que uma virtude é uma espécie de excelencia. A excelencia em atingir a vcrdade, diría um confiabilista. A excelencia que nos aproxima da eudaimonia, pre­feriría um defensor de certa interpreta¡¡:ao da teoría aristotélica. Zag­zebski nao segue qualquer das duas propostas. Ela opta, antes, por uma abordagem que interpreta a no¡yao de virtude como baseada-em-

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26 Alexandre M. L11:

motivac,:clo [motivation-basedJ. Sua teoría considera que uma virtude é uma excelencia em satisfazcr a motivar;:ao para produzir um detenni­nado bem, e que este bem nao devc scu valor a qualquer outra coisa mais fundamental.

Como Zagzebski reconhece, "a dificuldade para este tipo de teoría [a teoría baseada-cm-motivar;:ao], é claro, é a de tornar plausível a idéia de que cada virtude é boa cm um sentido fundamental, nao­derivativo,"13 sem depender de qualquer outro bem posterior. 14 Por outro lado, ela se livra da tarefa de sustentar a nos;ao de eudaimonia como um bem fundamental. De qualquer modo, urna teoría baseada­em-motivas;ao terá que mostrar que uma motivar;:ao para uma virtude é um bem. Voltaremos a este ponto na ser;:ao seguinte.

Uma segunda característica amplamente aceita quando se fala de virtudes, segundo Zagzebskí, é a de que virtudes sao "estados de espí­rito" [states of the soul] - expressiio que é "consistente com a prática habitual de excluir da categoría das virtudes as excelencias físicas, apcsar de nao ser completamente despropositado falar de 'virtudes fisicas'" 15

- que sao adquiridos e desenvolvidos por urna pessoa. Este critério - necessário, mas nao suficiente - para a identifica­

r;:ao de algo como virtude tem um adversário bem conhecido: confiabi­listas como Ernest Sosa e Alvin Goldman denominam 'virtude' a [a­

cuidades naturais, como boa visiio e boa audir;:ao. O tratamento confi­abi lista da nor;:ao de virtude é, pelo menos, incompleto, se considerar­mes os pressupostos assumidos por Zagzebski, já que, como vimos, sua teoría tem parte de seu apelo ligado a .idéia de que uma virtude é uma característica profunda de um indivíduo, algo que se identifica com sua personalidade.

Zagzebski nao oferece um argumento absolutamente convincente contra o uso confiabilista da nos;ao de virtude, simplesmente apelando para o que considera o uso habitual da nos;ao. Ela oferece, porém, dois critérios para a separar;:ao entre virtudes e faculdades naturais. O pri­meiro consiste na idéia de que virtude (no sentido que Zagzebski pre­tende atribuir a nor;:ao) é algo que é adquirido e desenvolvido ao tongo do tempo, enquanto faculdades naturais sao, em grande parte inatas.

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27

Este critério é, porém, insuficiente se tomado isoladamente, já que alguém poderia argumentar que faculdades naturais também podem ser desenvolvidas. O segundo critério, entao, baseia-se na idéia de que uma virtude sempre possui um vicio correspondente. 16 Neste sentido, por exemplo, "claustrofobia nao é um vício, e nao apenas porque claustrofobia é involuntária ( ... ). Claustrofobia nao é um vício porque nao há uma virtude conespondente que a pessoa claustrofóbica pode­ría ter desenvolvido em seu lugar."17 A posse de urna virtude é, devido a possibi lidade do vício, digna de mérito. Faculdades naturais nao conespondem a vício algum e, por isso, nao merecem o mesmo tipo de avaliac;ao.

2.1. 1. Virtudes e motiva~áo

Diferentemente de uma faculdade natural, urna virtude nao deve ser avaliada primariamente por sua efetividade, mas antes por sua capaci­dade de motivat;cio. Um motivo é uma forya interna e persistente a iniciar e direcionar nossas ac;6es . 18 Como Zagzebski bem lembra, mo­tivos podem ser, por exemplo, de caráter fisiológico, como a fome e a sede; mas, parece evidente, também podem ser aplicados a virtudes. Alguém considerado corajoso, por exemplo, é motivado para certas ac;oes que tem por finalidade, por exemplo, proteger algo que, para o individuo virtuoso, está acima de sua própria integridade, dados os riscos implícitos em tais ay6es. Poclemos, entao,

( ... ) definir urna motivac;ao como uma tendencia persistente para ser movido por um motivo de ceno tipo. Eu proponho que mna virtude tem um componente de motivayao que é específico para a virtude em questao. ( ... ) Um motivo é uma emoc;ao direcionadora-da-ac;iio. Mes­mo que uma emoyao possa ser possuída sem ser sentida, mna pessoa que está inclinada a ter uma emoc;iio a sente de tempos em tempos, e quando ela atua como um motivo, a pessoa deseja atingir certo fim. Este fim pode ser interno ou externo ( ... ) Algumas virtudes podem

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28 Afexcmdre M . Lu;:

nao possuir um fim, como a sabedoria, mas tais virtudes nao sao típi­cas.19

A relevancia destas considcras:oes se revelará plenamente quando avaliarmos a epistemología zagzebskiana. Mas ela já se insinua: é através da idéia de que uma motivat;ao aponta para um fim que Zag­zebski tentará uma acomodas;ao daquela intuis;ao implícita a nos;ao de conhecimento, a de que conhecimento está relacionado ao sucesso (a obtcns;ao da verdade). Zagzebski reservará o lugar para o componente de sucesso - fundamental para uma explicas:ao adequada do conceito de conhecimento - através da nos:ao de motivas:ao. Ela considera que

urna motivac;:ao virtuosa faz com que o agente procure agir efetiva­mente ( ... ). A motivayiio para obter conhecimento de urna dada espé­cie e para agir de certo modo nao conduz confiavelmente para o su­cesso, apesar de confiavelmente levar o agente a fazer o máximo ao seu alcance para ser bem-sucedido.20

A motivas:ao para o sucesso e o sucesso propriamente dito sao, pois, elementos distintos. A motivas;ao para a virtude leva o agente a coor­denar sua as;ao, valendo-se, inclusive, de suas habilidades e faculdades naturais. O sucesso da as:ao virtuosamente motivada dependerá, pois, também do grau de confiabilidade das faculdades naturais e das habi­lidades envolvidas numa dada instancia de as;ao.

Investigaremos, mais adiante, como isto se aplica as virtudes inte­lectuais, nosso objeto d~ investigas:ao. Por ora, podemos encerrar esta primeira ses;ao com uma definis:ao geral de virtude, devidamente es­clarecida:

Urna virtude pode ser definida como urna excelencia profunda e ad­quirida de urna pessoa, envolvendo urna motivayao característica para produzir certo fim desejado e sucesso contiável em realizar este fim.Z 1

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É o premio da ••irtude o conllecimemo? 29

3. As virtudes intelectuais

Como vimos, uma virtude particular pode ser definida, primordial­mente, por seu componente motivacional. As virtudes intelectuais podem ser classificadas em um grupo particular enguanto, para todas elas, o componente motivacional está ligado a motivac;:ao geral para o conhecimento ou, de modo mais específico, a "motivac;:ao para obter contato cognitivo coma realidade."22

A motivac;:ao para o "contato cognitivo com a realidade" aponta para uma conexao com o externalismo em geral e, em particular, com o confiabilismo. Um proeesso confiável é um processo, como vimos, que nos permite, na maiori:a dos casos, contato com a realidade. Esta conexao nao deve, porém, levar a mna aproxima9ao exagerada entre os dois projetos: a noc;:ao zagzebskiana de virtude aponta para algo anterior a posse de processos confiáveis. As motivayoes virtuosas

levam o agente a guiar seus processos de forma9ao de cren9a de certas maneiras. Elas o tomam receptivo a processos conhecidos, por sua comunidade epistemica, como sendo condutores a verdade, e o moti­vam a usá-los, mesmo que isto signifique a supera9ao de uma tenden­cia contrária. ( .. . )A pesquisa contemporanea em epistemología tem se concentrado extensivamente sobre o conceito um processo de forma­~ao de cren~as condutor-a-verdade, assim como em muitos casos es­pecíficos destes processos. Eu nao tenho inten9iiO alguma de reprodu­zir ou substituir este trabalho aquí. Meu propósito é o de mostrar que a motiva9ao para o conhecimento conduz uma pessoa a seguir regras e processos· formadores de cren9as que sao condutores-a-verdade e cuja condutividade-a-verdade ela é capaz de descobrir e usar através da posse de virtude intelectual.23

O excerto acima nos leva a identificayao de um elemento interna­lista na teoría zagzebskiana: enguanto ela mantém a no9ao de processo confiável, e la subordina tal noyao a uma hierarquicamente superior- a noc;:ao de viitude - que permite acesso, por parte do agente, a confiabi­lidade do processo formador de crenc;:as (algo que um extemalista dispensaría). Mas voltaremos a este ponto mais adiante.

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30 Alextmdre M Lu:

A suposis;ao de que uma virtudc dcvc ser condutora-a-vcrdade traz outras implicacyocs. Yi1tudes como a criatividade e a originalidade, por exemplo, nao sao confiavelmente condutoras-a-verdadc, no sentido habitual, confiabilista, do tenno. A proporcyao de crcncyas falsas produ­zidas por tais virtudes supera, em muito, a de crens:as verdadeiras. Elas, porém, alega Zagzebski, sao condutoras-a-vcrdade em um outro sentido: elas sao "condicyao necessária para o avancyo do conhecimento cm urna área. " 24

Mas há um ponto ainda mais importante: uma vi1tude intelectual nao precisa ser condutora-a-verdade para uma pessoa em particular, num dado instante particular. Já que virtudes sao adquiridas gradual­mente, através do hábito, é possível que um comportamento nao seja condutor-a-vcrdade para alguém, durante certo período de tempo (é possível que, mesmo para alguém já maduro no que diz respeito ao excrcício de urna virtudc, urna virtudc nao seja condutora-a-verdade por um período). Se aquilo que motiva a acyao, porém, é urna motiva­cyao virtuosa, o comportamento do agente deverá ser condutor-a­vcrdade, considerando-se um período de tempo mais amplo.25 Yirtude é, como vimos, uma nocyiio ligada a nocyao de sucesso.

A teoria zagzebskiana, oeste ponto, revela uma vantagem sobre o confiabilismo: o confiabilismo simplesmente nao valora processos que, mesmo confiáveis para outros, nao sao confiáveis para o sujeito da avaliacyao. Isto é um problema se considerarmos que pelo menos parte de nosso aprendizado intelectual consiste na aquisicyao de habili­dade.s que, por vezes, só revelam sua confiabilidade após um longo período de tTeinamento. Antes de atingir a maturidadc, mcsmo consi­derando sua aplicacyao no treinamento, o pupilo nao merece alguma avaliacyiio positiva? Parece-nos que sim. Mas, para o confiabilista, a dcspcito de sua tentativa de imitar seu modelo virtuoso, o aprendiz nao passa de alguém com processos nao-confiáveis de formacyiio de

crcncyas. . Esta deficiencia pcrmitiu também que o Novo Problema do Genio

Maligno atacasse o confiabilismo. O problema mostrou que é contra­intuitivo considerar alguns proccssos como confiáveis para um grupo

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É o premio da virtude o co11hecimell/o? 31

de pessoas (as que vivem ern nosso mundo) e- os mesmo processos ­como nao-confiáveis para Olttras pessoas (as que vivem no mundo manipulado pelo genio maligno). Os dois grupos seriam valorados (considerando que esH\o virtuosamente motivados para a a¡yao) do mesmo modo pela teoría zagzebskiana: os dois grupos agem carreta­mente (mas o segundo grupo nao realiza atos de virtude - mna no¡yao que será introduzida mais adiante).

Um aprendiz nao é virtuoso, mas pode agir, mesmo que esporadi­camente, de modo similar ao modo como agem as pessoas virtuosas. Zagzebski reserva tres coneeitos para a avalia¡yao destas a¡yoes:

Um ato correto é o que uma pessoa virtuosamente motivada e que tem a compreensao da situas;ao particular que mna pessoa vir­tuosa teria, poderia fazer em circunstancias scmelhantes.

Um ato errado é o que uma pessoa que é virtuosamente moti­vada e que tem a compreensao da situa¡yao particular que uma pes­soa virtuosa teria, nao faria em circunstancias semelhantes.

Um dever moral é o que uma pessoa que é virtuosamente mo­tivada e que tem a compreensao da situa¡yao particular que uma pessoa virtuosa teria, faria em circunstancias semelhantes.

Estas defini¡yoes serao importantes para nossa exposis:ao porque, como já pode ser imaginado, elas sustentarao a defini¡yao zagzebskiana de justificas:ao, como veremos mais adiante. Antes de tratannos do conceito de justificas:ao, porém, devemos analisar mais ~dequadamen­te as definis:oes apresentadas. Há, ali, pelo menos um elemento nao esclarecido; o que significa possuir o "entendimento da situas;ao parti­cular que uma pessoa virtuosa teria"? Zagzebski apresenta uma expli­cas:ao desta intuis:ao apelando a no¡yao de phronesis.

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32 Alexa11dre M. Luz

3.1.1. O papel da phronesis

Seguindo Aristóteles, Zagzebski considera que o "bom julgamento nao pode ser sempre reduzido a obediencia a um procedimento de

decisao passível de especificas;ao antes da situas;ao em que ocorre a

a<¡:ao. "26 De um modo mais preciso, uma virtude como phronesis se mostra necessária pelas seguintes razoes: Primeiramente, ela é a virtu­de que pennitiria a determina<¡:ao do meio-tetmo entre os extremos de excesso e deficiencia, meio-termo que caracteriza uma virtude em particular. Em segundo lugar, ela permitiría resolver os conflitos entre vitiudes, naqueles casos cm que mais do que uma virtude legisla sobre uma as;ao. Por exemplo, numa detem1inada sittJa<¡:ao a humildade e a

coragem intelectual podem fornecer diferentes instrus;oes para a as:ao. Num caso como este, saber como agir "nao é uma simples questao de possuir a combinas;ao das virtudes em questao"27

; é preciso uma virtu­de que promova o equilibrio entre as virtudes.

Ternos, entao, uma virtude de ordem superior/8 que coordena as demais virtudes. Esta vitiude é aprendida pela imita<¡:ao do comporta­mento das pessoas virtuosas da comunidade29 e, como as demais vir­tudes, é adquirida gradativamente.

3.2. A No~ao de Justifica~ao

Phronesis regula tanto as virtudes morais quanto as virtudes intelectu­ais; podemos, entao, derivar das definis;oes anteriormente apresenta­das suas contrapartes no campo epistemológico. Um ato coneto, por exemplo, tem como contrapa1te a cren<¡:a justificada, e assim por dian­te. Temos, assim:

Uma crem;:ajustijicada é o que uma pessoa que é motivada por

virtude intelectual, e que tem a compreensao de sua situac;:ao cog­nitiva que uma pessoa vi1iuosa teria, poderia acreditar em circuns­

tancias semelhantes.

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,

É o pn!mio da l'irtude u conhecilne/1/0~ 33

Urna crem;a inj ustificada é o que urna pessoa que é motivada

por vi ttudc intelectual, e que tem a compreensao de sua situas;ao

cognitiva que urna pessoa virtuosa tcria, nao acreditaría cm cir­cunstáncias semclhantes.

Urna crens;a de dever epistémico é o que urna pessoa que é mo­

tivada por v irtude intelectual , e que tem a comprccnsao de sua si­tua~ao cognitiva que uma pcssoa virtuosa teria, acreditaría em cir­cunstáncias semelhantes. 30

Devcmos notar que a defini~ao de cren~a justificada (e, paralela­mente, a de ato correto) estabe lcce o nível mais básico de avalias;ao. Nao é exigido, ali, que o agente seja virtuoso, mas apenas que ele aja, em rcla~ao aque Ja cren~a, como agiria uma pessoa viltuosa (phronesis inclusa), e que ele esteja motivado por um motivo que é motivo para uma virtude. Ele nao precisa ser virtuoso, mas ele precisa ter aqueJe tipo de compreensao que teria uma pessoa com phronesis. lsto revela o caráter interna/isla da teoría da justifica~ao zagzebskiana; crens;as

de segunda ordcm sobre urna crcns;a em questao sao indi spcnsáveis para a justificas;ao desta crens;a. Veremos, agora, como Zagzebski

passa da no~ao de justifica9iio para a de conhecimcnto.

4. A defini~ao de conhecimento

Estamos, a esta altura, prontos para a análisc da defini~ao Zagzcbskia­na de conhecimento. Do exposto cm ses;ocs anteriores, podemos espe­rar que a defini~ao de conhecimento seja capaz de iluminar nossa compreensiio do conceito de conhccimento, e nao apenas de responder a contra-exemplos (neste caso, os contra-excmplos de tipo-Gctticr).

"Conhecimento" é definido por Zagzcbski como

Def l: Conhecimento é o estado de contato cognitivo com a realidade resultante de atos de virtude intclcctual.3 1

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34 A lexcmdre lvl. L11z

ou, de modo alternativo,

Def 2: Conhecimento é um estado de crens:a verdadeira resultante de a tos de virtude intelectual. 32

A segunda definis:ao segue o hábito de defmir conhecimento como crens:a verdadeira justificada mais x; a primeira, por outro lado, "pode ser prcferível por nao se comprometer com questoes como o objeto do conhccimento, a natureza da verdade e a existencia de proposis:oes. ( ... ) Ela também permite uma interpretas:ao mais ampla do conheci­mento, já que o conhecimento pode incluir outro tipo de contato cog­nitivo com cstruturas da realidade que nao o proposicional."

Há pelo menos dois problemas aqui: prirneiro, se a teoría zag­zcbskiana é baseada-em-motivas:ao, porque devemos aceitar urna de­finis:ao que, além da motivas;ao, exige a verdade? Há, evidentemente, urna distins:ao significativa entre estar motivado para buscar a verdade e atingir, efctivamente, a verdade (um problema bem conhecido para os intemalistas). Em segundo lugar, como podemos distinguir um ato virt11oso de um ato de virtude? Um indivíduo num mundo manipulado, como o mundo descrito no Novo Problema do Demonio Maligno, nunca poderá descobrir que seus atos nao sao atos de virtude. A dis­tins;ao entre ato virtuoso e ato de virtude parece ser, pois, ad hoc.

Um olhar atento sobre as duas definis:oes, porém, revelará outros elementos; particulam1ente, ele reve la um elemento nao analisado em nossa exposiyao: a noyao . de ato de virtude. Como veremos a seguir, esta noyao é engendrada de forma sui generis por Zagzebski, e revela­rá algumas caracteristicas importantes da teoría.

4.1. Virtudes e atos de virtudes

Como vimos, a definiyao de virtude reserva lugar para um elemento de sucesso. Vimos, também, que a conexao entre virtude e sucesso é explicada cm termos de confíabilidade, a confiabilidade em atingir o

Page 36: Epistemologia. Anais do IV  Simpósio Internacional Principia, Parte1

/~ o prémio da 1·inude o co/1/t(•¡·imt•uto? .35

fim ligado a motiva9ÜO da virtude. Esta confiabilidade .nos indica.

apenas, que o agente virtuoso é bem sucedido muito freqüentemente:

ela, certamente: nao nos garante que ele sed bern sucedido em cada

ato (ou cren~a) ern particular, mcsmo que sua ac;ao seja carreta (ou

que sua cren~a esteja justificada).

Nosso interesse pelo conhecimento nos mostra, porém, que esta­

mos interessados no sucesso em relac;ao a um ato (ou cren<;a) específi­

co. Quando analisarnos o conhecimento, nós procuramos separá-lo das

cren~as verdadeiras obtidas de modo acidental e das cren~as mera­

mente justificadas (mas possivelmente falsas). A primeira parte da

tarefa é relativamente simples: a segunda, porém, é desafiadora (como

bem o sabemos que defendem teorías internal istas da justificac;ao).

A estratégia zagzebskiana para conectar o elemento de mérito a verdade passa pela formul a~ao de um novo conceito, o conceito de ato de virtude, assim definido:

Urn ato de virtude intelectual A é u m ato que se origina do componen­te motivacional de A. é algo que uma pessoa coma virtudc A (prova­velmentc) faria nas mesmas circunstancias. é bcm-sucedido cm atingir o fim da motiva~iio de A. e é tal que o agente adquire uma crcn~a verdadeira (contato cognitivo com a realidade) devido a estes elementos do ato.~~

Esta definic;ao. como podemos facilmente perceber. é deri vada da

definic;ao de ato correto. Ela preserva o elemento de mérito daquela

definic;ao e a ele adiciona o elemento de sucesso (o con tato cognitivo

com a realidade).

A relac;ao entre um ato de virtude e a virtude propriarnente dita é,

no mínimo, curiosa: um ato pode ser virtuosamente motivado e o a­

gente pode ser alguém que é virtuoso cm alto grau. Apesar disso, jú que a virtude garante apenas a confiabilidade em atingir seu fim. o

agente pode ser mal-sucedido. Seu atoé correto. conforme a derinic;ao

anteriormente proposta. O agente é virtuoso. O ato nao é. porém, um

ato de virtude Uá que nao foi bern-sucedido). l sto parece se chocar

com nossa prálica lingüística cotidiana. Qunndo consideramos alguém

Page 37: Epistemologia. Anais do IV  Simpósio Internacional Principia, Parte1

36 A leX(IIIdre M. Luz

como sen do corajoso ( ou seja, que esta pessoa possui a virtude da

coragem), consideramos que todos os atos que esta pessoa realiza

(desde que superada a akrasia) em circunstancias em que a coragem

se faz neccssária sao atos corajosos. Nao apenas os atos bem­sucedidos.

Esta objes;ao pode ser superada se lembramos que a avalias;ao da­que las situas:oes em que a lguém se comporta de modo viti uoso pode ser realizada através das nos:ocs de "as:ao correta" e de "crens;a justifi­cada," e se atentamos para o fato de que nossa experiencia lingüística cotidiana também suporta o uso da nos;ao de as;ao vüiuosa, como su­gerida por Zagzebski. Por exemplo, podemos imaginar que o resultado

de um julgamento nao seja, cm um dado caso, considerado pelas pes­seas como sendo "um ato de justis:a." Isto pode ocorrer mcsmo nos casos cm que o júri é motivado pelo desejo de emitir um veredicto

justo. O júri pode, por exemplo, ser levado a descartar certas eviden­cias porque, digamos, foram obtidas de um modo considerado inacei­

tável pelo procedimento jurídico estabelecido (uma gravas:ao, obtida c landestinamente, cm que o réu confessa o crime, por exemplo). Neste caso, o júri continua virtuoso (e as pcssoas provavehnente nao conde­

nariam o júri), mas a as;ao nao seria considerada urna as;ao virtuosa. A dcfinis;ao de ato de virtude permite que reformulemos a terceira

definis;ao de conhecimento, do modo que segue

Def 3: Conhecimento é um estado de crens:a resultante de a tos de vir­tude iqtclectual.

Assim como na definis;ao de crens:a justificada, as definis:oes de conhecimento sugeridas nao exigem que o agente seja, efetivamente, virtuoso. Como consideramos anteriormente, basta que ele scja movi­do pela motivas:ao típica de uma virtude. E, para o conhecimcnto, este ato de ve ser bem sucedido (o que nao é exigido para a justificas:ao ).

Ao impotiar da nos:ao de justificas:ao a exigencia da motivas:ao pa­

ra a vcrdade, a dcfinis;ao de conhecimento importa também aquele elemento que classificamos antcrionnente como " internalista." A exi-

Page 38: Epistemologia. Anais do IV  Simpósio Internacional Principia, Parte1

É o premio davirwde o col/hccimell!o? 37

gcncia de que o agente sej a virtuosamente motivado permite que in­

corporemos, como vimos, as virtudes integradoras, como phronesis. A

dcfinic¡:ao zagzebskiana está, pois, " íntimamente ligada a posse de um

bom caráter intelectual. "34 Uma pessoa que é "cognitivamente inte­grada tem atitudes de ordcm superior positivas em rclac¡:ao ao seu pró­

prio caráter intelectual e a qualidade dos seus estados epistemicos. Ela nao apenas sabe, mas ela está em posic¡:ao de saber que sabe. Adicio­nalmente, sua estrutura de crenc¡:as é coerente, e ela está ciente dcsta coerencia. Mais, ela percebe os valores relativos das diferentes verda­des ou aspectos da rcalidade com que ela se relaciona."35

Esta é uma característica que satisfaz, em grande medida, aos an­seios internalistas. Como sabemos, porém, os internalistas nao esHio

sozinhos no cenário do debate. O externalismo tem grande parte do seu apelo v inculado a sua capacidade de oferecer urna cxplicac¡:ao da nossa relac¡:ao cognitiva mais básica com o ambiente (pelo menos em caráter condicional, como vimos). A teoría das virtudes recém-cxposta

é capaz de satisfazer as intuic¡:oes extemalistas? Jolm Greco, por e­xcmplo, considera que nao. Ele observa que, "em primeiro lugar, os atos de virtude de tipo-Zagzebski nao sao necessários para o conheci­mento, porque uma pessoa com um caráter cognitivo confiável pode

ter conhecimcnto sem eles. Em segundo lugar, os atos de virtude de tipo-Zagzebski nao sao suficientes para o conhecimento, porque urna pessoa sem um caráter cognitivo confiávcl nao pode obter conheci­mento com eles."36

A segunda parte da crítica nos parece equivocada. Gomo vimos, Zagzebski embute na noc¡:ao de virtude urn elemento de confiabilida­de. Logo, uma pessoa que realiza atos de virtude é urna pessoa que é confiável, 37 no que diz rcspeito a obten<;ao do fim da virtude. Atos de virtude sao, pois, suficientes para o conbecimento.

Tomemos, porém, a primeira parte da crítica. Vamos supor que um individuo possua ce11a qualidade altamente confiável, e que, a despeito da confiabilidade, e le ou nao possui crenc¡:as de segunda or­

dem sobre a confiabilidade de tal qualidade ou é desleixado em rela­

c¡:ao ao seu caráter intelectual. Ele nao é, nestes casos, virtuoso, nem

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38 Alexandre 1H. Lu:

sequer está justificado (no sentido zagzebskiano) cm suas cren~as , já que ele nao está virtuosamente motivado. Ele nao pode, por isto, reali­

zar atos de virtude e, assim, segundo a defini~ao zagzebskiana, ele nao

pode atingir o conhecimento. Mas, a despeito disto, ele é confiável e, por isso - concedería o confiabilista - pode conhecer. Esta situayao é muito plausívcl se pensarmos em casos que envolvem crenyas forma­das diretamente pela perccpyao. Nestes casos, o suje ito epistemico nao precisa ser virtuoso, no sentido zagzcbskiano, mas o processo precisa ser confiável.

A resposta zagzebskiana se apóia na idéia de que um ato de virtu­de nao cnvolve, sempre, uma avaliayao de segunda ordem da confiabi­lidade do processo produtor de crenyas. O sujeito epistemico "por vezes é cético sobre seus sentidos, por vezes duvida da sua memória, como nos casos cm que ela é fraca e e le possui boa evidencia contrária

( ... ). Mas nós podemos assumir que, na maior parte do tempo, e la nao duvida ou mesmo reflexivamente considera suas crcnyas perceptuais e

da memória. Ela nao o faz porque ela mantém uma pressuposiyiio da verdadc em tais casos, pelo menos até ela ter razocs para pensar o contrário. " 38

Tal considerayao, porém, é insuficiente. A parte final do exccrto revela que Zagzebski está a considerar que algum julgamento de se­gunda-ordcm sobre a confiabilidade está implicito. Mas um confiabi­

lista nao exige sequcr isto. Podemos possuir conhecimento sem, em momento algum, qualqucr julgamento de segunda-ordem. Nao duvi­dar dos sentidos pode ser urna ar;:ao carreta, em !l1llitas situar;:oes. Mas parece dificil conciliar a motivayao para a verdade e a ausencia total

de atividade crítica em rclar;:ao á confiabilidade dos próprios sentidos . Zagzebski considera, porém, que há um problema em relar;:ao ao

objeto de avaliar;:ao do confiabilista. O problema consiste na confusao entre o valor que podemos atribuir a urna faculdade confiável e a justi­ficar;:iio da crenr;:a obtida. Segundo ela, " há urna tendencia para transfe­

rir o valor evidente do mecanismo confiável ao produto destc meca­nismo, a crenr;:a. Esta tendencia pode ser natural e é compreensível, mas eu nao a vejo como justificada"39

; adicionalmente, sustenta ela

Page 40: Epistemologia. Anais do IV  Simpósio Internacional Principia, Parte1

É o premiu da l'irtude u conlrecimemo? 39

que ''o valor da verdade obtida por um processo confiável, na ausencia de qualqucr percepc¡:ao consciente da concxao entre o comportamento do agente e a verdade que ele adquire nao é melhor do que o valor de um palpite feliz."40 Esta é uma afirrnas;ao demasiadamente forte, a nosso ver. Ela revela, porém, a íntima rela¡yao entre as suposi¡yocs subjacentes a teoría zagzebskiana e o internalismo, algo que vtmos destacando já anteriormente.

Zagzebski imagina, porém, que sua

definic¡:ao de coohecimento em termos de atos de virtude intelectual pode ser interpretada de um modo mais externalista do que pretendí ( ... ). lsto pode ser feíto modificando-se o elemento de motivayiio no meu tratamento da virtude, tornando-o mais fraco e afastado da per­cepc¡:ao consciente e do controle, apesar de eu nao imaginar que o e­lemento internalista possa ser inteiramente eliminado. ( ... ) Em outro sentido, minha teoría pode também ser adaptada para urna visiio pu­ramente internalista, ao se mover o conceito de virtude intelectual na direc;:ao oposta.41

Esta flexibilidadc é uma vantagem, a nosso ver, apenas em um sentido: a lgurnas virtudes talvez possam ser menos exigentes em rela­s;ao a ayao de virtudes de ordem superior para que o sujeito atinja o fnn da virtude (numa versao atenuada da tese aristotélica da separas;ao das virtudes ern dois grupos, podemos imaginar que as virtudes inte­lectuais exijam um maior controle do intelecto do que as morais). Neste sentido, a teoría pennitiria que crenyas de segunda ordcm fos­sem dispensadas, em rela9ao a certas viitudes. A existencia de vittu­des que podcriam, para seu exercício, dispensar sempre a existencia de crenc¡:as de segunda ordem é algo que parece se chocar com a suposi­s;ao sobre o caráter profundo das virtudes, assumidas por Zagzebski e aqui analisadas no comes;o dcsta segunda ses;ao.

A idéia de que o conceito de virtude pode ser interpretado de dois modos, um "intcmalista" e outro "externalista," todavía, nao é de valía alguma para a superas;ao do debate entre internalistas e externalistas; isto devido a simples razao de que as duas intcrpretay6es, assim como

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40 Alcxmuln: fl.f. Lu;

as teses gerais internalistas e extemalistas, sao conflitantes. Uma das interpretayoes nao pode ser harmonizada com a outra. A teoría nao contribuí, neste sentido, para a superayao do impasse entre intemalis­tas e externalistas.

5. Arete e epistemología: considcra~oes finais

Ao fim de nossa cxposi9ao, chegamos a urna definiyao de conheci­mento derivada da noyao de virtude, através do conceito de ato de virtude. Do conceito de virtude derivamos, igualmente, outros concei­tos que nos permitem urna avalia9ao detalhada da vida moral e - o que nos interessa aqui em particular - intelectual dos agentes epistemicos.

Este aumento de amplitude, esperava Zagzebski, permitiría uma supcrayao do debate entre intemalistas e externalistas, isto porque sua teoría seria capaz de absorver elementos tanto interna listas quanto externalistas. Todavía, mostramos que a teoría desenvolvida é interna­lista, a despeito de incorporar noyocs típicamente extemalistas, como a de confiabilidade. Isto nao é o suficiente, porém, para permitir a supera9ao da guerra de intuiyoes que caracteriza o debate intemalis­mo/extcrnalismo, já que as intui9oes externalistas nao foram incorpo­radas pela teoría, como vimos.42

Nao temos, assim, uma contribui9ao efetiva para a resoluyao do debate internalismo/extemalismo. lsso, a nosso ver, porque uma teoría que abandona a cren9a como .unidadc básica da epistemología terá dificuldades para explicar uma qualidade que se refere exatamente a crenyas (nossas questoes se referem ao conhecimento de p, de z, etc.). A mera possc de um caráter virtuoso nao garante conhecimento, como vimos (como vimos, Zagzebski leve que recorrer a um artificio ad hoc para conectar virtude e conhecimento). A teoría sofre, pois, do velho problema da falta de urna conexao apropriada entre justificayao e ver­

dade. Por fim, a despeito do desinteresse de Zagzebski por teorías que

explicitem detalhadamente condiyoes para a justificayao (como boa

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É o premio da virlude o conhecimenlo? 41

parte das teorías internalistas), cabe avaliar se sua teoría é capaz de oferecer urna explicac;:ao mais substancial para a justificac;:ao epistemi­

ca: oferecer urna explica9ao para o papel das falsidades nos processos de justificayao, oferecer uma explicac;:ao sobre os modos aceitáveis de conexao entre crenr;:as, etc. Este é um desafio ainda sem resposta.

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113- 2 1.

Notas

Alexandre Meycr Luz

Universidade Federal de Sergipe [email protected]

1 Zagzebski 1996 (Virlues ofrhe Mind, doravante). 2 Zagzebski não identifica, por exemplo, o grupo do intemalismo com o de­ontologismo ético; ela admite que teorias da justificação podem ser interna­listas sem assumir um formato deontologista. 3 Virlues o f lhe Mind, p. 16. 4 Virlues o f lhe Mind, p. 17. 5 Virtues o f 1he Alind, p. 20. 6 Virtues o f the Mind, p. 2 1. A impossibi lidade de se oferecer um conjunto de regras capaz de oferecer uma avaliação epistêmica adequada para todas as situações c todas as crenças leva, segundo Zagzebski, à insolubilidade do Problema de Gcttier, se o tentamos resolver numa perspectiva baseada-em­crença. Esta tese foi desenvolvida por ela em seu "The lnescapability o f Get­tier Problems." Philosophical Quarlerfy 44 ( 174): 65- 73. 7 Virlues o f the /1/ind, p. 22. 8 lbid.

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44 Alexmulre M. Lu:

9 Virllles o f lhe Mind, p. 24. A noção de "perspectiva adequada." como suge­rida por Ernest Sosa em sua teoria do perspectivismo das virtudes, pode ser considerada como uma virtude integradora. De qualquer maneira, ela é muito mais restrita do que a noção de phonesis; para que alguém esteja em "pers­pecti va adequada'' em relação a uma crença, não é necessário que esta pesso­a, por exemplo. preocupe-se com o desenvolvimento de um caráter epistemi­camcntc saudável. 10 Virllles o f lhe lv/ind, p. 28. Uma virtude, certamente, não é algo que alguém simplesmente tem ou não tem. 11 Zagzebski. L.. "Virtuc Epistemologogy." In Routledge Encyclopedia of Philosophy, Version 1.0, London: Routledge, 1998. 12 Virlues o f the Mind, p. 271 . 13 Virw es o f lhe Mind, p. 82. 14 Todavia, quando apresentarmos a noção central de ato de virlude, veremos que esta noção é definida, em parte, em termos de sucesso na obtenção de verdades. Isso parece ser incompatível com a idéia de que a teoria zagzebski­ana é baseada-em-motivação. 15 Vinues oflhe Mind, p. 102. 16 Ou dois, se seguirmos - como Zagzebski o faz- Aristóteles: o vicio causa­do pela falta da vi rtude e o causado por seu excesso. 17 Virtues o f the Mind, p. I 02. 18 Urna investigação mais detal hada sobre as re lações entre vi rtudes c moti­vos. acompanhada de uma defesa da tese de que motivações são indispensá­veis para a virtude, pode ser encontrada em Fairweather, A. ·'Epistemic Mo­tivations." In. Fairweather c Zagzcbski 2001:63- 80. 19 Virllles of the Alind, pp. 132- 3. Virtudes como a sabedoria são, como ve­remos, virtudes integradoras, ou seja, virtudes de ordem superior. Há uma pequena correção a ser feita na teoria: considerando que uma vi rtude, como sugerido anteriormente, exige urna motimçào para atingir 11111 fim (e isto aparecerá explicitamente na definição de virtude que será aprésentada a se­~uir) . não se pode dizer que "algumas vi rtudes podem não possuir um fim." _o fel.. p. 133. 21 Virtues o f lhe Mind, p. 13 7. n Virtues of lhe Alind, p. 167. Zagzebski considera, porém, que '·apesar de todas as vi rtudes intelectuais possuírem uma componente rnotivacional que a direciona para o contato cogniti vo com a realidade. algumas delas podem se direcionar mais para o entendimcnlo [ understanding), ou talvez para outros estados epistêmicos que aumentam a qualidade do estado de conhecimento, tal como a certeza. do que para a posse da verdade per se. Poucas vi rtudes eminentes tais corno a originalidade intelectual ou a inventividade estão reJa-

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É o prémiu da •·irrude o conlt('CIIIIe/1/(J? 45

cionadas não apenas à motivação para que o agente obtenha conhecimemo. mas à motivação para aumentar o conhecimemo para a espécie humana" (ib id.) . De qualquer maneira, todas estas virtudes podem ser relacionadas à motivação geral da obtenção de conhecimento. ~3 Virwes o f lhe lvfind, p. 176. 1~ Virw es o f lhe Mind, p. 182. 15 Zagzebski considera aqui que uma virtude deve ser condutora-à-verdade para seu possuidor (c f. Virtues o f the Mind, p. 186), mesmo que tenhamos que avaliar o exercício da virtude num prazo mais longo. Que prazo deve ser este, porém? A teoria é ví tima, neste ponto, de um ataque semelhame ao Problema da General idade que vi tima o contiabilismo. 26 Virtues o f lhe Mind, p. 220. 27 Virtues o f thc Mind. p. 223. 28 Vale lembrar que. como vimos, Sosa também considera a existência de algo semelhante, aquela qualidade que garante a coerência do indivíduo que tem uma perspectiva adequada sobre suas crenças. 19 O que permite que se explicite a base social da noção de ato correto (e. dai, como veremos, da noção de justificação). Se a correção de um ato depende, pelo em parte, da phroncsis, e se esta depende da existência, na comunidade, de indivíduos que possuam a virtude c sirvam, por isso, corno modelo para os demais. então a saúde moral (e, como veremos, a saúde inte lectual) dos indi­víduos depende da saúde da comunidade como um todo. 30 Virtues o f lhe Mind, p. 24 1. 31 Virtues ofthe Mind, p. 270. 32 Virtues ofthe Mind, p. 27 1. 33 Virflles o f lhe J'vlind. p. 248. 3~ Virllles o f lhe J'vlind, p. 275. 35 I bid. 36 Greco, J. 2000. "Two Kind of lntellectual Virtue." Philosoplry cmd Phenomenological Research X V ( I): 179-84. · 37 Uma pessoa que realiza atos de virtude não precisa, como vimos, ser virtu­osa; ela precisa, porém, estar virtuosamente motivada c precisa agir como uma pessoa vi rtuosa agiria. Uma pessoa virtuosa agiria de modo confiúvcl. Uma pessoa virtuosamente motivada. daí, agiria de fonna equivalente. 38 Virwes ofthe Mind, pp. 279- 80. 39 Virrucs o f the lvlind, p. 304. Zagzebski retoma este ponto em From Re/iabi­lism to Virtue Epistemology (in Axterll 2000: 113- 2 1 ). ~o I bid. ~ 1 Virtues o f til c Mind. p. 330.

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46 A /ex a mire M. Lu:

~2 Vejamos, por exemplo, a crítica William Alston a teoría: "um problema premente diz respeito a quesUio de como esta abordagem trata das crencas que nao sao "de modo algmn voluntárias." ( ... ) crencas da memória e da percepcao sao exemplos evidentes. Oevemos pensar nas pessoas que estilo a receber percepcoes como estando motivadas para formar as crencas que for­mam? Poderia parecer que motivacao, ligada a virtude ou seja lá a que for, nao tem nada a ver com a questao. Como, entao, nesta abordagem, estas crencas podem estar justificadas?" (Alston, W. 2000. "Yirtue and K.nowl­edge." Philosophy and Phenomenological Research LX ( 1 ).

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Dois caminhos que levam ao holismo "moderado" de Quine

Araceli R. S. Velloso Universidade Federal de Goiás

l. A primeira via: da tese reducionista ao holismo semantico

1.1. O critério de transcendencia

Em 1950, com a publicaryao do seu famoso artigo: "Os dois dogmas do empirismo," Quine apresenta ao mundo, ainda em esboryo, as suas críticas ao empirismo dos positivistas do Círculo de Viena. Nessa oca­siao, o filósofo poe em debate duas teses que ele considera como dogmas do empirismo Vienense: a distinrrao analítico-sintético (de a­gora em diante; "a/s") e o reducionismo. A conclusao retumbante do artigo é a de que o empirismo filosófico dos antigos positivistas lógi­cos dcveria ser expurgado de duas de suas principais teses, sob pena de sucumbir as críticas de seus opositores. A opiniao do filósofo ame­ricano, nessa época, era & de que, apenas se revigorado através da ex­tirparyao desses dois verdadeiros "dogmas" essa importante posiryao poderia se sustentar e dar seus frutos. Com efeito, tal manobra radical faria com que a filosofia se aproximasse, como era de se esperar, do método usado pelas ciencias naturais, tornando-se enfun urna espécie de pragmatismo.

Quarcnta anos depois, ao rever seu polemico artigo, Quine re­elabora suas antigas opinioes, suavizando principalmente as conclu­soes holistas. Ncssa mesma época, e le aceita a interpretarrao de Emst Lepare sobre a sua crítica aos dois famosos dogmas. 1 Segundo a in ter-

Dutra. L. H. de A. e Mortari. C. A. (orgs.). 2005. f..jJistemologia: Anais do 11' Simpásio flllem a­cional. Pri11cipia - Parle l . Flori;mópolis: NEUUFSC. pp. 47- 65.

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prcta~ao do filósofo mais novo, a principal obje~ao de Quine a no~ao de "analiticidade" era a de que qualqucr no~ao de "significado" que se apoiasse em um critério verificacionista, como a confirma<;ao ou in­firma~ao de senten¡¡:as, seria urna no¡¡:ao "imanente" a urna linguagem específica (ou paroquial) e, portanto, já impregnada de teoria. Assim, uma no~ao de "significado" que se apoiasse em critérios verificacio­nistas (ou mcsmo confinnacionistas) nao seria capaz de resolver o problema que os positivistas lógicos esperavam que ela resolvesse: explicar a significa¡yao das senten¡yas ncccssárias, apesar da sua falta de conteúdo empírico.

As razocs que apóiam a interpreta¡yao de Lepore sao bastante con­vincentes: nao é provável que Quine estivesse apenas exigido urna de­fini¡yao nao circular, ou necessária e suficiente, para a no¡yao de "anali­ticidade".2 O ponto, muito bcm levantado por Quine em seu antigo ar­tigo e frisado por Lepore, é o de que a raíz de todas as difieuldades com essa not;:ao está no próprio critério empirista de significado pro­poste pelos positivistas lógicos. Em detalhcs, se identificamos de al­guma maneira "significado" e "condit;:oes de confirma¡yao," subordi­namos a nossa semiintica as nossas teorías sobre o mundo, o significa­do de cada sentens:a passará a depender dessas mesmas teorías.

Urna conseqüencia desagradável da imanencia intrínseca do signi­ficado de qualquer sentent;:a em rela~ao a alguma teoría é a de que fi­caríamos com problemas para expl icar a significiincia de sentens:as que fossem necessariamente vcrdadeiras, e nao verdadeiras apenas se­gundo aquela teoría. A dificuldade com essa classe de sentent;:as é simples: o seu significado e a sua verdade teriam de depender da lin­guagem na qual elas estivessem imersas e nao podcriam ser os mes­mas para qualquer linguagem e qualquer falante. Por sua vez, a nos:ao de "analiticidade," que deveria realizar a tarefa de garantir o significa­do dessas sentent¡:as em qualquer linguagem, seria imanente e nao transcendente, ou universal, nao logrando explicar assím a necessida­de das mesmas.

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Dais cmuiullos para o llolismo semámico

1.2. Urna alternativa que provcria um critério de significado em­pirista e transcendente: a tese reducionista.

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Uma tese que, se bem sucedida, tcria resolvido o problema da atribui­yiio de um significado individualizado a cada scnten):a em bases pu­ramente empíricas é a tese rcducionista defendida pelos positivistas do círculo ele Viena. A tese rcducionista rczava que cada sentenya teórica, considerada individualmente, podcria ser reduzida a um conjunto de sentenc;as atómicas que contivcsse apenas termos da lógica e termos observacionais. Assim, o significado dessa sentenc;a teórica deveria ser dado por essc conjunto de sentenc;as atómicas, que, por sua vez, seriam um relato direto das suas situac;oes confirmadoras ou infirma­doras. Assim, essa reduc;ao, caso bcm sucedida, nos forneccria um cri­tério para atribuir a cada sentcn¡ya individualmente um significado que fossc independente da teorí a adotada, um cri tério transcendente de significac;ao. A tese reducionista teria também a vantagem de estar em conformidade com o princípio empirista de significado mencionado por Quine no "Dois dogmas" segundo o qua!: "o significado de urna sentcnc;a é o scu método empírico de confirmac;ao ou infinnac;ao" (Quine 195la, p. 37).3

A tese rcducionista apresentada no parágrafo precedente recebe de Quine o cognome de "segundo dogma do empirismo." lsso porque, de acorclo com o filósofo, nao foram encontradas razoes que justificas­sem tal tese. Com efeito, Carnap, em seu livro Der Logische aujbau de1: Welt, se dedica ao projeto de colocar em prática a mencionada reduc;ao, construindo uma linguagcm de dados sensórios (a linguagem da c iencia) para a qua! a nossa linguagem ordinária pudésse ser traduzida. Caso fosse bem sucedido, esse projeto seria capaz de fundamentar scmanticamen te a ciencia, ainda que nao fosse possívcl uma fundamentac;ao epistemica (uma base empírica para a verdade de nossas scntenc;as teóricas).

No artigo "Os dois dogmas do empirismo," Quine csboya o seu primeiro ataque a csse último bastiao do positivismo lógico. A ioves­tiga¡yao inicial sobre as dificuldades com a tese reducionista, feíta por

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Quine nessa ocasiao, envolve duas etapas. Uma primeira, na qual a traduyao seria feíta termo-a-termo, ou seja, a unidade mínima signifi­cante seria a palavra. E uma segunda etapa, na qua! considerar-se-ia uma sentenya inteira como a unidade mínima significante. Após Ion­gas considerayoes, Quine concluí que, mesmo considerando a senten­!Ya como a unidadc mínima indecomponível, o projeto de traduyao se­ria impossível, nao apenas por dificuldades inerentes a sua execu9ao, mas em princípio, i.e., ele seria logicamente impossível.

As razoes para o fracasso da tese reducionista nessa primeira ver­sao mais radical nao sao muito surpreendentes. Com efeito, como era de se esperar a partir da crítica de Hume a induyao empírica, o mesmo conjunto de sentenyas atómicas poderia ser candidato a traduzir dife­rentes hipóteses sobre o mundo . Sendo assim, seria possível que um conjunto de sentenyas atómicas tivesse como correlato mais de urna senten9a teórica, o que tornaría a redu9ao ambígua e incompleta.

Além do reducionismo na sua forma mais radical, Quine especula se haveria lugar para a tese reducionista numa versao moderada. Essa nova tese rezaría que uma senten9a isolada poderia se relacionar de modo provisório com um conjunto de sentenyas atómicas que falariam a favor da sua confinna¡yiio e com um outro que falaria contra ela. Nesse caso, ainda poderíamos fa lar de reducionismo, só que de urna fonna atenuada. Quine chama essa última alternativa de "reducionis­mo menos radical." Esse último resquicio reducionista também é des­cartado pelo filósofo, que se apóia, para tanto, nas considerayoes epis­temológicas holistas de Duhem.

Duhem, a quem preocupam mais questoes epistemológicas do que semanticas, quería esclarecer, na verdade, o contraste existente entre duas práticas científicas diferentes: a de um físico, em seu Jaboratório, tendo que lidar com um conjunto de hipóteses a serem testadas por um experimento; e a de um fisiologista procurando distinguir um nervo motor de um nervo sensitivo por meio de estimulayao direta. Sua ob­servavao é a de que a fom1ulavao de qualquer hipó tese ( ou afirmaviio geral) da física, por exemplo, envolve sempre a fonnulavao de outras hipóteses auxiliares que sao pressupostas necessariamente por ela. As-

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Dois cami11flo.~ para o Ilotismo semálll ico 51

sim, embora possamos aparentemente estar infinnando ou confirman­do a hipótese principal atra vés de observa96es e testes, nao teríamos como determinar, diante de uma experiencia recalcitrante, se a hipóte­se falsa é a principal, ou uma das hipóteses auxiliares.

No caso de consideramos a nossa hipótese principal muito confiá­vel poderíamos optar por refom1ular uma ou mais das auxiliares (ven­do algum erro em uma delas, por exemplo). Ou mesmo, num caso ex­tremo, acrescentar hipótcses ad hoc com a única e exclusiva intenc;:ao de salvaguardar a nossa hipótese principal. Lembremos do famoso e­xemplo do flogístieo dado por Kuhn. Para salvar a hipótese de que o fogo era um fluído que saía dos eorpos (hipótese essa ameac;:ada pelos experimentos de Lavoisier), os cientistas adeptos dessa coneepc;:ao in­sistiam em dizer que o flogístieo existia sim, mas tinha peso negativo. Segundo essa sugestao desesperada, ao sair dos corpos o tlogístico a­ereseentaria peso aos corpos carbonizados.

As considerac;:oes de Duhem sao aproveitadas por Quine. O filóso­fo, no entanto, tira delas conclusocs que pareccm ir além das preten­soes do cpistemólogo ft·ances. Para compreendermos melhor essas conclusoes vamos retomar o princípio de significatividade empirista (PS), segundo o qua! o significado de uma sentenc;:a é determinado pe­lo seu método de verificayao. De aeordo com Quine, o método de ve­rificayao seria um relato do conjunto de observayocs diretamentc co­nectadas a experiencia que confirmassem urna detenninada sentenc;:a, ou do conjunto das observac;:oes que a infirmassem. Mas, como o filó­sofo havia concluído ser impossível decidir de modo inequívoco se ce1tas situac;:oes confirmadoras ou infirmadoras dizcm respeito aqueta sentenc;:a isolada ou se elas incidem apenas nas hipóteses auxiliares (essa é a contribuic;:ao de Duhem), entao é apenas cm bloca que as sen­tenc;:as teóricas poderiam ter s ignificac;:ao empírica.

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1.3. A primcira conclusao holista

A conclusao de Quinc parece bastante razoável: só poderíamos tradu­zir urna senten~a (em termos de situar;oes confirmadoras ou inflrma­doras) se a considerássemos em conjunto com outras sentenr;as, as hipóteses auxiliares. Uma rcssalva, porém, é muito importante a res­peito dessa conclusao de Quine; o adcndo "em termos de situar;oes confirmadoras ou infirmadoras." Como veremos mais adiante, pode­riamos realizar essa traduyao perfeitamente cm outros tennos, mas nesse caso estaríamos recorrendo a algo mais além das situas:oes no mundo que a confirmariam ou infirmariam. Segundo essa nossa inter­pretayao, Quine estaría apenas objetando a que, dada urna ce1ta con­juns:ao entre, por um lado, a tese de Duhem e, por Otttro, a versao do principio verificacionista representada por PS, pudéssemos ainda falar em analiticidade no sentido mais forte, ou seja, transcendente. Essa é, com efeito, uma das maneiras como o próprio Quine descreve a sua inferencia:

Se reconhecessemos, juntamente com Peirce, que o significado de urn enunciado consistiría unicamente naquilo que contaría como justifica­tiva empírica para a sua verdade, e se reconhecessemos, juntamente com Ouhem, que os enunciados teóricos nao possuem dados empíri­cos quando considerados isoladamente, mas apenas quando formam blocos teóricos maiores, entiio a indetennina¡¡:ao da tradu~ao dos e­nunciados teóricos seria urna conclusiio natural. (Quine 1969a, p. 79-8 1, grifo meu.)

Com efcito, podemos observar que há uma diferenya entre a ma­neira como Lepore descreve a posis:ao de Quine e o modo como o próprio filósofo tira as suas conclusoes holistas no trecho anterior. No caso de Leporc, o objetivo parece ser o de salvar a possibilidade de se falar em critérios de analiticidade transcendentes, mostrando que as críticas de Quine incidiam apenas sobre o positivismo lógico dos par­ticipantes do Círculo de Viena, bcm como sobre aqueles que quiscs­sem manter urna semantica bascada em algum principio parecido com

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·.

Dois cami11hos para o ho/ismo semá11tico 53

o princípio empirista de significado adotado por esses filósofos. Já Quine parece estar, na verdade, disposto a ir bem mais longe, ou seja, a se comprometer com alguma forma de holismo semantico, ainda que moderado, que inclua apenas uma noyao de "analiticidade" imanente de senten9as permanentes (ou paroquial). Em outras palavras ainda, uma no9ao que possa ser detenninada com base apenas em critério comportamentais observáveis.

Descrevemos, em linhas breves, o primeiro tipo de argumento a­través do qual Quine teria chegado a tese que ficou conhecida na lite­ratura filosófica como o "holismo semantico." Em resumo, o argu­mento geral teria a seguinte forma: o verificaeionismo dos positivistas (ou Peirce se quisermos) + o holismo da confirma9ao (resultante das dificuldades encontradas por Quine em subscrever a tese reducionista) = Holismo Semantico. Em seguida, investigaremos a segunda via a­través da qua! Quine teria reafirmado o seu holismo semantico.

2. A segunda vía: a tese da incscrutabilidade da referencia

2.1. O experimento de tradu~ao radical

Em 1960, com a publica9ao do W & O, Quine deixa ainda mais clara a sua posi9ao, com auxílio da famosa tese da inescrutabilj,dade da refe­rencia. Essa tese, por um lado, viria para se juntar aos aigúÍD.entos an­ti-reducionistas ql!e acabamos de expor, refor9ando a tese (Id holismo semantico. Mas, por outro lado, é também ela que nos deixa entrever urna saída para as dificuldades enfrentadas por Quine em decorrencia de seu famoso ataque aos mencionados dogmas.

As razoes oferecidas por Quine nessa ocasiao para sustentar a tese de que nao poderíamos atribuir um significado determinado as nossas senten9as quando essas fossem consideradas isoladamente é ilustrada em um experimento imaginário: a tradu9ao radical. Como sabemos, o experimento imaginário de Quinc consistía em uma situa9ao na qua! duas pessoas de culturas e linguas totalmente diferentes se encontras-

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sem e tentassem se comunicar. Essas duas pessoas poderiam ser, por exemplo, um lingüista de campo e um nativo de urna cultura estran­geira e desconhecida. O radicalismo do experimento é crucial para o desenrolar dos argumentos de Quine: nem o nativo nem o lingüista de campo teriam um interprete, dicionário ou gramática disponíveis pre­viamente a esse seu primeiro contato para ajudar na tradus;ao das sen­tenc;as um do outro. Assim, após essc seu primeiro contato, o lingüista possuiria apenas as reac;oes comportamentais do nativo diante dos seus proferimentos e as fors;as que ele ve afetarem a "superficie do na­tivo" (as estimulac;oes) para aj udá-lo na tarcfa de traduc;ao.

A proposta de Quine - considerar a situas;ao extremada de urna traduc;ao radical - foi, na verdade, inspirada pela diseussao que vinha sendo travada entre ele e Carnap. Como é sabido, histoi;camente, o ponto de uniao entre os dois filósofos havia sido a defesa da tese ex­tensionalista: a tese que reza que através da referencia dos termos sin­gulares e do principio do contexto poderíamos também fixar a exten­sao dos tennos gerais, e que isso seria tudo o que deveríamos fazer em semantica.

Com efeito, até mais ou menos 1936, ambos os filósofos acredita­vam que poderiam encontrar uma base empírica a partir da qual apoiar a construc;ao de uma linguagem puramente extensional. Ou seja, en­contrar uma Iinguagem na qua) nao tivéssemos predicados aplicáveis a outros predicados e, portanto, só se pudcsse faJar sobre objetos (Rus­sell, PM, pp. 659ss). Numa linguagem como essa, qualquer substitui­c;ao d~ termos coextensionais ou co-referenciais preservaría o valo~ de verdade do todo. Assim, num sistema lingüístico construido desse modo, a verdade dos enunciados teóricos dependería exclusivamente do conteúdo empírico dos enunciados atómicos, sendo finalmente o melhor candidato a linguagem universal da ciencia.

Embora o objetivo de ambos os filósofos , na época em que defen­diam a tese extensionalista, fosse o de fixar um "significado" que pu­desse ser testado empí ricamente, ambos chegam a conclusao de que apenas a extensao nao é suficiente para determinar o predicado ao qua! nosso interlocutor estiver se referindo. Para Carnap, no entanto, essa

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Dais caminhos para o holismo semcill/ico 55

conclusao é bastante séria, ela significa que nao podemos construir uma línguagem que sirva como a linguagem universal da ciencia.

Assim, em Meaning and Necessity in Natural Languages, Camap modifica a sua posi~ao, introduzindo, como necessária para a semanti­ca, uma no~ao "intensional" de significado. E, mais tarde, num artigo publicado como apéndice a esse livro, chamado "Meaning and sy­nonymy in natural languages," ele sugere, antes do próprio Quine, o experimento ímagínárío em quesHio. Em resumo, o problema vislum­brado por Camap díz respeito ao fato de que dois falantes podem con­cordar quanto á aplíca~ao de uma expressao a todos os casos compar­tilhados sem, no entanto, usarem para designar essa extensao o mesmo predicado. Assim, segundo Camap, seria necessário também que re­corressemos a estimula~oes contra-factuais para fixar unívocamente o predicado (ou propriedade) em quesfiio.4 A essa no~ao mais "forte" de significado verificável empíricamente, Camap chama "significado in­tensional pragmático." (Camap 1956, p. 233).

2.2. A no~ao de "significado estimulativo" como urna herdeira da no~ao de "intensao pragmática" de Carnap

Seguíndo o exemplo de Camap e visando mostrar que a no~ao de in­tensao pragmática do outro fi lósofo nao era suficiente para estabelecer um significado intensional unívoco para qualquer expressao da lin­guagem, Quine sugere a sua própria no~ao de significado pragmático, a qual ele chama "Significado estimulativo. "

Assim, em W &0, encontramos a seguinte defini~ao dessa no~ao dada por Quine: "a classe de todas as estimula~oes [ ... ] que poderiam incitar o seu assentimento [ . .. ] o u dissentímento [ ... ) para um falante a." Maís adíante, ele concluí que "o significado estimulativo de uma senten~a para um indivíduo sintetiza suas disposi~oes para assenti­mento a, ou dissentimento de, uma senten~a em resposta a estimula~ao presente" (Quíne, p. 33).

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Dois elementos presentes nessas dcfiniyoes sao fundamentais para

a comprccnsao dos objetivos de Quine com o seu experimento radical: o emprcgo da expressao modal, "poderiam," no trecho citado, e o re­

curso a noc;:ao de "dísposivocs." Como era a íntenc;:ao de Carnap como scu próprio experimento, esses dois elementos da definic;:ao de Quine também foram propostos com o intuito de investigar se seria possível capturar, com urna noc;:ao mais forte de significado do que a noc;:ao de "significado extensional," a noc;:ao investigada por Carnap de "inten­sao pragmática. " Oc fato, cssa última envolvería nao só os casos atu­ais (que se prestam a uma comparac;:ao cxtcnsional), mas também to­dos os casos possíveis. O grande mérito dessa noyao seria, portanto, oferccer urna solu9ao para problemas semiinticos como, por exemplo, a dctcm1inayao completa do significado de predicados do tipo "Criatu­

ras com rins" e "Criaturas com corayao," em func;:ao de critérios empí­ricos.

2.3. A coextensionalidade nao é nccessária para a "sinonimia es­timulativa."

Após definir a sua noc;:ao de "significado estimulativo," Quine prosse­gue cm sua argumentac;:ao introduzj ndo o conhecido exemplo do ter­mo nativo ficticio "Gavagai" (considerado propositadamente com le­tra maiúscula). Ao sugerir esse exemplo, o filósofo insiste em assina­lar que essa expressao representa um todq frasal e nao está determina­do ainda se ela eleve ou nao ser compreendida como um termo, singu­lar ou geral.

A primeira considera9ao importante de Quine com relac;:ao a ex­pressao nativa "Gavagai" é a de que, como estrutura lingüística, ela seria opaca para nós numa situac;:ao de traduc;:ao radical: a mesma es­timulac;:ao seria compatível com diferentes hipóteses de traduc;:ao cogi­

táveis e, scndo assim, nao teríamos como detenninar, apenas pela ob­servac;:ao do comportamento verbal do nativo (ou seja, empiricamen­

tc), se aqueJe proferimento deveria ser interpretado de uma ou de outra

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Dois cominhos paro o hulismo semáw ico 57

maneira. Essa tese, que foi apresentada por Quine pela primeira vez no W&O (1960, p. 52, e 1969c, p. 35), ficou conhecida por todos como a tese da inescrutabilidade da referéncia.

Segundo a tese inescrutabilidade da referencia, "Gavagai" poderia ser urna estmtura bastante complexa ou, ao contrário, bcm simples; ser traduzívcl por uma scntcnrya inteira em nossa língua, ou apenas por urna palavra. Poderia ainda ser, tanto um termo gcral, quanto um ter­mo singular. Dentre as várias opryoes disponíveis para "Gavagai," caso escolhessemos traduzi-lo por u m termo, teríamos: ( 1) u m termo geral que denota um animal, "um coelho"; (2) um tem1o singular, "a coelbi­tude presente"; (3) um tetmo singular, "o segmento temporal de coe­lho presente"; (4) um tenno geral, "as partes nao destacadas de um co­e lho" (Quine 1960, p. 51- 2); (5) um termo geral, "um complemento universal de coelho" (Quine 1995, p.71).5 Poderíamos também tradu­zi-lo por urna senten~a, como, por exemplo, "Aii vai um coelho!."

A importante conclusao tirada por Quine desse exemplo é a de que "Gavagai" poderia ser traduzida por expressoes que, ao serem substi­tuidas urna pela outra numa senten~a, nao manteriam o valor de ver­dade da mesma, ou scja, nao seriam inter-substituíveis salva veritate, e que, portanto, (1)-(5) nao seriam coextensionais, quando considera­dos como tradus:ao de "Gavagai-sentens:a." Contudo, embora nao fos­scm coextensionais, todas cssas tradus:oes da língua nativa para língua do lingüista seriam sinónimas estimulativas da exprcssao "Gavagai" (e possivelmente sinónimas intensionais pragmáticas de aeordo com Carnap).

Segundo Quine, portante, em ( 1 }-(5), tanto a ex ten sao (o u referen­cia), quanto a própria distin~ao entre termos gerais e tern1os singula­res, seria inescrutável ncssa situas;ao (ou indeterminada como Quine prefere chamar mais tarde). Em outras palavras, a natureza e a refe­rencia de tennos nao seria acessívcl de modo " transcendente." Ou ain­da, nao poderia ser traduzida de um modo único de uma linguagem para outra.

O que a tese da inescrutabilidade da referencia nos diz, com efei­to, é que há uma limitac;ao inerente, ou em princípio, no processo de

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aprendizagem (ou tradus:ao) de uma língua radicalmente diferente. O resultado dessa limitas:ao é que, se temos apenas para nos guiar duran­te todo o processo de tradus:ao (e/ou de aprendizado de uma língua na­tiva) o comportamcnto verbal do nativo e as for9as que vemos afeta­rem a sua superficie, entao nao podemos estabelecer de modo deter­minado, nem a intensao, nem a extensao da expressao lingüística do nativo. Ou seja, a única tradus;ao que podemos oferecer, do ponto de vista transcendente, ou interlingüístico, sao estimulas;oes consideradas em sua totalidade como sendo o significado de sentcns;as completas, nao podemos oferecer uma traduyao específica para termos sub­sentenciais. Esse tipo de relas:ao entre uma sentens:a inteira e urna es­timulas;ao completa será chamada por Quine mais tarde (Quine 1970, p. 182) de inte1pretar;éio holofrástica.

Em decorrencia da constatas;ao dessas limitas;oes, e da tese da ines­crutabilidade da referéncia, Quine decide ir mais além do que Carnap e concluir que, além da extensionalidade nao ser suficiente para garan­tir sinonímia-estimulativa, ela também nao seria necessária. Ou seja, poderia haver sinonimia estimulativa entre dois predicados e, ainda assim, nao haver coextensionalidade. Conseqüentemente, a nos:ao de "significado estimulativo" nao seria suficiente, nem mesmo para de­tenninar as próprias extensoes dessas expressoes. Nas palavras do próprio Quine:

( ... ) a coextensionalidade de tennos, ou mesmo a crenr;a nessa coex­tensionalidade, nao é suficiente para garantir a sua sinonímia estimula­tiva quando usados como sentenr;as de ocasiao. Agora vemos também que e la nao é necessária. (Quine 1960, p. 54.)

Após seu experimento, e em decorrcncia dos argumentos apresen­tactos cm favor da tese da inescrutabilidade da referéncia, Quine as­sume urna posis:ao cada vez mais distante de seu antigo mestre e men­tor. Enquanto Carnap se aproxima da lógica modal e de nos;oes inten­sionais, considerando-as um mal necessário:

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Dais caminlws para o holismo scmál1fico

Embora normalmente niio gostemos de empregar linguagens intensio­nais, ainda assim penso que nao podemos nos furtar a analisá-las. O que voce pensaría de um etimologista que se recusasse a investigar moscas e trayas, porque e las lhe desagrada va m? (Quine 199 1, p. 267 .)

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Quine repudia tais noc;:oes, acusando Camap de ter sucumbido a uma espécic de vício:

Bem, as moscas e trayas se mostraram viciantes. Por volta de 1946 ele estava liderando a lógica modal. (Quine 1991 , p. 267)

Mas, se o caminho da lógica modal está fechado para Quine, será que rcstariam opc;:oes ao filósofo para estabelecer a referencia dos ter­mos (ou a sua extensao) de urna língua em func;:ao de critérios empíri­cos comportamentais? A resposta de Quinc a essa pergunta é, mais uma vez, a tese que ele chama de holismo semántico. só que numa versao "moderada," como veremos a seguir.

2.4. A conclusao Holista pela segunda vía e sua rela~ao com a se­gunda

A tese da inescrutabilidade da referencia constituí, por assim dizer, a segunda vía através da qual Quine acaba chegando novamente ao scu holismo semantico, na nova versao "moderada." Em poucas palavras, se as sentenc;:as proferidas pelo nativo numa situac;:ao de tradus;ao radi­cal nao pudcrem ser determinados de modo unívoco, clas só poderao adquirir algum significado quando imersas cm um conjunto maior de sentenc;:as. Apenas no contexto mais amplo de urna língua, poderíamos ter a nossa disposic;:ao vários conjuntos de hipóteses6 de como interpretar um proferimento, e cada um deles determinaría arbitrariamente a escolha de urna tradus;ao possível para as sentenc;:as nativas, ou mesmo para o "idioleto" de um outro falante da mcsma língua.

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Essa segunda via, no entanto, apresenta uma diferen9a importante em rela9ao a primcira: ela vai de "baixo para cima," como rcssalta o próprio Quine:

Existem dois caminhos para se pressionar a doutrina da indetermina­c;:ao da tradw;iio a maximizar o seu escopo. Podemos pressionar de ci­ma o u pressionar de baixo, jogando os dois extremos para o meio. [ ... ] por pressionar de baixo eu quero dizer quaisquer argumentos em favor da indeterminac;:ao da traduc;:ao7 que possam se basear na inescrutabili­dade da referencia. (Quine 1970, p. 183.)

Em contraste, a primeira via envolvería, alternativamente, quais­quer argumentos que se baseassem na subdetenninac;:ao das teorías por todos os dados empíricos possíveis, ou seja: o holismo da confirma­yao.

No extremo superior, há o argumento, [ ... ], que visa persuadir qual­quer um a reconhecer a indetermina<;iio da traduc;:iio das porc;:oes da ci­encia natural que ele aceite como tais, como subdeterminadas por to­das as observac;:oes possíveis. Se eu puder levar as pessoas a verem que essa lassidiio empírica afeta, nao apenas a fisica altamente teórica, mas o discurso sobre corpos que seja absolutamente senso-comum, poderei convence-las a admitir a indeterminac;:iio da traduc;:iio do dis­curso de senso-comum sobre corpos. (Quine 1970, p. 183.)

Foi cssa primeira vía que apresentamos no inicio do artigo, na se­yao III. Assim, tanto "por cima" como "por baíxo," Quine ebega a mesma conclusao: nossas sentenyas teóricas sao índetem1inadas numa situac;:ao de traduyao radical no que concerne a sua estrutura predicati­va (quais seriamos termos gerais e os tem1os singulares).

3. O holismo semantico "moderado"e suas conseqüencias

A diferenc;:a importante que pudemos observar entre a primcira e a se­gunda via concerne a rejeic;:ao da tese extensionalista, movimento esse

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Dois caminhos para u hulismu semiiw ico 61

que fica bem mais claro a partir de 1960, em Word and Object. Esse passo nao representa só uma reafinna9ao por parte de Quine do seu comprometimento com uma posi9ao anti-mentalista e anti­

intensionalista, como também lan9a o filósofo numa série nova, embo­ra nao completamente inédita, de dificuldades teóricas.

A mais importante dessas dificuldades é a que foi apontada pelo próprio Lepare em seu artigo "Quine, Analyticity and Transcendence" e reafirmado em conjun9ao com Fodor no segundo capítulo do livro, escrito a quatro maos, intitulado Holism: a shopper guide. Segundo os filósofos, o holismo semiintico de Quine apresentaria dificuldades in­superáveis como teoria semiintica e levaria a uma posi9ao relativista, com todas as suas conseqüéocias desagradáveis.

Com efeito, urna conseqüencia imediata do processo arbitrário de fixa9ao do significado adotado por uma teoria semantica holista seria a de que, caso as hipóteses analíticas utilizadas fossem modificadas, o próprio significado dos tem1os (o u mesmo a própria classifica«yao em termo singular e tenno geral) também sofreria modificavoes, alteran­do, conseqüentemente, até mesmo o significado das sentenvas que nao dependessem de estimula«¡:oes presentes para serem aceitas como ver­dadeiras, as chamadas sentenvas permanentes. Ou seja, qualquer mu­dan«¡:a no modo de compreender uma única scntenva alteraría o signi­ficado de todas as outras sentenvas de uma língua para cada falante individual.

É razoável concluir que, ao nao aceitar, ncm o caminho oferecido pela lógica modal, nem a alternativa mentalisJa, na constru«¡:ao de sua posivao filosófica, torna-se imperioso para Quine resolver esse pro­blema seriíssimo: o relativismo, tanto o semantico, quanto o epistemo­lógico. As conseqüencias do relativismo para a semantica, a fílosofia da mente e a epistemología sao bem conhecidas: se nao dispomos de critérios interlingüísticos que nos permitam comparar duas teorías di­ferentes e/ou duas línguas diferentes, nao podemos atribuir linguagem a outro falante, nem tao pouco decidir qual seria a melhor teoria cien­tífica dentre as várias teorias fommláveis adequadas aquetas experien­cias.

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A solu~ao apontada pelos próprios Fodor e Lepore como o cami­nho alternativo que poderia ter sido escolhido por Quine para essas dificuldades consiste em postular um elemento transcendente que fi­zesse a ponte entre as diferentes teorias/línguas (Fodor e Leporc 1992, p. 42). Mas, para que essa ponte fosse construida, seria preciso dispor ao menos de uma parte da linguagem que nao fosse indetenninada quanto a tradw;:ao. Essa exigencia, no entanto, nos remete obviamente aos antigos argumentos do próprio Quine contra a possibilidade de tal determina<;ao.

Com o objetivo de suavizar as suas conclusoes holistas, Quine ofe­rece, já no próprio segundo capítulo do W &0, urna versa o moderada do holismo semantico (Quine 1969a, pp. 79-81 ). Segundo essa ver­sao, apenas o significado das sentenyas teóricas (ou permanentes) se­ria indeterminado, o que resguardaría as sentent¡:as de observa<;ao (a­quelas que dependem de urna estimulat;:ao presente) um significado estimulativo determinado que pudesse ser considerado o seu "verda­deiro" significado. Esse seria, com efeito, o único caminho que pode­ría ser ainda trilhado por Quine sem que fosse preciso abandonar a in­tui<;ao fundamental de que a experiencia deveria ser o tribunal último de nossas contendas semanticas e teóricas. Assim, resta a Quine a pos­sibilidade de ressuscitar as velhas senten<;as de observas;ao (enuncia­dos básicos ou sentens:as protocolares) e encontrar para elas um papel em seu novo verificacionismo, agora destituído de seus dois antigos dogmas . .

Como podemos observar no fipa[ da obra de Quine em Pursuit of Truth e Stimulus to Science, os candidatos a portarem esse conteúdo empírico teoricamente neutro, responsáveis pela superar;ao da inco­mensurabilidade semantica e epistemológica de nossas lingua­gens/teorias seriam, na verdade, nao as senten<;as observacionais elas próprias, mas as sentens:as que Quine chama de "categóricos de ob­servat¡:ao." Essas sentens:as especiais, compostas por duas sentens:as de observa¡¡:ao (consideradas bolofrasticamente) e um conectivo lógico (a implicas:ao) seriam, enfim, as viabilizadoras do holismo "moderado,"

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Dois caminhos para o holismo seuu:imico 63

uma cspécie de novo "verificacionismo" sem dogmas, proposto por Quin c.

Os categóricos assinalam, a mcu ver, a tentativa do filósofo ameri­cano de manter intacto um derradeiro bastiao da posis:ao verificacio­nista: considerar a experiencia como o tribunal último de nossas con­tendas teóricas e conflitos radicais. O novo vcrificacionismo proposto por Quine, contudo, nao poderia ser descrito fielmente como uma mo­dalidade aprimorada de empirismo sem os scus antigos dois "dog­mas." Seria mais corrcto dizer que ele seria uma versao falsificacionis­ta (ou "popperiana") do veri:ficacionismo, sem contudo envolver, nes­se processo de falsificar;:ao, uma nor;:ao mais forte de significar;:ao. Es­se, no entanto, é tema para um outro debate.

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Dois caminlws para o holismo semcinttco 65

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Notas

1 Muitas foram as defesas e comentários a respeito desse artigo logo após a sua publicac,:ao. A interpretac,:ao de Lepore, no entanto, propoe uma nova ma­neira de se encarar as críticas de Quine aos positivistas naquela ocasiao e nos interessa particularmente por suas conseqüencias. Essa interpretac,:iio pode ser encontrada em um artigo intitulado "Quine, Analyticity and Transcendcnce," apresentado ao próprio Quine em uma conferencia em 1992 . 2 Essas sao as duas principais reclamac,:oes de Quine no entender de Grice e Strawson. (Grice e Strawson, 1971, p. 9 1.) 3 Embora Quine se retira a noc,:ao de "método de confirmác,:ao," ele a abando­na logo em seguida, preferindo fa Jar em relatos puros e simples da experien­cia. 4 Um detalhe deve ser lembrado: no experimento de Carnap os dois indivi­duos falam o mesmo idioma, o a lemiio. 5 Com esse exemplo, Quine enfatiza a ausencia de coextensionalidade, mos­trando que a hipótese de traduc,:iio pode envolver até mesmo urna localizac,:iio espacial diferente (na verdade, necessariamente oposta). 6 .Quine chama essas hipóteses de " hipóteses analíticas." . 7 Estamos considerando como holismo semantico qualquer tese que implique na indetenninac,:iio semi\ntica de sentenc,:as isoladas .

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O problema da intencionalidade: da idéia de 'objetividade imanente' na füosofia de

Franz Brentano ao desafio da parte V das Investiga~oes Lógicas de Edmund Husserl

Carlos D. C. Tourinho Uni,·cnidadc Federal do Río de .Janeiro

É na obra de Sao Tomás de Aquirf6':que o filósofo alcnü'io Franz Bren­tano ( 1838-1917) - professor na Universidade de Viena - busca fundamentos para reeditar a questao da intencionalidade no último quarto do século XIX. Para Tomás de Aquino, existir na natureza (esse natura/e) é distinto de existir no pensamento (esse intentionale). As coisas criadas existiriam, portanto, de dois modos distintos: na

natureza ou "fora da alma" (extra animam) e no intelecto (in inte//ec­tu). É ncsse segundo modo que encontramos a idéia de urna "in­existencia" da coisa no intelecto, a coisa segundo o modo de existen­cia de coisa pensada (secundum esse quod habet in intellectu). Trata­se aí de urna " in-existencia" nao no sentido de " nao existir," mas no sentido de "existir em," conforme o modo ou tem1q característico da própria inteligencia. Apoiando-se ncsse segundo modo de existencia, no qua! as coisas existem 110 intelecto (in intellectu) enguanto "coisas pensadas," Brentano propoe urna teoria imanentista da intencionalida­de, segundo a qua! o ato de ser intencional eleve ser definido como "ser objetivo cm sentido imancnte," o que eqüivale a dizer que todo ato mental contém em si algo como seu objeto.

Em sua obra de 1874, intitulada Psychologie vom empirischen Standpunkt (Psicología do Ponto de Vista Empírico), Brentano busca, basicamcnte, um critério de demarcac;:ao que pcm1ita o estabelecimcn­

Dutra. L. li. de A. e f\•tortari, C. A. (orgs .). 2005. Epislemulugia: Anais clu 11' Simpúsiu llllema­ciunal. Principia- Parle l . Florianópolis: NEUUFSC. pp. 67-77.

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68 Carlos D. C. Tottrinho

to de uma distins:ao entre os fenómenos jisicos e os fenómenos men­tais. No primeiro capítulo do Livro JI, Brentano comes;a essa discus­siio com a seguinte afim1as:ao: "Todos os dados da consciencia sao divididos em duas grandes c lasses - a classe do fenómeno físico e a classe do fenómeno mental."' No quinto parágrafo, ainda no Capítulo 1 do Livro 11 da Psicología do Ponto de Vista Empírico, Brentano introduz o que considera a característica que melhor permite-nos dis­tinguir os fenómenos mentais dos fenómenos físicos: trata-se da rela­s:ao intencional entre atas mentais e seus objetos. A idéia central de Brentano é a de que os fenómenos mentais sao atas mentais dirigidos (ou voltados) para os seus objetos. Em principio tais objetos sao fe­nómenos fisicos, porém, os fenómenos mentais (o u "a tos mentais") podem também tomar-se objetos de outros atos mentais. A relayiio entre fenómenos mentais e fenómenos físicos é, portanto, uma relar;clo entre a tos mentais e seus objetos. Brentano irá caracterizar esta relas;ao a partir de uma reediyao da concepyao aristotélico-tomista de "in­existencia intencional" de um objeto, in-existencia essa entendida nao no sentido de "nao-existencia," mas de "existencia em."2 Após eair em desuso no Renascimento e na Modernidade, essa tenninologia foi, entao, revivida por Brentano, por meio da expressao medieval " in­existencia intencional" do objeto,3 usada para veieular a idéia de que o objeto do pensamento in-existe como tal no pensamento, no qual se toma um objeto do próprio ato mental. Eis a definis:ao do termo "in­tencionalidade" na filosofia de Brentano: "ser objetivo em sentido imanente," o que eqUivale a dizer que tod.o fenómeno mental contém em si algo como seu objeto (ou seu conteúdo). O campo fenomenal se abre revelando, em sua imancncia, a referencia intencional aos obje­tos. Em Brentano, a inteneionalidacle (ou " in-existencia intencional") aparece, entao, como um critério de demarcayao, como aquilo que diferencia o fenómeno físico do fenómeno mental. Somente o fenó­meno mental possui inteneionalidade.

No pensamento de Brentano, a noyao de " inteneionalidade" assu­me, pelo menos, duas fom1as distintas: a primeira delas é conhecida como " intencionalidade primária," ao passo que a segunda será co-

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O problema da intenciona/idade 69

nhecida como " intencionalidade secundária." Em linhas gerais, enten­de-se por " intencionalidadc primária" a relayao entre um ato mental e o seu conteúdo que, por dcfiniyao, dcvc distinguir-se desse ato. Tem­se, entao, nesta primeira forma de intencionalidade, um ato nao­reflexivo, ou seja, um ato mental cuja direfí:i'iO é voltada para um con­teúdo (ou objeto) que, por sua vez, nao se confunde com esse ato. Na maioria das vezes, a "intencionalidade primária" revela urna relayao intencional entre um fenómeno mental (entendido como um "ato men­tal'') e um fenómeno fisico (entendido como um "objeto" ou "conteú­do" deste ato). No entanto, o fenómeno mental (enquanto um "ato mental") nao está confinado a ter um fenómeno fisico como seu objeto (ou contcúdo), pois, atos mentais podem também ser objetos (ou con­teúdos) primários de outros atos mentais. Suponhamos, por exemplo, a lembran9a da visao de um certa cor. Ncste caso, a cor é um fenómeno físico e a visao dessa cor é um ato mental. Mas, quando me lembro da visao dessa cor, aquele ato mental deixa de ser um ato para se toma agora um objeto (ou um contcúdo) de um outro ato mental, mais pre­cisamente, do meu ato de memória. A relayao de intencionalidade primária nao apresenta, portante, urna forma reflexiva, pois, nesta relafYaO, o ato mental nunca poderia tomar a si próprio como um obje­to primário. Qualquer fenómeno - seja ele mental ou fisico - pode ser um objeto primário de um ato intencional, com a exce9ao do pró­prio ato. A consciencia primária envolve, entao, urna rela9ao intencio­nal que pode, a título de ilustrayi'io, ser representada da seguinte for­ma: a é u m ato mental, e é o se u _conteúdo e a nao é identico a c.

Se na intencionalidadc primária, o ato mental nao se confunde com o seu conteúdo, na relayao de " intencionalidadc secundária," Brentano faJa-nos de uma consciencia que se volta sobre o próprio ato mental dirigido, originariamente, a um conteúdo, assumindo, portanto, uma fonna reflexiva. No sétimo parágrafo do capítulo 2 do Livro II de sua Psicologia do Ponto de Vista Empírico, o autor afirma-nos que pode­damos, em principio, supor, na relavao entre o ato mental e o seu ob­jeto, duas "apariy5cs" (ou " p!·escn9as"): a do objeto (ou conteúdo) do ato mental e a do próprio ato mental. Nos tem1os do autor: ." .. nenhum

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70 Corlus D. C. Tourínllo

fenómeno mental é possívcl sem uma consciencia con-elativa. Com o

aparccimento de um som, nós ternos, ao mesmo tcmpo, o aparecimcn­

to do aparecimento deste som. Nós temas, por conseguinte, duas apa­

riyocs (ou prcsen9as), e apari96es de tipos muito diferentes. Se nós chamamos o aparecimcnto de um som de "audi9ao," nós temos, cm acréscimo ao aparecimento deste som, o aparecimento da audiyao, que é tao diferente da audi9iio quanto a audi9ao é do som."4 Portanto, para Brentano, ncste sentido sincrónico, a consciencia reflexiva parece possível. Trata-se, na intencionalidadc secundária, de urna estmtura mais complexa de ato intencional do que aquela formulada na inten­

cionalidade primária, cuja rela<;:ao era, conforme vimos, a de um ato mental com o scu conteúdo imancnte, podendo csse contcúdo ser um fenómeno físico, isto é, uma qualidade sensorial (um som, uma cor, etc.) ou um fenómeno mental (um ato mental que foi, por exemplo, lembrado, imaginado, pensado, etc.). EntTc a intencionalidadc secun­dária e a intencionalidade primária, há uma relavao de dependencia, pois, a primeira supcrvem da segunda, ou scja, é preciso que se tenha consciencia de um conteúdo (ou de um objeto) para que se possa, en­tao, ter consciencia de que se está, em um dado momento, tendo cons­

ciencia de algo. Em acréscimo ao "objeto primário," o ato mental ga­nha, nesta fom1a reflexiva da intencionalidade, um "objeto secundá­rio": no caso cm questao, o próprio ato mental. Daí Brcntano dizer que: "todo ato, por mais simples que seja, possui um duplo objeto.'.s

Nota-se, portanto, cm Brentano, tres classes de consciencia inten­cional: (1) existem a.tos mentais cujo contcúdo primário é um fenóme­no físico (ou urna qualidade sensorial). Estes sao conhecidos como atos de percep.¡:ao externa, cmbora tais atos nao scjam percep9oes de um mundo "externo," pois, conforme vimos, o fenómeno fisico (luz, som , calor, etc.) encontra-se, enquanto um dado da consciencia, pre­sente no ato mental de forma imanente; (2) existcm atos mcntais cujo conteúdo primário é um outro ato mental. Brentano chama-os de "in­

trospecvao" ou ''observa9ao interna" (Beobachtung). Um exemplo

desta classe de consciencia intencional pode ser dado com o ato de lembranva cujo conteúdo é algum ato mental prévio (." .. quando nós

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O problema da imencionalidode 71

relembramos um ato de ouvir prévio, nós nos voltamos para ele como um objeto primário, e assim nós algumas vezes nos voltamos para ele como observadores .. . "); (3) e por fim, a consciencia sincrónica, refle­xiva de um ato mental como um objeto secundário, quer dizer, a cons­ciencia que um fenómeno mental tem de si mesmo. É a consciencia desse último tipo que Brentano denominará de "percept;:ao iotema" (Wahrnehmung), conferindo-lhe os atributos da "infalibilidade," "au­to-evidencia" e assim por di ante. Do ponto de vista terminológico, nós poderíamos distinguir, enHio, em Brentano, tres classes ou tipos de consciencia intencional: "pcrcept¡:ao externa," " introspect;:ao" (ou "ob­servat;:ao interna") e "percept;:ao interna." 6

A teoría de Brentano influcnciaria toda urna gerat¡:ao de filósofos do final do século XIX, tais como, Kazimierz Twardowski ( 1866-1938), A lexius Meinong (1853- 1920), Edmund Husserl (1859- 1938), dentre outros, inspirando, principalmente, o movimento da fenomeno­logía que se desenvolvería no decorrer do século XX. Estes mesmos filósofos se encarregariam de retomar e ampliar algumas das not;:oes mais importantes presentes na filosofia de Brentano. Mas, é com Hus­serl que o tema da intencionalidade ganba, na passagem do século XIX para o século XX, um novo encaminbamento.

Como herant¡:a do pensamento de Brentano, Husserl retém a idéia básica de que a intencionalidade é a peculiaridade da experiencia de ser consciente de alguma coisa.7 A partir deste ponto, notam-se dife­rent;:as importantes entre as respectivas concept;:oes teóricas desses dois autor~s. Enguanto Brentano restringe-se em dizer simplesmente que para todo ato mental há 11m objeto sobre o qua! o ato estará dirigi­do ou voltado intencionalmente, Husserl concentra o foco de suas atent;:oes sobre a "diretividade" deste ato, que faz com que o mesmo relacione-se intencionalmente com um objeto. Existem, em principio, dois motivos aparentes para esta nova preocupat;:ao: Husserl quer su­perar as dificu ldades concernentes a atos que carccem de objetos, uma questao cujas solut;:oes foram consideradas insatisfatórias por parte dos alunos de Brentano; além disso, para Husserl, toma-se de funda­mental importancia esclarecer o que significa para um ato ser "de"

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alguma coisa, ou estar dirigido ou voltado ''sobre" alguma coisa.8 A solw;:ao proposta pór Husserl foi enfatizar o "de" da rela~ao intencio­

nal entre a consciencia e o seu objeto. Consciencia é sempre conscien­

cia de alguma coisa, ou melhor, consciencia é sernpre como se fosse de um objeto. Descrever a diretividadc da consciencia intencional dizendo apenas que a consciencia é dirigida para um objeto deixa-nos "no escuro" quanto ao que vem a ser cssa tal "diretividade" da consci­encia. Afina! de contas, cm que ela consiste? Husserl parece ter feíto deste tema o tema central da fenomenología.

Pode-se dizcr que, até 1900, Husserl se mantém um defensor da te­oría da intencionalidadc fomecida por Brentano, assumindo, tal como o "mestre de Viena," que a propriedade característica de um fenómeno mental é a de ser "diiigido para um objeto." Na explica~ao dcssa pro­

pricdade, Husserl recorre, tal como Brentano, a in-existencia imanentc de um conteúdo mental. Aqui , a no~ao de "conteúdo" é para ser toma­da literalmente: o objeto intencional está contido no fenómeno mental como uma de suas próprias partes. Estabelece-se, como vimos, urna equivalencia entre o "objeto" e o "conteúdo" de um ato mental. Inspi­rado cm Brentano, o primeiro Husserl admite, entao, o chamado

"principio de adequa9ao mcrcológica," segundo o qual o objeto ou conteúdo de um ato mental in-existe como tal no próprio ato, enguanto uma de suas próprias partes.

E m su as lnvestigar;oes Lógicas ( 1900/1901 ), obra que anuncia o nascimento de urna nova disciplina, a "fenomenología," inicialmente d.etinida como "ontología pura das vivencias," Husserl foq1ece-nos uma nova conceps:ao de intcncional idade, rompendo, sob certos aspec­tos, com o pcnsamento brentaniano. O ponto de rompimento com rela9ao a teoría da intencionalidadc formulada por Brcntano concen­tra-se na rejeis:ao do princípio de adcqua9ao mereológica. Estabelece­

se, a partir desse momento, a distins:ao entre "conteúdo" e "objeto" de um ato mental. A nova teoría de Husserl partirá da idéia de que, no que se refere a qualquer ato ITlental particular, "conteúdo" e "objeto"

nunca coincidem. Enguanto o conteúdo de um ato (ou de uma vivén­cia intencional) encontra-se presente no próprio ato, como uma de

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O probfe1110 do intc'IICiollafidatfe 73

suas partes, o objeto intencional de um ato, cm qualquer circunstancia, nao será uma parte daqucle ato, nao estando, portanto, contido nelc de fom1a imanente.9 O e ixo das aten¡;6es concentra-se, enUio, neste mo­mento da obra de Husserl, cm torno da ncccssidade de elucidar a "re­fen!ncia intencional" da consciencia sobre os objetos, ou seja, o modo por meio do qua! a consciencia se refere a um objeto. Afina\, como nos lembra o próprio Husserl, existem essencialmentc diferentes cspé­cies e subcspécies de intenc;:oes, diferentes modos de referencia inten­cional ("Somente um ponto tem importancia para nós: o de que exis­tam diferen<;:as cssenciais, específicas entre rela¡;oes intencionais ou inten¡;oes"). 10 Passa a ser de fundamental importancia a investiga<;:ao do momento interno de um ato (ou de uma vivencia intencional) que, no próprio ato, é responsável pela detennina¡;ao de sua referencia ob­jetiva. Estamos aí frente a questao central da fenomenología. Nela, ve Husserl "um grande descobrimento mediante o qua!, e só mediante o qua!, foi possível a fenomenología." Para Husserl, a rcla<;:ao intencio­nal entre a consciencia e scus objetos nao pode ser interpretada, tal como propusera Brentano, como urna rcla<;:ao na qua! o objeto in­existiría ou estaría presente de fonna imanente no fenómeno mental. De imediato, tal afirma<;:ao cria um desafio, para o qual a Investigas:ao Quinta tentará nos fornecer uma resposta : como os e lementos atual­mcnte presentes em um ato mental podem capacitar essc ato a objeti­var, referir ou significar alguma coisa que, por sua própria naturcza, nao faz parte dele, ao contrário do que se pensava na posi<;:ao anterior? Todo o esfor<;:o será, entao, o de busc.ar uma solu<;:ao para o problema de como algwna coisa (um ato mental), cm virtudc somente de sua constitui<;:ao interna (suas várias partes e momentos), pode exitosa­mente cstabelecer uma referencia a alguma outra coisa (um objeto nao-imancnte ao ato mental), que nao scja, neste caso, ncm identico ao ato mental, nem a qualqucr de suas partes ou momentos. Como faz questao de ressaltar o próprio Husserl: ." .. é de um intcrcsse epistemo­lógico fundamental conseguir a máxima clareza possível acerca da cssencia desta rcferencia."11 Eis, portanto, o desafio maior da Investi­ga<;:ao Quinta.

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74 Carlos D. C. Tourinho

No parágrafo 16 da Quinta Investigacrao, Husserl chama-nos a a­ten9ao para a idéia de "conteúdo fenomenológico de um ato," enten­dendo tal idéia como a soma total das partes abstratas e concretas que constituem um ato. Em outras palavras, "trata-se da soma total das vivencias parciais que realmente constituem o ato." 12 Segundo Hus­serl, deve haver, no próprio conteúdo fenomenológico de um ato, um elemento que determine o objeto para o qua! o ato mental estaria vol­tado intencionalmente, mas também um elemento rcsponsável por fazer com que o objeto possa ser intentado por um ato como um obje­to julgado, desejado, representado, etc. Como o próprio Husserl faz questao de ressaltar: dcvcmos estabclccer urna distin¡yao entre o objeto tout court que é intencionado em urna dada ocasiao e o modo como ele é entao intencionado. 13 Afina!, se identificamos urna vivencia in­tencional (ou um ato) como um "julgamento," deve haver alguma determina¡yao interna ao próprio ato que sirva para distinguí-lo de outros tipos de atos, dos atas de desejar, de acreditar, de ter esperantya, etc. Um objeto nada seria para urna consciencia se ela nao apreendesse algo como um objeto, e se ela nao permitisse a esse algo tornar-se objeto de um sentimento, de um julgamento, de um desejo, etc. A investiga¡yao desses elementos (dessas partes ou momentos constituin­tes de u m ato) faz reaparecer o que consideramos ser a questao fun­damental da intencionalidade em Husserl: como pode um ato, em vir­tude somente de sua constituityao interna, dirigir-se intencionalmente para algo que nao está contido nele como uma de suas partes ou mo­mentos constituintes? Qu~is os elementos que, no próprio ato, tomari­am possível um direcionamento como esse?

Concentrando-se sobre o conteúdo fenomenológico de um ato (par­ticulannente, sobre o que posterionnente seria definido como a "es­sencia intencional de um ato"), como fotma de responder a esses ques­tionamentos, Husserl promove, a partir do parágrafo 20, urna investi­gacrao do que denomina de "partes abstratas" de um ato mental, ace­nando com urna resposta para a questao fundamental da intencionali­dade. Destacam-se os conccitos de "matéria" e de "qualidadc" de um ato mental , definidos, em termos gerais, como dois momentos abstra-

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O problema da intencimmlidade 75

tos, dois constituintcs intemos, comuns a todos os atos. A matéria é, segundo Husserl, aquela parte peculiar do conteúdo fenomenológico de um ato que aponta o objeto para o qua! o ato estaría dirigido ou voltado intencionalmente, determinando, portanto, o direcionamento do ato para este objeto e nao para outro ("É a matéria de um ato que faz com que o objeto do ato conte como este objeto e nao como ou­tro"). 14 A matéria intencional deve ser, portan lo, aquele elemento em um ato mental que detcm1ina, primciramente, a sua referencia a um objeto ( ou a sua " referencia objctiva"). 15 Tal referencia nao apenas fixa o objeto significado, mas também o modo preciso no qua! ele é significado. Ou seja, a matéria de um ato mental é aquela parte peculi­ar do conteúdo fenomenológico de um ato que nao apenas determina o que é apreendido como um "objeto," mas também, como que o objeto é aprecndido: propriedades, relayoes, formas categoriais, etc.

Já a "qualidade" de um ato mental é, tal como a matéria, um aspec­to abstrato do próprio ato (que juntamente com a matéria constituí a ''essencia intencional do ato"), porém, enquanto a matéria determina o objeto para o qua! o ato estaría dirigido intencionalmente, a "qualida­de somente determina se o que é já apresentado de uma maneira defi­nida encontra-se intencionalmente apresentado como algo desejado, questionado, localizado em um julgamento, ctc."16 Enquanto um as­pecto abstrato do ato, a qualidade se tomaría impensável, caso fosse dissociada da matéria, pois, a qualidade de um ato somente poderia determinar algo que se apresentasse para um ato como algo desejado, imaginado, julgado, etc., caso esse algo para o qual o ato mental csti­vessc voltado já se encontrassc determinado pela matéria do próprio ato. Do mesmo modo, caso fosse dissociada da qualidade, a matéria seria impcnsável, pois, coisa alguma poderia ser determinada como o objeto de um ato mental sem que dcixasse de se apresentar como algo desejado, questionado, julgado, etc. Neste sentido, como nos diz Hus­serl, nós devemos conceber a matéria e a qualidade de um ato como dois aspectos mutuamente dependentes. Seria adequado chamar a unHío de ambos os aspectos como a "esscncia intencional de um ato" (ou mais específicamente, ''essencia scmantica de um ato").17

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76 Carlos D. C. Tourinho

A presenya destes dois aspectos em um ato mental se toma neces­sária quando nos referimos a possibilidade de urna vivencia intencio­nal. E is, portanto, os elementos que, no próprio ato, tornariam possível o direeionamento intencional. Husserl concentra, enUio, sobre a "maté­ría" e a "qualidade" de um ato (ou de urna vivencia intencional) um ponto de apoio para a superayao do desafio que o problema da inten­ciona lidade impoe a parte V das lnvestiga¡;oes Lógicas.

Referencias bibliográficas

Bell, D. 1995. Husserl. The Arguments of the Philosophers. Edited by Ted Honderich. Routlcdge. Londres e Nova York.

Brentano, F. 1973 [ 1874). Psychology from an Empírica/ Standpoint. Ed. by L. L. McAiister, translated by A. C. Raneurello, D. B. Ter­rell and L. L. McAlistcr. Londres: Routledge & Kegan Paul.

F01lcsdal, D. 1998. "Edmund Husserl (1859-1938)." In Craig, E. (org.), Routledge Encyclopedia of Philosophy. Londres: Routledge.

Husserl, E. 2001 [ 1900/19001]. Logical lnvestigations (Volume II). Londres e Nova York: Routledge:

Thomae de Aquino 1970. Quaestiones Disputatae de Veritate (Quaes­

tio Prima). OPERA OMNIA. TOMUS XXII. Volumen I, Fase. 2. lussu Leonis XII P. M. Edita. Romae ad Sanctae Sabinae.

Carlos Diógenes C. Tourinho Doutor em Filosofia (PUC-RIO)

Professor e pesquisador ligado ao Programa de Pós-Graduayao em Filosofia da UFRJ

e-mai l: [email protected]

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O problema da intencionalidade 77

Notas

1 C/ Brentano, F. Psychology ji-om an Empirical Standpoint; pp. 77/78. 2 A propósito dos primeiros empregos da concepc;ao de "in-existencia inten­cional" de um objeto, Brentano afirma-nos que: primeiramente, coube a Aristóteles citar, em seu livro sobre a alma, a idéia de que o objeto apreendi­do pelos sentidos encontra-se, como tal, naquele que sente; a idéia de que o objeto pensado encontra-se no intelecto pensante. Do mesmo modo, Sao Tomás de Aquino ensina-nos que o objeto que é pensado encontra-se inten­cionalmente no intelecto pensante, de modo que o objeto que é amado encon­tra-se na pessoa que ama, o objeto que é desejado na pessoa que deseja, e assim por diante. C/ Id.; p. 88. 3 Segundo Brentano, os medievais também usam a expressao "existir como um objeto (objetivamente) em alguma coisa." Cf !bid.; p. 88. 4 Cf lbid. ; p. 121. 5 Cf /bid; pp. 128/ 153. 6 Cf Bell, D. Husserl; p. 24. 7 Cf Fellesdal, D. "Edmund Husserl (1859- 1938)." In: CR.AlG, E. (ed.) Routledge Encyclopedia of Philosophy. Routledge; p. 576. S Cf Id. 9 Cf Husserl, E. Logical lnvestigations (Volume II). lnvestigac;ao Quinta/ parágrafo 11; p. 99. 1° Cf Jbid. , parágrafo lO; p. 96. A respeito dos diferentes modos de referen­cia intencional, Husserl ainda nos diz: ." .. é evidente que hajam modos de consciencia ou de referencia intencional a um objeto essencialmente distin­tos. O caráter da intenfiio é específicamente distinto nos casos da percepc;ao, da rememorac;ao simplesmente 'reprodutiva' , da representac;ao imaginativa no sentido habitual da apercepc;ao de estátuas, quadros, etc., e do mesmo modo nos casos da representay:ao simbólica e da representac;ao no sentido da lógica pura. A cada momento logicamente distinto de representar intelectu­almente um objeto, corresponde uma variedade de inten~ao ." Cf lbid. , pará­grafo 14; pp. 1051106. 11 Cf !bid.. parágrafo 22; p. 129. 12 Cf !bid. , parágrafo 16; p. 112. 13 Cf !bid., apendice ao parágrafo 11 e ao parágrafo 20; p. 127. 14 C/ !bid., parágrafo 20; p. 122. 15 Cf !bid, parágrafo 22; pp. 128/ 129. 16 Cf !bid. parágrafo 20; p. 121. 17 C/ !bid. parágrafo 21 ; pp. 122/ 123.

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Para a crítica da semantica inferencia!

Celso R. Braida Universidade Federal de San la Cararina

O objetivo desse texto é fazer urna análise das teorías que procuram fornecer urna explica<;ao da significatividade e, sobretodo, do conteú­

do semantico das expressoes sentenciais, sem recorrer aos nexos refe­renciais, os quais, embora nao inteiramente elimi-nados, sao enHio concebidos ou como exteriores a semantica ou como secundários e

derivados das relac;:oes infercnciais. O ponto de partida dessas teorías é a priorizac;:ao da noc;:ao de conteúdo semantico sentencial, ou como aquilo que é expresso pelo proferimento de urna sentenc;:a, ou como um elo numa cadeia comunicacional-inferencial. A hipótese é que tal conteúdo asserívcl, isolável como algo determinado e codificado em urna sentenc;:a, se deixa especificar inteirarnente a partir das premissas ou condi9oes de sua asserc;:ao e das conseqüencias de sua asser<;ao. A explana<;ao dessas condic;:oes e conseqücncias esgotaria o conteúdo asserível em questao.

Pode-se considerar a questao para a qual as teses semantieas sao urna resposta como conccmindo ao modo como alcanc;:arnos a deter­minac;:ao do eonteúdo semantico de urna expressao lingüística. Trata­se de saber quaís fatores envolvidos no uso de urna linguagem sao constitutivos e quais sao derivados. A esta questao os infereneialistas respondem dizendo que é por meio da espceifieac;:ao da contribuic;:ao ou do papel qoe uma dete1minada expressao exeree no interior de uma

cadeia comunicacional-infcrencial. Esta resposta articula-se por meio de um plexo de alcgac;:oes acerca da ordem de explanac;:ao semantica, no interior do qual destacam-se: (l.) prioridade lógico-semantica da

Dutra. L. H. de A. e Monari. C. A. (Or!;S.). 2005. Episremulugia: Anais c/u IV Simpúsiu lnterua­ciunal. Principia - Par!<' l . Florianópol is : NELIUFSC. pp. 79- 122.

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80 Ce/su R. Braida

proposi9ao sobre os tem1os, e das scntenr,:as em rela9ao as partes sub­sentenciais; (2) prioridade da no9ao de verdade sobre as demais no­c;:oes semanticas; (3) prioridade das conexoes anafórico-substitucionais cm relacrao as referenciais; ( 4) interpreta9ao substitucional dos quanti­ficadores; e, por conseguinte, (5) dispensabilidade dos modelos ou domínios de referencia para a clefinir,:ao das nor,:oes lógico-semanticas.

Filosoficamente, a proposta inferencialista cumpriria de modo e­xemplar as exigencias metodológicas propostas por E. Tugendhat para uma teoría da linguagem nao orientada para objetos. E, além clisso, constituiría uma forte alternativa justificadora da neutralidacle ontoló­gica advogada por A. Tarski para a Seman6ca. Pois, nela, a func;:ao semantica das expressoes referenciais é explanada em te1mos intralin­güísticos sem a pressuposi9ao de algum tipo de remissao a objetos, liberando assim a Semantica de comprometimentos ontológicos. To­davía, para realizar isso a explana¡¡:ao inferencialista tcm que ser capaz de resolver as propriedades referenciais inteiramente em tennos de relac;:oes intralingüísticas. Por meio da exposic;:ao das suposic;:oes e te­ses básicas do inferencialismo semantico, eu pretendo tornar evidente a sua parcialidade, no sentido de ele nao ser capaz, por um lado, de explicitar o inteiro conteúdo semantico de todas as expressoes signifi­cativas e, por outro, de nao conseguir evitar o colapso de distinr,:oes semantieas óbvias sem recorrer a nexos referenciais.

l. Inferencialismo semant.ico

A justificar,:ao e a exposicrao da teoría inferencial 1 do conteúdo seman­tico comecra pela explanar,:ao da relar,:ao entre um juízo e os conceitos nos quais ele pode ser decomposto, ou entre uma sentenc;:a e as pala­vras nela articuladas, ou entre a proposi¡¡:ao expressa e os tennos pro­posicionais. A idéia básica é conceituar a proposir,:ao, por um lado, como a unidade pela qual se pode realizar um ato semantico, como o que é asserido (que é afirmado, negado, questionado, solicitado, etc.), e por outro, como algo inferencialmente articulado, isto é, como algo

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1

Para a critica da semálllica inferencia/ 81

que estabelece uma recte de implicayoes em termos de condiyoes e conseqücncias. 2 Ter conteúdo semantico, o u conteúdo conccitual, nao é ser representayao de algo ou referir a algo, mas ter um papel ou va­lor inferencia! no interior de mna cadcia de asser9oes:

to have conceptual content is just ... to play a role in the inferential game of making claims and giving and asking for reasons. To grasp or understand such a concept is to have practica! mastery over the infer­ences it is involved in- to know, in the practica! sense ofbeing able to distinguish (a kind of know-how), what follows from the applicability ofa concept, and what it follows from. 3

Os conceitos semanticos pelos quais sao explanadas as proprieda­des das expressoes, enquanto significativas, sao definidos a partir das propriedades inferenciais. O conteúdo semantico é determinado pri­meiramente para aquetas expressoes que podem ser veículos de uma asser9ao ou juízo e, ainda assim, apenas na medida em que elas sao postas em correla9ao com outras senten9as, isto é, apenas na medida cm que sao postas numa rela9ao de equivalencia ou nao-equivalencia inferencia! com outras senten9as, segundo o modelo inaugurado por Frege:

Há dois modos pelos quais o conteúdo de dois juízos pode diferir; po­de ou pode nao ser o caso que todas as inferencias que podem ser reti­radas do primeiro, quando combinado com outros juízos, podem sem­pre também ser retiradas do segundo quando combinado com os mes­mos outros juízos. As duas proposiyoes 'os gregos derrotaram os per­sas em Platea' e 'os persas foram derrotados pelos gregos em Platea' diferem ao primeiro modo; mesmo se uma pequena diferenc;:a de sen­tido é discernível, a concordancia de sentido é preponderante. Agora, eu denomino aqueta parte do conteúdo que é a mesma em ambas con­teúdo conceitual. Apenas este tem importancia para nossa linguagem conceitual.4

Disto segue-se que a cspccificayao do conteúdo semantico de uma senten9a apenas é completado pelo mapeamento de seu potencial infe-

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rencial, isto é, daquilo que permite e daquilo que se segue de sua as­servao, junto com outras asserv5es. Além disso, o principio da priori­darle lógica da proposivao determina que as expressoes subsentenciais apenas tenham uma significavao determinada no contexto de urna sen­tenva, o que é em geral enunciado recorrendo-se ao principio do con­texto fregeano: apenas no contexto de uma proposü;iio (Satz) uma pa­favra tem um significado (Bedeutung). 5 O que significa dizer que o significado ou valor semantico de urna expressao subsentencial é defi­nido pela deterrninavao da sua contribuivao semantica para os contex­tos em que ela ocorre.

Desse modo, qualificar uma semantica como inferencia/ significa dizer que nela a relas;ao entre as expressoes significativas e, sobretudo, a relas;ao entre os valores de verdade das expressoes sentenciais, é to­mada como decisiva no momento de determinar o que urna dada ex­pressao significa ou expressa. A significatividade das expressoes e, mais precisamente, o seu conteúdo semantico, tem que ser compreen­dido e explanado em termos de papéis inferenciais, 6 ao invés de o ser em termos referenciais. O uso de urna expressao, com um detenninado conteúdo, implica o endosso dos comprometimentos inferenciais ma­teriais das condi96es autorizadoras (premissas) e das conseqüencias do seu uso. A determinas;ao do conteúdo semantico nao é senao a especi­ficas;ao dessas condis;oes e dessas conseqüencias. Urna vez que a pro­posis;ao tem precedencia sobre as suas pmtes, a determinas;ao das suas propriedades semanticas precede logicamente a deterrninavao da fun­vli() semantica das partes.

O ponto central da tese inferencialista está na definis;ao da signifi­catividade, a qua! é definida e explanada com a novao de relavao entre as expressoes que compoern urna linguagem:

To define the sense of a word, it is sufficient to define the sense rela­tions that it bears to other expressions in the language, i.e., identifying its homonyms, hyponyms, superordinates and opposites as well as any other selectional properties il may have.7

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?ara a crítica da semtimica inferencia! 83

Esta tese é urna dccom~ncia natural daquilo que pode ser conside­rado o cerne diferencial dcsse tipo de semantica, a saber, a definic¡:ao da significatividade a partir de noc¡:oes scmanticas primitivas m1o­rcferenciais, especi0camcnte conccrnentes as rclac¡:oes anafórico e in­ferenciais existentes entre as exprcssoes componentes de uma lingua­gem. Este cerne está constituido por urna suposic;:ao, cm geral apresen­lada como principio, que é a exata negac¡:ao da tese refercncialista. Coro efeito, a tese referencialista diz que a signifícac;:ao das sentenc¡:as é inteiramente determinada pe~a propricdades refereneiais neJas atiicu­ladas. Por sua vez, as propriedades refercnciais das expressocs consti­tuintes sao dccorrentes das suas relac;:ocs com coisas no mundo nao­lingüistico.8 A tese infercncialista parte da suposic¡:iio inversa, a saber, que as propriedades inferenciais de urna expressao constituem o seu significado, isto é, a partir da negac¡:ao do primado da relac¡:ao de refe­n!ncia na constituic;:ao do conteúdo semantico, sem, note-se logo, ne­gar a referencialidade da linguagem. A significatividade de uma ex­pressao seria constituida e determinada apenas pelo papel inferencia! que ela exerce, ou seja, pelo modo como a sua ocorrencia afeta as rc­lac;:oes de implicac¡:ao e conseqüencia no interior de uma seqücncia dis-cursiva. .,

Desse modo, a tarefa de urna teoría semantica estaría limitada a explorac;:ao das potencialidades inferenciais de uma determinada lin­guagem. Dito de outro modo, a proposta inferencialista constituí-se como a tentativa de "definir a dimenséio extensional do discurso em termos de comprometimenlos substitucionais-infe,renciais, "9 e que cstes comprometimentos podcm ser explanados unicamcnte em ter­mos de relac;:ocs intralingüísticas:

an analysis in terms of anaphoric mechanisms can providc the re­sources for a purely intralinguistic account of the use of the English sentences by means of which philosophers make asscrtions about ex­

tralinguistic rcferential relations. More specitically, although we can and must distinguish between our words and what the words refer to or have as their referents, the truth of claims about what we are refer­ring to by various utterances is not to be understood in terms of a re/a-

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tion of reference between expressions and the objects we use them to talk about. Following Sellars, it will be argued that ' refers' not be se­mantically interpreted by or as a rclation and, a fortiori, not a word­world relation. 10

lsto implica que as nos;ocs semanticas sao relacionais, mas que as relas;oes explicitadas pelo discurso scmantico expoem a trama de rela­<yoes internas entre a significa<yao das exprcssoes componentes de urna linguagcm. Por conseguinte, a definis;ao do conteúdo semantico sen­tencia!, em uma semantica inferencialista, constrói-sc a partir de no­<yoes que envolvem a detennina<yao das re las:oes entre as expressoes significativas. Isto aplica-se a todos os tipos de cxpressoes: senten<yas, tcnnos, partículas, etc .. Sobrctudo, a significas:ao do proferimento de urna sentcns;a é explanado através do encadeamento discursivo que ela implica em termos de eondi<yoes e conseqüencias; estas relas:ocs, po­rém, sao explanadas em termos de rela<yoes entre os valores de verda­de atribuidos as sentens;as, e nao mais em termos de referencia cm um dominio. O que se realiza oeste tipo de semantica é o dogma segundo o qua! a "referéncia a verdade (ao Verdadeiro) precede a referencia a Oillros objetos. " 11 A semantica passa a ser urna exposi<yao das regras de combinas;ao de elementos significativos, onde as no<yoes de refe­rencia, objeto e propriedade, sao secundárias e derivadas. Estas nos:ocs sao vistas como que de dentro ou a partir da linguagcm, isto é, tais no<yoes fazcm sentido apenas através da linguagem, nao sendo exterio­res a ela nem independentcs dela: uma re!Gl;Cío com objetos jora do contexto de uma sentenr¡a nao se dá. 12

·

Este modo de conceber a significatividade determina urna rc­definis;ao das nos:oes e das fun<yoes semanticas associadas aos termos de urna linguagem. Sentcn<ya, tenno singular e geral, predicadores, quantificadores, dciticos e demonstrativos tcm agora que ser redefini­dos recorrendo-se apenas ao modo como eles afetam ou contribuem para os contextos infercnciais-sentcnciais em que ocorrem, pois, a teo­ría semantica csgota-se na tarefa de explicitas:ao das relas;oes de im­plica<yao e conscqüencia entre as expressoes de uma linguagem.

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Para a critica da semáutica iufereuciaf 85

2. A caracteriza~ao dos termos proposicionais

A descrir¡:ao das funr¡:oes semanticas veiculáveis pelas diferentes ex­pressoes de urna linguagem realiza-se com base na deterrninar¡:ao dos nexos intra-lingüísticos e nao mais cm termos da determ ina¡yao· de urna relar¡:ao de referencia a a lgo nao-lingüístico. O argumento para tal pro­cedirnento é urna interpretar¡:ao forte do princípio do contexto fregeano pela qual a determina<;:ao do significado de urna expressao subsenten­cial dá-se apenas pela detenninar¡:ao de seu papel no contexto senten­cia!. E isto nao é senao estabelecer urna correla<;:ao entre a expressao a ser explanada corn outras expressoes já em uso através de uma cadeia de asserr¡:oes na f01ma de condir¡:oes e conseqücncias. A unidade se­mantica inicial é um conteúdo asserível ou judicávcl. O ponto de par­tida, por conseguinte, é a defi nir¡:ao daquelas expressoes que podem funcionar como asserr¡:oes, isto é, como veículos de um ato semantico completo, as sentenr¡:as.

A funr¡:ao semantica sentencia[ define-se diretamente em termos de cadeia discursiva ou cadeia inferencia[, de tal modo que também nesse nivel é pela remissao a outras expressoes que se pode determinar o conteúdo de urna senten<;:a particular: "The conceptual content expres­sed by a sentence depends on its place in a network of inferences rela­ting it to other sentences. "13 A descrir¡:ao semantica de uma seqüencia de sinais como tendo conteúdo semantico explicita-se na fonna de urna atribuir¡:ao de um potenyial inferencia[ enguanto expressao de um ato de asser<;:ao:

At the top, sentences can be understood as propositionally contentful in virtue of their use in ex.pressing claims - that is, assertional com­mitments. The key concept at this leve! is inference, for what makes the contents expressed propositional is the role of sentences in giving and asking for reasons. lnferential connections among claims are un­derstood in tum pragmatically, in tenns of consequential relations among the altitudes by means of which score is kept on commitments

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and cntitlcmcnts to commitments - how auributing others, precludes entitlement to others, and so on. 14

O valor semantico de uma senten~a ainda pode ser identificado com o seu valor de verdade, tal como nas semanticas referenciais. To­davía, suas eondi~oes de verdade, o que por ela é expresso, constitui­se pelos nexos inferenciais com outras de que ela é uma conseqücncia e ou que sao conseqüencia de sua asserr,:ao, o que significa dizcr que o seu eonteúdo, a proposir,:ao por ela expressa, apenas pode ser explici­tado pela determinas;ao de uma classe de senten~as equivalentes. 15 O passo seguinte é a explanar,:ao da contribuis;ao semantiea dos termos subsentcnciais. A funr,:ao semantica das partes subsentenciais é descri­

ta como essenc ialmente distinta daquela atribuída as sentens;as, uma vez que somente sentenr,:as podcm servir como lances lingüísticos, isto é, como atos semanticos ou, ainda, como premissas e conclusoes de infcrcncias. 16 Por isso, adota-se um procedimento distinto. Uma vez que é unicamente como parte de urna assers;ao que uma cxpressao tem significar,:ao, entende-se que as partes das sentenr,:as tcm seu significa­do determinado pela funxao semantica que elas exercem no interior de sentens:as asseridas de que elas sao partes componentes.

O ponto de pattida é a fixa~ao de uma classe de sentenr,:as equiva­lentes e a partir disso a detenninas:ao de uma classe de partes subsen­

tenciais intersubstituíveis preservadoras daquela classe de equivalen­cia. O proccdimento é feito , portanto, em dois estágios. Primeiro, es­tabelecem-se classes de sentenr,:as equivalentes e, depois, estabelecem­se classes de partes subsentenciais equivalentes intersubstituíveis. Es­tas classes determinam funr:oes estruturais que sao exercidas por ex­

pressoes ou conjuntos de expressoes.

Thc key concept at this levcl is substitution, for taking subsentential cxprcssion to be contentful consists in distinguishing some inferences as substitution inferences, some inferential commitments as substitu­tional commitments. The substitutional structure of the inferences sen­tcnccs are involved in is what the contentfulness of their subsentential components consists in. 17

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Para a crítica da semántica inferencia/ 87

Desse modo sao isoladas as diferentes fun<;oes semanticas atribuí­das as expressoes que podem substituir umas as outras no interior de urna sententya preservando suas características semanticas, ou melhor, preservando o conteúdo semantico da inteira sentenya. Urna vez que o conteúdo semantico das sentenyas é definido em tetmos de seu poten­cial inferencia}, as diferentes classes de substituit;ao serao definidas pelo modo como elas afetam este potencial e pelo modo como elas agenciam urna cadeia anafórica em que termos ocupam o lugar de outros termos preservando o conteúdo semantico original. Este proce­dimento conduz a postulayao de termos de parada da cadeia anafórica:

At the lowest leve!, unrepeatable tokenings (paradigmatically deictic uses of singular terms) can be understood as involved in substituition inferences, and so as indirectly inferentially contentful, in virtue of their links to other tokenings in a recurrence structure. The key con­cept at this leve! is anaphora. For taking an unrepeatable tokening to be contentful requires associating it with a repeatable structure of the

·. sort that can be the subject of substitutional commitments. 18 . . .. , .

Cadeia inferencia/, substituir;iio de termos e relar;oes anafóricas constituem as noryoes que conformarao a definiryao dos termos propo­sicionais. Defini9ao esta cuja característica principal é a ausencia da rela9ao de referencia a entidades. Ao invés de definir os papéis seman­ticos das expressoes subsentenciais em termos de tipos de entidades utiliza-~e para isso urna caracterizas;ao do modo como as diferen~es partes componentes contribuem para a fotma<;ao da sentens;a. Esta distins;ao é entao utilizada para caracterizar e distinguir as noryoes de termo singular e termo geral.

Para isso, adota-se na semantica inferencialista a estratégia de defi­nit¡:ao sugerida inicialmente por Frege para a funryao semantica dos termos proposicionais. O que definía um termo singular, na perspecti­va abetia por Frege, era o conceito de ''flxm;:iío do sentido de um e­nunciado de recognir;iío" e nao a relas;ao com algo no mundo. Um juízo ou enunciado de recognit¡:ao tem a forma de uma identidade. O

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88 Ce/so R. Braida

que significa que para um termo funcionar como termo singular, isto o

é, como um termo designador, faz-se necessário cstabclecer a verdade de um enunciado de identidade que fixe o seu significado através de

outras cxprcssocs significativas. Definir uma expressao como te1mo significativo em urna lingua­

gem, para Frege, era "um problema de jixac;éio do conteúdo de um juízo-de-reconhecimento (Wiedererkennungsurthei/s). "19 Esta maneira de definir a funs:ao semantica dos tem1os singulares implica a existen­cia de outros termos significativos e designadores prévios, de tal modo que a fixas;ao da signifieas;ao de um termo apenas pode ser alcans;ada pela remissao a um outro termo já significativo:

for an expression in the language to be propru:ly understood as playing the role of a genuine singular tenn, and so as picking out a patticular object, it must be understood as intersubstitutable with some other tenn.20

Disso resulta que urna expressao apenas se deixa determinar como tcnuo singular quando há pelo menos já um outro modo de introduzir o mesmo objeto no discurso. O uso de um tenno para referencia a um objeto somente se deixa determinar em uma linguagem se houver ou­tro meio de referir ao mesmo objeto.21 Isto porque é o tipo de rela<¡:ao anafórica e as propriedades substitucionais da expressao, que detenui­nam a fun<¡:ao como a de tenno singular:

The category of singular terms should be understood as comprising expressions whose proper use is governed by simple material substitu­tion-inferencial commitments linking them to other such expres­sions.22 ( ... )

Thus the concept expressed explicitly by locutions such as 'what one is pointing to' , like •vhat is expressed by locutions such as 'what one is referring to ' , must be understood anaphorically. 23

Em outras palavras, o uso de expressoes como termos singulares envolve o comprometimento com a verdade de pelos menos um enun-

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Para a critica da scmámica mfcrcnci(l/ 89

ciado de identidade, na forma de um enunciado de reconhecimento que introduza um objeto como sendo capaz de ser reconhecido por um ou mais modos de accsso, isto é, como caindo sob um ou mais concei­tos ou descri~oes. Como foi dito anteriormente, é a determinayao de uma sentens:a como verdadeira que permite a detem1inas:ao da refc­rencialidade de uma expressao subsentencial. O que é claro nestas considerayoes é a dependencia do uso prévio de expressoes significa­tivas para a introduyao dos termos singulares, pois sem antigos termos significativos e bem entrincheirados na prática lingüística nao se po­deria introduzir novos termos singulares. O inteiro procedimento é claramente retrospectivo e parece supor um comes:o em mna expres­sao que nao tcm a sua funyao semantica detenninada desse modo, e que introduz um conteúdo diretamcnte. Para dar conta dcsse problema a descriyao inferencia lista emprcga as nos:oes de iniciador anafórico e de designador canónico. os quais constituem dois tipos especiais de termos singulares, e que equivalem aos tennos primitivos em urna lin­guagem estipulada.

Um iniciador anafórico é urna expressao que tem a funyaO seman­tica de introduzir um conteúdo capaz de ser retomado por outras ex­pressocs, por anáfora, sem que ela mesma esteja ligada a expressoes anteriorcs.24 Isto poderia ser interpretado como o ponto cm que as ca­deias inferenciais dependem dos nexos exteriores ou refcrenciais. Po­rém, aquí justamente se apresenta o diferencial da tese, pois, o argu­mento infercncialista é que scm os nexos anafórico-infereneiais e sem as relayoes de substituis:ao as ocorrcncias dessas expressoes nao seri­am utilizáveis como partes de assers:oes:

Unless one could pick deictic uses up anaphorically to generate recur­rence classes, one would not be able to involve such deictic tokenings in (undertaken or attributed) identificatory substitutional commit­ments, and so could not treat them as involving occurrences of singu­lar terms. Without the poss.ibility of anaphoric extension and connec­tion through rccurrence to other tokenings, deictic tokenings can play no significan! semantic role, not even a deictic one. Oeixis presup­poses anaphora. Anaphora is the fundamental phenomenon by means

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90 Ce/so R. Braida

of which a connection is forged between unrepeatable events and re­peatable contents.25

Em suma, o valor scmantico de tetmos singulares está, cm última instancia, dcte1minado pelas retomadas anafóricas no interior de um discurso e pelas expressoes intersubstituintes. Se a ocorrencia nao po­de ser ligada a ocom~ncias anteriores, por ser um uso nao-dependente de outras asser~ocs, enUio, a contribuic;:ao semantica de tal ocorrencia apenas se determina pelas retomadas anafóricas que cla engendra ou permite. Esta interpretac;:ao é bastante problemática, pois implica em dizer que as oco1Tencias nao-anafóricas de pronomes, p.ex., apenas tcriam conteúdo na medida em que fossem retomados anaforicamente, isto é, como tendo a sua contribuic;:ao semantica determinada pelas rela~oes com outras ocorrencias que dependem dela para ter um valor semantico determinado.

A no9ao de designadores canónicos é explicada em termos con­vencionais. Um dcsignador canónico é urna expressao cuja "correta .forma<;cio gramatical garante que ela apanha um objeto correspon­den/e. "26 O que significa dizer que a contribuic;:ao scmantica de um designador canónico é a de designar, e o seu uso implica a introduc;:ao de um objeto no discurso. A relac;:ao de referencia, porém, é exterior a semantica, o que significa dizer que a relac;:ao entre um sinal e o objeto que ele designa, no que se refere aos termos primitivos, sejam os de­signadores canónicos sejam os iniciadores anafóricos, é arbitrária e dependente de fatores exteriores a scmantica. O conteúdo semantico de um termo designador, porém, nao é o objeto designado, mas sim o plexo de remissoes, de conseqüencias e condic;:oes, nelc codificado, e este plexo é interno a linguagcm.

Uma vez estabclecido os designadores canónicos e os iniciadores anafóricos todos os demais termos designadores tem seu significado garantido pela sua remissao a eles:

Ensuring that novel singular terms are suitably substitutionally linked to canonical designators establishes both the existence and the uniqueness of the objects they pick out, and so secures the success of

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Para a crítica da semálllica il¡(ere11cial

the singular referential purport that distinguishes them as singular tenns.27

91

Nesse. ponto mostra-se os limites da semantica inferencialista. Em úl­tima instancia, esta fmma de explicitac;:ao do papel sernantico desem­penhado pelos termos singulares, por ser interna a urna linguagem significativa, apenas pode repor o conteúdo semantico de urna expres­sao por meio de urna outra expressao dessa mesma linguagem.

A explanac;:ao da noc;:ao de termo geral confinna este diagnóstico. Em contraste com os termos singulares, os termos gerais apresentam um comportamento inferencial-substitucional diferente, pois entre eles se estabelecem relac;:oes hierarquizadas de inclusao e exclusao. O que implica que as inferencias substitucionais detenninam direc;:oes ou hie­rarquias que preservam a correc;:ao apenas em urna direc;:ao.28 Enguanto os termos singulares intersubstituíveis estabelecem relac;:oes horizon­tais e simétricas, os tem1os gerais estabelecem entre si relac;:oes verti­cais de inclusao e exclusao. Por conseguintc, do ponto de vista que descreve as propriedades inferenciais-substitucionais os termos da proposic;:ao tem a seguinte caracterizac;:ao:

Singular terms are substitutionally descriminated, essentially subsen­tencial expressions that play a dual role. Syntactically they play the substitution-structural role of being substitutedfor. Semantically their primary occurrences have a symmetric substitution-inferencial signifi­cance. Predicates, by contrast, are syntactically substitution-structural frames, and semantically their primary occurrences have an asymmet­ric substitution-inferential significance.29

A explanac;:ao inferencialista dos termos proposicionais, portanto, apenas nos diz como os tennos sao utilizados e apenas na medida em que já tenhamos outros termos do mesmo tipo:

To say that subsentential expressions are used by a community as sub­stituted-fors and substitution-structural frames is to say that the con­tents conferred by the practices of the community on the sentences in which those expressions have primary occurrence are related systematically to one anothe•· in such a way that they can be exhibited

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92 Celso R. Braida

a1ically lo one another in such a way that they can be exhibited as the produc1s of contents associa1ed with the subsentential expressions, ac­cording 10 a standard substilutional structure.30

Como já foi apontado para o caso dos termos singulares, novamen­te a descriryao inferencialista termina a sua explanayao ao mostrar as relaryoes sistemáticas de uma expressao com as demais expressoes da linguagem em questao. Isto, porém, nao infonna nada acerca do con­teúdo mesmo dessas expressoes, nem da diferenrya de conteúdo dos tetmos singulares e predicadores. Desse modo nao se esclarece o uso dos termos, mas tao somente como é possível introduzir novos termos cm urna linguagem que j á contém ou outros termos ou outros meios de indicar e identificar objetos. Oito de modo mais brando, o recurso a descriryao das propriedades anafórico-substitucionais apenas permite a definis;ao das propriedades inferenciais de tennos de uma linguagem já significativa, isto é, que já dispoc de dispositivos de descrivao e identificaryao de objetos.

A tese principal que rege a interpretaryao inferencia! dos termos proposicionais supoe que as ocotTeneias semanticarnente relevantes sejam dcpcndentes da verdade de urna asserryao prévia. Ern outras pa­lavras, a dcterminayao da eontribuiryao sernantica dos termos singula­res passa sempre pela determinaryao da verdade de urna sentenrya. A qua!, em geral, é um condicional material do tipo "se isto é ta l e tal, enHio, nao é assim e assim"; "se isto é o caso, enUío, aquilo tambérn é o caso", cuja funryao é cstabelecer uma correlayao entre usos de ex­pressoes: Isto implica em assurnir-sc uma base de sentenryas primitivas a partir da qual as propriedades se estenderiarn para toda a lingua­gcm.31 A verdade de uma sentenrya primitiva por sua vez é pensada em termos de satisfaryao de urna descriryao ou conceito. O que significa dizer que cm última instancia, se se quer falar nesses tetmos, a intro­duryao de um objeto no discurso, ou o contato da linguagcm com o mundo, semprc dar-se-ia através de uma descris;ao ou aplica¡yao de um conceito.32 Este ponto é tanto esclarecido como pressuposto pela in-

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Para a cririca da senuinrica inferencia/ 93

terprctas:ao das frases quantificadas, como será mostrado na próxima

scc;:ao.

3. Interpretat;ao substitucional da quantificat¡:ao

As expressoes quantificadoras recebem urna interpretac;:ao substitucio­nal em que nao se assume que os termos refiram a objetos em um do­mínio nao-vazio, tomando-se a verdade como conceito fundamental e

nao a nos:ao de satisfac;:ao em um domínio, invertendo-se assim a or­dem de explanac;:ao característica da semaotiea tarskiana. lsto se mos­tra na suposis:ao inicial de que a verdade já tenha sido definida para as sentenc;:as da linguagem para a qua) se vai definir os quantifieadores.

Além disso, assume-se também uma classe de substituic;:ao constituída pelos termos da linguagem. A definic;:ao substitucional dos quantifica­dores é bem conheeida, nao sendo neeessário urna exposic;:ao pomle­norizada.33 O quantificador existencial é interpretado como indicador

do comprometimento com a verdadc de pelo menos uma sentens:a re­sultante da substituis:ao da variável por um nome: "(Existe xJP' é ver­dadeira" é !ida assim: existe um termo t, tal que a sentenc;:a F' é verda­deira, onde F' resulte da substituic;:ao de todas as ocorrencias livres de X; por t. O quantificador universal, por sua vez, é interpretado como

significando que para qualquer nome da classe de substituic;:ao pela qua! a variável está, a sentenc;:a será verdadeira: "(Todo xJP' é verda­deira" é !ida assim: para qualquer termo t, a substituic;:ao de x1 por r produz uma sentenc;:a verdadeira.

Estas caracterizac;:oes indicam que as condic;:oes de verdade das fra­ses quantifieadas podem ser dadas cm termos de disjuns:ao e conjun­c;:ao. A quantificac;:ao existencial pode ser vista como a disjunc;:ao (pos­

sivelmente infinita) das fórmulas resultantes da substituis:ao de todas as ocoiTencias livres da variável x1 por um termo t, e a quantificas:ao

universal como a sua conjuns:ao, sendo verdadeira se e somente se

todas as instancias sao verdadeiras.34 Em outras palavras, a descric;:ao semantiea dos quantificadores mostraría que tais expressoes veiculam

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94 Ce/so R. Braid(l

comprometimentos substitucionais de conjunvao ou de disjunyao, e nao comprometimentos com a existencia de objetos.

Como fica claro, a suposis:ao fundamental continua sendo a priori­dade da verdade em relas:ao a interpretas:ao da contribuis:ao semantica das partes subsentenciais. De fato, a interpretayao substitucional dos quantificadores depende da aceitas:ao de sentenc;:as como verdadeiras para determinar o valor semanticó das frases quantificadas. Todavía, a verdade também é desconectada da referencialidade e, sobretudo, da existencia, de tal modo que isto implica urna separac;:ao entre quantifi­cac;:ao, portanto, uso de variáveis, e comprometimentos ontológico­existenciais. Este modo de conceber a semantica das frases quantifica­das implica fornecer um tratamento das inferencias envolvendo tais frases sem recorrer a nos:ao de objeto e de dominio de referencia. Em urna semantica que utilize tal interpretas:ao, com efeito:

No domains are assigned to worlds at all; the variables do not range over objects, they are place markers for syntactical/y proper names. Atomic sentences on such an account do not represent structures with constituents. They represen! unstructured "contents". Truth or falsity may be assigned to such sentences, but there is no presumption about objective reference of nonlogical terms. For such a substitutional ac­count one starts not with reference but with truth.35

Desse ponto de vista, pode-se visualizar com clareza o ponto de contraste com as semanticas referencialistas. Admitido o procedimen­to substitucional-infercncial, a introdus:ao de COIJlprometimentos exis­tenciais é um acréscimo indevido na explanac;:ao das frases quantifica­das. A quantificac;:ao é conceituada de modo a nao envolver existencia:

The standard semantics inflates the meanings of sentences it para­phrases, those, for example, that did not originally have the existencial import they acquire on such paraphrases.36

Em última instancia, o uso de sentcnc;:as quantificadas dissocia-se de pressuposit;ocs de existencia. Nao é o uso de quantificadores que de-

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Para a crítica da semántica infercnci(l/ 95

sencadeia comprometimcntos ontológicos, pois tais exprcssoes tem

uma funs;ao apenas cstrutural. Para que isso scja inteligível, distingue­se a nos;ao de quantificas;ao fonnal particular da quantificas;ao exis­

tencial substancial, pennitindo que se use tennos sem comprometí­

mento com a existencia. Nas palavras de R. B. Marcus, a fundas;ao da semantica dos quantificadores na nos;iio de verdade significa também

desconectá-la dos comprometimentos ontológicos.37

A raziio dessa distins;ao é que os comprometimentos cxistenciais siio resolvidos na fonna de comprometimcntos substitucionais seme­lhantes, mas nao identicos, aos envolvidos no uso dos quantificadores. Por conseguinte, a tese que o uso correto de uma expressiio dcsignado­ra envolve a existencia de um objeto é abandonada:

To take the expression to pick out an object that exists in a particular sense ( ... ) is to take it that it is intersubstitutable with sorne term that is privileged as canonical with respect to that sort of existence. 38

Por conseguinte, a afirmas;ao de existencia nao acorre no uso de vari­ávcis e de expressoes de quantidade. Em uma frase quantificada tao

somente se prcssupoe a substituibilidade entre expressoes significati­vas. Portanto, a interpretas;ao substitucional nao tem que ser vista co­mo urna decisiio acerca de se os termos denotam ou nao, pois, nas pa­lavras de Kripke:

The utility of the substitutional quantifier lies in the fact that while the referential quantifiers over tenns take names of tenns as substitutes, the substitutional quantifiers take the tenns themselves, which can be denotationless or can denote other things.39

Entretanto, para Kripke, tanto a interprctas;iio substitucional quanto a referencial sao inteligíveis e consistentes. Em termos formais, isto é, para uma teoría da quantificas;iio para um cálculo de prime ira ordem,

para uma linguagem nao-interpretada, "both the substitutional and the standard inte1pretations make al! theorems va/id. "40 Todavía, ele de­fende que sob mna perspectiva mai s ampla, a exposis;iio da semantica

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96 Ce/so R. Braida

das frases quantifícadas de urna linguagem requer o uso de urna se­

mantica referencial, pois, "the ontofogy used to give the semantics of a substitutional object language is not the nu/1 ontology, but, at/east, an ontology of expressions.'-.4 1 posicionando-se assim contra a interpreta­~ao substitucional pura. A semantica inferencialista, contudo, enfrenta esta crítica de Kripke fomccendo urna teoría anafórica da referenciali­dade que será agora objeto de considera~ao.

4. Explana~áo da refercncialidade em termos de substitutividade

O conteúdo semantico, na conceitua~ao inferencialista, resolve-se nas conexoes entre expressoes significativas de uma linguagem até mesmo para as frases quantificadas. O que é esta significatividade fora das

conexoes inferenciais, substitucionais e anafóricas nao é explanável, pois para isto deveria ser possível dizer sem significar: a semantica é

inefável, o que se pode esclarecer é apenas o modo de relayao das di­ferentes expressoes pertencentes a urna linguagemjá significativa. As explicita~oes dos termos proposicionais, portanto, dizem respcito ape­nas ao estabclecimcnto das condic;:oes que devem ser preenchidas para urna expressao contar como tendo introduzido um objeto, ser compre­endida como um termo singular 011 como um dcitico com uma refe­rencia definida:

the conditions that ought. to be met to count as having introduced (or

understood) a singular term (even a tokening of a demonstrative) as

having a definite reference.42

Isto constituí uma explicac;:ao deflacionista e anafórica da referen­cialidade, pois nela nao se recone a noc;:oes 1:elativas a itens nao­

lingüísticos. A cxplana~ao do conteúdo semantico de um termo refe­rencial, em vez de recorrer a rela96es com o extralingüístico, recon·e

as relac;:oes de substituic;:ao e de anáfora entre as expressoes. O que significa dizer que o uso de urna expressao referencial é explanado por

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1

Para acrílica da semcimica inferencia/ 97

meio da postula<;ao de um enunciado de identidade: o referente da cx­pressao "Leibniz" é (idéntico a) o referente da expressao "O autor da Monadología". A primeira ocorrcncia da exprcssao "Leibniz" em uma sentens:a requer apenas que ela seja substituível por outra expressao já significativa (usada para compor uma enuncia<;ao). Nem todos os ca­sos sao assim explanados. Se este procedimento nao está disponível e o termo foi introduzido, entiio, trata-se ou de um iniciador anafórico ou de um designador canónico. Digamos que estamos na situacrao de batismo e a scguinte frase é pronunciada: " Esta crians;a chamar-se-á 'Leibniz' ." A expressao "Leibniz" torna-se significativa, designad ora, em funs;ao do vínculo com o deitieo "Esta," o qua! propriamentc nao tcm um valor semautico determinado senao na situas;ao-contexto cm que foi utilizada.

Esta explicas;ao apenas dá conta da "intens;ao de referir," nao ex­plicando a referencia bcm sucedida. A referencia bem sucedida impli­caría a existencia de um referente. Mas a existencia é algo que está para além dos dominios da explanas;ao semantica. Por isso, o aparato semantico infercncialista apenas fornece uma explicas;ao dos com­prometimentos referenciais e existenciais, decorrentes do proferimen­to de urna expressao designadora, em tennos de um tipo de compro­metimento substitucional:

The existential commitments is ... equivalent to the disjunctive claim that so me identity ( of this fonn) is true. The significance of ... existen­tia! commitments is ... to be understood, and their propriety assessed, in terms of the class of vindicating substituends supplied by identi-. 43 ttes ...

Os comprometimentos cxistenciais, porém, nao sao completamente expurgados. Nao obstante serem a fonte da significatividade das ex­pressoes designativas, eles pertenccm ao dominio pragmático, estando para além da semantica. O que se pode dizer cm tem1os semanticos é que a noc;ao de referencia ou designacrao é explanada em termos de uma remissao anafórica. Em te1111os setm1nticos, a funs;ao de referir

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98 Ca/so R. Braida

explana-se como um operador anafórico complexo formador de pro­

nomcs:

Although anaphora is an intralinguistic (or word-word) relation, adopting an anaphoric account of 'refers ' as a proform-forming opera­tor does not entail conflating linguistic items with extralinguistic items.44

Por conseguinte, o uso de frases quantificadas e de expressoes refe­

renciais é explicado cm termos de comprometimentos inferenciais e substitucionais. A racional de tal procedimento está na tese da prima­

riedade das relayoes anafóricas, as quais estao na base da definiyao da fun9ao semantica dos tennos designadores. Como vimos anteriormen­te, as cadeias anafóricas45 sao explanadas com a no9ao de recom!ncia de uma ocorrencia primitiva seja de um iniciador anafórico seja de um

designador canónico. Estes sao os conceitos que propriamente podem explanar o que é ser urna exprcssao referencial.

Com efcito, os nexos anafóricos e, por conseguinte, os nexos infe­

renciais, tem seu ponto de parada em dais tipos de expressao com urna fun9ao semantica primitiva e doadora de significatividade para toda a cadeia: os designadores canónicos e os iniciadores anafóricos. Os designadores canónicos foram definidos como cxpressoes cuja boa fonnayiio é suficiente para garantir que eles designam um objeto. Já os

iniciadores anafóricos foram definidos como aquetas ocorrencias de exprcssoes nas quais a ocmrencia de outras expressoes pode ser anco­rada e que nao dcpendem da ocorrencia de outras expressoes, ·sen do basicamente constituidos pelos nomes próprios, descri96es definidas, deiticos e demonstrativos. Todavía, como já ficou claro nas considera­y6es da seyao 3 acima, os designadores canónicos e os iniciadores a­nafóricos tem seu contcúdo semantico determinado apenas pelo seu papel nas cadeias anafóricas:

What makes it [a demonstrative] a term referring to an object - rather than a mere conditioned response like "Ouch" - is its role as an ana­phoric initiator of chains that can be the subjects of substititional

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Poro o crílica do semón!ico inferencia/

commitments. [t is in virtue of those anaphoric connections that a de­monstrative tokening can play a conceptual role.46

99

Esta cxplana~ao dos tennos primitivos implica que a fun~ao se­mantica de indicar um objeto é derivada em rela~ao a fun~ao semanti­ca de remeter a outra expressao, ou anáfora. A suposi~ao é que a dcs­cri~iio semantica da deL-cis pressupoe a no~ao de anáfora:

Deixis presupposes anaphora. No tokens can have the significance of demonstratives unless others have the significance of anaphoric de­pendents; to use an expression as a demonstrative is to use itas a spe­cial kind of anaphoric initiator.47

Como já foi estabelecido, o conteúdo inferencia!, por conseguinte, o inteiro conteúdo semantico de uma expressao está constituido e de­terminado pelas "relac;oes materiais com as demais expressi5es da lin­guagem, "48 e e m nenhum momento a rclar;:ao com o que nao scja lin­güístico exerce alguma fun~ao na explanayao semántica. Desse modo, entretanto, recai-se outra vez na suposi~ao da verdade dos contextos sentenciais em que tais expressoes ocorrem. A alegayao de que o pro­cedimento substitucional está ancorado em última instancia em identi­dades remete-nos para a questao do papel atribuído a nor;:ao de verda­de, pois a substituiyao é autorizada na medida em que a asseryao de identidade entre os tennos é tida como verdadeira. Esta alegar¡:ao nos remete de volta ao ponto de partida: como é que a nor;:ao de verdade é explanada?

5. A explana~ao prossentencial da verdadc e da falsidade

Uma vez que a no~ao de verdade joga o papel de definidor dos papéis semánticos, e estes sao definidos em termos inferenciais, e la nao pode ser simplesmente definida em termos inferenciais sob pena de toda a explicayao tornar-se circular e nao esclarecedora.49 Pois, em uma ca­deia inferencia! a verdade ou a falsidade de uma determinada asser~ao

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está fundada na rela~ao desta com as dcmais. Este processo, para ser eficaz como explica~ao, devc parar em alguma senten~a que nao tenha o seu valor de verdadc determinado pelas rela~oes inferenciais. Mas, admitir isto significaría admitir que ccrtas senten~as nao tem todas as suas propriedades semanticas constituidas pelas suas rela~oes intra­lingüísticas e, sobretudo, que algumas senten~as nao dcpenderiam quanto ao seu valor de verdade do valor de verdade de outras senten­~as.

A solu~ao adotada pelo inferencialista retoma a tese frcgeana se­gundo a qual nada é acrcscentado ao pensamento pela atribui~ao a ele da propriedade da verdade. Ao invés de explicar a verdade e a fa lsida­de em tennos rcfcrenciais e cxistenciais, estas no~oes sao explicadas em termos deflacionistas, anafóricos50 e nonnativos:51

On the anaphoric account, although ' .. .is true' has the surface syntac­tic fonn of a predica te, and ' ... refers to ... ' the surface syntactic form of a relational locution, the grammatical and semantic roles these ex­pressions play are not those of predicative and relational locutions. Their grammar is quite different; they are operators fonning anaphoric dependents - namely prosentences and anaphorically indirect descrip­tions ( .. l 2

Ordinary remarks about what is true and what is fal se and about what some expression refers to are perfectly in order as they stand; the ana­phoric account explains how they should be understood. But truth and reference are philosopher's fictions, generated by grammatical misun­derstandings. ( ... ) Taking a c laim to be true must be understood in the first instance as adopting a normative attitude - that is, endorsing the claim and so acknowledging a commitment.53

A rela~ao entre estas caraeteriza96es está em que ao interpretar o uso da cxpressao "verdadc" e suas derivadas como seudo anafórico implica que a prcdica~ao da verdadc de uma senten~a é tao somente uma reposiyao dessa senten9a, em reafirmá-la, pois essencialmente a retomada anafórica nao acresccnta nada ao seu antecedente:

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Para a crítica da semontica infenmciol

in using a proform one makes it explicit that nothing new is going on, that (in the case of pronouns) one is not talking about anything new, and that (in the case of prosentences) one is not articulating anytlling new; anaphoric proscntcnces mus! have antecedents, so using a prosentence of laziness inevitably involves acknowledging an an­tencedent - the core pragmatic feature of granting points, expressing agreement, and so on. 54

101

As noc;oes de verdade e falsidade, por conseguinte, nao apanham urna propriedade de sentcnc;as ou proposic;oes,55 assim como a noc;ao de referencia nao apanha urna rela<;:ao entre palavras e coisas. Verdade e falsidade nao sao propriedades de proposic;oes (o u de enunciados, sentenc;as, etc.). A atribuic;ao de verdade a urna sentenc;a nao introduz nenhuma informas;ao nova que já nao estivesse contida na simples asserc;ao da sentens;a mesma. Para compreender urna sentenc;a do tipo "'Sé P' é verdadeira", nós já deveríamos compreender o que é para S ser P. Ou seja, a predicac;ao da verdade é redundante e nao­informativa, mas, mesmo assim é suficiente para definir as relac;oes e propriedades semanticas. A conexao semantica entre urna senten9a e as expressoes "é verdadeira" ou "é falsa" é de urna anáfora prossen­tencia! e nao de referencia ou satisfac;ao.56 O que significa dizer que o conteúdo das expressoes "é verdadeira" e "é falsa" depende da senten­c;a antecedente da qua! clas sao urna retomada.57 Este aspecto mosn·a a difercnc;a para com as interpretac;oes deflacionistas ou redundantes. O ponto de divergencia está em que urna vez adotado a explanac;ao ana­fórica, prossentencial, as generalizac;oes possibilitadas pela noc;ao de verdade nao envolvem quantificac;ao sobre sentenc;as ou proposi­c;oes.58

Portanto, esta estratégia é compatível com a proposta de Frege da indefinibilidade e primaricdade da verdade, da qual se depreende que o uso predicativo é redundante, bem como com as intcrprctas;oes "dis­quolational" de W. Quine e "dcflacionista" de H. Field e P. Horwi­ch.59 Todavia, estas podem ser vistas como momentos que conduzem e prcparam para a definic;ao da verdade como um operador prossen­tencial. Pois, a definis:ao de verdade inferencialista é deflacionista no

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102 Ce/so R. Braida

sentido de que ela implica que: (l) "verdade" aplica-se apenas as sen­tenr;as significativas, que já se compreende; (2) para qualquer sentenr;a

S significativa, a assen;:ao que S é verdadeira é equivalente a asser~ao

ele S; as quais constitucm a base da tese deflacionista.60 Mas, o infe­rcncialista ainda acrescenta o motivo pelo qual estes dois quesitos es­gotam o conceito de verdade, que é a interpretar;ao anafórica da ver­darle como um operador prossentencial. Embora os infcrencialistas

tentem oferecer uma defini~ao de verdade que preserve o composicio­nalismo, uma conseqüencia natural de suas teses semanticas é a defi­ni~ao coerencial da verdade. Porém, o coerentismo na defini~ao da verdade apenas é consistente na medida em que nao empregue a no¡¡:ao de verdade assim definida para definir os demais conccitos semanti­cos. Do contrário, chega-se a versao holista da verdade que, em última insH\ncia é equivalente a tese da indefinibilidade da verdade. A expla­

nar;ao inferencia! da verdade e da fa1sidade, ao contrário, dissolve tais no~oes nas rela~oes anafóricas.

O conceito primitivo, por conseguinte, é o de julgamento ou asser­¡¡:ao, isto é, o conceito de julgar um conteúdo asserível como verdadei­ro. Entenda-se bem, o conceito primitivo nao é a noc;ao de verdade, ou de satisfac;ao em um modelo, mas a no¡;:ao de julgar uma proposir;ao como verdadeira, ou simplesmente de assumir uma sentenr;a como verdadeira, a qual é exterior a semiintica, pois, ela é essencialmente um ato (um fa to pragmático). lsto fica c laro quando a no¡;:ao de verda­

de é explanada em termos de redundancia: asserir que uma sentenc;a é verdadeira equivale a asserir a própria sentenya. O conteúdo da ex­pressao "é verdadeira" é o conteúdo da senten~a que a antecede.

6. Scmantica sem domínio de referencia

O objetivo da tese inferencialista, com efcito, é o da explicitac;ao da

significatividade sem recorrer a relac;ao da linguagem com algo distin­to deJa tomado como dominio de referencia, mantendo-se fiel a tese de que a referencia nao é um ingrediente esscncial da significatividade.

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Para a crítica da semántica inferencia/ 103

As propriedades e relac;:oes semanticas de uma expressao sao descritas

e compreendidas apenas através dos nexos de remissao que esta ex­pressao mantém comas demais expressoes da linguagem cm questao.

O vocabulário semantico, por conseguinte, tem que ser explanado em

termos que nao envolvam relac;:ocs com algo extralingüístico.

Ao abdicarem da relac;:ao de referencia e, por conseguinte, da noc;:ao de modelo ou dominio, as semanticas inferencialistas tem um proble­ma para resolver: como definir as propriedades semanticas cm um sis­tema fom1al ou cálculo lógico? A solw;ao formal para este problema é desenvolvida nas assim denominadas "Truth-value semantics. "61 O ponto de partida consiste em delimitar a tarefa da semantica as rela­

c;:oes entre as sentenc;:as permitidas por urna determinada linguagem supondo-se que tais scntenc;:as tem valores de verdade, isto é, supondo­se que o problema de como elas adquirem um ou outro valor de ver­dade seja extrínseco a teoría lógico-semantica:

why not assume with Beth, Schütte, and others that atomic statements have truth-values, however they come by them, and proceed with mat­ters of truly logical import? Thus was truth-value semantics born, a semantics tbat dispenses w ith domains and, hence, with reference (crucial though that notion may be elsewhere). And, dispensing with reference, truth-value semantics can focus on a single notion: truth. In one version of il, lruth-value assignments (to atomic statements) and a recounting of when compound statements are true on them share the work; in another and even sparer version truth-functions do it all.62

O problema de como as sentenc;:as adquirem a este ou aqueJe valor de verdade e, também, de como urna expressao designadora rcfere este ou aquele objeto, etc., é deixado de lado por pertencer ao campo da pragmática. O argumento justificador deste procedimento é que uma teoría semantica apenas pode correlacionar expressoes com expres­soes; apenas a prática ou ac;:ao pode de algum modo correlacionar ex­

pressoes com coisas.63 Isto significa conceituar a significatividade da linguagem analisada apenas em tcnnos das sentenc;:as que cla pode gerar e de urna func;:ao de rcmissao a valores de verdade: "uma /in-

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10-1 Cdso R. Braida

guagem é considerada como 11111a c/asse de sentel1(;as mais o espar;o de su as valorar;oes ". rH A scmantica ncsse sentido nao é sena o a expli­

cita<;:ao das possíve is valora<;:oes das sentenyas de uma dada lingua­

gem, isto é, tem por tarefa explorar que conseqüencias segucm-se da

atribui¡;:ao de valores de verdade a uma ou mais scntens:as, cm termos de condi<;:oes e conscqüencias, isto é, explicitando como esta valora­¡;:ao afeta outras possíveis assers;oes: "nós podemos ver a explicar;ao semántica de uma linguagem como a delimitar;ao do esp(/(;:o das suas possíveis atribuir;oes de valores de verdade. "65

O ponto principal é o privilegiamcnto da scntenp como unidade lógico-semautica, para além da qua! nada se pode dizer. Caberia a se­

mantica a tarefa de explicitar as rela<;:ocs e as propriedades clecotTentes da atribui¡;:ao de valores de verdade as sentens:as básicas e as conse­qüencias da atiiculas:ao em sentens;as complexas. A tarefa da semanti­ca consistiría no cstabelecimento da relar;ao de conseqüencia, enten­

dido como exploras:ao de um espas:o de possibilidades: "qualquer ex­planar;ao da relar;ao de conseqüencia é eo ipso wna explanar;ao do espar;o de possíveis valorar;oes, e vice-versa. "66 De u m outro ponto de vista, pode-se dizcr que tais semanticas cstao erigidas sobre a separa­s:ao entre, por um lado, a tcoria semantica e, por outro, a tcoria da re­ferencia. A defíni<;:ao das no<;:ocs semanticas dá-sc, desse modo, sem o recurso as no<;:oes de referencia, de modelo e de mundos possíveis, pois, "a semántica dos valores de verdade é um tipo de semántica niio referencial, ela dispensa os modelos. "61 lsto nao significa que as no­<;:ocs de referencia e modelo nao possam ser utilizapas nas explanas:oes semiinticas. Unicamente o que é alegado é que estas nos;oes sao deri­vadas das no<;:oes semanticas definidas em termos inferenciais e subs­

titucionais, isto é, que tais no<;:oes sao explanáveis em tennos de po­tencial inferencia! , classes de substitui<;:ao e rela<;:oes anafóricas.

A tcoria semantica pode fornecer o significado das expressocs de uma linguagem, mas apenas dada urna "meta" linguagem que é toma­

da como um fundo inquestionado.68 Por conseguinte, as asser<;:oes se­

manticas da fonna '' ... designa ... " e" ... é verdadeira ... " estabelccem apenas uma corrcla<;:ao entre duas sérics de expressoes. De modo al-

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Para a critica da semá11tica it¡ferellcial 105

gum elas cxplicitam a significatividade das cxpressocs pelo recurso a algum tipo de remissao a um dominio nao-lingüístico. O que elas fa­zem é estabelcccr uma con·elas;ao com uma outra linguagem, ou com Olttras exprcssoes da mesma linguagem. Esta proposta teórica está di­rctamente ligada a urna tomada de posis;ao acerca do problema do cornprometirncnto conccitual entre Sernantica e Ontología. Corn efei­to, a justificativa para este tipo de abordagem consiste na alcgas;ao da neutralidade das consideras:oes lógico-scmanticas:

we are doing logic (or philosophy of Janguage) and thcrefore should not wish to prejudge the metaphysical issuc by dogmatizing on the na­ture of the entities we assume. This is the attirude which, taken to ex­tremes, results in the so-called 'truth-valuc' semantics in which truth­values are assigned directly to fonnulae without the trouble of having domains of values, and possible worlds are thought of as (certain kinds ot) sets of fonnulae. This is thought to 'free' the logician from any possibly embarrassing 'ontological commitment' (as if there were a virtue in not having to believe in the existence of anything but lan­guages).69

Por conseguinte, a idéia de que a semantica trataría de no¡¡:ocs acer­ca de relas:ocs entre cxpressoes e um dominio de objetos é solapada e toma-se sem-sentido, uma vez que ela pressuporia a possibilidade de um discurso que contivessc cm um lado expressoes de uma linguagem e de outro objetos, rela¡¡:oes e propriedades cm si mesmas. Mas, isto seria francamente a-gramatical, sem-sentido. Isto rcquer urna reeonsi­dera¡¡:ao da defini¡¡:ao mcsma das no¡¡:oes semantieas: abandona-se aquí a suposi¡¡:ao de que a teoría semantica teria que dar conta tanto dos fatores ligados a situa{:cio nao-lingüística quanto dos fatores ligados ao contexto lingüístico. Na semantica dos valores de verdade, inferencia­lista, desaparece a considera¡¡:ao dos fatores da situa¡¡:ao e ficam apenas os contextuais. Na medida cm que as no¡¡:oes relativas a situa¡¡:ao, que nas semanticas referencialistas sao elaboradas na nos;ao de dominio de referencia e modelo, tema ver corn a nos;ao de objeto e de existencia, as semanticas inferencialistas sao obrigadas a fomecer uma conceitua-

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106 Ce/so R. Braida

c;ao destas noryoes em outros tennos. A soluryao para este problema R. Carnap forneceu já há algum tempo cm consonancia com a soluryao

fregcana:

Falando estritamente, a questao nao deve ser fraseada como "O que é o nominatum deste signo de objeto?", mas assim "Quais senten~as em que este signo de objeto pode ocorrer sao verdadeiras?". Nós podemos fazer urna avalia~ao apenas da verdade ou falsidade de uma sentcn~a, nao do nominatum de um signo, nem mesmo de um signo de objeto. Portante, a indica~iio da cssencia de um objeto ou, o que é o mesmo, a indica~ao do nominatum de um sig110 de objeto, consiste na indica~ao dos critérios de verdade para aquelas senten~as nas quais o signo des­se objeto pode ocorrer. ( ... ) Se a essencia construcional de um objeto tem que ser indicada, o critério consiste na constru~iio-fórmula do ob­jeto, que é uma regra de transforrnay.ao que nos permite traduzir passo a passo toda senten~a na qua! o signo de objeto ocorre ern senten~as sobre objetos de um nivel constmcional mais baixo e, finalmente, em urna sentenya sobre as rela~oes básicas apenas?0

No que diz respeito a significatividade, isto implica dizer que a lin­guagem está ligada a informar;ao ou discurso sobre o mundo, e nao ao mundo mesmo. A relaryao entre linguagem e mundo é enH'ío interme­diada pela série de informaryoes codificadas nas sentenc;as que em da­do momento do uso da linguagem sao aceitas como verdadeiras. A

semantica inferencialista, interpretada cm seu sentido forte, consegue explicitar os fatores envolvidos no fluxo discursivo ou inferencia!, mas apenas consegue dar conta das infmmaryoes sobre o mundo, tor­nando este um aspecto da informac;;ao discursiva. Isto fica claro pelo menos em dois pontos já apresentados. Primeiro, no privilegiamento das relac;:oes inferenciais-anafóricas em detrimento das referenciais; segundo, na interpretac;:ao da deixis em tennos anafóricos­

substitucionais. Esta interpretaryao da significatividade conduz a cli­minac;ao da situar;ao e a absolutiza~ao do contexto. A situar;ao é con­

cebida como derivada do contexto, o qua! é definido como o conjunto de proposiryoes (scntcnc;:as, crenc;:as, etc.) assumidas como verdadeiras.

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Para a crÍiica da semámica inferencia/ 107

O que implica, no que se rcferc a dcfini~ao dos tennos, adotar uma deflnir,:ao contextua/ para todos os termos significativos da linguagcm.

Trata-se, pois, de uma semantica nao-objetual/ 1 sem dominio de referencia. Isto soa antinómi.co, pois em geral define-se a Semantica a partir de uma relas;ao da linguagem com algo distinto deJa. Todavía, também insiste-se no fato de que a relas:ao entre as expressoes deve ser considerada. O que os teóricos inferencialistas fazcm é privilegiar as rela¡;:oes anafórico-inferenciais e tratar a questao da rcfcrcncialidade ou como derivada ou como externa. No caso da semantica da valora­¡;:ao o que ternos é a tese de que o modo como urna scnten~a é valora­da, como verdadeira ou como falsa, é algo externo a teoría scmantica. Agora, que se trata de construir, nas semanticas da valoras:ao, um es­quema ou algoritmo utilizável para dar canta dos aspectos fonnais da semantica de linguagens artificiais fica evidente a partir dos propósi­tos e das aplica¡;:oes dos seus autores. Entretanto, a pretcnsao filosófica de urna justificas:ao mais ampla a pat1ir de razoes lingüísticas e evi­dencias lógico-semantieas nao é de todo descartada como indica a passagem de Carnap aeima citada. Além disso, os inferencialistas in­vocam urna concep¡;:ao de linguagem, em geral devida a Wittgenstein e a Carnap, segundo a qual a linguagem estaría limitada quanto a ca­pacidade de explicitar a sua própria significatividade. Como anota Wittgenstein: os limites da linguagem mostram-se na impossibilidade de se descrever os fatos aos quais urna sentens:a corresponde (que sao uma sua tradus:ao) sem novamente re-utilizar a scntcns:a.72 A saída pela via da me!alinguagcm tao somente confmnaria este ponto.

O inferencialismo, portanto, constituí urna teoría deflacionária do discurso semantico, no sentido de que em rela¡;:ao a semantica referen­cialista ela se apresenta como a negas;ao da necessidade de recorrer-se a certas no¡;:ocs para explicar a significatividade. Primeiro, nega-se que haja uma propriedade da vcrdade ou uma relar;ao de referencia; segundo, nega-se que as asser¡;:oes feítas com vocabulário da scmanti­ca tradicional torne possívcl para nós estabelccer específicamente fa­tos semánticos, (no sentido de que assers:oes usando o vocabulário da física torna possível para nós estabelecer especificamcnte fatos flsi-

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108 Ce/so R. Braida

cos:) tercciro, nega-se que a no~ao de condir;oes de verdade possa ser utilizada para explanar (em oposi~ao a expressar) os tipos de conteúdo proposicional expressados por senten~as declarativas - e similarmente que a no~ao de associar;iío com um referente possa ser utilizada na cxplanac¡:ao do tipo de contribui~ao semantica que a ocorrencia de um tem1o singular faz para o contcúdo das scntenc¡:as cm que e le apare­ce.73 Em 0t1tras palavras, o diferencial inferencialista consiste em dizer que tratar urna cxpressao como dotada de conteúdo semantico cnvolve tratá-la como situada em urna redc de relas:oes de transic¡:ao inferencia! de u m contcúdo para outros conteúdos. 7"' O que importa é que ser do­tado de conteúdo semantico nao é senao ter potencial inferencia). A atribuic¡:ao de conteúdo conceitual, ou de significado, a urna expressao refere-se ao seu papel em cadeias inferenciais e nao ao papel de repre­sentar ou referir a um objeto.

7. Considera~oes finais

A tese central da semantica inferencia! diz que para a determinas:ao do conteúdo de uma asser~ao há que se deten11inar as suas conexoes infe­renciais com outras assers:oes. As nos:oes de referencia, descri~ao e verdade, ao invés de serem explanadas em termos de remissoes a obje­tos, entidades abstratas, mundos possíveis, etc. , recebem urna expla­na~ao em termos de anáfora e substituis:ao entre expressoes, de tal modo que as remissoe~ a situcl(;iío sao explanadas pelas relas:oes de remissao ao contexto discursivo. Desse modo tal estratégia de expla­nas:ao realiza o projeto de manter-se fiel a tese da autonomía da se­mantica em relas:ao a existencia e a referencialidade, cumprindo o de­siderata de conccituar a significatividade de um modo nao-objetual.

Na minha exposi~ao proeurei mostrar os pontos fracos de tal pro­posta de explanas:ao, os quais sao evidentes na conceituas:ao dos inici­adores anafóricos e dos designadores canónicos, e no tratamento das frases quantificadas. Esses pontos sao indicativos da insuficiencia da teoría esbos:ada. A insuficiencia mostra-se sobretudo pela nccessidade

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Para a crítica da srmuimica iuji:reudal 109

que a semantica inferencialista tem de pressupor urna base de senten­~as já significativas e compreendidas, a partir da qua! cla cntao fome­ce a explicitas:ao das propriedades semanticas de outras cxpressoes. lsto também se mostra no que conceme as expressoes subsentenciais, na medida em que se opera com uma classe de substituic;ao previa­mente estabelecida. Por conseguinte, a justifica~ao da adequac;ao da proposta inferencialista passa pela justificac;ao dessas bases, seja de sentenc;as tidas como verdadeiras seja de classes de substituic;ao de expressoes significativas. Esta justificac;ao é tramada cm termos filo­sóficos por meio da conjunc;ao de várias alegac;oes, entre as quais des­tacam-se a da precedencia da proposis:ao sobre os termos e a de que a linguagem, e sobretudo a signifícatividade, seriam supervenientes as práticas sociais e fon11as de vida, o que justificaría a pressuposic;ao daquelas bases de sentenc;as e expressoes nas explana9oes semanticas.

O cerne da justifica~ao está na transformac;ao dos fatorcs da situa­(:iio de proferimento em componentes proposicionais do contexto dis­cursivo. Pois, é apenas na medida em que os fatores relativos a situa­c;ao de proferimento sejam transpostos para o discurso na forma de pressuposic;ocs que aparecem como premissas e regras (topoi), implí­citas ou explícitas, portanto, como fazendo parte do contexto discursi­vo comum, é que eles podcm ter algum papel semantico. Com efeito, a intuic;ao fundamental orientadora dessas teoriza~oes é a da autono­mía da significatividade em rela9ao a referencia e a existencia, o que quer dizer, tendo cm vista a distinc;ao entre situa9ao nao-lingüística e contexto lingüístico, que os inf~rencialistas abdicam dos fatores liga­dos a situac;ao em favor dos fatores contextuais, pois em última ins­tancia toda e qualquer inferencia é um contexto discursivo, o que im­plica dizer que nas cadeias infercnciais apenas comparecem elementos lingüísticos. Esse aspecto está na origem de algumas conseqüencias indesejáveis.

A primeira conseqücncia da interpreta9ao infcrcncialista é o holis­mo semantico.75 O holismo semantico constituí-se pelas seguintes su­posic;oes. Primeiro, que o significado de nossas palavras depende de tudo o que nós acreditamos, de todas as assunc;oes que nós fazemos/6

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110 Ce/so R. Braida

isto é, que todas as relar,:oes inferenciais de uma expressao constituem o seu significado. 77 Em termos lingüísticos, esta tese diz que: ''The

meaning of an expression dcpcnds constitutively on its relations to all other expressions in the languagc, where these relations may need to

take account of such facts about the use of these other exprcssions as their relations to the non-linguistic world, to action and to percepti­on".78 A explicita~ao do contcúdo semantico de uma senten~a de uma

dada linguagem em uma teoría holista envolvería a determina~ao do significado de todas as senten~as que ela pode gerar. Portanto, para o holista vale a tese de Davidson, segundo a qua! apenas o significado de uma senten~a (ou palavra) pode ser determinado por meio do for­nccimento do significado de todas as senten~as (ou palavras) da lin­guagem.79 Por conseguinte, o holismo semantico implica que a deter­mina~ao das propriedades semanticas de urna expressao envolve o agenciamento de todas as expressoes significativas da linguagem de que cla faz parte.80 Este ageneiamento envolve dois tipos de interde­pendencias. Para os termos: o uso de uma expressiio como termo sin­gular envolve o domínio do uso de muitos outros. E para sentenyas: "o uso de uma expressao como uma sentenr,:a (mesmo uma que pode ser usada parafazer um enunciado nao-inferencia/) envolve o domínio do uso de muitas outras. "81 No seu sentido mais radical a tese holista a­firma que é apenas pelo agenciamento de todos os itens da c lasse de substitui~ao que se chega a determina~iio do valor semantico de um tenno singular, e para uma senten~a o que é requisitado é a determina­~ao do valor de verdade de todas as dema.is senten~as.

Esta conseqüencia da tese holista implica a indeterminayao seman­tica: o conteúdo semantico de uma expressao apenas se determina em relayao a todas as demais exprcssoes da linguagem. Mas, cm qualquer contexto discursivo, a linguagem é apenas agenciada em parte, e urna parte muito pequena, do que se seguc que a determina~ao do conteúdo

semantico ficaria sempre em aberto, o que em geral nao é o caso. A

teoría infereneialista diz ser capaz de determinar quanclo duas senten­yas tcm ou nao o mesmo potencial inferencia!, ou o mesmo conteúdo semantico, e o faz pela determina~ao das condis;oes e conseqüencias

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Para a crítica da .5emámica inferencia/ 111

das sentcn~as . O holismo, porém, torna esta tarefa impraticável para qualquer linguagem minimamentc intcressante.

Uma segunda conscqücncia do inferencialismo semantico, o inten­sionalismo semantico, refon;:a este aspecto. O intensionalismo consti­tuí-se pela tese de que a extensao (e o referente) de uma expressao scja determinada pela sua intensao; em te1mos fregeanos, que o senti­do (Sinn) determina o significado (Bedeutung). Em termos semanti­cos, portanto, o intensionalismo é uma tese acerca da rela~ao entre significado e objeto, segundo a qual o significado ou o contcúdo de uma asserr;ao é independente da existencia dos objetos sobre os quais ela é asserida. Específicamente, o conteúdo semantico de um termo singular nao é afetado pela existencia ou nao do objeto a que ele reme­te.s2

Ao privilegiar na explana~ao scmantica as rela9oes intralingüísti­cas em detrimento dos nexos referenciais, o inferencialismo te1mina por se confundir como intensionalismo, pois ambos negam que a sig­nificatividade implique a existencia, ao mesmo tempo em que tomam a determina~ao do objeto de referencia depeodente da significativida­de. Mais ainda, urna vez que na fonnular;ao da tese infercncialista o conteúdo semantico é constituido pelas interrelar;ocs inferenciais intralingüísticas, propriamente faJando a nor;ao de objeto nao tem lugar na explicitar;ao das propriedades semanticas. O ponto consiste em descartar a nos;ao de objeto como referindo-se a a lgo extrínseco a linguagem, isto é, como rcferindo-se a. algum tipo de contraparte ontológica da teoria da significatividade. Mas i~to de modo algum significa desconectar as nor;oes semanticas das noyoes ditas on­tológicas:

A certain sort of social and in ferential articulation of attitudes must be shown to institute proprieties and confer contents such that what it is corrcct to conclude or to claim and what one has actually done dc­pends on how the objects referred to, talked about, or represented in one's discursive altitudes actually are.83

Portante, a tese infercncialista no que conceme as re l a~oes entre as noyoes ontológicas e scmanti cas, consiste cm tratar esta rcla~ao como

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11 2 CelsrJ R. Braida

existindo, mas, como scndo externa a linguagem e a scmantica. O que significa dizer que a media9ao entre cstcs dois ambitos conccituais é pragmática ou símplcsmcntc nao-semantica.

Embora compactue com a tese intensionalista, ao fornecer uma ex­planac;:ao do conteúdo semantico apenas em termos substitucionais­anafóricos, o inferencialismo seria mclhor exposto em tennos da tese de que a noc;:ao de objeto é logicamcnte posterior a noc;:ao de expressao significativa. Urna vez que a signifícatividade das partes subsentenci­ais detennina-se pelas conexoes que a asserc;:ao da verdade da sentcnc;:a mantém com outras asserc;:ocs, a verdade sendo uma noc;:ao mais primitiva do que a referencialidadc. Isto teria como conscqüencia que a fala acerca de objetos seja semprc urna faJa acerca de cxpressoes significativas, pois a especificac;:ao do objeto de urna sentcnc;:a apenas pode ser feíta por outra sentenc;:a tida como verdadeira que explicite o conteúdo semantico da primeira. Uma vez que apenas pela detcnnina­c;:ao da verdade de uma sentenc;:a se pode determinar o objeto de refe­rencia, torna-se impossívcl distinguir o conteúdo semántico de uma exprcssao do objeto de referéncia, pois a detenninac;:ao do objeto de referencia sempre conduz a urna outra expressao. Em suma, a seman­tica inferencialista dispensa a noc;:ao de objeto na explanac;:ao da signi­ficatividade; mais específicamente, o inferencialismo nao diferencia as questoes "por que há tennos singulares?" e "por que há objetos?",84 de tal modo que as questoes e as noc;:oes ontológicas sao agora rcformu­ladas em termos de noc;:oes semanticas e lingüísticas, o que é o indica­tivo de que a Ontología apenas pode ser compreendidq como Scmanti­ca,85 e esta nada tema ver com objetos.

Com isso chega-se a uma outra conseqüencia paradoxal. Embora privilegiem a noc;:ao de verdade, as scmanticas inferencialistas nao podem explicar esta noc;:ao. Pois, na medida cm que a verdade de urna scntcnc;:a é confundida com a noc;:ao de derivabilidade, isto é, na medi­da cm que ser verdacleira for cqualizada com a noc;:ao de ser a conclu­sao de uma inferencia carreta, chega-sc ao extremo do infercncialis­mo, pois a propriedade suposta inicialmente, a de que as scntenc;:as da linguagem tcm um valor de verdadc, para a definic;:ao das propriedades

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1

Para a crÍiica da scmiim ica inforencial 11 3

e relac;:oes semanticas, agora seria ela mesma definida em termos infe­renciais. Mas, como conseqüencia da conjugas:ao do holismo e do in­

tensionalismo, uma sentens:a nao tem um conteúdo semantico deter­

minado, o que implica que da assers:ao da verdade de urna sentenc;:a

nao se pode determinar o valor semantico de suas partes. Portanto, a conclusao é que nao se sabe de que se está a faJar, que nao bá signifi­cac;:ao determinada. Está aberta para o inferencialista a adoc;:ao de uma

teoría coerencial da verdacle, pela qua! a verdade ele uma sentenc;:a se­ria uma decorrencia do seu pertencimento e coerencia com um dado conjunto de outras senten9as verdadeiras mutuamente autónomas. O holismo semiintico implícito na tese inferencialista, porém, implica que a determinac;:ao da verdade de urna sentenc;:a envolva todas as sen­tenc;:as, o que solapa por dentro a idéia de urna base de sentenc;:as ver­dadeiras mutuamente autónomas. Logo, chega-se a uma indetermina­

c;:ao tanto da verdade quanto da significatividade. Resultado este nao de todo inesperado, pois do ponto de vista da semantica inferencialista a determinidade advém do ambito pragmático.

O fato é que a semiintica inferencialista está ancorada nas relac;:oes anafóricas, as quais, todavía, sao aquilo que tem que ser pressuposto

como já estabelecido na linguagem. Como lembram os lingüistas:

a anáfora faz parte dos mecanismos que propiciam aos falantes manter o controle sobre o que já foi enunciado, num dado discurso, acerca dos itens da conversa<;:ao (objetos e indivíduos).86

O que significa que a explanas:ao fornecida recorrendo-se as relac;:oes anafóricas é derivada e cm última instancia nao-esclarecedora. As re­las;oes inferenciais, em que se leva em considerac;:ao as noc;:oes de vcr­dade, correc;:ao, pressuposic;:ao e conseqüencia, na medida em que nao extrapolam a anáfora e a substituibilidade também nao permitem ir além do já dito e dos pressupostos discursivos.

Como dissemos no inicio, o objetivo da exposis:ao era o de tornar evidente a parcialidade da proposta inferencialista, no sentido de ela nao ser capaz de explicitar o intciro conteúdo scmiintico de todas as

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114 Ce/so R. Braida

express6es significativas, caso nao quisesse recon·er a nexos referen­ciais. Isto se mostra na relas:ao entre usos inferenciais e nao­inferenciais de urna expressao, ou seja, na relas:ao entre deixis e anáfo­ra. Confom1e a tese inferencialista, o uso nao-inferencial é secundário em relas:ao ao uso inferencial. Porém, pode-se mostrar que esta supo­sis:ao quando tomada em sentido liteJ·al tem1ina por dissolver a signifi­catividade. Pois, assim como se pode dizer que na semantica referen­cialista perde-se a linguagem por se fixar no mundo, agora pode-se dizer da semantica inferencialista que ela, por fixar-se na linguagem, perde o mundo. Este ponto é ilustrado pela prioridade que a noyao de anáfora recebe na semantica inferencialista - só comparável ao privi­légio da noyao de deixis na semantica referencialista. Desse modo, pode-se perceber um pressuposto comum que alimenta ambas as pers­pectivas: a suposis:ao de que a significatividade de todas express6es é composta a partir de urna única relayao semantica e de operas:oes for­mais sobre esta relas:ao podem apreender todas as relas:oes semanticas. Esta suposis:ao é a.que conduz ao privilegiamento de urna relas:ao re­missao, a déixis (referencial) ou a anáfora (inferencia!), como nexo semantico primário que seria a base de composiyao da significativida­de das diferentes expressoes. Ademais, a partir dessa análise da tese inferencialista ilumina-se, por contraluz, um ponto filosófico em gcral esquecido nas discussoes sobre a linguagem, a saber, que a significati­vidade das expressoes lingüísticas nao é lingüística. O que está ausen­te da consideras:ao inferencialista é a perceps:ao de que o plexo do sig­nificante, do sentido e do significado nao é urna questao de linguagem e menos ainda do jogo de relayoes e expressoes intra-discurso.

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Notas

1 A exposic;:ao da semiintica inferencialista aquí desenvolvida segue a defesa apresentada por R. Brandom no capítulo 2, "Toward an inferential seman­tics," do seu livro de 1994, Making it explicit: reasoning. representing, and discursive commitment; e nos capítulos 1, IV e V do livro Articu/ating Rea­sons: an introduction to inferencialism, de 2000. Além disso, a proposta de E. TudendhaT, em Vorlesungen zur Einführung in die sprachana/ytische Phi­/osophie ( 1976), de urna Semantica formal niío-objetual, e a proposta de R. B. Marcus de interpretac;:ao nao-existencial da quantificac;:iio ( 1971 ), sao levadas em considerac;:ao como implica~oes naturais do inferencialismo semiintico. 2 Essa idéia remete-nos a Frege, pois ele, ao introduzir a nor;iio de conteúdo conceitual, no Begri.ffsschrift de 1879, efetivamente nao utiliza a noc;:ao de referencia, mas antes a noc;:iío de potencial inferencia/: "Em minha linguagem conceilual... apenas aquilo que afeta as possíveis inferencias é levado em considerac;:ao. Tudo o que é necessário para urna inferencia correta é cxpresso completamente; o que nao é, em geral nao é indicado" (Begri.ffsschriji, § 3, p. 12). Frege buscava estabelecer um modo rigoroso de expressar pensamentos, isto é, a sua preocupac;:iio desde o inicio era com a relac;:iio entre urna expres-

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11 8 Ce/so R. Brnida

sao lingüística e um conteúdo conceitual (begrifflichen lnhalt). O objetivo visado era o de expressar um conteúdo através de sinais escritos de um modo mais preciso e controlável, ''de modo a tomar explícitas as re la96es internas de urna seqiiéncia inferenciaf' (Begrijfsschrift, "Preface, " pp. 5- 8). A semantica fregeana estava constituida a partir da no9ao de conteúdo asserível (beurtheilbarer lnhalt), na medida cm que esta esclarece as propriedadcs se­manlicas de uma cadeia de raciocinio. Este privilégio do valor inferencia! é juslificado por Frege justamente a través da tese da prioridade lóg ica do juízo sobre os conceitos nos quais e le pode ser decomposto. As matrizes semanti­cas seriam as relayóes que se estabelecem no interior de uma cadeia discursi­va ou de urna seqi.iencia inferencia! pelo fato de que é o juízo que tem prece­dencia lógica sobre as partes: "Assim eu nao comeyo com conceitos e coloco­os juntos para fomlar um pensamento ou juízo: eu chego as partes de um pensamento por análisc (Zerlallung) do pensamento," ou ainda, "Eu comeyo a partir de juízos e seus conteúdos, e nao a partir de conceitos. ( ... ) Ao invés de por um juízo a partir da composiyao de um individual tomado como sujei­to e de um conccito previamente dado como predicado, nós fazemos o oposto e chegamos ao conceito por meio da separa9ao do conteúdo de um possível juízo." Nas palavras de R. B. Brandom, um dos defensores mais coerentes da semíintica inferencialista : " Frege completes the inversion of the classical priority of concepts to judgements and judgements to syllogism by taking the contents of sentences (judgement in the sense of what is judged rather tban the judging of it) to be defined in terms of the inferences they are in volved in. Concepts are to be abstracted from such judgements by considering in varían­ce of inferential role (which pertain only to judgements) under various substi­tutions for c.Jiscriminable (possibly non-judgemental) components or the jud­gement" (Brandom, "Frege's technical concepts," 1986, pp. 256- 57). 3 Brandom 2000, pp. 48, 221. 4 Begriflsschrifl, §3. 5 Gnmdlagen, "Einleitung"; Cf. §§ 46, 60, 62. 6 Esta posiyao é as vezes denominada consequencialismo e associada a Wittgenstein: "Antes que 11111o proposir;oo possa ter sentido, tem que ser es­tabelecido completamente que proposir;oes seguem-se de/a" (Wittgenstein, Proto-tractatus , 3. 201 02- 3 ), conforme Platts 1997, pp. 68- 70 e, também, Ramsey, The.foundations ofmathematics, p. 123. A partir disso pode-se mos­trar que a semántica baseada na teoría da prava (Proof-theoretic semantics), tal como ela é defendida por Sundholm ( 1994) e Prawitz (1977), constituí-se como urna explanayao inferencialisla, ao defender que o significado de tuna

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Para a critica da semántica inferencin l 119

senten~a é determinado pelo modo como ela pode ser provada, desde que a no~iio de prova seja pensada em termos intralingüísticos. 7 Cano 1993, pp. 217- 18. O relevante nisso é que desse modo é possível explanar as relar;:oes de implicar;:ao lexical (implicar;:ao material) nao cobertas pela forma lógica ou estrutura externa das sentenr;:as: "Lexical implications .. . result from the sense of a lexeme rather than its denota/ion " (Cann 1993, p. 216). Esta explana~iio é também defendida por J. Katz: "sen se structure is an intrinsic aspect of the grammar of sentences. independent of truth and refe­rence" ("The new intensionalism," p. 696), o u a inda, "Sense is the aspect of the gramatical structure of expressions and sentences responsible f or proper­ties and relations like meaningfulness. ambiguity. synonymy. red11ndancy. analyticity . and analytic entailment" (ldem, pp. 698- 9). 8 Devitt 1996, pp. 3, 14; Fodor & Lepore 1992, p. 7. 9 Brandom 1994, p. 484. 10 Idem, p. 306. 11 Demopoulos 1995, p. 7. 12 Tudendhat 1976, pp. 482, 498. 13 Brandom 1994, p. 426. 14 ldem, p. 472. 15 Em outras palavras: "la signification d'une phrase est /'ensemble des topoi" dont elle autorise /'application des lors qu'elle est énoncée" (Anscombre 1995, p. 44). 16 Brandom 2000, p. 126. 17 Brandom 1994, p. 472. 18 Idem, p. 472. 19 1983, § 109. Na versiio de Brandom, "para estar em condir;oes de introdu­zir 11111 novo termo como o nome de 11111 objeto. deve-se estabelecer q11ando seria correto reconhecer o objeto apanhado como o mesmo novamente; deste modo distingue-se-o de todos os outros objetos. (..) Para fazer isto tem-se que ver que a verdade ou falsidade de todas as identidades o envolvendo devem estar estabelecidas" (1994, p. 419). Portanto, o que é requerido é que para introduzir um novo termo singular se esteja comprometido com um e­nunciado de identidade fixador de re ferencia (p. 420). 20 Brandom 1994, p. 550. 21 "A language cannot refer to an objecl in one way unless it can refer lo il in two dijferent ways" (Brandom 1994, p. 425). 22 Idem, p. 426. 13 ldcm, p. 467.

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120 Ce/so R. Braula

24 "lt is also possible for that anteceden! ítself to be anaphorically dependent on some prior anteceden!. Since recurrence and inheritance of substitutional commitments is transitive, so is anaphoric dependence. lt is in this way that anaphoric chains or trees are formed. They can be anchored or intiated by tokenings that are not themselves anaphorically dependen! on other toke­nings. These are anaphoric initiators" (Brandom 1994, p. 458). 25 Brandom 1994, p. 465. Este ponto também é defendido por Tugendhat 1976, pp. 441,479. ~6 Brandom 1994, p. 442. 27 ldem, p. 442. 28 Aspecto explicitado e longamente analisado por P. F. Strawson em Subject and Predicare in logic and gro m mar ( 1 974). 29 Brandom 2000, p. 151. 30 Idem, p. 152. 31 Peregrin 1997, §4, pp. 9- 11. n A tese que os primitivos da análise semantica sao descri~oes, e nao desig­na~oes, está na base da argumenta~ao anti-referencialista de J. J. Katz: "we shall abandon the use of designations to reprcsents syntactic simples, and instead, represent them using descriptions which are specially designed to fonnally represent the semantically complex structure of syntactic simples" (Cogitations, pp. 73, 114). 33 A ado~ao da interpreta~iio substitucional dos quantificadores nao implica assumir uma semantica inferencialista, pois ela pode ser vista como apenas um recurso metodológico para resolver a semiintica de certas linguagens (Kripke 1976, pp. 405- 16; Marcus 1993, pp. 81, 2 13). 34 Kripke 1976, p. 335; Brandom 1994, pp. 434, 437; Tugendhat 1976, pp. 314-15. 35 R. B. Marcus, Modolities: philosophica/ essoys, "Possibilia and possible worlds", pp. 2 12-13; "Quantification and ontology," pp. 79-80. 36 ldem, p. 82. Cf. Brandom 1 994, p. 4 36. 37 "Ground the semantics of quantifiers in the notion of truth .... disconnects the quantifiers from ontological commitment altogether. Like the sentence connectives, thcy are given in terms of tnllh alone. The rest is syntactical" (Marcus, ldem, pp. 79, 80). 38 Brandom 1994, p. 550. 39 K.ripkc 1976, p. 353. 40 ldem, p. 377. 41 Idem. p. 341.

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Para a crítica da semántica inferencittl

~ 2 Brandom 1994, p. 439. ~3 Brandom 1994, p. 441 . 44 ldem, p. 306; p. 325.

121

45 Uma cadeia anafórica foi definida como "um tipo de recorrencia de ocor­rencia - mna relayao entre ocorrencias que é pressuposta por, e assim nao ana1isável em termos de, comprometimcntos substitucionais" ( 1994, p. 467). 46 Brandom 1994, p. 466. 47 ldem, p. 458. " lt is also possible for lhat antecendenl itself to be anaphori­cally dependent on some prior anteceden!. Since recurrence and inheritance of substitutional commitments is transitive, so is anaphoric dependence. lt is in this way that anaphoric chains or trees are fonned. They can be anchored or intiated by tokenings that are not themse1ves anaphorically dependen! on other tokenings. These are anaphoric initiators" (p. 458). 48 Idem, pp. 373, 374, 384. 49 Tugendhat nao hesita em atribuir esta circularidade ao procedimento subs­titucional, mas avalia que ela é benigna ( 1976, p. 215). 50 Grover, D., Camp, J. & Be1nap, N. "A prosententia1 theory oftruth", 1975. 51 B. Ellis, "Truth as a mode of evaluation," 1980. 52 Brandom 1994, p. 323 . 53 ldem, p. 324. 54

Grover et al. , 1975, p. 108. 55 1dem, pp. 83, 118, 121. 56 ldem, p. 1 06. 57 Idem, p. 113. 58 d 1 em, p. 114. 59 W. Quine, Pursuit oftruth ( 1990); P. Horwich, Truth (1998); H. Field, "The deflationary conception of tmth" ( 1986). 60 Fie1d, H. "Disquotationa1 ttuth and factually defective discoursc," p. 405. 61

Leb1anc, H. "A1ternatives to standart first-order semantics," 1983; Pere­grin, J. "Language and its models: is model theory a theory of semantics," 1997. 62 Leb1anc 1983, p. 260-1. 63 Peregrin 1997,pp.8, 14. 64 1dem, p. 9. 65 Ibídem. 66 Ibídem. 67 Leblanc 1983, pp. 189, 209- 10. 68 Peregrin 1997, p. 14.

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122

69 Cresswell 1973, p. 37. 70 The logical structure ofthe wor/d, §161, pp. 256-7. 71 Brandom 2000, p. 155.

Ce/so R. Braida

72 " Die Grenze der Sprache zeigt sich in der Unmoglichkeit, die Tatsache zu beschreiben, die einem Satz entspricht (seine Übersetzung ist), ohne eben den Satz zu wiederholen.» (Wittgenstein, Vermischte Bemerkungen, p. 463). 73 Brandom 1994, pp325- 6; Leblanc 1983, pp. 219-1 O, 260. 7~ Brandom 1994, p. 90. 75 O holismo semantico, como mostra A. Coffa (1991, pp. 69, 233, 364-5, 369), sempre esteve presente como uma alternativa viável no horizonte da semiintica que se depreende dos trabalhos de Frege e Carnap, sendo explici­tamente assumido por Neurath, Hempe[ e Quine. 76 Harman 1973, p. 14. 77 Devitt 1996, p. 15. 78 Peacocke, "Holism," 1997, p. 227 . 79 Davidson, 'Truth and Meaning," p. 5. 80 Brandom 1994, pp. 419-25. 81 ldem, pp. 426,478. 82 Nas palavras de Searle, endossadas por Brandom: "Em um sentido (o in­tensional-com-s) o enunciado ou cren<;:a que o Rei da Fran¡¡:a é calvo refere-se ao Rei da Fran<;:a, mas, nesse sentido nao decorre que baja um objeto a que eles se refiram. Em outro sentido (extensional), nao há nenhum objeto ao qual eles se refiram porque nao existe um Rei da Fran~a. Na minha opiniao, é fundamental distinguir entre o conteúdo de urna cren<;:a (i.é, uma proposi<;:ao) e os objetos dessa cren¡¡:a (ou seja, os objetos ordinários)"; Searle 1995, p. 24; Brandom 1994, p. 70. 83 Brandom 1994, p. 280. 8~ ldem, pp. 347,404. Tugendhat 1976, p. 483. 85 Tugendhat 1976, pp. 43, 53, 122-23. 86 Moura 1999, p. 67.

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1 lntrodu~ao

O círculo cartesiano

Flávio M. de O. Zimmermann Unil'ersidade Federal de Sama Catarintt

Nada fortalece mais o pirronismo do que o fato de haver quem nao seja pirrónico. Se todos o fossem, nao teriam raziio (Pascal, Pensamentos, fr. 374).

Descartes é geralmentc considerado o fundador da filosofía moderna por aceitar o desafio da dúvida cética e por julgar ter conseguido re­solver a controvérsia iniciada pelos gregos e ressurgida no seu tempo. A cstratégia consistiu primeiramente em elevar a dúvida filosófica de forma metódica ao mais alto grau, alcan~ando seu pico na hipótese do genio maligno. A segunda tarefa do método foi a de restaurar as certe­zas perdidas por meio de um principio fundamental capaz de estrutu­rar todo o conhecimento humano, que havia sido também posto em dúvida, conforme a maioria das interpreta~oes. A solu9ao apresentada ao prob lema exposto por ele mesmo, que tioha por ünalidade repre­sentar a ansia dos pensadores daquela época, consistia na demonstra­~ao da capacidade da razao cm se auto-afinnar, mesmo em um estado de ceticismo completo. A máxima csbo~ada no "penso, logo existo" foi a maior prava para Descartes da vitória do uso adequado da razao sobre a dúvida filosófica inculcada pelos céticos e fideístas renascen­tistas. Ao que tudo indica, a descoberta logo se popularizou, mas ao invés de trazer conforto as mentes aflitas pelo conhecimento certo e verdadciro, acabou tendo que se defrontar com inúmeros adversários e

Dutra. L. H. de A. e Mortari. C. i\ . (orgs.). 2005. Epistemología: Anais do IV Simpósio lntema­áonal. Principia- Parte l . Flori:mópolis: NEUUFSC. pp. 123- 143.

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124 Fládo M. de O. Zimmc:rmann

opositores, nao só no decorrer da vida do filósofo franccs, mas até os días de hoje. Nao obstante as críticas religiosas, históricas e até sociais ao cogito, o interesse deste trabalho é apresentar urna das principais críticas de caráter filosófico a expressao cartesiana, que ficou conhe­cida como círculo cartesiano, bem como trazer ao debate, sempre que possível, a lgumas das respostas de Descartes ou de scus defensores a tal objey,ao.

2 O círculo cartesiano

A principal crítica ao sistema filosófico de René Descartes ficou muito conhecida como "círculo cartesiano" ou "círculo de Amauld," por este ter sido um dos primeiros a advertir o amigo sobre o problema. Além de Arnau ld nas Quartas Objey,oes, os teólogos Mersenne e Gassendi fizeram a mesma observayao nas Segundas e Quintas Objey6es, res­pectivamente. 1 Em linhas gerais, a suposta incocrencia resulta da a­firmayao do autor das "Meditayoes" em afirmar que, tudo o que per­cebemos clara e distintamente é verdadeiro porque Deus existe e nao tem inten¡;;ao de nos iludir, e, em outra parte, sustentar que Deus existe e nao é enganador porque percebemos isso clara e distintamente. No decoiTer das "Meditay6cs," observa-se claramente a tal disparidade das afirmayoes:

1) "( ... ] a existencia de Deus deve a presentar-se em meu espirito ao menos como tao certa quanto considerei até agora todas' as verda­des das Matemáticas [ ... ]" (1979, p. 125).

2) "E, assim, reconheyo muito claramente que a certeza e a verdade de toda ciencia dependem do tao-só conhecimento do verdadeiro Deus: de sorte que, antes que eu o conhecesse, nao podía saber per­feitamente nenJmma outra coisa" ( 1979, p. 128).

Descartes tentou provar a existencia e a bondade divinas por meio de percepyoes claras e distintas, mas a garantía de que tais percep¡;;oes sao confiávcis devcria provir da bondade divi na! Ele nao poderia man-

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O círculo caru:siano 125

ter ambas as proposi~oes e 2 ao mesmo tempo, é preciso que uma delas se institua como ponto de partida na argumenta~ao. Se ele nao apresenta razoes suficientes para isso, corre o risco de estar argumen­tando em círculo.

Entretanto, é pouco provável que um matemático tao rigoroso como Descartes tivcsse incorrido em uma falácia tao evidente, especi­almente após ter criticado essa cspécie de sofisma no prefácio das "Medita~oes." Antes de condenar o projeto cartesiano de ser circular, deve-se tentar reconstituir os argumentos do autor sobre o problema e procurar fornecer urna explana~ao que possa ser adequada ao método da dúvida. Várias tentativas deste tipo foram empreendidas. O presen­te trabalho descreve as mais importantes, que foram cnquadradas em tres linhas, embora qualquer classifica~iio como essa scmpre possa parecer arbitrária: a garantía mnemónica, a garantía da regra de verda­de e a garantía epistemica e psicológica.

2.1. A defesa mnemónica

Descartes enfatiza nas "Medita~oes" que todas as nor¡:oes claras e dis­tintas encontradas no interior de seu pensamento devem submeter-se a uma garantía extema e objetiva de poder suficiente para dar legitimi­dade as suas certezas subjetivas. Como conseqüencia desta afirma~ao, o autor foi acusado de nao saber ao certo nem mesmo se existía antes de ter o conbecimento verdadeiro da existencia.de Deus. Tal crítica é clara em urna réplica recolhida por Mersenne nas Segundas Obje~oes:

[ ... ] como ainda nao estais certo da existencia de Deus e dizeis, no entanto, que nao podeis estar seguro de coisa alguma, ou conhecer coisa alguma clara e distintamente, se primeiro nao conheceis certa e claramente que Deus existe, segue-se que nao sabeis ainda que sois uma coisa pensante, porquanto, segundo vós, tal conhecimento depende do conhecimento claro de um Deus existente, que ainda nao demonstrastes, nos lugares onde concluís que conheceis claramente o que sois. (Descartes 1979, em "Segundas Objeyoes," p. 147)

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126 Flávio M. de O. Zimmermmm

A essa crítica o autor responde:

[ ... ] onde atirmei que nada podemos saber de certo, se nao conhecermos primeiramente que Deus existe, afinnei, em termos expressos, que falava apenas da ciencia dessas conclusoes, cuja lembran9a nos pode retornar ao espirito, quando niio rnais pensamos nas raziies de onde as tiramos. Pois o conhecimento dos primeiros princípios ou axiomas niio costuma ser chamado ciencia pelos dialéticos. (Descartes 1979, em "Respostas do Autor as Segundas Objeyoes," p. 158, grifos do autor)

A resposta oficial de Descaties ao problema parece ser a de que a garantía divina diz respeito apenas a ciencia ou lembran~a de suas conclusoes, e nao ao que ele clara e distintamente concebe. Nas Quar­tas Respostas ele diz o mesmo a Amauld. Urna proposis;ao seria ver­dadeira, portanto, toda vez em que é concebida em nossa mente, inde­pendente do conhecimento da existencia do Ser Supremo. Há coisas que o entendimento apreende claramente, Descartes explicita, "[ ... ] quando observamos de petto as razoes de que depende seu conhecí­mento; e, por isso, nao podemos, enUío, duvidar dele" (1979, p. 161). E completa, de forma tao transparente, que é importante citar sua de­fesa na íntegra:

Mas, dado que podemos esquecer as razoes, e no entanto recordar as conclusoes daí extraídas, pergunta-se se é possível ter uma firme e imutável persuasao sobre essas · conclusoes, a o passo que nos lembramos de que foram deduzidas de principios mui evidentes; pois esta lembranya deve pressupor-se para que possam chamar-se conclusoes. E eu respondo que só podem te-la os que conhecem de tal modo Deus a ponto de saberem que niio pode acontecer que a faculdade de entender, que !hes foi dada por Ele, tenha por objeto outra coisa se niio a verdade; mas que os outros nao a tem. (Descartes 1979, em "Respostas do Autor as Segundas Objec;:oes," p. 161)

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O circulo cartesiano 127

Além das rcspostas as objeyoes, algumas passagens nos Príncipes sustentam a mesma inte rpretayao com rela9ao ao papel epistemológico de Dcus na filosofia cartesiana. O artigo 13 é desti nado a resolver a controvérsia da seguinte maneira. Ao asseverar que o pensamento tem noyoes seguras de verdade ao tempo em que as compreende e conside­ra a ordem de que tirou suas conclusoes, Descartes afitma que tem motivo de desconfiar de seu raciocínio apenas quando acontece de lembrar-se de alguma ciencia cuja cadeia de razoes nao é demonstrada imediatamente ao intelecto. O artigo 44 regula que é somente nossa memória e nosso conhecimento passado que nos faz errar e nos enga­nar. Isso acontece toda vez que julgamos algo sem aprecndc-lo, reitera o autor, pois é uma prescri9ao da luz natural nunca julgar o que nao conhecemos distintamente.

A funyao de Deus no sistema cartesiano seria, enHio, a de assegu­rar as memórias de conclusoes prévias, ao passo que algumas nor;oes distintas estariam livres da dúvida hiperbólica. De fato, assegurar-se de todas as cadeias de raciocinio e ainda ter que recomeyar todas as provas das operar;oes lógicas que as sustentam cada vez que necessi­tamos delas seria urna tarcfa infinita ao ser humano. Gilson ( 1987, p. 360) e Aune (1991, pp. 14-5) concordam com essa leitura. Ambos afirmam que os princípios auto-evidentes, tais como o cogito e a prova da existencia de Deus, dispensam qualquer auxílio externo, pois no momento em que sao concebidos, o pensador já está atento para nao ser vítima da hipótese de um genio enganador. A garantía divina a que Descartes invoca, prosst:gue Gilson, deve referir-se apenas a memória (souvenir) de uma evidencia, pois memória nao é considerada eviden­cia enguanto puder ser tomada erroneamente ou ser submetida a dúvi­da. Desta forma, até o próprio cogito poderá ser avaliado como um prejuízo e necessitar de ava l extemo se trazido ao intelecto como me­mória o u se afirmado se m que se pense em se u conteúdo ( 1987, pp. 360-1).

Apesar da notoriedade dcste desfecho, a reivindica9ao dos primei­ros princípios e o papel da divindade no sistema cartesiano tem sido muito disputados entre os comentadores, e autores fomccem respostas

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128 Ffá,.io M. de O. Zimmermcmn

alternativas ao problema da circularidade. Cottingham entende que a defesa da memória nao é satisfatória por duas razoes. Uma deJas é a de que a idéia mantida por Descartes de que algumas proposis:oes sao tao simples que nao poderiam ser questionadas nao se coadunaría com a possibilidade da dúvida geral levantada na Primeira Meditas:ao. Ou­tra disparidade diz respeito as premissas necessárias para provar a existencia de Dcus: estas deveriam ser tao simples e transparentes que bastaría prestannos atens;ao neJas para que sua certeza esteja garanti­da. Mas tal clareza certamente nao é o caso se lembrarmos da comple­xidade que suas premissas envolvem para serem compreendidas (1993, p. 31).

Outras interpretas;oes destinadas a resolver o problema tentam, de diferentes modos, solucionar as duas questoes. Para estas leituras, a dúvida metódica estende-se a todas as nos:oes de verdade, e a garantía divina nao deve dizer respeito apenas as recorda.yoes da pessoa que suspende o juízo. As próximas ses:oes apresentarao tais respostas, e, ainda que de fonna aleatória e casual, em duas partes para facilitar a exposis:ao. De um modo geral, pode-se denominar a aceps:ao acima de interpretas:ao conservadora (conservative interpretation), seguindo Dugald Murdoch. Tal interpretas:ao toma a idéia de um deus que pode nos ter dado uma natureza enganosa como razao para duvidar de ape­nas algumas das coisas que percebemos clara e distintamente, exclu­indo as verdades eternas. As interpretas:oes seguintes podem ser cha­madas de radicais (radical inte1pretation), seguindo ainda este tradu­tor das obras cartesianas para o ingles, conjeturando a idéia do genio maligno como uma razao para duvidar de tuda o que percebcmos clara e distintamente (1999, p. 223).

2.2. A defesa da regra de verdade

As dificuldades apontadas na defesa mnemónica pelos críticos sao textuais e filosóficas. Cottingham discorda que o papel de Deus na obra de Descartes scja apenas o de garantir a confiabilidade de nossas

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O circulo cartesiano 129

recordayoes passadas. Mesmo após provar a veracidade divina, o autor nao teria sustentado a infalibilidade das lembranc¡:as de suas conclu­

soes, pensa Cottingham, mas mantido que deveria rever e checar os

resultados de raciocinios, além de manter seus argumentos sob revisao

para e liminar continuamente quaisquer residuos de preconceitos que

poderiam ainda infectar seu juízo. Isso faz sentido se observarmos que os a11. 68 ao 75 dos Príncipes tratam de instruir o leitor maduro a filo­sofar corretamente, m ostra o comentador ( 1986, p. 7 1 ).

Autores mostram que, na conversa com Bunnan, o filósofo depoe que cada um deve dctenninar por meio de sua experiencia pessoal se tem ou nao boa mcmória, testando a si próprio ou fazendo uso de no­tas e artificios semclhantes. A Regra XVI também estabelece que as coisas que exigem atenc¡:ao continua nunca podem ser confiadas a memótia, que pode distrair o pensamento com recordac¡:oes inúteis. Mas, em vez de buscar ajuda ele albures, o autor apresenta meios para se evitar o problema. Ele sugere:

Convém fazer um resumo em que escreveremos os termos da questiio, tais como nos tenham sido propostos na primeira vez; depois, a maneira de abstrai-los e os sinais com que se os representa, a fim de que, quando a solu~ao seja encontrada, com os mesmos sinais a apliquemos faci lmente e sem nenhuma ajuda da memória ao objeto particular de que se trata; pois nada se abstrai, a nao ser de uma coisa menos geral. (Descartes 2000, p. 134)

A aparente divergencia textual entre as Regras e as Respost~s as Segundas Objec¡:oes poderia gerar urna inconsistencia na filosofia car­tesiana. Mas os objetores da garantía mnemónica nao julgam que as respostas do autor devam ser tomadas tao literalmente. É possível que,

nas partes das Objec¡:oes em que a questao da memória é tratada, o respondente nao estivesse discutindo se mcmória de fato deve ser confiável, mas se o que é lembrado pode ser considerado razao sufici­

ente para estabelecer a vcrclacle da conclusao cm quesHio. O autor estaría indagando, portante, se algo que foi uma vez provado pode designar alguém a estar ccrto neste instante da verdade do que entao

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foi provado. Esse é o parecer de Harry Frankfurt no seu artigo contra a defesa da memória ( 1996b, p. 359). Henry Wolz também assevera que Desca1tes, neste questionamento, nao estava preocupado se um estado prévio de certeza foi atingido na ocasiao em que a reflexao era atual para ele, mas se um tal estado, lembrado atualmente pela memória, é a inda válido (1 996, p. 227). Da mesma forma Larmorc m ostra que no artigo 13 dos Principes, onde se trata da memória, o autor admite a validarle de dcmonstras;ao de urna proposis;ao lembrada, mas entende que, se nao atcndermos as premissas que a tornam evidente, podemos nos desconcentrar de seu assentimento e crer na possibilidade que ela seja falsa (1996, p. 304).

Há mais um trecho nas "Meditac;oes" que pode auxiliar a aceps:ao de que o possível engano mencionado pelo autor acerca da memória de conclusoes obtidas nao estaría dizendo respeito ao seu uso no mo­mento em que a dúvida alcanc;a seu ápice, mas apenas ao fato de me­mória ser utilizada scm que suas premissas sejam devidamente medi­tadas. Ao fim da sua resposta ao questionamento de Mersenne nas Segundas Objec;oes, Descartes nos remete para o fina l da Meditas;ao Quinta, ponderando já ter tratado lá suficientemente do assunto . Em tal passagem, o autor mostra que pode conhecer verdadeiramente a natureza do triangu lo quando presta atens;ao na demonstras;ao da me­dida de seus angulos, mas que também pode suspeitar desta verdade, caso desvíe o pensamento de sua evidencia e ignore que há um Deus para garantí-la. Mas, após reconhecer a benevolencia divina, ele julga que tudo o que concebe clara e distintamente é verdadciro, ainda que nao mais pense nas razoes pelas quais fez o julgamento, mas que lem­bre de te-las comprccndido como urna ciencia certa e verdadeira (1979, p. 127-8). A lembrans:a do juízo aqui fica a cargo do medita­dor, e nao de um Ser Supremo para garantí-la, e o aval divino, como foi bem colocado, deve estender-se a todas as reflexoes do intelecto, e nao apenas aqueJas trazidas pela recordac;iio.

A interpretac;ao referente a memória pode também encontrar obs­táculos de nivel filosófico na teoría do conhecimento cartesiana. Frankfurt (1996b) observa que tal garantía poderia comprometer Des-

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O circulo canesiano 131

cartes a doutrina altamente ímplausível de que memória dcve ser infa­lível. Um outro problema mencionado pelo crítico é que, mesmo na prova da existencia divina é preciso lembrar de coisas que foram de­monstradas, e a precisao desta lembrans:a poderia engendrar um novo círculo. De modo análogo, para confiar na memória de certas conclu­soes matemáticas durante a manipula<;ao de idéias, Descartes teria que apelar para a memória de ter provado a existencia de Deus, diz Dicker, mas isso igualmente incidiría em um outro círculo: o de defender a confiabilidade da memória com u m novo uso da memória ( 1993, p. 123). Urna saída a Descartes nesta situa<;ao, lcmbra Frankfurt, poderia ser a de atender ativamcnte e simultanearnente nao só os passos que estao sendo lcmbrados cm urna determinada prova, mas também os da demonstra<;ao teológica. Mas esse processo também nao se harmoniza com a filosofía cartesiana de que é impossívcl a urna mente atenta perceber inúmeras coisas ao mesmo tempo. Além das passagens cm que Descartes defende tal posi<;ao, pode-se fazer um paralelo dcste raciocinio com a visao encontrado na "Ótica," enfatizada por Cottin­gham, na qua! o autor sustenta que, ao tentar manter vários objetos em atcn<;ao a o mesrno tempo, alguns sernpre ficarao fora de foco ( 1986, p. 70).

Visto que nosso inte lecto nao é capacitado a lidar com diversas idéias concomitantemcnte, alguns críticos sustentam que a garantía divina, ao invés de memória~ cstivesse se rcpo1tando a rcgra de verda­dc e a continuidadc do cogito, mas nao a corrente atual do nosso ra­ciocinio de percep<;ocs claras e distintas indivjduais e pa1ticularcs. Para tomar a classifica<;ao dada por Dicker, estes serao chamados de defensores da regra de vcrdade ou regra geral ( 1993, p. 125).

Cottingham, por excmplo, entcnde que para alguém obter conhe­cimento certo de sua existencia, basta confiar nas intui<;ocs fundamcn­tais do intelecto. Até mesmo o ateu pode obter cssas cogni<;oes. Mas, para construir urn carpo sistemático de conhccimento e se destocar da mera cogni<;ao de reflexoes temporais (cognitio) para o conhecimento estávcl (scientia), é nccessário buscar amparo na idéia da divindade. Ncste caso, o ateu nao podcria fazer progressos além de episódios

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132 Flávio t\11. ele O. Zimmermam1

isolados de conhecimento nem obter ciencia verdadeira da totalidade de su as próprias percepyoes2

( 1986, pp. 70-l ). Para Bemard Williams, a prova da existencia de Dcus encontra-se entre aquelas intuivoes que sao indubitáveis quando refletidas. Somente aquele que assentir a ela será capaz de construir ciencia verdadeira e sistemática. O fiel, portan­to, tem uma resposta sistemática e geral a dúvida sistemática e geral, enquanto o ateu nao, que deve apenas assentir temporariamente a al­gumas proposiyoes claras e distintas, compreende Williams (1983, p. 349). Wolz afirma igualmente que nossa existencia, quando devida­mente meditada, é certa. Mas, como a dura9ao do nosso pensamento é divisível, a regra de verdade também toma lugar no tempo, sendo in­capaz de conferir validade a nossa experiencia para além daquele momento passageiro. Para isso, a certifica9ao divina é exigida, e a dupla garantía, a humana e divina, é fundamental para a totalidade do conhecimento científico, por causa da concepyao cartesiana de tempo, de que um momento nao necessariamente é conectado com outro, encerra o argumentador ( 1996, pp. 228- 9). Murdoch também m ostra que Descartes nao tem razao para duvidar de suas apreensoes intuiti­vas, como a do cogito e da prova de existencia divina, mas tem moti­vos para nao confiar nas suas percepyoes de inferencia. Daí segue-se a importancia de evidenciar que Deus existe e nao pode ser impostor (1999, pp. 237-8).

Tais comentadores devem ser compreendidos como considerando a intervenvao divina a máxima cartesiana de que tudo o que ele con­cebe clara e distintamente deve ser verda.deiro. Se tal concepyao puder ser favorecida pela bondade de Deus, todos os eventos de ciencia in­dividual poderao apoiar-se igualmente na regra de verdade. A resposta ao problema do regresso ao círculo de Kenny pode também ser avali­ada como a de que a garantía divina estivesse sendo imputada apenas a regra de verdades claras e distintas. Tal posiyao, no entanto, aproxi­ma-se também da resposta epistemica, que será vista a seguir. Kenny divide a dúvida cartesiana em primeira e segunda ordem. A de primei­ra ordem é aquela que nao pode ser hesitada no momento atual em que é pensada, mas pode ser posta sob suspeita de modo indireto, quando

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O circulo cartesia11o 133

alguém desvía a atcnc;ao de seu teor. A dúvida metafísica de segunda ordem, logo, é a que qucstiona a verdade da proposic;ao geral de que tudo o que percebemos clara e distintamente pode ser falso, indagan­do, portanto, se nossas faculdades sao realmente confiáveis, e esta só pode ser removida por Deus. A certeza atingida no primeiro nível, que exprcssa a consciencia da mente (as premissas do cogito) e a presenc;a da idéia de Deus, é indubitável, mas nao assegura que nunca trairemos nossas faculdades considerando-as todas falsas. A veracidade divina, por conseguinte, dcve remediar tal fraqueza do intelecto humano e revelar a irracionalidade da dúvida metafísica ( 1995, pp. 183- 99).

Esse tipo característico de resposta ao desafio da circularidade é criticado por Dicker, que afinna nao haver suporte textual para sua conclusao. Ademais, se o conhecimento da regra geral nao for neces­sário para a prova da existencia de Deus, como deve ser suposto em tal interpretac;ao, será igualmente dispensávcl para as provas matemá­ticas ou de dcmonstrac;oes análogas. A réplica, porém, pode ser a de que, sem a regra geral, alguém estaría limitado a episódios momenta­neos de certeza e privado de ciencia permanente, reconhece o próprio Dicker. Outra inquiric;ao do debatedor é se, ao duvidar do principio geral de verdade, nao estamos duvidando também da veracidade do que percebemos claramente na circunstancia do geojo. A defesa, se­gundo ele, é incompatível com a exigencia de que as percepc;oes de­vam ser nao só auto-evidentes, mas também auto-garantidas (1993 , pp. 130-32).

Para responder esta crítica, ~ería preciso aduzir argumentos contra a dúvida envolvcndo o exercício atual da razao. Mas como a crítica de Hume exposta na sec;ao XII de Enquiry conceming Human Unders­tanding indica, a razao é insuficiente para provar o uso da mesma sob pena de redundar em círculo. Há alguns autores, no entanto, que pro­curam satisfazer a solicitac;ao cartesiana, tentando, da mesma fonna, solucionar o círculo. Tal objec;ao aqui será nomeada defesa epistemi­

ca, mas há urna cotTente dissidente dela chamada defesa psicológica. Ambas sedío tratadas na próxima sec;ao.

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136 Flá1•io ¡\f. d e O. Zimmemumn

para se vencer o pirrónico dentro do ponto de vista destes autores seri­

a, ou tentar iscntar a base do rncta-critério da dúvida, chamando o

procedimento de "Isenr;:ao de bases antecedentes" (Anteceden! Grounds Exemption), ou permitir inicialmente que o critério de pri­meira ordem seja indeterminado pelo meta-critério da dúvida, mas, após regredir urn número finito de níveis, declarar urna base mais fundamental como imune a um questionamento além. Esse método seria o de "Isens:ao de bases subseqüentes" (Subsequent Grounds E­xemption). Mas, ambas as alternativas sao arbitrárias, de acordo com os debatedores, que propoem um aumento de bases (Grounds Enhan­cement), ao invés de iscns:ao. Em tal critério, os passos da demonstra­r;:ao divina nao serviriam como bases de assentirnento nem apareceri­am na forma de prernissas adicionais, mas como urna garantía auto­

fundada, de modo análogo ao cogito. A hipótese de um criador que tivcsse nos programado com faculdades ineficientes nao pode ser con­cebida, exprimem os autores, e, assim que a confiabilidade das capa­cidades cognitivas de alguém se torna axiomática, qualquer esfors:o para firmar urna dúvida meta-criterial é visto como incoerente e con­traditório. A anuencia a tais faculdadcs , logo, deve ser epistemica e psicologicamente imexívcis ( 1999).

A garantía epistemica, no entanto, é questionada por Markie, que entende que perceps;ao clara e distinta nao deve ser relacionada com certeza metafísica no sistema cartesiano ( 1996). Markie atribuí esta

caracterizac;:ao a Kcony e Frankfurt, embora seja discutível se Frank­furt ten~a realmente entendido a qucsUio desta forma3

. Markie mostra que esta proposir;:ao é inconsistente com urna afirmas:ao da Quinta Meditac;:ao, em que o autor admite nao possuir ciencia verdadeira até que conhec;:a o autor de sua existencia, mas apenas "opinioes vagas e inconstantes" ( 1979, p. 127).

Tal interpretas:ao contra Frankfu rt vem recebcndo vários adeptos, como é o caso de Larmore e Loeb. O primeiro sustenta no artigo

"Oescartes's Psychologistic Theory of Assent," que a relas:ao entre evidencia e assentimento na teoria cartesiana nao está fundada em uma obediencia a uma norma de racionalidade, mas em um fato psico-

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O circulo car1esiw1o 137

logicamente compelido sobre nossas mentes. O conceito de verdadc relacionado a uma noc;:ao nao-cpistemica, portanto, será mclhor com­patível coma accpc;:ao de que urna proposic;:ao de assentimento compe­lido e indubitável possa ser absolutamente falsa. A razao peculiar para fundamentar esta interpretac;:ao é a afirmac;:ao de Descartes que urna proposic;:ao será indubitável somente nas instancias em que ela for evocada a mente. Se o acato a urna norma racional fosse o caso, dirí­amos que assentimos a proposic;:oes evidentes porque a regra nos obri­ga a observarmos as leis da lógica. Mas, lembra Larmore, as regras da lógica nao usufruem imunidade na universalidade da dúvida hiperbó­lica, e podemos conceber que tudo o que clara e distintamente perce­bemos pode ser falso! Dcvemos, portanto, apenas crer na habilidade de nossa mente para chcgar a vcrdade, e nao que atualmente nosso critério de verdade é conespondente a sua concepc;:ao absoluta ( 1996).

Loeb identifica a postura psicológica do autor em fragmentos das "Meditayoes," em que ele faz alusao a cren9as firmes e sólidas. No primeiro parágrafo da Meditac;:ao Primeira, por exemplo, o autor pro­cura se desfazer de suas antigas opinioes e cren9as a fim de encontrar "algo de firme e constante nas ciencias" (que/que e hose de ferme et de constan/ dans les sciences). Também no segundo parágrafo da Medi ­tac;:iio Segunda, toda a sua investiga9ao é projetada para o estabeleci­mento de algo que seja ''certo e indubitável" (certaine et indubitable), a exemplo do objetivo de Arquímedes. Para Loeb, a meta do filósofo é a de encontrar crent¡:as sólidas com a finalidade de atingir um estado . de espirito "doxástico" e bem estabelecido (settled doxast,ic states). Descartes teria, entao, associado crent¡:a firme a cren9a inabalável (un­shakable beliej), para contrapó-la a crent¡:a instável, que seria crent¡:a passível de dúvida ( 1992 e 1998).

Talvez a única dúvida inculcada por Descartes fosse a desconfian­c;:a indireta das capacidades humanas, além da dos sentidos, e nao a­queta aplicávcl a mente quando se reporta as percep¡¡:oes claras e dis­tintas acerca da existencia divina e outras semelhantes. No momento em que a mente está diretamente atenta a uma proposiyao clara e evi­dente, a clúvida nao pode ocupar lugar neta, pois nao é um objeto de

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138 Fltíl'io M. de O. Zimmerma1111

sua consciencia, e já foi enfatizado que o entendimento nao é capaz de intuir tantas coisas ao mesmo tempo. O conhecimento da regra de verdade e da existencia divina, portanto, estariam fundados em urna cren.ya inesistível, que nao poderia ser expelida por argumentos céti­cos. Antes do conhccimento da existencia do deus nao-enganador, porém, suas opinioes sao imprecisas e mutáveis, mas psicologicamcn­te inabaláveis e baseadas na melhor evidencia possível de verdade, enteode a inda Loeb ( 1998).

No entanto, esta representayao nao retrata a filosofia de Descartes como apta a fundar um conhecimeoto objetivamente verdadeiro, e há momentos em que o autor cstabelece como meta o conhecimento da verdade, como no título do artigo 1 e na primeira senten.ya do artigo 4 dos Príncipes. Pode-se considerar ainda o título dos seus diálogos inacabados: "A Procura da Verdade pelas Luzes Naturais" (Recherche de la Vérité par les Lumieres Naturelles). A observayao é de Cottin­gham, que considera a leitura de Frankfurt muito "moderna e relativis­ta" (1986, p. 69). Kcnny afim1a ainda que Frankfurt subestima a preo­cupa.yao de Descartes com a verdade. Ele sustenta que seus juízos nao sao apenas psicologicamente, mas também logicamente a melbor base para aceita-;ao da verdade, e por isso, jamais poderiam ser considera­dos fa lsos . As respostas a Mersenne, que induzem esta leitura, alerta Kenny, nao proferem que "nao importa se nossas intuiyoes parecerem falsas a Deus ou aos anjos," mas que "nao importa se alguém fingir tal hipótese." Esta simula.yao, porém, nao nos aborrecería, porque esta­mos certos que o que ele supoe é só urna ficyao, diz.Kenny, baseando­se nas considera-roes seguintes do autor nas "Objeyoes e Respostas." Ademais, é perceptível entre tais considerayoes a Mersenne a defesa da tese que Deus nao é enganador. Se pudesse ser o caso que o que Deus faz parecer verdadeiro para nós parecesse falso a Ele, Deus teria que ser enganador, contrariando a mais importante prava de Sua bon­dadc, ene erra a crítica do comentador ( 1995, pp. 191-5).

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O círculo carlesimw 139

3. Conclusao

Em suma, todas as versoes acima sofrem críticas, mas o presente estu­do nao tem por objetivo desclassificá-las indiscriminadamente para aceitar a tese de que Descartes nao teria observado a suposta circulari­dade de suas afirma~oes. A intenyao destc trabalho é apenas apresen­tar as principais linhas de interpreta~ao com rela~ao ao tal problema, e indicar que nenhuma delas está livre de admitir conseqüencias dano­sas para a filosofia cartesiana. Ao restringir um detem1inado aspecto da dúvida, cada análise acaba por abrir mao de algum ítem muitas vezes crucial para que o método possa ser capaz de resolver todos os paradoxos de valida~ao da razao apresentados pelo cético.

O partidário da dúvida parece sempre sair cm vantagem cm situa­~oes como essa. Uma apropriada representa¡yao aquí é a do cético de Pascal, ilustrada na epígrafe deste texto. "Enguanto houver dogmáti­cos, o célico semprc terá razao," descreve a sua máxima. Para superar o receio sobre a confiabilidade da razao, é preciso, obviamente, utili­zar-se da razao. Mas se esta confiabilidade for duvidosa, como os seus resultados poderiam igualmente ser confiáveis? Somente se alguns recursos racionais pudessem estar a salvo da dúvida hiperbólica. Mas se este for o caso, dcve-se admitir que a busca pelo conhecimento verdadeiro e objetivo fracassa, e o ceticismo cartesiano, ao incorporar somente alguns aspectos da dúvida, teria que renunciar sua meta de universalidade.

A solu¡yao de que o papel de Deus na ~pistemologia cartesiana de­vería servir apenas para garantir a fidedignidade de nossas memórias poderia encontrar obstáculos ao utilizar a própria memória na forma­yao da dúvida ou na prova da divindade. Ou ainda, poderia nao fazer jus a dúvida universal ao aftrmar que detenninadas percep~oes pudes­sem ftcar livres dela. Se, por outro lado, Deus intervém na ftlosofta do autor apenas para confiar a regra de que tudo o que ele conccbc clara e distintamente será scmpre verdadeiro, como ele poderia ter o conhe­cimcnto de que sua prova é também verdadeira? Novamente, apenas se suas primciras perccp¡yoes obtcrcm o privilégio de isen¡yao da dúvi-

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140 Flávio M. de O. Zi111111erlllann

da. A terceira lcitura aprcsentada no presente trabalho tentou resolver

o problema ao sustentar que a dúvida de percepc;:ocs certas e evidentes nao poderia sofrer o auto-questionamento sob pena de apresentar-se

incocrente e contraditória. O preryo a ser pago pelos intérpretes do psicologismo seria o de renunciar a fundaryao da noryao objetiva de verdade por meio da natureza das idéias, além de sofrerem a crítica de estarem utilizando a razao para sustentar ela própria, urna premissa inadmissível por muitos céticos.

Entretanto, se o foco da filosofia cartesiana for semente o de pro­curar um critério racional para demonstrar a incoerencia de quem usa a razao para desconfiar deJa própria, o projeto pode encontrar algum succsso. Por outro lado, se o objetivo foro de validar urna forma de conhecimento que se estende para além da nossa própria capacidadc,

devc-se conceder vitória ao mais ousado cético. Se o nivel do debate presente nas "Meditaryoes," portante, foi o de primeiro tipo - o que

nao é tao implausível pcnsarmos - a meta de Descartes parece ter sido apenas a de obrigar o partidário da incrcdulidade a andar com os pés bem calryados ao chao, e lidar com todo o material disponível que pos­sui: sua própria razao, ou melhor, "toda certeza que qualquer ser pode razoavelmente desejar."

E mesmo que o fun do método seja o de legitimar urna verdade ex­

tra-racional, os problemas expostos nas demais interpretaryoes nao vinculam, necessariamente, que Descartes tenha cometido o círculo e que sua epistemología racionalista é falha , a excmplo do julgamento precipitado de Musgrave ( 1993, .P· 209). Talvez fosse mais apropriado crermos, de modo análogo a os pensamentos de Cottingham ( 1986, p. 73) e Weintraub (1997, p. 375) que, ao invés de cometer tal falácia, o

autor tenha encontrado tantas dificuldades porque enfrentou um proje­to de fundac;:ao do conhccimento demasiado austero e ambicioso.

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O circulo cartesiano 141

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Flávio Miguel de Oliveira Zimmermann Universidade Federal de Santa Catarina

Doutorando do programa de filosofía na área de Epistemología.

e-mai1: [email protected]

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O círculo cartesiano 143

Notas

1 O detalhamento da questao pode ser encontrado ainda em outras obras dos críticos. Arnauld a expoe na "Logique ou l'art de penser" parte IV, cap. VI, segundo Popkin (2000, p. 320). Gassendi, em " lnstances," roed. IV, dubit. IV, inst. 2, conforme Gilson (1987, p. 360). A crítica foi também ex posta no famoso "Dictionnaire" de Bayle no verbete "Cartes, René Des," e na sec;:ao XII de Enquiry concerning Human Understanding de Hume. 2 Conforme colocado a Mersenne nas Segundas Objec;:oes ( 1979, p. 158). 3 Cottingham e Kenny, por exemplo, consideram a interpretac;:ao de Frankfurt como defesa psicológica das percepc;:oes claras e distintas. Adiante serao apresentadas suas críticas a tal defesa.

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Sobre o conceito de superveniencia em Davidson

Giovanni da Silva Queiroz Universidade Federal da Pcwaíba

Donald Davidson foi o primeiro filósofo a introduzir o conceito de superveniencia nas diseussocs acerca do problema mcnte-eorpo.1 A­través deste conceito, Davidson pretende dar uma expliear;ao possível de como se dá uma interar;ao entre o mental e o fisico - que ele sus­tenta - sem se comprometer com a rcdus:ao preconizada pelo materia­lismo clássico - que afirma que processos mentais sao, apenas, pro­eessos eerebrais -, nem se comprometer eom a existencia de leis psi­eofisicas. Em defcsa de suas teses, Davidson sugerc que pensemos em algumas relar;oes que oeoiTem entre a semantiea e a sintaxe fonnais, que sao, segundo ele, um excmplo claro da relar;ao de super­veniencia.

No que se segue, após uma breve motivas:ao de algumas idéias de Oavidson, apresentamos as formulat¡:oes do filósofo para o eonceito de superveniencia, examinamos a aplicat¡:ao deste conecito ás relar;oes entre sintaxe e semantica e apre-sentamos um quadro fonnalizado no qua! se pode eompreender tal eoneeito. Ao firial, apresentamos uma abordagem geral entre semantica e sintaxe, retomamos ao problema da superveniencia e apresen tamos algumas conclusoes.

l. Superveniencia: algumas considera~óes

A atribuis:ao de um estado ou evento mental a um agente racional nunca ocon·e sozinha. Quando atribuímos um determinado estado

Dutra. L. H. de A. e Mortari. C. A. (orgs.) . 2005. Epistemolugia: Anais do 11' Simpósio lntenwcional. Principi(l- Parte l. Florianópolis: NEUUFSC. pp. 145 168.

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mental a alguém, estamos inclinados a atribuir também outros estados mentais, eventos que impliquem e que sao implicados por aqueJe e­vento, pois este é o modo pelo qua! nos rela~ionamos com os outros no mundo. É parte de nossas próprias crenc;:as que os agentes raeionais com quem lidamos sao tao racionais quanto somos nós e que, também, estao dispostos a concordar com várias das crenc;:as que alimentamos; nós acreditamos que tais agentes tem desejos conectados a várias crenc;:as e que partilham de várias de nossas pressuposic;:oes sobre a linguagem e sobre o mundo cm que nos situamos. Nossas relac;:oes com outros semelhantes se dao numa determinada rede de crenc;:as, desejos e intenc;:oes. É o holismo do mental. Nas palavras de David­son: "(E)u estou enfatizando o holismo do mental ( ... ). Mio há, como argumentei, crenc;:as sem Olltras crenc;:as relacionadas, nao bá crenc;:as sem desejos, desejos sem crenc;:as, intenc;:oes sem crenc;:as e desejos" (Davidson 1999, p. 126).

Nós atribuímos crenc;:as, desejos e intenc;:oes a outros, e a nós mes­mos, e acreditamos que estes fazem alguma diferen<¡:a sobre aquilo que os outros fazem e sobre aquilo que fazemos; noutras palavras, acredi­tamos que o mental deve ser levado em considerar;ao em nossas ac;:oes e que se relaciona causalmente com estas. Normalmente, sustenta-se que a atribuic;:ao de crenc;:as e desejos a outros é muito distinta da atri­buic;:ao que fazemos a nós mcsmos, pois temos acesso privilegiado a nossos próprios pensamentos, cnquanto que, para o pensamento dos outros, só dispomos de suas próprias falas ou de outro comportamento observável. Nao se discute tais diferel)<¡:as aquí, embora deva-se men­cionar que, para Davidson, nao bá diferenc;:a significativa entre a atri­buic;:ao de crenc;:as e desejos que fazemos aos outros e a atribuic;:ao que fazemos a nós mesmos (Davidson 1998). Fato é que atribuímos pen­samentos a nós e a outros e acreditamos que o pensamento tem eficá­cia causal cm nossas ac;:oes. Um dos problemas da filosofia da mente é o de explicar como é que isso acontece.2

É conhecida a proposta de Davidson, chamada de monismo anóma­lo - há alguma interac;:ao causal entre eventos mentais e eventos fisi­cos, eventos relacionados causalmente instanciam uma leí estrita, mas

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Sobre o couceito de Sllperw:miencia e m Davidsou 147

nao há leis ( cstritas) que relacione eventos físicos a eventos mentais; noutras palavras, embora haja intera~ao causal entre o mental e o físi­

co, nao há lcis psicofísicas. A rigor, nao há eventos mcntais como "algo a mais" além do físi­

co; há eventos fís icos (daí, monismo) que podcm ser descritos também num vocabulário intencional. É dessa fom1a que se compreendc a a­

firmayao seguinte:

Nao há tais coisas como mentes, mas as pessoas tem propriedades mentais, o que quer dizer que determinados predicados psicológicos sao verdadeiros deJas. ( ... ) Eventos mentais sao, cm minha visao, fisi ­cos (o que nao quer dizer, é claro, que nao sao mentais). (Davidson 1995, p. 231.)

Na afirma<;:ao acima, há um aspecto que é central na ontología de eventos proposta por Davídson: eventos sao particulares inepctíveis, datados e nao se confundem com as descri<;:6es que deles fazemos. O que isto efetivamente significa ainda é urna questao controvcrsa. Um

critério de identidadc entre eventos foi proposto por Davidson cm "The Individuation of Events" ( 1969): dois eventos sao identicos se, e somentc se, tcm as mes-mas causas e os mesmos efeitos. Tal critério foi mostrado por Quinc ser circular (1985), pois causas e efeitos sao em sí mesmos eventos e, portanto, ao fazer de causas e efeitos consti­tuintes do critério para a identidade de eventos, Davidson parece estar comprometido com um círculo vicioso; Davídson veio a concordar com a obje~ao de Quine, aceitando o critério espa<;:o-temporal para objetos como crítério de indívidua~iio.3 Entretanto, cm um recente

texto, G. L. H erstein pcrgunta:

Afina! de contas, o que significa falar de "dois" eventos serem idcnti­cos? Mais uma vez estamos confrontados com a questao: que possível principio de individuac;ao de eventos poderíamos empregar aquí além de nossas descric;oes de eventos? Efetivamente nós nao dizemos que temos duas descric;oes evidentemente diferentes mas que realmente se­leciona soment<i'um evento? De outro lado, Davidson insiste que a i­dentidade é uma relac;ao de eventos ( ... ). Parece-me que a real idéia de

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"identidade de eventos" é, se muito, uma fala muito vaga sobre nossas ferramentas reais e sobre nossos sistemas de individuar;iio de eventos, nao sobre os próprios eventos. Se "dois" eventos sao "identicos," en­tao nao sao dois eventos, mas apenas um. De outro lado, se dois even­tos diferentes foram genuinamente individuados, entao eles sao dois eventos, nao um. (Herstein 2005, p. 56.)

Supondo que temos um critério adequado para a identidade de e­ventos, urna vez que eventos mentais sao identicos a eventos físicos, a diferenya entre ambos se dá através das descriyoes que fazemos. Dada uma sentens;a aberta "o evento x é F," se a expressao que substituí "F" contém, pelo menos, um verbo menta1ista - um verbo que ocona em situayoes de atribuiyao de atitudes proposicionais, estamos diante de uma sentens;a aberta mental; se a expressao que substituí "F" eontém, apenas, o vocabulário da física, estamos diante de uma sentenya aberta da fisica. Isto caracteriza o monismo (materialista) de Davidson. Mas, diferentemente do materialismo clássico, nao é possível reduzir des­criyoes mentais (descrivoes do tipo "o evento que é M," com "M" sendo substituida por urna expressao que conta com, pelo menos, um verbo mentalista) a descriyoes fi sicas (nao reducionismo). O que Da­vidson afio-na é um tipo de reduvlio ontológica sem reduyao conceitu­al.

O monismo anómalo é implicado pelas tres teses seguintes: even­tos mentais estao causalmente relacionados a eventos fí sicos (princí­pio da interayao causal), dois eventos relacionados como causa e efei­to instanciam uma lei estrita (principio nomológico da causalidade) e nao há leis psicofisicas estritas (princípio da anomalía do mental). Porque afirma que, pelo menos, alguns eventos mentais interagem causabnente com eventos fís icos e dado que nao há leis psicofisicas estritas, Davidson tcm que introduzir o conceito de superveniencia para apoiar a tese do relacionamcnto entre o mental e o fisico. Em "Mental Events," o conceito está assim form~ado:

Tal superveniencia deve ser entendida como nao pode haver dois e­ventos iguais no que diz respeito ao fisico, mas diferentes em algo que

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Sobre o conceito de supen·enicncia em Dm•idson

diga respeito ao mental, ou que um objeto nao pode alterar no que diz respeito ao mental sem alterar no que diz respeito ao físico. (Davidson 1970, p. 214.)

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Neutras palavras, dadas duas descri.yoes, urna mental, M, e outra física, F, a descris:ao M é superveniente, ou dependente, em relas:ao a F, se nao puder haver mudans:a em M sem que haja mudans;a em F.

Por mudans:a em M (mudans:a em F) entenda-se modificas;ao de, pelo menos, um predicado, pois o que pode mudar, aqui, sao as descri.yoes, o modo como atribuimos algo a um objeto. Tal dependencia, ou su­perveniencia, nao implica, segundo Davidson, urna redu.yao mediante urna lei ou urna definis:ao. Jaegwon Kim captura, de modo feliz, as idéias subjacentes a esta formulas:ao:

l. há uma co-varia<;oo entre propriedades físicas e propriedades mentais ("nao há modifícar;:ao no mental sem modifícar;:ao no físico");

2. há urna dependéncia do mental para como físico; 3. há urna nao redutibilidade do mental ao físico (Kim 1995).

A caracterizas:ao 2, acima, afirma que a rela.yao de superveniencia

é urna relas:ao assimétrica: o mental depende do físico, mas o físico nao depende do mental. Davidson acrescenta (o que confirma a carac­terizas:ao 3, acima) que se seu conceito de superveniencia implicassc em redu.yao, "estaríamos aptos a reduzir verdade num sistema formal a

propriedades sintátieas e isto nós sabemos que nao pode, em geral, ser feíto" (Davidson 1970, p. 214). Voltaremos a esta afinna.yao !llais adi­ante.

O conceito de superveniencia que interessa a Davidson foi tornado mais preciso posterionnente: "um predicado p é superveniente sobre um conjunto de predicados S se, para todo par de objetos tais que p é verdadeiro de um e nao do outro, há um predicado em S que é verda­deiro de um e nao do outro" (Davidson 1985a, p. 242). O interesse

nesta prccisao era o de caracterizar o conceito de forma geral que ga­

rantisse urna redu.yao ontológica, mas de maneira fraca o bastante que nao implicasse redu.yao definicional ou redus:ao nomológica. Nova-

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mente o exemplo é encontrado nas relavoes entre sintaxc e semantica f01mais: predicados scmiinticos nao sao definíveis com base em predi­cados sintáticos, embora supervenientes a estes.

Uma definiyaO equivalente a definiyaO de 1985 é proposta em "Thinking Causes," publicado cm 1993, inclusive para rebater as críti­cas a possível inconsistencia dos tres postulados que cngendram o monismo anómalo e para rebater as críticas de epifenomenalismo (as propricdades mentais sao ine1ics, isto é, em nada contribucm na reali­zas:ao de nossas as:oes). O conccito de superveniencia aprcscntado é o scguinte:

Um predicado P é superveniente sobre um conjunto de predicados S se, e somente se, P nao distingue quaisquer entidades que nao possam ser distinguidas por S. (Davidson 1993, p. 4.)

O que tais definiv6es dizcm é que um predicado P é superveniente a um conjunto de predicados S se a indistinguibilidade dos objetos dos quais P é verdadeiro deriva da indistinguibilidadc dos objetos sob as dcscris:oes de S; ou ainda, se dois objetos x e y sao indiscerníveis quanto aos predicados em S, devem ser indistinguívcis sob P. Note que pode haver casos triviais: se o predicado P pertenccr ao conjunto de predicados S; P for definívcl cm termos dos predicados de S, se a cxtensao de P for resultado de uma definis:ao em tennos dos predica­dos de S; mas o que interessa a Davidson sao aqueles casos em que nao OCOITC uma reduyao, mediante uma definis:ao ou mesmo uma lei, de P a S. Observe bem que pode ocoiTer que dois objetos sejam distin­tos com rclas;ao ao conjunto de predicados S e indistintos em relas:ao a P, mas se houver mudans:a na cxtensao de P tem que haver, ao mesmo tcmpo, mudans;a na extensao de S.

Kim dá uma fommlas:ao da superveniencia que apela a cssa moda­lizas:ao ("tem que haver"); considere dois conjuntos de propriedades A e B; pode-se formular o conceito de superveniénciafraca como segue:

A é .fracamente superveniente sobre B se, e somente se, necessaria­mcntc, para quaisquer x e y, se x e y partilham todas as propriedades

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Sobre u cunceiro de supen·eniéncia em Davidwn

em B, entao x e y partilham todas as propriedades em A - isto é, in­discemibilidade com respeito a B implica indiscernibilidade com rela­yao a A. (Kim 1984, p. 158.)

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Noutras palavras, se x e y sao indiscemíveis sob B (ou B­indiscemíveis), x e y sao A-indiscerníveis. Tomando o exemplo de Davidson em considera~ao, isso significa que se duas scntcn~as quais­qucr sao indiscerníveis sintaticamente, sao a mesma senten~a, e por­tanto, tem o mesmo valor de verdade. Kim, entretanto, nao acredita que esta formulayao fraca seja suficiente para a pretensao davidsonia­na de explicar a intera~ao entre o mental e o fisico (ver, por exemplo, Kim 1984, p. 163). Com a fonnula~ao da superveniencia fraca de Kim, parece haver concordancia de Davidson (Davidson 1993, nota de rodapé 4) e Kim, ainda, formula os conceitos de superveniencia forte e global; discutir estas outras versoes é, entretanto, matéria de outro tra­balho.

Urna forma interessaote de ver como isto funciona encontra-se no próprio exemplo de Davidson: o predicado verdade, para urna dada linguagem, nao pode distinguir senten~as que nao sejam distinguidas em termos puramente sintáticos. O exemplo a que ele se refere se en­contra em "Mental Evcnts" ( 1970). Ali, ele pede-nos que tomemos urna linguagem L, com recursos o bastante para expressar partes da matemática e sua própria sintaxe. Seja, agora, L' a linguagem Lacres­cicla com o predicado "ser verdadeira em L." Nao é possível, em L, fonnu-lar um predicado que se aplique a todas as senten~as verdadei­ras de L, e somente a estas, se L for consistente.

11. Urna estrutura relacional

G. L. Herstein (2005) considerando que, embora passados mais de trinta anos da fonnulavao original, ainda nao existe ainda urna inter­preta~ao canónica de "Mental Events," retoma esse texto, apresenta seus pressupostos e a cstrutura da argumenta~ao de Davidson. A partir

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do que chama de "premissas ontológicas," que dizem respeito ao con­ccito de eventos, a caracterizas:ao do mental, ao conceito de causalida­de e de leis, o autor propoe urna estrutura relacional na qua! busca formular o argumento davidsoniano de que nao existem leis psicofisi­cas, concluindo que o anomalismo do mental é um argumento trans­cendental negativo: diz respeito a impossibilidade de formular leis do pensa-mento. Deve-se observar, entretanto, que nada é mencionado com respeito ao conceito de superveniencia. No que se segue, apresen­tamos esta estrutura relacional e buscamos fonnalizar a tese da super­veniencia.

Seja E um domínio de eventos no qua! há um sub-domínio distin­guido, D, o sub-domínio das descris;oes - descric;oes sao tomadas co­mo parte daqueles eventos que sao lingüísticos. Uma funs;ao F, que é parte da estrutura operacional D, relaciona eventos a descris:oes. Esta funs:ao deve ser pensada ao modo da funs:ao de satisfas;ao de Tarski. Assim, se <p; é uma descric;ao satisfatível (<p; E D), existe um evento e;

(e; E E) tal que, por F, e; i= <p;. Suponhamos que detem1inados eventos podem ser completamente individuados; nos casos em que isso nao ocolTe, a funs:ao acima também funciona e, oeste caso, F relaciona classes de eventos a descriyoes.

Consideremos, em seguida, duas relas:oes em E. A primeira relac;ao é a relac;ao de identidade entre eventos, 1 e E, tal que se (e¡, ej) E 1, entao e; = ej; uma outra rclas:ao é a relas:ao de causalidade entre even­tos, e e E, tal que se o par ordenado <e;, ej> E e, enUío e¡ é a causa de ej. Para estas relac;oes supoe.m-se que os eventos e; e ej estejam com­pletamente individuados. Deve ser compreendido que identidade e causalidade sao relac;oes ontológicas, para fidelidade ao pensamento de Davidson; isto significa que tais relas;oes nao sao relas;oes semanti­cas ou lógicas entre descris:oes.

Uma lei científica, por sua vez, é parte da estrutura de D. A maior parte das descris;oes (<p; E D) scleciona classes de eventos; com tais classes pode-se construir um outro subconjunto de D, possivelmente muito complexo, de leis científicas (estritas); chamemos a este conjun­to S. É possível construir pares de descric;oes tais que (<p;, <pj) E S se, e

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Sobre v cvnceilv de supe11·enú!ncia em Dtwidsvn 153

somentc se, exístem eventos correspondentes que satisfas;am a relayao de causalídade (embora as descri9óes selecionem classcs de eventos, haverá eventos que podcm ser tomados como "representantes" daque­la classe). No interior de S, é possível construir um outro subconjunto, SP e S, pensado como o sistema de leis da física. Além disso, temas os conjuntos DM, or e D, os subconjuntos do dominio das descris;oes que sao mentais e físicos, respectivamente, tomados como totalidades nao estruturadas.

Como se sabe, Sr é tomado por Davidson como o sistema de gene­ralizayoes homonómicas, generalizayoes que podem ser indefinida­mente refinadas sem que tal refinamento implique em "mudanya de assunto." Uma relayao em sP deve ser efetivamente formalizável, tal­vez mesmo parcialmente e/ou relativa-mente computável. lsto é exigi­do para que se possa dizer que urna descriyao está no dominio de uma leí científica. Os argumentos que Herstein fornece para esta última afinnas:ao sao de ordem pragmática:

Poderíamos, em essencia, afim1ar ter uma "lei da natureza" para a qua! nao há nenhuma maneira de determinar, em principio, se qual­quer descriyao dada realmente conta como urna instancia da lei? ( ... ) Note, ainda, que nem mesmo estou sugerindo que as próprias descri­Qoes correspondam as expectativas de qualquer critério de computabi­lidade ou mesmo formalizayao - parcial, relativa, efetiva, ou qualquer outro. Apenas digo que deve haver a lgum critério parcialmente forma­lizável de detenninar quando uma descriyi'ío está abarcada por urna lei científica, qualquer que seja o próprio status da descriyao. Deve haver algum sentido rninimamente inteligível do que uma lei significa e quando se aplica. (Herstein 2005, p. 57.)

O subconjunto das descris:ocs mentais devem comportar, por fim, uma estrutura relacional R e DM que permita aos agentes racionais interpretar outros agentes racionais; esta estrutura relacional é profun­damente hctcronómica (no sentido dado por Davidson em "Mental Events") e, por isso, nao é f01malizável como rigor de S~'.

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154 Giovmmi da Silva Qru!iro;;

De posse desta estrutura relacional, tomando-se "P" como algum pred icado, relayao, ou funryao que toma um argumento no domínio das descri96es mentais e tem como valor do argumento urna descriyao fisica, a afinnayao de Davidson do Princípio do Anomalismo do Men­tal adquire a seguinte fonna:

Em palavras, nao existe urna fun9ao (predicado, relaryao) que toma descri96es mentais e descriyoes físicas relacionadas de tal maneira que esta rela¡¡:ao seja instanciaryao de urna leí científica. Esta afirmayao está comprometida com a quantificayao em segunda ordem sobre to­dos os predicados, funyoes, rela¡¡:oes conhecidas ou ainda por serem estabelecidas. Isto leva Herstein a afirmar que estamos diante de um argumento transcendental negativo; diz respeito a nossa impossibili­dade de determinar urna determinada relaryao - aquela que determina­ría a existencia de leis psicofisicas ligando o mental ao fí sico.

De posse da estrutura proposta por Herstein, é possível formalizar o conceito de superveniencia. Embora o conceito de superveniencia diga respeito a urna relayao entre predicados, e nao a uma relayao en­tre deseri¡¡:oes, sempre é possível transformar descriyoes em predica­dos, como Russell e Quine amplamente fi zeram (Quine, 1953). Por simplicidade - e para deixar mais clara algumas questoes - vamos manter a notayao sobre dcscriyoes; oeste caso, se W é a relayao de supervepiencia, sua formularyao pode ser, simplesmente, a seguinte:

A tese assim proposta é trivial : apenas afirma que toda descriryao mental tem urna descriyao física (possivelmente muitas) - o conceito de superveniencia exige um pouco mais. Entretanto, já nos diz algo intcressante: um evento mental é simplesmente um evento físico (por­tanto, com uma descriryao física) que exibe uma descriyao mental (a­lém da descriryao física, obviamente). Voltando a analogía enh·e sinta-

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Sobre o couceito de Sllper~·euiéucia em Davidsou 155

xe e semantica formais, para toda descri~ao semantica do tipo "a sen­tenc;a x que é verdadeira cm L," existe uma dcscri~ao sintática ("a scn­tenc;a x que é dcmonstrável em L," por exemplo) que satisfaz a relac;ao W. Mas esta maneira de colocar as coisas é ainda muito geral, pois estas descric;:oes selecionam classes de sentenc;:as. Para cumprir plena­mente as exigencias de Davidson, devemos notar, inicialmente, que as descric;:oes podem selecionar classes e a tese da superveniencia, embo­ra diga rcspeito a predicados, parece exigir a indistinguibilidade dos objetos envolvidos (o u eventos, na medida e m que sao particulares concretos). lsso é possível se trabalharmos com todos os predicados que se aplicam a determinado objeto (assim como é exigido pela Lei de Leibniz). Isso exige o acréscimo, em (B), da condic;ao seguinte (L}:

O que deixa a fórmula (B) bastante complicada, mas captura ade­quadamente, assim acreditamos, na estrutura proposta por Herstein, o que é exigido pela tese da superveniencia em Davidson. Embora a formulac;ao (B), com o acréscimo acima, parec;a contradizer (A), deve ser notado que nao se afirma que a relac;ao W pertens;a ao conjunto das leis (S), nem que as descric;oes mentais pertencem a estrutura rela­cional R, estrutura esta que nos permite interpretar agentes racionais. A relac;ao de superveniencia é tao somente urna relac;:ao que mostra urna intera~ao entre o mental e o fisico - que nao cai numa rede .nomo lógica. É urna questao saber se, assim fommlada,. a super­veniencia dá conta da causalidade mental.

A seguir, retomando as rclac;oes entre sintaxe e semantica, apresen­tamos uma formalizac;:ao que nos petmitirá discutir outras pat1iculari­dades do conceito de superveniencia.

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156 Giol'fmni da Si/m Queíro:

111. Sobr e lógicas em gcral

Nós chamaremos de cálculo (lógico) urna tripla C = < FOR, AX, REG

>, na qua! FOR é o conjunto das expressoes bem fonnadas (cada ele­

mento de FOR chamaremos simplesmcnte fórmula) , AX é um subcon­junto de FOR, AX:;:. 0 e REG, REG :;:. 0, é um conjunto de relayoes sobre FOR, chamada de regras de inferencia. Nós assumimos que urna linguagem L para C foi fi xada, que ternos regras precisas para dizer quando urna seqüencia de símbolos da linguagem L é um elemento de FOR, que se tem um procedimento cfetivo para decidir quando um

elemento de FOR pertence ao conjunto AX e quando é possívcl a apli­cayao de alguma das regras de infe rencia de REG, examinando uni­camente scqüencias de símbolos (isto é, examinando fórmulas, e le­mentos de FOR). Dado um cálculo, é possível definir quando urna fómmla B é uma conseqüencia de u m conjunto r de fórmulas (cm

símbolos, r 1- B). Tal definis;ao também é puramente sintática; dize­mos que r 1- B, se bá urna scqüencia finita a~, a 2, •• • , a., de fórmulas tal que cada a;, 1 ::;; i ::;; n, é elemento de FOR, ou de r , ou vcio por aplicas;ao de alguma das regras de inferencia e a., = B. Se nao acorre que r 1- B, escrevemos r I-/ B. Nós usaremos Con en para indicar o conjunto das conseqüencias de r, isto é, Con Cn = { B : r l-e B}. Se r = 0, B é simplesmente chamada um teorema de C.

Tarski apresenta a seguinte formulayao axiomática do operador de conseqücnc ia Con, válida para qualquer sistema dedutivo (Tarski,

1930):

Axioma 1.11 FOR 11::;; No. Axioma 2. Ser~ FOR entao r ~ Con (r) ~ FOR. Axioma 3. Se r ~ FOR cntao Con ( Con (r)) =Con (r). Axioma 4. Se r ~ FOR entao Con Cn = 1: v t; re nv ns 1\o Con (Y). Axioma 5. Existe urna scntens;a x E FOR tal que Con ( {x}) = FOR.

Vamos rcapresentar os axiomas que caracterizam o operador de conseqüencia numa formulas;ao que nos será útil posterior-mente. Se-

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Sobre o COIICeilo de supet·veniéucia em 001'1(/son 157

guindo Tarski , podemos axiomatizar a nor;:ao de conseqüencia da se­guinte mancira:

C) 1 ~Con en M) I. ~ r, cntao Con (I.) ~ Con (f ) I) Con e Con en ) ~ Con en

cumular;:ao monotonicidade idempotencia.

No que se segue, estamos nos baseando, principalmente em nos trabalhos de Newton C. A. da Costa e colaboradores, desenvolvidos a partir da década de 1970, quando se buscava urna semantica adcquada para os cálculos paraconsistentes (4

).

Definiry(io l . Seja C = < FOR, AX, REG > um cálculo e v uma funr;:ao de FOR ao conjunto {0, 1}. Dizemos que v é urna atribui9éio associada a C se:

l. SeBE AX, entao veB) = l ; 2. Se todas as premissas de uma aplicar;:ao de urna regra de inferencia

que pcrtence a REG assumem valor 1 sob v, cntao a conclusao cor­respondente também assumc valor 1;

3. Existe pelo menos urna fórmula A, tal que v(A) = O.

Definiryiio 2. Seja agora V o conjunto das atribuir;:oes de um cálculo e, V E V e r um conjunto de fórmulas na linguagem L de C. Dizemos que V satisfaz r se, para toda fórmula B, B ~ r , veB) = l .

As scguintes propriedades sao fáceis de provar:

i) Se 1 l-e B, enHio para toda vE V, se v satisfaz 1, enUio v(B ) = l. ii) C é trivial, isto é, toda fórmula B é teorema de C, se, e somente se,

V=0.

Definiryiio 3. Seja agora I. u {A} um conjunto de formu las de um cálculo C. I. é chamado A - saturado se I. 1-1 A e, para toda B e: I., I. u {B} 1- A.

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158 Giowumi da Si/m Queiro=

Pode-se demonstrar o seguinte:

iii) Se L é A - saturado, enHio L 1- A se, e somente se, A E L. iv) Se r I-/ A, entao existe um conjunto L, A -saturado, tal que r e

L. v) A funcyao característica de um conjunto A -saturado é urna atribu­

icyao.

Defini~iío 4. Uma atribui9iio que é a func;ao característica de um conj unto A - saturado é chamada urna valora~ao .

Defini~iío 5. Urna valorac;ao v, tal que v(B) = 1 para toda fónnula B que pertence a um conjunto r de fó1mulas é chamada de modelo de r .

Dejinir;iío 6. Urna teoria baseada em e é qualquer conjunto T de

fórmulas, na linguagem L de e, tal que se T 1- B, enHío B E T. Quan­do T = { B 1 K 1- B} , K é chamado o conjunto de axiomas de T. U m modelo de Té qualqucr valorayiiO V de e tal que v(B) = 1 para toda B E T. Os teorernas de T sao as fónnu las que pertencem a T.

Definir;iío 7. Urna teoría T é dit a ser nao trivial se, e somente se, existe urna fórmula A, tal que T I-/ A.

Defini~iío 8. Urna fónnula A (na linguagem de T) é válida num modelo de T se, e somente se, para toda v E V, se v satisfaz T, v(A) = l.

Proposi~áo l. (Corre~ao de 1). Se T 1- A entao A é válida. Proposi~ao 2. (Lema de Lindembaum). Seja T nao trivial e A E

FOR tal que TI-/ A . EnHio existe T* , nao trivial, A-saturada, tal que T !;; T*.

Proposi~ao 3. (Existencia de Modelos). Seja Turna teoría nao tri­

v ial; nestas condi9oes, T tem modelo. Proposi~ao 4. (Completude de T). Se A é válida, enHio TI- A.

Alguns comentários:

. -

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Sobre o conceilo de superveniencia em Davidwn 159

l. O método proposto é suficientemente geral para fazermos abs­

trac;:ao de vários elementos da sintaxe de e ( quais os elementos da lin­guagem L, quais os operadores, quais os axiomas) e também fazermos

abstrac;:i'ío do tipo de teorías - a única exigencia é que a teoría seja nao

trivial (assim, estamos admitindo mesmo teorías que tenham fórmulas

e suas negac;:oes como teoremas, ou ainda teorías nas quais existem sentenc;:as tais que nem ela, nem sua negac;:i'ío sao demonstráveis na teoría); como é óbvio, para teorías clássicas, o conceito apropriado,

melhor que o de nao trivialidade, é o conceito de consistencia. 2. Para cada tipo de cálculo lógico em considerac;:ao (para­

consistentes, paracompletos, modais), novas exigencias devem ser

acrescidas as teorías correspondentes; tais exigencias modificam o modo como devem ser estabelecidas as proposivoes 1 a 4, acima, em­bora o método pern1anec;:a o mesmo. Alguns exemplos:

a) Para algumas teorías (paraconsistentes, intuicionistas)

deve-se exigir que sejam primas : Se T 1- A § B, entao T 1- A ouT 1- B, mas nao ambos (§E {v, A});

b) Em cálculo de predicados (intuicionistas), as teorías de-vem ser existencialmente fechadas (Se T 1- :3xAx, deve existir e, urna

constante especificada, tal T 1- Ac) Cada nova exigencia que a teoría deve satisfazer, modifica-se a ex­

tensao de T*, pois modifica-se o número dos objetos para os quais Cp(A) = l. Ou ainda, a modificac;:ao do modelo de T* tem que vir a­

companhada da modificac;:ao das propriedades sintáticas de T*. Isso corrobora a afirmac;:ao dy Davidson de que

o exemplo dá um possível significado a idéia de que verdades expres­sáveis por predicados subvenientes "determinam" a extensao do pre­dicado superveniente, ou que a extensao do predicado superveniente "depende" da extensao de predicados subvenientes. (Davidson 1993, p. 5.)

3. O método apresentado nao é constmtível. Com efeito, para o

estabelecimento do Lema de Lindembaum (Proposic;:ao 2), na demons­trac;:ao é necessário fazer uso de algo equivalente ao Axioma da Esco-

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160 Giovmmi da Silva Queiroz

lha (ou do Lema de Zorn, o que é o mesmo). Isso nos leva para além da "parte segura" (Hilbert) da mate-mática. Tal uso implica no estabe­lecimento de provas nao obti-das pelos meios preconizados por Hil­bert.

4. Nao foi utilizado o conceito de ser verdadeiro, mas o de ser válido num modelo (Definic;:ao 8); pela Proposic;:ao 3, ser válido é, simplesmente, pertencer a um conjunto T* nao trivial, A-saturado, com A como uma fórmula nao pertencente ao conjunto T*.

5. Sabemos que um dos argumentos para a irredutibilidade da semantiea a sintaxe deve-se ao fato de que, se pe1mitirmos que o pre­dicado "ser verdadeiro" seja um predicado da linguagem em conside­ra¡yao, é possível "derivar" mna versao da antinomia do mentiroso; daí a necessidade de diferenciar linguagem e metalinguagem (esta inclu­indo aqueJa como parte). Tarski explícitamente diz:

A metalinguagem, que fornece meios suficientes para definir verdade, deve ser essencialmente mais rica que a linguagem-objeto; nao pode coincidir nem ser traduzível nesta última, pois que, de outra fom1a, ambas as linguagens seriam semantica-mente universais e a antinomia do mentiroso poderia ser reconstmída em ambas. (Tarski 1991.)

A questao retoma aquí: pode-se "derivar" uma versao da antinomia do mentiroso com o conceito de validade empregado?

A resposta é sim. Suponhamos uma linguagem L tal que o predica­do "ser válido" perten¡ya ao seu vocabulário. Tome-se T*, nao trivial e A-saturado; por defini¡yao A e T*; logo, A nao é válida; seja Basen­ten¡ya "A nao é válida" ; B deve ser válida; B E T* se, e somente se, A nao é válida, ou seja,

B é válida se, e somente se, A nao é válida, isto é, "A nao é válida" é válida se, e semente se, A nao é válida. Esta sentenc;:a é do tipo" 's' é válida se, e somente ses," e daí sai

uma versao da antinomia do mentiroso. 6. Se a Iinguagem L de C for suficientemente rica para expressar

a aritmética elementar, uma versao do teorema de Godel pode ser de­rivável. Continua valendo a asserc;:ao "existem sentenc;:as verdadeiras,

1'

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Sobre u cuncciru de supetvc11iéncia em Davitlvcm 161

mas nao demonstráveis"; o conceito de demonstra~ao (que é sintático) nao tcm a mcsma extcnsao do conceito de validade (que é semantico).

Nao é possívcl, portante, em geral, reduzir as propriedades semanticas

as propriedades sintáticas.

Vejamos, agora, uma aplica~ao destas rela~oes entre semántica e sintaxe, para entao retornarmos ao conceito de superveniencia.

Dejini9áo 9. Um grafo G é um objeto da fonna G = (G0, G~, i, f) no qua l G0 e G1 sao conjuntos; i, fsao fun~oes tais que i, f: Gt ----7 G0.

Podemos interpretar G0 como um conjunto de vértices; G1 como um conjunto de flechas orientadas; i e f indicam, respectivamente, o

vértice inicial e o vértice final, em G0.

Exemplo 1: Sejam G0 = {1,2}, G1= {O,T)}.

Pela definiyao, G = ( { 1,2}, {0,11}, i, f). Como i indica o vértice fi­nal e f indica o vértice final, en tao i(O) = 1, f(T)) = 2, i(O) = f(Tl) = 2.

Definifáo JO. Um sub-grafo X de G é urna quádrupla X = (Xo, X~. i, f) na qual X0 ~ 0 0; X 1 ~ G 1 e ta l que toda flecha em X 1 tem vértice inicial e final em X0. Se X é sub-grafo de G, nós escrcvemos X S G.

Definifáo 11. Considere, agora, a estrutura KG = < P(G), S,j>, na

qual P(G) é um reticulado (o conjunto de todos os sub-grafos de G), ~ é a rela~ao já definida e f é urna fun~ao tal que f FOR ~ P(G), com FOR o conjunto das fórmulas de urna linguagcm proposicional fixada.

Para elementos g(A), g(B), g(C) de PG, isto é, sub-grafos de G, a es­trutura KG satisfaz, ainda, as seguintes condi~oes:

l . f{A) = g(A), se A é urna fórmul a atómica.

2. f{A 1\ B) = g(A) n g(B). 3. f{A V B) = g(A) V g(B).

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162 Gioi'OIIIIi da Silva Queiro:

4. /{A :J B) = sup {g(C), tal que g(C) 1\ g(A) ~ g(B)}.

5. /(-,A) = menor sub-grafo g(B), de G, tal que g(B) u g(A) = G, ou seja, inf {g(B), tal que g(B) u g(A) = G}.

Observac;:ao: Nós exigimos, confonne Definic;:ao 1 O, num sub­grafo, que toda flecha tenha vértices, inicial e final , bem definidos. Note ainda que se g(A) ~ g(B), entao v(A :J B) = G.

a) Seja o exemplo l , dado anteriormente, e tomemos P(G), o conjunto de todos os subconjuntos do grafo G. Consideremos o sub­grafo g1 dado por ({1,2}, {8}, i, f) ; o menor sub-grafo g, de G, tal que g 1 u g = G é o sub-grafo g2 dado por ( {2}, {11}, i, f) ; assim, g2 é cha­mado o complemento de g¡, denotado por c(g1) , ou a inda -,g1; mas, observe-se que g1 n g2 é o sub-grafo dado por ( {2}, 0, i, f) :~; 0 ; note que esta possibilidadc nao está excluí da de nossa Definic;:ao 1 O, pois

ali se exigiu que toda flecha em X 1 tivesse vértice inicial e vértice fi­nal em X0. Pontos isolados sao também sub-grafos. Portanto, existem estruturas KG tais que, dado um sub-grafo g, g n -,g :~; 0; assim,

Duns Scotus, e seus correlatos, nao sao válidos. b) Tomemos, agora, os pontos isolados 1 e 2 , ou seja, o sub-

grafo g3 = ( { l ,2} , 0 , i, f) ; se u complementaré o próprio sub-grafo G e o complementar de G, em P(G), é o sub-grafo vazio; assim, nao ocorre

que g3 ~-, -, g3. Já foi mostrado que esta semantica é adequada para a lógica para­

consistente CCro, desenvolvida por Richard Sylvan, em 1990, sobre a lógica paraconsistente Cro de Newton C. A. da Costa (Q~eiroz e Lu­ccna, 2001).

Poderíamos definir um grafo como um conjunto com dois tipos de elementos estruturados, flechas e vértices, obtidos pelas relac;:oes in­ternas dadas pelas func;:oes i e f. Tal proccdirnento simplificaría a no­tac;:ao e as re lac;:ocs entre o grafo G e scus sub-grafos. O exemplo l seria, enHio, escrito como o conjunto G = { 1, 2, 8, 11 }. Teriamos, en­

tao, o seguintc reticulado P(G).

' •

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Sobre o conceilo de superi'CIIiéncia em Dm·itlwn

G

/~ {1~;2·~

{1,2} {2,11}

{IV ~/

0

163

Os sub-grafos referidos nas observa<;oes (a) e (b) acima, após a De­fini<;ao ll, seriam, simplesmente, os conjuntos g1 = { 1, 2, o} , g2 = {2, 11 }, g3 = {2} e os conjuntos G e o vazio.

O problema de se tomar sub-grafos como conjuntos desse tipo está em que, ao se estabelccer a opera<;ao de complcmcnta<;ao, da teoria dos conjuntos, é necessário fazer uma detenninada escolha, pois o complemento de g, c(g), cm geral, nao é um grafo. Por exemplo, o complemento de g~, nesta notar;:ao, é o conjunto {11}, que nao é um grafo, pois foi exigido que toda flecha tivesse vértice inicial e vértice final no conjunto dos vértices. Por isso, tomamos como complemento de g~. em nossa discussao após a observa<;ao (a), a quádrupla ( {2}, {11}, i, f) que é equivalente, nesta nova nota<;ao, ao conjunto {2, 11} -este, é um grafo, conforme exige a defini<;ao. Mas era possível outro caminho para se pensar a operar;:ao de complementar;:ao. O caminho que tomamos foi o de "completar" o complemento para satisfazer a dcfini<;ao; se, ao invés disso, tivéssemos "descartado" o complementar "problemático," obteríamos outra nega<;ao que, entretanto, nao mais se

o

Page 163: Epistemologia. Anais do IV  Simpósio Internacional Principia, Parte1

164 Giol'onni da Silva Queiro;:

prcstava para lógicas para-consistentes. Apenas como exemplo, esta nova possibilidade nos obrígava a tomar como o conjunto complementar de g~, o conjunto vazío. Isso pode ser feíto foJmalmente, como a seguir.

A condit;:ao 5 da Defini9ao 11 , na qua! foi dada a condi9ao da ava­líayao da nega9ao, poderia ser modificada para a seguínte:

5.1 v(-. A)= maior sub-grafo g(B), de G, tal que g(B) n g(A) = 0, ou seja, sup {g(B), tal que g(B) n g(A) = 0} .

Neste caso, entao, nao mais se teria urna semantíca para CCro, mas uma semantíca para o cálculo intuicíonísta de Heyting. Com efeito, note-se que, agora, valem os seguintes esquemas: A A -, A ::> B; pois, gl (= { 1, 2, 8}) n c(g1) = 0 e, portanto, valem Duns Seo tus e seus correlatos; por sua vez g1 u c(g1) ~ G, o que mostra que nao vale a leí do terceiro excluído.

lsso mostra que a interpreta<;:ao de propriedades semantícas, no ca­so, apenas a interpreta9ao da ncga<;:ao, modifica, por completo, a lógi­ca que está sendo tomada em considera9ao.

IV. Conclusoes

É o momento de voltarmos ao conceíto de superveniencia. As rela<;:oes entre sintaxe e semantica formais sao tomadas, por

Davidson, como exemplo do que ele deseja afirmar com a superveni­encia. Com efeíto, dada urna determin~da lógica (um sistema dedutivo qualquer) podemos estudá-la sintaticamente ou semanticamente. Se pensarmos as rela<;:oes entre estas abordagens (neste trabalho privile­giamos a abordagem semantica), podemos afirmar:

l. Há urna co-varia<;:ao entre a abordagem sintática e a abordagem semantica; a modifica9ao sintática de determinado sistema formal im­plica modifica<;:ao na abordagem semantica; obviamente, pode-se dar a mesma abordagem semantica para sistemas formais distintos do ponto de vista sintático - basta pensar nas diversas foJmulayoes do cálculo proposicional clássico (que se revelam, após análise, equivalentes):

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Sobre o conceito de SlljJeiTtmiéncia em Dtll'idson 165

2. Nao é possível reduzir determinados conceitos semanticos a conceitos sintáticos - e excmplo de Davidson, acerca do predicado "ser verdadeiro" é muito feliz. Outros exemplos podem ser lembrados - o de "ser definí ve!" (Tarski 1936).

3. Masé possível que uma varias:ao numa interpreta9ao modifique propriedades sintáticas. O exemplo que apresentamos é desse tipo. Dado um certo reticulado, induzido por urna deter-minada maneira de definir o que seja um objeto desse reticulado (no caso particular, indu­zido pela definis:ao de sub- grafo, Definit;:ao 1 O, a o se interpretar o que seja um complemento de um objeto do reticulado, tem-se duas situa­s:oes: se o complemento é interpretado de forma " liberal', pennitindo­se que seja "completado o sub-grafo" para que satisfas:a a exigencia da definis:ao, tem-se, do ponto de vista sintático, urna determinada lógica (no caso, a lógica paraconsistente CCro); se, ao invés disso, assumin­do-se urna postura "mais exigente," descarta-se o sub-grafo "proble­mático," tem-se, por conscqüencia, do ponto de vista sintático, uma outra lógica, no caso, a lógica intuicionista formulada por Heyting.

Assim, parece que nao se sustenta a dires:ao única da sintaxe para a semantica, ou seja, se pensannos nas relas;oes, cm geral, entre seman­tica e sintaxe como sendo a semantica superveniente sobre a sintaxe, parece que nao é correto afirmar que a semantica é dependentc da sin­taxe. A bem da verdade, Davidson nao afinna isso: o que ele afinna é que o predicado verdade, que é scmantico, é superveniente a predica­dos sintáticos. O que mostramos é que, sob certas condis;oes, a seman­tica induz a sintaxe, e a sinta?Ce fica dependendo, assim, de interpreta­s;ocs (que sao semanticas).5

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Notas

Giovanni da Silva de Queiroz Profcssor do Departamento de Filosofia da UFPB

Doutor em Lógica e Epistemología (Unicamp, 1998) Membro do GT -Filosofia da Mente da ANPOF

1 Ver Kim 1995, pp. 575- 83. 2 Para urna discussao acerca da causa9ao mental ver o número especial da revista Manuscrito, vol XXV, 2002 (Proceedings of the Third Intemational Colloquium in Philosophy of Mind, Joao Pessoa, march 2002, André Leclerc, Giovanni Queiroz e Michael Wrig1ey, eds.). 3 Ver, entre outros, o texto de Donald Davidson, 1980, "The Lndividuation of Events," em seu Essays on Actions and Events, Oxford, p. 163- 80; a obje9ao

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168 Giovanni da Silva Queiro;:

de W. V. O. Quine, 1985, "Events and Reification," em Actions and Events: Perspectives on The Philosophy of Dona Id Davidson (Emest LePore & Brian McLaughlin, eds), pp. 162- 71, a réplica de Davidson nesse volume ("Reply to Quine on Events," 1985b, p. 172- 76), E. J. Lowe, 1989. "What is a criterion of identity?" The Philosophical Quartely (vol. 39, n. 154, especialmente p. 7), e Hi1ary Putnam ( 1999), The Threefold Cord. Nova York: Columbia University Press, p. 75. 4 Ver, entre outros, Alves, E.H. Lógica e Inconsistencia: um estudo dos cálculos C11, 1 S:nS:(J). Sao Pau1o, Disserta~ao de Mestrado/USP, 1976. Costa, N.C.A da e E. H. Alves. "A semantical analysis of the calculi Cn,'' Notre Dame Journal of Formal Logic, 18(1977), p. 621-30. Loparic, A. e N. C. A. da Costa. "Paraconsistency, paracompleteness and va!uations," Logique el

Analyse 106 (1984), p. 119-31. Souza, E. G. "Lindenbaumologia 1: A teoría geral," Cognitio 2 (2001), p. 213-19, que tem urna abordagem mais técnica do que expomos aqui e traz novas referéncias bibliográficas. 5 Agrade¡yo a André Leclerc por me fazer ver o que nao havia percebido; Tiago Penna e Makmiller Martins Pedroso fizeram sugestoes que tomaram o texto mais claro em rela¡yao ao que pretendía dizer.

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Identidad y prueba geométrica

Jorge Alberto Molina UN!SCIUERGS

l. Introducción: la matematización del conocimiento

En este trabajo nos referiremos al ideal de matematización del cono­cimiento, propio de la tradición racionalista de la Filosofía Moderna, a partir de los escritos de Leibniz. El tema es muy amplio. Matematizar un conocimiento significaba en el siglo XVII colocarlo en forma de­mostrativa, como una estructura donde a pattir de un conjunto finito de axiomas, postulados y defmiciones son deducidos los enunciados que son considerados verdaderos. Esto es, matematizar un conoci­miento significaba presentarlo en forma axiomática. El modelo de sis­tema axiomática de la época era aquel dado por la exposición de la Geometría elemental en los Elementos de Euclides.

En el caso de Leibniz la cuestión merece ser analizada en una for­ma muy cuidadosa. En la época de Leibniz una exposición del saber more geometrico podía significar dos cosas: O un~ exposición sintéti­ca como la que encontramos en los Elementos o una exposición analí­tica como la de la GeometrÍa de Descartes. En el análisis buscamos las condiciones que hacen posible la resolución de un problema o la de­mostración de un enunciado; en la síntesis obtenemos consecuencias de los enunciados reconocidos como verdaderos o de los problemas ya resueltos.

Por otro lado, el modelo matemático de Leibniz no es el geométri­co de los Elementos, mas el aritmético. Eso hace que Leibniz tenga una concepción de la demostración diferente de la mayoría de los

Dutra. L. H. de A. e Mort;~ri. C. A. (orgs.). 2005. Episii!IIIUiogia: Anaís do 11' Simpósio /ntemacional. Principia - !'arte l . Florianópolis: NEUUFSC. pp. 169- 189.

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170 Jorge Alberto Malina

científicos y filósofos del siglo XVII. Una demostración consiste para Leibniz en una cadena de enunciados de identidad que se genera de adelante para atrás, por medio de la sustitución de cada ténnino por su definición, y que concluye en enunciados del tipo A es A o AB es A . Leibniz no hacía explícitas las reglas de inferencia que permitirían pasar de un enunciado de identidad a otro, mas implícitamente hacía uso de la posibilidad de sustituir un término por su equivalente, y por otro lado usaba explícitamente la regla de reducción al absurdo.

Como en la aritmética tenemos igualdades, y la relación de igual­dad es simétrica (si a=b entonces b=a) parecía ser posible, para Leib­niz, eliminar la distinción entre análisis y síntesis. En la Geometría no es posible en todos los casos transfonnar el análisis en síntesis debido a la asimetría de la relación de consecuencia lógica. De las premisas podemos inferir la conclusión, mas no parece ser siempre posible infe­rir de la conclusión Gunto con otras hipótesis consideradas como ver­daderas) la totalidad de las premisas. Leibniz pensó que en aquella ciencia esa transfonnación sería posible, si previamente se efectuase la demostración de los axiomas de Euclides a partir de enunciados de identidad. Mas para conseguir ese resultado, juzgó que era necesario dar nuevas definiciones de las entidades geométricas básicas, como punto y línea, así como introducir una nueva notación simbólica que llamó característica geométrica. Propuso muchas versiones de la ca­racterística geométrica sin haber llegado a una concepción definitiva.

En numerosos textos, Leibniz se refirió a la necesidad de sustituir las disputas por el cálculo, la argumentación por la demostración, la ars disputandi por la ars calculandi. A partir de la lectura de esos tex­tos parece ser posible inferir que Leibniz deseaba la matematización de todos Jos saberes, y que su programa de construcción de una carac­terística universal respondía a ese propósito. Aún en áreas como el Derecho y la Ética, Leibniz consideró posible realizar ese ideal 'mate­matizan te. En ese tipo de saberes que se refieren a lo que es objeto de deliberación o a lo que puede ser de un modo u otro, Leibniz pensó posible obtener un cierto grado de matematización por medio del uso de una lógica probabilística que pudjese determinar ex datis los grados

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ldemidady prueba geométrica 171

de probabilidad de los enunciados que se refieren a dichas materias. Pensó que en el trabajo de los antiguos jurisconsultos romanos, había un esbozo de saber demostrativo. En esos raciocinios eran pesados los diferentes argumentos y pruebas presentados a favor de una determi­nada afirmación, y después de una evaluación, se concluía sosteniendo la afirmación cuyo grado de probabilidad era mayor. Leibniz dudó entre dos formas de concebir la probabilidad: por un lado adoptó una concepción epistémica donde la probabilidad mide el grado en que un enunciado se aproxima de la verdad, una medida del grado de verosi­militud de un enunciado, por así decir; por otro lado adoptó una con­cepción objetiva de la probabilidad originada a partir del estudio de los juegos de azar. En todo caso, lo que es importante señalar, es que en Leibniz encontramos el esfuerzo por extender la aplicación de las matemáticas a determinados dominios considerados tradicionalmente imposibles de ser abordados matemáticamente. De hecho Leibniz es­taba abandonando una serie de distinciones entre distintos tipos de razonamiento que habían sido formuladas por Aristóteles. Por ejem­plo, en la Ética a Nicómaco, I, 3 leemos la afirmación de que es irra­zonable exigir en cuestiones de Ética el mismo grado precisión que tenemos en la Geometría.

Leibniz afirmó también la posibilidad de matematizar la Física, empresa en la cual Descartes había fracasado. En numerosos escritos atacó la metodología de los filósofos experimentales ingleses que rea­lizaban experiencias sin ningún orden, y eran incapaces de obtener conclusiones generales a par~ir de esas experiencias, limitándose a afirmar generalidades como que todo lo que sucede en la naturaleza "debe ser explicado por la magnitud, la figura y el movimiento." Para Leibniz, la Física debería tener un doble método: por una parte orde­nar los experimentos e inventariar sus resultados, por otra parte de­mostrar (inferir) a partir de esas experiencias . Por demostrar a partir de las experiencias, Leibniz entendía el proceso de formular hipótesis

que explicasen los datos experimentales y deducir consecuencias a partir de esas hipótesis. Si esas consecuencias concordasen con los fenómenos observados, ese hecho sería una buena razón para afirmar

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174 Jorge Alberto Mofina

NiioA

Absurdo

A

En Leibniz esa regla de inferencia puede ser leída así

A es no 8

Absurdo

A esB

Para Leibniz el sentido primigenio de la negación es la negación conceptual. Negar que A es B significa afinnar que A no es B. Leibniz consideró que la forma canónica de las proposiciones es la forma A es B (sujeto-predicado). Interpretaba la regla de reducción al absurdo de la siguiente fonna: de la imposibilidad que una proposición sea falsa, se sigue que ella es verdadera. Mientras que nosotros hoy interpreta­mos la regla de una fonna puramente sintáctica, en la interpretación de Leibniz están envueltos aspectos semánticos relacionadas con la ver­dad y las modalidades.

Según Leibniz las proposiciones que los matemáticos llaman axiomas, pueden ser reducidas a enunciados de identidad descompo­niendo por análisis su sujeto y su predicado En un trabajo del áño 1671-1672 afinnaba

A mi entender no hay que aceptar ninguna proposición sin prueba y ninguna palabra sin explicación. (. .. ) La explicación de una palabra es su definición. La explicación de la proposición es igual a su demostración.4

Para Leibniz realizar una demostración de un axioma consiste en mostrar que ese axioma se deriva a partir de definiciones y de enun-

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ldemidad y prueba geomélrica 175

ciados de identidad, una vez hallamos analizado los conceptos que aparecen en el axioma. Las reglas de inferencia usadas por Leibniz eran dos: sustitución de un ténnino por su definición y reducción al absurdo.

Leibniz tenía in mente dos modelos de análisis conceptual. Uno es e l modelo numérico, por analogía con los números naturales. Así co­mo un número natural se descompone en producto de factores primos, así pensaba Leibniz que un concepto puede descomponerse en concep­tos más básicos.5 El otro modelo es el analítico, cuando descompone­mos 7t/4= l-113+ 1/5- 117 .. . . Hay una diferencia entre los dos modelos, en el modelo numérico obtenemos una lista fi nita, en el modelo analí­tico una secuencia infinita, dada, sin embargo por una ley.

Leibniz era consciente de nuestras limitaciones para realizar el aná­lisis conceptual

Non videtur satis in potestate humana esse Análisis Conceptuum, ut scilicet possimus pervenire ad notiones primitivas, sed ad ea quae per se concipiuntur. Sed magis in potestate humana est analysis veritatum, mlultas enim veritates possimus absolute demonstrare et reducere ad veritates primitives indemostrabiles; itaque huic potissimum incum­bamus.6

Leibniz distingue entre nociones y verdades. Es la distinción que hacemos hoy entre conceptos y enunciados respectivamente. La de­mostración de una verdad a partir de un conjunto de verdades primiti­vas, exige muchas veces que redefinamos sus términos. Ese análisis de los términos muchas veces no nos permite llegar a nociones primiti­vas, eso no impide sin embargo, que podamos realizar la demostración de esa verdad. Llevando a cabo un análisis más profundo de los con­ceptos podremos modificar y mejorar nuestras demostraciones. Una demostración de una verdad, nunca es algo definitivo, mas un obra perfectible, que puede ser mejorada. Pmeba de ello, lo encontramos en los sucesivos intentos de Leibniz de demostrar los axiomas de Eucli­des.

Como ejemplo de ese proceder Leibniz dio varias demostraciones

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del axioma de Euclides el todo es mayor que cualquiera de sus partes. Vale la pena presentar la demostración dada por Leibniz en el trabajo del año 1671-1672 citado aniba, porque señala el tipo de trabajo que Leibniz realizará postcrionnente

Proposición: El todo CDE es mayor que la parte DE

A. ______ B

e D E

Leibniz define el concepto " mayor" de la forma siguiente. "Ma­yor" es aquello cuya pa1ie es igual a otro todo.

Demostración: Aquello cuya parte es igual a otro todo, es mayor por definición de mayor. Una parte del todo CDE ( a saber DE) es igual al todo DE ( a saber a si mismo). Por lo tanto, CDE es mayor que DE. La demostración se apoya en la definición de mayor. Obser­vamos que en la prueba el concepto de " todo" es instanciado ppr me­dio de un segmento.

El deseo de probar Los axiomas de la Geometría nunca abandonó a Leibniz. En su trabajo Sobre el análisis y la síntesis universal Leibniz afirmaba

A partir de estas ideas o definiciones,. pues, pueden demostrarse todas las verdades, excepto las proposiciones idénticas, las que por su natu­raleza es patente que son indemostrables y a las que realmente se las puede llamar axiomas. Pero los axiomas ordinarios pueden ser reduci­dos a identidades, es decir, pueden ser demostrados por resolución del sujeto o del predicado, o de ambos, porque si se supusiera lo contrario surge que es lo mismo ser y a la vez no ser.7

En los Nuevos ensayos sobre el entendimiento humano IV, 7, p. 448, Leibniz se refiere a los Elementos de Geometría de Arnauld. Ar­nauld asumía como axioma que cuando a magnitudes iguales se le

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ldemidady prueba geomélrica 177

suman magnitudes iguales, permanece la igualdad. Con base en ese supuesto demuestra el otro axioma de Euclides de que si a magnitudes iguales se le restan magnitudes iguales la igualdad pennanece. Ar­

nauld recibió críticas por ese proceder. Se afirmaba que o debía asu­mir las dos proposiciones como axiomas o probarlas a las dos. Para Leibniz el sólo hecho de que Amauld hubiera conseguido reducir el número de axiomas era importante. El defecto más importante que Leibniz encontraba en. las demostraciones de Euclides e 'est, qu 'on suppose des a.·riomes qu 'on pourroit demonstrer. 8

Para someter a prueba la conjetura de que todas las demostracio­nes pueden ser realizadas a partir de definiciones y de enunciados de identidad Leibniz examinó las dos teorías deductivas más conocidas del siglo XVII: la geometría de Eucl ides y la Lógica de Aristóteles.

En el caso de la silogística aristotélica, Leibniz intentó realizar la reducción de los silogismos válidos a silogismos de la primera figura usando solamente la regla de reducción al absurdo, dispensando el uso de la regla de conversión.9 Para la Geometría el camino abo~dado por Leibniz fue otro. Intentó sustituir las definiciones de las entidades bá­sicas de los Elementos (punto, recta, plano) por definiciones de enti­dades que Leinbiz juzgaba más básicas como situación (si tus), trayec­toria (via), congruencia (congruentia) y distancia (distantia). Habien­do cambiado las definiciones, Leibniz esperaba poder demostrar los axiomas de Euclides. Para que esta empresa tuviera éxito, Leibniz pensaba que era necesario introducir una nueva notación simbólica: la característica geométrica. ~sa notación, constituiría un lenguaje for­mal apto para representar los conceptos y las demostraciones geomé­tricas.

Detrás de esta intento de Leibniz de dcmostar los axiomas de Eu­clides se encuentran dos influencias: la primera es la de Pascal. La segunda tiene que ver con toda un proyecto del siglo XVII de cons­trucción de lenguajes artificiales.

Me referiré en primer lugar a la influencia de Pascal. Pascal en su opúsculo L 'Esprit de la Géometrie propone un ideal de método

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Je veux done faire entendre ce que c'est que demonstration par 1 'exemple de celles de géométrie, que est presque la se u le des sciences humaines quien produisse d'infallibles, paree qu'elle seule observe la véritable méthode, au lieu que toutes les autres sont par une necessité naturelle dans quelque sort de confusión que Jes ·seuls géometres sa­vent extremement reconnaitre.

Cette véritable méthode, que formerait les démonstrations dans la plus haute excellence ... consisterait en deux coses principales: !'une, de n 'employer aucun terme dont on n'eut auparavant expliqué nette­ment le sens; l'autre, de n'avancer jamais aucune proposition qu' on ne démontrat par des vérités déja connues; c'est a dire, en un mot, a definir IOUS Jes termes et a prouver touteS les propositions. 10

Pascal reconoce que este ideal no es realizable

Certainement cette méthode serait belle, mais elle est absolument imposible: car il est evident que les premiers termes qu'on voudrai t définir, en supposeraient de precedents pour servir a Jeur explication, et que de meme que les premieres propositions qu'on voudrait prouver en supposeraient d 'autres qui les précédassent; et ainsi il est clair qu'on n'arriveraitjamais aux premieres.

Aussi, en poussant les recherches de plus en plus, on arrive néces­sairement a des mots primitives qu'on ne peut plus définir, et a des principes si clairs qu'on n 'entrouve plus qui le soient davantage pour servir a leur preuve. 11

Debido a nuestras limitaciones intelectuales, debemos, según Pas­cal aceptar ciertos términos como no defmidos y determinados axio­mas sin prueba, para a partir de ellos poder demostrar las demás ver­dades.

2.2. La característica universal

El segundo aspecto al que me referiré es a la Característica geométri­ca. Tenemos que situar la Característica geométrica dentro del ambi­cioso programa de consttucción de una Característica universal. El

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Identidad y pr11eba geométrica 179

siglo XVII asistió a varios intentos de construir lenguajes universales artificiales, uno de ellos fue el de Leibniz. Una cita de F. Bacon nos ayuda a entender en que consistía el programa de constmcción de len­guajes artificiales

Es sabido desde hace un tiempo que en China e en las regiones del Ex­tremo Oriente están en uso hoy caracteres reales , pero no nominales, esto es que no expresan letras y palabras, mas cosas y nociones . De ese modo, personas de las más diversas lenguas, que admiten este tipo de caracteres se comunican entre sí por escrito; y, de ese modo, un li­bro escrito en esos caracteres puede ser leído y traducido por cualquie­ra en su propia lengua . Las notae rerum, que significan las cosas sin la obra y la intermediación de las palabras, son de dos tipos: uno basa­do en la analogía, el otro en la convención. Del primer tipo son los je­roglíficos y los gestos, del segundo tipo son los caracteres reales de los que ya hablamos.12

Los caracteres reales expresan cosas o nociones (conceptos) direc­tamente, sin la intennediación de las palabras. Nuestra escrita alfabéti­ca, por el contrario, expresa sonidos con cuya combinación se fonnan las palabras, que expresan pensamientos y cosas. Leibniz define a los caracteres reales de la siguiente forma

Characterem voco, notam visibilem cogitationes repraesentantem. 13

La escritura por medio de caracteres reales, puede ser comprendida por cualquiera que sepa que significa cada símbolo. Puede ser enten­dida por personas de lenguas diferentes, pero tiene el defecto de que exige un número muy grande de símbolos, dada la gran multiplicidad de cosas y de pensamientos. Bacon era consciente de esta limitación

Es claro que este tipo de escritura exige una cantidad muy grande de caracteres, que deben ser tantos cuanto lo son los ténninos radicales. 14

Leibniz concibió una forma de retener las ventajas de la escrita por medio de caracteres reales, sin tener qtie cargar con sus desventajas.

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180 Jorge A IberiO Molina

La ventaja, como vimos, era que cada símbolo de la característica universal expresa directamente una cosa, o un concepto. La desventaja estaría dada por el hecho de necesitar un símbolo para cada cosa o concepto. Pero, si nuestros conceptos pudieran descomponerse en conceptos básicos, y si esos conceptos básicos formasen una lista fini­ta, entonces nuestro problema estaría resuelto. Sería necesario asociar a cada concepto básico un carácter, y por medio de la combinación de esos caracteres podríamos expresar todos nuestros pensamientos.

Mihi vero rem altius agitanti, dudum manifeste apparuit. Omnes hu­manas cogitationes in paucas admodum resolví tanquam primitivas, quod si his characteres assignentur, posse inde formari characteres no­tionum derivativarum ex quibus, semper ornnia earum requisita notio­nesque primitivae ingredientes, et ut verbo dicam definitiones sive va­lores et proinde et affectionis ex definitionibus demonstrabiles, erui possunt

Pero, por otra parte, hace tiempo me pareció manifiesto , considerando las cosas de un modo más profundo, que todos los pensamientos humanos se descomponen perfectamente en pocos pensamientos pri­mitivos de modo que si a estos (pensamientos primitivos) son asocia­dos caracteres, entonces puedan a partir de ahí, ser formados caracte­res de las nociones derivadas, a partir de los cuales puedan ser extraí­dos siempre todos los componente necesarios de aquellas, y todas las nociones primitivas que están en ellas, y por así decir las definiciones o valores y las propiedades demostrables a partir de las definiciones. 15

Habiendo construido esta característica universal podremos obte­ner las propiedades demostrables de las cosas a partir de sus defini­ciones. Leibniz ya había concebido en su juventud la idea de una alfa­beto del pensamiento humano. Su inspiración provenía de la Ars Magna de Raimundo Lull y de Computatio sive Logica ( la primera parte del De Co1pore de Hobbes).

El siguiente texto sugiere una fue1te influencia hobbesiana en Leibniz:

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/delllidad y prueba geonuitrica

Quod sane admirabile beneticium hactenus solae praestant notae Arithmeticorum et Algebristarum, ubi ratiocinatio omnis in usu cha­racterum consistit, et ídem est error animi qui calculi. 16

Omnis Ratiocinatio nostra nihil aliud est quam Characterum connexio et substitutio. Sive illi characteres sint verba, sive notae, sive denique imagines. 17

181

Debemos analizar con cuidado estos textos. Por un lado muestran lo que podríamos llamar el sintactismo de Leibniz. Pensar consiste en calcular, en sustituir un símbolo por otro, en percibir la conexión entre símbolos. Por otro lado muestran que Leibniz explícitamente quería terillinar con una distinción aristotélica que nosotros podríamos re­fonnular como la distinción entre demostración y argumentación. Se­gún la tradición aristotélica, no podemos exigir en todos los dominios la misma precisión que en la geometría, así no podemos exigir en la Ética o en la Política el mismo grado de precisión que en la geometría

Por el contrario Leibniz afirmaba:

L'unique moyen de redresser nos raisonnements est de les rendre aus­si sensibles que le sont ceux des mathematiciens, en sorte qu' on puisse trouver son erreur a veue d'oeil, et quand il y a des disputes entre les gens, on puisse dire seuelement: contons, sans autre ceremonie, pour voir lequela raison. Si les paroles estoient faits suivant un artífice queje voy posible, mais

dont ceux qui ont fait des langues universelles ne se sont pas avisés on pourroit arriver a cet effect par les paroles memes ( ... ) Mais en atten­dant il y a un autre chemin moins beau, mais qui est dejá ouvert ( ... ) C'est en se servant de caracteres a l'exemple des mathematiciens, qui sont propres de fixer nos tre Esprit, et en y ajoutant une preuve des nombres. 18

Encontramos sin embargo, una diferencia con Hobbes. Leibniz afirma en su Diálogo sobre la conexión entre las cosas y las palabras " advierto que si los caracteres pueden aplicarse al razonamiento debe

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haber en ellos una construcción compleja de conexiones, un orden, que convenga con las cosas si no en las palabras individuales al menos

en su conexión y flexión." En el mismo diálogo reconoce que" aun­

que los caracteres sean arbitrarios, su empleo y conexión tiene sin em­bargo algo que no es arbitrario, a saber cierta proporción entre los ca­racteres y las cosas y en las relaciones entre los diversos caracteres que expresan las mismas cosas. Y esta proposición es e l fundamento de la verdad."19 Habría un isomorfismo. El orden entre los caracteres debe representar e l orden entre nuestros pensamientos, que por su vez representa un orden entre las cosas. Pero todo esto, quedó en un nivel bastante general, no llegando Leibni z a explicitar claramente la natu­

ra leza de ese isomorfismo.

3. Característica geométrica

Que es esto de la característica geométrica? Es el intento hecho por Leibniz, de construir un lenguaje artificial o un sistema notacional que pudiese representar de una fom1a adecuada todas los entes, nociones y

razonamientos geométricos. Pero que significa en este contexto " for­ma adecuada." La característica geométrica debería petmitir dos co­sas: demostrar los axiomas de Euclides, reducir al máximo los ele­mentos figurativos en las demostraciones geométricas.

Gcometras como Descartes no estaban contentos con el uso de fi­guras en l.as demostraciones geométricas. En primer lugar, el uso de . figura está ligado a la facultad de la imaginación. Facultad finita como lo expresa Descartes. " No puedo imaginarme un quiliógono ( podría decir no puedo dibujar un quiliógono) pero puedo calcular el número de sus lados."20 Por otro lado, el uso de figuras en la geometría podría conducir o a limitaciones o a enores.¿Como se representaban figurati­

vamente los griegos una potencia de segundo grado, como a2 o una potencia de grado tres, como a3? En un caso como el área de una cua­

drado de lado a e en otro como el volumen de un cubo de lado a. Pero de esa fotma era imposible poder representarse figurativamente poten-

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Identidad y prueba geométrica 183

cias de grado mayor que 3. Además, la imaginación puede conducir­nos a errores. Viendo el dibujo del sólido de Torricelli de lados de longitud infinita,21 podríamos creer erróneamente que ese cuerpo tiene un volumen infinito. Para evitar las limitaciones que se siguen del uso de figuras en la Geometría , Descartes introdujo el Álgebra. Descartes pensaba que su geometría algebraica, tendría un carácter más intelec­tual que la geometría de los griegos. Sin embargo, Leibniz formula una objeción central a Descartes. La representación de figuras por me­dio de ecuaciones algebraicas, presupone la verdad de los elementos de Euclides. Por ejemplo, cuando representamos un círculo de radio r por medio de la eucacion x2 + l= r estamos presuponiendo la verdad el teorema de Pitágoras.

On ne voit pas encore dans 1 'Analyse Géometrique une discipline achevée. Meme si, en effet, la méthode de Viete et de Descartes pre­mettait d'y faire presque tout par calcul, en faisant la supposition des Éléments, ce sont eux qui, pour la plupart n'y ont pas encore été ré­duits.22

Se trata para Leibniz de reducir Jos Elementos de Euclides, esto es , de demostrar sus axiomas. Leibniz considera que su característica geométrica, un cálculo cuyo concepto fundamental el el de situación situs permitiría ir más allá de Descartes:

J'ai deja songé a pallier ce défaut em tachant de faire apparltre dans um clalcul tout ce qui concerne la figure et la situation, ce qui e~t nou­veau: les Analystes se contenten! d'y faire entrer les grandeurs en supposant les situations connues a partir la figure, ils ne peuvent done se dispenser de tracer des lignes et des figures et de mettre a contribu­tion l'imagination. 23

La geometría analítica cartesiana no puede prescindir de la imagi­nación. Por otro lado, las operaciones algebraicas en Descartes (suma, resta, multiplicación y radicación) encuentran su fundamento en cons­trucciones geométricas, esto es, en figuras y líneas.

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El proyecto de Leibniz exigía dos cosas: primero, introducir nue­vos conceptos a partir de los cuales pudiesen ser caracterizados los conceptos de las entidades básicas que aparecen en la Geometría de Euclides ( punto, línea, línea recta, superficie, superficie plana, ángulo plano, ángulo rectilíneo). Segundo, introducir una notación simbólica, un nuevo sistema simbólico. Un método que consiste en

expresar una figura no utilizando más que los caracteres, sin la ayuda de explicaciones verbales y sin adjuntar ninguna figura24 (p. 47).

No hay una versión definitiva del proyecto de Leibniz, él realizó varios intentos. En .lugar de comenzar como Euclides con el concepto de punto, Leibniz prefiere comenzar con los conceptos de extensión ( extensum) , continuo (continuum),situación ( situs), espacio ( spa­tium). En un manuscrito que lleva por título De Primis Geometriae E!ementis (Sobre os primeros elementos da Geometría), Leibniz da las siguientes definiciones:25

Extensum: continuum in quo possunt assignari partes quae sunt simul.

Una extensión es algo en lo cual pueden ser asignadas partes que son simultáneas.

Conlinuum autem est in quo partes sunt indefinitae, sive in quo partes mente tantum designantur

Un continuo es algo en lo cual las partes son indefinidas, o en lo cual la mente puede distinguir partes.

Esto nos pem1ite ver la naturaleza ideal (mental) del continuo.

Est autem situs nihil aliud quam status ille rei quo fit ut simul cum ex­tensis certo modo exsitere intelligatur, sive coexistendi modus.

La situación o posición nada más es que aquel estado de una cosa por el cual acontece que ella pueda ser representada de algún modo

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Identidad y prueba geométrica 185

como existiendo simultáneamente con otras cosas extensas; o su modo de coexistencia.

Spatium est in quo per se spectato nihil aliud considerari potest, quam quod extensum est

El espacio es aquello en lo cual visto por si mismo ninguna otra cosa puede ser considerada que lo que es extenso

Con base en estas definiciones Leibniz define punto de la siguiente manera:

Punctum est in quo per se nihil aliud spectari potest, quam quod situs habet.

Esto es, el punto es aquello en lo cual ninguna otra cosa puede ser considera además de la situación.

De esto se sigue la definición euclidiana de que un punto es aquello que no tiene partes.

Punctum autem est indivis ibile alioqui in eo sepctari possint partes, ac proinde praeter situm extensio

El punto es indivisible, de otro modo en él podrían ser considera­das partes, y además de la situación, la extensión, contradiciendo la definición de punto.

Dos puntos determinan una recta. ':Id autem quodo duobus punctis assumtis determinatur, est extensum simplicissimum quod per ipsa transit, hoc autem vocamus rectam." Aquello que es determinado por dos puntos dados, es la extensión más simple que pasa por ellos, y que nos llamamos recta. Euclides por el contrario define recta como una línea que yace unifom1ementc con sus puntos sobre sí misma.

En otro texto que lleva el título de Charracteristica Geometrica, 26

Leibniz define línea como la trayectoria de un punto

Ligne, laquelle peut aussi éter representée par le mouvement du point

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b parcourant une certaine trajectoire et dont on considere qu' elle laisse autant de traces qu 'il y a des points 3b6b9b differents ( ... ) elle peut aussi éter désignée en abregé par: ligne yb en designan! par y ou par tout autre lettre un ensemble de nombres ordinaux arbitrairement choisis.27

En la notación leibniziana los puntos son simbolizados por letras mayúsculas.

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Notas

Jorge Albet1o Malina Doctor por la Universidade Estadual de Campinas, (UNICAMP)

Profesor de la Univcridade de Santa Cruz do Sul (UNISC) Profesor de la Universidade do Estado de Rio Grande do Sul (U­

EROS), Brasil

1 Diálogo sobre la conexión ente las cosas y las palabras, Leibniz, 1980 p.173- 7.

Descartes 1973, p. 45. 3 Es claro que podían ser inferidas las premisas de las que se seguía una con­clusión. En ese tipo de inferencia consistía el método de análisis. Mas esa no es una inferencia deductiva. De ahí se seguía la imposibilidad de transformar el análisis en síntesis. 4 Demostración de las proposiciones primarias, Leibniz 1980, p. 85. 5Sobre la síntesis y el análisis universal, es decir sobre el arte de descubrir y el arte de juzgar. Leibniz 1980, p. 194-202 6No parece que el análisis de los conceptos esté suficientemente en el poder de los hombres, para que podamos llegar a las nociones primitivas, y no sólo a aquellas que son concebidas por sí. Pero está más en el poder de los hom­bres el análisis de las verdades, muchas verdades podemos absolutamente demostrar y reducir a verdades. primitivas indemostrables; por consiguiente nos ocuparemos principalmente de esto. (Traducción mía) Leibniz, 2000, p. 3. 7 Sobre la síntesis y el análisis universal. Leibniz 1980, p. 199. 8 Se suponen axio~as que se podrían demostrar (traducción mía) Leibniz 1988, p.l80. 9 Nuevos Ensayos Libro 4, cap. VII. 10 Quiero dar a entender lo que es una demostración por médio del ejemplo de aquellas que aparecen en la geometría, que es casi la única de las ciencias humanas que produce demostraciones infalibles, puesto que ella es la única que observa el verdadero método, mientras que todas las otras están por una necesidad natural en algún tipo de confusión que solamente los geómetras pueden reconocer. Ese verdadero método, que daría a las demostraciones su excelencia más alta ( ... ) consistiría en dos cosas principales: una, no emplear ningún término cuyo sentido no se haya explicado antes con claridad: la otra, no aceptar nunca ninguna proposición que no se demuestre por medio de ver-

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dades ya conocidas; es decir, en una palabra, definir todos los términos y ~robar todas las proposiciones. (Pascal 1986 p. 17).

1 Ciertamente este método sería bello, sin embargo, él es absolutamente im­posible: puesto que es evidente que los primeros ténninos que se quiere defi­nir, supondrían ténninos precedentes que sirviesen para explicarlos, y que , de la misma forma, las proposiciones primeras que se quiere probar supon­drían otras que las precediesen; y así, de esa fom1a, es claro que no se llegaría nunca a las primeras. (Pascal 1986, p. 19). 12 Bacon apud Rossi 1992. 13 Llamo caracter a la marca visible que representa pensamientos (Traducción mía) Leibniz, 2000, p.169. · 14 Bacon, apud Rossi 1992. 15 Leibniz 2000, p.l8. 16 Hasta aquí, esa sana y admirable beneficio, solamente los han proporciona­do las marcas de los aritméticos y los algebristas, donde todo razonamiento consiste en el uso de caracteres, y es lo mismo un error del espíritu que un error de cálculo. (la traducción me pertenece) Leibniz, 2000, p.l8. 17 Todo razonamiento no es outra cosa que la conexión y la sustitución de caracteres, sean estos caracteres, palabras, marcas o finalmente imágenes (la traducción me pertenece) GPYII, p. 31. 18 El único médio de corregir nuestros razonamientos es dejarlos tan sensibles como lo son los de los matemáticos, de modo que se pueda encontrar su error a simple vista, y cuando haya disputas entre las personas se pueda decir so­lamente: contemos, sin otra ceremonia, para ver quien tiene razón. Si las palabras estuvieran hechas según un artificio que yo veo posible, pero

del cual no han tomado conciencia aquellos que han hecho lenguajes artificia­les, se podría obtener ese efecto, por medio de las mismas palabras ( ... ). Pero aguardando esto, hay un camino menos bello, mas que está ya abierto ( ... ) Consiste en servirse de caracteres, como los matemáticos, que son adecuados para fijar nuestro espíritu, y adjuntando a esto una prueba por medio de nú­meros. '(la traducción me pertenece) Projet d'un art d'inventer, Leibniz 1988 B· 176-7. 9 Leibniz 1980, p.l73-7.

20 Descartes, Meditar;oes Metajisicas. 21 Mancosu 1996, p.l29- 39. 22 No se ve todavía en el Análisis Geométrico una disciplina acabada. Aún cuando el método de Viete y de Descartes pennita hacer casi todo por ese cálculo, suponiendo los Elementos, son estos los que la mayoría de las veces no han sido reducidos. Leibniz, 1995 p. 51. 23 Yo pensé en remediar ese defecto intentando hacer aparecer en el cálculo todo lo que concierne a la figura y la situación, lo que es nuevo: los Analistas se contentan en hacer aparecer las magnitudes, suponiendo las situaciones

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ldenlidad .1· prueba geo111élrica 189

conocidas a partir de la figura, ellos no pueden entonces prescindir del traza­do de las figuras y de la imaginación. lbidem, p. 51. 24 Ibídem ,p. 47. 25 Leibniz, 1995, p276 et seq. 26 Leibniz 1994, p. 163. Ese texto también fue editado por Gerhardt (MS, Y, r· 141- 68). 7 La línea puede ser representada por el movimiento del punto b recorriendo

una trayectoria determinada y de la cual, se considera que ella deja tantos vestigios como hay puntos 3b6b9b diferentes( ... ) ella puede también ser de­signada abreviadamente asi: línea yb o por cualquier otra letra un conjunto de números ordinales arbitrariamente elegidos.

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Habermas crítico de Davidson: hermeneutica vs. objetivismo

Marco Antonio Sousa Alves Faculdades Promove e Mi/ton Campos

O objetivo desta apresentac;:ao é analisar a leitura que Jürgen Haber­mas fez do pensamento de Donald Davidson, bem como avaliar as críticas dirigidas ao filósofo americano. O percurso intelectual de Ha­bermas é marcado pelo travamento de grandes e ricos debates com diferentes pensadores contempodineos (como Gadamer, Apel e Rorty). Contudo, difícilmente poderíamos colocar Davidson no grupo de seus grandes interlocutores. Mas, apesar de constituir um debate menor, ele nos mostra mna grande divergencia que espelha diferentes tradi9oes em filosofía da linguagem e que toca em um assunto bastan­te complexo, a saber, a relac;:ao entre lioguagem e mundo. Certamente, trata-se de um debate que nao teve tempo de ser travado e que se re­sume a alguns apontamentos de Habermas. Serao analisados, aquí, tres textos do pensador alemao:

a) Teoria do Agir Comunicativo, vol. I ( 1981 ), sobretudo o interlúdio primeiro, dedicado a teoría analítica da a9ao e do significado;

b) Verdade e Justificac;ao (1999), onde Habermas retoma a quesHio da significayao e da representas;ao;

e) Agir comunicativo e razao destranscendentalizada (2001), texto em que o filósofo alemao dirige-se mais diretamente a Davidson.

O presente texto tem tres objetivos principais: (1) apresentar a leitu­ra que Jürgcn Habennas fez do pensamento de Donald Davidson, de-

Dutra. L. H. de A. e Mortari . C. A. (orgs.). 2005. Epistemología: Anais do IV Simpósio /mema­cional. Principia- Pm·te l. Florianópolis: NELIUFSC. pp. 191-211.

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talhando as críticas que o filósofo alcmao dirigiu ao pensador ameri­cano; (11) exibir um quadro básico do pensamento habermasiano, mos­trando sua base herrneneutica; e (III) avaliar críticamente a leitura e as críticas habennasianas.

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De forrnac;:ao alema, Habennas inicia seu percurso intelectual no inte­rior da Escola de Frankfurt, envolvendo-se em um longo e rico debate com a herrncneutica de Gadamer, saindo em defesa da teoría crítica. Também partindo de uma visao marcada pela hermeneutica, seu cole­ga Karl-Otto Apel foi um dos primeiros a descobrir as convergencias entre as posic;:oes de Heidegger e Wittgenstein e a se reaproximar da tradic;:ao analítica (Apel 1973a: 265-445; 1973b: 33-11 0). Seguindo suas pegadas, o interesse de Habermas pela tradi.yao analítica surge quando se percebe um déficit no conceito herrneneutico de linguagem, a saber, a ausencia de uma teoría da significac;:ao (theory of meaning) mais elaborada. Como observa Habermas (1998: 74):

a ausencia de mna análise convincente da fun9ao representativa da linguagem, e portanto das condi96es de referencia e verdade dos e­nunciados, permanece sendo o calcanhar de Aquiles de toda tradi9ao henneneutica.

Segundo Habennas (200 1: 7 6), um vasto campo se abrí u para a fi­losofía da linguagem a partir da crítica de Frege ao psicologismo (ao aiTemessar o pensamento para além dos limites das toiTentes de viven­cias dos sujeitos pensantes e mostra-r sua estmtura proposicional inva­riável que permite que expressoes lingüísticas possam manter o mes­mo significado para diversas pessoas em situac;:oes diversas). Porém, em linha geral, Habem1as acredita que a tradic;:ao analítica centrou-se cm demasía exatamente naquilo que faltava a hcrmeneutica, ou seja, na análise da funs;ao cognitiva da linguagem e das condic;:oes de refe­rencia e verdade dos enunciados. ' Eles se limitaram a um modelo

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atomista da ayao, que descuida dos mecanismos de coordenayao (me­diante os quais se estabelecem relayües interpessoais) e concebe as arroes sob um pressuposto ontológico de um mundo de estados de coisas existentes (Habermas 1981: 3 52). A semantica fonnal desen­volví da por Frege isola a funyao comunicativa da linguagem da análi­se lógica, estudando apenas a funr;ao cognitiva (ou designativa, expo­sitiva, representacional) da linguagem.2 As demais funyoes (expressi­va e comunicativa) sao consideradas aspectos pragmáticos do uso da linguagem, que devem ser analisados empíricamente. Assim, ao con­trário do que ocorre com a sintaxe e a semantica, a pragmática nao era determinada por um sistema geral de regras, daí a necessidade que o pensador alemao sentiu de ampliar o enfoque da semantica fonnal e

J desenvolver urna pragmática universal (Habennas 1981: 380).3

Recentemente, Habetmas (2001 :76) dividiu as correntes pós­fregeanas da teoría da significayao na tradi9ao analítica em dois gru­pos: enguanto uma vía pretendeu reconstruir a nonnatividade da práti­ca do entendimento mútuo ( um grupo de inspirayao wittgensteiniana, que conta eom Dummett e Brandom e se caracteriza por ressaltar o aspecto intersubjetiva), outro grupo se dcdicou ao estudo da normati­vidade característica da linguagem sob premissas empíricas, com refe­rencia aos sujeitos capazes de linguagem e ayao em relayao ao mundo (aqui estao Russell, Carnap, Quine e também Davidson). Também chamado por Habermas ( 1999b: 164; 2001: 91) de "ramo empirista da tradiyao fregeana", esse segundo grupo teria dado maior importancia a quesUio da referencia e ~ relayao linguagem/mundo, acentuando exa­geradamente a fun¡yao cognitiva da linguagem em detrimento das de­mais.

Para Habermas, Davidson, como membro desse grupo, desenvol­veu uma análise empírica da linguagcm, assimilando o ato de compre­ensao de um interlocutor a intcrpreta¡yao teórica de um observador, o que nao concede o devido valor ao universo social de sentido corpori­ficado na linguagem e intersubjetivamente partilhado.4 O filósofo alemao parte de uma distin9ao entre o ponto de vista do pa1ticipante (da racionalidade performativa) e o ponto de vista do observador (da

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racionalidade observacional). Os participantes, ou seja, aqueles que desempenham papéis dialogais, enguanto falantes e ouvintes de urna comunica<;ao, assumem uma perspectiva de primeira pessoa, enguanto os observadores, que assumem urna postura objetiva, de intérprete neutro, que nao está diretamente envolvido na situa<;ao, estao associa­dos a perspectiva de terceira pessoa. Essa arquitetónica é acompanha­da de um dualismo metodológico entre compreender (hermeneutico­transcendental, como estudo do sentido a partir de dentro, que corres­ponde ao ponto de vista do participante que adotou urna atitude per­fOlmativa) e observar (empírico, que olha de fora e corresponde ao ponto de vista daquele que observa do exterior os objetos no mundo). Ao ponto de vista do participante está associada a hermenéutica, e ao ponto de vista do observador está associado o objetivismo.

Assim, segundo Habennas (2001: 76-7), a decisao metodológica de Davidson pendeu para urna perspectiva objetivista de natureza em­pírica, na qual o intérprete observa a conduta de alguém e procura um esclarecimento nomológico para o comportamento estranho. A racio­nalidade nao emerge, no esquema davidsoniano, da intera<;ao (o u da suposi<;ao de racionalidade considerada performativamente pelos par­ticipantes), mas ela é introduzida como um principio metodológico, o chamado "principio de caridade," que impoe ao intérprete a obrigayao de supor que os falantes observados se relacionam, em regra, racio­nalmente. Como res salta Habermas (200 1: 79), esse principio metodo­lógico imputa racionalidade ao falante estrangeiro a partir de urna perspectiva observacional. Contudo, a imposi<;ao de racionalidade nao é apenas um pressuposto da interpreta<;ao radical, mas também um pressuposto transcendental para a comunica<;ao entre membros de urna mesma comunidade de linguagem, pois, do contrário, sem essa supo­si<;ao de racionalidade recíproca, nao encontraríamos urna base para o entendimento (Habermas 2001: 80). Para Habermas (200 1: 83), o entendimento lingüístico e os padroes de racionalidade pressupostos por Davidson nao caíram do céu e necessitam de mais esclarecimen­tos.

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Na visao do filósofo alcmao, a interpretas:ao radical, calcada no princípio de caridade, nao basta para tornar comprecnsívcl como o próprio intérprete aprendeu a falar, o que também nao é resolvido na suposis;ao de uma situas:ao de aprendizagem triangular, na qua! dois organismos igualmente reagem ao mundo e entre si.5 Para Habe1mas, a triangulas;ao davidsoniana é demasiadamente objetivista, pois a ava­lias;ao de que se tratam de reas:oes semelhantes diante do mesmo nao é verificada pelos próprios participantes, mas por um observador nao participante. Deveria caber aos próprios participantes observar inter­namente essa semelhans:a de reas;ao referente ao mesmo impulso ou objeto (como diz Wittgenstein, poder seguir uma regra6

). Segundo Habermas (1998: 83):

Desde o inicio, Davidson assimila o ato de compreensao de um inter­locutor a interpretayao teórica de um observador e chega, por fim, a urna concepyao nominalista da linguagem, que concede primazia aos ideoletos de falantes individuais sobre o universo social do sentido corporificado na linguagem e intersubjetivamente partilhado.

Na visao habermasiana, apenas uma reas;ao, urna resposta do faJan­te, pode confirmar ou rever conceps;oes nas quais ambas as partes devem poder confiar no decorrer de sua interas;ao. Nao estaría claro, em Davidson, como se sabe se intérprete e interpretado reagem aos mesmos objetos, pois ambos devem, diantc do outro, descobrir se tem em mente os mesmos objetos, ou seja, devem se entender sobre isso. Assim, eles só podem estabelecer urna comunicas;ao se se dirigirem um ao outro como parceiros, sendo obrigatório que se comuniquem entre si sobre o que exatamente despertou a reas;ao (Habennas 2001 : 85). Segundo Habem1as (200 1: 87), nao é suficiente a mera constata­s;ao, por um observador nao participante, de que as reas;oes sao seme­lhantes. Os diferentes sujeitos devem poder assegurar intersubjetivamente as semelhans:as objetivas, ou seja, os próprios pmticipantes devem perceber urna semelhans;a da reas;ao referente ao mcsmo objeto. O intérprete eleve, portanto, ultrapassar o que está disponível a u m observador ex temo, pois, do contrário (como acontece com a tese da triangulas:ao ), ele enfrenta o problema da

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triangulayao), ele enfrenta o problema da identificayao dos estímulos comuns. Davidson, apesar de sublinhar o aspecto social da linguagem, concebe essa sociabilidade a partir da perspectiva de um observador (equipado só com disposis;oes de comportamento semelhantes) e nao de um partidário que se encontra com outros em um modo de vida partilhado e que tem ao menos uma consciencia intuitiva dessa con­cordancia (Habermas 2001: 88-9).

II

Em posi<;:ao contrária ao objetivismo, Habennas situa a hermeneutica filosófica, sustentada por Gadamer e partilhada, nesse ponto, por ele. As comunicas:oes repousam no contexto de suposis:ocs de fundo com­partilhadas, em uma hannonia de opinioes e intenyoes relevantes para a as:ao, sendo talhadas no reconhecimento intersubjetiva (Habermas 1999b: 172-3). Habennas joga Gadamer contra Davidson em um pon­to: a suposicyao de racionalidade efetuada performativamente pelo intérprete de Gadamer (que supoe, da perspectiva de um parceiro de conversas:ao, que este se cxpressa racionalmente, segundo os padroes de racionalidade comuns) é diferente da imputacyao da racionalidade objetivante que o intérprete de Davidson imputa ao estrangeiro, a par­tir da perspectiva de um observador (que se orienta segundo as suas próprias normas de racionalidade) (Habermas 2001: 91). Segundo Habermas ( 1998: 79):

( ... ) no lugar da perspectiva do observador, da qual os objetos sao percebidos, entra a do intérprete, que toma compreensível para si o sentido dos proferimenlos e contextos de vida de outras pcssoas.

O importante papel desempenhado pela nor;ao de mundo da vida (Lebenswelt) no pensamento habermasiano mostra claramente sua herans:a hcrmeneutica. O mundo da vida é definido como o horizonte contextua! dos processos de entendimento que pem1anece inacessível a tematizas:ao. Ele se at1icula em um saber implícito, de fundo, intuiti-

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vamente adquirido e holisticamente estruturado, que goza de primazia sobre o saber explícito, fruto de urna argumentayao (Habermas 1981: 178-9, 430- 1; 1999a: 19). As certezas do mundo da vida nao sao "sabidas," urna vez que nao podem ser criticadas ou fundamentadas, sendo sempre pressupostas como um saber de fundo.

Se, por um lado, a noyao de mundo da vida parece cumprir um im­portante papel (explicando a possibilidade do entendimento), por ou­tro, e1a é muito perigosa, pois parece levar ao contextualismo das dife­rentes aberturas do mundo. A cada forma de vida parece corresponder "um mundo objetivo intransponível a partir de dentro do próprio hori­zonte" (Habermas 1999a: 25, 27). Em outras palavras, as regras trans­cendentais se tomam a expressao de formas de vida culturais, situadas no tempo e no espa¡yo, que, com seus valores, interesses e formas de a¡yao, definem os modos correspondentes de experiencia possível.

Habermas tenta se safar, porém, das conseqüencias contextualistas e relativistas que a noyao de mundo da vida parece introduzir, criti­cando constantemente a concepyao heideggeriana da linguagem7

• Para Habermas ( 1996b: 240), o contextualismo estrito seria u m análogo, no paradigma da linguagem, daquilo que o ceticismo foi no paradigma da consciencia. Enquanto o ceticismo nasce da dúvida sobre a realidade do mundo exterior (urna vez que a noyao de subjetividade e o caráter privado da certeza introduziam um dualismo entre interno e externo), o contextualismo nasce do fato de toda explicayao, no paradigma lin­güístico, ter origem no uso interpretativo de uma linguagem pública de urna dada comunidade, o que parece permití~ urna variayao espacial e temporal deste uso e deste horizonte comum. A leitura contextualista consiste em ressaltar essa variayao e, afirmando a impossibilidade de ultrapassar nosso horizonte lingüístico, ela relativiza a verdade.

Segundo Habennas ( 1999a: 28):

do pluralismo dos jogos de linguagem niio resulta necessariamente uma multiplicidade de universos lingüísticos incomensuráveis, her-méticos uns em re la9ii0 aos outros. ·

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Nao há, portanto, nenhum fundamento para a tese da incomensurabili­dade. Em sentido contrário a ela, sustenta Habennas (2001 : 47) que

os participantes da comunica~ao podem se entender por cima dos li­mites dos mundos da vida divergentes, porque eles, com a visao de um mundo objetivo comum, se orientam pela exigencia da verdade, isto é, da validade incondicional de suas afinna~oes.

Seja adotando uma teoria discursiva (que assimila a verdade a asserta­bilidade ideal), seja abandonando essa definiyao epistemica e fazendo justis:a a intuis:ao realista, o filósofo alemao nunca admite a contextualizas:ao da verdad e. 8

De acm·do com o filósofo alemao, seria absurdo duvidar da acessi­bilidade do mundo, pois, enquanto agentes, imersos em uma práxis cotidiana, nao podemos deixar de aceitar um pano de fundo inquestio­nável de convics:oes intersubjetivamente partilhadas e praticamente comprovadas. Segundo Habennas ( 1996a: 129), o saber lingüístico que nos abre um acesso ao mundo é testado continuamente, devendo resistir a prova na práxis bem-sucedida. Recentemente, Habermas (1998: 93-4) vem acentuando a resistencia do mundo, sustentando que deceps:oes no trato com o mundo objetivo suposto como idéntico e independente manifestam um fracasso performativo difícilmente con­testável, colocando em colapso práticas habituais e ativando uma revi­sao de suposis:oes e expectativas que podem tocar o próprio saber lingüístico.

Apesar de dar mais espas:o a intuis:ao realista, o filósofo alemao nao abandonará aquilo que ele acredita ser o grande ganho da virada lingüística: a noc;ao de que a linguagem é o mediwn intransponível de nossa relac;ao com o mundo. Estando vedada a possibilidade de qual­quer acesso direito a uma realidade nao-interpretada, Habermas vai buscar nao no pólo objetivo (o mundo) a garantía do mesmo, mas no pólo intersubjctivo, ou seja, na pragmática formal da conversas:ao, que realc;a os aspectos universalistas do processo de entendimento mútuo. Reconhecendo as conseqüencias relativistas e contextualistas da visao

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hermeneutica e procurando defender a possibilidade de um universa­lismo no nível pragmático-comunicativo, Habem1as, seguindo a pro­posta apeliana de um "Kant pragmaticamente transformado," crgue-se contra o contextualismo dos jogos de linguagem de Wittgenstein,9

contra o idealismo da abertura lingüística do mundo de Heidegger e contra também a reabilita¡yao do preconceito de Gadamer. 10

Contudo, mesmo recha¡yando a postura contextualista, ele nao a­bandona sua heran¡ya henneneutica e a concep¡yao da linguagem de Humboldt. Assim, o enfrentamento que Habermas tem com a herme­neutica é apenas pontual, pois ele nao abandona o projeto como um todo. Como entusiasta da virada linguística, o filósofo alemao ve na hermeneutica uma aliada, pois também ela critica a conccp¡yao objeti­vista ingenua de um contato direto com o mundo, defendendo que nossa relayao com a realidade é sempre lingüísticamente mediada.

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Apcsar do esfor9o de Apel e Habermas ero reaproxirnar a versao analí­tica e a hermeneutica da virada linguística, ressaltando a semelhanc;a entre Heidegger e Wittgenstein e sustentando a tese de que as duas versoes seriam mais complementares que conconentes, a crítica de Habermas a Davidson mostra que a diferen9a talvez seja rnais profun­da. Em um interessante traball1o que procura mostrar a diferen9a entre a versao analítica e hermeneutica da virada linguística, Cristina Lafont ( 1993) ressalta que a hipo~tasia9ao da linguagem realizada por Hei­degger, bern como suas conseqüencias contextualistas e relativistas, é resultado da cornbina9íio de urna teoría balista da significayao com urna teoria da referencia que dá preeminencia ao significado sobre a referencia.

Na hermeneutica, o significado (que é intersubjetiva, ou seja, corn­patiilhado pelos falantes), funcionaria como urna cspécie de mecanis­mo que petmite falarmos das mesmas coisas. Nessa imagcm, é a iden­tidade do significado que garante a identidade da referencia (Lafont 1993: 16). Usando o vocabulário da hetmeneutica, diríamos que o

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"modo de ser dado o designado" é visto como condi~ao de possibili­dade de accsso ao referente, ou scja, o referente é mediado pe lo senti­do a partir do qua! ele é compreendido. Ainda que as duas vcrsoes da virada linguistica ressaltcm o papel constitutivo que a linguagem tem em nossa rela<;:ao com o mundo, na tradi<;:ao henneneutica essc papel é entendido como urna abertura ao mundo (We/tersch!ie/}ung) atTavés da constitui<;:ao de sentido, que antecede e garante a idcntidade da referencia. Assim, o saber do significado proporciona o marco da refe­rencia e os falantcs que compat1ilham essa abertura do mundo lingüís­tica podcm referir-se a um mundo igualmente unitário.

Como conseqüencia, a linguagem se toma a instancia detenninante de toda experiencia intramundana possível, o que traz consigo urna problemática destranscendental izac;:ao, ou semitranscendentalizac;:ao, uma vez que as linguagens historicamente dadas aparecem no plural e executam de modo diferente sua func;:ao constitutiva, havendo tantos mundos quanto sao as linguagens. A pluralidade de aberturas lingüís­ticas ao mundo coloca um sério problema quanto a unidade do mundo sobre o qua! os falantes se comunicam (o falar sobre o mesmo).

Segundo Lafont (1993: 17), a pesar das tentativas de Humboldt e Habermas, a pretensao de defender uma perspectiva universalista a­poiando-sc na versao henneneutica do paradigma da linguagcm é ilo­sória. A idéia heideggeriana de abertura do mundo só pode garantir a intersubjctividade da comunicac;:ao dentro dos limites de uma detenni­nada abertura lingüística, o que provocaría um contextualismo similar ao solipsismo exjstente no paradigma da consciencia. A incomensura­bilidadc das aberturas lingüísticas do mundo relativiza tanto a referen­cia como a verdade, impossibilitando qualquer perspectiva universa­lista ( cf. Lafont 1993: 228).

Se no nívcl pragmático (no uso comunicativo da linguagem) ten­tou-sc preservar a universalidade, no nível semantico, associado a fun<;:ao cognitiva da linguagem, aceitou-se, cm Humboldt, o pat1icula­rismo da abertura lingüística ao mundo. Ainda que Habermas critique o contextualismo da tradi<;:ao hermcncutica, sua tcoria cm nada altera isso e apenas apela para a possibilidade de um universalismo na análi-

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se pragmática da fun~ao comunicativa da linguagem. Demonstrando sua clara herant¡:a henncneutica, o dominio cognitivo (que trata da referencia ao mundo) continua entregue ao particularismo de uma fonna de vida 11

• A pesar de procurar reabilitar recentemente a intui~ao realista, dando maior importancia ao pólo objetivo e a neccssidade de referirmos ao mesmo mundo (se queremos evitar as inaceitáveis con­seqüencias relativistas e contextualistas), Habermas carrega ainda consigo o peso da tradis;ao henneneutica e só consegue preservar o realismo como uma intui9ao presente cm nosso mundo da vida que está assentada em nossa práxis. Como deixa claro Habennas ( 1996a: 127):

Na medida em que os sujeitos que agem comunicativamente se en­tendero a rcspeito de algo no mundo objetivo, eles se movem sempre no horizonte de seu mundo da vida. Por mais alto que subam, o hori­zonte recua, de modo que nunca podem trazer integralmente para di­ante de si o mundo da vida e abarcá-lo com um só olhar, como se se tratasse do mundo objetivo. (. .. ) Desse modo, o mundo da vida, que se articula, ele mesmo, no medium da linguagem, abre para seus mcmbros um horizonte de interpretac;ao para tudo o que eles podem experienciar no mundo, tudo aquilo a propósito do que se podem en­tender e com o que podem aprender.

Como ressalta Lafont (1993: 247), a idéia de um mundo da vida constitutivo dos processos de entendimento concede muito a herme­neutica, e, dcpois, Habermas nao consegue frear suas conseqüencias. A busca de um· alcance universal da razao, motivo da elaboras;ao de toda sua teoría da a~ao comunicativa e de sua crítica a bermeneutica, parece naufragar devido a um rant;:o he1meneutico (de uma certa con­cep~ao de linguagem) que ele nao consegue abandonar.

Em suma, observamos que a aceitas;ao da versao henneneutica da virada lingüística levanta a questao da comensurabilidade das diferen­tes visoes lingüísticas de mundo. Essa questao foi assim fonnulada pelo próprio Habermas ( 1998: 68):

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Mas corno é entao possível que membros de diferentes comunidades lingüísticas, a despeito da diferen9a de suas perspectivas lingüísticas a cada vez coletivamente partilhadas, olhem para o mesmo mundo, que, em todo caso, !hes aparece objetivamente?

Podemos ainda acrescentar: será que o universalismo é possível, se aceitamos a versao henneneutica da virada lingüística?

Lafont ( 1993: 229) acredita que o único corretivo para evitar as conseqücncias contextualistas e relativistas da versao henneneutica da virada lingüística, centrada na abertura do mundo, está no redescobri­mento da importancia da funt;ao cognitiva ou designativa da lingua­gem.12 Nesse ponto, voltamos ao chamada "ramo empirista da tradi­t;ao analítica" e, mais precisamente, em Davidson.

O filósofo americano mostra que a indetenninat;ao da tradut;ao nao pode ser total, de fom1a a pennitir que existam linguagens intraduzí­veis, que estariam fundadas em bases ontológicas ou num pano de fundo (background) totalmente diferente do nosso. Essa postura típica do re lativismo foi duramente criticada por Davidson. 13 Davidson ana­lisa as condis;oes de possibilidade para que qualquer interpretas;ao linguistica seja possível, aproximando-se do projeto da pragmática fonnal de Habermas. Contrariando a leitura habermasiana, acredito que Davidson está descrevendo a lógica de como funciona qualquer interpretas;ao possível, nao os passos do aprendizado linguístieo (a visao de um observador externo). O pensamento de Davidson assume o mesmo percurso de uma reconst:rus;ao transcendental, que procura entender as condis;oes de nossa competencia linguistica. Habermas insiste em atribuir a Davidson uma postura insensata que ve tudo de fora , mas o que de fato Davidson faz é antes uma fonna de reconstru­s:ao racional (assim como a que ele mesmo propós). A diferens:a é que a reconstrut;ao de Davidson privilegia o uso cognitivo da linguagem, mostrando como seria impossível urna linguagem insensível ao mundo (no sentido mais objetivo possível).

O que parece incomodar Habermas é o fato de Davidson mantera intuir;ao realista de forma radical, o que poderia contrariar a virada

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. )

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lingüística e a idéia de que a linguagem constituiría o mundo. Mas, apesar de mantero realismo, o filósofo americano nao é insensível ao caráter intersubjetiva da linguagem. Ele apenas quer mostrar que um aspecto (intersubjetiva) nao pode ser separado com sentido do outro (objetivo), sob pena da linguagem se tornar impenetrável, impossível de ser aprendida. A visao da linguagem de Davidson parece fugir de­finitivamente da primazia do significado sobre o referente, pois o con­teúdo linguistica nao é determinado por um significado intersubjeti­vamente estabelecido, mas tanto conteúdo quanto significado nascem juntos num processo ao mesmo tempo intersubjetiva e objetivo.

Habermas insiste em acreditar que suas intui~oes hermeneuticas devem ser mantidas, que todo entendimento depende de um pano de fundo linguístico intersubjetivamente compartilhado, de um mundo da vida. Mas, sem uma perspectiva sensível ao uso cognitivo da lingua­gem e ao aspecto essencialmente objetivo da mesma, ficaremos sem­pre presos a urna imagem de linguagem contextualizada e as suas con­seqüéncias relativistas. O que falta a Habermas é urna teoría que ex­plique nao como o discurso levanta pretensoes racionais universais, mas como podemos esperar que tais pretensoes possam ser preenchi­das. Se cada mundo da vida for incomensurável, nao adianta discutir­mas. Estaremos cada um preso em seu sistema de referencia. Aliás, nada garante que possamos até mesmo nos entender. Se nao podemos garantir o entendimento, a possibilidade da comunicas;ao desaparece, e, com ela, a possibilidade do discurso e de qualquer apelo universa­lista.

Concluindo, acredito que Habermas exagerou o aspecto objetivista de Davidson, talvez para poder criticá-lo mais facilmente a partir da henneneutica de Gadamer. Pois, ainda que confira importancia ao pólo objetivo, Davidson nao negligencia a natureza eminentemente social da linguagem e o aspecto intersubjetiva na triangulas;ao 14

• Ape­sar da parcialidade da leitura habennasiana e da injusti~a de sua críti­ca, pretendo concluir mostrando que há uma diferen~a importante entre aqueles que procuram dar lugar ao mundo (ao pólo objetivo) e aqueJes que negam seu espa~o e centram-se apenas no dominio social

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e intersubjetiva. A grande diferenya entre Habermas e Davidson está no fato de o filósofo americano dar maior destaque ao pólo objetivo, sustentando que o que toma possível que tenhamos conceitos como os de objeto externo e eventos no mundo é o fato de estarmos causalmen­te relacionados com tais objetos e evcntos. 15

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206 Marco António de Sousa Al ves

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Verheggen, C. 1997. Davidson's Sccond Person. Phi/osophical Quar­terly 47: 361-9.

Notas

Marco Antonio Sousa Alves Mestre em Filosofia pe la UFMG

Professor das Faculdades Promove e 'tvt:ilton Campos [email protected]. br

1 Segundo a teoria de Humboldt, esposada por Habermas, a língua é um me­dium intransponível que nao pode ser considerada apenas um mcio de repre­senta~ao de objetos ou fatos. A linguagem possuiria tres func;:oes: a cognitiva ou designativa (que representa fatos, apresenta estados de coisas), a expressi­va (que exprime sentimentos e vivencias) e a comunicativa (que comunica

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Habermas crítico de Dm·idsou 207

algo e estabelece rela<;:oes com os ouvintes, criticando ou concordando). Es­sas fun<;:oes da linguagem levam as pretensoes levantadas em cada ato comu­nicativo: a prctensiio a verdadc daquilo que é dilo, a sinceridacle daquele que faJa e a corre<;:iio do ato mesmo que se executa. 2 A semantica de enunciados, servindo-se dos meios da lógica, teria se entre­gado a um modo empírico de observa<;:iio, ressaltando a rela<;:iio entre propo­sit;:iio e fato. No Tractatus, por exemplo, Wittgenstein ratifica a virada lin­güística de Frege ao atribuir a linguagem um caráter formador de mundo, ressaltando também a dimensiio da representat;:iio (ou figura<;:iio do mundo). Com a sintaxe lógica de Carnap e as bases da semantica referencial, abre-se o caminho para a análise forma l da funr;:iio cognitiva da linguagem. Segundo Habermas ( 1981 :353-354), mesmo a teoría semantica veritativa (que associa o significado de urna oras;iio as suas condi<;:oes de verdade), fundada por Frege e desenvolvida por Wittgenstein até Davidson, dá importancia apenas a relas;iio entre orat;:iio e estado de coisas (entre linguagem e mundo), analisan­do todas as ora<;:oes segundo o paddio das oras;oes assertóricas. 3 A pragmática formal parte da questao de que significa entender uma orat;:iio empregada comunicativamente (uma emissiio) e responde dizendo que enten­demos um ato de fala quando sabemos o que o faz aceitável, tomando a acei­tabilidade nao em sentido objetivista {desde a perspectiva de um observador), mas a partir da a.yiio perfonnativa de um participante na comunica.yiio (Ha­bennas 198 1: 381-2). A teoría dos speech acts desenvolvida por Austin e Searle foi o primeiro passo em relar;:iio a urna pragmática formal, mas, na opiniiio de Habermas, ela pennaneceu atrelada aos estreitos pressupostos ontológicos da semiintica veritativa. 4 Para Davidson, uma vez que nao temos como observar diretamente as atitu­des proposicionais (crent;:as, desejos, etc.) do interpretado, elevemos nos guiar pela observa.yiio comportamental (incluindo aí proferimentos verbais). Atra­vés dessa observa<;:iio vai-se, aos poucos, tendo acesso ao que significa e pensa o falante. Como tempo e le aprende a individualizar os eventos 'e obje­tos da massa comum do mundo assim como as senten<;:as e palavras, interpre­tando proferimentos e relacionando comportamentos com o mundo. 5 Em Davidson, o conhecimento do mundo e da linguagem nasce no mesmo caldeiriio interpretativo, sendo a linguagem a mais objetiva possível. A idéia de triangular;:iio é essencial em Davidson para explicar como, desde o inicio, tudo se apresenta interligado na linguagem, e as tres esferas (intersubjetivo, objetivo e subjetivo) dependem mutuamente uma da outra. Sem essa rca<;:ao compartilhada a estímulos comuns, o pensamento e a fala nao teriam qual­quer conteúdo. Atribuir significado aos proferimentos e cren.yas pressupoem um mundo compartilhado e rea.yoes racionais e interpretáveis nesse ambiente.

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208 Marco Antonio de Sousa Ah•es

Sem um nao temos o outro. Nao há pensamento proposicional sem comuni­ca~iio intersubjetiva ou sem rcla~ii.o como mundo. Subjetivo, intersubjetiva e objetivo sao mutuamente dependentes. 6 Comportamentos guiados por regras tem um caráter social. Ninguém pode seguir uma regra solipsisticamente, apenas para si, sendo exigível a participa­~ao em urna prática familiar, na qual os sujeitos já se encontram. Há, assim, um reconhecimento intersubjetiva implícito das regras seguidas (Habermas 2001: 94). 7 Heidegger investiga a estrutura prévia do compreender, ou seja, a articula­~ao lingiiística da compreensiio prévia do mundo a luz dos projetos, expecta­tivas e antecipa~oes cotidianas, em cujo horizonte alguma coisa come~a a se tornar compreensível para nós como alguma coisa. Ele subordina o "como predicativo"ao "como henneneutico", de modo que só podemos atribuir ou negar determinadas propriedades a determinados objetos depois que eles se tornam acessíveis nas coordenadas categoriais de um mundo aberto pela linguagem, ou seja, depois que sao dados como objetos já interpretados. A pertinencia de um predicado a um obj eto é um fenómeno derivado que de­pende da "possibilita~ao de verdade", no sentido de uma prévia abertura ao mundo. Assim, a henneneutica filosófica desconhece o direito autónomo da fun~ao cognitiva da linguagem e o sentido próprio da estmtura proposicional do enunciado, estando os falantes "presos na casa de sua língua" (Habem1as 1998: 79-82). 8 Até a década de 80, Habermas distinguía ajustijica9iio da verdade tomando como critério a diferen~a entre wn enunciado meramente justificado de acor­do com critérios inerentes a uma dada comunidade de comunica~ao, e um enunciado verdadeiro, que poderia justificar-se em todos os contextos e pres­supunha urna idealiza~ao das condi~oes de justifica~ao. Atualmente, ele sub­meteu essa concep~ao a uma revisao: " retrospectivamente, vejo que o concci­to discursivo de verdade se deve a uma gcneraliza.¡:ao excessiva do caso es­pecial da valldade de normas e juízos morais. ( ... ) Mas, se queremos fazer justis;a a intuis:oes realistas, o conceito de verdade enunciativa nao pode ser assimilado a esse sentido de aceitabilidade racional sob condis:oes aproxima­tivamente ideais" (Habermas 1999a: 15). Para o Habermas atual (1999a: 24), "a objetividade do mundo e a intersubjetividade do entendimento mútuo remetem uma a outra". A conexao interna entre verdade e justificas:ao per­manece, mas ela deixa de ser uma questao epistemológica e passa a se assen­tar em uma práxis, em uma exigencia funcional de nossos processos de en­tendimento mútuo, que nao podem funcionar sem que os envolvidos se refi­ram a um único mundo objetivo (Habermas 1996b: 243, 245; 1999a: 42). Na transi~ao do agir para o discurso, o ter-por-verdadeiro ingenuo se liberta do

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1/abermas crilico de Davidsun 209

modo da certeza de a~ao e toma a forma de um enunciado hipotético. Assim, o discurso depende de uma orienta~ao pela verdade cujas raízes alcanc;am o realismo do cotidiano, que fomece o ponto de referencia que fon;:a os interlo­cutores a suposic;ao de condic;:oes ideais (Habermas 1996b: 249-50, 257- 8). Tem-se, assim, uma situac;ao paradoxal , na qual a meta de toda justificac;ao é encontrar uma verdade que ultrapasse todas as justificac;oes, presente apenas no contexto da ac;ao (Habermas 1999a: 49-50). 9 O Wittgenstein tardío pode ser lido como um contextualista (e assim foi lido por Kripke, Rorty, Apel e Haberm~ dentre outros), uma vez que o nosso conhecimento está limitado pela natureza contingente de nossas formas de vida. As propriedades normativas da linguagem se restringem ao acordo de nossa comunidade, ou seja, as propriedades objetivas de correc;ao e verdade siio identificadas com propriedades culturalmente relativas. Ao transferir a espontaneidade fom1adora de mundo para a variedade dos jogos de lingua­gem e fonnas de vida históricos, Wittgenstein teria relativizado o status transcendental da linguagem (como aquilo que constituí o mundo) no sentido de um pluralismo de jogos de linguagem como fatos descritíveis. Isso o con­duz a uma concepc;iio pluralista e relativista dos jogos de linguagem, que constituem formas de vida monadicarnente fechadas, sendo cada jogo de linguagem descritível apenas com base em uma participac;ao nele (nunca baseado sornente em uma observac;ao externa). Só aqueJe que participa do jogo de linguagern está ern condic;oes de descreve-lo, pois, do contrário, caso o observasse apenas de fora, nunca poderia ter certeza de que as regras supos­tas por ele em sua descric;iio sao identicas as que de fato sao seguidas no jogo de linguagem. 10 Em Gadamer, a linguagem (ou ainda a língua historicamente determinada) funciona corno mediac;iio total da experiencia, sendo impossível transcende­la. Na leitura de Habermas ( 1998: 86- 8), Gadamer sustenta que a referencia objetiva do diálogo deve sernpre se dar no solo de um consenso prévio, sendo o processo de interpreta~iio possível apenas sobre o solo de um contexto tradicional comurn que abarca desde sempre os dois lados. A hermeneutica fi losófica acentua a nossa finitude, a falibilidade de nosso conhecimento, a tradic;iio, a impossibi lidade de compreensao livre de todo pré-conceito, nosso paroquialismo histórico e cultural, a nossa incapacidade de transcender o diálogo que nós somos, nossa historicidade e a impossibilidade de pretensoes universalistas nos moldes da Aujkliirung, uma vez que a raziio está fundada em tradic;oes particulares e só existe como real e histórica (Gadamer, 1960: 4 15; 1967: 29, e Vattimo 1985: 109). 11 Se observarrnos a estrurura de u m ato de fa la ( conteúdo proposicional + forc;:a ilocucionária), vemos de um lado o aspecto cognitivo e de outro o as-

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210 Atareo Antonio ele Sousa Alves

pecto comunicativo. Enquanto a semantica formal estuda o conteúdo propo­sicional de um enunciado, a pragmática formal, tal como a desenvolvida por Habennas, investiga a fors;a ilocucionária (ou seus pressupostos). Para expli­car o conteúdo dos enunciados, Habermas é obrigado a apelar a uma esfera anterior com poder constitutivo do significado e, portanto, dos processos de entendimento (como o background deSearle). 12 Segundo Lafont, devemos romper com Humboldt e com a teoría semantica de inspiras;iio fregeana para sustentar urna teoría da referencia direta, que nao se assente em uma teoría da significas:ao (em uma constituic;:ao prévia do sentido que garantiría a unidade do mundo). Segundo a teoria da referencia direta, a explicac;:ao do referir nao depende do compartilhamento do signifi­cado, que nos permitiría identificar o designado. O referir nao é assimilado ao identificar, mas é visto como urna designas;ao direta ou rígida (como diz Kripke). Para nao cair no relativismo, é preciso que o poder constitutivo da linguagem ande junto com a esfera objetiva. 13 A tese da incomensurabilidade está baseada numa distins;iio bastante ~o­mum, mas equivocada: aquela entre esquema conceitual e componente empí­rico (o primeiro surgindo da linguagem e o segundo da experiencia, ou do mundo). Segundo Davidson ( 1974: 198): " In giving up dependence on the concept of an uninterpreted reality, something outside all schemes and sci­ence, we do not relinquish the notion of objective truth-quite the contrary. Given the dogma of a dualism of scheme and reality, we get conceptual rela­tivity, and truth relative to a scheme. Without the dogma, this kind of relativ­ity goes by the board. Of course truth of sentences remains relative to lan­guage, but that is as objective as can be. ln giving up the dualism of scheme and world, we do not give up the world, but re-establish unmediated touch with the familiar objects whose antics make our sentences and opinions true or false". 14 Davidson também possui uma visao social da linguagem, uma vez que para se ter uma linguagem é preCiso ter crenc;:as, o que requer o conceito de verda­de objetiva, e a posse desse conceito e da linguagem requer uma interac;:iio lingüística interpessoal. Sem interagir com outra pessoa, o próprio falante nao sabe sobre o que está faJando ou pensando. Apenas quando " triangulamos" com alguém podemos ter razoes para pensar que ele possui urna linguagem e ter esperanc;:a de saber sobre o que ele está faJando (Verheggen, 1997: 361-5; Davidson, 1995: 1 O, 17). Como diz claramente Davidson (1995: 18): "Ail propositional thought, whether positive or skeptical, whether of the inner or of the outer, requires possession of the concept of objective truth, and this concept is accessible only to those creatures that are in communication with others. Knowledge of other minds is thus basic to all thought. But such

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1/abcrmas critico de Davidso11 211

knowledge requires and assumes knowledge of a shared world of objects in a common time and space. Thus the acquisition of knowledge is not based on a progression from the subjective to the objective; it emerges ho listically, and is interpersonal from the start". 15 Temos, assim, uma premissa naturalista ausente em 1-labennas, que con­vém ao externalismo davidsoniano (no qual a linguagem está ancorada cau­salmente no mundo).

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lrracionalidade: enigma da racionalidade

Considera~oes preliminares

Maria Cristina T. Sparano Universidade Federal do Paraná

Etrc désespéré rnais avee espéranee ... Avec élégance

(Can~ao de G. Roman cantada por J. Brél)

Apresentar a irracionalidade como um enigma é um recurso que visa, antes de tudo, mostrar mais seu caráter velado do que propriamente ambíguo. Ao percorremos a literatura, os autores que nos servem de referencia na análise do texto "Paradoxos da Irracionalidade" de D. Davidson tem respostas que continuam a manter nossa inquietas;ao.

M. Cavell, no seu texto, Reason and the Gardener, apresenta a ir­racionalidade como urna "puzzling form da racionalidade," confundin­do o sujeito, que, sem meios suficientes para encontrar urna resposta coerente no conjunto das respostas, nao terá como avaliar suas as;oes. Isso porque, ao agir, terá desconsiderado. urna parte de suas razoes, deixando de lado urna parte da totalidade das razoes que conhece ou pode conhecer, ou seja, deixando escapar urna pes;a do jogo da racio­nalidade.

D. Laurier, no texto ''Nature sans raison n'est que ruine de la cons­cience," diz que a inacionalidade surge, quando o agente produz um comportamento contrário a seus princípios, produzido de maneira acidental, porque os dispositivos cognitivos nao funcionaram como deviam. Assim como o agente age de maneira deliberada numa ops;ao racional, pode agir acidentalmente de maneira irracional. A conse-

Dutra. L. H. de A. e tvlorta ri. C. A. (orgs.). 2005. Epistemologia: Anais do IV Simpósio lntem a­cíonal, Principia- Parte l . Florianópo lis: NELIUFSC. pp. 213- 226.

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2 14 Maria Cristina T. Sparano

qüencia d.isso é que a fraqueza de vontade, uma das respostas a irra­cionalidade, presente no texto dos Paradoxos da lrTacionalidade, deve ser reconsiderada.

J. Lacan, assim como S. Freud, colocam a irracionalidade ao lado da falta, da carencia, o que acaneta para a interpreta9ao psicanalítica a dimensao de julgamento ou juízo de valor sobre as a96es do sujeito, pois a falta é revelada pelo que ecoa dela, aparecendo como culpa, covardia, fraqueza moral. No entanto J. Lacan, retomando S. Freud a respeito do recalque, situa a falta no afeto deslocado. No texto Tclevi­sao, tendo como base sua máxima de que ''o inconsciente é estmtura­do como linguagem," apresenta a irracionalidade como "carencia para orientar-se no pensamento." Situa a falta a partir do pensamento, pois é pensamento que o afeto descarrega no corpo. Todo desconserto des­se pensamento se mostra nos atos psíquicos considerados como "irra­cionais."

Em S. Freud, no caso da neurose, o enigma da racionalidade é que o síntoma tem sentido e razoes, senda uma forma de reconcilia9ao de desejos conflituosos submetidos a repressao. A teoría do conilíto neu­rótico e suas modalidades tende a confundir-se com a própria teoda psieanalítica e tem suas raízes na história infantil do sujeito. Quando comportamentos que tem sua origem nessa dimensao sao tomados como irracionais, revelam apenas a expressao desse conflito.

Finalmente, D. Davidson, no texto Paradoxos da Inacionalidade, ao apresentar a lógica da inacionalidade e valendo-se de exemplos da psicanálise, fala de um breakdown da racionalidade, uma falha no sistema da racionalidade, que promove a96es incoerentes e inconsis­tentes, mas justificadas pelas cren9as do su jeito.

Apesar de todas essas considera9oes, persiste o enigma da raciona­lídade e quando essas situa96es aparecem na clínica psicanalítica, revela-se o tra90 da neurose "que nasceu no dia em que a anatomía patológica encarregada de explicar a doen9a pela altera9ao dos órgaos, encontrou-se diante de um número de estados mórbidos cuja razao de ser lhe escapava."1

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lrracionalidade: enigma da radonalidacle 215

Filosofia e psicología

Toda racionalidade visa conciliar elementos implicados e utilizados no funcionamento da racionalidade na vida. Urna boa racionalidade ao nivel da epistemología se pretende com enunciados justificados que proporcionam consistencia e cocrencia intema ao discurso. Em filoso­fía, a racionalidade, de urna certa forma envolve todas nossas relas;ocs com o mundo e fora deJa parece nao haver alternativas para as contra­dis;oes quando aparecem como intervens;ao da razao no funcionameoto da vida, revelando-se como irracionalidade. Muitas vczcs o homem procura "panacéias," protestando contra toda intervcns:ao da razao no funcionamento da vida, buscando desenvolver patamares de equilíbrio contra suas ansiedades, certos "álibis," que, a médio prazo, se mostra­dio insuficientes provando apenas, com isso, que nao consegue um modo de conciliar urna intervens;ao racional na vida cm sociedade. A arte da racionalidade estará em descobrir conexoes entre ela e a vida. Vemos entao, o quanto importante seria descrevermos o funcionamen­to da racionalidade aplicada a nossos fazeres , que incluem nossas mc­lhores intens;oes, nossas crens;as e desejos. O que é visado é a protes;ao dos sujeitos e grupos, pois o único objetivo da racionalidade na cultura é proteger um mundo no qual todos possam viver bem, ser felizes e buscar satisfas;ao.

Mas como caracterizar a racionalidade? Pelo tipo de enunciado que utilizamos. Os descritivos sao os enunciados da ciencia e o processo

. de justificas;ao que os acompanha os legitima para encontqmnos aí a produs;ao de vcrdadc científica; já os enunciados prcscritivos nao se comprovam faci lmentc dentro das tendencias científicas e dizem res­peito as normas e ao funcionamento das leis morais.

A filosofía trabalha nesses dois níveis. O que devemos perceber co­mo fundamental é que teorías da a9ao nao tem nenhum sentido, sao inviáveis sem uma teoría da ciencia. As teorías da ciencia significam exatamente o desenvolvimento dos processos de justificayao do co­nhecimento humano que se constituem nos instrumentos necessários das teorías da a9ii0 ( ... ) Abstratamente nao há oposi9iio excludente

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216 Maria Cristi11a T. Spara11o

entre teorias da ciencia e teorias da ayao, mas ao contrário, existe uma rela<;:i'io de complementaridade. ambas as teorías visam dar conta da racionalidade do comportamento humano. 2

Quanto a psicología, enguanto disciplina, comes:a com a história do "behaviorismo" que rouba a cena no início do século XX e é definida como ciencia experimental, cujo conteúdo empírico porta exclusiva­mente sobre o comportamento observável do homem reagindo as mu­danvas de seu meio físico. Na contra miio dessa psicología, podemos falar de uma filosofia da mente que contra o behaviorismo concebc o comportamento como avües, isto é, comportamento intencional. Nessa perspectiva, descrcver um compo1iamento como uma as:ao sensata ou intencional é postular a presens;a na caixa preta do behaviorismo, de estados mentais tais como, desejos, crens;as, intens;oes e outras atitu­des pelas quais se explica e prediz o comportamento. Assim é possível descrever um fenómeno num vocabulário intencional, como é o caso de uma avao e explicá-lo apelando a causas fisiológicas.

Mas como ultrapassar a observas:ao do simples movimento para perccber ou inferir o que sao avücs, diferentemente da descrivao de nossos movimentos ? Para melhor situar essa possíbilidade, diríamos que nao é possível alguém levantar o bravo sem ter razoes para isso, quando o agente deseja assim faze-lo, acreditando que com este gesto mobiliza os meios para alcans;ar algum fim. É por isso que dependen­do do movimento, dizemos que é uma as;ao e que tem caráter inten­cional quando a tomamos "sob uma detenninada descris;iio. "3 A idéia chave é que uma aviio intencional difere de um simples movimen:to ou do comportamento na medida em que é concebido ou percebido pelo agente e a quem se dirige. Qualquer que seja a origem desse esquema (da capacidade e do estatuto dos elementos pressupostos) para que a avao seja obtida um esquema mental que incluí, crens:as e desejos é igualmente pressuposto, um complexo de pensamentos e sentimentos consistente e coerente, racional , segundo o próprio D. Davidson, que atua sob o "Principio de Platao": "agir em razao de todas as crens;as consideradas e segundo scu melhor interesse.'>4 Para que possamos

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lrracionalidade: enigma da raci01wlidade 217

ligar todos os elementos implicados: crenc;as, desejos e intenc;oes,

numa tessitura lógica, corn encadeamento causal, vemos que a identi­

ficac;ao de uma ac;ao pressupoe urna noc;ao fundamental , a de raciona­

lidade, vista como propriedade exclusiva da psicología do senso co­rnum.

Este esquema lógico conccitual é o informante da psicología do senso comum, com seus conceitos, propriedades e lcis "aprendidos no colo da vovó," nas palavras de J. Fodor. A psicología do scnso comum representa a matéria prima dos estudos filosóficos da mente. A respos­ta a problemas de ordem epistemológica e ontológica, assim como os desvíos, as derrapagens da racionalidade, da consciencia, da intencio­

nalidade, sao tratados dentro dessas duas disciplinas inseparáveis Teo­ría da acyao e Filosofia da mente, sendo a Psicología do senso comum um capítulo da Teoría da a~ao.

A interpretac;ao de um comportamento como ac;ao, para D. David­son, é a consagracyao de propriedades intencionais a um movimento e repousa sobre o "principio de caridade," que diz que se considere a racionalidade de urna ac;ao ou de urna crencya no conjunto de outras

crcnc;as, desejos e emoc;oes do agente. Assim em bloeo, as ac;oes sao interpretadas e nao podem ser separadas e isoladas como pedem as leis que regem o funeionamento do comportamento físico. Eis porque nao é possível colocar os eventos sob leis detenninistas quando descri­tos em termos intencionais e sob urna determinada dcscric;ao, embora

sua interac;ao seja causal. Quando alguém ere em algo, isso faz com que aceite o~tras crenc;as que se conectam logicamente, o que nao é

feíto sem o uso de normas na condw;:ao do pensamento, sejam elas dedutivas ou indutivas. Compreendemos alguém quando interpreta­mos o que pensa segundo normas da racionalidade, dessa fonna, sao as nonnas que dao coercncia e consistencia as ac;oes, afirmando seu papel. Em contrapartida o agente irracional é aqueJe que nao se con­forma espontaneamente as crenc;as e desejos e a lógica interna na pro­

duc;ao da ac;ao, abrindo urna fenda no processo da racionalidade, pro­vocando, ao mesmo tempo, urna distorc;ao da racionalidade.

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2 18 Maria Cristiua T. !>i>araun

S. Freud -A causa inconsciente

O ser humano. o agente. o falante. quando exposto ao mundo, sob o princípio de realidade, !ida com uma vari edade de emo<;oes e conflitos psíquicos onde necessidades de satisfn<;ao, estabilidade, "paz de espí­rito" podem ser perturbados por impulsos e desejos, valores e cren<;as, adotados ao longo de sua existencia. Os conflitos mais importantes ocupam um espa<;o no inconsciente, fora do alcance da percep<;ao, e ficam impedidos de aplicar os meios da razao ou do senso comum. Dessa forma os artifícios da personaliclade planejados para servir de defesa contra emoc;oes fortes e insuportáveis podem se desorganizar, esses processos de defesa podem ser bloqueados ou desv iados, consti­tuindo-se num poderoso desencadeador de doen<;a. as neuroses.

Para a psicanálise a realidade psíquica do paciente compreende seu sistema de cren<;as, de desejos e lembran<;as. O conteúdo de um desejo ou de uma cren<;a e, em conseqüencia, o conteúdo de uma a9ao, tem u m lugar e uma fun9ao na rede de estados mentais que sao levados em conta numa análise. Há uma liga<;ao estreita entre os pensamentos, os estados mentais do paciente e o mundo exterior que o analista consi­dera na perspectiva de uma intera9ao causal. A análise procura acolher o esquema conceitual do paciente dando crédito e "escurando o in­consciente." Repressao e defesas proveni entes da divisüo do ego tem aí papel importante agindo e produzindo efeitos - síntomas. A psica­nálise desde seu início vem se preocupando com as inquieta<;6es, con­tlitos e inúmeras outras manifesta96es expressas na cultura. que tomam a forma de mal estar e vao tecendo variados síntomas. S. Freud procu­rou detectar o erro que no nível das neuroses toma um aspecto moral, de julgamento.

Quando o psicanalista aplica a regra fu ndamental da associa<;ao li­vre como guia da interpreta<;ño analítica quer com isso evitar a censura do pensamento dos pacientes que originalmente já sao censurados, isto é, submetidos a repressao. Ao possibi litar ao paciente o acesso a elos associativos e fragmentos do discurso. o analista levanta as crenc;as do paciente e conseqüentemente os moti vos de determinadas a<;6es. A

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lrracionalidade: enigma da racionalidatle 219

regra fundamental consiste para o paciente em se libertar do peso do falta, do erro, possibilitando o tratamento, buscando a causa de seus desejos reprimidos. O paciente pode, entretanto, calar-se, dissimular, mas mesmo assim, S. Freud insistiu em descobrir o porque, a causa dessa provoca9ao. Doente de suas interdi96es, o paciente ao aceitar o processo de cura poderá agir a partir da falta/erro. O interessante é que a falta/erro, apresentada sob a forma de culpabilidade, causa do sofri­mento do paciente, é produto do combate entre leí e sexo, que ao se impor ao su jeito como repressao do desejo se mostra e se justifica por razoes incompreensíveis para o paciente. Como médico e psicanalista, S. Freud, buscou a cura para a o mal do erro, inconsciente e incoerente sob o aspecto da racíonalidade, e nao da falta moral do qual o erro é signo.

Entretanto, nao há manifestas;ao inconsciente que nao traía a falta, por mais reprimida que esteja; cxprímindo-se como pode, revelar-se-á nos lapsos, nos enganos, nos gestos, nos sonhos, ísto é, nas formas;oes do inconsciente.

As manifestas;oes expressas pela angústia e pelos síntomas revelam - se nas estruturas da personalidade psíquica, uma delas é o ego. S. Freud observa em Neuropsicoses de defesa:

O eu do sujeito ao confrontar-se com uma experiencia, uma represen­ta9ao ou um sentimento que suscitaram um afeto muito aflitivo, rejei­ta, decidindo esquecer, esse afeto inaceitável como defesa, pois nao confia em sua capacidade de resolver a contradic;:ao entre a represen­tac;:ao incompatível e intolerável e a coisa mesma.

Diz ainda:

quando chamamos a aten<;:iio para a representa9iio primitiva, de natu­reza sexual, recebe do paciente a seguinte resposta- isso nao tem na­da a ver comigo. Nunca pensei muito nisso.5

Essa objeyao tao freqüente integra uma prova de que a representas;ao obsessiva constituí-se num substituto ou um sub rogado da representa-

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220 .lfaria Cristina 1: Sparano

ção sexual intolerável c se acha substituído na consciência . Essas situ­ações produtos da repressão ou rccalcamento, imagens, pensamentos,

recordações, ligadas a uma pulsão, ocorrem nos casos em que a satis­

fação da pulsào, suscetível por si mesma de proporcionar prazer pro­

voca desprazer. No lugar do erro então reprimido, o desejo, no lugar da fantasia c do sonho, o rea l do sexo, seu aroma:

Quando o odor da peste invadiu Tebas, o bom rei Édipo procura o culpado, pois se a cidade cheira mal, a crença dos tebanos é que " is­so" só pode vir de fora - do estrangeiro (irracional). Ora, o estrangei­ro é Édipo, o que cheira mal, o culpado, inclusive do sexo incestuoso. Quando descobre o irracional, não coerente, inconsistente, dentro de­le fura os próprios olhos e se reli ra. Vitória da racio. da cidade, que inocentada admite novas leis.

Em psicanálise o processo da cura começa por fazer ceder a repressão, baixar as defesas. O interessante é que ao levantar o véu da repressão o paciente o substitui por uma tela para ver através dela, guardando sua identidade - o cu -, pois a identidade do suje ito é o que o coloca no corpo social.6

S. Frcud em "Divisão do ego c processo de defcsa"7 se questiona

sobre o que ocorre com um sujeito que tem suas exigênc ias de satisfa­ção contempladas mas que, subitamente, é atingido por uma experiên­cia que mostra que a continuidade da satisfação traz consigo um peri­go rea l praticamente intolerável. Terá que decidir- se: ou bem rcco­.nhccer o perigo, ou bem renunciar à satisfação instintiva, negando- a, para poder continuar com sua satisfação. O dilema entre a exigência do instinto c a proibição por parte da realidade provoca essa fenda ou divisão no ego. A so lução é que o sujeito não vai por nenhum desses caminhos, mas os toma si multaneamente. O suje ito responde ao con­fli to com duas reações contrárias, mas as duas válidas e eficazes. Com ajuda de certos meca nismos, rechaça a realidade c se recusa a aceitar

qualquer proibição ao mesmo tempo em que reconhece o perigo e o

medo subseqüente, produz indo sintomas, tentando, dessa forma, li­vrar-se do medo, que é apenas um sinal do perigo que realmente o

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lrraciollalidade: euigma da racioualulcule 221

atinge. S. Frcud diz ser es ta, uma so lução muito engenhosa. A conduta dos pacientes é de rechaço à realidade, conduta que na neurose é a

mesma que encontramos na psicose, mas com uma diferença, pois não se trata apenas de contrad izer suas percepções c crer na percepção

aluc inatória. Do ponto de vista da explicação teórica, na verdade, o sujeito só realizou um des locamento. Do ponto de vista clínico isso demonstra que há no sujeito urna divisão que podemos exprimir como

uma divisão do desejo: entre o desejo de se curar de um lado e por outro o desejo de não se curar de seus si ntomas, foi o que S. Freud denomi nou como fuga para a doença, com todos os bene fícios e ga­nhos secundários. Evita-se a situação conflitual geradora de angústia e encontra-se na fom1ação de sintomas uma redução da mesma.

D. Davidson -Atuar por razões

O Dr. G. Reach, endocrino logista especializado em diabetes em seu livro Pourquoi se soigne-t-il? (2005) ao tentar responder essa pergunta busca apoio nos conceitos desenvolvidos pela filosofia da mente, na medida em que esta permite uma descrição lógica e não apenas psico­lógica do papel dos diferentes estados mentais como crenças, desejos e intenções. Quer entender, finalmente, o processo do agir, quando rea lmente queremos nos tratar, ou não. Ao expor suas dúvidas pergun­ta: "Escolhemos uma solução cuja recompensa não é imediata no lu­

gar de uma satisfação imediata? Qual é o priflcípio que rege nossas ações quando aceitamos o t ratamento? Evidentemente o princípio de racionalidade." No entanto, examina o problema através da " não­observância terapêuti ca," ressaltando que todas etapas do tratamento não são negligenciáveis, mas dentro de todos elementos da saúde con­siderados, história da própria v ida, da vida do paciente, sua capacida­

de de observação, constatação de me lhora ou cura, por alguma razão abandona ou negligencia o tratamento prescrito. Quando um médico no final de uma consulta prescreve um tratamento ao doente ele supõe

que este irá seguir suas recomendações c tomar o medicamento pres-

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222 Maria Crt.\1/lla T. Sparanu

crito. Ora, a experiênc ia mostra que nem de longe esse é o caso. O doente pode parar o tratamento em poucos dias embora esti vesse pre­

visto para um mês. Ele pode até mesmo nem comprar o medicamento,

sejam e les reembolsados ou não pe lo seguro social. Outras recomen­

dações não são seguidas, apesar das bem iotcncionadas promessas do paciente e das repetidas exortações do médico, mesmo assim o pacien­te não as segue, não pára de fumar ou faz um regime. A conclusão é que o médico tinha razões ao tàzcr suas prescrições, mas se o paciente não as segue, deve também ter razão ou quem sabe muitas, isso quer dizer que as razões j us ti ficam as ações, isto é, lhes dão sentido desde o ponto de vista do agente c tomam valor casual c encadeamento lógico.

O mais chocante é que não se trata de casos isolados, admite-se g lo­balmente que metade dos pacientes não segue à risca as prescrições c conselhos que os médicos lhes prescrevem. O mais interessante é que isso não é exclusividade dos pacientes, há muitos médicos obesos que fumam e não se tratam quando estão doentes ...

O diagnóstico de D. Davidson a esse problema, numa resposta ao já c itado artigo de M. Cavei!, Reason and the Gardener, sobre os pa­radoxos da rac ionalidade, diz que M. Cavcll concentra sua interpreta­

ção não sobre a irracionalidade, mas sobre uma "puzzling forma da racionalidade." Sugere que muitos casos de iiTacionalidadc envolvem situações nas quai s um estado mental causa um outro, mas não é uma razão para isso, tomar desejos por rea lidades ou " fantasiar" é um sim­ples exemplo. Mas nem sempre tais esforços para integrar desejos, emoções, convicções e hábitos tot~lmente racionais e coerentes entre si refletem o sentido de como cet1as decisões verdadeiramente difíceis são cxpericnciadas como dificuldades. Continua, o paradoxo é o se­guinte: "nada no domínio do que possamos esperar ou desejar é mais importante do que uma escolha, quando, às vezes, isso abre a uma profunda c itTcversível mudança em nossas vidas e finalmente afeta o tipo de pessoa que somos: mudar de vocação, abandonar um projeto

mudar - se para outro país, envolve um exercício de racionalidade."

D. Davidson afi rma que, tomar desejos por realidades, "fantasiar," envolve o que chama de "atos intencionais maduros" (fu/1-jledged

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222 Maria Cristina 1: Sparanu

crito. Ora, a experiencia mostra que nem de longe esse é o caso. O doente pode parar o tratamento em poueos días embora estivesse pre­visto para um mes. Ele pode até mesmo nem comprar o medicamento, sejam eles reembolsados ou nao pelo seguro social. Outras recomen­das;ocs nao sao seguidas, apcsar das bcm intencionadas promessas do paciente e das repetidas cxortas;ocs do médico, mesmo assim o pacien­te nao as segue, nao pára de fumar ou faz wn regime. A conclusao é que o médico tinha razoes ao fazer suas prescris;oes, mas se o paciente nao as scgue, deve também ter razao ou quem sabe muitas, isso quer dizer que as razoes justificam as as;oes, isto é, lhes dao sentido desde o ponto de vista do agente e tomam valor casual e eneadeamento Lógico. O mais chocante é que nao se trata de casos isolados, admite-se glo­balmente que metade dos pacientes nao segue a risca as prcscris;oes e consclhos que os médicos lhes prescrevem. O mais interessante é que isso nao é exclusividade dos pacientes, há muitos médicos obesos que fuma m e nao se tratam quando esta o doentes ...

O diagnóstico de D. Davidson a esse problema, numa resposta ao já citado artigo de M. Cavell, Reason and the Gardener, sobre os pa­radoxos da racionalidade, diz que M. Cavell concentra sua interpreta­s;ao nao sobre a irracionalidade, mas sobre uma "puzzling forma da racionalidade." Sugere que muitos casos de irracionalidade envolvem situas;oes nas quais um estado mental causa um outro, mas nao é uma razao para isso, tomar desejos por realidades ou "fantasiar" é um sim­ples exemplo. Mas nem sempre tais esfors;os para integrar desejos, emos;oes, convics;oes e hábitos tot~lmente racionais e coerentes entre si refletem o sentido de como certas decisoes verdadeiramente dificeis sao experienciadas como dificuldades. Continua, o paradoxo é o se­guinte: "nada no dominio do que possamos esperar ou desejar é mais importante do que uma escolha, quando, as vezes, isso abre a uma profunda e irreversível mudans;a em nossas vidas e finalmente afeta o tipo de pessoa que somos: mudar de vocas:ao, abandonar um projeto mudar - se para outro país, envolve um exercício de racionalidade." D. Davidson afinna que, tomar desejos por realidades, "fantasiar," envolve o que chama de "atos intencionais maduros" (fu!!-jledged

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!rracionalidade: enigma da racionalidcule 223

intencional acts), baseado na crenya de que posso ser mais feliz se agir no presente com a evidencia que sustenta meu desejo.

Fantasia é basicamente um caso onde desejos, mesmo os nao racio­nais, causam mna ayao. lsso permite que a "timtasia" cause uma ayao que promove a cren9a. Atuar por razoes quer dizer que o que voce ere, que o que voce deseja, causa o que voce faz." Diz ainda, "O que acho mais interessante na questao é como trayar a linha divisória en­tre atos intencionais maduros, situayoes ondeas pessoas tem razoes e nao tem dificuldade de dar as razoes quando questionadas e casos onde está claro que a pessoa tem razoes para agir e é o que faz com que estas razoes, sem dúvida, causem a ac;:iiG, mas ela niio tem cons­ciencia nem pode dizer porque fez o que fez. "8

Já para M. Cavell, o agente ao por de lado sua razao, deixa de en­las:ar uma parte do que conhece na totalidade das razoes.

D. Davidson sugere que há num mesmo espírito fors:as que intera­gem no nível mental influenciando e provocando ayoes para as quais nao há razoes ou as razoes dadas nao as explicam. A coerencia está parcialmente ligada a um subsistema e nao a totalidade do sistema racional considerado. Logo, há aspectos do mental que se entrecruzam e causam as:oes definidas como inacionais por causa dessa interferen­cia. D. Davidson em seu texto "Paradoxos da Inacionalidade" dizque a divisao do espírito ou da mente, para ele é puramente funcional e que os conceitos operatórios sao os de razao e causa analisados sob urna ática descentrada, mas sob um fundo de racionalidade. Assim, as as;oes que tem urna explícas:ao dita irracional devem estar submetidas a uma compreensao de segunda ordem, aqueta do mundo dos desejos, das crens:as e dos valores. E precisa que sua explicayao nao é a expli­cayao freudiana.

Quanto a S. Freud, foi acusado de dividir o espírito ou a mente em partes independentes, "id," "ego, " e "super ego," que agiriam umas contra as outras, provocando as;oes que o agente nao podería controlar, havería no agente sub-sistemas autónomos, como personalidades, com poder mental (homunculi). A acusas:ao a S. Freud nasce do fato que no

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224 Maria Cristina 1: Sparano

inicio de sua teoría, por vezcs, dá um aporte mecanicista e uma expli­cas:ao causal ao funcionamento mental, aproxima mesmo essa explica­c;:ao as leis da medinica, seus exemplos, sao exemplos da hidráulica e da eletricidade, outras vezes, na explicac;:iio de seus casos, dá uma explicac;:ao antropomórfica e intencional ao inconsciente. De fato , a explicas:ao freudiana do inconsciente nao se situa nem do lado da esfe­ra da intencionalidade, nem da causalidade cega. As forc;:as que se entrecruzam no espirito, "id, " ''ego," e "super ego" e as ac;:oes sub­metidas a essas forcras nao tem uma explicacrao racional, suas razoes sao necessárias, mas nao suficientes e a explicas:ao intencional é ina­propriada.

Enigma da racionalidade? Para D. Davidson, os eventos mentais quando descritos em tennos

físicos se explicam por urna lei e revelam urna relas:ao causal, mas os eventos mentais, como os atos intencionais, os desejos e crencras, nao sao submetidos a leis estritas ou explicados por elas, sao compreendi­dos e interpretados. Antes de serem descritos como eventos mentais levam sua marca de liberdade rompendo a relacrao causa - efeito, por essa razao, nao podem ser sempre explicados e justificados, mas inter­pretados dentro do padrao da racionalidade.

Ali onde D. Davidson ve um processo lógico de contradicrao entre as acroes de um individuo, porque desejos e crens:as nao entraram em consideracrao na análise de suas atitudes, mas ainda assim, razoes que nao sao causas, causaram urna acrao, S. Freud, ao analisar o mecanis­mo da neurose, baseado na divisao do ego e na influencia das outras instancias do espirito, admitiría o paradoxo da irracionalidade, onde mna falta ou falha no sistema da racionalidade acarreta ac;:oes peculia­res ao sujeito, sem esquecer, bem entendido, a dor ou sofrimento de que o sujeito padece.

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lrmciona/idade: enigma da rudona/idade 225

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226 Maria Cristina T. Sparano

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S./a. 1994. "Una Conversación con D. Davídson." Descartes 9 (13).

Notas

1 Axenfeld, A., Traité des névroses, Genner Bailliere et Cíe, 1883, in Laplan­che, J., Vocabulário da Psicanálise. 2 Stein, E. , "Paradoxos da Racionalidade." 3 Segundo E. Anscombe, lntentions. 4 Davidson, D., "Paradoxos da irracionalidade." 5 Freud, S., Obras Completas. 6 Segundo E. Stein, "A desconstru~ao do eu, numa versao heideggeriana," o eu servirá como anteparo diante da morte. 7 Freud, S., Obras Completas. 8 Davidson, D., "Reply to M. Cavell."

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Naturalismo e constru~ao da verdade1

Maria Cristina Sparano Eduardo Vicenzi

Silvia Maria Monteiro Patrícia Pereira

Universidade Federal do Pm·aná

Na filosofia contemporanea um dos temas que suscitam muitos deba­tes, inclusive o que deu margem ao presente artigo, é o naturalismo. O programa de naturalizas:ao cm filosofia tem como posis:ao epistemoló­

gica urna descris:ao de estados fisicos que o define em tennos de cien­cia natural como a biología, ou a física. Partindo de urna imagem cien­tífica de mundo, aí estao presentes, pa1iículas físicas , campos de for­s:as, relas:oes causais e leis naturais. Os debates mais importantes que dao for«;:a a essa conceps:ao filosófica decorrem de duas plataformas ideológicas bem definidas, realismo e anti-realismo, que cstao presen­tes no trabalho de P. R. Margutti (2004), soba perspectiva da lógica e da linguagem por ele denominada de realismo metafísico em lógica

(de iospiras:ao fregeana) e transcendentalismo lógico (de inspiras:ao witgenstciniana). No que diz respeito a linguagem, a primeira posis:ao apela ao fom1alismo lógico dos primeiros filósofos da linguagem, que negam a linguagem natural, e a segunda, que nao se funda em essen­cias, mas cm convens:oes "a sombra pragmática da gramática," nas palavras do autor.

Os pressupostos naturalistas que dao suporte a crítica sistemica feí­ta por Maturana e Varela (2001), a nos:ao de objctividadc na ciencia moderna e á dicotomia cartesiana entre mente e corpo, também fun­

damentam as críticas a outras dicotomías tradicionais, seja na perspec-

Dutra. L. H. de A. e Mortari, C. A. (orgs.), 2005. Epistemologia: Anais do IV Simpúsio Interna­cional. Principia - Parte l. Florianópolis: NEL/UFSC. pp. 227- 240.

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228 Maria Cristina T. Sparano el al.

ti va epistemológica ( com a distin~ao a priori/ a postcriori); seja na perspectiva lógica (com a distin~ao ncccssário/ contingente); seja na perspectiva semantica (coma distinvao analítico/ sintético).2

A visao dos seres humanos como "unidades autopoiéticas," siste­mas auto-organizados e operacionalmente fechados, que se encontram cm interavoes causais com o ambiente gera conseqüencias filosóficas frutíferas e contextualiza tanto a Epistemología Naturalizada de Qui­ne3 como a abordagem nao-metafísica da linguagem e da lógica, qua! seja, o "kantismo naturalizado" sugerido por Margutti (2004).

Em oposi~ao ao realismo metafísico em lógica, e ao transcendenta­lismo lógico emerge o alcance do naturalismo, em sua formulavao epistemológica e uma formula~ao ontológica em pretendida constru­vffo da verdade. A perspectiva naturalista pode ser ilustrada pela tese central de A árvore do Conhecimento de Maturana e Vareta (2001: 33):

Vive1nos no mundo e por isso fazemos parte dele; vivemos com os outros seres vivos, e portanto partilhamos com eles o processo vital. Construímos o mundo em que vi vemos ao longo de nossas vidas. Por sua vez, ele também nos constrói no decorrer desta viagem comum.

Para Margutti, essa tese é compatível com o conceito de "emulavao eficiente," e, num nível mais abrangente, a idéia do "kantismo natura­lizado." Tanto a teoría de Margutti (2004) quanto a teoría de Maturana e Vare la (200 1) alinham-se a· concepyao epistemica naturalista ao compartilharem em maior ou menor grau as seguintes teses:

/" Nossas sensa<;oes niio possuem conteúdo proposicional. mio for­necendo dados que constituiriam o conteúdo das expressoes lin­giiísticas;

2" linguagem está de algum modo fechada em sí mesma, wna crenr;a só é pode serjustificada por outra crenr;a;

3" As rela<;:oes cognitivas entre ser humano e mundo envolvem intera­<;:oes causais. (Margutti 2004: 20-1)

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Naturalismo e cons /ruqáo da verdade 229

Norteado pelas tres teses, este artigo visa abordar a questao da cons­truyiio da verdade a partir de urna perspectiva naturalista, cotejando Quine (1960, 1969, e 1995), Maturana e Varela (2001) e Margutti (2004). Para isso será essencial a definiyiio de conceitos como "consti­tuiyao anatómica do significado," "objeto físico," "emula.yao," "con­tabilidade lógica" e "meio ambiente." Por fim, o presente artigo examinará a compatibilidade entre a episte­mología naturalista a tese de Davidson (1992) de que a justifica.yao da cren9a se dá num sistema de cren9as e em termos causais, no qual toda conexao causal é ordinária e contingente e também observável e ex­trínseca.

1. Constitui~ao anatómica do significado

Para Quin e ( 1995), cabe a análise da linguagem identificar e compre­ender as variáveis que interagem no comportamento dos falantes além da maneira como se dá a deteimina9iio de urna resposta, ou, a constitui.yao anatómica de um significado. A análise da linguagem deve apoiar-se na observa9iio do comportamento dos falantes. Seu naturalismo epistemológico é expresso na convic9ao de que as teorías sobre a linguagem sao passíveis de verificac¡:ao empírica, urna vez que tratam de fenómenos naturais e observáveis: o discurso, os atos lingüísticos, as r~spostas que estes provocam em seus ouvintes, os processos de aquisi9ao da linguagem.

Estímulo e resposta sao categorías associadas ao meio social e ao comportamento dos indivíduos, ambas devem estar íntimamente inter­relacionadas. Quine dá como exemplo da inter-rela.yao a aquisiyao das palavras por urna crianya. Quando a crian9a enunciar "vennelho," é porque terá sido instigada por estimula9ao a enfatizar a cor do objeto. Além da aquisi.yao do comportamento verbal por meio da observayiio, da imita¡yiio de adultos, das outras crian9as e por meio da manipulayao dos dados externos, conforme a concep¡yao behaviorista, supoe-se que

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230 Maria Crislina T. Sparano et al.

o dispositivo mental da crianya possui determinados mecanismos ana­

líticos de proccssamento de dados ou principios indutivos dementa­

res, como os principios de associa9ao, os principios de generaliza9ao e os principios taxonómicos de segmentayao e de classificayao. Na in­ter-relayao dá-se a constituiyao anatómica do significado.

De ac01·do com esta perspectiva, a língua é vista como urna coleyao de palavras, locu9oes e senten9as; um sistema cujos hábitos sao adqui­ridos e explicados no meio externo. A aquisi9ao da linguagem, a for­mulayao de conceitos e o próprio conhecimento seriam o resultado de urna construyao gradativa que ocorre primordialmente pela experien­

cia. Quin e ( 1969: 132) dizque: "a linguagem é urna arte social que nós todos adquirimos em circunstancias publicamcntc reconhecíveis [ .. . ]," o que é compatível com a noyao de Dewey (1958: 179) de que "o significado nao é urna existencia psíquica; é antes urna propriedade do comportamento."

O fato de o significado ser constHuído, na perspectiva naturalista, de um modo anatómico - e socialmente anatómico - é detenninante na compreensao da intersubjctividade como fundamental no critério de decidibilidade entre teorías, bem como no processo de aquisi9ao de significado dos predicados da ciencia.4

O percurso estimulatório pode ser diferente para o lingüista e para o indígena5

, mas nao anula a afinidade quanto ao nivel da exteriorida­

de e da sinonimia. É possível apreender a situa9ao perceptiva dos ou­tros, mesmo ignorando os mecanismos patticulares postos em marcha em suas experiencias perceptuais. Quine ( 1969) propoe que u m enun­ciado de observa9ao é bom para um grupo se é bom para cada um de seus membros. Diz também que cada um está de acordo em dar ou recusar seu assentimento quando é testemunha das circunstancias da enuncia9ao desse mesmo enunciado. Isso só é possível quando se su­

poe que um ser pode se colocar no lugar do outro, sem necessidade de estímulos partilhados.

Ainda sobre o caráter social da aprendizagem, Quin e ( 1960) diz

que o sujcito depende estritamente do comportamento aberto em situ-

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Narurafismo e consrrur;clo da verdade 231

avoes observáveis para aprender a língua, principalmente do compor­tamento, da observas;ao e do refors;o dos outros.

Maturana ( 1990), do mes m o modo que Quine, a dota urna posis;ao ''externalista" para definir a maneira como se dá o processo do "ensi­no." Nas suas palavras, ensinar é: "Desencadear mudans:as estruturais, desencadear perturbavoes. E como fazemos isso? Em coordenavoes de coordenas:oes de as:oes. Ou seja: vivendo juntos." Professor e aluno, ao participarem de um mesmo espas;o de convivencia, passam a ser "co-ensinantes" e "com-viventes." É o professor quem guia a crias:ao do espayo de convivencia onde além dele participará o aluno, um es­pas:o que promove mudanvas em ambos.

2. O problema da referencia

A perspectiva quiniaoa da ioescmtabilidade da referencia e a indeter­minas:ao da tradus:ao deixam transparecer o problema da representa­s:ao6, o qual é abordado de maneira surpreendentemente simples na conceps:ao da matriz biológica do conhecimento de Maturana e Varela (200 1 ). Margutti adota o po:nto de vista des tes autores para fundamen­tar sua descris:ao do que seria a emulas:ao eficiente. Segundo ele, "A perceps:ao surge como a constms:ao de um mundo por parte do ser vivo dotado de sistema nervoso, a partir de estimulavoes causadas nos nervos aferentes" (2004: 3). O cooceito de "emulas:ao" vai contra a idéia de que o conhecimento se daria através de represel)tas:oes acura­das do mundo. Margutti continua dizendo que: "O importante, do ponto de vista da sobrevivencia do ser vivo, está em que este mundo constmído deve ao menos permitir interas:oes bem sucedidas com o mundo exterior." O ser vivo utiliza-se de um modelo que nao se resu­me a urna cópia mais ou menos acurada da realidade, e sim, a "[ .. . ] urna estrutura conjetural capaz de emular mais ou menos adequada­mente o comportamento de urna regiao do meio ambiente." Além disso, segundo o autor, "[ ... ] urna estmtura emuladora nao precisa

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232 Maria Cn~<tina T. Sparano et al.

possuir isomorfismo estrutural com o objeto que ela está emulando" para ser bem sucedida.7

Mas, supondo que o sistema nervoso nao funciona com representa­

s;oes do mundo que nos cerca, como enUio poderia ser explicada a extraordinária eficácia operacional do homem e dos animais em sua imensa capacidade de aprendizagem e manipula9ao do mundo?

A solus;ao encontrada por Maturana e Varela (2001: 32) foi a de manter uma contabilidade lógica que equivale a nao perder de vista

que: "tudo o que é dito é dito por alguém." Uma mesma unidade pode ser vista em dominios diferentes, a depender das distinc;oes a serem feítas . Assim, por um lado, pode-se considerar um sistema no domínio

de func ionamento de seus componentes, no ambito de seus estados internos e modifica96es estruturais. Pa1tindo desse modo de operar, para a diniimica interna do sistema, o ambiente nao existe ou é inele­vante. Por outro lado, pode-se considerar uma unidade segundo suas interac;oes com o meio e descrever a história de suas inter-relac;oes com ele. Nessa perspectiva, na qua! o observador pode estabelecer

relac;oes entre certas características do meio e o comportamento da unidadc, a diniimica interna desta é irrelevante.

Nenhum desses dois dominios possíveis de descric;ao é problemáti­co em si. Ambos sao necessários para o pleno entendimento de mua unidade. É o observador quem os conclaciona a partir de sua perspec­tiva externa. O problema comes;a quando se passa, sem perceber, de um dominio para o outro, e se comes;a a exigir que as corresponden­cias que podem ser estabelecidas entre eles, pois podem ser vistos ao mesmo tempo, fac;am de fato parte do funcionamento da unidade:

nesse caso, o organismo e o sistema nervoso. Se a contabilidade lógica do observador for mantida de forma clara, essa complicas;ao se dissi­pará. Nao mais se toma necessário recorrer as representas:oes nem negar que o sistema nervoso funciona num meio que lhe é comensurá­vel, como resultado de sua história de acoplamento estrutural.8

Como forma de ilustrar a concepc;ao da matriz biológica do conhe­cimento, Maturana e Varela utilizam um exemplo imaginário. Supo­nha-se que uma pessoa sempre vivera dentro de um submarino, sem

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N(l(uralismu e coustru{'lio da •·erdade 233

nunca te-lo deixado, sabia operar todos os seus aparelhos com habili­dadc. Ao aproximar-se da praia com perfci<;ao alguém lhe parabcniza por ter evitado os recifes e por ter vindo a tona com muita elegancia com manobras perfeitas. O tripulante, por sua vez, responde que nada sabe sobre " recifes" ou sobre "vir a tona," mas somente sobre "mover alavancas, girar botoes e cstabeleccr cettas rela<;oes entre os indicado­res de urnas e de outros na seqücncia prescrita" (200 1: 152) . Ou seja, para o piloto do submarino, as representa<;oes de mundo feítas pelo observador externo nao sao compatíveis com as suas, o que nao afeta o modo como ele se comporta. Segundo Maturana e Varela, pode-se constituir uma analogía entre o "submarino" e os "seres vivos," sendo que estes também nao precisam compartilhar as mesmas representa­<;oes do mundo externo para se comportarcm de modo satisfatório.

3. lntcrsubjetividade, cren<;a e modelos de emula~ao eficientes

Margutti (2004) entende o conhecimento como provisório e como resultado de emula<;oes eficazes. É neste sentido que a verdade, ao invés de ser "descoberta," a verdade é "construída" pelo ser vivo, den­tro de um sistema de cren<;as. Diz Margutti (2004: 9) que:

O caráter provisório das nossas cren9as e das teorías científicas pare­ce um fato muito bem.estabeleciclo, que nao pode ser explicado pela no9a0 de verdade como representac;ao acurada do reaL Com efeito, se alcanc;armos algum día uma represen1a9ao desse tipo, e la terá de ser definitiva e nao poclerá ser suscetível de qualquer correc;ao, con­tradizendo esta constatat;:ao.

De ac01·do com a no<;ao de provisoriedade do conhecimento, a va­lidade de uma teoría está atrelada ao seu poder de emula<;ao. Coisa semelhantc poderia ser dito de uma teoría cientíi'ica qualquer, como a mecanica newtoniana, o marxismo ou a psicanálise. Elas nao constitu­em cópias mais ou menos acuradas da realidade, mas sim estruturas emuladoras desta mesma realidadc, com diferentes graus de sucesso.

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234 Maria Cristina T. Sparano et al.

O mesmo se daría em todos os ambitos do fazer humano, entre eles, a arte e a lógica .

Para se pensar um modelo de emulas:ao eficiente no caso da arte,

pode-se recorrer ao pcrsonagem que, rivalizando com Édipo, mais

possibilitou análises, interprcta¡yoes, lcituras, montagens, cursos, dis­cussoes, e servirá, inclusive nestc caso, como ilustra¡yao para o modo como se constrói e se validada urna verdade: Hamlet, o melancólico príncipe da Dinamarca.

"Ser ou nao ser, cis a questao." É interessantc notar que esta tao famosa e antiga pergunta levantada por Hamlet continue tendo um lugar de grande destaque na cultura ocidental. Contudo, nao parece ha ver nada de inédito numa história sobre a cólera de um nobre que ve

seu legado amea9ado por um usurpador e precisa vingar-se. Os histo­riadores nao cansam na sua tarefa de afirmar isso, mostrando semprc de ondc veio a idéia original de Shakespeare e como ele por duas ve­

zes articulou a mesma idéia. Mas a personalidade de Hamlet (final e nao do seu primeiro Ur-Hamlet)9 vive o dilema por um lado, sua posi­yao de príncipe e, de outro lado sua condi¡yao de sujeito, falível e nem um pouco nobre . Talvez esta personalidade, ela mesma tenha revela­do com a obra uma outra dimensao do "humano. " Hamlet emula efi­cientemente uma característica muito particular presente na sociedade, a saber, a dúvida entre o dever moral e o dcsejo individual.

Hamlet extrapolou as inten¡yoes de seu criador. Assim como todo o conhecimento verdadciro e eficiente, perdurou além do que scu en­gendrador poderia prever. H arold Bloom, um dos mais reconhccidos estudiosos da obra de Shakespeare, define da seguinte mancira a im­portancia de Hamlet:

[ ... ] Hamlct está para os outros personagens literários assim como Shakespeare está para os outros autores: uma personalidade única, di­ferenciada pela grandeza cognitiva e estética. O príncipe e o poeta­dramaturgo sao os genios das transforma¡yoes. Hamlet, como Shakes­peare, é agente e nao instrumento de transfom1a¡yoes ( 1998: 513 ).

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Naturalismo e constru{:áo da verdade 235

A maneira como o humano é expresso através do personagem Hamlet parece ser um caso muito bem sucedido de emulayao, tanto que faz a obra de Shakespeare perduJar durantes séculos como uma das obras artísticas mais importantes da cultura ocidental. Isto se deve, em gran­de parte, ao que Harold Bloom (1998) chamou de "invenyao do hu­mano," pois, segundo seu ponto de vista, Shakespeare foi responsável pela inven.yao da maneira como se compreende o humano contcmpo­raneamente, como um ser em constantes conflitos, um ser contraditó­rio que vive a tensao da luta entre seus desejos e seus deveres morais.

Se de um lado a tragédia é capaz de emular tao eficientemente o que seria "o humano," no outro extremo tem-se, em um grau muito maior de generalidade, a Lógica. Isto porque a Lógica é um modelo que, a exemplo de outros, tem sua validade na interayao bem sucedida com o meio, nao querendo dizer com isso que este modelo espelhe a estrutura do real. Margutti (2004: 12) propoe mna compreensao da Lógica como sendo um modelo emulador extremamente eficaz, o que é contrário a mna visao apriorística da Lógica, como sendo um reflexo de uma verdade já dada. O autor explica que:

É certo que a implica<;:ao material funciona porque preserva a verda­de. Mas este fato fica muito mell10r explicado se supusennos que a verdade que ela preserva é emula<;:iio e nao espelhamento ontológico. Além disso, o apelo a implica<;:iio material incluí uma série de conse­qüencias mais ou menos indesejáveis, como, por exemplo: a) uma proposi<;:ao verdadeira é implicada por qualquer proposis;ao; b) uma proposi<;:ao falsa implica qualquer proposi<;:ao; e) se uma proposi<;:ao é verdadeira, entao a disjun~ao entre ela e outra proposi<;:ao qualquer é também verdadeira (se p, entao ou p ou q - lei de adis;ao). Sabemos que essas propriedades nao sao em si mesmas paradoxais, pois nao passam de conseqüencias da ado<;:ao do operador de Filo. Sabemos também que, apesar dos pesares, elas funcionam adequadamente nos sistemas formais que as adotam.

O "ser ou nao ser" de Hamlet admite a contingencia de suas reflexoes, assume a verdadc do nao ser . Hamlet aceita a apari.yao de um fantas-

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236 Maria Crisrina T. Spara110 el al.

ma, fatos observáveis, a expressao de culpa do tio, a sua própria rcflc­xao dolorosa como eventos de mcsma significa~ao. Todos tem o mesmo estatuto. E indiscernívcl o que o move, embora na maioria das vezes esteja paralisado. Shakespeare desvia-se do modelo trágico nao só por inserir cenas de comédia a suas tragédias mas também ao cen­tralizar a peya nao mais em dilemas indissolúveis como Olimpo/Pólis, Homens/deuses, mas também por centrar sua narrativa no caráter do personagem, nao mais na sua sortc ou des6no. Hamlet refletc, ponde­ra, e de tanto buscar a verdade nao age. Paralisa diante das possibili­dades e das conseqüéncias de scus atos, e por isso, todo um reino pa­dece.

Se o grande personagem de Shakespeare nao tivesse considerado que: ou se é assim, ou nao se é assim, ou seja, se ao contrário de urna disjunyao, o personagem apresentasse uma como "Ser e nao ser," nao havcria quesU'io, nem dúvida. O personagem teria uma resposta, teria encontrado uma verdade definitiva. Diante da mesma experiencia, ele pode "ser ou nao ser." Se nosso poeta dramaturgo nao tivesse assim construído Hamlet, provavelmente, sua personalidade nao tivesse sido tao atraentc. Talvez Hamlet nao servisse a grandes fins, ou talvez mesmo nao teria sobrevivido até o terceiro ato.

4. Considera~oes finais

Após s~rem apresentados conceitos como "emula~ao," "contabilidaqe lógica," "constituiyao anatómica do significado," "meio ambiente," "objeto fisico," "unidades autopoiéticas," conceitos imprescindíveis para a compreensao da perspectiva naturalista de constru9ao da verda­dc, toma-se possível aproximá-la das consideras:oes davidsonianas sobre a justificas;ao da verdadc. Segundo Davidson: "Deixando de lado os casos aberrantes , o que mantém unidos, verdade e conheci­mento é o significado. [ ... ] Meu lema é: correspondencia sem confron­tas;ao. Dada uma epistemología carreta, podemos ser realistas." 10

(1992: 73-4)

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Naturalismo e cunslrll(;c7o da \'erdade 237

Segundo Davidson, a justifícayao de uma cren9a se dá num sistema

de cren9as e cm tennos causais, onde toda conexao causal é ordinária

e contingente mas também observável e extrínseca (e também lógica). Além disso, para ele:

Se a coen!ncia é uma prova da verdade, a conexao com a epistemolo­gia é direta, já que temos razocs para pensar que muitas de nossas cren9as sao coerentes com outras, o que por sua vez nos proporciona razoes para pensar que muitas de nossas cren9as sao verdadeiras.11

(1992: 79.)

A construyao da verdadc depende do acordo entre os falantes. Ao compartilharem uma mesma cren9a, a tornam verdadeira. Sendo as­

sim, para a perspectiva naturalista, a verdadc nao é ideológica, metafí­sica ou bascada em imagens, muito menos dada a priori.12

Assumir tal postura exige uma mudan9a significativa no modo co­mo se pensa tradicionalmente a quesü'ío da verdade. Nao sao inco­muns as rearyoes de desconforto de alguns frente a impossibilidade de um acesso "puro" e "neutro" do que convencionalmente se chama "rcalidade." S usan Haack percebe este fato com destreza ao afirmar que os cientistas boje possuem "[ ... ] urna profunda intolerancia coma incerteza e uma falta de vontade em aceitar que menos perfeito é bem melhor do que rigorosamente nada."

. Referencias Bibliográficas

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238 Maria Cris1i11a T. Sparana el al.

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Prof. Dra. Maria Cristina Sparano, Eduardo Viccnzi (mestrado em lingüística, UFPR)

Silvia Maria Monteiro e Patricia Pereira (gradua9ao cm Filosofia, UFPR)

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Naturalismo e Collstnu;tio da l'erdode 239

Notas

1 Este artigo é fruto do trabalho realizado no primeiro semestre de 2005 pelo Grupo de Pesquisa do em Filosotia e Psicamílise (CNPq), coordenado pela Prof. Dra. Maria Cristina Sparano. 2 Estas distinyoes podem ser encontradas em Martinith (2002). 3 Nol(iio de "objeto físico num mundo físico." Cinco marcos do empirismo in Quine (1995). 4 A perspectiva naturalista da linguagem renuncia a imagem do discurso como museu, onde as palavras e sentenvas de urna linguagem tem seu signi­ficado detenninado, ou seja, como tendo garantía de detenninayao. Para o naturalismo, segundo Quinc ( 1969) a pergunta sobre se duas expressoes sao sernelhantes ou nao quanto ao significado só tem urna resposta detenninada na medida em que tal resposta é decidida ern principio pelas disposiyoes das pessoas ao discurso, conhecidas ou desconhecidas. Quine ainda diz que, Se, por estes padroes, há casos indetenninados, tanto pior para a terminología do significado e da semelhanva de significado. 5 Vide o "caso Gavagai," em Quine (1969: 141). 6 Tem-se neste trabalho " representayao" no sentido pragmático, onde equiva­le a noyaO de construyiiO. Nesta perspectiva, cabe a cogni<;:iio construir ou representar o mundo, como um mapa representaría uma cidade. Nao se aceita o sentido radical de representaviio em que um sistema atua confom1e repre­sentavoes intemas. Nessa lógica realista, a cognivao representa as caracterís­ticas de um mundo pré-estabelecido e, depois, resolve problemas com base nessas representa96es. Maturana e Varela (2001) assimilam a crítica de que a "autopoiese" substituiu a noyiiO de representaviio por uma alternativa fraca: o externo como mera perturbaviio. Essa substituiviio pode levar a uma interpre­ta<;:iio solipsista, ao se considerar perturba9ao aparte de "regularidades emer­gentes de urna história de interavoes" do organismo. Para e les, o domínio cognitivo nao se constituí nem intemamente (q que autorizaría o so1ipsismo), nem extemamente (o que autorizaría o pensamcnto representacionista tradi­cional), mas se constirui a partir da reciprocidade histórica, que passa a ser "a chave de uma co-defini9ii0 entre sistema autónomo e meio." Os autores cha­maram esse ponto de vista de "enavao." Para a perspectiva enacionista, a cogniviio é urna atuaviio, ou seja, uma história de acoplamentos estrururais cujo efeito sistemico é a produvao de um mundo. 7 Para mais, ver Margutti (2004: 8), ao apresentar o exemplo do computador Deep Blue (que emula o comportamento de um enxadrista humano). 8 A unidade de um ser vivo é dada pelo conjunto da sua estrutura química e relacional (nao viva) com a s ua "organizavao." O processo que viabiliza a organizayiio metacelular maniendo as interayocs entre células individuais

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através da história é chamado por Vareta e Maturana (2001) de "acoplamento estrutural." O acoplamento estrutural leva organiza~oes e estruturas de uma ordem de complexidade e autonomia até níveis mais elevados, que aumentam a conserva~ao da existencia do ser vivo. 9 Shakespeare, antes de montar a versao de Hamlet como do modo como é conhecida, havia escrito mua mesma tragédia tratando deste personagem. 10 Tradu~ao dos autores. 1 1 Tradu~ao dos autores. 12 Para mais, ver Sellars (1967).

1

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¡

A estrutura lógica do diagnóstico hipocrático

Regina A. Rebollo Universidade de Siio Pauto

Aprescnto e comento neste trabalho os elementos que compoem a estrutura do diagnóstico médico relatados nos tratados que compoem o Corpus hippocraticum (CH), em especial no Sobre a dieta nas do­em;as agudas, em Predir;oes 1 e ll, no Prognóstico e no Epidemias.

Ao receber o doente em sua oficina (iatreion) ou visitá-lo em casa, o médico hipocrático segue, com maior ou menor rigidez, um modelo de conduta técnica e ética previamente estabelecidos. O encontro mé­dico-paciente, o qua! eneerra o ato clínico propriamente dito, tem por objetivo conhecer o doentc e sua doenya para o estabclecimento de um programa terapeutieo.

Diagnosticar para os médicos do Corpus Hippocraticum é reco­nhecer a doenya, identificá-la. O verbo diagign6skein que dá origem ao termo diagnosis pode ser traduzido por "discernir," "distinguir" ou ainda por "eonhccer e reconheccr atravessando ou percorrendo." O diagnóstico nao é o propósito principal do médico hipocrático. Ele é tao somcnte uma ferramenta para a elaborayao do prognóstico, meta ou objetivo primeiro da clínica hipocrática. O juízo diagnóstico diz qua! é a doenya; o juízo prognóstico conjectura sobre o que ocorrerá com o doente. A obtenvao do diagnóstico permite ao médico hipocrá­tico a claboravao do prognóstico, num certo sentido, verdadeira de­monstrayao de um saber especializado e prova de maestría e controle da doenya.

É preciso lembrar que o médico hipocrático é antes de tudo, um te­chnites, um a1tesao da arte de curar. Para tal médico o verdadeiro di-

Dutra. L. H. de A. e Monari. C. A. (orgs.). 2005. Epis{(:mulugia: Auais do 11' Simpusw luterna· ciunal. Principia- Parle l . Florianópolis: NELIUFSC, pp. 2-l l - 248.

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242 Regina A. Rebollo

agnóstico é um prognóstico, urna vez que a arte de curar nao se res­tringe ao plano do conhecimento ou saber teórico (episteme), mas é urna técnica (techné), um saber fazer de grande repercussao social e que em última instancia garante a boa reputa¡yao do médico e a conti­nuidade de seu trabalho (Rebollo 2003).

O diagnóstico hipocrático é também urna expressao da philia entre o médico, o doente e a natureza, isto é, um tipo de amizade técnica que surge no ato ou encontro clínico entre o médico e o paciente e que se realiza por meio de urna explorar;ao sensorial e lógica que redunda­rá no juízo diagnóstico, cujo resultado final é o conhecimento ou a identificar;ao da doenr;a.

Além disso, o diagnóstico hipocrático é fundamentalmente urna a­tividade sensorial-cognitiva. No entanto, ele se opoe a simples empei­ría ou conhecimento empírico comum, porque apresenta a radio do "por que o médico faz o que faz" ou age de tal forma. No sentido aris­totélico, o médico desvela por meio do diagnóstico o lagos oculto da natureza (physis) e tal desvelamento implica numa demonstra¡¡:ao das causas ou razoes dos diversos estados fisiológicos.

A o longo do CH quatro instancias teóricas (que correspondem no plano ontológico a quatro "camadas do ser") explicam a fisiología da saúde e da doen¡¡:a. Pela ordem de su a detennina¡¡:ao causal: ( 1) a ins­tancia exterior maior, o ambiente (esta¡¡:ao, temperatura e clima) e a geografia (regiao, cidade, moradia); (2) a exterior menor, o tempera­mento do paciente (idade, sexo, peso e complei¡¡:ao); (3) a camada interior, os humores e por fim (4) a exterioriza¡¡:ao (sinais e síntomas) do dinamismo ou estado dos humores (elementos e dynameis).

Quatro camadas do ser ou instancias teóricas: a exterior maior, o ambiente (esta9iio, temperatura e clima) e a geogra­

fia (regiao, cidade, moradia) a exterior menor, o temperamento do paciente (idade, sexo, peso e

complei9iio) a camada interior, os humores e a exterioriza9ii0 (s inais e síntomas) do dinamismo ou estado dos

humores (elementos e dynameis) (4 reflete 3)

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A esrrurura lógica do diagnósrico hipocrárico 243

O processo diagnóstico será feíto levando-se em considera9ao tais camadas no sentido inverso de sua determina9ao, ou seja, de baixo para cima. Ele tem início com uma explorayao sensorial: (i) o médico hipocrático verifica se o aspecto ou a aparencia do paciente pode ser caracterizado como morboso, isto é, se a physís do paciente está alte­rada pela physis da doen9a; (ii) em seguida, o médico analisa a nature­za dessa alterayao, se ela pertence a uma necessidadeforc;osa (ananke') ou é ocasional (tyché); (iii) após os dois primeiros passos, o médico busca cstabelccer o ''logos da doenya" partindo de uma leitura consti­tuída de quatro elementos: o aspecto ou a aparéncia do doentc e da doens:a (katástasís, trópos, idée); a explicayao da katástasís cm humo­ral, elemental ou dinamica; a ordena9ao no tempo e a causa etiológica. Após a investiga9ao dos tres elementos logo acima apontados, o mé­dico pode proferir o diagnóstico (que é uma demonstra9ao do inter­relacionamento das quatro camadas) e em seguida o prognóstico.

Etapas do processo diagnóstico Sao ou doente? comparas:iio dos sinais e síntomas para

a verificas;iio das anormalidades pre­sentes.

Ananké ou tyché?

Katástasis, tropos e e idos

Explicas;ao da katástasis em humoral, elemental ou dinamica

Ordenas:iio temporal da katástasis

necessidadeforr;osa (ananké) ou oca­sional (t);ché). O médico deve conhe­cer os sinais das doens;as ou estados fatais para abster-se nos casos incurá­veis, pois em tais casos ele nao deve intervir. Sinais observados e síntomas relata­dos; espécie morbosa ou tipos de ado­ecimento; variedades típicas das espé-cies morbosas, forma da doenr;a no sentido de forma clínica. humores, elementos e qualida­des/dynameis

crueza, cocs;i'io e resolus;ao ou crisis

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244

Detenninayiio causal

Regina A. Rebollo

duas causas aitia, urna externa, o am­biente e outra dispositiva, o terreno; e urna causaprophasis, a imediata, con­siderada o fator desencadeante.

Vejamos cada um dos elementos separadamente: (i) O médico hipocrático verifica se o aspecto ou a aparencia do paci­

ente difere do seu aspecto e aparencia normais. Aqui a observayao é feíta comparando-se sinais e síntomas e verificando-se as anor­malidades presentes. É um exame das semelhanyas e diferenyas entre os estados de saúde e doenya (e f. o exemplo da descriyao da facies hipocrática em Prognóstico 2).

(ii) em seguida, o médico analisa a natureza dessa alterayao, se ela pertence a urna necessidade forr;osa (ananke') ou é ocasional (ryché). As doenyas mortais e incuráveis pertencem a ordem da necessidade, e aqui nada pode ser feíto, pois contra a physis uni­versal nenhuma arte é capaz de intervir ou alterar. O médico deve conhecer os sinais das doenyas ou estados fatais para abster-se nos casos incuráveis, pois em tais casos ele nao deve intervir, sob pena de ser considerado incompetente (cf. Sobre a arte médica). As do­enyas evitáveis e govemáveis em geral sao doenyas do acaso. No CH a classificayao das doenyas é feíta da seguinte maneira: exis­tem doenyas tongas e mortais; Ion gas e sem perigo; agudas (curta durayao) e m01tais; agudas e sem perigo.

(iii) após os dois primeiros passos, o médico busca estabelecer o "lo­gos da doenya" partindo de urna leitura constituida de quatro ele­mentos: l. o aspecto ou a aparéncia do doente e da doenya (katás­tasis, trópos, idée); 2. Explicayao da katástasis em humoral, ele­mental ou dinamica; 3. a ordenayao no tempo e 4. a causa etioló­gica (cf Entralgo, 1982).

O aspecto ou a aparencia do doente e da doenya é constituído pela katástasis: aquilo que pode ser observado no doente. Os sinais obser­vados e os síntomas relatados ou o quadro sintomático ocasional de

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·- A estmwmlúgica do diagnóstico llipocrático 245

cada e idos, por exemplo, febre baixa 3 7 ,5°constantes, obtidos por meio da observaryao e da anamnese; o eidos: a espécie morbosa ou o tipo de adoecimento, por exemplo, tuberculose, construido a partir da analogía indutiva que pressupoc um catálogo dos tipos de adoecimen­to; o tropos: variedades típicas das espécies morbosas ou forma da doem;a no sentido de fonna clínica, por excmplo, o modo febril , obti­da a partir de urna analogía indutiva ou das semelhanc;:as entre os paci­entes.

Seis pontos de observa~ao servem para o estabelecimento das se­melhanc;:as : sintomático; patocronicidade (docnc;:as agudas ou cróni­cas); topográfico; etiológico (mesma causa); prognóstico (desenvol­vimento temporal futuro) e constitucional (terreno) (Entralgo, 1982).

A explicac;:ao da katástasis ao tongo do CH teve tres tipos de trata­mento distinto: uma explicac;:ao humoral, concebida como a ausencia de harmonía entre os humores (sangue, fleugma, bílis amarela e bílis negra) ou a sobreposic;:ao de um deles sobre os outros; a elemental, como um desequilíbrio causado pelas partículas elementarcs que com­poem os humores; e a dinamica, como um desequilíbrio entre as qua­lidades ou dynameis dos humores.

A ordenac;:ao no tempo buscava a observac;:ao da aparencia visível de um estado ocasional da physis do doente no curso temporal. A do­enrya foi dcssa maneira concebida como um processo com comec;:o, mcio e fim, ou crueza, cocr;iio e resolzu;:iio, a famosa crisis da medici­na medieval-galenica. Um dos sentidos do diagnóstico era a ordenaryao (temporal) racional da docnc;:a.

A determinac;:ao causal da doenrya era feita considerando-se dois ti­pos de causa: a ailia, causa geral, externa e dispositiva (terreno) e a prophasis, causa concreta, imediata e próxima (causa desencadeadora da doenc;:a). No CH tres causas gerais sao apontadas como geradoras das doenc;:as: duas aitia, urna externa (o ambiente) e outra dispositiva (o terreno); e uma prophasis, a causa imediata, considerada o fator descncadeante das doenc;:as.

Os recursos utilizados pelo médico hipocrático na obtcnc;:ao do di­agnóstico foram ( 1) os sentidos (aísthesis), (2) a comunicaryao verbal

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246 Rcgi11a A. Rebullo

(lagos) e (3) o raciocínio (logismós). Quanto a explora9ao sensorial, no Sobre a dieta lemos que com os o lhos, o ouvido, o nariz, a língua, a boca, o tato e as vías do pneuma [o hálito], o médico chcga aoco­nhccimento da doenya. A cxplorar;ao sensorial permite a reconstrur;ao dos fenómenos observados na physis individual do doentc e na physis universal (isto é, as camadas acima apontadas).

Quanto a comunica<;:ao verbal ou o uso da palavra, a anamnese é ao mesmo tempo reconstru<;:ao histórica e temporal dos sinais e síntomas e diálogo explicativo, cuja fun<¡:ao social faz parte da ética e da condu­ta médica hipocráticas . Diagnosticar é explicar o estado do paciente para ele e sua familia e estabelecer um vínculo de compromisso entre eles. Urna espécie de colabora<;:ao conscicntizada da situa9ao.

Por último, o raciocínio (logismós) ou a experiéncia razoada expli­cados da scguinte fom1a: a katástasis (caso singular de um eidos e um tropos) e o entorno cósmico ou o ambiente (fatos ou fenómenos ob­servados pelos cinco sentidos) funcionam como urna base de dados sensoriais; a atcn<¡:ao e a mcmória do médico sao dirigidas para a com­para<¡:ao ou analogía com casos semelhantes. Dois tipos de memória sao utilizados no processo: a memória própria do médico, adquirida a partir de sua experiencia pcssoal e a memória alheia ou coletiva da comunidadc de médicos, na forma de descri<;:ao oral ou escrita de um mestre.

O raciocínio: logismós ou experiencia razoada.

katástasis como base de da­dos sensoriais

a atenc;ao e a memória do médico sao dirigidas para a comparac;iio ou analogía com casos semelhantes.

Seis pontos de observac;iio para o estabclecimento das semelhanc;as: sintomático; patocronicidade (do­en~as agudas ou crónicas); topográ­fico ; etiológico (mesma causa); prognóstico (desenvolvimcnto temporal futuro) e constitucional (terreno). a memória própria do médico, ad­quirida a partir de sua experiencia pessoal e a memória alheia ou cole­tiva da comunidade de médicos, na

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A estrutura lógica do diagnóstico hipocrático

fonna de descri¡yao oral ou escrita de um mestre.

247

Na passagern VI do Epidemias o autor nos explica o processo da sc­gtlinte forma:

Fa¡ya-se um resumo da genese e do início da doen¡ya, de sua aphorme [ponto de partida, oportunidade], e mediante múltiplos discursos e explorayoes minuciosas, reconhecem-se as semelhan¡yas entre si, e logo as diferen¡yas entre as semelhanc;:as, e por fim novas semelhan¡yas entre as diferen¡yas, até que destas resulte uma semelhan¡ya única: tal é o caminho.

Interpretando tal passagem ternos quatro passos essenciais do raciocí­nio lógico:

l 0 ordenar;:ao dos sin tomas numa katástasis 2° comparavao com outras katástasis 3° estabelecimento das semelhan9as e difercnr;:as 4° explicar;:ao da observar;:ao sobre o doente, a docnr;:a e o entor­

no ambiental

Os médicos de Cós e Cnido, desde o século V a.C., procederam a urna catalogar;:ao minuciosa das observa¡;:oes dos sinais e síntomas de urn número significativo de doentes, com isso realizando urna taxonomía das doen¡;:as humanas que serviu até os primórdios do século XVIII como modelo d~ obscrvavao clínica. A compara¡;:ao entre os quadros sintomáticos e o estabclccimento das semelhanr;:as e diferenr;:as inau­gura o processo indutivo que dará respaldo a um conhecimento predi­tivo e, portanto, terapeutico, considerado base da clínica médica. Por fim, a explicar;:ao da observar;:ao sobre o doente, a doen¡;:a e o entorno ambiental, meta do diagnóstico e do prognóstico hipocrático coroa o raciocínio ou a sua lógica, dando prava de conhecimento e maestría do médico hipocrático.

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248 Regina A. Rebollo

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Regina Andrés Rebollo Pós-doutoranda, Dcpto. Filosofía F.F.L C.H.IU.S.P.

hani [email protected]

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A natureza da linguagem na filosofia de Nietzsche e su as convergencias com o nominalismo

Renato Nunes Bittencourt Universidade Federal do Rio de Janeiro

Introdu~ao

Usualmente se considera PlaHio como um dos grandes filósofos a ini­ciar uma proposta de reflexao sistemática acerca da natureza da lin­guagem, considerada nas suas mais importantes possibilidades de investigas;ao, tais como a relas;ao entre a palavra denominadora e o objeto denominado, o estudo da etimología dos nomes, dentre outras questoes afins. Confonne veremos ao longo da presente exposis;ao, a conceps;ao platónica se caracteriza por preconizar a existencia de um vínculo intrínseco entre o objeto existente e o nome pelo qua! se intitula o mesmo, de modo que a linguagem, segundo essa perspectiva, teria a plena capacidade de representar satisfatoriamente a essencia das coisas. Após Platao, Aristóteles se dedicaría também a investigar, nalguns dos seus tratados de lógica, a quesUio dos conceitos aplicados as coisas com as quais nos deparamos na ex¡:Mlñ~ipostcrionncnte, ao longo da Idade Média, ocorreria a céle­bre "qucrela dos universais," 1 o polemico embate teórico entre os de­fensores de diversas perspectivas acerca da natureza das Idéias (con­ccitos) e, por conseguinte, das palavras: realistas (platónicos e aristotélicos); conceitualistas2 e nominalistas.3

Podemos considerar que csse polemico conflito de opinioes e hipó­teses, que nao obteve historicamente qualquer vencedor, serviu consi­deravelmente de estímulo de para as reflexóes sobre a natureza da linguagem e da sua amplitude dcscritiva realizadas por um dos mais

Dutra. L. H. de A. e Mortari. C. A. (orgs. ). 2005. t¡Jistemofugia: Anais do 11' Simptisio fnten l(l· ciunal. Principia - Parte 1. Florianópolis: NELIUFSC. pp. 249 266.

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250 Reno/o Ntmcs Binencourl

importantes fllósofos do período moderno, Nietzsche. Ao se propor a contestar os grandes temas metafisicos da teoría platónica, sobrctudo o problema da divisao entre o mundo scnsível e o mundo inteligível,4

Nietzsche, obviamente, nao deixará de se opor aos fundamentos da perspectiva platónica acerca da linguagem, decorrcnte justamente da comprccnsao metafisica de mundo. A crítica de Nietzsche em relas;ao a esta referida conceps;ao consiste na defesa da tese de que as palavras e a própria cstrutura da linguagem nao represcntam uma esscncia in­tema, subsistente por si mesma, independente, portante, do próprio ser humano. Dcssc modo, ao pretender destruir os alicerces teóricos da­quilo que denomina como a "metafísica da gramática", Nietzsche irá considerar que a linguagem é urna mera convens;ao humana, desen­volvida para facilitar o domínio do homem gregário sobre a natureza; mais ainda, que as palavras sao apenas títulos, denominas;oes concedi­das aos objetos para que se possa evitar a desordem dos discursos, sem que exista, no entanto, qualquer correspondencia lógica entre palavra e objeto, tendencia essa que aproxima o filósofo da teoría nominalista da linguagem, conforme veremos ao longo deste texto.

Nietzsche causa grande inquietas;ao entre os defensores do realis­mo da linguagem ao considerar que, se as palavras e o aparato da lin­guagem nao possuem a capacidade de expressar a totalidade das coi­sas, as suas essencias formais, nao se poderia conceder ao estatuto da verdade um caráter atemporal, absoluto, mas somente urna axiologia condicionada pelas necessidades humanas e circunstanciais, relativas ao conjunto de valores e idéias que constitu~m a visao de mundo do grupo dominante que estabelece os códigos lingüísticos. Desse modo, como superas;ao da teoria do realismo da linguagem na aceps:ao da metafísica platónica, Nietzsche propoe o desenvolvimento de uma espécie de perspectivismo nominalista da linguagem, considerando que, urna vez que os códigos lingüísticos que utilizamos sao conven­cionais, nao poderíamos falar sobre temas tais como discursos incon­testáveis ou verdades absolutas, mas apenas sobre interpretas;oes par­ticulares e singulares de dados eventos, de acorde com a perspectiva valorativa empregada pelo indivíduo que busca o conhecimento.

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A nature;:a da linguagem na jilosojia <le Nietzsche 251

Linguagem, conven~ao e verdade

De acordo com a interpretayao de Nietzsche, a linguagem seria mais uma das criayoes históricas elaborada pelo homem, a patiir do mo­mento em que este abandona a vida nómade, marcada pela constante movimentayao por territórios, passando entao a se estabelecer em locais rígidamente circunscritos. A linguagem se desenvolve, nos seus primórdios, para tomar possível o estabelecimento de relayoes sociais que ampliassem o poder de ayao do próprio homem, o qua!, nesse momento, se encontrava inserido num meio ambiente terrivelmente desconhecido, que requería, para sua melhor dominayao, o aprimora­mento das suas relayoes de foryas. Desse modo, em nome de sua con­servayao, o homem se encontrava na extrema necessidade de estabele­cer diálogo com os demais homens que deparava ao seu redor. Esse diálogo, por sinal, deveria partir de um fio condutor comum, de ma­neira que todos os membros envolvidos nessa redc de contato tives­sem a possibilidade de compreender adequadamente os signos lingüís­ticos pronunciados. Para tal finalidade, esses homens estabeleciam denominayoes para as coisas a partir de seus próprios critérios valora­tivos, critérios esses que, segundo as investigay6es de Nietzsche acer­ca da problemática da linguagem, nao obedeceriam a um parametro lógico de cunho impessoal, independente da própria intervenyao hu­mana no ato de criayao dos conceitos. A existencia desses signos, potianto, dependía diretamente d~ arbitrariedade da classe dos indiví­duos legisladores que desenvolviam essa relayiio artificial entre objeto e denominayao, desprovida de qualquer correspondencia real entre ambos.

A leitura nietzscheana acerca desta questiio salienta que, no perío­do da fonnayao das primeiras organizayoes sociais, para que estas pudessem ser dcscnvolvidas adequadamente, necessitavam do cstabe­lecimento desse código de linguagem compartilhado entre os mem­bros de um espayo social comum. Podemos entiio dizer que o caráter gregário do ser humano e a fonnayiio primitiva da linguagem seriam

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252 Ren(l(o Nunes Bi11encour1

eventos praticamente simultaneas, uma vez que cada um surge e se fundamenta em fun9ao do outro.

Por mcio da cxplana9ao precedente, podemos esclarecer a polemi­ca que surge em torno da possibi lidade da palavra, do signo lingüísti­co, representar adequadamente a essencía do objeto designado. Con­forme díto anteríonnente, Nietzsche considera que a palavra surge em decorrencia da necessidade de se suprir urna carencia humana, sendo desenvolvida por meio do artificio do intelecto como maneira de se estabelccer um nível de contato que favore9a a associa9ao dos ho­mens, cm prol de um objetivo comum, a conserva9ao da própria exis­tencia. 5 Afina!, ligados entre si pela linguagem, os borneos inseridos na vida em sociedade se tornam aptos a empreender a96es que conta­bilizam o somatório de for9as da coletividade, situa9ao essa que favo­rece a supera9ao das adversidades cotidianas. Associados mutuamen­te, esses homens adquiriam a capacidade de vencer os problemas im­postos por urna natureza, a qual, considerada na limitada compreensao individual, se manifesta como hostil. Por conseguinte, podemos dizer que a linguagem é um dos principais meios de coesao de um grupo, posto que, por meio dela, os membros de uma sociedade se agregam em tomo de um espa9o fisico comum, garantindo assim a cria9ao de valores culturais intrínsecos aos membros dessa comunidade.

De acordo com as coloca96es precedentes, podemos entao afirmar que uma dada linguagem nao possuiria, de forma alguma, um caráter independente da experiencia, pois cada estrutura lingüística se desen­volve mediante circu~stancías específicas, referentes as peculiaridades históricas relativas ao modo de ser de um povo e de sua respectiva fom1a9ao cultural. Ao defendermos essa perspectiva, elevemos ressal­tar que a hipótese de existencia de uma pretensa universalidade da linguagem cai por tena, pois cssa perspectiva nos leva a considerar que a linguagem surge de mna raíz comum, da qual se derivaría todos os demais códigos, negando assim a singularidade das diversas estru­turas da linguagem elaborada a partir do contato do homem com o mundo. Urna vez que a linguagem nao possui esse grau de universalidade, conseqüentemente, ela também nao pode ter a capacidade de representar a essencia dos objetos, o sentido lógico e

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A uature:a da liuguagem na jilusujia de Nil•t::sche 253

representar a essencia dos objetos, o sentido lógico e preciso das coi­sas, pois, existindo a pluralidade de línguas, e apenas uma suposta

esscneia das coisas, dever-se-ia postular que somente uma determina­da linguagem poderia ter a capacidade de representar adequadamente cssa essencia, concep9ao essa que seria um grande absurdo. Desse modo, a linguagem podcria apenas servir de denomina9ao externa em rclayao a um dado objeto. Por eonseguiote, podernos refutar a tese que defende a universalidade apriorística da linguagem, a partir do mo­mento que nos damos conta da existencia de uma multiplicidade de estruturas lingüísticas, desenvolvidas historicamente segundo possibi­lidades particulares de cada sociedade. Se porventura acreditarmos que urna dada Iinguagcm possui a capacidade de representar a essen­cia das coisas, capacidade essa que negamos as demais, poderíamos nos perguntar: qual critério devemos utilizar para afim1ar que deter­minada Iinguagem representa intrínsecamente a esseneia, a natureza dos objetos, enquanto outra, por sua vez, nao teria essa eapaeidade? Depreende-se que essa situa9ao é deveras polemiea, pois, urna vez sendo aceita, manifesta a presen9a de outro problema associado ao uso da Iinguagem na rela9ao adequada entre palavra e objeto denominado: a verdade. A partir do momento em que detenninada linguagem arro­ga representar logieamente a essencia das coisas, existe a tendencia de se pretender cristalizar o va lor de imutabilidade da verdade, pois, ao se pronunciar um juízo de adequa9ao entre o objeto e a denomina9ao, dir-se-ia que existe uma verdade interna nessa rela9ao. Por sua vez, a linguag~m que porventura fosse imputada como incapaz de represei:J­tar a adequa9ao entre o nome e a coisa, reeeberia o estigma de falacio­sa, imperfeita, inferior, pois nao expressaria adequadamente essa pre­tensa relas;ao lógica. Essa questao entrelas;a consigo urna relas;ao hie­rárquica de fors;as, pois uma sociedade que detém o poder dirá que o seu código de Iinguagem representa logicamente o vínculo entre pala­vra e coisa, o que tornaría possível o alcance da verdade.

Esta questao polemica, po11anto, estaría diretamente vinculada com a pretensa eapacidadc da linguagem representar adequadamente essa associa9ao entre palavra e objeto, posto que, se porventura os enunci-

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254 Renato Nwu:s Billencourt

ados lógicos sao reali zados a partir dcssa relas:ao, quando se pronunci­

asse detem1inada sentens:a, podcr-sc-ia conceder o caráter de veraci­dade aquilo que foi dito. Contudo, cssa ¡)l·oposta denota a presen¡ya do

anseio humano de se legitimar como vcrdade aquilo que é representa­

do por essa suposta relas:ao adequada entre palavra e coisa, verdade essa que o homem pretende elevar ao estatuto de universalidade, para que possa viver apaziguado com o seu próprio animo. Afina!, essa vontade de verdade decone do sentimento do homem de basear a sua prática de vida em padimetros cstáveis, sólidos, negando portanto o caráter fundamental do mundo, ou seja, o seu estado de contínua

transforma<;ao. O homem, imerso na dimensao da racionalidade, vis­lumbra a presen¡ya da vcracidade na sua vida, como garantía de exis­tencia de um substrato metafísico que transcenda os seus limites pes­soais, fazendo com que sua própria v ida seja justificada. Todavía, ele

dcsconhece o carátcr imanente presente na elaboras:ao da idéia de verdade, confonne destaca Nietzschc.6 A lógica da linguagem se ca­racteriza por pretender negar o múltiplo, o fluxo criativo de perspecti­vas.7 Nessas condi<;:oes, devemos ainda ressaltar que próprio ato de nomear urna coisa dccone do anscio humano em conceder unidade para um conjunto de forc;as que, inseridas no mundo, se cncontram em

constante transformac;ao.8

Nietzsche considera que o homem, ao desenvolver a trama da lin­

guagem no seu mcio de vida, pretendía estabeleccr precisamente o caráter global das palavras, de modo ~e cada individuo pudesse ado­tar essa estmtura artificial sem que se desse vazao a confusoes de in­terpretac;ao semantica de mna dada coisa. Esses homcns, ao depararem empíricamente com a pluralidadc de objetos, estabeleeiam critérios arbitrários para que se possibilitasse a formac;ao da unidade discursiva,

evitando assim que um mesmo objeto possuísse diversas denomina­s:ocs discrepantes. Nietzsche salienta que no ato de denominac;ao das coisas, esses homens utilizam recursos meramente arbitrários, sem

considerar qualquer hipótese de adequac;:ao com urna suposta essencia

presente nesse objeto.9 No entanto, csses homens eram cientes de que um determinado objeto, intitulado como "folha", por cxemplo, ainda

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;1 11ature:a dali11guagem 11ajilusujia de Nietzsche 255

que denominado de tal modo, possuía diversas características singula­res, únicas, em ralac;;ao aos demais objetos que eram intitulados tam­bém pelo tem1o "folha". 1° Contudo, atentar para o fato de que se por­ventura cada um desses objetos, aparentemente semelhantes, recebesse urna denominac;;ao distinta, nao seria possível estabelecer de forma alguma o projeto de convenc;;ao de linguagem entre os homens, mas somente uma caos semantico, sendo inexistente, portanto a formac;;ao de idéias universais, de conceitos que pudessem ser apreendidos ade­quadamente por todos os membros de urna comunidade.

Para que esse problema fosse superado, Nietzsche salienta que es­ses homens se encontravam na extrema necessidade de retirar os inú­meros elementos singulares e diserepantes existentes em cada objeto percebido no cotidiano, em prol da afirmac;;ao das supostas caracterís­ticas comuns, que se encontravam presentes em cada um destes obje­tos. Formava-se, desse modo, o famigerado "conceito". Essa atitude de se retirar as diferenc;;as em prol de uma pretensa identidade na aná­lise de um determinado objeto, que se descnvolvera de modo relati­vamente consciente nos seus primórdios, no decorrer do tempo, a par­tir da transmissao desses conteúdos para as gerac;;oes vindouras, foi plenamente esquecida por estas, surgindo daí o grande problema epis­temológico. Consequentemente, podemos dizer que, ao herdar essa tendencia, o homem teria desaprendido a observar as diferenc;;as, para apenas focalizar a sua atens;ao naquilo que aparentemente se manifes­tava como universal , como igual. Portanto, foi a partir do esquecimen­to do caráter ficticio dos nomes que o homem.passou a acreditar na correspondencia real entre os sinais e as coisas. Em tennos práticos, essa atitude gerou prejuízos consideráveis no relacionamento do bo­mem com tudo aquilo que se manifestasse como diferente, que por­ventura nao se mostrasse similar ao estabelecido, posta que o homem se caracteriza sobrctudo pe1a tendencia de considerar o externo como o "nao-igual", o discrepante. Dessa maneira, tudo aquilo que nao se coaduna com o uso comum em vigor numa determinada comunidade é considerado como inferior, estranho, senda desvalorizado e rcchac;;ado pelos padroes nom1ativos adotados pelos membros desse círculo fe-

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256 Re11a1o Nrmes 8ille11courJ

chado, radicalmente tradicionalista. Essa desconsidera<;ao sobre o valor da diferen<;a, aliás, se manifestaría nas mais diversas circunstan­cias da vida humana, implicadas sempre como pretenso sentimento de superioridadc de um núcleo de for<;as em rela<;iio ao outro. Como complemento para esta quesUio, vejamos a leitura realizada por Vivia­ne Mosé, ao interpretar a perspectiva nietzscheana sobre o problema da denomina<;ao concedida pelos homens aos objetos:

A linguagem é produto da necessidade psicológica da exclusao das di­ferenc;as, da vontade de nivelamento e reduc;ao, do medo da pluralida­de e do conflito. Ao invés de uma convenc;ao necessária, capaz de au­mentar o poder de atuac;ao do homem no mundo, a palavra se tornou o sinónimo das coisas. (Mosé. Nietzsche e a grande política da lingua­gem, p. 19.)

A linguagem, portante, a partir do desenvolvimento da vida social, perde o seu poder criador, marcado pela transforma<;ao efetiva de seus caracteres, para se tornar um objeto cristalizado, que nega toda a novi­dade e a diferen<;a, pois o homem, nesse tipo de rela<;ao, teme que as suas cren<;as e verdades herdadas irrefletidamente sejam solapadas numa análise crítica. Para esse tipo de homem, é muito melhor perma­necer incólume com um conjunto de valores dados, os quais, mediante o uso cotidiano, lhe fornecem urna espécie de "paz de espírito" para a sua estrutura de conhecimento ("paz" que, por outro lado, nao estimu­la o ato de pensar e de indagar), do que buscar superar o dogmatismo das suas própria opinioes. Acreditar no essencialismo da linguagem é urna atitude dogmática, pois retira do potencial criador do homem a sua primazia sobre a estrutura da linguagem. Essa tendencia, quando consolidada pelo uso irrefletido do bomem, motiva o desenvolvimento da "metafísica da gramática", justamente como decorrencia da preten­sao humana de conceder ao objeto denominado uma essencia, de mo­do que a palavra, ao designar csse objeto, deveria ter a capacidade de explicitar adcquadamente a sua totalidade. Isso justifica o fato de ter­mos citado anteriom1ente que o anscio humano pela verdade se asso­cia coma questiio do poder representativo da linguagem, urna vez que,

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A uatureza daliuguagem na jilu.mjia de Niet;sclte 257

se a palavra expressa adequadamente aquilo que cla designa, o homem poderia alcans;ar a soohada verdade, por mcio da rcde lógica dos con­ccitos. Portanto, a metafísica, ao tratar das essencias das coisas, entre­la9ada com a dimensao da linguagcm, fornece o substrato gramatical

1 que garante a equivalencia entre a coisa e o scu respectivo nome. Essa tese, ainda que um tanto sedutora, nao condiz, na perspectiva

1 nietzscheana, coma situac;ao concreta da dimensao da linguagem, uma vez que a metafisica, sendo urna ilusao gnosiológica criada pelo ho­mem para que ele se reconforte psicologicamente na idé ia de perma­nencia e estabilidade, nao poderia, sendo um artificio criado pelo pró­prio homem (ainda que esquecido por este), ter qualqucr participas:ao efetiva na designas;ao dos nomes. Portanto, se o homem acredita no substrato metafísico da linguagem, essa crenc;a decorre de seu próprio esquccimcnto no ato de criayao de valores. Na concept;:ao de Nietzs­che, a palavra seria apenas um modo convencional descnvolvido pelo artificio do homem para se denominar um determinado objeto de tal forma que todos os membros da comunidade pudessem compreender adequadamentc o sentido lógico desse conceito. Desse modo, nao havcria vínculo essencial entre a palavra e a coisa denominada, mas apenas uma relas;ao artificial, em prol da conservac;ao do próprio ho­mcm no meio ambiente. Contudo, como o homcm se aliena de sua própria criat;:ao, ao longo do tempo ele passa a acreditar que os objetos do mundo possuem um significado próprio, independcnte da própria considerat;:ao humana e do seu ato doador de sentido sobre as coisas, de maneira que caberia .ao homem desvelar o sentido oculto que se encontra por detrás dos objetos, evidenciando, por meio da linguagem, o scu significado autentico, numa busca metafísica pelas origens.11

Legitima-se, por esse meio, a teoría realista que prcga a existencia de um fío condutor ontológico entre o objeto e a sua denominas;ao, que representaría adcquadamente a coisa existente.

Essa oposis;ao entre denominas;ao arbitrária e denominas;ao ncces­sári a na relac;ao entre palavra e objeto fora tema de discussao de um dos mais importantes diálogos de Platao, Crátilo, na qual o filósofo se propoe a investigar se porventura existe um nexo lógico e ontológico

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258 Ren(l(o Nunes Billencourt

entre o objeto e a sua denomina~ao, a partir da justeza dos nomes em rela<;ao as coisas. 12 Tanto para personagem título da obra como para o personagem Sócrates, porta-voz das teses platónicas, as palavras seri­am capazes de representar adequadamente as coisas, pois existiria esse pretenso vínculo esseneial entre o nome e o objeto, ou seja, o nome expressa, na sua própria forma lógica, a esseneia da eoisa. 13 Como contraponto a esta perspectiva, devemos destacar a interpreta<;ao de Hermógenes, que preconizava a inexistencia de um vinculo natural entre o objeto e a sua denomina<;ao, considerando que essa rela~ao seria convencional, de modo que o nome do objeto decorreria direta­mente da escolha daquele que detém o poder de intitular as coisas, o legislador. 14 Essa perspectiva pretende portanto dizer que, quando o homem concede um nome para um determinado objeto, ele nao estaría pensando na associa<;ao lógica entre os dois pólos, mas apenas numa denomina~ao que descrcva o obje to tal como ele aparece para o ho­mem que concede o nome para as coisas, como urna espécie de etique­ta denominativa. Inclusive, em vista daquilo que foi apresentado, po­demos considerar a perspectiva de Hermógenes muito similar com a que Nietzsche adota na sua perspectiva da linguagem, conforme ex­posto anteriormente.

No entanto, com a predominancia da visao de mundo platónica no desenvolvimento da filosofia ocidental, a perspectiva acerca da lin­guagem que prevaleceu foi a de Crátilo, compa1tilhada pela máscara de Sócrates. 15 Afina!, a filosofia socrático-platónica, ao preconizar a existencia da dicotomia sensível-inteligível, do singular e do univer­sal, da cópia e da Idéia, retira do mundo físico o seu teor de veracida­de, transladando o seu sentido essencial para urna esfera metafisica, dimensao perfeita e plena do real. Desse modo, na intcrpreta<;ao sobre a linguagem desenvolvida por Platao, a palavra deve ter a plena capa­cidade de representar a essencia do objeto, urna vez que ela trata nao do singular, do concreto e perecível, mas do universal, da Idéia pura, abstrata e eterna. A partir da leitura do Crátilo, podemos ainda perce­ber o esforc¡:o de Sócratcs-Platao em justificar a pretensa possibilidade da palavra, do nome, de representar adequadamentc a esséncia das

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A na111re:a dalingllagemnafilosojia de Niclzsche 259

coisas. Nao podemos, contudo, negar que o método de exposiyao uti­lizado por Sócrates é rnuito elaborado, de f01ma que, por meio de suas seguras argumentayoes, ao término do diálogo, sua perspectiva preva­lecería. No entanto, devemos destacar que a preocupa9ao maior de Sócrates seria a de simplesmente justificar a tese de que o nome con­cedido para as coisas representa efetivamcnte as mesmas. Numa das partes mais importantes da obra, Sócrates analisa minuciosamente os nomes dos deuses gregos, considerando que cada um deles possui um nome que corresponde diretamente aos seus atributos. Por cssa estrita perspectiva, Sócrates nao dcixaria de ter razao, uma vez que scu em­preendimento, na verdadc, apenas se Iimitava ao ato de comprovar se o nome que é dado aos deuses pelo legislador se relaciona com suas características manifestadas.

Contudo, a crítica da linguagem elaborada por Nietzsche alcans:a aquilo que passara despercebido pelo olhar socrático-platónico : a pró­pria formas:ao original dos nomes das coisas. Afina!, enguanto Sócra­tes se prcocupava cm comprovar se o nome "Apolo" correspondía essencialmente aos atributos do deus Apolo,16 Nietzsche, por sua vez, no seu projeto de desmistifica¡yao da metafisica da gramática, se pro­punha a interpretar a própria etimología das palavras, considerando enUio que estas sao apenas designas:oes arbitrárias concedidas pelo homem no ato de denominas:ao do objeto. Consequentemente, qual­quer tipo de nome, de palavra, quando elaborada pelo homem como forma de representar semanticamente uma dada coisa, nao mantém VÍJ1Culo com a sua esscncia, cuja nos:ao, na perspectiva nietzsch~ana , é urna mera ilusao gcrada pela racionalidade humana, na pretensiio de encontrar termos gerais, comuns, entre os objetos do mundo. Por con­seguintc, poderíamos considerar que urna palavra, "pedra", por cxcm­plo, que representa semanticamcnte um objeto composto de mincrais, de acordo com as circunstancias daqueles que estabeleceram os códi­gos de linguagem, poderia possuir qualquer outra denominas;ao. Ni­etzsche certamcnte pensaria que o grande problema surge quando acreditamos que o objeto "pedra" possui esse nomc em virtude de sua

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essencia, como se esta manifestasse, de fom1a explícita ou nao, o seu próprio sentido originário.

Nietzsche, nominalista?

Nietzsche, ao defender a perspectiva de que a linguagem é urna deno­minacyao convencional criada pelo homem para designar os objetos, manifesta urna considerável semelhancya coma tese nominalista, cujos termos gcrais, apresentados no início do trabalho, serao agora tratados de forma mais diligente. O nominalismo surge como contraponto so­bretudo ao realismo platónico da linguagem, por negar a realidade dos universais, das ldéias, como entidades indcpendentes da mente huma­na. Na perspectiva de Guilherme de Ockham, por exemplo, os univer­sais sao apenas nomes, nao urna realidade, tampouco algo com fun­damento na realidade. Essa proposta, portanto, excluí de um detenni­nado objeto a existencia de urna suposta essencia, a Idéia, 17 assim como refuta a validade de se retirar as características díspares de um dado objeto, para que se evidencie apenas aquilo que supostamente existe de igual entre os objetos considerados do mesmo genero. 18 Des­se modo, nao existiría o universal, mas apenas a multiplicidade do individual.

Nietzsche, por sua vez, quando empreende suas críticas ao entrela­cyamento entre a metafísica e a lógica da linguagem, alcancya resultados scmelhantes ao de Ockham, ainda que motivado por outras questoes valorativas, sobrctudo pelo fato de Nietzsche considerar a própria idéia de indivíduo como urna cspécie de ilusao forjada pela conscien­cia para se conquistar conforto a partir do momento em que o homem conhecc o fluxo de forcyas que se movimentam continuamente no mundo, compreendendo que ele mesmo faz parte desse processo. Este tema supera extraordinariamente o problema da linguagem na vida humana, implicando a crítica ao ideal de subjetividade presente na tradicyao filosófica , a pretensa existencia de um "eu" como principio de organizas:ao racional do mundo, dentrc outras questoes convergentes.

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A na/llre:a dalinguagemnajilosofla de Niet:sche 261

Portante, tanto no nominalismo medievo, quanto na perspectiva ni­etzscheana, podemos perceber o projeto de supressao da visao metafi­sica de mundo, caracterizada por denegar a importancia do singular em prol de supostos caracteres universais. Ambos consideram que semente existe a pluralidade, o múltiplo, como expressao do singular. Na melhor das hipótcses, a linguagem semente poderia realizar asso­ciatyoes e formulatyoes gerais como recurso didático, para que se de­senvolve códigos adequados de linguagem compartilhados entre os homens. Todavía, o equívoco surgiría a partir do momento em que se acredita efetivamente na existencia real dessa unidade, dos universais, como elementos independentes do pensamento humano.

Conclusao

Conforme vimos ao longo dcsta exposityao, a perspectiva de Nietzsche acerca da natureza da linguagem pretende demolir as ilusoes geradas pela compreensao metafisica da realidade, urna vez que a proposta contestada por Nietzsche se destaca sobretudo pela denegar;:ao do con­creto, da imanencia, em prol do abstrato, do transcendente. Essa com­preensao metafisica do real transfere para urna dimensao inteligível o fundamento daquele que denominamos usualmente de mundo sensí­vel. A metafísica, portante, é a grande promotora da perspectiva que afirma o realismo da linguagem, urna vez que, para que ela exista, necessita incondicionalmente da cren9a entre o vínculo adequado e lógico entre a coisa e sua respectiva denominayao.

Contudo, Nietzsche, com sua investigayao profunda do jogo de perspectivas presente na dimensao da linguagem, contribuí de forma precisa para a compreensao imanente da vida, pois se propoe a excluir do carpo da linguagem os seus pretensos elementos metafísicos, inde­pendentes do próprio ato de valorayao inerente ao homem. Portante, ao defender a arbitrariedade na relayao gramatical entre nome e coisa, Nietzsche resgata o poder criador de valores manifestado nas mais diversas circunstancias de sua existencia, olvidado, no entanto, através

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262 Ren{l(o Nzmes Biuencourt

da interferencia da metafísica no scu ato legislador sobre as coisas. O ato de elaboraryao da linguagem evidencia o poder criativo do hornero, no scu projeto de ampliar a sua próprio potencia ao longo de sua inte­raryao com o mundo. Po1ianto, confo1me a bcla expressividade de Za­ratustra, podemos pensar

Como é agradável que haja palavras e sons! Nao sao as palavras e os sons os arco-iris e as pontes ficticias ligando aquilo que está eterna­mente separado? Nao foram os nomcs e os sons dados as coisas, para que o homem se recreasse com elas? É uma linda doidice a fala; gra-9as a ela, o homem danya por cima de todas as coisas. Que aprazíveis sao toda a fa la e a mentira dos sons! Com os sons, o nosso amor dan9a sobre arco-íris multicores. (Nietzsche. Assim fa lava Zaratustra, lll, "O Convalescentc," § 2.)

Após lermos essc discurso de Zaratustra, podemos encerrar o pre­sente trabalho dizendo que a linguagem, assim como a a11e, é urna das mais belas possibilidades do homem expressar o seu poder criador, urna extraordinária e bela ilusao que favorece a sua interarrao com os dcmais bomens, scrvindo, quando utilizada adequadamente, de ins­trumento afirmador da vida.

Referencias bibliograficas

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A narure::a do/inguagemnajilosojia de Niet:sche 263

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Rocha, S. P. V. 2003. Os abismos da suspeita - Nietzsche e o perspec­tivismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará.

Notas

Mestrando em Filosofia - UFRJ Professor substituto do Departamento de Filosofía da UNIRlO

Membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia Espinosa e Nietzsche (SpiN)

Bolsista do CNPq

1 Porfirio de Tiro é considerado o filósofo que estimulou o desenvolvimento dessa polémica, ainda que por acaso, pois ele sequer imaginava que seus comentários ao texto das Categorías de Aristóteles pudessem motivar tal embate de idéias. A questao iniciadora dessa polemica consiste, no que tange aos géneros e as espécies, saber se sao realidades subsistentes em si mesmas ou se consistem apenas em simples conceitos mentais ou, admitindo que sejam realidades subsistentes, se sao corpóreas ou incorpórcas e, neste último caso, se sao separadas ou se existem nas coisas sensíveis e delas dependem. (Cf Porfirio. isagoge, lntrodus:ao, p. 35-6).

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264 Re11a10 Ntmes Billencourl

! Representados sobretudo por Abelardo, segundo o qual os conceitos ou universais somente existiriam, como idéias, em nosso espirito, nao possuindo nenhum objeto que lhes correspondesse na realidade, sendo, portanto, apenas instrumentos lógicos utilizados pelo intelecto humano. 3 Representados principalmente por Roscelino e Guilhem1e de Ock.ham, os partidários dessa perspectiva eonsideravam que os concei tos seriam meras entidades lingüísticas, termos gerais desprovidos de qualquer realidade exter­na corrcspondente, cuja fun~ao, podemos dizer, seria a de facilitar o conhe­cimento da realidade pelo homem, por meio da criar;ao de no~oes comuns gramaticais. ~ "O mundo verdadeiro inatingivel, indemonstrável, impassível de ser prome­tido, mas já enguanto pensado um consolo, wn eompromisso, um imperati­vo". "O ' mundo verdadeiro'- uma idéia que já nao serve mais para nada, que nao obriga mesmo a mais nada- urna idéia que se tomou inútil, supérflua; conse­quentemente, uma idéia refutada: suprimamo-la! ( .. .)" "Suprimimos o mundo verdadeiro: que mundo nos resta? O mundo aparente, talvez? ... Mas nao! Com o mundo verdadeiro suprimimos também o aparen­te!" (Nietzsche. Crepúsculo dos Ídolos, "Como o 'Mundo Verdadeiro' aca­bou por se tomar fábula", § 3, 5- 6). s Cf Nietzsche. A Gaia Ciéncia, V,§ 354. 6 A célebre indagar;ao de Nietzsche: "O que é a verdade? Uma multiplicidade incessante de metáforas, de metonimias, de antropomorfismos, em síntese, uma soma de relar;oes humanas que foram poética e retoricamente elevadas, transpostas e ornamentadas, e que, após um longo uso, parecem a um povo firmes, regulares e constrangedoras: as verdades sao ilusoes euja origem está esquecida, metáforas que foram usadas e que perderam a sua for~a sensível, moedas nas quais se apagou a impressao e que desde agora nao sao mais consideradas como moedas de valor, mas como metal." (Nietzsche. " lntrodu-9iio teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral", '§ l. In: O Livro do Filósofo, p. 69). 1 "Origem do lógico- De onde surgiu a lógica na mente humana? Certamente do ilógico, cujo dominio deve ter sido enorme no principio. Mas incontáveis outros seres, que inferiam de maneira diversa da que agora inferimos, desapa­receram: e é possível que ela fosse mais verdadeira! Quem, por exemplo, que nao soubesse distinguir com bastante freqüencia o "igual", no tocante a ali­menta~ao, ou aos animais que lhe eram hostis, isto é, quem subsumisse muito lentamente, fosse demasiado cauteloso na subsunr;ao, tinha menos probabili­dades de sobrevivencia do que aque le que logo descobrisse igualdade em tudo o que era semelhante. Mas a tendencia predominante de tratar o que é

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A ll(tltweza dalinguagemnajilosujia de Niet:sdre 265

semelhante como igual- uma tendencia ilógica, pois nada é realmente igual­foi o que criou todo fundamento para a lógica. Do mesmo modo, para que surgisse o conceito de substancia, que é indispensável para a lógica, embora, no sentido mais rigoroso, nada lhe corresponda de real - por muito lempo foi preciso que o que há de mais mutável nas coisas nao fosse visto nem sentido; os seres que nao viam exatamente tinham vantagem exatamente tinham van­tagem sobre aqueles que viam tudo "em fluxo" ( ... )" (Nietzsche. A Gaia Ci­encia, Ul, § 111). 8 Aproveitemos a contribui9ao de Silvia Pimenta Velloso Rocha, a qua!, na sua interpre ta~ao da crítica da linguagem empreendida por Nietzsche, consi­dera que: "nomear é atribuir identidade a um mundo que só apresenta dife­renyas. A palavra isola, num mundo em perpétuo devir, determinados grupos de ayoes, selecionando arbitrariamente algumas características e ignorando outras." )Rocha. Os abismos da suspeita- Nietzsche e o perspectivismo, p. 98). 9 Na Genealogía da Moral, 1, § 2, Nietzsche defende a tese de que sao os homens destacados numa sociedade, "os senhores", que portam o direito de nomear as coisas, como que, apontando para elas, dissessem: " isto é .. . " 10 Nietzsche se utiliza do célebre exemplo da folha: "Tao certamente como urna fo lha nao é jamais totalmente identica a urna outra, assim também o conceito folha fom1ou-se grac;as ao abandono deliberado destas diferenyas individuais, gra9as a um esquecimento das características, e desperta agora a representayao, como se houvesse na natureza, fora das folhas , algo que fosse a "folha", urna espécie de fonna original confonne a qual todas as folhas seriam tecidas, desenhadas, cercadas, coloridas, frisadas , pintadas, mas por maos inábeis, a ponto de que nenhum exemplar tivesse saído corretamente e com seguran9a como a cópia fiel da forma original." (Nietzsche. "Introduyao teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral", § l . In: O Livro do Filósofo, p. 68). 11 Vejamos cntao o que Nietzsche diz a respeito do uso irrefletido da lingua­gem no senso comum: "Acreditamos saber algo das coisas em si mesmas, quando falamos de árvores, de cores, de neve e de flores e entretanto nao possuímos nada mais que metáforas das coisas, que de nenhum modo corres­pondem as entidades originais." (Nietzsche. " lntroduyiiO teorética sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral", § 1, p. 68.) 12 Cf Platao. Crátilo, 383a. 13 Crátilo dcfende por esse meio a tese de que o conteúdo e forma da lingua­gcm se associam por natureza ao objeto designado, ao considerar que "é possível dizer por meio da palavra o que é e o que nao é." (Platao. Crátilo, 385b.)

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266 Renato Ntmes Billencourt

14 Eis a fala de Hermógenes: "( ... ) Nenhum nome é dado por natureza a qual­quer coisa, mas pela lei e o costume dos que se habituaram a chamá-la dessa maneira." )Piatao. Crátilo, 384d.) 15

"( ... ) Crátilo tem raziío de dizer que os nomes das coisas derivam de sua natureza e que nem todo homem é formador de nomes, mas apenas o que, olhando para o nome que cada coisa tem por natureza, sabe como exprimir com letras e sílabas sua idéia fundamental." (Piatiío. Crátilo, 390e.) 16 Cf Platao. Crátilo, 405b-406b. 17 Refutando desse modo o realismo platónico da linguagem. 18 Refutando, por sua vez, o realismo aristotélico da linguagem.

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O problema do regresso epistemico reconsiderado

Rodrigo Borges Pomijicia Universidade Católica do Rio Grande do Su/

Jntrodu~ao

O problema do regresso epistémico (daqui em diantc "(PRE)") tem sido um enigma para a reflexao epistemológica desde, pelo menos, Aristóteles. O presente artigo fará , na primeira ses:ao, uma exposis:ao geral do problema. A segunda ses:ao apresentará a sugesHio feíta por Robcrt Audi de que (PRE) deve ser reconsiderado diante da possibili­dadc de identificas:ao de mais de urna fom1a desse mesmo problema. Na tcrceira e quarta ses:ao nós apresentaremos, respectivamente, objc­s:oes a proposta de Audi e urna proposta alternativa de reconsidcrat¡:ao de (PRE) que mantém a alcgas:ao de Audi de que existem dois tipos distintos de (PRE) mas que identifica esscs tipos de fom1a diversa daqucla proposta pelo autor. 1

1

Rodcrick Chisholm apresenta (PRE) da seguintc fonna na primeira edit;:ao de "Theory of knowledge"

Nossa evidencia para algumas coisas, quer parecer, consiste no fa­to de que nós temos evidencia para outras coisas. "Minha evidencia de que ele irá manter sua promessa é o fato de que ele disse que iria man­ter sua promessa. E a minha evidencia de que e le disse que iria manter sua promessa é o fato de que ... " Nós devemos dizer, de ludo para o

D111rn. L. H. de A. e Mortari . C. i\ . (org:s.). 2005 . Episremolugia: Anais do IV Simpósio flllenw­

dunul. Principia - Pam• l . Florianópolis: NELIUFSC. pp. 267- 287.

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268 Rodrigo Borges

qual nós possuímos evidencia, que a nossa evidencia para essa coisa consiste no fato de que nós possuímos evidencia para outra coisa?

Se nós tentamos fonnular socraticamente nossa justificas;ao para qualquer alegac,;ao de conhecimento particular ("Minha justificac,;ao para pensar que eu sei que A é o fato de que B") e se nós somos nao­piedosos no nosso questionamento ("e a minha justificac,;i'io para pen­sar que eu sei que B é o fato de que C'), nós iremos chegar, mais sedo ou mais tarde, a um tipo de ponto de parada ("mas a minha justifica­c,;ao para pensar que eu sei que N é simplesmente o fato de que N'). U m exemplo de N pode ser o fato de que eu parec,;o lembrar ter estado aquí antes ou o fato de que algo agora parece azul para mim.2

Em scu artigo "Two types of foundationalism," William Alston ca­racteriza (PRE) da seguinte forma

Suponha que nós estejamos tentando determinar se S está mediata­mente justificado ao crer que p. Para que esteja justificado dessa for­ma, ele precisa estar justificado ao crer em outras proposir;oes, q, r, ... que es tao adequadamente relacionadas a p (de forma a constituir apoio adequado a p). Digamos que nós tenhamos identificado um conjunto de tais proposic,;oes e que S ere em cada uma de las. Entao, ele está jus­tificado ao crer que p somente se ele está justificado ao crer em cada uma dessas proposir;oes. E, para cada uma dessas proposic,;oes q, r, ... que ele nao está imediatamente justificado ao crer, ele está justificado ao crer nela somente se ele está justificado ao crer em algumas Otttras proposic,;oes adequadamente relacionadas a ela. E para cada uma des­sas últimas ... 3

(PRE) difícilmente poderia ser colocado de fonna mais direta do que o fizeram Alston e Chisholm. Entretanto, a digressao feíta nessa primeira parte deve se mostrar útil para urna compreensao mais deta­lhada do problema. Nós nos voltaremos a fonnulas:ao de (PRE) desses autores mais adiante (ses:ao U) quando elas vao ser analisadas desde um ángulo específico.

O predicado "x é justificado" designa urna propriedade avaliativa ou normativa onde a variável "x" varia sobre o conjunto de estados (atitudes) proposicionais de tipo doxástico. Exemplos de estados de

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O problema do regresso epislémiC'U recousiderCido 269

tipo doxástico sao crcnc;:a, descrenc;:a e suspensao de juízo.4 O que

torna a propriedade da justificaryao epistémico um impor1antc deside­

rata é o fato de que o estado doxástico que possui cssa propriedade distingue-se daqueles estados doxásticos que nao a possuem por estar

mais próximo da verdade do que dafa/sidade. Justificac;:ao cpistemica

é, nessc sentido, conducente á verdade, ou, indicativa da verdade: se um estado doxástico possui justificac;:ao epistt~mica, cntao seu conteú­do proposicional é (grosso modo) provavelmente verdadeiro. 5

É geralmente aceita a tese de que a propriedade normativa da justi­ficac;:ao epistemica é urna propriedade sobreveniente de propriedades

nao-epistemicas (nao-normativas ou descritivas). Isso significa que, se dois estados doxásticos, c.g., A e B, possuem as mesmas propriedades nao-epistemicas (nao-normativas), entao, se A possui a propriedade

epistemica (normativa) G, B também a possui.6 As propriedades sub­venientes, das quais as propriedades epistcmicas sobrevem, sao desig­nadas por predicados e rcla¡¡:oes como "x é verdade", "x é causado por y", "x é deduzivel de y" e "x é provável". 7

Além disso, nós dizemos que um determinado estado doxástico, e.g., a crenc;:a de que p, pode possuir a propriedadc da justificac;:ao de duas maneiras. Primeiro, a crenc;:a de que p pode possuir a propriedade da justificac;:ao devido as relac;:oes que essa crenc;:a mantém com outros

estados doxásticos do mcsmo sujeito. A crenc;:a de que p , portanto, possui a propricdade da justificac;:ao media/amente: a crenc;:a de que p é mediatamentc justificada se os outros estados sobre os quais a crenc;:a est.á baseada sao eles mesmos justificados para o sujeito e sao.sufici­entes para tornarem ela provavelmente verdadeira.8

A segunda maneira com que uma crenc;:a pode ser considerada co­mo justificada acorre quando essa crenc;:a possui essa propriedadc independentemcnte de suas relac;:oes inferenciais com outros estados doxásticos do sujeito. Ncsse sentido, a crcnc;:a é tida como imediata­mente justificada: se a vcrdade do conteúdo da crenc;:a é tornada pro­vável por algo diferente de outros estados doxásticos do mesmo sujei­

to.9 Um candidato tradicional á justificador nao-doxástico sao os "da­dos da experiencia."10

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270 Rodrigo Borges

Sob a luz do que foi dito, considere o seguintc cxcmplo. Suponha que Joao é aluno de um curso básico de lógica e que depois de dois meses de aulas ele ere que r e r é a proposiyao expressa pela sentenya declarativa "eu (Joao) tenho tido dificuldade em resolver os exercícios de lógica". Suponha que a crenc;a de que r é justificada para Joao. Dias depois de vir a crcr que r, Joao é informado por um colega que eles deverao fazer uma prova de lógica no final do mes e que os exercícios da prova serao bastante semelhantes aqueJes praticados em sala de aula. Tendo ouvido a notícia, Joao forma a crenc;a de que p (''eu nao irci bem nessa prova") tendo como base a sua crens;a injustificada de que q ("o professor nao gosta nem um pouco de mim"). Repare a situ­ac;ao epistémica cm que Joao se cncontra: Joao possui urna crenc;a que seria capaz de tomar provável a sua crens:a de que p se Joao tivesse baseado essa última sobre ela. Joao possui justificar;ao para crer que p, mas Joao nao eré justificadamente nisso pois ele baseia sua cren9a nao sobre urna indicas:ao possuída de sua verdade mas sim sobre uma outra crens:a que nao é indicativa da verdade de p. Logo, nós podemos dizer que Joao ere que p pelas "razocs erradas. "11

Se nós aceitamos a expressi'io " razao" como compreendendo os es­tados doxásticos e nao-doxásticos (e.g., estados experenciais) de um sujeito, entao nós podemos tomar precisa aquela que parece urna con­di¡yao necessária a dcfmic;ao de quando um sujeito S ere justificada­mente em urna proposis:ao p.

(CJ) S ere justificadamente que p em t só se (i) ~ possui urna razao r para crcr que p em t, (ii) S ere que p, em t, baseado cm r e (iii) r torna provável a verdade da proposic;ao de que p.

Como o exemplo do estudante de lógica mostrou, nao é suficiente que se tenha "posse cognitiva" 12 de urna razao r e que cla de fato tome provável a proposic;ao de que p se crer justificadamente está em jogo: a crenc;a de que p deve estar baseada em r. Urna discussao detalhada sobre o que envolve a nos:ao de "rclac;ao de baseamento" e urna espe­cificac;ao de quando cssa rela¡yao ocorre adequadamente está fora do

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O problema do regresso epistémico reconsidemclo 271

escopo do presente m1igo. Nao obstante, urna adequada rela<;iio de baseamcnto (do tipo que é suficientemente boa para que oc o na a transmissao de justifica<;iio) parece incluir um componente causal de

fonna que uma razao r transmite justifica9ao para a crenc;;a de que p através da rela<;iio de baseamento B só ser ajuda (em parte) a explicar porque a eren ya de que p é mantida. Se a cren<;a de que p é justificada para um sujcito S e ela está baseada sobre a razao r, entao r é parte do que explica porqué S veio a crer que p. 13

Se nós incluímos a (CJ) as no96es de cren<;a imediatamente justifi­cada e de cren<;a mediatamente justificadas, nós teremos o seguinte:

(ICJ) A cren9a de que p é imediatamente justificada para S em t só se (i) S possui urna razao r para crer que p cm t, (ii) S ere que p, em t, combase em r, (iii) r é justificada para S em te (iv) nao é o caso que r é um outro estado doxástico de S em t.

(MCJ) A cren<;a de que p é mediatamente justificada para S em t só se (i) S possui urna razao r para crer que p e m t, (ii) S ere que p, em t, com base em r, (iii) r é justificada para S cm t e (iv) r é um outro estado doxástico de S em t.

Dito isso, nós estamos aptos a compreender com maior precisao (PRE). Dado que existem apenas duas maneiras em que cren<;as sao tomadas como justificadas (para toda cren<;a x, ou x é imediatamcnte justificada ou x é mediatamente justificacia), 14 (PRE) só pode surgir de uma forma: ele surge quando nós buscamos dete1minar de que forma aquilo que serve de base para uma crem;a media/amente justificada adquiriu a propriedade da justifica<;iio, pois, se a atitude doxástica que serve de base é também mediatamente justificada, entao nós devemos determinar de que forma esse último estado doxástico possui a propii­edade da justifica<;iio e, se e le é mediatamentc justificado, enHio ... O conjunto formado pelos justificadores da primeira cren<;a que bus­cávamos determinar como justificada terá como membros (i) somente justificadores imediatamente justificados, (ii) somente justificadores

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272 Rodrigo Borges

mediatamen!e justificados ou, (iii) ambos, justificadores imediatamen­te justificados e justificadores imediatamente justificados.

n

Em seu artigo "The foundationalism-coherentism controversy: harde­ned stereotypes and overlapping theories," Robert Audi busca distin­guir duas formula~oes de (PRE). Na presente se~ao nós apresentare­mos as razoes que o filósofo oferece para a aceita~ao de tal distin~ao.

Audi denomina uma das formas do problema do regresso de a "forma dialética" e a outra de a "fonna estrutural". O principal argu­mento ofcrecido pelo filósofo em favor da corre~ao dessa distin~ao é apresentado na seguinte passagem:

Para que se veja como as duas formas do problema do regresso dife­rem, nós podemos pensar nelas como surgindo de diferentes maneiras de se perguntar "Como voce sabe?". Ela pode ser perguntada comfor-90 célico, como um desafio a pessoas que ou alegam saber algo ou (u­suahnente) pressupoe que urna crenc;;a que elas mantém confiantemen­te representa conhecimento. Aqui a pergunta é grosso modo equiva­lente a "Mostre-me que voce sabe". Ela também pode ser perguntada comjor9a informacional, como onde alguém simplesmente deseja sa­ber por qua! caminho, tal como observac;;iio ou testemunho, nós vie­mos a saber algo. Aqui a pergunta é grosso modo equivalente a "Co­mo é que voce sabe?". A forma eética da pergunta niio pressupoe que a pessoa em quesUio realmente possui qualquer [item de] conhecimen­to e, feita dessa maneira nao-comprometida, a pergunta tende a gerar a forma dialética do regresso. A forma informacional da pergunta típi­camente pressupoe que a pessoa tem a proposic;;ao em questao como um item de conhecimento. 15

Audi alega que "a falta de clareza - e a esteriotipagem inadvertida - sobre fundacionalismo e coerentismo vai além daquilo que nós espe­raríamos da diversidadc tenninológica e filosófica." 16 Dessa forma, dado que a maior motiva~ao de ambos fundaeionalismo e coerentismo é (PRE), a sua distin~ao entre fonna dia/ética e estrutura/ do proble-

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1

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ma (daqui em diantc "(FD)" e "(FE)", respectivamente) faz com que fundacionalismo e cocrcntismo sejam "melhor entendidos".17

Primeiro, nós podemos olhar mais uma vez para as citar;:oes de Chisholm e Alston e tentar entender de que fonna cada urna delas se relaciona com a proposta de Audi. Comccemos com Chisholm. Ele sugere que "Se nós tentamos fonnular socraticamcnte nossa justifica­<;:ao para qualquer alega<;:ao de conhecimento patticular [ ... ) nós iremos chegar, mais sedo ou mais tarde, a um tipo de ponto de parada". Colo­cada dessa forma, a qucstao "Como voce sabe?" é claramente equiva­lente a "Mostre-me que voce sabe". Além disso, a alegar;:ao de que (PRE) surgirá "se nós somos nao-piedosos no nosso questionamento" sugere que a mesma questao está sendo entendida por Chisholm como possuindo o que Audi chama de "for¡¡:a cética". Logo, de acordo com os critérios oferecidos por Audi para a identifica¡¡:ao de duas fonnas de (PRE), Chisholm pode ser considerado como apresentando (PRE) na sua fmma (FD). 18

("< Olhemos agora para a citar;:ao de Alston. Ao contrário de Chi­sholm, Alston nao faz meor;:ao a qualquer defesa argumentativa de nossas alega¡¡:oes de conhecimento. Essa constatar;:ao nos permite infe­rir que Alston nao tem em mente urna interpretar;:ao equivalente a "Mostre-me que voce sabe" da pergunta "Como voce sabe?". Ao lon­go de toda caracterizar;:ao do problema do regresso, Alston em ne­nhum momento considera necessário qualqucr cspécie de desafio ou de for~a cética na coloea<;:ao do problema.

Por outro lado, Alston parece dar indíeios d.e que o interessc precí­puo de sua formular;:ao de (PRE) é a de obter informar;iío sobre como uma determinada crenr;:a mediatamente justificada veio a obter cssc status positivo, isto é, a pcrgunta "Como voce sabe?" é entendida em um sentido equivalente a "Como é que voce sabe?" Logo, parece ra­zoável que se creía que a formular;:ao de (PRE) que Alston tem em mente identifica-se com (FE) .

Audi pretende que, assim que nós entendemos que (PRE) tcm sido apresentada de duas fotmas diferentes, nós veremos como coerentistas

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274 Rodrigo Borges

e fundacionalistas diferem na sua compreensao de algumas no¡¡;oes bastante importantcs. 19

Uma dcssas distin¡¡;ocs é aqueta entre crerjustificadamente e mos­trar que se eré justificadamente. Se feita com umaforrya cética, a per­gunta "O que o justifica ao crer?", nos faz pensar que urna resposta adequada mostra que se ere justificadamente. De acordo com (FD), se S ere justificadamente que p, em t, entao S está disposto a (tem a capa­eidade de) mostrar argumentativamente que ele ere justificadamente que p, em t. Essa condi¡¡;ao imposta a justifiea¡¡;ao epistemiea claramente implica (i) que S possui acesso cognitivo aquilo que baseia sua cren¡¡;a de que p, cm t, e (ii) a capacidade de S usar adequadamente as proposi¡¡;oes que compoe a base da cren<;:a de que p, em t, em um argumento em favor de p. A capacidade de se usar adequadamente razoes para que se mostre que se ere justificadamente é evidentemente mais fundamental que a disposiryoo de se mostrar que se ere justifica­damente: nao faz sentido supor que alguém possa estar disposto a oferecer a sua cren<;:a de que, por cxemplo, "Bolos de brigadeiro sao fcitos de chocolate" em favor da sua cren<;:a de que "Este bolo de bri­gadeiro tem chocolate" se essa pessoa nao possui a capacidade de oferecer a primeira proposi¡¡;ao em favor da segunda em fun¡yao da rela<;:ao de seus conteúdos (logo, nesse sentido, a capacidade de ofere­cer "adequadamente" a primeira proposi¡¡;ao em favor da segunda) e nao apenas em fun¡¡;ao de um golpe de sorte.

Segundo (FE), por outro lado, se a questao "O que o justifica ao c.rer?" é feita comfon;a informacional, entl:io urna rcsposta ad!;!quada a ela seria urna que apenas cita o que baseia a cren¡¡;a cm quesUio. Mes­mo que (FE) nao implique em qualqucr tipo de defesa argumentativa da cren<;:a que é objeto da perguota, S dcve poder identificar aquilo que bascia a sua cren<;:a de que p: S deve ter acesso cognitivo aos estados que baseiam a sua cren<;:a de que p. Embora ambas (FD) e (FE) impli­quem o fato de que o sujeito em questao possui acesso cognitivo aquí­lo que baseia sua cren<;:a, a primeira e nao a última exige que o sujeito mostre que a base de sua cren¡¡;a é adequada.

·.

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O problema do regresso episrtlmico reco11siderndo 275

(FE) e (FD) diferem importantemente cm rela¡;ao a exigencia ou nao de crcn¡;a de segunda ordem para que S creía justificadamente que p. Segundo Audi, se (PRE) é pensado como (FD), cnUio uma resposta adequada a pergunta "O que o justifica ao crer que p?" deve envolver urna cren¡;a de segunda ordem (provavclmente justificada) cujo conte­údo faz referencia a adequar,:iío da rela¡;ao de baseamento existente entTe a cren¡;a que p e os estados que a baseiam. Esse fato contrasta com o fato de que (PRE), enquanto (FE), nao exige que uma resposta adequada a questao "O que o justifica ao crer que p?" envolva urna cren9a de segunda ordem sobre a adequa9ao ou nao da rela9ao de baseamento. Para (FE), urna resposta adequada a essa pergunta tende a envolver apenas cren9as de primeira ordem do sujeito.

Outro aspecto cm que (FE) e (FD) divcrgem aparece quando nós consideramos o que é necessário para que um sujeito tenha, dé e mos­tre urna solu9ao a questao "O que o justifica ao crer?" Se essa pcrgun­ta. é feíta mo!iv~da por uma for¡;a informacional, o fato de eu ter pro­posiyo-e~Je ~ao de fato justificadas para mim e de eu dar elas como resposta a cssa questao garantem que eu tcnha mostrado uma solu9ao. Se a mesma pcrgunta é feíta motivada por uma fon¡:a cética, entao o fato de que eu tenho proposi9oes justificadas para mim e de que eu as dou como resposta nao é suficiente para que eu tenha mostrado urna solu9ao.

(FE) e (FD) difercm, ainda, cm rela9ao a outro aspecto. Dado que (FD) exige que o sujeito seja capaz de (ou esteja disposto a) estabele­ccr argumcñtativamente urna resposta a quesUio ."0 que o justifica ao crer que p?" para que cssa seja satisfatória, (FD) implica que justifica­yiio é sempre o resultado de um processo de justificar,:iío. Toda cren9a justificada é, nesse sentido, aqueta que surge (ou surgiria) como o resultado de um processo inferencia! bem sucedido. Contrariamente a (FD), (FE) exige apenas que o conjunto de estados que basciam a cren9a de que p de fato possuam a propriedade da justificar,:iio, que a

rcla9ao de baseamento se de adequadamente, e que S cite o conteúdo dcstes estados como resposta a quesHio "O que o justifica ao crer que

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280 Rodrigo Borges

que ele ere justificadamente. Como nós vimos na nossa discussao sobre (FD) (sec;:ao ll), mostrar que se ere justificadamente envolve a posse de cren.yas de segunda ordem sobre o status da cren.ya de plimei­

ra ordem em vista da adequa~ao ou nao da rela~ao de baseamento mantida entre essa cren.ya e os estados que a baseiam. Mas, por outro lado, esse proccsso inferencia) em favor da crenc;:a de primeiro nivel só poderá ser considerado satisfatório se a cren.ya de segundo nivel for e la mesma justificada. Logo, se (P) 1 é uma condis:ao geral sobre justi ­ficac;:ao, entao ela vale também para a crens:a de segundo nivel, isto é, a crens:a de segundo nivel deve ser mantidajustificadamente. Entao, S deve ser capaz de (ou estar disposto a) mostrar que a sua cren<;a de segundo nível está justificada e isso, por sua vez, envolve uma crens:a justificada de terceiro nivel cujo conteúdo refere-se a cren<;a de se­gundo nível e os estados que a baseiam. E, se essa crenc;:a de tercciro nível é mantida justificadamente, entao Sé capaz de (está disposto a) mostrar através de uma cren<;a de quarto nível...

Portanto, (P) 1 gera o que nós poderíamos chamar de (FV) forma vertical de (PRE): o conjunto de justificadores que resulta de (FV) tem como membros estados nao só de primeiro nivel, mas de n-níveis.

Para a segunda interpretas:ao, justifica<;ao nao é uma propriedade positivamente determinada pelo fato de um sujeito possuir ou nao a capacidade de (estar ou nao disposto a) realizar um processo inferen­cia! em favor de qualquer crenc;:a por ele mantida. O importante para essa interpretac;:ao da justifica<;ao é saber se o conjunto de estados q\.!e baseia a cren.ya de fato justifica essa crenc;:a e se ~ relac;:ao de basca­mento é de fato adequada. Isso é assim independentemcnte de o su jei­to possuir qualquer capaeidadc (ou disposic;:ao) de estabelecer, via processo inferencia!, a adequa.yao ou nao daquilo sobre o qual sua crenc;:a é baseada para que se estabclec;:a a presen.ya ou nao da proprie­dade da justificas:ao. Essa maneira de se entender justificac;:ao sugere o seguinte principio:

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O problema do regresso epistémico reconsiderado 28 1

(P)2 Se S ere justificadamente que p em t, enUio a crenya de S de que p em t é baseada adequadamentc sobre um conjunto de estados que tomam provável a verdade de p para S, em t.

Que tipo de regresso (P)2 é capaz de suscitar? Se X é o conjunto formado por todos os estados individualmente necessários e conjun­tamente suficientes para que a crcnya de que p tenha a sua verdade tomada provável, enHio, se um desses estados pertencentes a X (por excmplo, a cren9a de que q) deriva seu status enguanto justificado de outro conjunto Y de todos os estados que sao individualmente neces­sários e conjuntamente suficientes para que a cren9a de que q tenha a sua verdade tornada provávcl, entao Y é um membro de X. E, se um dos estados que é membro de Y (por exemplo, a crenya de que r) deri­va seu status enguanto justificado de outro conjunto Z de todos os estados que sao individualmente necessários e conjuntamente sufici­entes para que a crenya de que r tenha a sua verdade tomada provável, enUío Z é um membro de Y e, logo, um membro de X. E, se um dos estados que é membro de Z deriva seu status enguanto justificado de outro conjunto de estados ...

O tipo de regresso suscitado por (Pi nao envolve necessariamente (como (FV) o faz) qualquer estado de nível diferente do primeiro ní­vcl. Portanto, nós podemos chamar essa fo1ma de (PRE) de a (FH) forma horizontal de (PRE): diferentemente do regresso gcrado por (FV), (FH) gera um regresso que pode resultar em um conjunto de justificadores formado apenas por estadqs de primeiro nível.

Assim que for mais bem detalhada, a proposta de identificayao de duas forn1as de (PRE) desde a constatayao do caráter equívoco do conceito de justificayao mostrará implicayocs semelhaotes a proposta de Audi: urna forma do problema dá cnfasc a capacidade/disposi9ao de um sujcito de argumentar em favor daquilo que ere, outra forma procura saber apenas se de.fato aquilo que baseia a crenya do sujeito é suficiente para fazer com que ele creía justificadamente. Entretanto, a identificayao dessas fOtmas de (PRE) sem que se fa9a referencia a for9a com que a pcrgunta "O que o justifica ao crer que p?" é feíta nao

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282 Rodrigo Borges

é vulnerável as obje<;:oes levantadas contra essa última na seyao ante­rior.

Conclusao

(PRE) é sem dúvida um dos tópicos mais importantes na discussao epistemológica contemporanea e, como todo bom problema filosófico, ele também nao pode receber um cor-reto tratamento sem que antes nós sejamos capazes de ofcrecem urna formulayao onde ele apare9a o mais clara e abrangentemente possível.

Se justifica<;:ao é entendida como o produto de um processo infe­rencia! bcm sucedido, os parametros para que uma crenya possa ser descrita verazmente como "justificada" sao significativamente dife­rentes daqueles que consideram "justificayao" como urna propriedade que nao é determinada exclusivamente pela realiza9ao ou pela capaci­dade de se realizar um processo inferencia!.

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Notas

Rodrigo Borges Mestrando do programa de Pós-graduayao

em filosofia da PUCRS e bolsista Cnpq. epistemen@gmai l.com

1 Para a apresenta¡;ao de (PRE) por Aristóteles, ver seu 1947. Para a discus­sao contemporanea ver, entre outros, Chishohn 1966, 1977 e 1989, Audi 1993, 1993a e 2003, Klein 1999, Bonjour 1985, 1999 e Bonjour e Sosa 2003, Sosa 1980, Fumerton 1995, Alston 1976, l976a e 1983 e Fogelin 1998. 2 Chisholm 1966, p. 1-2. 3 Alston 1976, p. 26. (A pagina~ao é da reimpressao em Alston 198~.) 4 Outras propriedades epistemicas que também sao atribuidas a estados do­xásticos sao "x é racional," "x é certo" e "x é um ítem de conhecimento." Para urna distin¡;ao entre " racionalidade" e "justifica¡;ao" cf Audi 2001. Para um estudo sobre "certeza," cf Klein 1981. 5 Justifica¡;ao epistemica é uma qualidade e/ou quantidade que admite dife­rentes gradar;oes (e.g., um estado doxástico x é mais/menos justificado que o estado y para S em t). Para urna exposi¡;iio detalhada de diferentes grada¡;oes de justifica¡;ao epistemica, cf. C hisholm 1977 cap. 1 e Chisholm 1989 cap. 2. Para urna crítica e discussao detalhadas de algumas concep¡;oes de probabili­dade, ver Pollock e Cruz 1999. Para urna história do conceito de justifica¡;ao epistemica na epistemología anglo-americana do sécul~ XX, cf. Plantinga

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286 Rodrigo Borges

1993 ; para sua concep~,:ao daquilo que deve se somar a cren~a verdadeira para que se tenha conhecimento ("warrant"), cf Plantinga 1993 a. 6 Cf. Sosa 1980, p. 180 e Feldman 2003, p. 40-41. 7 Goldman 1979, p. 106. (as páginas sao da reimpressao em Goldman 1992.) 8 Mais sobre a "rela~,:ao de baseamento" adiante. 9 Cabe apontar o fato de que uma crenya pode ser justificada parte imediata­mente e parte mediatamente. A cren~a de que p pode ser, ao mesmo tempo, justificada devido a suas rela~oes inferenciais com outros estados doxásticos do sujeito e devido a rela~,:oes nao-inferenciais com experiencias desse mes­mo sujeito. Entretanto, essa possibilidade nao incide significativamente sobre a discussao que aquí se propoe e será ignorada no intuito de trabalharmos apenas comas variáveis teóricas estritamente necessárias ao entendimento da coloca9ao do problema do regresso e nao algum argumento que busca solu­cioná-lo. 1° Cf Sellars 1956 and 1975. Ambos reimpressos em Sosa e Kim 2000. 11 O uso de expressóes como "ele baseou sua crentya sobre a cren¡ya de que ... " nao deve ser entendido como indicativo da tese de que nós possuímos contro­le voluntário sobre nossas cren~as (expressoes como a citada sao apenas utilizadas devido ao fato de serem naturalmente usadas na descrit;ao de casos como o de Joao). Eu sou simpatizante da tese de que nós nao possuímos controle direto sobre nossos estados doxásticos. Para uma crítica ao volunta­rismo doxástico em várias de suas formas, cf. AJston 1985 e 1988 ; Feldman 2000. Para a defesa de um tipo particular de voluntarismo doxástico, cf. Steup 1996. 12 Nada no presente artigo depende de uma defini9ao mais precisa do que significa "posse cognitiva," mas a no~,:ao intuitivamente correta incluí estados conscientes e nao-conscientes do sujeito (como a memória). Para uma discus­sao da not;iio de posse cognitiva de razoes, ver Feldman 1988 e Audi 1986 e 1991. . 13 A literatura sobre a relat;iío de baseamento é vasta e o tópico me parece merecer muito mais atent,:ao pois ele é evidentemente central para a not,:iío de justifica~ao epistemica. Urna exposit,:ao muito boa de diferentes noyóes de rclat,:ao de baseamento é feíta em Korcz 2000. Para urna defesa da cláusula causal na relat,:ao de baseamento, cf Harman 1973, Swain 198 1 e Audi 1986, 1989 e 199 1. Para a nega~,:ao de que o conceito de rela9ao de baseamento de ve incluir uma cláusula causal, cf Lehrer 2000, p. 195-197. 14 Ver nota 9. 15 Audi 1993, p. 120. 16 Audi 1993, p. 117.

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O problema do rcgresso epistémico reco11sidcrado 287

17 Audi 1993, p. 118. 18 Audi mesmo cita essa mesma passagem de Chisholm e a considera um caso de (PRE) na sua forma (DF). De qualquer forma, nós podemos aprender mais sobre as intenc;oes de Audi ao explicitannos por que ele assume que Chisholm apresenta (PRE) na sua forma dialética. Cf Audi 1993, p. 119. 19 Audi 1993, p. 120-22. 20 Deixa-se a prova dessa alegac;ao para uma outra oportunidade. 21 Talvez Audi estivesse ciente de objec;oes como as que foram apresentadas aqui pois ele retirou de textos que tratam de (PRE), e que sao posteriores ao se u 1993, qualquer menc;iio a (FD) e (FE). Cf Audi 2001 e Audi 2003. 22 Alston 1976a, p. 43, nota 6 (enfase adicionada).

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1

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Descoberta e justifica~ao1

Samuel Simon2

Unil·ersidade de Brasilia

l. Introdu~ao

Embora Reichenbach (1938) tenha sido o primeiro a utilizar as ex­pressoes "contexto de justificac;:ao" e "contexto de descobe11a," o pro­blema da descoberta científica e as tentativas para a sua fundamenta­c;:ao tem sido objeto da Filosofia há muito tempo. Como bem observa Laudan (1980) em um artigo em que aponta um certo abandono desse problema, os racionalistas - além de Bacon - , em grande medida, pro­curavam expl icitar uma estrutura que garantisse a descoberta nas cien­cias. Laudan tem razao. Uma filosofia como a cartesiana - ou mesmo um realismo como o de Ga lileu - defende que a descoberta nao so­mente é possível, como está baseada em pressupostos estritamentc ra­cionais ou numa metafísica da natureza. Anteriormente a Reichenba­ch, em meados do século XIX, J. Herschel e W. Whewell. já haviam estabelecido a difercnc;:a entre os dois contextos e apresentaram pa­drees para a descoberta científica enfatizando o papel da induc;:ao e da deduc;:ao. Dessa maneira, a inovac;:ao de Reichenbach foi considerar que o "contexto de descoberta" pertence ao dominio da psicología e da cria<¡:ao humana, e nao da lógica (Reichenbach, 1958). No entanto, a­pesar dessas dificuldades, autores com N. R. Hanson ( 1958, 1967) e H. Simon ( 1973) buscara m um padrao para a descoberta científica, in­clusive no que concemc a uma possível lógica que lhc seria inerente. O trabalho de Laudan, posterior aos escritos de Hanson e Simon, con­cluí nao somcnte pela impossibilidade de uma lógica da descoberta

Dutra. L. H. de A. e Mortari. C. A. (orgs.). 2005. l:.'pislemologw: A11ais do IV Simpósiu 111/ema­duual. f'riucipia - Parle l . Florianópolis: NELIUFSC. pp. 289- 303.

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290 Samuel Simon

como nao vé por que se retomar o problema da descoberta em Filoso­fía. As razoes sao basicamente as mesmas de Reicbenbacb - o que importa a filosofía é o contexto de justificayao - mas acrescenta um pressuposto que nos parece estranho as concepyoes contemporaneas das teorías científicas. Segundo Laudan, como as teorías científicas sao "artefatos," nao há sentido em se falar de uma filosofía de artefa­tos, pois a descobe1ta está, evidentemente, em estreita conexao com novas teorias.3

O objetivo do presente trabalho é mostrar que nao somente a des­coberta ainda é um problema filosófico relevante, mas, sobretudo, a­presentar a possibilidade de uma fundamentayao lógica. Como bem observa Backwell (1969, p. 6), quando se fala em lógica da descober­ta, nao se trata de apontar urna mecánica de descoberta, mas indicar que a descoberta decorre de urna atitude racional. Se essa fundamenta­yao for possível, há entao urna estreita rela¡yao entre o "contexto de descoberta" e o "contexto de justificayao."

2. Descoberta e mudan-;a científica

O termo "descoberta" científica é utilizado, basicamente, em dois sen­tidos. Num primeiro sentido, refere-se as descobertas experimentais: o encontro de um novo fóssil nao conhecido, novos pássaros nao classi­ficados, os pergaminhos do Mar Morto, materiais radioativos, etc. Num segundo sentido, ~ngloba descobertas como a do Planeta Netu­no, os huracos negros e a contrayao espacial e a dilatayao temporal. Todos esses tipos de descoberta sao explicados segundo teorías vigen­tes ou entao segundo novas teorías e, muitas vezes, conduzem a mu­danyaS teóricas: seja aperfeiyoando teorías, seja contestando-as. Díez & Moulines (1997, 439-62) classi:ficam a mudanya em dois níveis: intrateórico ou interteórico. No primeiro caso- intrateórico -, as teo­rías vigentes sao reafirmadas. Os trabalhos de Euler, Lagrange, entre outros, constituem exemplos das mudan9as intrateóricas, pois nao ne­gam os axiomas newtonianos, mas os aperfeiyoam. No caso da mu-

' ·

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Descober/a e justijicar;cio 291

danc¡:a intertcórica, as tcorias sao contestadas, total ou parcialmente. A Teoría da Relatividade é um caso importante ele mudanr;:a teórica, uma vez que certos resultados da física clássica sao refutados, em um certo contexto de validade. Sao, sobretudo, as mudanr;:as interteóricas que mais intercssam aos filósofos da ciencia; mas, cm todos os casos de descobcrta, é possível afirmar, segundo S. Schaffer ( 1986, p. 397) que a descoberta fixa conceitos: seja reafirmando-os, seja refutando-os e apontando para novas concepr;:oes científicas.

O tenno "descoberta científica" esconde uma opc¡:ao realista e, de urna maneira geral, alguma concepr;:ao metafisica: descobre-sc o que está cncoberto, oculto. Ou ainda, a descoberta evidencia uma relar;:ao harmónica entre a mente e o mundo - cssa é conccpc¡:ao de Backwcll ( 1969, p. 120ss ). Es ses aspectos nao serao examinados no presente trabalho, mesmo que eles sejam tao relevantes como a forrnular;:ao de uma lógica da descoberta. Urna outra observar;:ao é que as nossas con­siderar;:oes diferem dos anteriormente citados num aspecto particular. Embora alguns filósofos da ciencia - como Hanson e Simon - bus­quem uma lógica da descoberta, as tentativas parecem situar-se num nivel de intenciooalidade; a dcscoberta pode ser urna resposta para a quesHio: qua! é a motivar;:ao da descoberta? Essa abordagem reconduz ao "contexto de descoberta" e as dificuldades nao sao pequenas. Urna possível alternativa para escapar a crítica de Rcichenbach é analisar a relac¡:ao entre mudanr;:a íntertcórica e descoberta. É o que será feíto neste trabalho examinando-se a Teoría da Relatividade Restrita.

Muitos au~ores prefcrem chamar a descoberta que se situa no plano intcrteórico de "invenr;:ao" (c.f Paty 1996), mas preferimos mantcr "descoberta interteórica," mantendo a exigencia de posterior adequa­¡¡:ao empírica e, principalmente, a constatar;:ao de fatos novos, ou scja, que baja pré-designar;:ao. Parece ser possível faJar cm invenr;:ao e cm descoberta como aspectos distintos da mudanr;:a inteitcórica, pois o termo "descoberta" parece mais adequado quaodo ccrtas premissas deconem de outra: a "invenr;:ao." As equar;:oes de Maxwcll podem ser consideradas " invenr;:ao" e as ondas eletromagnéticas "descoberta." O mesmo oconc com a teoría da Relatividade Rcstrita, como será visto a

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292 Samuel Simon

seguir: o valor constante da velocidade da luz independentemente do movimcnto dos referencias pode ser considerado " inven¡;;iio" e as transformadas de Lorentz, daí oriundas, "descoberta." Tendo cm vista essas observa¡;;oes, " retifica9iio4 teórica" também nos parece adequado quando nos referimos a inven¡;;ao e descoberta. Como essa retifica¡;;ao acorre no plano da mudan<;:a interteórica, torna-se importante exami­ná-la, ainda que rapidarnente.

Os dois grandes representantes5 das correntes que discutiram a re­levancia da mudan<;:a científica no século XX, Popper e Kuhn, instituí­ram um rico debate cujas repercussoes se fazem sentir até hoje. Ape­sar de os dois autores abordarem o problema da descoberta, os enfo­ques sao bastante diferentes entre si. Como observa Herbert Simon, referindo-se a Popper, é curioso que um livro contenha em seu título algo que será completamente desconsiderado.6 De fato, logo nas pri­meiras páginas de The Logic of Scientific Discove1y, Popper nega que possa existir alguma lógica da descoberta. A razao é bem conhecida: o importante ern um enunciado que se refira a urna descoberta científica é que e le apresentc urna estrutura lógica tal que possa ser falseado. Es­se é o ponto relevante. Para Popper, as conjecturas que levam a deseo­berta nao seriam objeto da filosofia e admitem origens tao diversas quanto sao as atividades humanas7

• Quanto a estrutura lógica de um enunciado de descoberta - refute ou nao premissas anteriores -, deve­rá estar sempre sob o "alvo" do modus tol/ens.

Para Kuhn, a descoberta é relevante, mas estritamente vinculada as an~rnalias e aos novas paradigmas. A ciencia normal, escreve .Kuhn, "nao se propoe a descobrir navidades no terreno dos fatos ou da teorí­a" (Kuhn 1978, p. 77). Embora reconhe<;:a um entrela¡;;amento entre fato e teoría, Kuhn, na maioria das vezes, usa o termo "descoberta" para se referir a fatos anómalos: a descobetia come<;:a com a conscien­cia da anomalía. Com as dificuldades crescentes do paradigma, a a­nomalía levará a fo1mula<;:ao de novos paradigmas e a inven<;:ao - as navidades concernentes a teoría - finalmente se impoe. Rigorosamen­te, somente depois da a1iicula<;:ao entre experiencia e teoría experi­mental, "pode surgir a descoberta" e a teoría se converte em paradig-

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Descoberta e justijica{'tio 293

ma (Kuhn, 1978, p. 88). Nao parece ser possível, portanto, falar em lógica da descoberta em Kuhn, mas, numa hipótese bastante favorável,

apenas em "lógica" dos paradigmas. Como assinalado acima, Hanson e Simon sao os primeiros a reto­

marero o problema da descoberta após as críticas de Reichenbach. Ou­tros autores, como S. Schaffer ( 1986), M. Paty ( 1990), K. F. Schaffner ( 1993), mostraram de mancira bastante original o quanto a separa9ao proposta por Reichenbach parece ser drástica. Seguindo Peirce, Han­son ( 1958, 1967) vincula a descoberta a um padrao de retrodur;iío. No entanto, este autor limita-se a apontar exemplos históricos onde teriam acorrido retrodu9oes, sem propor urna formaliza9ao, e ressalta o papel das analogías nesse processo.

Simon (1973) procura suprir essa !acuna e propoe urna formaliza-9ao a partir da no9ao de "goal" (G), "conjunto de processos" (p E P) e "conjunto de condi9oes" (e E C). Como as condi96es sao atribuidas a os processos, c(p) será urna fun9ao de C e P para os valores-dc­vcrdade Te F. Assim, para se atingir o objetivo G, as condi9oes C de­vem ser satisfeitas, podendo-se enUio empregar o processo p que satis­faz C. Formalmente, tem-sc 'v'c(c(p) = T). Se o objetivo (G) é desco­brir leis científicas válidas, e P é a classe de processos de teste, entao C fomece urna teoría normativa da descoberta científica. Para se al­canyar o objetivo - isto é, a descoberta de 1eis científicas- é recomen­dado que se use um processo que satisfa9a a condi9ao e, ou seja, sen­do G' urna frase que exprime G e e ' urna frase que exprime e, tem-se G' ::>e' e nao e'::> G'. Com essa formaliza9ao inicial, Simon concluí que a teoría normativa do processo de descoberta é considerado como um ramo da teoría computacional complexa. De fato, Simon e outros autores desenvo1veram alguns trabalhos posteriores nessc sentido (Thagard, 1986; Kulkami e Simon, 1988) com relativo sucesso, embo­ra a1gumas críticas tenharn sido feítas por autores corno Downcs (1990). Downes faz basicamente duas críticas as tentativas de Sirnon: a primeira, é que Simon nao fomece evidencias suficientes para a existencia de processos psicológicos distintos que justifiquem os raciocinios pertinentes ao proccsso de descoberta científica; a segunda, é que o proccsso de descobetta científica teria uma

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294 Samuel Simo11

que o processo de descoberta científica teria uma importante compo­

nente social. Se a primeira crítica é pertinente, o mesmo nao parece oconcr com a segunda, poi s Simon pretende desenvolver um procc­

d imento algorítmico para a descobcrta buscando cxatamente eliminar [atores nao lógicos, isto é, os fatores sociais; estes nao seriam impor­tantes e uma lógica da dcscoberta evidenc iaría a nao adoryao de tais fa tores .

A opryao por encontrar proccssos computacionais para explicar a

dcscoberta científica tem se mostrado promissora e nosso trabalho, em ccrto sentido, inspirou-se nesses procedimentos. Ainda que nao trate

explícitamente do problema da dcscoberta, o recente trabalho de Os­valdo Pessoa (2004) propondo uma base computacional para a mu­danrya científica inserc-se rrosse contexto e apresenta contribuiryoes va­liosas, utilizando o conceito de avanryo científico e sugcrindo, inclusi­ve, Classes de Tipos de Avant;os. Parece-nos, no entanto, que essas duas tentativas nao resolvem o problema estrito da descoberta oriunda de novas teorías científicas. N es se sentido, o estudo dos resultados ad­

vindos da Teoría da Relatividade Restrita será útil para o nosso propósito.

3. Física newtoniana e teoría da rclatividade

A Teoría da Relatividade origina-se com os dais principios básicos propostos por Albert Einstein, ao lado de uma definit;iio de intervalo de tempo. O primeiro principio afi1ma que as leis da natureza sao as mesmas para observadores que se deslocam em movimento retilíneo unifonnc. Em termos mais técnicos: todos os sistemas de inércia sao equivalentes para exprimir os fenómenos da natureza, ou ainda, a for­

ma das leis fisicas é invariante para refcrenciais inereiais. Rigorosa­mente, o enunciado de Einstein em seu artigo de 1905 (Einstein 200 1, p. 148) é o seguintc: "as le is que descrevem a mudan<;a dos estados dos sistemas físicos sao independentes de qualquer um dos dais siste­mas de coordenadas que estao em movimento de translaryao uniforme,

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Descoberta ejustijica(:oo 295

um em relavao ao outro, e que sao utilizados para descrever essas mu­danvas." O segundo pressuposto é que a velocidade da luz no vácuo é constante, independentemente do movimento relativo dos r~ferenciais de onde foi emitido o raio de luz. Para esse princípio, segundo Einste­in: "Todo raio de luz move-se no sistema de coordenadas de 'repouso' com urna velocidade fixa V, independentemente do fato de este raio de luz ter sido emitido por um corpo em repouso ou movimento." (Id., ibid.). A velocidade da luz é o valor máximo de velocidade associado a fenómenos que possuem algum tipo de energía presente. No que se refere ao intervalo de tempo - dados dois relógios, um localizado num ponto A e outro em um ponto B - , a definivao é a seguinte: "o 'tempo' necessário para a luz ir de A até B é igual ao 'tempo' necessário para ir de B até A." Dessa mane ira, tem-se urna definivao de simultaneida­de, pois se o raio de luz que parte de A para B, no instante de tempo A de tA, é refletido de B para A, no instante de tempo B de ts e chega de volta a A, no instante de tempo A de tA, os dois relógios estao sincro­nizados, por definivao, se tn - tA = t' A- tn. Para essa definivao, utili­zam-se relógios identicos no sistema de repouso.

Dessa maneira, sobretudo no que se refere ao segundo princípio e a definiyao de simultaneidade, a Teoría da Relatividade modifica certos postulados da Física Newtoniana. Novas rela¡yoes espayo-temporais decorrem da aplicayao do primeiro principio, tendo em vista o princí­pio seguinte e a nova definic;:ao de simultaneidade. Ou seja, a constan­cia da velocidade da luz e as novas rela96es espayo-temporais, corres­pondero ao que concebemos como "retifica¡yao teórica."

O que ternos chamado de retifica¡yao de certos conceitos - retifica­yao que explicita a descoberta de novos conceitos e teorías - é um movimento presente desde -o advento da Física Moderna. René Des­cartes propoe como conceitos definidores do comportamento dos cor­pos, a extensao e o movimento. A quantidade de movimento, por e­xemplo, segundo Descmies, seria o produto do volume de um corpo por sua velocidade; Newton substituirá o conceito de extensao pelo de massa, estando este ausente na fisica cartesiana. O conceito de massa, associado aos de velocidade instantanea e tempo e espayo absolutos

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296 Samue! Simon

constituidio, ao lado da teoría da gravitac;:ao, os pilares da física new­toniana.

O mesmo ocone em relac;:ao a Teoría da Relatividade Restrita. O princípio da constancia da velocidade da luz e a definic;:ao de intervalo de tempo, ou simultaneidade, levm·ao ao nascimento da física relati­vista. A descoberta aponta para certas inconsistencias que existem en­tre os enunciados científicos, embora cada conjunto de proposic;:oes que define um domínio do conhecimento científico seja, na maioria das vezes, consistente, quando nao se incluí o enunciado que se refere a descoberta. No entanto, se admitimos o conjunto de explicas:oes para amplas classes de fenómenos, como, por exemplo, a mecanica quanti­ca e a física relativística, urna lógica multidedutiva faz-se necessária, como observa Da Costa (1999, p. 114). No entanto, para o contexto de descoberta interteorica, parece que a lógica nao-monotónica é o pa­driio mais adequado para explicar os fundamentos desse processo.

4. Nao-monotocidade e descoberta

As lógicas nao-monotónicas, empregadas, sobretudo, em processos computacionais da Inteligencia A1iificial, vem em auxílio dos siste­mas em que aparece mudanc;:a nas conclusoes, quando novas premis­sas sao introduzidas. A lógica clássica é monotónica. Sendo a uma fórmula ere D. conjuntos de fórmulas, isso significa que:

Ou seja, premissas adicionais - ou informas:ao adicional - nao alteram a validade de uma deduc;:iio.

Quando um padrao de raciocínio nao-monotónico é presente, tem-se:

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Descoberta e justijica("tio 297

É o que parece ocotTer na passagem da Física Newtoniana para a Física Relativística. Vejamos como isso pode ser representado, sem se configurar ainda como urna fonnalizarrao.

O princípio geral para as leis da mecanica, admitido até o inicio do século XX, pode ser enunciado da seguinte maneira:

Al 1- As leis da mecanica sao independentes dos movimentos dos referenciais que se cncontram em movimento de transla¡¡:ao uni­forme, um em relayao ao outro.

Logo,

2- As coordenadas que mantem invariantes as cquayoes que definem essas leis obedecem as seguintes transfotmadas - as trans­formadas de Galileu- na passagem de um referencial a outro em movimcnto de h·anslayao unifonne:

x'=x-vt, y'=y, z'=z, ( = /

Para a Teoría da Relatividade, adotando os enunciados acima, tem-se:

A2 1 - As leis da mecanica sao independentes dos movimentos dos referenciais que se encontram em movimento de transla¡¡:ao uniforme, um em relayao ao outro.

1' - As lcis que descrevem a mudan¡¡:a dos estados dos sistemas físicos sao independentes de qualquer um dos dois sistemas de coorde­nadas que estao cm movimento de transla¡¡:ao uniforme, um em relayao ao outro, e que sao utilizados para descrever essas mu­danyas.

2'- Todo raio de luz move-se no sistema de coordenadas de " rcpou­so" com uma velocidade fixa e, independcntemente do fato de

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298 Samue/ Simon

este raio de luz ter sido emitido por um corpo cm repouso ou movimento.

3' - Dois relógios u m localizado num ponto A e outro em um ponto B, o "tempo" necessário para a luz ir de A até B é igual ao "tempo" necessário para ir de B até A. Se o raio de luz que par­te de A para B, no instante de tempo A de tA, é refletido de B para A, no instante de tempo B de t6 e chega de volta a A, no instante de tempo A de tA. os dois relógios estao sincronizados, por definir;:ao, se t8 - tA = t 'A- ta.

Logo,

4' - As transformar;:oes que deixam invariantes as equar;:oes que defi­nem a leis físicas para referenciais em movimento inercial, sao dadas por:

, ( ) , , , ( vx) X = r X- vt , y = y , Z = Z , t = 'Y 1 --2 e

(Onde y= ~g2 )

1-- , e-

O paddio de raciocínio envolvido em (Al) e (A2) é nao­monotónico.

Visando a uma formalizayao, a sentenr;:a 1 será identificada por {<1> 1} = í e a sentenr;:a 2 por a. Dessa maneira, tem-se para Al a se­guinte representar;:ao:

ít- a

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Descobel'la e jusfijicll(;iio 299

Para a teoría da Relatividade (A2), a sentenya 1' será identifica­

da a~' 2' a 't, 3' a 1.1e 4' a ro. Tcm-se enüio um novo conjunto ~ = {~, 't, 11}. Ncsse caso:

r u ~ Jl- a, pois r u~ 1- (l)

Ou seja, a nao-monotocidade pode fundamentar a descoberta no contexto da mudanya intcrteórica; no caso da Teoría da Relatividade, a contrayao espacial e a dilatayao temporal. A constancia da vclocidade da luz e a definiyao de simultancidade impoem o paddio nao­monotónico. Parece ser possível concluir entao que o padrao de racio­

cínio nao-monotónico, passíve l de uma fonnalizayao, evidencia urna base racional para a descoberta. Nao é neccssário, p011anto, adotando uma lógica nao-monotónica , referir-se as intenyoes dos cientistas, nem

mesmo de seus objetivos, nos tcnnos de H. Simon, embora estes pos­sam ser importantes, bem como o uso de analogías - como defende Hanson.

A Teoría da Relatividadc impoe a retificayao das transformadas de Galileu, mas para certos valores de velocidades re lativas, ou seja, para valores de velocidades (v) próximas a da luz (e); para v << e, a­inda se utiliza aquetas transformadas. Trata-se aqui do problema da

incorporayao teórica, conforme apresentado por Díez & Moulines (1997, p. 452).

Uma última conclusao, a ser desenvolvida, é que, talvez, o con­ceito de descoberta possa ser tomado como um critério forte para de­marcar domínios científicos, pois seja no contexto de mudanya íntra­teóríca, scja no contexto de mudan9a interteóríca, a descoberta afinna wna teoría: scja uma teoría em vigor, seja uma nova teoría.

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Notas

Snmuel Simon

Samuel Simon Departamento de Filosofia

Universidade de Brasilia e-mail: [email protected]

1 Trabalho desenvolvido com o apoio financeiro da Fundayao de Empreen­dimentos Científicos e Tecnológicos- FINATEC. 2 Agrade90 aos meus colegas Nelson Gomes e Almir Serra, do Grupo de Ló­gica e Filosotia da Ciencia do CNPq, pelas observa9oes e sugestoes a csse trabalho, particularmente no que se refere as tentativas de formalizayiíO do meu argumento. 3 Essa concepyiío de Laudan parece-nos estranha, pois nao se coaduna com as atuais concep9oes sobre teorias científicas: seja a concepyao sintática, seja a concepyiio semantica das teorias científicas. 4 Prefiro "retificayiio" a "negayiio," termo utilizado, por Bachelard em sua Filosojia do Niio. Meu colega Pauto Abrantes apontou essa semelhanya com a epistemologia de Bachelard. Bachelard parece ser um dos primeiros a falar da nega9ii0 de conceitos com a incorporayao progressiva de teorias científi­cas. Vale notar, no entanto, que: 1- a nega9iio para Bachelard ocotTe no que ele chama movimento dialético. Embora haja uma clara influencia hegeliana nesse caso, o termo dio/ética em Bachelard tem um sentido de dinomica; 2-em certa medida, Mach havia apresentado, alguns anos antes de Popper, a refutayiio de conceitos e teorias como um critério de cientificidade e Duhem o caráter hipotético de ambos - conceitos e teorias; 3- fina lmente, mesmo que nao trate explicitamente do problema de incorporayiiO de teorias, Popper já havia apresentado em sua Lógica o falseamento parcial - urna teoria pode, portanto, ser falseada apenas em parte - como um aspecto importante do pro­gresso científico. Cf. Bachelard (1975); Mach (1987), Duhem (1981), Popper (1966). 5 Mais recentemente, autores como Touhnin, Laudan, Lakatos, Hesse, Mc­Mullin, Shapare, também apresentam importantes estudos sobre a mudanya teórica. Para um estudo bastante abrangente sobre esses autores, ver Laudan etal. (1993). 6 Simon refere-se a tradu9iio inglesa de Logik der Forschung; rigorosamente, o tenno "pesquisa" é uma traduyao mais adequada, como ocorre em portu­gues.

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7 A proposta de "mundo 3" de Popper autoriza a descoberta como algo obje­tivo, produzido a partir de teorias já existentes. Curiosamente, o exemplo de Popper refere-se a Matemática - e nao a ciencia empírica - particularmente aos números primos. Cf. Popper, 1972, p. l 08.

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