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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Roberto Serafim Simões
O PAPEL DOS KLESAS NO CONTEXTO MODERNO DO IOGA NO BRASIL:
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE OS POSSÍVEIS DESLOCAMENTOS DA
CAUSA DO MAL E DA PRODUÇÃO DE NOVOS BENS DE SALVAÇÃO POR
MEIO DA FISIOLOGIA BIOMÉDICA OCIDENTAL.
DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SÃO PAULO
2015
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Roberto Serafim Simões
O PAPEL DOS KLESAS NO CONTEXTO MODERNO DO IOGA NO BRASIL:
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE OS POSSÍVEIS DESLOCAMENTOS DA
CAUSA DO MAL E DA PRODUÇÃO DE NOVOS BENS DE SALVAÇÃO POR
MEIO DA FISIOLOGIA BIOMÉDICA OCIDENTAL.
Tese apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do Título de Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Professor Eduardo Rodrigues da Cruz
DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SÃO PAULO
2015
SIMÕES, Roberto Serafim, O papel dos klesas no contexto moderno do ioga no Brasil: Uma investigação sobre os possíveis deslocamentos da causa do mal e da produção de
novos bens de salvação por meio da fisiologia biomédica ocidental. São Paulo, 2015. 175f. Doutorado – Pontifícia Católica De São Paulo, 2015 Área de Concentração: Ciências da Religião
Banca Examinadora
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DEDICATÓRIA
Aos meus pais, meu irmão
e à minha família, Miila e Jolie.
AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Eduardo Cruz, pela sua dedicação e parcimônia.
À CAPES, pelo apoio para a elaboração deste projeto.
RESUMO. O período antigo do ioga emerge em meio a uma sociedade indiana estratificada e influenciado por religiões como o samkhya e o hinduísmo bramânico, sistematizando-se como um dársana ortodoxo hinduísta por meio da escritura antiga Ioga Sutras (IS) alguns séculos antes de era cristã. O IS explica tanto as causas do sofrimento humano quanto a promessa de uma boa vida iogue, baseando-se na teoria comportamental dos klesas (apego, aversão, medo da morte, orgulho e ignorância) como nefastos a evolução espiritual. Um caminho óctuplo ou asthanga ioga (AI) edifica-se a partir dele como a proposta ioguica de salvação da alma. O AI visa, por meio de condutas éticas, práticas rituais corporais e a experiência mística do samadhi atenuar os klesas em busca da união com deus/Isvara. Na idade média indiano, entre os séculos X-XV d.C., esse sistema de crenças ioguico encontra a religiosidade tântrica, jainista e budista elevando o valor do corpo em detrimento a outros aspectos doutrinais do IS.
A fase moderna do ioga, no entanto, está sendo erigida por influência de um novo contexto social-religioso. Atualmente, muito mais do que brâmanes e swamis, o ioga busca a sua legitimidade como caminho espiritual sob a égide da racionalidade científica e de novos movimentos religiosos do ocidente. Nesse processo, o ioga ressignifica a sua linguagem mística que circulava entre os ashrams e florestas indianos dos tempos antigo e medieval, para um público que enfrenta os desafios estressantes de se viver nos grandes centros urbanos ocidentais, sobretudo, uma sociedade do consumo, secular e privatizada religiosamente. Sabe-se que nos tempos atuais o ioga ressignifica a sua fisiologia metafísica à luz da ciência biomédica, desconfio que a teoria dos klesas, pode estar passando por uma reforma religiosa também.
Para buscar compreender essas possíveis transformações soteriológicas do ioga atual, saí a campo e conduzi de forma semiestruturada entrevistas com dez iogues e três cientistas brasileiros da área psicobiológica que investigam o sistema de atos ioguicos como terapia e cura. Os dados revelaram uma percepção de clivagem no ioga moderno, entre pertencer a uma terapêutica Nova Era ou mais uma técnica biomédica ocidental. A partir dessa conjuntura novas crenças despontaram para legitimar o discurso do ioga frente ao panorama social-religioso em que ele vive atualmente. Mais do que simples ressignificação simbólica, a soteriologia ioguica moderna está passado hoje por um processo de transformação soteriológica. As principais transformações que se destacaram, estão: 1) na elevação da concepção de estresse ao nível de klesa ou obstáculo espiritual; e 2) o relaxamento, antagônico ao estresse-klesa, conquista natureza mística do samadhi; e 3) por consequência, a salvação/libertação dos klesas-estresse adquiri substância “empírica” de um estado espiritual imutável de não-estresse ou de uma espécie de “homeostase divina”. Conclui-se que a racionalidade científica ao invés de promover o desencantamento religioso do ioga, legitima-o como um novo sistema de crenças e produz novos bens de salvação (estresse-klesa, relaxamento-samadhi e homeostase-kaivalya). A associação dos benefícios para a saúde das práticas do ioga defendidos e propalados pela fisiologia biomédica associado ao desassossego dos centros urbanos ocidentais, pode ter enfraquecido a teoria comportamental dos klesas como causa essencial do sofrimento humano. Palavras-chave: ioga, fisiologia, klesas, salvação espiritual, relaxamento, estresse.
ABSTRACT. The ancient yoga period emerges amid a stratified Indian society and influenced by religions like samkhya and the Brahmanical Hinduism if systematizing it as an orthodox Hindu darśana through ancient scripture Yoga Sutras (IS) some centuries before the Christian era. The IS explains both the causes of human suffering and the promise of a good yogi life, based on the behavioral theory of klesas (attachment, aversion, fear of death, pride and ignorance) as adverse spiritual evolution. An eightfold path or asthanga yoga (AI) is built-from it as the yogic proposal for salvation of the soul. The AI aims, through ethical conduct, practices corporal rituals and mystical experience of samadhi mitigate klesas seeking union with God/Isvara. On average Indian age, between X-XV centuries AD, this system of yogic beliefs is the Tantric religiosity, Jain and Buddhist raising the body's value over the other doctrinal aspects of IS.
The modern phase of yoga, however, is being erected under the influence of a new social - religious context . Currently, more than Brahmins and swamis , yoga seeks its legitimacy as spiritual path under the aegis of scientific rationality and new religious movements in the West . In this process , the yoga reframes its mystical language circulating among ashrams and Indian forests of ancient and medieval times to an audience facing the stressful challenges of living in large Western cities, above all, a society of consumption, secular and privatized religiously. It is known that nowadays the yoga reframes its metaphysical physiology in the light of biomedical science , I suspect that the theory of klesas , may be going through a religious reform as well. In order to understand these possible soteriological transformation of the current yoga, I led 13 semi-structured interviews with ten way yogis and three Brazilian scientists psychobiological area investigating the yogic system acts as therapy and healing. The data revealed a cleavage perception in the modern yoga, between belonging to a therapeutic New Age or more a Western biomedical technique. From this juncture new beliefs emerged to legitimize the discourse yoga against the social-religious situation in which it now lives. More than just symbolic reframing, modern yogic soteriology is passed today by a salvific transformation process. The main changes that stood out are: 1) the elevation of design stress level of klesa or spiritual obstacle; and 2) the relaxation antagonistic to stress-klesa, achievement mystical nature of samadhi; and 3) consequently, salvation/liberation of klesas-stress acquire substance "empirical" an unchanging spiritual state of no stress or a kind of "divine homeostasis." It is concluded that scientific rationality rather than promote religious yoga disenchantment, it legitimizes it as a new system of beliefs and produces new goods of salvation (stress-klesa, relaxation-samadhi and homeostasis-kaivalya) . The association of the health benefits of yoga practices defended and propagated by biomedical physiology associated with the restlessness of the western urban centers , may have weakened the behavioral theory of klesas as essential cause of human suffering. Key words: yoga, physiology, klesas, spiritual salvation, relaxation, stress.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 11 Capitulo 1. O IOGA ATRAVÉS DOS TEMPOS: DO IOGA ANTIGO DESCRITO NO IOGA
SUTRAS AO SURGIMENTO DO IOGA MODERNO .............................................................. 25 1.1. Período pré-clássico do ioga................................................................................ 25 1.2. Período clássico do ioga...................................................................................... 27 1.2.1. Apresentação da proposta de salvação do ioga clássico.................................... 29 1.3. Período pós-clássico, pré-moderno ou medieval do ioga.................................... 31 1.3.1. O inicio da corporificação do ioga e a sua medicalização a partir do ayurveda.321.4. O surgimento do ioga moderno........................................................................... 38 1.4.1. A Renascença Indiana.......................................................................................... 38 1.4.2. Ioga moderno....................................................................................................... 39 Capitulo 2. OS KLESAS NO MUNDO MODERNO............................................................... 44 2.1. Os primeiros iogues da geração moderna: a ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia................................................. 44 2.1.1. A ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia................................................................................................................ 47 2.1.2. A ciência legitima o discurso religioso do ioga................................................... 52 2.2. Teoria dos klesas corporificada: sinônimo de estresse e emoções........................ 56 2.3. Klesa e estresse...................................................................................................... 61 2.3.1. Estresse biológico................................................................................................. 632.3.2. Relaxamento......................................................................................................... 65 2.3.3. Prana é real.......................................................................................................... 68 2.4. Profanação do ioga............................................................................................... 69 Capitulo 3 : IOGA NO BRASIL......................................................................................... 723.1. As origens do ioga brasileiro a partir da história latino-americana...................... 72 3.1.1. Fase místico-esotérico.......................................................................................... 74 3.1.2. Fase visitando à Índia.......................................................................................... 76 3.1.3. Fase do ioga indiano conhecendo os iogues latino-americanos......................... 78 3.1.4. Fase da busca identitária e singular do ioga latino-americano.......................... 80 3.1.5. Fase de tensão entre os iogues “híbridos” e os “tradicionalistas” no Brasil.... 83 3.2. Ioga para Nervosos de Hermógenes versus Ioga para Normais do DeRose: iogaterapeutas híbridos e os iogues tradicionalistas....................................................... 86 Capitulo 4. O IOGA BRASILEIRO: CONVERSANDO COM IOGUES E CIENTISTAS SOBRE O
MAL, O BEM E VIAS DE SALVAÇÃO MODERNAS.............................................................. 90 4.1. Considerações preliminares.................................................................................. 90 4.2. O universo da pesquisa......................................................................................... 92 4.3. Entrevistados........................................................................................................ 94 4.3.1. Ravi....................................................................................................................... 94 4.3.2. Centurion.............................................................................................................. 95 4.3.3. Vishnu................................................................................................................... 96 4.3.4. Ganesh.................................................................................................................. 96 4.3.5. Bento..................................................................................................................... 97 4.3.6. Shanti.................................................................................................................... 98
4.3.7. Hermes.................................................................................................................. 994.3.8. Rudá.................................................................................................................... 1004.3.9. Andurá................................................................................................................ 100 4.3.10. Osiris................................................................................................................ 101 4.3.11. William............................................................................................................. 102 4.4. Questões de aproximação................................................................................. 102 4.4.1. Prática e Estado de ioga ressignificados com vistas a deslegitimar cientistas104 4.4.2. Ciência e Ioga na construção de uma nova espiritualidade terapêutica em andamento........................................................................................................ 108 4.4.3. Fase de transição na comunidade ioguica brasileira em busca da sua identidade religiosa.............................................................................................................. 115 4.4.4. A crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e o relaxamento espiritualizados no convívio social............................................... 119 4.4.5. A busca pela homeostase eterna por meio do relaxamento espiritualizado...... 125 Capitulo 5. A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA
MODERNIDADE: KLESAS, SAMADHI E KAIVALYA SE CORPORIFICAM POR UMA FISIOLOGIA
RELIGIOSA EM ANDAMENTO NO IOGA BRASILEIRO..................................................... 130 5.1. Meu caminho até aqui........................................................................................... 130 5.2. O ioga moderno como produtor de rituais de cura/healing................................... 134 5.3. O ioga como promotor de rituais corporais de cura na restruturação de sua realidade em que se vive.............................................................................................................. 139 5.4. Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya como resposta espiritual do ioga a vida social brasileira em que habitam...................... 144 5.5. O mal-estar, o sofrimento e o sintoma: uma nova perspectiva sobre a soteriologia do ioga................................................................................................................... 148 5.6. Ioga moderno como nova religião em processo.................................................... 152 5.7. Ambivalência dos iogues brasileiros..................................................................... 156 5.8. Alteridade e Alienação presentes nas práticas rituais de cura do ioga moderno... 158 5.9. Kaivalya à brasileira.............................................................................................. 160 CONCLUSÃO.................................................................................................................. 165 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................. 169
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INTRODUÇÃO
Devo confessar que escolho o ioga como objeto pois me sinto mais
confortável em investigar a religiosidade brasileira através dele. Isto porque, em
primeiro lugar, é o universo aonde posso transitar tanto quanto um insider quanto
outsider. Observo colegas estudando campos religiosos que pouco conhecem e
percebo o tempo que investem até compreenderem melhor o seu funcionamento
interno. Bem antes de pensar em ingressar na academia já convivia com pessoas
vivendo em ashrams, alimentando-se de prana, lendo chackras e permanecendo horas
sentadas ou de ponta-cabeça em busca do samadhi. Não esboço qualquer traço de
ironia ou inferioridade ao descrever essas crenças, pois não julgo nada como
excêntrico e enxergo todas as formas de convicção – até mesmo na ciência como
responsável em prolongar a vida com seus cosméticos antirrugas, inteligências
artificiais, programas de treinamento psicofísico e cirurgias plásticas - se igualando a
qualquer outro sistema religioso. E, por último, opto pelo ioga e o seu vínculo com a
fisiologia biomédica, pois pertencem a uma lacuna nos escaninhos da ciência da
religião brasileira que ainda não recebem o devido interesse. Demorei para divisar que
há poucos acadêmicos fora do âmbito biológico preocupados em compreender o
universo social brasileiro do ioga. Dessa forma, o ioga continua me instigando a
compreende-lo melhor e, a partir dele, a religiosidade do brasileiro também pode se
revelar.
O ioga atualmente dialoga com a ciência biomédica e a educação física
elevando o valor da saúde em detrimento a outros aspectos éticos de sua doutrina.
Algumas pesquisas apontam inclusive uma nova tipologia de iogues surgindo, o que
indica inovações sobre o papel do ioga em sociedades modernas: seja de um iogue
mais pragmático ou cientista que compreende a sua prática apenas como técnica
profilática e de condicionamento psicofísico, até o iogue místico convicto que deus e
ele são um. Além da ciência, o ioga desde o início do século passado vem
sincretizando os seus princípios hinduístas com o jainismo e o budismo no período
medieval indiano, e movimentos religiosos denominados Nova Era desde a virada do
século passado, e no Brasil especificamente, de os anos de 1960, com expressões
católicas, espíritas, daimistas e umbandistas.
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Elencar, no entanto, os benefícios psicofisiológicos para terapia e cura das
técnicas de ioga é hoje tarefa simples pela quantidade de trabalhos em biomedicina
sendo realizados, mas poucos são os acadêmicos que se atreveriam a designar nas
ciências sociais o ioga numa classificação definitiva e absoluta. É somente no anos de
1990 que as “humanidades” se aventuram em tais desafios na Europa e nos Estados
Unidos efetivamente (ALTER, 2004, p.85; GUERRIERO, 2014).
Foi a partir das minhas investigações neurobiológicas sobre o ioga
(DANUCALOV & SIMÕES, 2009, p.371) e depois conhecendo outros autores dentro
do programa de ciência da religião, que me deparei também com as repercussões
religiosas que estes estudos fisiológicos da biomedicina infligiam sobre a doutrina
ioguica (SIMÕES, 2011).
Percebo somente agora no final do doutorado, que desde o meu primeiro
trabalho sobre o tema em 2006 e, em seguida, ingressando no programa de pós-
graduação em ciências da religião em 2009, venho investigando de certa forma o o
ioga sob a mesma perspectiva, ainda embrionária no Brasil: a Fisiologia da Religião.
Antes da minha admissão na academia, demonstrei as repercussões neuroquímicas das
práticas contemplativas do ioga e seus benefícios terapêuticos. No mestrado, expus os
arrolamentos da doutrina do ioga contemporâneo com a fisiologia biomédica, mas não
me interessei quanto aos seus benefícios terapêuticos como o fizera outrora, enveredei
pelo aspecto das ciências sociais. A dissertação mostrou que a fisiologia poderia estar
além das óbvias implicações terapêuticas de práticas religiosas e se infiltrar
ressignificando antigas escrituras espirituais com termos biomédicos (Ibid.).
De todo esses estudos sobre o microuniverso ioga, percebo que em complexas
sociedades modernas a secularização, ao invés de diminuir crenças com base no
sobrenatural, autorizou, através da privatização religiosa, novas espiritualidades
ingressassem no campo religioso mundial disputando a hegemonia com as antigas
dominantes (WEBER, 2001; BOURDIEU, 2011, p.79-98). Assim, práticas rituais e
concepções mágicas antes incorporadas exclusivamente no seio de religiões já
institucionalizadas - como o ioga no Hinduísmo, o tai-chi chuan no Taoísmo ou a
cabala no Judaísmo - foram transplantadas do oriente para o ocidente, mas ornadas
como terapêuticas espirituais (HANEGRAAFF, 1999) associadas ao movimento
religioso mais amplo que denominamos Nova Era (CHAMPION, 1989), permitindo-
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os sobreviver ao desencantamento do mundo (HANEGRAAFF, 2003). Assim,
qualquer alteração no contexto sociocultural de uma dada denominação religiosa
suscitará mudanças em sua estrutura de conhecimento do mundo, e com o ioga não
poderia ser diferente.
O ioga, antes um dársana ou “escola filosófica” hinduísta ortodoxa, parece
revelar-se hoje um misto de terapia biomédica e aula de ginástica aonde a ciência,
mais do que qualquer outra religiosidade institucionalizada, mostra-se legitimadora do
seu discurso em sociedades modernas (ver ALTER, 2004). Até o Ministério da Saúde
brasileiro discute a inclusão do ioga em seu Sistema Único de Saúde (SUS)1 e debates
sobre o papel do ioga como prática médica não-convencional são debatidas acadêmica
e politicamente no país (SIEGEL, 2010).
A esta altura, seria lícito supor um ioga sendo praticado destituído de suas
singulares características religiosas, como ocorreu com a acupuntura, haja vista a
difusão indistinta de crenças antigas ioguicas com outras espiritualidades, mas
sobretudo, pela inclusão dos seus ritos corporais em laboratórios científicos e
hospitais, ou seja, em ambientes (aparentemente) laicos e seculares, aonde a teoria dos
klesas, prana, samadhi ou kaivalya não teriam o menor interesse. No entanto, não é
isso que parece ocorrer e alguns pesquisadores já apontam o ioga revelar-se como
uma nova religião em andamento, sobretudo em cidades modernas, com foco em suas
práticas rituais corporais de cura, como veremos.
Para adentramos nesta discussão sem nos perdermos em terminologias em
sânscrito e questões filosóficas sobre a sua espiritualidade, escolhemos apresentar,
mesmo que de forma sucinta e inicial, a soteriologia considerada “tradicional” ou
antiga do ioga, e a confrontarmos com as possíveis alterações acolhidas no seu
contato com a cultura moderna ocidental na configuração do que muitos
investigadores denominam hoje de ioga postural moderno (DeMICHELIS, 2004).
Abaixo descrevo alguns aforismos (sutras) de uma das mais conhecidas e propaladas
escrituras ioguicas, o Ioga Sutras (IS) para que nos auxilie sobre as possíveis
alterações sobre o conceito de klesa como causa iogue do sofrimento humano:
1 http://www.saude.es.gov.br/download/SESA_MANUAL_PIC_VERSAO_FINAL.pdf, acessado em 01/10/2014.
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1.2. Yoga é a supressão dos movimentos da consciência [ou citta vrttis nirodha]. 2.2. Com o propósito de produzir a integração [samadhi] e também com o propósito de tornar tênues as aflições [klesas ou obstáculos espirituais]. 2.3. As aflições [klesas] são: ignorância, sentido de autoafirmação, desejo, aversão e apego à vida. 2.25. Da inexistência desta ignorância [avidya], resulta a conjunção [samadhi]: esta é a revogação do problema, o isolamento (kaivalya), no absoluto, do poder de ver. 2.29. Refreamentos [yamas], observâncias [niyamas], postura [asana], controle do alento [pranayama], bloqueio das interações [prathyahara], concentração [dharana], meditação [dhyana] e integração [samadhi]: estes são os oito componentes do Yoga [ou asthanga ioga, o caminho espiritual óctuplo] (GULMINI, 2002, p.115-262).
Mesmo compreendendo não ser aqui o local acadêmico para realizarmos uma
exegese das escrituras ioguicas, julgo ser pertinente esclarecer melhor os seus
significados. Por isso, se faz necessário que se comente as suas passagens para uma
maior compreensão posterior, aonde analisarei as possíveis reformas soteriológicas
sofridas destes aforismos do ioga com o mundo moderno. Saliento, contudo, que
tenho consciência de que muitos comentaristas modernos do Ioga Sutras (IS),
especialmente brâmanes e acadêmicos europeus do início do século XX, intentaram
adequá-lo ao pensamento racional do ocidente, destituindo-o, em parte, de sua
linguagem mística e mágica para uma racionalidade mais condizente com o
pensamento acadêmico (SARBACKER, 2008, p.165; SINGLETON, 2008, p.77-99).
O ioga de Patanjali descrito no IS, possui um ponto de vista dual da realidade.
O corpo (prakrti) e a alma (purusa), portanto, são irreconciliáveis. É a “consciência”
(citta)2, por meio dos “órgãos sensitivos” (indriyas), que estabelece o rompimento dos
homens e mulheres com a perenidade harmônica de citta-purusa. O iogue crê que a
alma exista em um estado de “não-movimento” ou “harmonia perene”, denominado
em suas escrituras como kaivalya, aonde a alma e a consciência experienciam uma
Bem-aventurança divina constante (ARANYA, 1983, p.22; BERRY, 1992, p.82-87).
2 Citta é formada pelo “intelecto” ou lit. perceber (buddhi), o “ego” ou lit. princípio individual (ahamkara) e a “mente” ou lit. ato de pensar (manas).
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Por outro lado, a inevitável ligação que se estabelece entre a consciência e o
mundo por intermédio do corpo, Patanjali deixa evidente ser a responsável em gerar
um estado espiritual nefasto ao indivíduo, denominado de citta-vrttis ou “movimentos
da mente/consciência”, “turbilhão da mente/consciência” ou “confusão
mental/consciêncial”. Por isso que no sutra 1.2, Patanjali define o próprio ioga como
“a supressão dos movimentos da mente/consciência” (citta-vrtti-nirodha), e no sutra
2.2 anuncia a experiência mística transitória advinda de suas práticas corporais,
denominado de samadhi, como o retorno da consciência (citta) à sua natureza perene
e imutável, símbolo de uma espécie de “estabilidade divina da alma”3 presente em
purusa (BERRY, 1992, p.101-107, p.111; SARBACKER, 2008, p.163).
O IS esclarece que a dificuldade de se restabelecer ao estado harmônico divino
primordial reside nas condutas impuras que se comete deliberadas pelos
comportamentos associados aos klesas (lit. aflição) (SARBACKER, 2008, p.165). No
sutra 2.25 nos é apresentado o “klesa-mãe” ou responsável vital por todo o sofrimento
humano: a ignorância ou a ausência de conhecimento dos indivíduos em não se
reconhecerem já livres de toda e qualquer dor ou angústia existencial (ARANYA,
1983, p.122). Os outros klesas ou causas das aflições ou mal-estar são revelados no
sutra 2.3 como “filhos da ignorância” pelos comportamentos de apego, aversão, medo
da morte e a falsa identidade/orgulho. Os iogues, ao contrário dos cristãos por
exemplo, acreditam que nascem puros e em harmonia; mas no contato com o mundo e
desatentos ou alienados de sua natureza estável de Bem-Aventurança, criam um ciclo
nocivo de sofrimento e “confusão mental” (citta-vrttis) na identificação do corpo e da
consciência com o mundo.
O caminho espiritual óctuplo proposto pelo IS ou asthanga ioga, é ordenado
por oito passos de igual importância, sendo os dois primeiros uma espécie de “dez
mandamentos” que um devoto ao ioga deve seguir na vida diária (yamas e niyamas);
os próximos três descrevem a sua prática ritual corporal (asana, pranayama e o
estado ioguico de prathyahara ou “abstenção dos estímulos externos”); a meditação
propriamente dita é apresentada nos dois seguintes passos (dharana e dhyana); e,
finalmente, a experiência mística de integração novamente da consciência com a alma
3 Ver sutra 4.18: “Os movimentos da consciência [citta] são sempre conhecidos por seu soberano [purusa], em virtude da imutabilidade do ser incondicionado” (GULMINI, 2002, p.381).
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incondicionada (ou deus/Isvara) ou samadhi no oitavo momento, como citado no
sutra 2.29: o retorno ao estado harmônico eterno ou encontro com a alma imaculada e
em constante Bem-aventurança (BERRY, 1992, p.92-107; SARBACKER, 2008,
p.162-164).
Ao findar a defesa da minha dissertação me perguntei se não haveria a ciência
influenciado mais o ioga do que apenas a ressignificação simbólica dos seus preceitos
metafísicos com termos da fisiologia biomédica. Digo isso, pois conversando com
iogues e praticantes posteriormente, mas sobretudo, cursando formações ioguicas e
vivenciando rituais das mais diversas no Brasil entre os anos que escrevia minha
dissertação e esta tese, percebi o quanto do discurso ioguico havia mudado com
relação as escrituras antigas do ioga (IS) que delineei sucintamente acima. Não eram
apenas os chackras que haviam se transformado em glândulas endócrinas ou nadis em
sistema nervoso autônomo. A grande causa do sofrimento iogue não parecia mais
surgir dos comportamentos associado aos klesas, mas do estresse aferido
empiricamente pelos instrumentos da ciência advindo do ritmo de vida das sociedades
de consumo. Os professores e alunos de ioga atuais citam mais termos fisiológicos do
que os sutras de Patanjali em suas aulas; e os klesas, o grande obstáculo espiritual
ioguico de outrora, parecia não mais pertencer ao discurso ioguico moderno. O que
ficou evidente a mim foi um ioga adaptando-se a cadência e as exigências do mundo
moderno brasileiro, mas ainda não compreendia o que isso significava exatamente sob
o ponto de vista da ciência da religião.
Revelamos pela exposição acima do IS, quatro conceitos fundamentais à
proposta antiga de salvação/libertação do ioga: os klesas, os vrttis, kaivalya e o
samadhi. Ao contrário do que se apregoava antigamente, os iogues e praticantes hoje
parecem manifestar maior interesse na aquisição de saúde e bem-estar, do que
reverenciar algum tipo específico de ética religiosa, conduta espiritual de culto a deus
ou à qualquer outra religião institucionalizada (ALTER, 2004).
Estudos mostram que as diferenças que caracterizam a passagem do ioga
antigo para o moderno residem na sua medicalização e, por conseguinte, na
popularização dos seus ritos corporais em técnicas terapêuticas de combate ao estresse
(DeMICHELIS, 2008, p.23-27). Essa transformação, ainda em processo, parece
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acontecer em algumas escolas ioguicas sem incorrer na perda total de sua
espiritualidade.
Numa pesquisa realizada em Londres em 2002 com 750 praticantes de ioga,
descobriu-se que 80-83% destes iogues compreendem as suas práticas tanto como
auxiliares no combate ao estresse, quanto na experiência igualmente válida de uma
vida espiritual plena. Suzane Newcombe concluiu até mesmo ser possível classificar
o ioga hoje como uma religião mística, segundo o conceito desenvolvido por Colin
Campbell a partir de Ernst Troeltsch (NEWCOMBE, 2005). A relação que possa
existir entre estresse e religião a pesquisadora não incluiu em suas perguntas, mas as
suas descobertas ganham mais sentido quando expomos um dos pensamentos de
B.K.S.Iyengar, o líder espiritual da escola de ioga investigada por Newcombe e um
dos iogues mais populares e respeitados do mundo. Segundo ele: “a pessoa
indisciplinada é alguém sem religião; a pessoa disciplinada é religiosa; a saúde é
religião; a doença é falta de religião” (IYENGAR, 2001, p.38). O seu discurso
associado a nossa argumentação até aqui nos direcionam a concluir haver uma estreita
relação se estabelecendo entre a biomedicina e o ioga moderno, que ao invés de
desencantá-lo, pode estar legitimando-o como uma nova religião.
Nas ciências da religião, pesquisas revelam a ocorrência do entrelaçamento
entre doença-sagrado, medicina-religião e cura-salvação em diversas religiões
(FULLER, 2008, p.131-152; LAPLANTINE, 2011, p.213-252). A cientista Sarah
Strauss corrobora essas aproximações nos esclarecendo que o diálogo saúde-doença
para o ioga moderno não corresponderia a um simples mecanismo resultante da
fisiologia compreendida pela biomedicina, mas da experiência subjetiva de um sentir-
se mal, quase como uma angústia ou uma dor incorporada (STRAUSS, 2008). Dessa
forma, é legítimo explorar a provável dialética estabelecida modernamente entre as
noções de klesa como gerador da experiência do mal-estar e do conceito de estresse
para o ioga que vem se instituindo no contexto sociocultural ocidental.
Segundo R.T. Rao, mas corroborado por outros pesquisadores, numa
interpretação moderna do IS, os klesas poderiam hoje corresponder ao agente
estressor ou estresse propriamente dito, fruto dos nocivos comportamentos dos klesas
(tradicionalmente considerado os comportamentos de apego, aversão, medo da morte,
e orgulho, como vimos). O asthanga ioga (AI) - os oito princípios espirituais do ioga
18
antigo que versamos anteriormente4 - por sua vez, poderiam estar sendo entendidos
como as técnicas para dominar o “estresse-klesa” (BHAVANANI, 2007; RAO, 2012).
Essas observações são deveras interessantes, mas ao considerar o estresse
como sinônimo de klesa nos faz concluir equivocadamente que toda a manifestação
fisiológica do estresse seria nefasta para a vida humana. Todavia o estresse, na
perspectiva estrita da fisiologia biológica, nunca foi compreendido assim. O estresse
como sinônimo de doença é uma noção popularizada sem o devido respaldo da
ciência e, talvez, incorporada de alguma forma ao complexo sistema de crenças do
ioga moderno.
Os klesas, como demonstramos acima, até o surgir da modernidade sempre
foram sinônimo das cinco aflições espirituais responsáveis por perpetuar o estado de
servidão ou sofrimento humano (SCHONFELD, 2010). Assim, é provável que os
comportamentos dos klesas (ignorância, apego, aversão, medo e orgulho) possam
estar adquirindo outras conotações associadas a resposta biológica do estresse.
Digo isso, pois o estresse biológico é um estado absolutamente normal e
neutro (nem bom ou ruim), muitas vezes benéfico para a manutenção da vida e
somente em situações extenuantes e persistentes, desvantajoso a saúde. Já o estresse
ioguico, revelado por R.T. Rao e Bhavanani, como sinônimo de klesa, fica evidente se
tratar de uma nova concepção criada no seio da espiritualidade ioguica moderna. Há,
assim, um hiato entre o que iogues e biólogos compreendem sobre a noção de
estresse. Todavia, os iogues tendem a associar as manifestações psicofisiológicas de
estresse com as suas antigas crenças em corpos metafísicos e energias sutis ou
transfisiológicas (BHAVANANI, 2007, p.30-40).
Medicalizar o ioga, portanto, atribuindo a ele associações entre estresse e
klesa, pode ter sido uma porta que se abriu para os iogues modernos difundirem as
suas crenças entre a sociedade ocidental. No Brasil por exemplo, temos o Prof.
Hermógenes, iogue brasileiro mais conhecido e carismático do país, que conseguiu
aliar a medicalização das práticas ioguicas com o cristianismo e o espiritismo
fortalecendo, como ele mesmo diz, a saúde física e mental em busca da “auto-
perfeição pelo hatha-ioga” como terapia espiritual para “nervosos” (HERMÓGENES,
4 Yamas, Niyamas, Asanas, Pranayamas, Prathyahara, Dharana, Dhyana e Samadhi.
19
2010; 2011).
Não há dúvidas que o ioga moderno enveredou, como já expomos, para sua
medicalização e as suas práticas como técnicas profiláticas em muitos setores da
saúde. Por outro lado, pesquisas apontam igualmente que nunca existiu um “ioga
puro”, e a tradição de ioga do período medieval - o hatha-ioga – seria a responsável (e
não o estilo de vida moderno) pela maior valoração dada ao corpo em detrimento às
suas escrituras antigas (LIBERMAN, 2008, p.113). Esse fato poderia refletir não uma
corrupção dos preceitos espirituais ioguicos “tradicionais”, como afirmam alguns
estudiosos contemporâneos ao ioga (SINGLETON, 2005), mas uma reforma
soteriológica legítima dos seus antigos bens de salvação frente ao transplante do ioga
aos grandes centros urbanos do ocidente. No Brasil, provavelmente mais do que em
qualquer outro país, a associação klesa-estresse-salvação/libertação pode revelar-se
mais nítido e compreensível. Digo isso, pois entre os brasileiros, aliar o ioga como
benéfico para a saúde é bastante popular como revelamos acima com o Prof.
Hermógenes. Além disso, a América Latina em geral, por ter edificado o ioga sem a
influência tão vigorosa de gurus de renome internacional como Iyengar, Jois,
Sivananda e outros, possivelmente pela barreira idiomática, pode ter desenvolvido
características próprias e, talvez, únicas.
Mesmo que escassos, estudos brasileiros corroboram essa possível
singularidade do ioga no Brasil. Pesquisas revelam que o ioga vem perdendo o seu
atributo de errância que predominam em espiritualidades Nova Era (NUNES, 2008),
exprimindo que os iogues brasileiros tem se tornado mais fiéis ao seu guru ou
professor de “formação”. Ao mesmo tempo, o ioga já desperta discussões sobre o seu
papel social, seja de terapêutica ou ginástica laicas (FERNANDES & DA ROCHA,
2005), chegando até mesmo a defender-se politicamente por sua independência do
Conselho Federal Brasileiro de Educação Física, o que favoreceu alguns afirmarem o
seu caráter vivo de sincretismo com a religiosidade brasileira, fomentando algum tipo
novo de espiritualidade (GNERRE, 2010).
Não parece de todo inválido pensar o ioga desenvolvido no Brasil um terreno
fértil para se investigar as possíveis transformações ocorridas na teoria
comportamental dos klesas e a sua dialética com o estresse biológico e provável
produção de novos bens de salvação. Por mais que denominações espirituais possam
20
ter milênios de conhecimento, a sua trajetória é fluida e suas imbricações sociais e
religiosas estarão sempre determinando novos caminhos. Cabe-nos aqui saber realizar
as perguntas corretas.
Dessa forma, pensamos em problematizar a nossa pesquisa concentrando-se
em compreender o papel dos klesas (comportamentos de apego, aversão, medo da
morte, orgulho e ignorância) no panorama social brasileiro. Talvez o impacto
soteriológico no transplante do ioga – de uma sociedade estratificada indiana antiga –
para uma sociedade capitalista de consumo, secular e privatizada religiosamente,
como oficialmente o Brasil se apresenta, pode ter reformado a teoria dos klesas para
uma relação direta com a experienciar psicofisíca do estresse. Dessa forma,
descobertas fisiológicas sobre o relaxamento psicofísico, como “produto” das práticas
ioguicas, sobretudo reveladas e propaladas em meios acadêmicos e revistas populares,
podem estar refletindo na diminuição do valor comportamenal dos klesas no ioga
praticado e professado entre os brasileiros. Essa hipótese, associada ao caráter
mutante da religiosidade brasileira poderia estar contribuindo na construção de um
ioga brasileiro mais sincrético religiosamente. Infelizmente as pesquisas sobre o ioga
brasileiro, fora do âmbito biomédico são bastante escassas, por isso, nossos dados
para serem conclusivos precisariam de um número mais substancial de acadêmicos
interessados sobre o tema. Por isso escolhemos dez iogues e três cientistas que,
mesmo reduzido, podem representar uma parcela do microuniverso ioguico brasileiro
ainda em formação.
O processo de secularização e privatização religiosa pode estar refletindo na
relação do ioga com as ciências da saúde que, ao invés de extinguir a religiosidade
ioguica, torna-se responsável por suscitar novos problemas e soluções religiosas que
não seriam possíveis em outros termos. O ioga, antes subordinado a religião hinduísta
e recentemente às terapêuticas espirituais de novos movimentos religiosos Nova Era,
vem adaptando-se ao racionalismo da ciência e a agitação dos grandes centros
urbanos consumistas, utilizando as descobertas empíricas de promoção de
relaxamento físico e atenção mental das pesquisas em fisiologia biomédica sobre as
suas práticas rituais, para reformar a sua antiga teoria dos klesas como causa do
sofrimento humanos e produzir novos bens de salvação.
21
No Brasil, por sua característica cultural de sincretismo religioso mas,
sobretudo, pela vinda tardia de iogues indianos, o ioga encontra aqui condições
singulares de desenvolvimento aonde o poder terapêutico religioso de suas práticas
revelou-se de forma mais evidente. Não é coincidência, por exemplo, que as obras de
iogaterapia do Prof.Hermógenes tenham alcançado popularidade, mas as suas
implicações podem ser mais profundas do que a simples mudança de klesas para a sua
ressignificação ao estresse. Talvez, a análise do papel dos klesas no ioga brasileiro
possa refletir também a causa do sofrimento que afeta uma parcela de brasileiros que
transitam o microuniverso ioguico do país.
Quiçá, a relação cura-salvação, o processo de secularização e privatização
religiosa, aliado a racionalização científica, podem ser os responsáveis pela
diminuição no Brasil do valor ético da teoria comportamental dos klesas. A elevação
das sensações e percepções psicocorporais ioguicos de relaxamento, propalados pela
ciência biomédica, por outro lado, podem estar contribuindo como pano-de-fundo às
reformas soteriológicas ioguicas frente aos grandes centros urbanos brasileiros.
Assim, a ressignificação das escrituras modernas do ioga à luz da fisiologia
biomédica podem evidenciar uma adaptação racionalizante em sua proposta
soteriológica. Um exemplo disso são as descobertas terapêuticas da fisiologia
biomédica sobre o efeito benéfico a saúde das práticas ioguicas no combate ao
estresse biológico crônico. Estas comprovações científicas refletem positivamente e
podem se tornar uma das responsáveis principais por converter o estresse em klesa ou
obstáculo espiritual. Por conseguinte, o estresse ioguico pode vir a adquirir o caráter
de gerador de vrttis ou “agitação da mente” (citta-vrttis). Se isso se confirmar, o
estresse ioguico poderá elevar a resposta orgânica antagônica ao estresse biológico, o
relaxamento, ao nível de espiritual, diminuindo sensivelmente o peso comportamental
e ético dos klesas de outrora por outro mais “baseado na experiência pessoal”. Essa
hipótese conduz o kaivalya por sua vez, a um caráter mais “fisiológico” também,
metaforizando-se numa busca pessoal suprassensível por uma espécie de
“homeostase divina”.
O meu objeto é o ioga e o deslocamento religioso dos klesas em sociedades
urbanas do Brasil. Os comportamentos associados aos klesas sempre foram
considerados a base ética da vida de um iogue, o seu foco para se diminuir os vrttis e,
22
por resultado, a sua salvação/libertação em vida das aflições humanas na comunhão
com Deus/Isvara (kaivalya). No entanto, percebo modernamente um desvio da
atenção dos klesas para uma atenuação do estresse que toma características do mal a
ser exorcizado em vista as suas repercussões corporais “empíricas”. Focar-me-ei na
dialética estabelecida entre o ioga com a ciência biomédica como contributiva capital
na possível reforma da sua proposta de salvação/libertação religiosa moderna na
busca de uma natureza de “homeostase divina” ou kaivalya.
Para esse intento, vou buscar dados por meio de entrevistas semiestruturadas
com iogues e cientistas psicobiólogos que investigam as práticas ioguicas como
terapia-cura. O meu modo de escolha dos iogues foi selecionar àqueles responsáveis
diretamente em difundir a cultura do ioga no país por meio de cursos de formação
periódicos, retiros espirituais a Índia e workshops, palestras e aulas em universidades
brasileiras sobre a cultura iogue da vida que vale a pena ser vivida. Com relação aos
cientistas, escolhi três que respeitam aos seguintes critérios: pesquisarem o ioga como
terapia, ministrarem palestras e workshops sobre o ioga e as suas práticas e
repercussões biológicas, possuírem artigos sobre o tema publicados
internacionalmente envolvendo a relação ioga e saúde, além de participarem como
palestrantes nos cursos de formação ioguica.
O objetivo central estará em compreender a transformação dos klesas no ioga
moderno em dialética com a ciência biomédica e a religiosidade brasileira. Mas para
isso, precisaremos apresentar primeiro, a proposta de salvação antiga do ioga no
intuito de contextualizar a sua origem antiga. No segundo momento, descreveremos o
transplante do ioga indiano para o ocidente e a tensão que emerge no seu acesso à
modernidade. Dessa tensão ioga-ciência, emerge o ioga moderno e seu enlace com a
biomedicina ocidental. Mas na América Latina esse transplante pode ter desenvolvido
as suas singularidades, como adianrtamos, devido as décadas de insulamento que o
ioga passou. No Brasil em específico, a sua particularidade foi o sincretismo com
religiões nativas e cristãs, mas principalmente, da utilização do discurso laico da
ciência sobre os seus ritos corporais para espiritualizar o relaxamento e adaptar a sua
proposta soteriológica à luz do contexto social moderno.
Entre os meus marcos teóricos, estão os trabalhos de Joseph Alter e Elizabeth
DeMichelis, que nos permitirão esclarecer os objetivos do ioga medieval se encontrar
23
e beneficiar-se no seu enlace com a educação física e a biomedicina ocidentais
possibilitando se tornar uma terapêutica espiritual de cura. Com a ajuda teórica de
DeMichelis o ioga, transplantado do oriente no fim do século passado para as
sociedades ocidentais, me permitirá percebe-lo como moderno sem diminui-lo em sua
religiosidade. A pesquisadora Andrea Jain ajuda-me a compor a disseminação do ioga
moderno entre as camadas urbanas ocidentais, de uma perspectiva de contracultura,
do início dos anos de 1960, para a cultura de consumo, a partir dos anos de 1980. Os
trabalhos realizados e organizados por Mark Singleton e colegas (Liberman e
Sarbacker) servirão de base para evidenciar as transformações soteriológicas
ocorrendo com o ioga moderno.
Em nosso primeiro capítulo descreveremos a proposta soteriológica do ioga
clássico, aonde os klesas são apresentados como as causas das aflições espirituais do
ioga. No mesmo capítulo ainda, mostramos como o ioga indiano em contato com o
ocidente, sobretudo a partir da colonização inglesa, ressignifica as suas escrituras e
práticas a partir da fisiologia biomédica. No capítulo dois, discutimos como os klesas
vão sendo metaforizados como estresse e emoções consideradas nefastas ao ioga
moderno. A causa das aflições ioguicas agora, adquirem características bem mais
corporais e medicamentosa, estabelece uma dialética saúde-salvação. A partir do
terceiro capítulo, afunilamos o espectro da nossa investigação nos limitando ao
contexto brasileiro a partir da história do ioga nas terras latino-americanas. Nesse
momento da história moderna do ioga, os países da América Latina recebem o ioga
via discípulos da teosofia e outras ordens esotéricas ocidentais.
Nesse período pouco investigado da história moderna do ioga, percebemos ele
mesclado com diversas influências espirituais, mas sem a legitimidade de algum
iogue verdadeiramente indiano, dando margem a todo tipo de sincretismo, como
ocorre nos Estados Unidos e Europa. No Brasil, o ioga cresce pelas mãos de dois
agentes carismáticos – Hermógenes e DeRose – que popularizam o ioga no país e
influenciam gerações de professores e praticantes de ioga. No capítulo quarto, saio a
campo e entrevisto dez líderes de ioga brasileiros e mais três cientistas que me
fornecem subsídios para minha argumentação hipotética sobre as transformações dos
klesas ou causas do mal ioguico. Suponho que entre os iogues brasileiros à
permanência das crenças em energias transfisiológicas e ordem cósmica, mas também
24
a gênese de outras, como da distinção entre estado e prática de ioga. No último
capítulo investigo a hipótese que a mudança ocorrendo com os klesas, podem refletir
a formação de novos bens de salvação/libertação do ioga brasileiro. Hipotetizo que a
transformação soteriológica em processo no país seja fruto do surgir do ioga como um
novo movimento religioso, já desvinculado do hinduísmo e da Nova Era, e permitindo
entrevê-lo como um produtor de sentido para um específico microuniverso de
indivíduos que buscam nas escrituras e práticas de ioga uma nova forma de vida.
25
Capitulo 1
O IOGA ATRAVÉS DOS TEMPOS: DO IOGA SUTRAS AO SURGIMENTO DO IOGA MODERNO
Os aforismos de Patanjali (aproximadamente século II a.C.) marcaram o
alvorecer do período considerado clássico do ioga, que se estende até à idade
medieval indiana, quando os iogues entram na sua terceira era histórica, intitulada,
segundo historiadores da religião, como pós-clássica, medieval ou pré-moderna. É
nesta fase histórica que surgem dois dos seus textos basilares, o Hatha-Ioga Pradipika
(HIP) e o Gheranda Samhita (GS). Será a partir dessas escrituras dos séculos X-XV
que o ioga mostra a sua vertente mais corporal - com uma descrição mais minuciosa
de posturas, respiratórios e limpezas – e terapêutica – quando correlaciona as suas
práticas físicas com a medicina tradicional indiana. Portanto, é no período medieval
indiano, que a medicalização e corporificação do ioga tem início. No entanto, mesmo
com todas as suas transformações medievais, o ioga mantem-se sob a égide do
hinduísmo. O que vai realmente marcar o advento do ioga moderno é o seu
desvinculamento gradativo com o hinduísmo quando da sua transplantação para o
contexto ocidental urbano.
A partir do séc.XX, o discurso do swami Vivekananda, no primeiro
parlamento mundial das religiões (1893), marca o advento da fase moderna do ioga
(STRAUSS, 2008, p.58-62). A passagem por esses períodos da história do ioga se
mostra relevante para compreendermos as imbricações deste com outros sistemas de
crenças e as transformações que se impingem na compreensão iogue de realidade
religiosa e não sucumbir a laicidade pelo mundo moderno.
1.1 - Período pré-clássico do ioga
O início do ioga remonta a uma Índia pré-ariana, da tradição nativa dos
drávidas (ELIADE, 1998, p.296). Este povo parece ter florescido como uma grande
civilização às margens do Vale do rio Indo, semelhante em grandeza com outras
civilizações do seu tempo, como os egípcios no Nilo e os sumérios, entre o Tigre e o
Eufrates. O território dravidiano teria sido invadido por uma sociedade, conhecida
como ariana, por volta de 1500-1200 a.C. (GULMINI, 2002, p.24). Acredita-se que
26
um tipo de ioga já era praticado pelos drávidas e a sua religiosidade sofrerá influência
do que depois veio a ser conhecido como Hinduísmo pelo brâmanes, a alta casta
sacerdotal ariana.
Supostamente este proto-ioga dravidiano já era uma prática religiosa voltada
para a concentração mental, o controle da respiração, a adoração ritualística, cujos
objetivos principais eram a invocação, a visualização e a união mística com suas
inúmeras divindades (FEUERSTEIN, 1998, p.133-168). Como a religião dos arianos
não aceitava esse ioga arcaico no início, ele foi sumariamente considerado um sistema
religioso heterodoxo pelos seus sacerdotes (ZIMMER, 2000, p.67).
No entanto, aos poucos, talvez por força popular, os brâmanes vão absorvendo
paulatinamente esse ioga nativo como parte das suas próprias crenças. Com o passar
do tempo, uma quantidade admirável de hibridismos foi sendo realizada com esse
proto-ioga dando origem às diversas organizações e tradições ioguicas, algumas
perduram até hoje.
Segundo Georg Feuerstein (1998), podem-se identificar citações desse ioga
autóctone dos drávidas já nos versos do Rig-Veda, os antigos hinos bramânicos
(p.152; 155; 158)5. Em outro livro dos Vedas, o Atharva - que inclui uma extensa
coletânea de encantamentos de amor, maldições e preces aos deuses em busca de
prosperidade - também se podem ler hinos relacionados ao ioga do período pré-
clássico (Ibid., hino 10.7).
Outras referências históricas ao ioga, consideradas pré-clássicas, estão nas
Upanisads, textos pós-védicos que prometiam, igualmente ao ioga mais tarde, uma
“união mística com o Ente Supremo”, muito parecidos com as escrituras ioguicas de
Patanjali, autor de uma geração ioguica posterior (FEUERSTEIN, 1998, p.169), que
veremos adiante.
O que busco salientar aqui é a origem antiga do ioga como caminho religioso
para a transcendência com Deus por meio de práticas rituais corporais e o seu
hibridismo com o Hinduísmo, o conhecimento dominante do seu contexto sócio-
cultural. Além disso, fica nítido os sincretismos sofridos pelo que conhecemos como
ioga ao longo da sua história. O ioga e os iogues parecem assemelhar-se, neste
5 Ver também alguns hinos escolhidos pelo autor nas p.152-160.
27
período, muito mais a categoria de magos protegendo-se e lançando feitiços contra
seus inimigos através de suas práticas corporais que trabalhavam com as energias
sutis, do que a de um clero instituído.
1.2 - Período clássico do ioga
O período clássico ioguico marca, no entanto, o aparecimento do documento
que trata especificamente daquilo que se entende como ioga, o Ioga Sutra (IS), uma
coletânea de 196 aforismos que o define e amplia a sua proposta soteriológica e, com
isso, apresenta a causa do sofrimento humano e seus bens de salvação. Ainda hoje, as
escrituras que versam sobre o ioga reverenciam este antigo tratado, fortemente
associado à doutrina religiosa Samkhya, com a diferença de incluir o conceito de
Deus/Isvara, muito provavelmente para ser aceito a ortodoxia hinduísta (GULMINI,
2002, p.173-185).
O IS foi compilado por Patanjali, filósofo brâmane, gramático, médico e figura
semidivina indiana que, provavelmente, viveu séculos antes de Cristo. Patanjali não
inventou o ioga, mas o codificou e o sistematizou como caminho espiritual óctuplo
conhecido como o asthanga-ioga (AI), o ioga real, o ioga clássico ou o raja-ioga.
Segundo o IS, a realização do Si-mesmo é denominada de kaivalya, termo que
significa literalmente solidão e equivale ao termo salvação espiritual. Sendo assim, o
Si-mesmo transcendente (purusa) é solitário (lit.kevala), separado da natureza,
portanto, do corpo (prakrti ou matriz fenomênica, ver GULMINI, 2002, p.438).
Enquanto isto não ocorrer (purusa ou alma perceber-se desvinculado das aflições de
prakrti ou corpo) fica-se condenado a um ciclo de renascimentos (samsara) infinito
em vidas ilusórias ou de dor/sofrimento (maya ou avidya-purusa). O sofrimento
espiritual (lit.dukha), por sua vez, é originado pelo contato do corpo com o mundo.
Em outras palavras, dos estímulos sensoriais (bhutas) com os órgãos psicofísicos de
interação de cada indivíduo (indriyas: jnanendriyas e karmendriyas) 6 , os quais
6 Audição (ouvido) � palavra (voz); tato (pele) � preensão (mãos); visão (olhos) � locomoção (pés); gustação (língua) � excreção (ânus); olfato (nariz) � gozo (sexo) e também a “mente” (manas) que na filosofia do IS é considerado um indriya, pois decodifica as percepções captadas pelos sentidos externos e as retransmite ao “Ser interno” que, além de gerar respostas a estes estímulos, coordena os karmendriyas. O intelecto (buddhi) apenas reconhece ou conceitua, mas não age sobre eles (GULMINI, 2002, p.127-128).
28
informam, a todo o momento, à consciência (citta) do mundo externo. A consciência
(citta) de um leigo, no contato com o mundo fenomênico, não consegue diferenciar do
que se origina de purusa (alma imaculada) ou de prakrti (corpo material). Nessa
confusão consciencial (citta-vrttis), os klesas (sentimentos de apego, aversão, medo
da morte e orgulho) manifestam-se no Ser e a dor e o sofrimento surgem enquanto a
plenitude original desaparece. O indivíduo agora está fadado a viver na ignorância
(avidya) ou alienado da sua real natureza divina e em harmonia energética
(GULMINI, 2002, p.125-133).
É importante esclarecermos que o caminho espiritual do ioga não está na
conquista que ainda não temos, mas naquilo que é universal, eterno e divino em nós.
Em outras palavras, ao contrário dos cristãos que já nascem portadores do pecado, o
no ioga, os indivíduos nascem puros mas são contaminados pelo mundo (através do
corpo). Suas práticas clássicas – sobretudo a meditação - são descritas como vias de
salvação/libertação pela purificação do corpo (prakrti) e da mente/consciência ou
espírito (citta). Há, portanto, um estado de harmonia perene que já somos, mas que os
klesas desestabilizam e nos entorpecem.
No entender do ioga, conclui-se, a suprema realização pressupõe a não
identificação do(s) corpo(s) com o purusa ou alma. O prakrti ou corpo fenomênico,
por sua vez, é composto por uma tríplice chamada de rajas (agitação), tamas (inércia)
e sattva (equilíbrio entre a agitação e a inércia que traz inteligência), intitulados nas
escrituras por gunas (Ibid., p.255-256). No momento em que o sistema purusa-prakrti
entra em contato com o mundo material, o indivíduo ordinário que não conhece as
práticas e doutrina ioguicas, rompe o equilíbrio dinâmico de sattva em seu corpo-
mente. Com o equilíbrio de sattva rompido – que é universal e inato - inicia-se todas
as ilusões (maya) criadas sobre si mesmo e o mundo à sua volta, acarretando
infelicidade, angústia e dor existencial (dukha). Em suma, a causa primária de toda
sorte de angústia humana advém dos klesas por romperem o equilíbrio dinâmico,
universal e divino de sattva. Todas as práticas ioguicas – de Patanjali, passando por
Matsyendra e Iyengar – funcionam como técnicas espirituais com o objetivo de
kaivalya, portanto, de retorno do conjunto purusa-prakrti ao equilíbrio eterno e divino
de sattva, aonde purusa não mais se contamine – ou se aliene - pelas ilusões do
mundo material e os livrando do ciclo de samsara ou roda de renascimentos.
29
O que se buscou acima revelar é o valor do corpo para o sistema de crenças
iogue. O corpo é, ao mesmo tempo, o responsável por manter e livrar os seres
humanos da sua angústia espiritual. O mundo fenomênico impinge ao Ser, por
intermédio dos corpos, a sua força e ludibria o indivíduo no seu jogo sensível (lila). É
só por meio das práticas ioguicas que o seu adepto poderá vir a vislumbrar novamente
a essência imaculada de sua alma (purusa) e estabelecer-se em equilíbrio ou sattva
(Ibid., p.120; 125), na experiência última de kaivalya.
1.2.1 - Apresentação da proposta de salvação/libertação do ioga clássico
Para adentramos nesta discussão sem nos perdermos em terminologias em
sânscrito e questões filosóficas, escolhemos apresentar, mesmo que de forma sucinta e
inicial, a proposta de aniquilamento do sofrimento humano considerada “tradicional”
ou antiga do ioga, e a confrontarmos com as possíveis alterações acolhidas no seu
contato com a cultura moderna ocidental na configuração do que muitos
investigadores denominam hoje de ioga moderno (DeMICHELIS, 2004). Abaixo,
descrevo alguns aforismos (sutras) de uma das mais conhecidas e propaladas
escrituras ioguicas, o Ioga Sutras (IS), que adiantamos na introdução para que nos
auxilie sobre as possíveis alterações sobre o conceito de klesa como causa iogue do
sofrimento humano:
1.2. Yoga é a supressão dos movimentos da consciência [ou citta vrttis nirodha] (GULMINI, 2002, p.115). 2.2. Com o propósito de produzir a integração [samadhi] e também com o propósito de tornar tênues as aflições [klesas ou obstáculos espirituais] (Ibid.). 2.3. As aflições [klesas] são: ignorância, sentido de autoafirmação, desejo, aversão e apego à vida (Ibid., p.212). 2.25. Da inexistência desta ignorância [avidya], resulta a conjunção [samadhi]: esta é a revogação do problema, o isolamento (kaivalya), no absoluto, do poder de ver (Ibid., p.255). 2.29. Refreamentos [yamas], observâncias [niyamas], postura [asana], controle do alento [pranayama], bloqueio das interações [prathyahara], concentração [dharana], meditação [dhyana] e integração [samadhi]: estes são os oito componentes do Yoga [ou asthanga ioga, o caminho espiritual óctuplo] (Ibid., p.262).
30
O ioga de Patanjali descrito no IS, possui um ponto de vista dual da realidade
(BERRY, 1992, p.110; SARBACKER, 2008, p.162). O corpo (prakrti) e a alma
(purusa), portanto, são irreconciliáveis (ARANYA, 1983, p.10; BERRY, 1992, p.77).
É a “consciência” (citta)7, por meio dos “órgãos sensitivos” (indriyas), que estabelece
o rompimento dos homens e mulheres com a perenidade harmônica ou sattva de citta-
purusa quando alcançam kaivalya. O iogue crê que a alma exista num estado de “não-
movimento” ou “harmonia perene”, denominado em suas escrituras como kaivalya,
aonde a alma e a consciência experienciem uma Bem-aventurança divina constante e
eterna (ARANYA, 1983, p.22; BERRY, 1992, p.82-87). Samadhi, no entanto, é uma
experiência religiosa transitória produzida a partir das práticas ioguicas, que
possibilita aos iogues vivenciarem temporariamente um espaço liminar aonde cessa-
se a ação dos klesas em prakrti e o indivíduo sentir a harmonia perene de purusa.
Retorna-se de samadhi com discernimento espiritual maior sobre si-mesmo e os
outros. Seria como um vislumbre de kaivalya – o retorno a perenidade de purusa –
mas com retorno ao mundo ordinário e as suas aflições.
A inevitável ligação que se estabelece entre a consciência e o mundo por
intermédio do corpo, Patanjali deixa evidente ser a responsável em gerar um estado
espiritual nefasto ao indivíduo, denominado de citta-vrttis ou “movimentos da
consciência”, “turbilhão da mente” ou “confusão mental”. Por isso que no sutra 1.2,
Patanjali define o próprio ioga como “a supressão dos movimentos da consciência”
(citta-vrtti-nirodha), e no sutra 2.2 anuncia a experiência mística do samadhi, como o
retorno da consciência (citta) à sua natureza perene e imutável, símbolo de uma
espécie de “estabilidade divina da alma”8 presente em purusa (BERRY, 1992, p.101-
107, p.111; SARBACKER, 2008, p.163).
O IS esclarece que a dificuldade de se restabelecer ao estado harmônico divino
primordial reside nas condutas impuras que se comete deliberadas pelos
comportamentos associados aos klesas (lit. aflição) (SARBACKER, 2008, p.165). No
sutra 2.25 nos é apresentado o “klesa-mãe” ou responsável vital por todo o sofrimento
humano: a ignorância, alienação ou a ausência de conhecimento dos indivíduos em
não se reconhecerem já livres de toda e qualquer dor ou angústia existencial
7 Citta é formada pelo “intelecto” ou lit. perceber (buddhi), o “ego” ou lit. princípio individual (ahamkara) e a “mente” ou lit. ato de pensar (manas). 8 Ver sutra 4.18: “Os movimentos da consciência [citta] são sempre conhecidos por seu soberano [purusa], em virtude da imutabilidade do ser incondicionado” (GULMINI, 2002, p.381).
31
(ARANYA, 1983, p.122), ou seja, viventes de um estado permanente de Bem-
Aventurança. Os outros klesas ou causas das aflições são revelados no sutra 2.3 como
“filhos da ignorância” pelos comportamentos de apego, aversão, medo da morte e a
falsa identidade/orgulho ou orgulho. Os iogues, como salientei em outra passagem,
acreditam que nascem puros e em harmonia; mas no contato com o mundo e
desatentos ou ignorantes de sua natureza estável de Bem-Aventurança, criam um ciclo
nocivo de sofrimento e “confusão mental” na identificação do corpo e da consciência
com o mundo. No entanto, é importante deixar sublinhado, a alma (purusa) estará
sempre em estado de harmonia perene ou equilíbrio não sendo maculada pelo corpo.
O caminho espiritual óctuplo proposto pelo IS ou asthanga ioga (AI), é
ordenado por oito passos de igual importância: a ética dos yamas e niyamas; a prática
ritual corporal do asana, pranayama; o estado ioguico de prathyahara ou “abstenção
dos estímulos externos”; a meditação propriamente dita em dharana e dhyana; e
samadhi, como citado no sutra 2.29: o retorno ao estado harmônico eterno ou
encontro com a alma imaculada e em constante Bem-aventurança (BERRY, 1992,
p.92-107; SARBACKER, 2008, p.162-164).
Se a proposta de salvação/libertação descrita acima do ioga antigo já não está
mais tão evidente no discurso moderno, porém a espiritualidade do ioga não foi
esquecida, o que se alterou? Provavelmente modificações soteriológicas podem estar
ocorrendo, e com relação a teoria dos klesas, a experiência mística do samadhi e o
estado espiritual de kaivalya, mas quais? O intento aqui estará em apontar possíveis
caminhos de interpretação de tais reformas na proposta moderna de
salvação/libertação do ioga no microuniverso ioguico brasileiro.
1.3 - Período pós-clássico, pré-moderno ou medieval do ioga
Indiscutivelmente, o ioga mais difundido no mundo atualmente advém do
período pós-clássico, que ficou conhecido como hatha-ioga (HI). Na busca
etimológica da palavra HI, pode-se traduzir hatha por força ou forte, logo, segundo
Eliade, o HI é considerado o ioga do “elogio ao corpo” (2001, p.192-193). O HI inicia
a sua jornada na confluência das religiões e dos movimentos contraculturais que
32
apareceram na Índia no primeiro milênio da Era atual, portanto mais de mil anos de
história se passaram desde o IS aos primeiros registros pós-clássicos do ioga.
Assim como Patanjali sistematiza os princípios soteriológicos do ioga em seu
período clássico, Matsyendra e Goraksha, iogues da tradição ioguica Natha,
desenvolvem mais pormenorizadamente as práticas corporais e repercussões
fisiológicas espirituais para a união com Deus (LIBERMAN, 2008, p.100-116).
Enquanto no período clássico o ioga fundamenta as suas crenças no Samkhya, no
período medieval o ioga busca no Tantra, na alquimia islâmica, no Vedanta Advaita e
no Budismo o fundamento religioso e filosófico de suas crenças.
1.3.1 - O início da corporificação do ioga e a sua medicalização a partir da medicina
Ayurveda
A disciplina na execução das posturas, dos exercícios respiratórios, das
vocalizações e das mentalizações por longo tempo, e a devoção por partes específicas
do corpo são muito mais evidentes nos textos ioguicos do período pós-clássico do que
no seu anterior, e o corpo adquire agora uma natureza divina, como um “templo” para
o iogue medieval. Diferente do iogue clássico, que por causa de sua visão dual, lidava
com o corpo como um estorvo para a transcendência. Essa mudança será significativa,
pois quando o ioga encontra o mundo moderno ocidental, de cultura consumista e
individualista, essa visão positiva dada ao corpo incentiva a popularização das suas
práticas e investigação acadêmica sobre as suas repercussões terapêuticas.
A palavra corpo também vai adaptando os seus significados ao longo das eras.
Em sânscrito, por exemplo, corpo pode ser designado tanto por deha, derivado do
radical dih, que ao mesmo tempo em que pode significar “macular” ou “estar
manchado” (ainda indicando uma forte imagem do corpo contaminado ou de ser um
empecilho) ou “ungir”, como “aquilo que é untado ou investido”. No entanto, há outra
expressão para corpo bem mais antiga e resgatada na história medieval do ioga, que é
sharira, do radical shri, que significa “sustentar” ou “apoiar”, evidenciando que o
corpo é também um “meio pelo qual o Self pode vivenciar o mundo” (FEUERSTEIN,
2004, p.164-165). Também há a terminologia ghata, a qual pode ser traduzida como
33
pote ou, muitas vezes, por “unidade psicofísica”, segundo alguns iogues (IYENGAR,
2001, p.243) e especialistas contemporâneos em ioga (SOUTO, 2009, p.257-258).
Os textos elaborados filosoficamente por Shankaracharya, o Vedanta Advaita,
é popularizado neste período do ioga. A sua base está no conceito de um mundo não-
dual, dessa forma, diferente das escrituras dualistas de Patanjali que compreende a
alma (purusa) como imaculada pelo corpo (prakrti). Os iogues medievais, pelo
contrário, na busca por desvencilhar-se do klesa-mãe, a ignorância, e do sofrimento
do Ser, percebem o corpo (prakrti) refletindo a alma (purusa). Assim, se preocupam
menos com os tratados filosóficos de sua religiosidade, muito mais pautada pelo
sectarismo teológico dos brâmanes, e desenvolvem um arsenal de práticas fisiológicas
espirituais bem mais sofisticadas do que ao longo dos séculos anteriores9. Para os
hatha-iogues, portanto, o mundo não é mera ilusão agora, eles acreditam que o
sensível e o material são um só e a manifestação da suprema de Deus. Como tudo é
divino, o corpo também o é, e compreender a corporeidade significa também
descobrir o que se é espiritualmente como disse Feuerstein (1998, p.461-463).
Os (hatha)yogins estabeleceram que o corpo humano é homólogo ao Universo, assim, nomearam os nadis e os chackras como rios, montanhas etc. A ideia era buscar a verdade dentro de si mesmo. Se Deus está no Universo, também podemos buscá-lo dentro de nós mesmos (SOUTO, 2009, p.26).
Eliade (2001) corrobora o que se afirmou, comentando que em certa época,
talvez entre os séc.VII-XI, ocorre “uma nova revelação” entre os tântricos, os
budistas, os alquimistas, os hinduístas e os hatha-iogues, que não proclamavam algo
de original, “mas apenas reinterpretavam as doutrinas atemporais segundo a
necessidade do seu tempo”, numa espécie de síntese dos elementos religiosos em
comum (p.252).
Uma vez o corpo estando saudável e forte, o hatha-iogue dá início ao
despertar de uma energia suprassensível adormecida, a kundalini, descrita pela sua
fisiologia espiritual como uma “serpente” enrolada na base da coluna vertebral. A
ascensão da kundalini surge com mais ênfase nos textos medievais e, segundo as
escrituras hatha-iogues, os devotos avançados, desenvolvem uma gama de 9 Mesmo que já existissem, é evidente que, no período que os pesquisadores intitulam de “pré-moderno”, a ênfase física é bem maior do que nos períodos históricos anteriores.
34
capacidades transfisiológicas que os qualificam para kaivalya, mas que não é um
privilégio dos iogues medievais, pois outras religiões como o Budismo também
possuem descrições fisiológicas extraordinárias (ver USARSKI, 2009, p.43-44). O
último sutra do tratado mais importante do HI medieval, o HIP, afirma que:
Hatha-Ioga Pradipika (HIP): IV.114 - Enquanto o prana não entrar em sushumna (middle channel), penetrando o Brahmarandhra [lit. porta de Brahma ou Isvara, enquanto o bindu [fluxo vital masculino] não ficar estável por pranavata (controle do movimento de prana) e a mente (citta) sob controle em meditação (contemplação), a Suprema Realidade (Brahman ou Isvara) não aparece com um estado natural da mente [citta], e falar de Jnana [conhecimento religioso] é apenas hipocrisia sem fundamento (PANCHAM SINH, 1914, p.63; SOUTO, 2009, p.238).
Os antigos manuais hatha-iogues, como na citação acima, evidenciam que o
conhecimento religioso - Jnana – só poderia advir, primeiro, por meio do controle do
corpo – controle do prana pelos exercícios respiratórios para obter domínio da mente.
O que está em jogo aqui, é uma crítica ao clero hinduísta preso a exegese das
escrituras e a superioridade dos hatha-iogues ao que eles denominam no texto de
“hipocrisia sem fundamento”. Por isso, o HI descrever um número tão elevado de
limpezas transfisiológicas (kriyas), posturas (ásanas), controle da respiração
(pranayama), gestos e contrações musculares específicas (mudras e bandhas), inibição
sensorial (pratyahara), concentração (dharana), meditação (dhyana) e êxtase ou
experiência religiosa (samadhi), como marca da evolução na trilha ioguica
(FEUERSTEIN, 1998, p.471-482). O que está como pano-de-fundo, reforço, dessas
transformações religiosas é o sistema de castas na Índia, que segregava às castas não-
religiosas o alcance da libertação ou kaivalya. O HI, por outro lado, subvaloriza as
escrituras erigidas e mantidas pelos brâmanes, a alta casta sacerdotal indiana, e
prometem o fim dos klesas e obtenção de kaivalya por meio das experiências do
samadhi descrevendo com pormenores cada técnica e vivências rituais, antes no
domínio exclusivo do clero hinduísta. Lembremos que o ioga tem sua origem anterior
aos Vedas, mas na subjugação da cultura conquistada, a sua filosofia mágico-religiosa
foi sendo substituída pelo saber bramânico que o adequou, sobretudo no IS de
Patanjali, como um darsana hinduísta. Para o HI não ser banido como prática
heterodoxa, como foi o budismo, os iogues medievais asseguraram a sua legitimidade
na autoridade de uma versão não-dual do vedanta, o Vedanta Advaita.
35
Segundo o Vedanta Advaita, o ser humano possui mais do que o corpo físico10
e esse fato é relevante, pois será essa fé no corpo como parte do divino que manterá o
ioga como caminho espiritual mesmo em sociedades modernas. Em outras palavras, a
crença em energias transfisiológicas e sua dialética na salvação/libertação por meio de
ritos corporais desenvolvidos neste período medieval, serão mantidos no sistema de
crenças moderno do ioga, como veremos adiante. O candidato a iogue realizado agora
deverá revelar condições transfisiológicas específicas que o qualificarão para a sua
integração com Deus e não apenas nascimento ou educação adequados, como se
valiam os sacerdotes hindus de outrora (ELIADE, 2001, p.205-209; SOUTO, 2009,
p.46-50). Dessa forma, a fisiologia suprassensível do ioga adquire papel central no
êxito de seus devotos, pois será por meio dos seus rituais corporais que os iogues
medievais conseguirão diminuir as volições de citta e desenvolver certo
discernimento espiritual (viveka) na busca pela salvação/libertação em vida das
agruras da vida e comunhão com Deus.
Gheranda Samhita (GS): I.6-8 – O corpo das criaturas viventes é o resultado das boas e más ações. O corpo, a seu tempo, dá origem à ação e, desse modo, o ciclo continua como um ghatiyantra [lit. roda de água]. Como a cisterna sobe e desce a água do poço movida pelos bocéis, similarmente o ciclo da vida e morte de cada indivíduo é impulsionado por seus karmas ou suas ações. O corpo é como uma vasilha de barro cru que, se submergida na água desintegra-se. Por isso, deve ser exposto ao fogo do Yoga para fortalecer-se e purificar-se (Gharote 11 apud SOUTO, 2009, p.266-267).
10 Os três corpos ou shariras correspondem a um orgânico e mais dois sutis-esotéricos, que são: 1) o sthula sharira ou físico, constituído pelos músculos, pelos ossos, pelos órgãos e pelos tecidos; 2) o sukshma sharira, formado pela intuição, pela memória ou pelo conhecimento e pelas emoções; e 3) karana sharira ou causal, também denominado “receptáculo” ou “veículo” da alma individual. Também no Vedanta está a descrição dos cinco koshas ou invólucros do Ser, que são 1) o annamáyákosha ou corpo físico (igual ao sthula sharira); 2) o pránamáyákosha, constituído pelas energias prânicas que percorrem os nadis; 3) o manomáyákosha, corpo formado pelas emoções, mente e os sentidos ou indriyas; 4) o vijñánamáyákosha, constituído pelo intelecto e pelo raciocínio (é o “autor” das ações); e 5) o ánandamáyákosha, o corpo que transita além das misérias humanas (WOODROFFE, 2004, p.43-48; IYENGAR, 2001, p.247-265). 11 O prof. Ghatote é um importante discípulo do Swami Kuvalayananda, precursor da tradição de Kaivalyadhama, famosa por iniciar as primeiras pesquisas científicas com o ioga sob a perspectiva fisiológica e suas repercussões terapêuticas e biomédicas ainda na década de vinte. O Prof. Gharote foi o iogue indiano que mais contribuiu com a disseminação dessa tradição de ioga no Brasil, e as suas visitas ao país motivaram professores de ioga advindos do ambiente universitário da Universidade de São Paulo iniciarem as pesquisas de ioga no Brasil a partir da década de noventa, além de participações das formações de ioga em São Paulo. Atualmente, os livros do Prof. Gharote e Kuvalayananda foram traduzidos em português e seus discípulos, incentivados por eles, são em sua maioria, iogues com formação acadêmica e pesquisadores importantes do ioga como terapia no Brasil.
36
Aqui se percebe que, sendo o corpo responsável pelas ações dos seres
humanos, a prática e doutrina fisiológica ioguica tem o poder de modificar e até
mesmo de interromper este ciclo de reencarnações, indicando assim a liberdade
intrínseca do indivíduo para se desenvolver pelo fruto de suas próprias ações (Ibid.,
p.257).
GS: I.10-11 – Os satkarmas purificam o corpo, os ásanas o fortificam, os mudras lhe dão firmeza, o pratyahara produz calma. O pranayama leva à leveza, dhyana leva à realização do Ser e samadhi leva ao isolamento, que é a verdadeira libertação (mukti) (SOUTO, 2009, p.268).
Conclui-se que, enquanto os iogues antigos (pré-clássicos e clássicos)
propõem alcançar o kaivalya pela purificação dos pensamentos, os hatha-iogues (pós-
clássicos ou medievais) preferem antes (ou em conjunto) a purificação fisiológica
espiritual para o mesmo fim (FEUERSTEIN, 1998, p.541; SOUTO, 2009, p.287).
Se há algo em comum entre os períodos históricos, no entanto, está o seu
cuidado extremo no desenvolvimento de uma presença mental ininterrupta com o
livre fluir de prana com fins a certa harmonia ou equilíbrio energético. Por outro lado,
aos hatha-iogues, partes do corpo ganham contornos místicos. Por exemplo, os iogues
medievais crêem que a energia espiritual de kundalini reside no kanda (um
equivalente na anatomia científica seria o períneo); dessa forma, desenvolvem
técnicas de estimulação desta região, cujo intento é ativar a corrente prânica (SOUTO,
2009, p.292).
GS: II.7 – Siddhasana: pressionando o períneo [ou ânus e genitais]12 com o calcanhar posicionado contra ele, descansando o outro tornozelo sobre este ou sobre o pênis, posicionando o queixo no peito, mantendo-se sem movimento, com as indriyas [lit. sentidos] sob controle e olhando fixamente entre as sobrancelhas, esse é chamado siddhasana, que rompe as portas da libertação (moksha) [ou kaivalya] (SOUTO, 2009, p.290).
As escrituras, como se lê, vão aos poucos perdendo parte da sua força
legitimadora da fé e o corpo adquirindo contornos de revelador pessoal da evolução
espiritual do iogue. A experiência espiritual transitória do samadhi agora ganha
12 Em sânscrito está yonisthânakamanghrimûlaghatitam sampidya gulphetaram, a tradução moderna de yoni está vinculada à região do períneo, mas lit. refere-se a atar, juntar, fonte, casa ou vulva, e no contexto ioguico períneo ou vagina (FEUERSTEIN, 1998, p.267-268).
37
explicações que permeiam as sensações corporais e a compreensão do funcionamento
do corpo se entrosa com a medicina tradicional indiana, a ayurveda. O ioga medieval
fez surgir uma maior popularização das suas práticas e alcance da sua proposta de
salvação, libertação, purificação ou eliminação dos klesas. Ao invés de regrar as
condutas diárias em observação aos comportamentos nefastos de apego, aversão,
medo da morte e orgulho, os hatha-iogues autorizam a qualquer indivíduo,
independente de sua casta social, purificar o corpo diariamente por meio de práticas
corporais específicas com o mesmo intento dos iogues-brâmanes: vivenciar
temporariamente o samadhi na busca por conhecimento espiritual e livrar-se em vida
de todo o sofrimento humano advindo da agitação da mente/consciência.
Assim se faz a relação da consciência (citta) com o respirar (prana) e o
vivenciar com o divino por exemplo. O primeiro sutra do GS mostra que, praticando
pranayama, “o homem pode assemelhar-se a um Deus” (verso V.1; SOUTO, 2009,
p.385; GRIEGO, 2008, p.23). Os iogues medievais creem agora que o tempo de vida
humano é ditado pelo fluxo de ar (prana) no organismo (verso V.83-84; GRIEGO,
2008, p.29; SOUTO, 2009, p.420) e não pelo nascimento apenas; assim se dedicam
com afinco às funções sutis da fisiologia dos pranayamas e no controle e execução
corretos destes que podem conduzi-los de um simples devoto praticante (sadhaka) a
iogue realizado (que atingiu kaivalya ou estado de equilíbrio eterno das energias
metafísicas que atuam nos corpos) (verso V.91 em GRIEGO, 2008, p.30; SOUTO,
2009, p.422).
GS: V.56-57 – O tipo inferior de pranayama produz calor (indicativo da ativação de kundalini, geralmente associado a algum bandha). O moderado produz tremores especialmente na coluna vertebral, enquanto os mais elevados levam à levitação e desperta-se a energia espiritual [kundalini]. O êxito no pranayama é caracterizado por essas três experiências sucessivamente. (...) Pelo pranayama, a mente experimenta felicidade e o praticante a encontra. (Ibid., p.408-409)
A corporificação do ioga não é assunto moderno, como já adiantamos, mas
fruto de sua popularização e parte do movimento contracultural indiano medieval
denominado de Tantra. Quando o ioga aporta nas sociedades secularizadas ocidentais,
esse aspecto sobressai-se e ganha novos significados. O que se transforma realmente
na passagem para os tempos atuais ioguico, reside em quem valida o discurso
religioso do ioga. Até aqui (era medieval), mesmo com todos os hibridismos sofridos
38
com outras religiosidades, o ioga se mantém como escola ortodoxa hinduísta, um
darsana. O ioga, ao contrário do Budismo, não pode ser percebido ainda como uma
religião autônoma na Índia medieval por força hinduísta, mas como parte deste
complexo sistema religioso. Na contemporaneidade, no entanto, esse quadro se
modifica sensivelmente.
1.4 – O Surgimento do ioga moderno
O ioga, na sua faceta moderna, se viu envolto por outros desafios, que obrigou
os iogues, mais uma vez, a se ajustarem às novas racionalidades que surgiram,
sobretudo, no seu contato com a ciência moderna ocidental. A fisiologia e a
neurociência trouxeram soluções que antes eram monopólio exclusivo da fisiologia
espiritual do ioga medieval. Desse modo, explicar o samadhi, o poder espiritual dos
ásanas, pranayamas e kryias não era mais agora algo exclusivo de sacerdotes
hinduístas ou iogues ascetas, mas estava sendo também investigado por um novo
sistema de conhecimento, a ciência.
1.4.1 - A Renascença Indiana
É no período denominado de renascentista que alguns indianos vão estudar na
Europa e percebem que o seu país, apesar da grandiosidade da sua terra, a sua história
e cultura, sofre com a precariedade do seu sistema de saúde, com as crenças populares
envoltas pela sua religiosidade, com uma educação ineficiente e pela economia
explorada pelos britânicos. Muitos destes jovens entendem que seu povo poderia (e
deveria) se beneficiar também dos avanços da ciência, da tecnologia e da medicina
ocidental que eles testemunham, geralmente nos centros acadêmicos do mesmo país
que os colonizava.
Os intelectuais de Bengali, como ficaram conhecidos, abriram o diálogo com
os ingleses, instituindo uma ideologia e a modernização do seu país, o que veio a
inspirar na formatação de um ioga menos místico e mais condizente com o
pensamento racional-empírico e positivista do ocidental que os colonizava. Foi uma
espécie de movimento de contracultura sobre o domínio britânico, concedendo os
39
direitos políticos das mulheres, a extinção das castas, da poligamia e das crenças
populares religiosas, assim como tornaram obrigatório o ensino da língua inglesa nas
escolas. Além disto, eles tentaram instituir um Deus único dentro do panteão hindu,
tendo sido os primeiros a traduzirem a literatura védica para o inglês, permitindo um
debate inter-religioso e crítico.
Foi assim, por meio de uma verdadeira reforma social, política, cultural e
religiosa, que esses indianos buscaram construir e expor ao mundo uma perspectiva
mais secular de seu país e de sua religiosidade menos “primitiva e mágica”. Com isto,
o ioga, como um emblema da sua religiosidade, sofreu influências que transformariam
o seu sistema de crenças, soteriologia e de práticas rituais sofrendo mutações e
propiciando o advento de modernas organizações e tradições ioguicas, sendo algumas
bem mais seculares do que outras. Um dos resultados dessa abertura e privatização
religiosa do ioga foi o embate entre o materialismo da ciência ocidental e a mística e
mágica do ioga medieval (DeMICHELIS, 2008, p.20-21, 30; ELIADE &
COULIANO, 2009, p.183).
Desta forma, o ioga antigo, pautado altamente por uma fisiologia espiritual e
pelas crenças populares, perde espaço frente ao progresso e o renascimento do
continente indiano e sua entrada em uma economia neoliberal e capitalismo de
consumo e, com estes, todos os problemas teológicos que os acompanham, como
secularização e privatização religiosa, obrigando aos iogues da geração moderna
(re)construírem o seu complexo sistema de crenças, bem como os seus bens de
salvação/libertação frente as descobertas da fisiologia biomédica ocidental sobre as
suas práticas rituais corporais que tomavam contato agora.
1.4.2 - Ioga moderno
Desde 1757 que a colonização indiana pelos britânicos teve início, mas para o
ocidente, o ioga desembarca oficialmente nas suas terras com o swami Vivekananda
(1863-1902), em 1893, na cidade de Chicago nos Estados Unidos. A sua visita foi,
por convite do primeiro parlamento mundial das religiões, como o representante do
Hinduísmo nesse evento. No seu discurso apresenta já um ioga com distintos
sincretismos dos tempos pré-modernos (pós-clássico ou medieval), tanto em termos
40
ideológicos quanto fisiológicos (STRAUSS, 2008, p.58-63). Para Vivekananda, iogue
discípulo de Ramakrishna, líder religioso da renascença indiana, o ioga é considerado
como um ideal de religião universal (ver o seu discurso no parlamento em
VIVEKANANDA 2007)13. Sendo médico de formação, Vivekananda foi um dos
primeiros a ressignificar a fisiologia espiritual do ioga em termos biomédicos
ocidentais modernamente (KUVALAYANANDA, 2008, p.103-104 em notas;
STRAUSS, 2008, p.63).
O ioga que Vivekananda oferece aos emissários das principais religiões ali
presentes, é o de uma tradição religiosa pautada em uma das formas pela qual o ser
humano alcança a sua verdadeira liberdade e manifesta a sua divindade interior. Não
havia ainda uma pretensão de classificar o ioga como uma “espiritualidade” e,
portanto, diferente de “religião”. Vivekananda, na verdade, se propõe a demonstrar,
nos seus pronunciamentos e depois em outras palestras e livros, que a religiosidade
indiana, condensada por ele com o nome ioga, se sustentaria tanto filosoficamente
quanto cientificamente e estaria à altura de qualquer outra religião ali representada.
Vivekananda dá entrada ao que modernamente se populariza entre os iogues atuais, o
início da instituição do ioga como um novo movimento religioso ainda em andamento
(DeMICHELIS, 2004, p.248-260; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2014, p.95-129).
O seu discurso ficou bastante popular, o que lhe possibilitou fundar
organizações ioguicas por cidades do mundo inteiro, tendo o seu pensamento, em
relação à religiosidade ioguica e à ciência formado a base intelectual e ideológica de
uma geração de iogues que veio depois dele 14 (DESIKACHAR et.al., 1980).
Vivekananda também ficou conhecido como um defensor da tolerância religiosa,
tornando-se um dos grandes ídolos do hinduísmo moderno, além de um grande
inspirador dos novos movimentos religiosos que primam, assim como o ioga
moderno, por assimilar os seus ensinamentos religiosos como os científicos
(NANDA, 2007; STRAUSS, 2008, p.64-65; VALLE, 2008, p.200).
O ioga, então, inicia mais uma vez as suas relações híbridas com novas
culturas, sociedades, políticas, economias e geografias, como em outros momentos
13 E até hoje essa imagem transmitida por ele continua viva nos meios ioguicos ver DESIKACHAR (2006), p.10. 14 “O ioga é uma cultura universal” (IYENGAR, 2001, p.41).
41
históricos que apresentamos anteriormente. Contudo, agora, esse contato vai alterar o
caráter do iogue renunciante do mundo de tempos passados, para um ascetismo que
dialoga com o mundo nos tempos atuais (STRAUSS, 2008, p.64), pautando-se em
escrituras religiosas como o Bhagavad-Gita. Os iogues indianos modernos
desenvolvem discursos retóricos que os autorizam a participar das sociedades
ocidentais e não mais ser necessário se retirar em ashrans na floresta para
vivenciarem o samadhi e o viveka (lit. discernimento espiritual), o que veremos que
os iogues brasileiros irão denominar em suas audições de “estado de ioga”.
Consideremos agora a diferença entre um yogue-asceta e um monge samsari (que se propõe a participar do jogo exterior de maya). Diga-se desde já que o “samsari” não precisa jogar obedecendo ao ego. Com efeito, é grato por Deus e muito útil ao desenvolvimento espiritual participar do jogo divino sem recorrer ao ego, em vez de procurar envolvê-lo no processo. (KRIYANANDA, 2007, p.241)
Nos períodos anteriores do ioga, o ioga precisava se afastar de samsara e não
participar da vida social com o motivo de não se envolver no “jogo exterior de maya”
ou de ilusão. Agora, no período moderno e longe do manto protetor da religiosidade
hinduísta, os iogues precisam aprender a lidar com novos desafios e, por conseguinte,
com novos obstáculos que afligem a vida e seus novos discípulos/alunos. Enquanto
aqueles iogues clássicos e medievais abandonavam o convívio social e dedicavam a
sua busca religiosa retirados do convívio leigo (ver sutra I.16 do HIP)15, os modernos
se globalizam e adquirem a preocupação de difundir os seus ensinamentos para o
mundo, se tornando assim bem mais proselitistas do que em tempos passados sob a
tutela hinduísta. Esta passagem histórica de renúncia necessária ao mundo e agora, de
participar do mundo e difundir as suas ideias ioguicas aos outros, se configura uma
das características mais marcantes do ioga que se conhece atualmente segundo Sarah
Strauss (2008, p.63-64). Esse período de transição do ioga medieval para o moderno
também marca o questionamento por parte de acadêmicos e iogues do fim da
espiritualidade e, por conseguinte, a exigência do “retorno” a sua essência e
“tradição”. Muito desses discursos virão da aproximação que o ioga moderno fará
com a ciência, mas sobretudo pelos seus inúmeros hibridismos. Esses fatos são os
15 “O Yoga é realizado com muito êxito quando se cumprem estes seis requisitos: entusiasmo, determinação, coragem, compreensão correta, fé no guru e abandono do contato público” (SOUTO, 2009, p.91-92).
42
responsáveis pela busca dessa tese em desvendar a transformação que a proposta
soteriológica do ioga sofreu no seu contato com as sociedades modernas ocidentais.
Segundo estudiosos contemporâneos, o ioga atual precisou aprender a lidar
com os acontecimentos, principalmente os advindos do nacionalismo indiano, do
ocultismo ocidental, da filosofia neo-vedanta, dos sistemas de cultura físicos
modernos (DeMICHELIS, 2008, p.20), do islamismo, do cristianismo primitivo, da
ciência moderna (principalmente a fisiologia e a biomedicina ocidental) e do
movimento religioso Nova Era (LIBERMAN, 2008, p.100-117). Este será o novo
pano-de-fundo que configurará o ioga que se conhece atualmente.
Elizabeth DeMichelis salienta os pontos-chaves que facilitam a compreensão
do surgimento do ioga moderno. Segundo DeMichelis (2008), desde 1600, por
intermédio da Companhia das Índias Orientais, que a Índia vem estabelecendo relação
com os países da Europa e América, mas é a partir de 1750 que as sociedades
ocidentais voltam o seu interesse para a economia, o sistema sócio-político e a cultura
indiana. Com isto, de 1830 em diante que surgem os debates devido aos movimentos
de reforma sócio-religiosa na Índia Britânica, abrindo-se um diálogo entre os
intelectuais e as autoridades sobre a anglicização da colônia. Os primeiros sinais de
uma ocidentalização da religiosidade indiana ocorrem por volta de 1850, como se
pode ler nos escritos do naturalista, poeta e transcendentalista norte-americano, Henry
David Thoreau (p.30)16.
No início do século XX, presencia-se o surgimento do movimento Nova Era e
a rápida modernização das religiões asiáticas, as quais dão início a um produtivo
diálogo com outras crenças e culturas, fato que continua até hoje. Entre 1914 e 1945,
devido às duas grandes guerras mundiais, a disseminação das ideias modernas do ioga
diminui a sua influência, sendo retomada novamente a partir da independência da
Índia em 1947. Por intermédio de iogues carismáticos e convidados pela onda
contracultural que acontece nos anos sessenta, várias organizações do ioga se
popularizam por todo o mundo. Após um período de certa indiferença pelo ioga, na
década de oitenta, nos anos noventa surge uma entusiástica aculturação por uma
16 “... I would fain practice the yoga faithfully... To some extent, and a at rare intervals, even I am a yogi”... De bom grado praticar o yoga fielmente... Até certo ponto, e em raros intervalos, eu mesmo sou um iogue”.
43
geração de praticantes e de devotos seguidores da sua proposta salvífica e de saúde
(DeMICHELIS, 2008, p.21).
O ioga, no início da década de 1990, se lança no mundo, principalmente por
meio de alguns iogues, entre tantos outros, como swami Vivekananda, sri Yogendra,
Paramahansa Yogananda, swami Kuvalayananda, swami Sivananda e
Krishnamacharya (ALTER, 2004, p.73-108; FEUERSTEIN, 2005, p.53-55;
SINGLETON & BYRNE, 2008, p.17-35; p.40-74). Os métodos ioguicos mais
populares e praticados contemporaneamente se devem aos iogues mencionados
acima, tendo as suas ideias edificado algumas das inúmeras escolas, tradições ou
organizações ioguicas religiosas no mundo atual17. Pode-se afirmar que somente as
organizações ioguicas que aprenderam a fomentar e a divulgar a religiosidade ioguica
por intermédio de pesquisas fisiológicas dos seus métodos e tradições, é que
sobreviveram no mundo moderno. Algumas, inclusive, se orgulham de terem artigos
publicados em revistas científicas sobre os benefícios das suas práticas para a saúde18.
O interessante aqui é o apelo à saúde que a prática religiosa do ioga oferece
agora e o diálogo que aprendeu a estabelecer com a biomedicina. A ciência, ao invés
de desencantar o ioga, serviu-lhe de veículo proselitista. Para se entender o que
permitiu esta configuração atual, o que transformou a religiosidade ioguica numa
espécie de panaceia, mas sobretudo, reformou os antigos conceitos de mal contido nos
klesas para uma linguagem atual e “científica”, será necessário evidenciar como as
escrituras antigas e medievais indianas foram ressignificadas pela ciência biomédica e
fisiologia. A vivência integrativa transitória do samadhi, o estado permanente de
equilíbrio de kaivalya e os klesas, como obstáculos espirituais ioguico agora,
ganharão correspondentes fisiológicos empíricos da biomedicina ocidental. Não há
nada de novo, mas um desdobramento da corporificação e medicalização do ioga
medieval a um novo contexto social, político, econômico e religioso, mas que
implicará em profundas mudanças na via salvífica/libertadora do ioga moderno.
17 The Yoga Institute (1918), de sri Yogendra; Self-Realization Fellowship (1920), de Paramahansa Yogananda; Kaivalyadhama Yoga Institute (1924), do swami Kuvalayananda; “Yoga de Krishnamacharya” (1924), de Krishnamacharya; Sivananda Yoga: The Divine Life Society (1936), do swami Sivananda; e o Vivekananda Kendra Yoga Research Foundation (1972), fundada por Eknathji Ramkrishna Ranade (1914-1982), organização esta baseada nos princípios de Vivekananda. 18 Ver TELLES, NAGARATHNA & NAGENDRA (1994); http://www.kdham.com/srd.html, acessado 27/08/2010; http://www.vkendra.org/projects, acessado 27/08/2010; e http://www.sivanandaonline.org/html/sadhanapages/yoga/Yoga.shtm, acessado 27/08/2010.
44
Capitulo 2
OS KLESAS NO MUNDO MODERNO
2.1 - Os primeiros iogues da geração moderna: a ressignificação das escrituras
do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia
Os iogues19 a partir de Vivekananda inauguram as primeiras denominações
religiosas do ioga moderno no mundo, com a missão bem clara em difundir a ciência
do ioga (ver SIMÕES, 2011). A ciência, assim, será o grande canal proselitista que o
ioga se empenha a utilizar para disseminar as suas ideias religiosas nas sociedades
urbanas ocidentais (DeMICHELIS, 2008, p.23; STRAUSS, 2008, p.62-67). A partir
de agora, o ioga vai desenhando novos bens de salvação mesclando seu conhecimento
dos períodos históricos passados com o saber da ciência biomédica e sua fisiologia
pautada na racionalidade ocidental. As doenças devem ser combatidas pelos ásanas,
pranayamas e meditação, mas mesclando-se a nervos, hormônios e partes específicas
do cérebro com energias transfisiológicas.
por meio dos exercícios [de ioga] mantemos nossa flexibilidade e força da coluna vertebral, assim a circulação [sanguínea] é aumentada e os nervos mantém seus suprimentos de nutrientes e oxigênio. Os ásanas também afetam os órgãos internos e o sistema endócrino20. [A intenção do instituto de Kaivalyadhama é] desvencilhar [o ioga] de toda uma capa de misticismo acumulada ao longo de séculos de transmissão oral Isso só poderia ser conseguido com pesquisa exaustiva em textos e escrituras originais [doutrinas], e por meio de experimentação laboratorial [fisiologia biomédica empírica-racional do Ocidente]. (KUVALAYANANDA, 2008, p.2)
Andrea R. Jain, avaliou as formas como um dos métodos do ioga moderno
(Preksha Dhayan de Acharya Mahaprajna) se apropria do discurso científico
ocidental na sua doutrina (JAIN, 2010), em particular, das técnicas corporais e
meditativas dos sistemas de ioga clássicos e pré-modernos e baseando-se no discurso
biomédico ocidental. 19 Sri Yogendra (1897-1989), seguido por Paramahansa Yogananda (1893-1952), swami Kuvalayananda (1883-1966), swami Sivananda Saraswati (1887-1963) e sri Turumalai Krishnamacharya (1888-1989). 20 Grifo meu. Ver http://www.sivananda.org/teachings/fivepoints.html acessado 06/01/2011.
45
A autora percebeu que o corpo no ioga investigado, tornou-se uma “sutil
metafísica somatizada”, utilizando-se da compreensão biomédica da fisiologia para
localizar e identificar as funções de partes dos corpos sutis e os processos fisiológicos
da realidade empírica. Para a pesquisadora, esta reinterpretação não substituiu apenas
a simbologia fisiológica espiritual antiga pela científica moderna, mas a reinventou,
formatando uma fisiologia ioguica agora com elementos científicos.
Eu avaliei a apropriação das técnicas físicas e meditativas dos sistemas de ioga antigos em suas explicações metafísicas do ioga pelo discurso biomédico. Eu demonstro como, no sistema Mahaprajna Preksha, o corpo metafísico sutil foi somatizado. Em outras palavras, Mahaprajna utiliza-se do conhecimento biomédico da fisiologia para localizer e identificar as funções das partes sutis do corpo metafísico e processos da fisiologia do corpo (JAIN, 2010).
O que se indica, é que o fato mencionado por Jain não é algo isolado de um
grupo religioso, tradição ou iogue específico, mas da própria história do ioga na
modernidade que vem ganhando contornos espirituais próprios e dialogando mais
com os padrões ocidentais de racionalidade do que a magia medieval indiana; assim,
essas ressignificações e reformas teológicas se justificam pela aculturação que o
complexo religioso ioguico sofreu no contato com os outros povos e seus sistema de
crenças, na busca por manter o seu discurso legítimo em um mundo onde a lógica
científica parece prevalecer mais do que a fé (ou a lógica religiosa).
No livro Afirmações, por exemplo, Yogananda procura correlacionar o poder
terapêutico do ioga por meio de descrições científicas, profetizando que a fisiologia
cardiorrespiratória científica explicaria o pranayama (parte da prática ioguica
composta por respiratórios mais intensos), “cuja aplicação o ser humano pode
alcançar uma experiência pessoal e direta com Deus (...) comum a toda religião
verdadeira” no intuito de promover harmonia entre os diversos povos e os países do
mundo. Não é apenas ele, mas outros como Iyengar também fazem frequentes
referências à junção religiosa ioga-ciência. A partir de agora, o ioga como uma
religião terapêutica virá aos poucos sendo configurada.
O pranayama é o elo de ligação entre o organismo fisiológico do homem e sua dimensão espiritual. Tal como o calor físico é o cerne de nossa vida, o pranayama é o cerne do ioga (IYENGAR, 2001, p.183).
46
O ioga moderno vai alicerçando-se, segundo os seus emissários
contemporâneos, com auxílio de “um conjunto de técnicas científicas utilizadas para
alcançar a comunhão com Deus” (Ibid., p.130-131). A sua doutrina antiga funda-se
modernamente – proclamam os iogues do início do séc.XX - também na fisiologia
científica para, assim como os iogues clássicos e medievais o fizeram com as outras
sabedorias, dialogar com os conceitos fisiológicos espirituais de outrora. Desta forma,
a fisiologia biomédica científica e os tratados religiosos ioguicos se hibridam.
Se estimarmos a quantidade de sangue expulsa em cada contração dos ventrículos do coração, soma ao redor de cento e dez mililitros, este órgão move um peso equivalente a oito quilogramas de sangue por minuto. Assim, no lapso de um dia, o coração impulsiona aproximadamente doze toneladas de sangue. Estas cifras demonstram o enorme trabalho do coração. O controle consciente do sono – aprender a dormir e despertar com nossa vontade - forma parte do treinamento yoguico que capacita o ser humano em regular os batimentos cardíacos. Quando se é capaz de controlar conscientemente a frequência cardíaca, se alcança o domínio da morte. (YOGANANDA, 2008, p.134) a cortisona [principal hormônio do estresse] do ioga é vislumbrar a alma (IYENGAR, 2001, p.138).
Nas citações acima evidencia-se as aproximações “científicas” do ioga
moderno. Quando Yogananda diz poder vencer a morte controlando-se a frequência
cardíaca e a respiração, pode estar evidenciando algo que desenvolverei mais adiante:
os obstáculos do ioga, os klesas, estão se transformando em doenças psicossomáticas
e sentimentos nefastos a serem exorcizados pelas práticas corporais do ioga moderno.
Importante relembrar que os klesas, como responsáveis em produzir o turbilhão da
mente/consciência (citta-vrttis), estarão intimamente relacionados agora em
modificações fisiológicas advindas das imbricações construídas modernamente com a
linguagem da ciência biomédica. Dessa forma, quando Yogananda acima afirma que
se “alcança o domínio da morte” no controle consciente dos batimentos cardíacos,
associa diretamente (mesmo sem mencionar) um dos klesas (Medo da morte) vencido
no controle de repercussões corporais.
47
2.1.1. A ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica
e fisiologia
O discurso do conhecimento fisiológico da ciência legitima o iogue moderno a
abrir mão da sua antiga teoria ética para aniquilação do Mal/klesa, para o controle
deste por meio de rituais corporais de purificação ou exorcizo do klesa que vai sendo
materializado por assim dizer. Os hatha-iogues já o faziam isso na Índia medieval; o
novo, no entanto, é a ressignificação pela linguagem científica. Outro dado a recordar
são os motivos que conduziram os iogues medievais a corporificarem seus discursos.
Esse processo deveu-se na crítica que faziam ao sistema estratificado da sociedade
indiana que impedia acesso a salvação (kaivalya) de quem não pertencia a mais alta
casta social. Em outras palavras, aos indianos de castas inferiores, só lhes restavam
obedecer aos ditames bramânicos para total extinção do Mal/klesa. A motivação de
muitos líderes religiosos que participaram do movimento renascentista na Índia no
final do séc. XIX, estava, entre outros, na eliminação das diferenças das castas da
sociedade (FARQUHAR, 1915, p.387-429). Assim, parece lícito supor que o pano-
de-fundo que encobre o discurso corporificado dos iogues modernos pode estar ainda
fundado, não apenas em um simples ajuste ou adaptação simbólica, mas numa crítica
social moderna por uma parcela insatisfeita com a vida dos grandes centros urbanos.
Quando Yogananda associa o “treinamento ioguico” na diminuição dos
“batimentos cardíacos” e aniquilação de um dos klesas, pode estar ponderando sobre
o ritmo agitado da vida ocidental urbana que agora estes iogues indianos tomam
contato e, percebendo o mal à dialética saúde-salvação que esse ritmo implica aos
seus indivíduos, desenvolve novos métodos de ioga para serem aplicados a um novo
coletivo. Segundo Iyengar, “ao controlar a respiração, você está controlando a
consciência, e, ao controlar a consciência, você dá ritmo à respiração”. Como
veremos, essa moderna dialética ioguica se estabelecendo pode, como alguns
pesquisadores apontarão, transformar os klesas, o samadhi e kaivalya em conceitos
advindo da fisiologia biomédica, reformulando o Mal, a vivência espiritual e a
salvação/libertação religiosa do ioga moderno.
O iogue Yogananda faz uma releitura moderna do HIP (sutras I-41 e II-2),
dizendo que “quando não há movimento nas células, na mente ou em qualquer um dos
48
vasos da alma, prevalece o que se chama de kumbhaka” (p.29, 185)21. Assim como
Kuvalayananda tentou aliar o valor religioso com o científico do ioga, Iyengar (2001)
também se dedicou às correlações entre a anatomia e a fisiologia biomédica com a
religiosidade do ioga.
aplicando-se fundamentalmente a vontade, deverá fixar-se a atenção entre sobrancelhas [shambavi mudra]; quando se utilizam afirmações do tipo intelectual, o centro da concentração será o bulbo raquídeo (centro da força vital inteligente); e as afirmações devocionais, a concentração se focará no coração. Por meio da prática dessas afirmações, adquire-se o poder de dirigir conscientemente a atenção para as fontes vitais da vontade, do pensamento e do sentimento (YOGANANDA, 2008, p.76). Concentrar-se, com os olhos fechados, na região do bulbo raquídeo, e sentir que o poder da visão, presente nos olhos, fluem através do nervo óptico para a retina. Fixar o olhar entre as sobrancelhas, imaginando que o fluxo da energia vital se dirige desde o bulbo raquídeo para os olhos, transformando estes últimos em dois focos de luz. Este exercício produz benefícios tanto físicos como mentais (Ibid., p.114).
Yogananda, desta forma, faz uma releitura de um clássico e importante mudra
da doutrina medieval do HI, o shambavi mudra, pelo prisma da fisiologia científica.
Em outra obra, Kriyananda (2007), comentando o seu guru Yogananda, volta a se
referir ao bulbo (ou medula oblonga) e ao nadi sushumna como a espinha, e prana
como energia.
(...) o caminho do despertar divino é, conforme dissemos, a espinha. A energia penetra no corpo através da medula oblonga, na base do cérebro. (...) A energia (...) transita pelos nervos [nadis] (...) até o cérebro, desce pela espinha (...). Quando, por ocasião da morte, a consciência se retira do corpo, a energia primeiro recua das extremidades para a espinha, sobe por ela e sai pela medula oblonga, deixando o corpo (p.51).
O bulbo ou medula oblonga (porção anatômica inferior do tronco encefálico e
responsável pelas funções vitais do corpo) para Yogananda possui também, um pólo
negativo e outro positivo. O primeiro, que corresponde ao ajna chackra, situa-se no
próprio bulbo; e o segundo, que o reflete, localiza-se na confluência dos três
principais nadis (ida, pingala e sushumna), que ele reinterpreta como sendo os nervos
(Ibid., p.51), da região conhecida como shambavi mudra, dentro da anatomia e da
fisiologia espiritual do ioga (WOODROFFE, 2004, p.56).
21 Grifo meu.
49
Dentro desta lógica ioga-ciência que vem se edificando no microuniverso
ioguico moderno, a região cerebral do bulbo - como responsável por inúmeros nervos
motores e sensitivos cranianos - influirá também na dialética prana-citta ou energia
cósmica absorvida a cada ato respiratório e a consciência. Na próxima subseção,
perceberemos que essa corporificação da fisiologia sutil do ioga se estenderá também
a noção de klesa e a sua conversão, de conceito metafísico, ao das emoções possíveis
de serem sentidas e percebidas no corpo. Consequentemente, “materializada” e
possível de mensuração empírica - mesmo que a ciência ocidental, admitem muitos
dos iogues que entrevistei, ainda não possui mecanismos tecnológicos para isso. Se as
noções de prana, citta, nadis e demais símbolos transfisiológicos do ioga se
corporificam modernamente, é bem provável que encontremos correspondentes
fisiológicos empíricos para os klesas, samadhi e kaivalya, mesmo que sejam conceitos
ideais erigidos pela ciência.
No HIP, segundo Iyengar (2001), o ioga é prana-vrtti-nirodha (acalmar as
flutuações da respiração); já o IS afirma que ioga é citta-vrtti-nirodha (acalmar as
flutuações da mente) (p.29); assim, é lícito pensar, dentro da nova racionalidade
fisiológica religiosa do ioga moderno, que o bulbo tenha participação direta nesse
processo, como afirmam os iogues acima, pois ele (o bulbo) também é o centro
respiratório pela fisiologia biomédica. Se relembrarmos que os klesas são os
responsáveis pela produção dos vrttis, e estes, pela corporificação que o ioga vem
sofrendo, podem estar assumindo um caráter de induzir as “flutuações da mente” (IS
1:2). Dessa forma, supor a participação real dos klesas em estados
mentais/emocionais modernamente, pode ser possível.
A citação abaixo reforça a transformação da transfisiologia medieval aos
padrões ocidentais de racionalidade. Kriyananda (J. Donald Waters), um ocidental
discípulo direto de Paramahansa Yogananda, insiste no caráter empírico de ajna
chackra, quando busca demonstrar que a meditação ioguica nessa região metafísica
pode desbloquear energias espirituais no corpo. No fundo, o objetivo dos iogues
modernos está em permitir o livre fluir das energias (prana) através das suas novas
técnicas rituais. Serão, logo, elas as técnicas ioguicas - e não mais a autoridade do alto
clero – as responsáveis por eliminar as manifestações maléficas dos klesas.
50
[O iogue] pode-se perguntar: o olho espiritual [ajna chackra] é puramente simbólico? Não, é real e constitui, de fato, um reflexo da medula, a partir da qual a energia desce a espinha por três nadis ou canais sutis de força vital [prana]. (...) A espinha é o canal principal por onde a energia flui. O fluxo ascendente da energia [que conduz kundalini] pode ser bloqueado por alguns plexos [chackras] na espinha, de onde ela passa para o sistema nervoso e daí para o corpo, sustentando e ativando os diferentes órgãos e membros. Quando em meditação profunda, o yogue transfere energia do corpo exterior [koshas] para a espinha e a faz subir para o cérebro [último chackra], ele encontra essa passagem bloqueada pelo fluxo externo de energia proveniente daqueles plexos (ou centros, mas que nos tratados yoguicos recebem o nome de chackras). A energia de cada chackra deve ser conduzida para a espinha a fim de prosseguir sua jornada ascendente (KRIYANANDA, 2007, p.52-53).
Kriyananda acima nos exemplifica a “realidade” das energias “bloqueadas”
com correspondentes nos plexos, coluna vertebral e glândulas, locais anatômicos
pertencentes ao conhecimento científico. Mas, o que as bloqueia agora, acreditam os
iogues modernos, são as contrações musculares, a alimentação inadequada e as
doenças. Dessa forma, os músculos relaxados pela ação de posturas ioguicas
específicas, combinados aos respiratórios (pranayamas), alimentação vegetariana
devem agir no desbloqueio de prana nos chackras e, consequentemente, no
reestabelecimento da saúde. No fundo, não devemos nos esquecer que o responsável
real por essa configuração nefasta (de energias bloqueadas) são a ação dos klesas, que
produzem o “turbilhão da mente” e permitem que doenças se instalem em nossos
corpos e mentes em desequilíbrio por uma má circulação prânica. No entanto, para se
compreender a lógica aqui se desenhando é preciso também, estimar os klesas - o mal
a ser aniquilado – como responsáveis velados desse processo. Com isso, novos bens
de salvação se configuram como uma possível reforma no modo como os iogues
modernos percebem a causa do mal que os atormenta e os afastam de kaivalya, que
representa, desde os tempos antigos, um estado perene de equilíbrio divino em sattva
ou o estado da alma/purusa imaculada.
Como exemplo da busca incessante por corporificar todas as manifestações
suprassensíveis das escrituras antigas, tomemos como exemplo os chackras. Os
chackras, vórtices de energia que canalizam e potencializam prana, sempre foram de
natureza mística, mas eles também sofreram reformulações significativas na sua
interação com o sistema de crenças da ciência. Eles (os chackras) continuam a ser
representados nos corpos transfisiológicos do ioga, mas ganharam correspondências
das mais variadas dentro da fisicalidade orgânica da fisiologia ocidental, como plexos,
51
glândulas e junções celulares (gap junctions), como se observa nas pesquisas
fisiológicas modernas da religião, mas também na voz da doutrina ioguica atual.
Chakras são centros da energia espiritual. Eles estão localizados no corpo astral, mas eles possuem correspondência com centros no corpo físico também. (...) há certos plexos no corpo físico (SIVANANDA, 2000, p.7). Mais de dois milênios atrás, Patanjali deu-se conta da importância do cérebro. Ele descreveu a parte frontal como o cérebro analítico, a posterior como o cérebro do raciocínio, a inferior com a sede do estado de graça (o que, a propósito, corresponde às descobertas da ciência médica moderna, segundo a qual o hipotálamo, situado na base do encéfalo, é o centro do prazer e da dor), e a parte superior como o cérebro criativo ou sede da consciência, a nascente do ser, do ego ou do orgulho, o berço da individualidade (IYENGAR, 2001, p.174). Por meio (...) das posturas do Yoga, podemos ajudar a suprimir e aliviar a congestão dos nervos ou das vértebras (nadis), facilitando assim o livre fluxo da energia vital (prana) (YOGANANDA, 2008, p.43).
O iogue, segundo Yogananda (2009):
(...) faz circular mentalmente sua energia vital [prana] (por meio das técnicas físicas, kriyas, ásanas, mudras e pranayamas), em direção ascendente e descendente, ao redor dos seis centros da coluna vertebral [chackras] (plexos medular, cervical, dorsal, lombar, sacral e coccígeo)” (p.248).
Percebe-se as aproximações que as escrituras ioguicas modernas se esforçam
em estabelecer com a fisiologia biomédica ocidental. De certa forma, estes adquirem
aspectos milenaristas e têm ultrapassado as simples analogias anatômicas. Há,
portanto, uma esperança (e fé) de que a ciência “comprove” os benefícios do ioga
como caminho espiritual. Mais do que isso, que a ciência alie-se ao ioga –
demonstrando a eficácia de suas práticas espirituais – no combate ao Mal/klesa. Com
isso em mente, o Mal/klesa não pode continuar centrado em condutas éticas pautadas
por brâmanes indianos do séc.II a.C.; o Mal/klesa precisa também ser ressignificado.
Se, como já sabemos, os klesas impedem o acesso a kaivalya pois produzem “agitação
mental”, é necessário que o sistema nervoso autônomo, responsável por induzir
involuntariamente – desse modo, por forças que não cabe a nenhum indivíduo
controlar – o indesejável movimento mental, estar associado a forças e localizações de
uma anatomia transcendente. O respirar e o prana agora serão associados como
mediadores dos mundos material e espiritual. Assim, as posturas e os respiratórios do
52
ioga adquirem agora os responsáveis por conduzir, durante as práticas corporais, seus
praticantes, igualmente, a um espaço transitório de acesso ao espiritual.
2.1.2. A ciência legitima o discurso religioso do ioga
No plano fisiológico, pingala corresponde ao sistema nervoso simpático; ida, ao parassimpático; e susumna, ao sistema nervoso central. A frieza atribuída a ida [pois, corresponde dentro da representação simbólica da fisiologia do HI medieval como chandra-nadi, ou “canal da lua; e pingala como surya-nadi, ou “canal do sol”] no HIP é explicada, pela ciência moderna, em virtude de sua ligação com o hipotálamo, situado na base do cérebro, e que é o centro responsável pela manutenção da temperatura estável do corpo. Assim, o hipotálamo é o plexo lunar, do qual desce ida, assim como pingala ascende de sua base no plexo solar. Susumna corresponde ao sistema nervoso central, e essa energia divina, produzida pela fusão de ida e pingala, é vista como energia elétrica (kundalini [nota autor]), segundo a fisiologia. Susumna existe em todas as partes do corpo e não apenas na espinha, porque o sistema nervoso central age em todo o organismo (IYENGAR, 2001, p.188-190).
O pranayama está na fronteira entre os mundos material e espiritual, e o [músculo do] diafragma é o ponto de encontro dos planos fisiológico e espiritual do seu corpo. Lembre que kumbhaka não é segurar o fôlego; é reter energia [prana] (Ibid., p.186).
Kuvalayananda (2008), nos seus comentários, faz extensas exposições
fisiológico-anatômicas precisas e condizentes com o pensamento da ciência ocidental,
e desfere duras críticas aos seus companheiros de fé que descrevem a fisiologia
espiritual das práticas ioguicas como “crenças populares”, pois não estão pautadas,
segundo ele, em pesquisas laboratoriais sob a perspectiva da lógica ocidental, como
ele o faz (p.104 em notas). No entanto, frequentemente e ao longo de seus principais
livros (Asana e Pranayamas), não deixa de salientar o “valor espiritual” do ásana e
do pranayama. Essa ambivalência (CRUZ, 2008, p.13) 22 acompanha os iogues
modernos e, o que pode parecer uma contradição, se revelará adiante, uma posição
ideológica de legitimação importante ao microuniverso religioso do ioga que vem se
configurando contemporaneamente. Os iogues modernos lutam por desvencilhar-se da
magia hinduísta medieval, mas esse desencantamento se revelará na substituição por
novas crenças igualmente mágicas, mas fundamentadas numa nova proposta de
22 Ver uma discussão aprofundada sobre a “dupla face” da realidade.
53
salvação/libertação estabelecida entre a dialética saúde-Bem-equilíbrio-Kaivalya e
doença-Mal-desequilíbrio-klesa.
[Paschimatana é executado quando] Sentado, o estudante mantêm as pernas esticadas e unidas. Inclina então o tronco um pouco para a frente, forma um gancho com os dedos indicadores e segura com eles os grandes artelhos com os dedos assegura não só o completo relaxamento, como também um completo estiramento dos músculos posteriores das pernas (Ibid., p.120). A Paschimatana é considerada de grande valor espiritual. São conhecidos casos em que sua prática por cultores espiritualistas permitiu que o praticante ouvisse o Anahata Dhvani, isto é, o som sutil. O tempo de permanência na Paschimatana deve ser criteriosamente regulado. Quando continuado por muito tempo, causará prisão de ventre. Para finalidades espirituais, entretanto, esta Asana deverá ser praticada diariamente por mais de uma hora (Ibid., p.122).
Como exemplo, selecionou-se do seu livro Asanas alguns trechos que
esclarecem a ambivalência originada pelas pesquisas fisiológicas empíricas ocidentais
que se querem mostrar, sobre o uddiyana bandha e paschimotanasana (ou
paschimatana). Percebe-se claramente que os ásanas possuem a capacidade de
induzir ao relaxamento e liberar o aprisionamento de prana, ao mesmo tempo que
essa falha no fluxo energético prânico possui extensões terapêuticas, como a prisão de
ventre. Se a agitação da mente é fruto agora da manifestação física dos klesas, as
práticas corporais do ioga (fundadas em posturas, respiratórios e meditação) resultam
em um profundo relaxamento documentado pela ciência da fisiologia biomédica. O
kaivalya deve estar em algum ponto advindo do relaxamento psicofísico, um estado
no qual os klesas cessem definitivamente de atuar e o equilíbrio de purusa manifeste-
se.
Em Asanas, por exemplo, Kuvalayananda (2005) dedica um capítulo inteiro ao
“Estudo científico das posturas yóguicas” (p.147-164), dividindo os ásanas em
“Meditativos” e “Culturais”. O objetivo das posturas Culturais é puramente orgânico,
segundo o autor. Kuvalayananda descreve toda a sua formação em pesquisas
empíricas da fisiologia ocidental aplicada a investigar e propalar os benefícios
terapêuticos, em particular do fortalecimento e alongamento da coluna vertebral,
assim como as posições anatômicas e as inserções articulares e os principais grupos
musculares envolvidos. No aspecto Meditativo dos ásanas, o alvo é estabelecer-se
numa postura confortável para a execução dos pranayamas e dos estados
54
contemplativos do ioga, respeitando toda a tradição antiga ioguica desde Patanjali. No
entanto, entre as narrações altamente versadas sobre a ciência biomédica e as suas
observações, surgem demonstrações pautadas em uma fisiologia transfisiológica e não
na fisiologia científica. Por exemplo, após descrever que os ásanas Culturais têm por
objetivo fortalecer a coluna, influenciar as áreas cerebrais e produzir “o mais alto
vigor orgânico para todo o corpo”, esclarece que isto deve ocorrer para que ambas
“possam suportar a interação da força espiritual do kundalini, quando a mesma for
despertada pelas práticas yoguicas adiantadas” (Ibid., p.147)23.
Esse aumento do suprimento sanguíneo e o consequente fortalecimento dos nervos é responsável até certo ponto pelo despertar de Kundalini (KUVALAYANANDA, 2005, p.162). Isso não significa que os ateus não possam praticar as posturas yoguicas. Queremos dizer, portanto, sendo todos os outros fatores iguais (doutrina e fé), um genuíno “teísta” poderá praticar os asanas com maiores vantagens que um ateu (KUVALAYANANDA, 2005, p.50 em notas).
Essa dialética, entre o que é ciência e o que faz parte da espiritualidade
ioguica, conduziu os iogues modernos a uma situação singular, pois mesmo a
fisiologia científica não explicando, por si só, a fisiologia transfisiológica dos nadis,
da kundalini e dos chackras, eles (os iogues) não deixaram de associar as suas
escrituras religiosas da profana e secularizante ciência. Mas por que arriscaram-se a
desencantar a sua religiosidade e transformar seus rituais corporais de transcendência
numa simples terapêutica a serviço exclusivamente da biomedicina ocidental
(ALTER, 2004, p.76)? A resposta é simples: proselitismo religioso e fé. Os iogues
modernos acreditam em suas práticas corporais como transformadoras de indivíduos,
e se fortalecem ainda mais quando respaldados pelos resultados positivos que a
ciência biomédica revela sobre as suas práticas e terapia de doenças.
O ambicioso objetivo de Swami Kuvalayananda, (...) era alcançar uma reconstrução espiritual da sociedade em escala mundial. (...) Estes experimentos [científicos empíricos] o convenceram de que a antiga ciência do Yoga, abordada pelos métodos experimentais da ciência moderna, poderia ajudar a humanidade a revivescer física e espiritualmente. Esta se tornou a missão de sua vida (KUVALAYANANDA, 2008, p.2-3).
23 Grifo meu.
55
O ioga moderno, conclui Strauss (2008), parece ter causado uma reorientação
fundamental baseada numa “nova teoria para uma antiga prática”, convidando a sua
comunidade a exercer a sua religiosidade ao lado também dos avanços da ciência,
sobretudo da fisiologia biomédica empírica (p.49-74). A secularização trazida pelo
contato com a ciência associada à privatização religiosa presente nas sociedades
ocidentais originou reformas profundas na disputa, produção e manutenção dos bens
de salvação e soteriologia do ioga na modernidade. Por isso, o ioga pode não estar
mais sendo acolhido pelo hinduísmo e nem por nenhuma outra espiritualidade que lhe
dê legitimidade de discurso (JAIN, 2014, p.130-157), não porque não tenha
legitimidade espiritual, mas porque talvez esteja se configurando como um novo
movimento religioso.
O discurso ioguico vai se pautando na ciência da fisiologia biomédica, não
apenas para erigir um “novo discurso coerente” e desmistificado, mas talvez,
igualmente como os iogues medievais o fizeram em seu tempo, para reformular a
sociedade urbana ocidental de sistema capitalista de consumo e economia neoliberal
em que foram transplantados. O Mal/klesa, samadhi e kaivalya podem estar
modificados agora, pois o alvo não está mais apontado para o alto clero indiano que
mantinham rígidos princípios éticos e uma sociedade em castas sem mobilidade social
(LIBERMAN, 2008, p.100-115). O ioga moderno podem estar se desvinculando dos
seus antigos laços hinduístas e erigindo novos contornos espirituais. Alguns autores
inclusive já o identificam como uma nova prática religiosa do corpo (JAIN, 2014,
p.95-129), uma religião mística (NEWCOMBE, 2004) e/ou uma religião secular com
rituais de cura (DeMICHELIS, 2004, p.248-260).
2.2 - Teoria dos klesas corporificada: sinônimo de estresse e emoções
Iyengar, um dos iogues modernos mais influentes nas sociedades ocidentais,
descreve no capítulo Bem-Aventurança: O corpo divino, do seu livro Luz na Vida: A
jornada do ioga para a integridade, os klesas com sensíveis transformações. Uma das
primeiras influências que se percebe está em relação ao recurso literário da
comparação com o cristianismo. Iyengar (2006, p.188) se utiliza de uma parábola de
Jesus para explicar o sentido do klesa-mãe, a Ignorância:
56
O Senhor Jesus explica isso bem (a Ignorância). Ele disse que se você construir a sua casa na areia, isso vai ceder. Se você construir ela na rocha, vai ficar firme. Isso significa que a vida precisa ser erigida em uma fundação firme da realidade. Infelizmente, o que parece firme, isto é, as coisas da vida que nos oferecem segurança , riqueza, posses, preconceitos, crenças, privilégio e posição, não são sólidos em tudo. Que remete para quando eu disse que aprender a viver com a incerteza é a grande arte de viver. Jesus também quis dizer que, somente uma vida construída sobre valores espirituais estará baseada firmemente na verdade e vai se manter de pé até aos choques da vida.
Para Iyengar, os klesas são como forças do mal inatas nos seres humanos no
qual as sociedades ocidentais associam ao Demônio, ele diz. O Mal/klesas seria
responsável por causar as “flutuações da consciência”, como já elencamos. Conduzir
a vida baseada na Ignorância, no Medo da morte, no Apego, na Aversão e no Orgulho
é como construir uma casa na areia, compara. E continua, o “demônio no ioga”
(klesa) é alienado ou alienante: “Ele [klesa] é ignorante. Na verdade, ele é a
Ignorância dele mesmo. Para os hindus, o arquinimigo é o estado do não-
conhecimento” (IYENGAR et.al., 2005, p.190).
Para explicar os klesas, Iyengar também se utiliza de comparações corporais
com a saúde e áreas encefálicas específicas. O klesa Medo da morte, por exemplo,
possui existência, acredita, em nível psicobiológico e corresponde aos lobos
posteriores do cérebro pelas mesmas razões que os chackras foram associados às
glândulas e os nadis ao sistema nervoso:
Abhinivesa (medo da morte) é um instintivo apego a vida. Abhinivesa pode facilmente ser experienciado se você prolongar bastante a retenção no fim da exalação. O pânico se instala. Isso é ignorância, ou um equívoco fundamental da Realidade, que sustenta e alimenta todas as outras aflições (IYENGAR et.al., 2005, p.199).
A Ignorância (avidya) e a Falsa identidade de si-mesmo (asmita), possuem
correlação aflitiva na porção encefálica da “inteligência” (Ibid., p.196): “Aqui a falta
do conhecimento espiritual combinado com orgulho ou arrogância inflam o ego,
causando presunção e a perda do senso do eu em harmonia”. O klesa Apego (raga)
produz na mente o desejo, enquanto o klesa Aversão, (dvesa), ódio. Essas klesas,
segundo Iyengar:
57
Produzem uma desarmonia entre o corpo e a mente, nos quais podem originar desordens psicossomáticas. (...) E ambos os klesas, possuem correspondentes cerebrais no hipotálamo (Ibid.).
Iyengar conclui em sua análise moderna aos klesas, que “devemos manter o
nosso corpo tão saudável quanto possível no caminho espiritual”, pois na doença nós
esquecemos nossos corpos e os klesas, constantemente modificados pelos estímulos
externos, causam flutuações em nossos ciclos respiratórios e consciências – portanto,
ao fluxo prânico, como vimos na subseção anterior - corrompendo nossas vidas e
viciando nossas melhores intenções.
O que sublinhei em suas duas citações anteriores (harmonia e desarmonia) é
crucial para o nosso entendimento da reforma em andamento, pois Iyengar segue o
mesmo caminho que descrevemos no início deste capítulo, de associar os antigos
conceitos transfisiológicos do ioga com os da fisiologia biomédica, no entanto, com
relação aos klesas, não ocorre uma simples ressignificação, mas uma verdadeira
reforma em como percebê-los, senti-los e combate-los. Os klesas como Mal para
Iyengar, por “agitar a consciência”, influi na harmonia do(s) nosso(s) corpo(s) através
do bloqueio de prana pelo mal funcionamento (fisiologia, lit. estudo do
funcionamento do corpo) dos chackras (agora, glândulas e plexos com influência no
sistema nervoso autônomo, como vimos). Em última instância, kaivalya relaciona-se
de alguma forma com a harmonia perene do corpo fisiológico, pois com o diálogo
saúde-salvação estabelecido, as doenças nos afastam de kaivalya para Iyengar.
Com a corporificação do klesa e a medicalização do ioga - em menor valor
com a ayurveda e com maior intensidade com a biomedicina ocidental -, percebe-se,
como argumentaremos no quarto capítulo, uma preocupação em observar as reações
psicofísicas com a perda de certa harmonia fisiológica perene inata aos seres
humanos, acreditam os iogues, que associarei ao estado de kaivalya, a libertação final
do sofrimento. Mais do que observância nos comportamentos éticos contidos, por
exemplo, nos yamas e niyamas (os dois primeiros passos do AI, a proposta antiga de
Patanjali para um iogue se safar do sofrimento advindo do ciclo de samsara ou
reencarnações), a questão se privatiza e é transferida para a prática corporal
propriamente dita.
58
Ao que tudo indica, as práticas corporais do ioga, estariam voltadas como
rituais “purificadoras” das forças maléficas dos klesas, ao mesmo tempo que
solidificariam a vida ioguica na “rocha da verdade”, parafraseando Iyengar em sua
analogia dos klesas com a parábola de Jesus. Há inclusive um dos métodos/tradições
de ioga mais populares no mundo, o Asthanga Vinyasa Yoga, que se destaca por suas
rígidas séries de posturas combinadas com respiratório (ujjay), contrações musculares
específicas (bandhas) e saltos (os vinyasas), aonde o objetivo está literalmente – e
fisiologicamente - elevar o calor físico, para assim “eliminar substâncias nocivas ao
corpo” através de tapas. A orientação é praticar com janelas e portas fechadas para
suar ou produzir tapas como purificador. A expressão tapas, lit. significa austeridade,
mas como deriva da palavra tap, pode exprimir “fornecer calor” ou ainda “fazer-se
quente” (SMITH, 2008, p.143-150).
Tapas provê ao devoto um “calor na cabeça” [head heat], transformando-o em um vidente. De um modo semelhante, o esforço da prática ascética acende o “fogo interior” [inner fire] da iluminação, em uma visão de êxtase. Como o rsis [místicos hindus que escreveram os textos religiosos do hinduísmo], o asceta, através de tapas, é capaz de “ver”. Neste contexto, tapas adquire a forma de um “meditar cognitivo” [cognitive brooding], ou “intensa meditação”. O poder aqui empregado para tapas é claramente de “poder contemplativo” (KAEBLER, 1989, p.145-146)
Com o calor corporal gerado pela prática ioguica, o praticante pode alcançar a
iluminação e ser capaz de “ver” como os antigos místicos hindus. Em outras palavras,
para o ioga moderno, desde os hatha-iogues, o corpo vem adquirindo caráter não só
de “templo divino”, mas de referência de caminho espiritual e determinante no
alcance a kaivalya ou o estado permanente de equilíbrio. Outro ponto são as práticas
corporais do ioga como rituais de cura, como já apontou DeMichelis e descreveremos
melhor no quinto capítulo. Desse modo, o samadhi, como vivência transitória do
cessar do citta-vrttis (ou agitação mental), torna-se não somente de “cura de doenças”,
mas principalmente da eliminação do Mal/klesas como resultado das suas práticas de
corpo. Com a materialização dos klesas, os valores espirituais do ioga se desprendem
das crenças metafísicas das suas antigas escrituras, transformando a saúde em
referência do Bem e a doença, sinônimo do Mal, portanto, dos klesas.
Em outro artigo mais sofisticado, a filósofa da religião Anindita Balsev
aproxima os klesas aos conceitos da emoção. A sua análise nos permite compreender
como a noção dos klesas, samadhi e kaivalya podem estar atualmente atrelando a
59
soteriologia do ioga ao corpo, aonde, como expusemos acima, suas práticas se
transformaram em rituais de cura e purificação.
A autora inicia nos lembrando que um dos comentaristas mais famosos e
citados do IS, Vyasa, revela que o objetivo do ioga é diminuir as agitações da mente,
no entanto, ele diz: “O rio chamado mente flui em duas direções” (BALSEV, 1991). E
Balsev nos explica:
A imagem das “duas direções” transformam o fluxo da vida mental... As duas direções são primeiro caracterizadas como fluindo em direção ao bom e através do mal (vahati kalyaanaaya vahati papaayaca), pelos quais expressam primariamente uma consideração ética. (...) fluir em direção a discriminação (viveka) e isolamento/salvação (kaivalya) é bom, enquanto o que nos prende na existência neste mundo (samsara) é o mal, claramente indicando uma proposta soteriológica. (...) Esta metáfora da mente como um rio em duas direções, porém, adquire um significado técnico no Yoga-Sutras introduzindo uma divisão dos estados da mente, classificando-as em dois grupos: klista [ou klesa/dor/Mal] e aklista-vrtti [não-klesa-vrtti/não-sofrimento].
Em outras palavras, Balsev argumenta que a palavra klesa é usada sempre
como sinônimo de dukha ou sofrimento, mas que não é meramente o oposto de sukha
ou prazer. O significado de klesa é uma oposição à busca salvacionista/libertadora em
direção ao rompimento do ciclo de samsara ou renascimentos, o que significa se
apropriar do estado de kaivalya. Teríamos então uma busca por kaivalya não somente
pela atenuação do apego, da aversão, do medo da morte e do orgulho, causados pela
ignorância, mas na igualmente busca dos seus opostos ou aklista-vrtti – o movimento
da mente para longe do sofrimento, de klesa. Por isso, a autora vai buscar os
correspondentes emocionais dos klesas para trabalhar com a ideia que certas emoções
seriam nefastas por nos acorrentar na agitação da mente e, por conseguinte, nos
enredar no ciclo de samsara.
Como os klesas aparecem, pergunta Balsev. Os IS afirmam ser o klesa-
Ignorância, a mãe de todos os outros klesas. Desse modo, a filósofa argumenta que a
aversão adviria das sementes da dor e a falsa cognição que certos objetos da mente,
associados a dor, causariam sempre sofrimento, por isso nos manteríamos afastados,
em aversão a eles. Assim, objetos mentais denominados de klesa-Aversão estariam
associados aos sentimentos de retaliação, de malícia, da vingança e do ódio, centros,
60
portanto, dos klesas Apego e Aversão, aonde o desejo e o prazer seriam os núcleos
emocionais destes.
Para a autora, o klesa Medo da morte, incidiria do temor angustiante dos seres
humanos em saber que vão morrer mas não quando. O klesa-Senso do Eu ou Orgulho,
estaria no erro de julgamento, segundo a autora, da base intelectiva para os três erros
de julgamento anteriores, pois tanto o desejo, quanto ódio ou o medo estariam
centrados em nosso ego individual que não percebe ainda que somos purusa, o ser
Imaculado e em equilíbrio e harmonia eternos (sattva), por isso associa o klesa-
Orgulho ao sentimento do egoísmo.
Estas quatro aflições, comenta Balsev, não estão sempre presentes em suas
formas totalmente manifestas. Em tom psicanalítico, continua, a descrição dos klesas
encontradas no IS 2:4, descrevem-nos de forma dormentes (prasupra), atenuados
(tanu), interceptados (vicchinna) e manifestos plenamente (udaara). Este é, de fato,
um aspecto significativo da análise dos klesas no ioga em conexão com a perspectiva
transcultural do estudo da emoção que a filósofa conduz em sua argumentação:
A mente, como o Yoga o vê, é naturalmente atraído em direção a samsara. A mente é cativa dos Klesas. Suas modificações incessantes estão, em grande parte, ligados a isso. Egoísmo, desejo, ódio e medo dominam a vida mental, mal dando-lhe uma chance para discriminar a si mesmo. Assim, falhando por causa da ignorância em descobrir a sua fundação não intencional (o purusa) carrega a ideia errônea sobre a natureza do eu: raiz do do Klesa asmita [ignorância]. Este, por sua vez, envolve-se mais com as polaridades que são características do redemoinho de existência que é samsara. Virtude e vício, prazer e dor, e apego e aversão são os seis raios da roda de samsara [ou ciclo de renascimentos]. Transcendendo o papel psicológico e ético da vida mental, a descrição soteriológica emerge. A vida mental é percebida não apenas como uma teia de estados coloridos com aflições; estes são interceptados por aqueles que se opõem a esta tendência. Para usar o imaginário do Yoga, estes aklista vrttis (movimento da mente não causador do sofrimento) produzem brechas que podem orientar para o conhecimento discriminativo (viveka) e para a salvação [kaivalya].
Em resumo, pode-se pensar que há emoções que deveriam ser cultivadas para
ajudar diretamente na criação de um estado de espírito apropriado, portanto, útil para
a prática de ioga. Seriam estas emoções que, gradualmente e eventualmente,
“purgariam” a mente de suas impurezas. Dispondo os klesas como emoções, Balsev
argumenta, a partir da sua interpretação do IS, que não seriam meramente
consequência de uma ação, mas os principais responsáveis (motivação) pelas ações
humanas, uma espécie de aspecto natural dos seres humanos ainda enredados na
61
ilusão ou alienação da vida espiritual (maya). Os klesas não teriam, desta forma,
valores morais ou imorais, racionais ou irracionais, mas ativamente propulsores de
ações e responsáveis pela permanência dos homens e mulheres em samsara. Balsev
esclarece que a mente, no ioga, seria espontaneamente cativa dos klesas. Purusa ou
alma, que é imaculada e perene, ou seja, não contaminada por prakrti ou
corpo/emoções, é o objetivo do ioga. Kaivalya, então, seria o retorno da nossa
consciência, livre das perturbações emocionais dos klesas (egoísmo, desejo, ódio e
medo), ao estado de equilíbrio eterno de purusa ou alma. Sendo a Ignorância, a matriz
dos klesas, a busca espiritual ioguica é conhecer a verdade que está por trás das
perturbações mentais advindas dos klesas (BALSEV, 1991).
Outro ponto ressaltado pela autora está não somente na pura e simples “cessar
da mente”, mas do cessar do fluir da mente presa na “direção” das emoções atreladas
aos klesas. Assim, as práticas do ioga devem conduzir o devoto a cessar a influência
dos klesas, mas correr em direção ao fluxo das emoções opostas aos klesas, ou seja,
do apego-desejo, aversão-ódio, medo da morte ao medo como “resposta biológica” e
orgulho-egoísmo. Em suma, da fuga do mal em busca do bem. As práticas de ioga
seriam então rituais de cura também dessas emoções deletérias para a proposta da
vida ioguica que vale a pena ser vivida.
A partir dessa análise e das colocações de Iyengar anteriormente, que
associam os klesas com enfermidade, a prática corporal moderna do ioga parece se
tornar um ritual exorcista das emoções do medo, do ódio, do desejo e do egoísmo que,
por sua vez, possuiriam extensões negativas ao fluir de prana pelos chackras e a
elevação consequente, dos níveis de estresse, fruto de tensões musculares. Mas qual a
relação sendo estabelecida entre essas emoções/klesas apresentadas por Balsev, com a
manifestação de doenças psicofísicas?
2.3 - Klesa e estresse
Nas ciências da religião, pesquisas revelam a ocorrência do entrelaçamento
entre doença-sagrado, medicina-religião e cura-salvação em diversas religiões
(FULLER, 2008, p.131-152; LAPLANTINE, 2011, p.213-252). A cientista Sarah
Strauss corrobora essas aproximações com o ioga moderno nos esclarecendo que no
62
ioga moderno a doença seria uma espécie de sintoma a um sentir-se mal, angústia ou
dor incorporada (STRAUSS, 2008), talvez um mal-estar. Dessa forma, é legítimo
explorar o provável diálogo estabelecido modernamente entre as noções da
experiência do mal/angústia/dor e de certas emoções nefastas, como o fez Balsev,
e/ou conceito de estresse, originado na obstrução prânica devido aos bloqueios
psicofísicos descritos por Iyengar e todos os líderes do ioga que citamos.
Segundo R.T. Rao, mas corroborado por outros pesquisadores, os klesas
poderiam hoje estabelecer correspondência ao agente estressor ou estresse
propriamente dito; e dukha (lit.dor), à experiência dolorosa ou o próprio sofrimento
espiritual advindo dos nocivos comportamentos dos klesas. O asthanga ioga (AI) - os
oito princípios espirituais do ioga clássico 24 - por sua vez, poderia estar sendo
versado, dentro da comunidade ioguica atual, como as técnicas para dominar e
eliminar tanto as emoções-klesa quanto o estresse originado por essa dialética do mal
(BHAVANANI, 2007; RAO, 2012).
Essas observações - considerar o estresse como sinônimo de klesa ou resultado
de certas emoções -, por outro lado, nos faz concluir equivocadamente que toda a
manifestação fisiológica do estresse seria nefasta para a vida humana ou produtora do
desejo, do ódio, do medo ou egoísmo – e ainda considerar essas emoções sempre
como moralmente condenáveis para a vida humana; o que é uma inverdade, ao menos
não-científica por ser irrefutável. Todavia o estresse especificamente, na perspectiva
estrita da biologia, nunca foi compreendido assim. O estresse como sinônimo só de
doença é uma noção popularizada sem o devido respaldo da ciência e, talvez
incorporada de alguma forma ao complexo sistema de crenças do ioga moderno.
Os klesas até o surgir da modernidade sempre foi sinônimo de cinco aflições
espirituais responsáveis por perpetuar o estado de servidão ou sofrimento humano em
samsara (SCHONFELD, 2010). Assim, é plausível pensar nos comportamentos dos
klesas adquirindo outras conotações se estabelecendo a resposta biológica do estresse,
de emoções nefastas, bloqueios energéticos sutis, contrações neuromusculares
crônicas e manifestações de doença. Por força, talvez, da agitação das grandes cidades
urbanas, local este aonde o ioga moderno se populariza, o estresse pode estar sendo
24 Yamas, Niyamas, Asanas, Pranayamas, Prathyahara, Dharana, Dhyana e Samadhi.
63
associado como grande causador das moléstias do mundo, por isso, fonte das nefastas
emoções de ódio, egoísmo, desejo e medo. Mas, o estresse causador de doenças é uma
construção moderna e não nasce da fisiologia biomédica, mas de construções
contemporâneas do senso-comum.
2.3.1 - Estresse biológico
Em 1916, o fisiologista norte-americano Walter Cannon apresenta pela
primeira vez o termo estresse num artigo publicado na revista Nature, no intento de
elucidar uma resposta fisiológica natural de emergência dos seres vivos, contida na
sua hoje clássica, teoria de luta-ou-fuga (CANNON, 1927). Em 1932, o mesmo autor
denomina de homeostase (homeo stasis ou estado de equilíbrio) a capacidade do
organismo em preservar um conjunto de mecanismos regulatórios que mantém a
constituição do seu meio interno dentro de limites adequados para a sua sobrevivência
que pode ser rompido em situações estressantes, como hipoglicemia, um leão
correndo para nos atacar ou uma fatura vencida por dificuldade financeira.
Assim, o conceito de homeostase é um estado psicofísico ideal, nunca
alcançável, pois nosso organismo está a todo instante numa luta intensa de busca pelo
equilíbrio dinâmico de suas forças, estado este (homeostase) só alcançado
definitivamente na morte. Quando acordamos por exemplo, depois de oito horas de
sono, nossos níveis de glicose estão baixíssimos – o que denominamos de
hipoglicemia, por isso, em desajuste fisiológico e longe dos níveis ideais de
homeostase. A hipoglicemia aciona o nosso eixo-do-estresse e mecanismos
fisiológicos regulatórios inatos entram em ação. Nesse momento, até tomarmos nosso
desjejum, a fisiologia humana busca mecanismos compensatórios ao agente estressor
hipoglicemia. Em outras palavras, de restituir o estado fisiológico ideal e utópico de
“harmonia” ou homeostase. No estado estressante hipoglicêmico, o pâncreas inibe a
secreção do hormônio insulina (responsável por transportar a glicose do sangue para
as células) e aciona o seu antagonista, o hormônio glucagon. O glucagon secretado
pelo pâncreas, por sua vez, vai direto ao fígado degradar o glicogênio estocado e
ofertá-lo na forma de glicose (a menor parte molecular do glicogênio). Quando esse
processo atinge níveis satisfatórios de glicose circulante no sangue, quimioreceptores
64
de glicose informam ao sistema nervoso central que inibe o glucagon e aciona
novamente o hormônio insulina a entrar em ação e transportar essa glicose para as
células e reestabelecer a homeostase desse sistema. Mas o processo continua, pois no
desjejum os sistemas digestórios são acionados e, após alimentar-se, o fígado
precisará processar as gorduras e carboidratos excedentes na forma de glicogênio no
fígado, aguardando um novo momento de hipoglicemia. Em suma, apesar de
exaustiva a descrição, o que saliento é a presença constante do estresse/Mal e da
homeostase/Bem atuando no teatro do corpo, no qual os iogues transplantaram – não
somente como metáfora, como vimos até então – da linguagem neutra da fisiologia
biomédica da ciência para a simbologia da sua fisiologia religiosa, sutil ou metafísica.
É lícito supor, que o klesa como estresse ou emoções específicas, é uma narrativa
religiosa moderna do ioga.
Hans Seyle em 1936, concordou com Cannon, mas ampliou a concepção de
estresse classificando-a em três fases distintas: 1) Alarme: quando o organismo reage
instintivamente a um agente estressor qualquer na resposta de luta-fuga e rompe a sua
homeostase, esse equilíbrio dinâmico do organismo; 2) Adaptativa: manifesta no
momento em que organismo gera uma resposta satisfatória e “equilibra” novamente
seu estado homeostático; e 3) Crônica: um estado em que a resposta fisiológica ao
agente estressor não é suficiente ao organismo retomar seu estado homeostático
normal. Segundo Seyle e Cannon, mas ainda válido na atual fisiologia, seria somente
na terceira fase (a crônica) em que o estresse, como resposta orgânica natural, poderia
refletir negativamente sobre a saúde do organismo e, inclusive desenvolver respostas
emocionais negativas a saúde do indivíduo, como o medo, a raiva, a fome e a dor (ver
CANNON, 1927; SEYLE, 1976), impossíveis de não serem associadas pela
interpretação de Balsev. Walter Cannon, logo, assim como os iogues, também
associou emoções com a manifestação do estresse. Os iogues modernos podem estar
ajustando a causa do mal de sua soteriologia, ou seja, os klesas, a doenças associadas
ao estresse como ansiedade e a depressão, frutos agora, do ódio, do desejo, do medo e
do egoísmo (PINEL, 2005, p.459-465; ver SAPOLSKY, 2008).
Assim, enquanto o estresse biológico é um estado fisiológico normal e neutro
na fisiologia humana, na sua maioria benéfico para a manutenção da vida, como
quando nos prepara para um jogging ou enfrentar uma banca de defesa de doutorado;
65
é somente em situações extenuantes e persistentes, desvantajoso à saúde. O estresse
ioguico, por outro lado, revelado por R.T. Rao e Bhavanani como sinônimo de klesa,
assim como os klesas-emoções negativas de Balsev, fica evidente se tratar de uma
nova concepção criada no seio da religiosidade ioguica moderna. Há, logo, um hiato
entre o que iogues e biólogos compreendem sobre a noção de estresse e emoções.
Além disso, os iogues tendem a associar as manifestações psicofisiológicas de
estresse e das emoções sem perder de vista as suas antigas crenças em corpos
metafísicos e energias transfisiológicas como o demonstrei na subseção anterior
(BHAVANANI, 2007, p.30-40), algo inadmissível no meio acadêmico.
Dois fatos interligados podem esclarecer melhor a contenda que busco expor
entre o cenário aparentemente sereno que envolve o ioga e a ciência. A primeira diz
respeito à resposta psicofisiológica de relaxamento que a ciência propala como
resultado empírico dos ritos corporais ioguicos modernos, portanto, uma resposta
“cientificamente” antagônica ao do estresse biológico, mas de estreita relação com a
ideia de homeostase revelada anteriormente. E a segunda, reside na permanência da
crença em energias tranfisiológicas, sobretudo prana, entre os iogues modernos
(FULLER, 2008, p.133-150; SAMUEL & JOHNSTON, 2013). O relaxamento,
resultado inequívoco das práticas ioguicas, pois legitimado pela fisiologia ocidental, e
a crença em energias transfisiológicas são peças chaves na elucidação da questão
klesa-estresse-emoção-ignorância e kaivalya-homeostase-conhecimento.
2.3.2 - Relaxamento
Walter Cannon alertava, ainda 1919, sobre as consequências fisiológicas que
sofremos sob estresse, mesmo que em estado natural de sobrevivência, não se
tratando de estresse crônico. Ainda assim, o processo digestivo, por exemplo, sofreria
forte influência quando - ainda que mentalmente, e não apenas de forma ambiental –
manifestamos certas emoções inatas. Isso diz que, quando com raiva, medo, fome e
dor, nosso corpo reage também com a mesma resposta fisiológica do estresse, pois
representam para o organismo, por milhares de anos de evolução humana, essas
emoções foram associadas ao perigo da morte (CANNON, 1927).
Neil Jacobson, em 1932 compilava em seus livros títulos imperativos como
66
You Must Relax: Practical Methods for Reducing the Tensions of Modern Living,
aonde alertava sobre a necessidade do momento de relaxamento para as tensões
ocasionadas pela vida moderna. Eles construiu teorias importantes sobre os “Nervos
da Guerra”, por exemplo, devido a sua preocupação como medo que assombrava na
época, ou o excesso de estresse sofrido por aqueles que passavam horas trabalhando
em hospitais de guerra e cuidando de soldados feridos (JACOBSON, 1934).
Para Petho Sandor, médico húngaro que desenvolve o método terapêutico do
toque sutil e leciona na Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Sandor percebeu enquanto tocava partes do corpo durante o atendimento em feridos
da segunda grande guerra, uma benéfica resposta ao relaxamento. Assim, desenvolveu
seu método psicoanalítico aonde o relaxamento ocupa uma posição de destaque em
suas obras de psicologia. Ele analisa as comutações dos processos fisiológicos
associados ao relaxamento: suas autoregulações psicofisiológicas, aquisição e
manutenção de memórias, mas sobretudo, em como os processos de relaxamento
atuam sobre a afetividade humana. O resultado clínico, segundo o autor, além do
descanso em nível fisiológico de equilíbrio orgânico, atinge processos inconscientes
que auxiliam na introspecção dos pacientes a reproduzir de forma construtiva antigas
vivências, emoções e sentimentos, promovendo assim, novas coordenações e
estruturações psicobiológicas (SANDOR, 1974).
O método de Sandor pretende pelo relaxamento progressive conduzir o
paciente a experimentar “um outro modo de relacionamento consigo mesmo, e com o
mundo circundante, e a enfrentar as tensões que lhe eram pouco conscientes” (Ibid.,
p.13). Por influência das couraças neuromusculares do caráter de W.Reich e da
“energia psíquica” de G.Jung – dentre outros -, o autor visa pelo relaxamento, o
paciente voltar a viver e a experimentar as situações que o angustiam, para que assim,
“seja expectador de suas próprias vivências internas desatando ao mesmo tempo
certas inibições, principalmente corticais, que podem se manifestar como crítica,
ceticismo e intelectualização exagerada.” (Ibid.). Através das sessões
psicoterapeuticas de relaxamento de Sandor, ele analisa as narrativas dos pacientes
“nestes estados oníricos” conduzidos por ele, percebe que o contato dos pacientes,
durante esses estados, possibilita a eles tomarem decisões assertivas em suas vidas,
como comentado abaixo:
67
Vimos através da exposição [comentada extensivamente por Sandor em seu livro com pormenores cada conteúdo inconsciente resgatado durante as suas sessões de relaxamento], como [a paciente] entrou em uma longa e ininterrupta série de mutações e como no processo de liberação vem adquirindo a função diretora [da sua vida]. Transfere para si a responsabilidade de auto-direção, e notamos que assumindo-a, está ampliando sua consciência. Assim tornam-se conscientes os conteúdos em virtude da apropriação, assimilação, transformação dos elementos até então inconscientes. Isto significa um aumento e extensão do nível de integração, organização e utilização sempre mais produtiva, do próprio dinamismo psíquico (Ibid., p.18).
Assim como o ioga no Brasil o fará modernamente, o relaxamento aqui ganha
contornos de uma técnica psicoterapêutica de acesso ao inconsciente e de um
“processo de liberação” e com o poder de “ampliar a consciência”. Se Sandor se apoia
no ioga ou ao contrário não temos como saber, mas que o relaxamento conquista um
sentido de “integrar, organizar e utilizar” o conteúdo inconsciente reprimido para
ganho de maior “dinamismo psíquico”, não há dúvidas. E serão esses atributos que,
somados a corporificação e medicalização do ioga, transformarão o relaxamento em
parte indissociável e importante no processo que acompanha qualquer prática de ioga
brasileira. Não será coincidência que o relaxamento fará parte de todos os discursos
de iogues e cientistas brasileiros.
A partir da década de trinta, como vimos, publicações de divulgação científica
em fisiologia e biomedicina preocupam-se sobre como atenuar as angústias advindas
do terror da segunda guerra mundial e das atribulações cada vez maiores dos
trabalhadores dos centros urbanos que, a partir da revolução industrial, mas sobretudo
no intuito de reconstruir a vida do estresse da violência humana alcançam
popularidade entre os meios alternativos das sociedades ocidentais25 desejosos de
transformação social. Com isso, a ciência fez a sua parte elevando o caráter benéfico
do relaxamento, particularmente sobre os primeiros achados com meditadores e a
elevação das ondas eletroencefálicas alfa, sabidamente associadas com profundos
estados de relaxamento, portanto, associadas a diminuição da pressão sanguínea, dos
batimentos cardíacos e baixa do metabolismo (BENSON, 2000). Com o ioga, mas
também a partir do estudo de novas terapias trazidas como espiritualidades Nova Era,
25 The wisdom of the body: How the human body reacts to disturbance and danger and maintains the stability essential to life de Walter B. Cannon (1932); The Relaxation Response de Herbert Benson (1975); You Must Relaxation: Practical Methods for Reducing the Tensions of Modern Living de Neil Jacobson (1976), e Stress in the health and disease de Hans Seyle (1976).
68
descobre-se meios terapêuticos de baixo custo que poderiam ser estendidos a grandes
populações.
Benson, através dos estudos preliminares de Walter Cannon, Jacobson, Seyle e
Sandor, desenvolve a hipótese que, se nascemos dotados de um eixo do estresse para
lutar ou fugir da raiva, medo, fome e dor, deveríamos também possuir um outro
processo fisiológico antagônico a esse, responsável por reestabelecer o organismo ao
estado de homeostase. A esse estado hipotético, o autor denominou de resposta do
relaxamento, tese esta defendida em seu principal livro The Relaxation Response, com
cursos ministrados na Universidade de Harvard até hoje. Concomitantemente, os
trabalhos de Herbert Benson (ver BENSON, 2000) difundem a prática meditativa e a
do ioga como promotores inequívocos à saúde da resposta do relaxamento,
impulsionando a crença moderna do ioga como terapia de combate ao estresse e suas
correspondentes emocionais por meio de práticas corporais específicas.
No entanto, toda essa fundamentação fisiológica da biomedicina ocidental,
deveria fundamentar a total aniquilação do ioga como proposta soteriológica não
preservá-lo como “caminho espiritual” em sociedades laicas e fundadas pela razão das
ciências empíricas.
2.3.3 - Prana é real
Com a imbricação do ioga com o racionalismo e o empirismo da ciência
moderna, o conceito religioso de prana, ao invés de desencantar-se, se ressignifica e
ganha existência “real” a partir do Mesmerismo de Franz Mesmer e do conceito de
orgone e das couraças neuromusculares do caráter desenvolvidos na psicologia de
W. Reich (SINGLETON, 2005; SAMUEL & JOHNSTON, 2013). O psicólogo da
religião William James ainda no início dos anos de 1900 e Robert Fuller atualmente,
revelam que seria a fé em tal existência metafísica de energia corpórea a responsável
pelo qual, os iogues atuais e os religiosos investigados por James, perceberem as
doenças fundamentadas não na fisiologia apenas, mas em algum tipo de desequilíbrio
energético sutil ou esotérico (JAMES, 1995, p.59-88; FULLER, 2008, p.133; p.143-
144).
Os klesas, originalmente, comportamentos pautados nos ditames hinduístas,
69
atualmente vêm ganhando interpretações corporificadas, como demonstramos e
prana, como energia transfisiológica, exerce papel fundamental na permanência dos
klesas como causa do mal associado ao estresse e emoções nefastas.
Atualmente, as práticas ioguicas permaneceram com o seu caráter de
purificação do corpo aonde o foco está na obtenção, por meio delas, do livre fluir de
prana. Como vimos em outras citações, é fundamental a crença em energias
transfisiológicas por dois motivos: primeiro por permitir aos praticantes de ioga
possam, eles mesmos, perceber a atuação dos klesas/Mal, pois a obstrução dos canais
energéticos no corpo faz com que surja doenças, cansaço e fadiga, causas encarnadas
da atuação nefasta dos klesas. Em segundo, mantendo a crença em prana, retira do
saber científico qualquer possibilidade de secularizar o ioga. Em outras palavras,
sendo o prana real sob o ponto de vista da fisiologia religiosa do ioga, reserva apenas
aos líderes ioguicos a manipulação de sua força mágica na eliminação do sofrimento
humano. Os cientistas podem investigar as repercussões fisiológicas da sua
biomedicina, mas da cura dos klesas, apenas aos iogues se mantém esse poder.
Essa corporificação, seja como manifestação de doença ou em componentes
emocionais, deslegitimaram as escrituras antigas do ioga, privatizando a sua análise
pelos próprios iogues. Os líderes ioguicos, com isso, perceberam a perda de
autoridade sob a sua comunidade em detrimento a ciência biomédica e, com isso,
reformaram, como veremos, a causa do mal ioguico sob o manto da “ciência” e
caminharam para o seu afastamento da religião hinduísta, erigindo os seus contornos
de religiosidade própria e distinta, longe, tanto da nebulosa Nova Era, quanto da
ortodoxia hinduísta, mas revelando para alguns, uma profanação do ioga.
2.4 - Profanação do ioga
Mark Singleton se aprofunda neste tema, tendo como marco teórico o artigo A
salvação pelo relaxamento de W. James, e demonstra que o rótulo de “combate ao
estresse” que as práticas do ioga moderno conquistaram, seriam consequência da
imbricação do ioga com as terapias proprioceptivas ocidentais e não de sua origem
hinduísta de comunhão com deus/Isvara, como exposta no IS e reveladas no capítulo
primeiro. Segundo ele, o ioga em contato com o estilo de vida agitado das grandes
70
cidades do mundo ocidental teria direcionado a sua salvação para o relaxamento. Esse
fato pode revelar uma corrupção da ancestralidade espiritual do ioga em detrimento a
uma coletividade que não descansa, contribuindo dessa forma, com a ideologia
capitalista do consumo e do trabalho (SINGLETON, 2005).
Não há dúvidas que o ioga moderno enveredou, como já expomos, para sua
medicalização e as suas práticas como técnicas profanas em muitos setores da saúde.
Por outro lado, pesquisas apontam igualmente que nunca existiu um “ioga puro”, e a
tradição de ioga do seu período medieval - o hatha-ioga – seria a responsável (e não o
estilo de vida moderno) pela maior valoração dada ao corpo em detrimento às suas
escrituras clássicas (LIBERMAN, 2008, p.113). Assim, a influência social capitalista
desenvolveu, sem dúvidas, no florescer do relaxamento como “produto”
contemporâneo mais importante revelado pelo ioga. E a ciência, não o IS (Ioga
Sutras), são a base intelectiva para isso ocorrer. No entanto, ao contrário do que
Singleton mesmo afirma, esse fato poderia refletir não uma corrupção dos preceitos
espirituais ioguicos clássicos, mas uma reforma soteriológica legítima dos seus
antigos bens de salvação. A proposta de salvação ioguica, antes pautados
exclusivamente nos ensinamentos hinduístas dos klesas, kaivalya e samadhi perdem o
seu sentido religioso em meio a sociedades secularizadas e privatizadas
religiosamente. Reflexo disso são os debates que ocorrem discutindo se o ioga de
Patanjali teria mesmo influência do hinduísmo ou não seria fruto de um sincretismo
de outras religiões como o Budismo (NICHOLSON, 2013). O Brasil, mesmo
(aparentemente) laicizado, por sua própria característica cultural sincrética, pode
revelar com maior nitidez as matizes religiosas dessa transformação em processo que
autoriza iogues modernos a transformar os seus próprios bens de salvação.
O que podemos resumir da nossa discussão neste capítulo, é a conotação que
os klesas assumiram no ioga moderno. A partir de 1915, fisiologistas ocidentais
descobrem e nomeiam uma resposta orgânica natural acionada na raiva, no medo, na
fome e na dor que denominaram de resposta de luta-fuga que aciona o eixo do
estresse e rompe com o equilíbrio fisiológico do organismo, a homeostase. Mais tarde,
os mesmos fisiologistas julgam haver uma igual resposta inata, mas oposta a do
estresse que denominaram de reposta do relaxamento. Cria-se aí uma polaridade do
estresse-Mal-sofrimento e do relaxamento-Bem-cura como uma experiência, mesmo
que transitória, do Bem no microuniverso espiritual do ioga moderno. A homeostase,
71
seria o estado ideal, utópico, portanto, inalcançável, mas essencial para a vida
humana.
O ioga quando importado da Índia para as grandes cidades ocidentais já
encontra esse panorama e, talvez, apenas esteja adaptando e ajustando a sua fisiologia
religiosa neste novo contexto. Admitindo esses fatos, nos é lícito supor porquê os
klesas venham assumido a responsabilidade de causa o estresse-ioguico, o samadhi
envolvendo-se com o relaxamento. Como explica o próprio Sandor, o relaxamento
pode permitir acesso ao inconsciente e as mais profundas emoções e memórias.
72
Capitulo 3
IOGA NO BRASIL
3.1. As origens do ioga brasileiro a partir da história latino-americana
Não é tarefa fácil traçar um panorama histórico e social do ioga na América
Latina. Sempre que buscamos referencias do ioga, invariavelmente, o encontramos
descrito sem identidade própria e parte indistinta de algum outro fenômeno religioso.
É como se o ioga apenas “emprestasse” partes da sua doutrina e práticas corpóreas
para compor outras religiosidades e não possuísse o seu próprio microuniverso
religioso de atuação (GUERRIERO, 2006; Id., 2014). O caráter mais terapêutico das
práticas ioguicas são as que recebem o apelo maior do meio acadêmico. No entanto,
para um praticante do ioga e cientista da religião já está bem documentado o ioga
como possível fenômeno religioso autônomo em processo (DeMICHELIS, 2004;
JAIN, 2014; GUERRIERO, 2014). Mas não foi sempre assim, o ioga dos seus
períodos antigo e medieval era percebido como darsana hinduísta, o que significa
pertença ao Hinduísmo. Um iogue rezando o pai-nosso, pais-de-santo fazendo surya-
namaskar, daimistas cantando mantras e iogues reconhecendo os seus mestres em
terreiros de umbanda são cenários, sem dúvidas, do universo brasileiro26.
O ioga no seu encontro com o mundo ocidental sofre modificações, sobretudo
da teosofia, da educação física, da biomedicina e da economia capitalista de consumo
(SINGLETON, 2005). Isso fez com que emergisse o ioga postural moderno
(DeMICHELIS, 2004) como uma prática religiosa do corpo (JAIN, 2014). O meu
desafio, no entanto, está em construir não somente a origem do ioga brasileiro, mas
mostrar que, ao contrário de países de língua inglesa, o ioga latino-americano recebeu
influências sócio-religiosas diferentes destes, o que ocasionou reformas na sua
proposta de salvação baseada na teoria dos klesas.
26 Ver relato de Swami Sevananda com a Umbanda no Brasil em SEVANANDA, S. 1953. Yo que caminé el mundo. Montevideo, Uruguay. Com relação a citação dos pais-de-santo realizando posturas ioguicas antes da gira faz parte de acervo do autor em entrevistas para esta tese. O umbandista em questão é Alexandre Cumino de São Paulo. A respeito de iogues rezando a referência está nos livros do Prof. Hermógenes, mas também em FRANCA, N.M.; RAHM, H.J. & ROQUE, M.X.C. 2007. Yoga crista e a espiritualidade de Santo Inacio de Loyola. São Paulo: Edições Loyola. Na imbricação mencionada do Santo Daime com ioga ver DAWSON, A. 2013. Santo Daime: A new world religion. London: Bloomsbury Academic, p.37.
73
O insulamento, que demonstrarei abaixo, que o ioga latino-americano passou
ao longo de cem anos foi escolhido por ser um período pelo qual o ioga se desenvolve
nos países latino-americanos sem qualquer legitimação indiana presente. Isso parece
ter ocorrido por um afastamento natural - talvez devido a barreira idiomática
(espanhol e português ao invés do inglês) - o que dificultou a vinda e permanência de
gurus indianos e, consequentemente, no estabelecimento tardio de organizações
ioguicas indianas27. Esse fato, por outro lado, não desautorizou o ioga a disseminar-se
em países sul-americanos, pelo contrário, produziu crenças, gurus e sistemas de
práticas sincretizados por elementos religiosos nativos e cristãos, tornando algumas
expressões ioguicas únicas - como é o caso do ioga brasileiro Caminho do Coração do
Swami Prem Baba, o SwáSthya-Yôga do Mestre DeRose e a Yogaterapia do Prof.
Hermógenes.
Pela escassez de informações acadêmicas coletei o maior número possível de
dados sobre as principais escolas e tradições ioguicas que chegaram às cidades sul-
americanas nos próprios sites de divulgação das mais importantes organizações
ioguicas presentes e, depois identifiquei os principais personagens nativos e
estrangeiros que participaram (e participam ainda) na difusão do ioga como fenômeno
religioso na América Latina. Por fim, verifiquei a veracidade desses dados com
iogues representantes hoje dessas instituições e com livros, teses e dissertações
acadêmicas sobre o assunto, além da coleta de dados advindas das minhas próprias
entrevistas para esta tese (descritas no próximo capítulo). A partir da análise desses
documentos, identifiquei cinco fases distintas que compuseram a identidade do ioga
na América Latina: 1) Fase Místico-esotérico, 2) Fase visita à Índia, 3) Fase do ioga
indiano conhecendo os iogues latino-americanos, 4) Fase da busca identitária e
singular do ioga latino-americano e 5) Fase de tensão entre os iogues híbridos e os
tradicionalistas no Brasil. A análise da configuração do ioga latino-americano ajudará
a perceber os caminhos pelos quais aos iogues brasileiros reformam a teoria dos
klesas emprestando termos e conceitos biomédicos.
27 Como veremos o ioga chega por volta de 1900 em países latino-americanos, mas o primeiro guru indiano a se instalar por aqui só ocorre em 1970 na Nicarágua enfrentando grande resistência de frentes católicas.
74
3.1.1. Fase místico-esotérico
Segundo informações colhidas dos sites dos próprios personagens e de outras
fortes, o ioga desembarca na América Latina entre 1899-1900 com a norte-americana
Katherine Augusta Westcott Tingley. Essa discípula de Blavatsky funda a primeira
academia de ioga que se tem notícia na América Latina, o Raja Yoga Academy, na
capital cubana 28 (TINGLEY, 2012). O objetivo de Tingley será o mesmo dos
próximos três personagens que aparecem neste início de ioga latino-americano:
difundir os ensinamentos ioguicos por meio de denominações esotéricas, como a
teosofia, o martinismo, a rosa-cruz e a maçonaria. Neste momento, pela ausência de
iogues indianos que legitimassem o que era ou não da “tradição do ioga”, figuras
carismáticas e controversas, em sua maioria pertencentes de instituições herméticas e
ocultistas como Tingley, farão o ioga implantar-se no contexto latino-americano entre
os anos de 1900-1950. A principal contribuição deles para o ioga é o caráter de
terapia espiritual e hibridismo religioso que difundem entre os discípulos e iogues
que formam.
Assim como Tingley, acredita-se que outro imigrante, o francês Léo Alvarez
Costet de Mascheville (antes Jehel, depois swami Servananda) viaja a Argentina,
Uruguai e Brasil, entre os anos de 1924-1947, arrolando ensinamentos secretos de
uma ordem iniciática chamada de Grupo Independente de Estudos Esotéricos
(GIDEE). O GIDEE apresenta o ioga como veículo de desenvolvimento espiritual, ao
lado da cabala, astrologia, budismo e outros elementos ocultistas de origem martinista
e da Associação Mística Internacional (AMO), ordem esotérica originada por outro
iogue francês estabelecido no Uruguai, Cesar Della Rosa29.
Serge Raynaud de la Ferriere, o nosso último personagem da primeira fase
ioguica latino-americana, parece ter chegado a Medellin/Colômbia em 1947, se
propondo a difundir o ioga através da Grande Fraternidade Universal ou A Missão da
Ordem de Aquarius. Em Caracas/Venezuela, Serge Raynaud inaugurará a primeira
28 http://www.britannica.com/EBchecked/topic/596592/Katherine-Augusta-Westcott-Tingley acessado 05/01/15; http://www.theosophy-nw.org/theosnw/theos/kt-selec.htm, http://libraries.ucsd.edu/speccoll/DigitalArchives/bp510_p633-h37-1922/bp510_p633-h37-1922.pdf, http://www.theosociety.org/pasadena/sunrise/47-97-8/th-ktgk1.htm acessado 05/01/2015. 29 http://www.escuelainternacionaldeyoga.biz/fundador.html acessado 05/01/2015.
75
sede da sua ordem esotérica e um ashram com aulas gratuitas de ioga, repetindo o
mesmo acontecimento na capital colombiana em 195830.
O ioga entre os latino-americanos, até meados dos anos de 1960, pode-se
pressupor, ainda não possui características autônomas de uma espiritualidade singular,
como já pode se perceber em organizações ioguicas indianas e importadas já para o
ocidente - como de Kaivalyadhama, Instituto de Yogendra e outras - mas se mantém
envolto pelo esoterismo de movimentos espiritualistas herméticos de ordens
ocultistas. Tingley, Léo Alvarez, Cesar Della Rosa Bandio e Serge Raynaud de la
Ferriere, influenciam a disseminação de um ioga esotérico e místico e exercem um
papel quase mítico na história do ioga pelos países latino-americanos. Cesar Bandio,
por exemplo, é reconhecido ainda hoje em alguns círculos ioguicos modernos, como
discípulo direto de Ramakrshina e amigo pessoal do swami Sivananda - fatos estes
não confirmados pelos discípulos contemporâneos de Sivananda e Ramakrishna.
Registros atribuem a Cesar Bandio, a fundação da primeira Federação
Internacional de Ioga na França, Uruguai e Argentina, entre os anos de 1936-1941. Os
fatos mostram também a importância de Léo Costet no início do ioga sul-americano.
Em 1947, Costet teria realizado uma palestra sobre ioga, provavelmente em alguma
ordem esotérica do Rio de Janeiro/Brasil, despertando o interesse do público
conservador e católico, em especial do General Caio Miranda, que virá a ser o
primeiro e grande difusor do ioga brasileiro, e depois do Coronel Hermógenes.
Interessante registrar neste momento, que o iogue brasileiro DeRose citará em
algumas passagens de sua autobiografia ter sido considerado - por iniciados de ordens
ocultistas do Brasil e pela sincronicidade de sua data de nascimento (18/02)31 - a
reencarnação de Ramakrishna, assim como se declarar simpatizante de Sivananda, a
exemplo de Leo Costet. De alguma forma, a legitimidade de Léo Costet ainda é
importante na configuração do ioga brasileiro, mesmo que atualmente seja fortemente
combatido por uma nova geração de iogues mais ortodoxos que negam as ligações
destes primeiros iogues europeus com tradições indianas.
Até aqui, podemos perceber que o ioga aporta na América Latina pelas mãos
de místicos personagens que apresentavam um ioga, de certa forma, pouco envolvido 30 http://www.elfez.com.br/SRF.pdf acessado 05/01/2015. 31 DeRose (2006), p.27: “Encarnei em 1944, cento e oito anos após o nascimento de Rámakrishna”; Ibid., p.48: “Alguns ficavam cativados pela profundidade das técnicas que eu ensinava e pela seriedade que sempre marcou minhas atitudes. Esses extrapolavam a meu favor, declarando que eu devia ser a reencarnação de algum Mestre hindu”.
76
com o Hinduísmo e muito mais com as suas próprias ordens ocultistas de origem
ocidental. Não são, nem indianos e muitos menos representantes autorizados por
nenhuma escola de ioga tradicional conhecida ou confirmadas historicamente que
trazem o ioga neste primeiro momento, mas sem dúvidas serão eles os responsáveis
por apresentar e disseminar o ioga ao longo dos próximos sessenta anos em terras
latino-americanas.
3.1.2. Fase visitando à Índia
Mesmo que em 1929, tenhamos notícia da visita do swami Yogananda, o
primeiro iogue indiano a pisar em solo latino-americano32, o estabelecimento efetivo
de organizações indianas de ioga só virá acontecer realmente a partir de 1950. Neste
período agora, que marca os anos de 1950-1973 - portanto mais de setenta anos de
ioga desde a chegada de Tingley -, serão os próprios latino-americanos que se
aventurarão a traduzir o ioga da Índia para a sua cultura. Como exemplo do que
buscamos identificar, em 1987, o colombiano Luz Fanny Vargas narra apresentar ao
seu país a tradição de ioga Anaisa, recebido por ele os ensinamentos desta tradição
ioguica em preparação de anos por lamas tibetanos, budistas e indianos33 - mas que
ninguém tem notícia ou consegue confirmar, a não ser os seus próprios discípulos
diretos - e por sucessivas experiências místicas no Peru. O iogue brasileiro Mestre
DeRose teve o primeiro contato com seu mestre espiritual não-encarnado –
Bhávajánanda - em um terreiro de Umbanda em 1969, no Rio de Janeiro. Enquanto
Hermógenes, outra figura importante no cenário ioguico brasileiro, foi buscar, no
mesmo período, confirmação de seu trabalho com o ioga em sessões espíritas com
Chico Xavier, no qual foi amigo e professor de ioga.
Estamos no auge dos movimentos de contracultura e o ioga, que se
popularizou entre os meios esotéricos-místicos mais formais das grandes lojas
maçônicas e fraternidades esotéricas no período passado, ganha um público elitizado
e interessado por uma vertente mais terapêutica-holística do que mágica-tradicional.
Essa segunda fase vai sendo marcada por novas descobertas e uma nova geração de
iogues latino-americanos que já iniciam sincretismos do ioga com religiões nativas e
32 http://yoganandaharmony.com/yogananda-history-chapter-1 acessado 05/01/2015. 33 http://www.yogamedellin.info/practica/centros-yoga/anaisayoga acessado em 05/01/2015.
77
cristãs, além de terapêuticas medicinais. Mas também por uma segunda geração
carente de escrituras ioguicas, se aventurando agora a buscá-las diretamente na Índia.
Um dos primeiros iogues a se arriscar nessa jornada de busca pelo ioga
indiano, é o chileno Don Benjamim Gusman. A partir de informações colhidas entre
os seus próprios discípulos, Don Benjamin foi iniciado pelo iogue indiano Sri
Janárdana da ordem ioguica Suddha Dharma Mandalam (SDM)34. O curioso é que
este chileno nunca esteve na Índia. Ele recebeu toda a iniciação do SDM por cartas
entre os anos de 1918-192435. Após esse período de extensas correspondências, Don
Benjamim Gusman teria auferido o nome iniciático de Sri Vayera Yogui Dasa e
autorizado a fundar, segundo seus discípulos, três organizações de sua ordem religiosa
no Chile, no Brasil e depois no Uruguai ao longo das três próximas décadas.
Será somente em 1967, que uma sul-americana, a brasileira Ignez Novaes
Romeu, retorna da Índia realmente com os ensinamentos tradicionais de uma escola
ioguica moderna. Ignez estuda e se inicia no ioga de Kaivalyadhama do swami
Kuvalayananda, considerado o primeiro iogue a iniciar exames laboratoriais e a
aplicar as práticas rituais ioguicas como terapia com aval da ciência biomédica
(ALTER, 2004). Outra brasileira a visitar a Índia neste período é Maria Helena de
Bastos Freire que em 1973 conhece Sri K. Pattabhi Jois, discípulo Krishnamacharya e
considerado “pai do ioga moderno” (SINGLETON, 2010). Agora, mesmo sem os
principais gurus modernos do ioga visitando os países latino-americanos, diversos
iogues da porção sul e central da américa vão absorver o conhecimento do ioga
diretamente da Índia e de gurus legitimados por alguma tradição ioguica
verdadeiramente indiana.
Os principais líderes do ioga latino-americano iniciam as primeiras
interpretações e traduções elementares da doutrina clássica do ioga. Até então, o que
os latino-americanos conheciam do ioga vinham dos ensinamentos orais da primeira
geração de iogues descritos acima, portanto, sem nenhuma literatura expressiva do
ioga.
No início dos anos de 1970, um grupo de iogues discípulos brasileiros de Léo
Costet, visitam o ashram de Sri Yogendra na Índia - famoso por mesclar as práticas
34 http://sarvamangalamashram.blogspot.pt/2012/11/sri-vajera-yogui-dasa.html acessado 05/01/2015 35 Dados confirmados por documentos cedidos por Erick Schulz por email, discípulo da ordem SDM no Brasil.
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de ioga com a biomedicina ocidental - e retornam ao Brasil com a ideia de unificar e
institucionalizar todos os tipos de ioga praticados nos países latino-americanos. Esse
movimento marca uma nova fase ioguica brasileira que visa agora a consolidação do
ioga como prática regulamentada. O ioga, nesta próxima fase, irá ganhar popularidade
e iogues mais ortodoxos - preocupados na crescente descaracterização dos valores
espirituais do ioga - buscam institucionalizar o ioga.
3.1.3. Fase do ioga indiano conhecendo os iogues latino-americanos
Com o primeiro contato estabelecido entre iogues latino-americanos e os
indianos, inicia-se uma inevitável comparação - e busca por legitimação - entre o ioga
praticado por décadas de transmissão via as grandes ordens místico-esotéricas
europeias - da primeira fase descrita acima - com o ioga de “tradição” ou linhagem de
gurus “verdadeiramente” indianos, sobretudo dos iogues advindos da segunda fase
latino-americana. Isso ocasiona, a partir de 1970, um movimento entre a comunidade
ioguica sul-americana por regularizar o que era ou não ioga e quem estaria ou não
autorizado a ensiná-lo. Assim, congressos e confederações de ioga começam a surgir
nas principais capitais sul-americanas. É também nesta fase, que os iogues indianos
começam a visitar a América Latina com maior interesse proselitista. As escolas e
organização de ioga indianas já percebem o interesse pelo ocidente de sua
religiosidade, algo que inicia com Vivekananda, como já mostramos anteriormente,
mas o olhar agora também se volta a promissores países como Argentina, Brasil e
Uruguai.
Mesmo o registro histórico desses acontecimentos venham de fontes não
acadêmicas, em geral, de documentos fornecidos pelas próprias instituições, não nos
furta de estabelecer o registro. De qualquer forma, acredita-se que depois do swami
Yogananda, em 1929 no México, apenas em 1950, que pequenos círculos de
meditação da Self-Realization Fellowship (SRF) do swami Yogananda se fizeram
presentes na capital cubana36. Em 1970, o indiano swami guru Devanand Sarawati Ji
Maharaj, discípulo de Mauna Swami, funda pessoalmente na Nicarágua a primeira
organização ioguica latino-americana, a Sociedade Internacional da Realização
36 http://mhaiyoga.com/mhai-cuba/yoga-history acessado 05/01/2015
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Divina (ou Escola de Yoga Ascética e Iniciática de Shankara)37. Alguns anos mais
tarde, os discípulos mexicanos Sri Ramesh e Jose Luis Pallaviccini Norori fundam na
capital mexicana, em 1974, a ordem do Centro Devanand de Meditação já com
distintos traços sincréticos cristãos, como podemos ler nos pronunciamentos de
Norori abaixo:
Cristo volverá para no irse nunca más ¡Cristo es un estado evolutivo que se alcanza cuando se Ilumina el quinto Chacra, un estado sublime de verdad, Amor, Armonía, Paz, nosotros en esta escuela y con la gracia de nuestro Amado Maestro, estamos en un estado más profundo.38
Entre os anos de 1971-1972, em viagem pela América Latina, swami
Satyananda Saraswati, discípulo de Sivananda, estabelece as bases da Bihar School of
Yoga no Uruguai, Colômbia, Brasil, Chile, Argentina, Cuba e Porto Rico. Mas será
apenas em 1976, agora pelas mãos do swami Vishnudevananda que o primeiro
instituto sul-americano de ioga de Sivananda - o Divine Life Society (DLS) – é
fundado no Uruguai 39, depois na Argentina em 2000 e, posteriormente no Brasil em
200140. No Paraguai, em 1972, conforme fonte de seus próprios discípulos, o indiano
Shrii Shrii Anandamurti, discípulo de Dada Haratmananda, lança as bases da
Sociedade de Yoga Ananda Marga (AVADUTHA, 1996). Em 1975, swami
Satyananda, discípulo de Sivananda, funda o Satyananda Ashram em Brasília/Brasil
sob a orientação do brasileiro, iniciado na Índia, swami Hamsananda Sarasvati.
Ao longo dos anos de 1980, um fato peculiar pode representar o que pretendo
salientar na próxima fase de implantação da espiritualidade ioguica brasileira. Ocorre
um dos mais marcantes sincretismos do ioga com as religiões nativas latino-
americanos, a fusão deste com o Santo Daime. Um terapeuta holístico e pertencente
da religião brasileira Santo Daime veio configurando o que mais tarde se tornará a
primeira fusão do ioga com uma religião nativa sul-americana, o Caminho do
Coração, hoje com filiais nos Estados Unidos, Índia e Brasil (ver LABATE, 2000).
Nesta mesma toada e período, outros dois iogues também irão configurar contornos
37 http://elmaestrodelpresente.org/category/maestros-de-sabiduria/ acessado 05/01/2015 38 http://elmaestrodelpresente.org/actual-guru-devanand-eloy/ acessado 05/01/2015. “Cristo voltará para nunca mais voltar. Cristo é um estado evolutivo alcançado quando se ilumina o quinto Chakra, um estado sublime de verdade, amor, harmonia, paz, nós, desta escola almejamos com a graça de nosso Amado Mestre de Luz, que está em um estado mais profundo.” 39 http://www.sivananda.org/montevideo/ acessado 05/01/2015 40 http://www.sivanandayogatradicional.com.br/index.php?pgref=quemsomos acessado 05/01/2015
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bem brasileiros, como a Iogaterapia do Prof. Hermógens que mescla muito bem
elementos cristãos, espíritas e da medicina holística e o SwáSthya Yôga do Mestre
DeRose que, mesmo influenciado por ordens ocultistas, trilhou um caminho ortodoxo
no ioga. A justificativa para o seu “tradicionalismo” reside na codificação que recebeu
através de processos mediúnicos de um ioga pré-védico, portanto, antes até mesmo do
IS de Patanjali. No entanto, mesmo que velado, é possível identificar fortes elementos
da magia umbandistas em seus discursos e construções espirituais ioguicas, como a
utilização de amuletos e diversos processos de “proteção espiritual”, que são ausentes
na literatura do ioga moderno norte-americano e europeu, por exemplo. Os paradoxos
e ambivalências são uma característica do ioga brasileiro, assim, precisaria de uma
outra tese para me aprofundar nas influências específicas que cada líder do ioga
brasileiro recebeu para configurar o ioga que professa. De qualquer modo, nos
concentraremos na dialética que nos interessa aqui entre saúde-salvação e as
transformações soteriológicas em samadhi, kaivalya e os klesas.
Parece lícito estimar que nesta terceira fase, entre os anos de 1950 e meados
de 1980, o ioga na América Latina começa a conhecer e se aprofundar com o ioga
advindo da Índia propriamente dita e a desenhar o que os acadêmicos estrangeiros
denominaram posteriormente de ioga moderno (DeMICHELIS, 2004), mas com
fortes nuances do sincretismo religioso brasileiro.
3.1.4. Fase da busca identitária e singular do ioga latino-americano
A partir da década de 1970, o ioga na América Latina já formou os seus
próprios gurus e importou diversas organizações e linhagens do ioga moderno. Agora,
os iogues latino-americanos buscam compor a sua própria identidade. Neste tempo,
nasce uma luta por quem possui ou estabelece melhor as regras de conduta de um
professor e escola (ou linhagem) de ioga. Assim, inúmeras associações, federações e
confederações tem início e marca esse quarto período ioguico latino-americano.
O ioga agora, especificamente entre os anos de 1980-1990, ganha grande
popularidade e corporifica sobremaneira as suas práticas corporais, se confundindo
entre uma prática de educação física, técnica terapêutica ou atividade religiosa, como
em outras partes do mundo (SHAVER, 2010). No Brasil, o governo federal entra no
81
congresso nacional visando incluir o ioga como método exclusivamente físico, o que
desautorizaria os líderes do ioga “formarem”41 seus próprios professores/discípulos e
ministrarem suas aulas sem antes passar por uma inspeção federal. Em outras
palavras, essa proposta legitimaria o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF)
para fiscalizar as práticas ioguicas, tornando totalmente laico o exercício de lecionar
ioga no país.
A contenda causa grande repercussão na comunidade ioguica latino-americana
e se resolve estabelecendo entre as duas partes - governo brasileiro e comunidade
ioguica brasileira - que o ioga não poderia ser fiscalizado por nenhum órgão
governamental, pois se trataria de uma atividade filosófica-religiosa e não
exclusivamente corporal. Hoje em dia, a discussão está sob outro ângulo: a inclusão
ou não do ioga como terapêutica não-convencional no Sistema Único de Saúde
brasileiro (ver SIEGEL, 2010). No entanto, essas propostas vão, aos poucos, minando
a hegemonia da vertente ioguica híbrida e permitindo a ala mais tradicional do ioga
brasileiro levantar a sua voz.
Esses fatos sociais registram o espírito desta fase histórica do ioga na América
Latina, marcada pela desavença e conflitos de identidade do papel e legitimidade do
ioga professado. O episódio do CONFEF ocorrido no Brasil pode ser compreendido
como o marco de uma crise identitária para os iogues brasileiros, que buscam agora
estabelecer as diretrizes e delimitações da sua prática, ensino e formação de novos
professores de ioga no cenário religioso do país. O ioga já não é mais incipiente e
começa a se popularizar entre a população brasileira, sobretudo é percebido pelas
religiões dominantes que imprimem as suas retóricas de aniquilação (USARSKI,
2001) sobre a proposta religiosa alternativa no qual o ioga representa agora 42
(APOLLONI, 2004).
Parte dessa busca por uma identidade se faz nas inúmeras tentativas dos
iogues se reunirem em torno de federações e confederações nacionais, latino-
americanas, sul-americanas e internacionais. A história credita ao iogue francês Cesar
Della Rosa, o idealizador da primeira federação de ioga na América Latina, no
Uruguai ainda em 1936, como vimos. Mas, pode-se pensar que o seu nome apareça 41 Termo insider que significa introduzir a um iniciante os ensinamentos e práticas corporais do ioga. 42 http://blog.comshalom.org/carmadelio/29260-pode-um-cristao-praticar-yoga acessado 05/01/2015, https://laverdadysololaverdad.wordpress.com/2011/06/30/15-razones-del-por-que-el-yoga-es-sumamente-peligroso/ acessado 05/01/2015
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como “fundador” apenas para legitimar a autoridade dessas fundações que começam a
despontar agora nesta última fase.
Esses núcleos seriam as primeiras tentativas de reunir as diferentes escolas
ioguicas latino-americanas sob a mesma égide de pensamento. Em 1975, a brasileira
Maria Helena de Bastos Freire estabelece uma associação internacional que reuniria
todos os professores de ioga, a International Yoga Teachers Association (IYTA),
muito motivada pelo o que assistiu no congresso de ioga que participou na Austrália
em 1971. A partir disso, inúmeros outras associações, uniões nacionais e congressos
vão sendo realizadas em toda América Latina que perduram até os dias de hoje,
todavia a ideia das federações nunca ganhariam a força que pretendiam possuir.
Mesmo sem o sucesso ou adesão requerido, a partir de 1985, o argentino
Fernando Estevez Griego (ou swami Maitreyananda), ex-discípulo do tradicionalista
Mestre DeRose, associado a outros iogues latino-americanos funda a União Latino-
Americana de Yoga (ULAY) no intuito de agrupar as já existentes federações e
associações nacionais de ioga como da Argentina, Brasil, México, Chile, Colômbia,
Uruguai, Cuba e Quebec, além de promover intercâmbios e formar o Conselho
Latino-Americano de Yoga (CLAY). A partir de agora, Griego articula-se com
diversos outros líderes de federações de ioga mundiais para fechar acordos entre elas
e a ULAY. O intento de Griego gera frutos e, em 1987, ocorre o primeiro de inúmeros
congressos latino-americanos e mundiais de ioga, em geral, tendo ele mesmo - Griego
ou seus amigos e discípulos - na presidência das bancas e das federações. Nenhuma
delas, entretanto, conseguem estabelecer um diálogo integrativo entre todas as
diversas linhagens e denominações de ioga moderno existentes no território latino-
americano43.
Outro aspecto do ioga neste período, e que se torna o grande propulsor do ioga
e fonte de rendimentos financeiros, é o estabelecimento de cursos regulares de
formação de professores de ioga44. Um dos primeiros cursos de formação, ocorre em
1981, através de um romeno radicado no Brasil, Georg Kritikós (ou swami
Sarvananda), discípulo de Léo Costet no Rio de Janeiro/Brasil (SANCHES, 2014). A
partir do sucesso desses cursos de formação, aumenta-se a demanda de professores de
43 http://www.federacaointernacionaldeyoga.org/history.html acessado 05/01/2015 44 Um curso de duração média de um ano que autoriza os seus “formandos” a lecionar o ioga a outros. O custo do curso é bastante elevado, o que sustenta financeiramente grande parte dos líderes de ioga latino-americanos.
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ioga e a popularização do ioga (e vice-versa). Parte desse público de professores do
ioga moderno se tornam devotos de seus líderes espirituais responsáveis pela sua
formação, diferenciando o ioga moderno dos demais novos movimentos religiosos
Nova Era de característica “errantes”45 (NUNES, 2008). Essa característica de não-
errância pode ser um indicativo do ioga agora já ir se configurando como uma
possível denominação religiosa autônoma e, por isso, responsável por constituir
contornos mais definidos de sua religiosidade, como legitimação de seus líderes, mas
também de apresentar uma proposta soteriológica adaptada a cultura que se insere
agora. As suas escrituras vão sendo ressignificadas pela biomedicina, como vimos no
capítulo segundo, e os klesas ganhando contornos fisiológicos biomédicos por
décadas no Brasil da associação do ioga com a cura e terapia de doenças.
Outras duas formas características do ioga moderno brasileiro, talvez pela
escassez ainda de gurus indianos, se concentram nas regulares viagens à Índia e a
outros locais sagrados do mundo (como Machu Pichu, Japão, Jerusalém e Nepal)
promovido pelos seus novos líderes espirituais, e comercialização de livros, cd’s e
dvd’s e outros produtos, como divulgação de suas propostas espirituais e sustento
financeiro. Essa proliferação de produtos ofertados pela demanda do ioga unido ao
fator sincretismo religioso, fez surgir uma tensão entre iogues ortodoxos ou
“tradicionalistas” e iogues mais tolerantes e incentivadores dos “hibridismos” do ioga
com outras religiões e práticas. Dois exemplos desses hibridismos que comporão a
última fase ioguica são as novas escolas que veem se estabelecendo, como o
AcroYoga de Gabriel Watel e o Yoga Restaurativo de Miila Derzett46. O próximo
estágio se aprofunda no momento atual do cenário ioguico brasileiro.
3.1.5. Fase de tensão entre os iogues “híbridos” e os “tradicionalistas” no Brasil
Com o fracasso da tentativa de unificação de diversas denominações de ioga
em federações e alianças, além do evidente desmembramento de elementos das suas
práticas rituais - como a meditação e os ásanas – alocados em outros fenômenos
religiosos e investigados pela ciência biomédica, como em outros países (ALTER,
2004). O ioga nesta última fase pode ser compreendido de diversas formas, seja
45 Ver o termo “errância” em AMARAL, 2000. 46 http://acrobrasil.com/ acessado 10/01/2015; http://yogarestaurativa.blogspot.com.br/ acessado 10/01/2015.
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técnica terapêutica laica, exercício físico ou ritual terapêutico espiritual. DeMichelis
nos ajuda a compreender melhor este período alocando o ioga moderno em cinco
disposições: 1) Ioga Moderno Psicossomático de Vivekananda, 2) Ioga Moderno de
inspiração Neo-Hinduísta, 3) Ioga Moderno Postural, 4) Ioga Meditativo e 5) Formas
Denominacionais de Ioga (DeMICHELIS, 2004). Há de certa forma, principalmente
dentre as diversas denominações modernas do ioga mais tradicionalistas, uma
percepção de “ressignificação simbólica” de suas escrituras antigas em andamento
(sobretudo pela ciência biomédica) (SIMÕES, 2011) e buscam resgatar os valores
espirituais “originais” neste estágio atual.
O ioga, antes um dársana ou “escola filosófica” hinduísta ortodoxa
(JOHNSON, 2010, p.93-94), parece revelar-se agora um misto de terapia de
relaxamento aonde a ciência, mais do que o Hinduísmo (NICHOLSON, 2013),
mostra-se legitimadora do seu discurso em sociedades modernas (ver ALTER, 2004;
SIMÕES, 2011).
Nicholson analisa em seu artigo Is yoga hindu? discute a legitimidade do ioga
moderno. O autor começa citando uma campanha que ocorreu nos Estados Unidos, da
comunidade hinduísta, sobre a descaracterização do ioga, pois, segundo eles, seria
uma prática genuinamente hinduísta que estaria sendo deturpada pelo ocidente em
aulas profanas de ginástica. Por outro lado, o autor nos lembra que em 1989, Joseph
Cardinal Ratzinger alertava a todos os cristãos que a fusão da meditação cristã com
outras formas não-cristãs poderia ser examinada como um perigo a fé por induzir ao
sincretismo. O próprio Patanjali é suspeito, por alguns autores, de não ser tão hindu
assim no seu IS. Nicholson assim, faz uma viagem histórica pelas influências ioguicas
de sua origem até o momento presente e conclui ser muito difícil determinar um só
influência religiosa “legítima”. O fascinante de seus argumentos está na posição de
marginalidade que a história colocou os iogues medievais – os hatha-iogues – por sua
verve contrária a autoridade dos Vedas e da autoridade bramânica, mas também pela
aproximação da tradição hatha-ioguica dos Nathas com os ensinamentos dos sufis,
um ramo de místicos islâmicos.
Porém, quando nós olhamos os caminhos em que o yoga foi descrito nos textos entre os séculos XIV-XVII no nordeste da Índia, frequentemente nós encontramos formas do que nós agora pensamos como um “ioga hindu” sincretizado com as práticas islâmicas dos sufis. Eles parecem ter ímpeto tansgressor desta borda para os dois lados: no lado hindu, pelo grupo
85
associado como Hatha-Yoga conhecidos como Natha iogues, e entre os muçulmanos, pelos sufis das ordens Chishti e Shattari. O fenômeno dos muçulmanos praticando yoga na India continuou bem até o período da colonização inglesa.
Nicholson conclui que a proposta do “Yoga Cristão”, assim como da junção
do Hatha-Ioga com os sufis, mais do que sinal do apocalipse ou de Kali Yuga (era das
trevas no hinduísmo), deveria ser considerada algo positiva, pois conclui: “nós
estaremos melhor se a considerarmos uma promissora nova confluência e não uma
corrupção da sua religiosidade”. No Brasil, as influências distintas também ocorreram
como nos tempos passados descritos por Nicholson. Destacam-se neste período duas
linhas bem distintas de atuação do ioga no Brasil. A primeira descendente daqueles
primeiros místicos que trouxeram o ioga para terras latinas da América. Deles, herda-
se o aspecto do ioga como terapia espiritual que figuram em iogues como Prof.
Hermógenes e swami Prem Baba no Brasil, e Eduardo Pimentel, atual presidente da
associação cubana de ioga. Estes se mostram bem mais “híbridos” e tolerantes aos
sincretismos modernos do ioga e elevam os seus aspectos iogaterapêuticos. A segunda
linha de iogues, são os iogues ortodoxos tradicionalistas que iniciam um movimento
forte de resgate da cultura ioguica “original”, considerando-se os verdadeiros
responsáveis portadores da “essência do ioga”. Mesmo que também tenham, como
vimos, sincretizado com elementos religiosos de seus países e não neguem os
benefícios terapêuticos demonstrados pela ciência, julgam-se os responsáveis por
eliminar as permissividades advindas da ala híbrida do ioga, como veremos mais
explícito nas narrativas do capítulo 4.
A partir desse contexto híbridos versus tradicionalistas, o ioga brasileiro veio
delimitando naturalmente os seus contornos singulares, e revelando iogues mais fiéis
ao seu guru ou professor de “formação” como uma tendência a partir dos anos de
2000 no Brasil (NUNES, 2008). Ao mesmo tempo, despertam discussões sobre o
papel social e psicológica das práticas do ioga, seja de terapêutica ou ginástica laicas
(FERNANDES & DA ROCHA, 2005), chegando até mesmo alguns iogues
defenderem-se politicamente por sua independência da educação física (como
revelamos anteriormente), o que favoreceu alguns afirmarem o seu caráter vivo de
sincretismo com a religiosidades brasileiras, fomentando algum tipo novo de
espiritualidade (GNERRE, 2010).
86
3.2. Ioga para Nervosos de Hermógenes versus Ioga para Normais do DeRose:
iogaterapeutas híbridos e os iogues tradicionalistas
Em estudo recente, o historiador Raphael Sanchez disserta sobre as
representações do ioga no Brasil sob a figura de Hermógenes e DeRose. A dissertação
de Sanchez em suas considerações finais demonstra como a mídia brasileira – a partir
da análise de capas das duas maiores revistas direcionadas ao público ioguico no país
- “demonizou” o tradicionalismo defendido por DeRose enquanto percebe em
Hermógenes o “mais querido e referência espiritual” no país (SANCHEZ, 2014).
Durante os anos de 1900-1960, o ioga brasileiro permanecia circunscrito a
meios esotéricos das grandes fraternidades ocultistas, predominantemente da elite
brasileira e nada conhecido do público em geral. Era um ioga sem características
próprias e fazendo parte de uma colcha de retalhos mística e mágica. A partir dos
anos de 1960-1990, o ioga brasileiro foi construindo a sua própria identidade, aonde o
aspecto terapêutico-cristão-espírita de Hermógenes sobressaiu-se ao ortodoxo-
mágico-hinduísta de DeRose.
As trajetórias de Hermógenes e DeRose possuem similaridades. Ambos
desenvolvem seus trabalhos com o ioga no Rio de Janeiro e, apenas da diferença de
idade, são contemporâneos. Os dois também publicam muitos livros e se dedicam
com afinco na divulgação do ioga com distintas particularidades e não possuem um
guru ou mestre de referencia propriamente dito, que os indiquem a seguir uma
“tradição” por assim dizer. A diferença mesmo reside na posição ideológica que
adotam.
O Prof. Hermógenes foi um capitão da reserva do exército brasileiro que aos
35 anos de idade, em 1955, é diagnosticado com tuberculose. O ioga entra nesse
período, como é descrito em bibliografia (CARUSO, 2012, p.18). Hermógenes
dedica-se, durante o repouso obrigatório para o tratamento, lendo, relaxando,
meditado, autossugestões e vivências espirituais. Em 1960, lança o seu primeiro livro,
Autoperfeição com Hatha Yoga e em 1962 abre a Academia Hermógenes. Como não
existia literatura sobre ioga e muito menos, como dissemos, líderes de ioga
autorizados por qualquer tradição indiana, as primeiras leituras de Hermógenes foram
87
as obras Sport et Yoga, de Selvarajan Yesudian e Elisabeth Haich e The Yoga System
of Health and Relief from Tension, de Yogi Vithaldas (Ibid., p.35). A perspectiva
medicinal do ioga foi porta de entrada para Hermógenes que foi revelando a dialética
cura-salvação até o final de sua vida.
Desejo tirar de você a ansiedade por curar-se depressa, mostrando o andamento da libertação. A cura demasiado rápida, em muitos casos, é ilusória. Não pretendo para você uma frustradora pseudocura. O que realmente lhe convém é cada vez uma dose maior de sattvidade [refere-se aqui ao conceito de sattva que já comentamos e associamos ao estado de homeostase], de paz, de integração de si mesmo e maior penetração nos planos mais divinos de seu ser (HERMÓGENES, 2011, p.81).
Outra forte aproximação para o ioga praticado e disseminado por Hermógenes
é a do sincretismo com o cristianismo e espiritismo. Hermógenes é hábil em alinhavar
os conceitos da teosofia com o ioga, budismo e Jesus. Seus livros como Yoga
caminho para Deus (1975), Superação (1975), Yoga, paz com a vida (1978), Convite
a não-violência (1983), Deus investe em você (1985), O essencial da vida (1989) e
Viver em Deus (1992), representam a tônica do hibridismo que queremos revelar
como diretriz do ioga que professa (SANCHEZ, 2014, p.51-53). Além do
cristianismo, Hermógenes estabelece um vínculo de discípulo do guru indiano Sai
Baba, tornando-se o principal difusor da mensagem do mestre no Brasil e Portugal.
Em sua biografia, relata-se o aparecimento da silhueta de Sai Baba por trás do iogue
brasileiro (CARUSO, 2012, p.95). Há o registro também de carta psicografada por
intermédio de Chico Xavier, do espírito Bezerra de Menezes endereçada a
Hermógenes, confirmando “que o seu trabalho tem a ajuda de uma elevada equipe
espiritual de apoio” (Ibid., p.73).
Essas e outras referências de renome espiritual no Brasil e no mundo, vão
gabaritando um iogue brasileiro, sem tradição legitimada no contexto ioguico, a
justificar e autorizar o seu discurso iogaterapêutico:
Na pessoa nervosa, os “corpos” ou “planos de ser” se encontram em desarmonia. Seus nervos e glândulas estão em desarranjo. O estresse pode ter origem na perturbação da economia energético-vital. Pode ser gerado por emoções em conflito, bem como resultar de estarmos afastados dos níveis divinos do Espírito. Pode ser que tudo isso junto, interagindo, é que mantém o sofrimento. Yoga é a redenção desse sofrimento, mercê de seu poder hamonizador e reequilibrante. Onde reina o caos, o yoga leva o cosmo. Razão por que se constitui salvação contra o nervosismo. Se você não é nervoso, salva-o, preventivamente. Se já o é, salva-o curativamente. Nervosismo é desarmonia. Yoga é harmonia. Yoga e estresse não coexistem
88
(HERMÓGENES, 2011, p.45).
De um modo geral, como mesmo afirma Sanchez, são muitas as frentes que
buscam construir a imagem de Hermógenes em torno de um líder ioguico legitimado
(SANCHEZ, 2014, p.58).
O iogue DeRose, por outro lado, foge dos sincretismos religiosos, apesar das
aproximações que desenvolveu no seu início com a sociedade Rosa Cruz e presença
em uma sessão de umbanda, relatado em sua própria autobiografia (DEROSE, 2006,
p.45-94). No entanto, o que fica presente é a sua ortodoxia com relação aos
hibridismos de Hermógenes:
O Yôga (yoga) proporciona saúde e vitalidade, mas se pessoas enfermas ou idosas tentarem praticar, terão que satisfazer-se com uma interpretação tão extremamente simplificada e adaptada que termina comprometendo a autenticidade e transformando-se numa outra coisa que não pode mais chamar-se Yôga (yoga), nem tem a mesma proposta.47
O iogue DeRose busca fundamentação de sua tradição (hoje método) em
estudos, segundo ele, de antigos textos (que ele nunca revela) que eles mesmo
codifica e que afirma terem origem pré-védica. Com essa retórica, anula qualquer tipo
de especulação de sua veracidade. De qualquer modo, DeRose toma um caminho
totalmente oposto a que Hermógenes enveredou: em um modelo tipo “empresarial”
aonde seus professores/discípulos se filiam a sua escola/tradição/método e são
proibidos de ler livros não autorizados por ele e ameaçados de expulsos
imediatamente caso infrinja qualquer regra. O seu discurso é altamente sectário
portanto, ao contrário de Hermógenes que nem curso de formação desenvolveu
formalmente, todos os seus professores foram formados pelo contato direto com as
aulas dele. Segundo o próprio Sanchez:
Por meio de um discurso de autenticidade, DeRose criou elementos que lhe deram suporte para negar as outras modalidades, vistas como formas deturpadas de Yoga, cuja memória não merece ser acessada. Uma memória impedida que pode ser nociva e comprometedora dos estudos daqueles que a acessarem. Dessa forma, recomenda não frequentar outras escolas, outras
47 Disponível em: http://www.uni-yoga.org/cultura-e-entretenimento/tudo-sobre-yoga/#iten7. Acessando em 30/06/15.
89
egrégoras e não experimentar outros métodos. (SANCHEZ, 2014, p.64)
Dessa forma, DeRose deslegitima o iogaterapia de Hermógenes como “formas
deturpadas de Yoga”, e considera o seu método (Swasthya Yôga) “pré-védico”,
portanto, numa posição irrefutável, pois se trata de um conhecimento oral antes de
qualquer escritura que a possa autorizar. No entanto, a partir do final de 1990 e início
dos anos 2000, o Brasil recebe, com maior volume, institutos e organizações de ioga
com base na Índia e outras denominações norte-americanas. Com a abertura de novos
modelos de ioga, por assim dizer, a autoridade desses dois grandes líderes de ioga no
país decresce, culminando com DeRose retirando em meados de 2004 o nome ioga de
suas escolas e optando por “Método DeRose de qualidade de vida”. O ioga, como os
próprios entrevistados no próximo capítulo revelarão, passa por uma transição no
Brasil, pois o próprio DeRose agora, mais do que sair do microuniverso ioguico
brasileiro, parece não mais acreditar no ioga como via salvífica. Seu método agora se
utiliza também de outras técnicas para “o desenvolvimento pessoal”, como ele mesmo
diz. Será o ioga híbrido e permissivo de Hermógenes vencendo a ortodoxia e elitismo
de DeRose ou apenas a virada de mais uma fase nos ajustes e acomodações do ioga
latino-americano?
Para compreender o sucesso de um e o fracasso de outro, é necessário antes
partir de uma outra perspectiva que não revelamos: não há vencedores e perdedores.
O ioga, como estrutura religiosa autônoma e ainda em processo, mantém a sua lógica
a partir do jogo entre iogues híbridos e ortodoxos. Dito de outra forma, sem a
permissividade sincrética dos híbridos, personalizado na figura do Prof. Hermógenes,
o ioga não teria se popularizado e galgado os laboratórios de fisiologia científicos. Por
outro lado, os sincretismos advindos dos iogues híbridos poderiam ter diluído os
ensinamentos ioguicos em meio as mais diversas construções, se não existissem os
iogues tradicionalistas que freiam aos avanços híbridos e promovem, através do
sectarismo e mecanismos retóricos de deslegitimação de discursos, o resgate e
manutenção de conceitos caros ao ioga. O contorno que desenha e determina certa
estrutura do ioga brasileiro é assegurado pelos discursos contraditórios e ambivalentes
de híbridos e tradicionais.
Enquanto DeRose deixa claro que ioga “é qualquer metodologia estritamente
prática que conduza ao samádhi”. Hermógenes afirma que: “O verdadeiro religioso
90
faz do relaxamento um ato essencialmente místico. Para ele o relaxamento é um modo
prático, concreto e vivencial de rezar. No relaxamento, confia-se em Deus”. Com isso
em mente, no próximo capítulo, revelarei que a reforma na proposta salvífica do ioga
brasileiro desenvolveu discursos díspares, mas inclusivos. Em outras palavras, o
hibridismo de Hermógenes e o tradicionalismo do DeRose, diferentes no formato, são
complementares no microuniverso ioguico brasileiro. Enquanto a ala híbrida vincula-
se com o catolicismo popular brasileiro e biomedicina ocidental e pouco com os
elementos hinduístas; os tradicionalistas estão em constante alerta a traduções do ioga
sem o devido respaldo das suas escrituras.
Talvez a reforma soteriológica em processo no país se fez necessária - período
este que os iogues entrevistados a seguir se reportarão como “fase de transição” - para
desenvolver a versão iogaterapêutica de Hermógenes, hegemônica no país por mais
de setenta anos, menos pragmática devido a sua aproximação e apropriação da
ciência. Assim, hoje, a teoria dos klesas, a experiência mística do samadhi e o estado
libertador de kaivalya não pareçam mais estar fundamentadas nas escrituras
tradicionais hinduísta tão-somente, mas estabelecendo-se dialeticamente entre saúde-
salvação. As entrevistas a seguir confirmarão aprofundarão essa discussão.
91
Capitulo 4 O IOGA BRASILEIRO: CONVERSANDO COM IOGUES E CIENTISTAS
SOBRE O MAL, O BEM E VIAS DE SALVAÇÃO MODERNAS
4.1. Considerações preliminares
O ioga, apesar de sua visibilidade nacional, foi objeto de escassas
investigações no Brasil e América Latina sobre os princípios espirituais que o
norteiam contemporaneamente. Talvez por essa deficiência acadêmica, é bastante
comum, mesmo entre antropólogos e sociólogos, envolver o ioga dentro de novas
denominações espirituais e sem os limites que o singularizam. Defendo aqui o ioga
com características próprias e, no Brasil particularmente, a Iogaterapia do Prof.
Hermógenes prevaleceu como hegemônica ao longo de mais de cinquenta anos sobre
o Swasthya yôga do Mestre DeRose. Mas isso não significa que esse microuniverso
espiritual seja monolítico. Para facilitar a minha investigação por meio de entrevistas,
adotei o ioga brasileiro em três grupos de agentes ou interlocutores ideais: 1)
professores, 2) mentores e 3) cientistas.
O primeiro grupo de agentes é formado pelos professores que operam no
microuniverso religioso do ioga brasileiro ministrando aulas regulares em academias,
studios e espaços exclusivos. Estes são os principais divulgadores do grupo mentores,
pois mesmo que alguns não se sintam “discípulos” destes, propalam, vendem e
compram produtos proselitistas para serem divulgados aos seus alunos. O segundo
grupo é constituído pelo o que eu denomino de mentores do ioga. Estes são os
principais responsáveis por conservar, reformar, construir e disseminar os princípios
espirituais ioguicos no Brasil. Os mentores se diferenciam do anterior por: 1)
organizarem os seus próprios cursos de formação de professores de ioga, dessa forma,
renovando também os divulgadores da sua própria espiritualidade, tradição, método
ou escola ioguica entre alunos/praticantes; 2) os mentores também detém o poder de
fomentar seus ideias ioguicos através da produção e distribuição de seus próprios
produtos de ioga, como workshops, kirtans ou satsangs, livros, cd’s, dvd’s e etc; e 3)
por meio de retiros, viagens e/ou peregrinações a lugares especiais ao microuniverso
do ioga - como Índia, Japão, Machu Pichu, Nepal, Tibete e outros - conduzem alunos
e professores de ioga promulgando os princípios ioguicos que professam.
92
Durante as minhas primeiras entrevistas, no entanto, percebi que o grupo
cientistas que investigam as práticas ioguicas como terapêuticas também contribuíam
com a divulgação do ioga e de suas práticas corporais. Serão esses agentes, ao lado
dos mentores, que justificarão a eficácia das práticas do ioga entre os alunos e
professores. Senti a necessidade de incluir, então, o grupo cientistas, pois identifiquei
também uma forte presença de elementos da ciência nos discursos dos mentores.
Poderia inclusive ter incluído um quarto grupo, o de alunos/praticantes, mas
entendo que estes, mesmos mais numerosos (obviamente), atuam como consumidores
religiosos do que determinantes na construção e manutenção de novos bens de
salvação como os agentes anteriores. Se a minha pergunta fosse outra, provavelmente
a inclusão destes seria imprescindível. Outro ponto a não considerá-los, é o
comportamento difuso e errante que ainda prevalece neste grupo - apesar de estar em
processo de transição. A categoria alunos/praticantes cessam, algumas vezes, esse
comportamento (difuso e errante) quando ingressam em algum curso de formação,
mas neste momento, deixam de agir como alunos/praticantes e são autorizados à
categoria de professores ou mesmo mentores, dependendo da postura que exercerem
no microuniverso ioguico brasileiro.
4.2. O universo da pesquisa
Compreendo que as três categorias acima (professores, mentores e cientistas)
funcionam de forma orgânica - e não institucional – permitindo coesão ao ioga
brasileiro como entidade espiritual autônoma. Dito em outras palavras, estes agentes
organizam e dirigem o ioga como uma estrutura religiosa “invisível”. Ao contrário da
Índia, Europa ou Estados Unidos, aonde tradições e escolas modernas de ioga se
instalaram com toda a legitimidade de seus líderes instituídos por linhagens
ancestrais, o ioga na América Latina, como mostramos na sua história, precisou
organizar a sua própria estrutura que o impedisse de romper seus limites de fenômeno
religioso singular. Essa estruturação legitima, interpreta e constrói suas próprias
doutrinas e sistemas de atos e está baseada entre duas instâncias de pensamento
ideias: iogues híbridos - na figura do Prof. Hermógenes - e tradicionalistas - na figura
do mestre DeRose. Como descreverei em próximas subseções, a história dos meus
93
entrevistados vai se configurar como discípulos diretos, dissidentes ou simpatizantes
do ioga híbrido ou tradicionalista de alguma forma.
Escolhi assim, dez iogues do grupo mentores e mais três cientistas. A escolha
por esses dez iogues obedecem a importância destes na configuração e legitimidade
do discurso do ioga brasileiro. Há outros que poderiam compor esse quadro, mas não
acredito que se modificaria o conteúdo registrado. Através de entrevistas de caráter
qualitativo busquei hipotetizar qual o papel dos klesas no contexto espiritual do ioga
brasileiro.
As perguntas de forma semi-estruturadas, foram elabordas deixando os
entrevistados falarem com certa fluidez sobre os assuntos pré-abordados: 1)
Trajetória de vida: aqui consegui perceber que, mesmo conversando com dez iogues,
poderiam dividi-los em apenas dois grupos como adiantei acima (híbridos e
tradicionais); 2) Relaxamento: como minha hipótese partiu da ideia do estresse ter se
revelado um “obstáculo espiritual” - ou klesa – no ioga moderno, precisei discutir
sobre o seu oposto fisiológico (relaxamento) e perceber como os iogues entreviatados
se posicionariam sobre tal tema. O assunto surgia, geralmente, com a pergunta: “O
que o Sr. X pensa sobre o papel do relaxamento nas práticas e filosofia do ioga?”; 3)
Hinduísmo: aqui me preocupei em colher informações sobre o papel desta
religiosidade sobre o ioga moderno. A minha hipótese é que talvez o ioga não esteja
mais unicamente vinculado aos preceitos religiosos hinduístas; 4) Ecumenismo: neste
tópico conduzi a discussão sobre a influência de outras religiões e espiritualidades
sendo incluídas ao microuniverso religioso do ioga. Aqui pude analisar com mais
acuidade as tênues linhas que o sustentam (ou não) como identidade singular; 5) Ioga,
religião e suas influências espirituais: a pergunta aqui era, invariavelmente, direta e
sem rodeios como “O Sr.X considera o ioga uma religião? Por quê? Como o Sr.
classificaria o ioga?”. Meu foco nesta questão estava em compreender se os iogues
entrevistados ainda se comportariam como os adeptos da nova era, que rejeitam o
rótulo de “religioso”; 6) Ciência: o tema surge com o intento de revelar o quanto do
discurso científico afeta a comunidade do ioga; 7) Estresse, klesas e obstáculos
espirituais: por motivos óbvios a questão busca revelar as possíveis nuances
estabelecidas entre os temas centrais da tese.
94
4.3. Entrevistados
A escolha dos iogues entrevistados e classificados como “mentores”, como se
revelará a seguir, foi proposta por uma tríade que os separam dos professores e
alunos/praticantes. A tríade é formada por: 1) Estabelecimento de um curso de
formação que solidifique a ideologia espiritual que professe; 2) Edificação de
produtos sobre a proposta espiritual ioguica, como livros, cd’s, dvd’s e outros; e 3)
Peregrinações organizadas e guiadas a locais de importância espiritual para o ioga,
mas sobretudo, ao mentor e o seu ideal ioguico propriamente dito. Essa tríade
funciona e sustenta a estrutura religiosa “invisível” que comentei anteriormente.
A exceção se faz ao Prof. Hermógenes, que nunca possuiu uma escola de
formação propriamente dita, mas as suas obras se constituem verdadeiros livros
didáticos de ingresso ao microuniverso da sua cosmovisão do ioga, como veremos na
história de alguns mentores. Por respeito aos entrevistados, todos terão aos seus
nomes preservados.
4.3.1. Ravi
Pertence à tradição do swami Kuvalayananda e conhece o ioga no ambiente
acadêmico da Universidade de São Paulo (USP) na década de setenta pelas mãos de
Dona Inêz, também discípula do mesmo mestre e primeira iogue mulher no Brasil.
Assim como sua mentora, Ravi foi estudar em Lonavla/Índia no instituto de
Kaivalyadhama por quase dois anos. Lá, teve como mentor o Prof. Gharote entre os
anos de 1979-1980, coordenador na época do instituto fundado por swami
Kuvalayananda e considerado um dos primeiros incentivadores do “ioga científico” e
discípulo direto do swami. Ravi, inclusive, foi responsável por trazer o Prof. Gharote
diversas vezes ao Brasil em seus cursos de formação.
Em 1981 começa a lecionar ioga no campus da USP e se mantém lá até hoje.
A partir de 1996, inaugura o seu curso de formação em professor de ioga com a
chancela de uma universidade de São Paulo, aonde forma muitos professores de ioga
no Brasil na mesma perspectiva que estudou na Índia. Conseguiu incentivar os
estudos científicos do ioga, por isso possui entre os seus alunos, muitos com formação
acadêmica superior - inclusive ele mesmo possui mestrado em Neurologia. Ravi e
95
seus formados incentivam o ioga e as suas práticas a serem investigadas como forma
terapêutica no Brasil. Além dos cursos de formação que promove, organiza retiros,
palestras e viagens periódicas à Índia, mas também recentemente, ao Japão com a
monja Coen – conhecida representante do zen budismo no Brasil. Possui, devido a sua
formação e fidelização apenas a Kuvalayananda, forte tendência tradicionalista.
4.3.2. Centurion
De origem espírita teve fortes experiências, como narra, do curandeirismo por
parte dos seus avós. Se considera um “cristomaníaco” e possui em suas costas tatuado
a figura do anjo São Gabriel, com quem diz conseguir se comunicar e pedir
aconselhamentos.
Nasce em 1965 e com 25 anos (1980) descobre o ioga com um professor da
tradição de Iyengar no Brasil, em reuniões de uma organização de estudos esotéricos
em São Paulo no qual fazia parte. Foi aluno do DeRose por um ano, mas depois
decidiu se aprofundar mais no ioga e viajou para Índia por quase dois anos. Foi
quando aprendeu a iogaterapia e ayurveda pela tradição da Bihar School, do swami
Satyananda - discípulo de Sivananda. Na Índia ainda, conhece o iogue Pattabhi Jois,
idealizador de um dos métodos de ioga mais conhecidos Ocidente, o Asthanga
Vinyasa Yoga.
Foi o primeiro professor representante brasileiro desta tradição e se torna
bastante popular por lecionar para artistas nacionais. Possui, inclusive dvd’s de ensino
deste método. Após um incidente ocorrido em um dos seus retiros no ano de 2008, é
praticamente banido pela comunidade ioguica, mas mantém o seu ashram em
funcionamento em São Paulo. Enquanto atuava com maior autoridade no
microuniverso do ioga brasileiro, formou os principais professores do método de Jois
no país, além de possuir escolas de ioga, promover palestras e retiros de ioga. Por seu
sincretismo com a figura de Jesus Cristo, São Miguel e o espiritismo é considerado
aqui como híbrido.
96
4.3.3. Vishnu
Nascido em Campinas, cidade do interior de São Paulo, conhece o ioga por
intermédio de sua mãe que já praticava através dos livros do Prof. Hermógenes em
casa na década de 1980. Em 1990, com 18 anos, vai estudar nos Estados Unidos e se
gradua no equivalente ao curso de Educação Física, e continua no estrangeiro
trabalhando em algumas cidades deste país e na Espanha com treinamento desportivo
e ioga. Neste período, entra em contato com outros métodos de ioga moderno, como o
Power Yoga, e se aperfeiçoa neste.
Em 1994, ainda nos Estados Unidos, diz ter “sentido um chamado” de voltar
ao Brasil para disseminar o conhecimento do ioga. Estabelecendo-se na cidade de
Florianópolis percebe o ioga brasileiro, segundo ele: “respirando dois ambientes: ou
se era Hermógenes ou DeRose”. Depois de praticar alguns meses no método
Swasthya Yôga, diz ter sido hostilizado pelo professor e saiu. Decide então, abrir a sua
própria escola de ioga na cidade e é o primeiro professor de Power Yoga no país.
Conta que ensinava “yoga fitness”, divertindo-se hoje do nome que inventou na
época.
A partir dos anos de 2000, envereda por um trabalho bem mais sincrético
espiritualmente no intuito de proteger-se dos rótulos e denominações diferentes de
ioga no país, mas também fugir da comparações de praticar e ensinar um ioga
“americanizado”. Neste mesmo projeto, além dos cursos de formação, retiros,
workshops com temas bastante ecléticos que sincretizam Jesus, xamanismo brasileiro
com ensinamentos do Bhagavad Gita, lança cd’s e dvd’s de encontros musicais
ecumênicos de mantras e canções de comunhão espiritual. Viaja anualmente para
Índia e outros locais como Machu Pichu e os Andes promovendo encontros
xamânicos com o ioga. Sua vertente é claramente híbrida e se tornou um dos iogues
mais conhecidos no Brasil desta vertente atualmente.
4.3.4. Ganesh
Conhece o ioga na juventude no Uruguai, seu país natal. Estabeleceu-se no
Brasil como um dos principais formados do mestre DeRose. Depois de mais de dez
anos praticando e promovendo o Swasthya Yôga rompe com DeRose por divergências
97
doutrinais. Essa ruptura gera insultos entre ambos e até hoje é fruto de discussões e
ofensas.
Anos mais tarde se filia ao mestre Pattabhi Jois e se torna divulgador e
praticante do método Asthanga Vinyasa Yoga, mas abandona anos depois, novamente
por não acreditar mais na proposta e objetivo dessa tradição de ioga. Há alguns anos
se aprofunda nos ensinamentos vedantinos do guru indiano swami Dayananda
Saraswati. O Swami Dayananda Ashram é um centro de estudos do vedanta advaita
de Shankara e sânscrito estabelecido na Índia desde os anos de 1960. Dayananda e
seus discípulos, como uma interpretação mais voltada para os problemas
contemporâneos do mundo através dos textos clássicos hinduístas promovem retiros e
cursos de ioga, sânscrito e vedanta para indianos, mas sobretudo estrangeiros48.
Ganesh produz cursos de formação em ioga e viaja às principais cidades
brasileiras e algumas da Europa promovendo o ioga e seu guru. Além disso, guia
anualmente (em geral seus formados) em peregrinação ao ashram do seu mestre e a
outras cidades da Índia no intuito, como todos os mentores do ioga brasileiro, difundir
e conservar a tradição do ioga que confessam. Seu posicionamento a favor do
tradicionalismo do ioga é o mais evidente entre todos os entrevistados, assumindo,
muitas vezes, uma ortodoxia mais forte do que DeRose.
4.3.5. Bento
Era um empresário bem sucedido do ramo da telefonia com mais de 500
funcionários, mas cansou do ritmo da sua vida acelerada de executivo e trocou tudo
pela espiritualidade do ioga. Começou como aluno em uma das unidades do Swasthya
Yôga de DeRose. Decidiu fazer uma formação de ioga e as concluiu em duas no
Brasil: de Ravi e Visnhu.
Após as formações decidiu comprar uma escola de ioga em São Paulo e
ingressou em uma viagem de quase dois meses à Índia com um renomado professor
de ioga do estilo Iyengar. Durante a viagem diz ter sofrido uma profunda angústia e
pensou que iria morrer. Foi quando obteve uma “revelação aos pés do Himalaia” que
48 Ver www.dayananda.org/swami-dayananda.html, acessado 01/07/2015.
98
mudaria definitivamente a sua vida. O conteúdo da revelação girava em torno de por
que os professores e iogues (mentores, como denomino) que conheceu no Brasil “não
eram boas pessoas”. Percebeu que o ioga que ensinavam e praticavam não estava
funcionando a elas e, obviamente, também não funcionaria para os alunos que
formavam. Assim, decidiu montar o seu próprio curso de formação, organizar viagens
à Índia e promover cursos, workshops e sat sanghas para difundir o ioga. No mesmo
período fundou uma Organização Não-Governamental, o Ser Humano Sem
Fronteiras.
Possui, ao contrário de todos os outros entrevistados, um guia espiritual
católico, Dom Alexandre, seu “guru”. Dom Alexandre ministra cursos e orienta leigos
e religiosos na meditação cristã da Igreja de São Bento em São Paulo. Foi na mesma
igreja, que Bento, após mais uma de suas crises existenciais, encontrou Dom
Alexandre que ofereceu encaminhamento espiritual a ele nunca mais interrompeu.
Sua linha de disseminação do ioga é obviamente plural, sincrética e híbrida, portanto.
4.3.6. Shanti
Inicia no ioga aos 14 anos na cidade de Florianópolis (1987) e considera-se
uma “buscadora espiritual”. Foi aluna e professora do método do mestre DeRose por
muitos anos, quando se desentendem por discordâncias doutrinais. Morou na Europa
por quase dois anos e conhece novas escolas de ioga em sua estada. Quando viajou
pela Índia por seis meses se interessou pelo ioga de Satyananda, discípulo de
Sivananda, e estuda na Bihar School, conhecida por mesclar o conhecimento do ioga
com princípios da biomedicina Ocidental e o ayurveda indiano.
Por intermédio de um professor de ioga no Brasil conhece o Asthanga Vinyasa
Yoga e, até recentemente, dedica-se ao ensino e formação de outros iogues neste
método. Após uma formação no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, conhecido
reduto de fomentação de novos métodos de ioga, toma conhecimento de uma
formação em Asthanga Vinyasa Yoga promovido sistema It’s Yoga e conhece em
Bali/Indonésia a sua guruji (não mencionada o nome).
Há alguns anos foi acometida de um linfoma que muda drasticamente a sua
vida, a sua prática de ioga e forma de viver a vida. O estilo de ioga Asthanga é
99
bastante vigoroso fisicamente, desta forma, com o câncer e o tratamento
medicamentoso, Shanti diminui drasticamente o seu ritmo de prática corporal e,
consequentemente, revê o seu ioga espiritualmente também. Frente a esses fatos, e
aconselhada por outros amigos iogues, se volta aos ensinamentos iogaterapêuticos do
Prof. Hermógenes e encontra consolo espiritual em suas obras. Deste modo, de
tradicionalista vem ressignificando a sua prática pessoal, discurso em suas formações,
retiros e viagens a Índia que organiza para uma vertente se aproximando do
sincretismo, portanto, do ioga mais híbrido de Hermógenes.
4.3.7. Hermes
Inicia no ioga desde criança com a mãe, professora de ioga formada pelo
método do mestre DeRose. No entanto, são com os livros do Prof. Hermógenes que
primeiro trava contato literário com a doutrina do ioga. Hermes aos 16 anos inicia a
sua formação nas escolas de ioga que DeRose coordenava no Rio de Janeiro na
década de 80, aonde se destaca e se transforma professor e a lecionar na própria
metodologia.
Anos após professor do Swasthya, rompe com o mestre DeRose e inicia
caminhada própria no microuniverso do ioga brasileiro, abrindo escola, organizando
formações, palestras e apresentações de método próprio em desenvolvimento. Nesse
ínterim, muda-se para São Paulo, lança livros e ganha notoriedade em âmbito
nacional. Atualmente organiza também viagens à Índia, mantém seus cursos de
formação e venda de produtos de ioga em escola própria.
Assim como outros dissidentes do mestre DeRose, Hermes verte por um ioga
mais tradicionalista do que híbrido. Durante as entrevistas, por exemplo, apesar de ser
grato pela contribuição do Prof. Hermógenes não vê com bons olhos o sincretismo
que promove com o cristianismo e terapia, acreditando que haverá um dia em que
todos saberão as deformações que se fez com o hatha-ioga no Ocidente.
100
4.3.8. Rudá
Estabelece contato com o ioga pela primeira vez com a mãe. Segundo ele,
durante o processo depressivo da mãe, o pai de Duda presenteia-a com um livro de
ioga do Prof. Hermógenes na ânsia de resgatá-la desse quadro enfermo. Anos mais
tarde, ele e a mãe ingressam em curso de formação do Prof. Cláudio Duarte em São
Paulo.
O Prof. Cláudio Duarte foi um conhecido iogue brasileiro que nos anos de
introdução do ioga no Brasil (anos de 1970-1980), travou dissensões com a autoridade
do mestre DeRose e seu “yôga”, por isso Duarte sempre grafou “yóga” justamente
para diferenciar-se do Swasthya Yôga. Essa discussão gramatical é clássica entre os
iogues brasileiros entre as décadas de sessenta aos anos de 2000, e revela na verdade,
uma disputa que ajudou ao ioga brasileiro consolidar-se como fenômeno religioso
singular, ao mesmo tempo que acarretou desentendimentos. O que nos interessa aqui,
é ter conhecimento que Rudá participou e vivenciou muito dessa contenda, assim
como todos os mentores anteriores que descrevi e que entrevistei.
Após formar-se em Educação Física, em 1998, Rudá inicia outra formação,
mas agora com o Centurion no método do Asthanga Vinyasa Yoga. A sua formação
acadêmica em Educação Física e vivência entre o meio ioguico brasileiro o capacitou
ser convidado ministrar o ioga como disciplina de graduação em universidade
paulista. Participou integralmente na idealização de uma formação para professores de
ioga e, mesmo não desenvolvendo ainda peregrinações periódicas a locais “sagrados”
ao ioga como seus colegas, a posição de formador de professores de ioga com a
chancela acadêmica, algo realizado apenas por Ravi e DeRose anos passados, o
autorizam como um mentor em andamento de sua própria metodologia de ensino
espiritual. Por sua vivencia mais abrangente, ensina e professa o ioga híbrido.
4.3.9. Andurá
O cientista Andurá conhece o ioga e a meditação através das artes marciais
ainda jovem. Segundo ele, fez e conheceu as mais diversas práticas meditativas, mas
as considerava todas “muito místicas”. Quando convidado pela Universidade Federal
101
de São Paulo para o seu doutorado envereda na discussão das benéficas repercussões
da meditação para gestantes.
Em 1994, a sua tese gera ótima recepção da comunidade acadêmica
internacional pela definição operacional que concebe para a meditação - descrita na
subseção 4.4.4. Atualmente ainda atua como pesquisador, mas a sua principal
ocupação está voltada para os cursos que produz e ministra de formação para
facilitadores de meditação em saúde. Seu curso, de certa forma, se assemelha com as
formações em ioga realizadas pelos mentores do ioga descritos acima, no quesito a
referência aos textos do ioga (mesmo que historicamente) a respeito da meditação.
Como veremos, o posicionamento de Andurá com relação aos mentores do ioga
brasileiro, chega a ultrapassar, em alguns momentos, os limites do que a ciência está
autorizada a discutir. Sua figura, no entanto, em alguns núcleos ioguicos é valorizada,
enquanto que abolida em outros, e suas definições sobre estados e práticas
meditativas/ioguicas podem chegar a desautorizar discursos ioguicos alheios.
4.3.10. Osiris
A cientista Osiris conhece a meditação/ioga através da vida como desportista
nas artes marciais. Sua graduação em biologia pela Universidade de São Paulo e
depois os anos do mestrado (1999), doutorado (2002) e pós-doutorado (2012) pelo
Albert Einstein de São Paulo, a autorizaram ser considerada uma das mais
importantes pesquisadoras na área de meditação do país.
Atualmente é professora afiliada do departamento de Psicobiologia da
Universidade de São Paulo e as suas principais pesquisas abordam a neurofisiologia
de estados de consciência como a meditação através da neuroimagem funcional e a
avaliação de intervenções que envolvem treinamento de habilidades cognitivas e
comportamentais que promovam uma melhor qualidade de vida e bem-estar. Está
hoje também bastante envolvida com o Instituto Palas Athena de São Paulo que
divulga, entre outros assuntos, a vinda do Dalai Lama ao Brasil e outros cientistas e
monges que investigam práticas espirituais de contemplação.
102
4.3.11. William
Aprende as práticas de ioga e meditação ainda adolescente com o seu pai em
São Paulo. Graduado em Educação Física, deu continuidade a vida acadêmica com o
mestrado em Farmacologia e o doutorado investigando o ioga como uso terapêutico.
Praticando ioga depois em Santos/SP, aprende uma espiritualidade muito mais
medicinal do que vedântica, pois o seu professor na época foi bastante inspirado nas
obras do Prof. Hermógenes. Já adulto resolve ingressar em uma formação para
professores de ioga com Ravi, no “ioga científico”. Ministra aulas na rede pública da
cidade de Santos/SP, mas depois abandona e segue a vida de professor acadêmico
aonde atua até hoje. Seu doutorado concorreu a prêmios nacionais de revelação
acadêmica e possui artigos acadêmicos publicados pelo mesmo departamento da
Universidade Federal de São Paulo de seus dois colegas anteriores.
4.4. Questões de aproximação
A partir da análise das sete questões pré-elaboradas iniciais (1. Trajetória de
vida; 2. Relaxamento; 3. Hinduísmo; 4. Ecumenismo; 5. Ioga, religião e influências
espirituais; 6. Ciência; e 7. Klesas, estresse e obstáculos espirituais) agrupei os
comentários em quatro subseções que seguem: 4.4.1. Práticas e estados de ioga
ressignificados; 4.4.2. Ciência e ioga na construção de uma nova espiritualidade
terapêutica em andamento; 4.4.3. Fase de transição na comunidade ioguica brasileira
em busca da sua identidade religiosa; 4.4.4. A crença na ordem cósmica e prana
estabelecendo dialética entre o estresse e o relaxamento espiritualizados; 4.4.5.
Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya; 4.4.6. A
crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e o
relaxamento espiritualizados.
A ordem das perguntas não necessariamente seguiram-se como expostas
acima, mas serviram muito bem de estrutura para as gravações das entrevistas. Os
conteúdos das questões formaram a base para elaboração das questões subsequentes e
me ajudaram a organizar os argumentos discutidos no capítulo cinco.
103
Com relação as quatro subseções a seguir, elas são cruciais para se hipotetizar
a lógica que sustenta a estrutura do ioga como um novo movimento religioso,
desvinculado do hinduísmo e demais denominações advindas da Nova Era, mas
sobretudo, para se buscar ampliar a compreensão dos meandros que levaram
possivelmente o ioga brasileiro acomodar as causas do Mal/klesas à configuração
atual. No primeiro momento, apresento uma divisão que os líderes do ioga realizaram
entre “prática ou método” de “estado ou experiência” do ioga, permitindo a eles
mesmos excluírem do seu microuniverso qualquer tentativa de secularizar o ioga pela
fisiologia científica biomédica. Essa estratégia resguarda a promessa ioguica de
salvação/libertação, ao mesmo tempo em que autoriza os avanços da ciência na
investigação dos seus benefícios terapêuticos.
Na subseção ulterior, exponho pela primeira vez uma nova categoria de
agentes atuando na manutenção e reformulação do discurso do ioga. Mesmo sem a
intenção real (e muitas vezes, contra a pretensão dos agentes), o conteúdo discursivo
dos cientistas os incluem como parte inclusiva, junto com a dos mentores, ao
microuniverso ioguico em formação brasileiro. Logo, posso supor algumas
colocações dos cientistas, uma condição destes de “cientistas-monges” ou
“meditadores-cientistas”. Esta posição de cientistas-monges, não os encaixa nem
como alunos e muito menos como mentores. De alguma forma, durante a análise das
entrevistas, foi se evidenciando cada vez mais a importância do conteúdo da fala dos
cientistas na construção compreensiva dos klesas ao lado do posicionamento dos
mentores sobre o mesmo tema.
A partir do relato dos cientistas entrevistados, aflora em alguns momentos, um
discurso que visa desautorizar a fala dos mentores do ioga com relação aos conteúdos
doutrinários e práticos, por exemplo. Em palavras mais simples, há críticas de
mentores contra posicionamentos de cientistas, mas também de cientistas criticando o
conhecimento (e posicionamento ético) inadequado dos mentores sobre suas doutrinas
e sistema de atos espirituais. A contenda não reside – reforço - entre ciência e ioga,
mas entre cientistas e iogues. Desse modo, ao invés de analisá-los como um
posicionamento da ciência, avalio-os como parte integrante da estrutura religiosa
“invisível” que, hipoteticamente ainda, parece reger o ioga brasileiro.
104
Na análise da terceira subseção, mostro uma fase de transição com o fim da
disputa entre os agentes mais populares ao longo de setenta anos do ioga brasileiro, o
embate entre o Prof. Hermógenes e Mestre DeRose. O término dessa contenda (em
processo ainda), entretanto, não impede que novos mentores do ioga surjam em cena
com o mesmo mote discursivo: híbridos versus tradicionalistas. A diferença agora fica
a cargo do maior tom propalado pelos “herdeiros” atuais da ortodoxia ioguica
brasileira. Em suma, a hegemonia está em processo de inversão, agora são os
tradicionalistas, herdeiros de certa forma do mestre DeRose, levantarem as suas vozes
contra os hibridismos e permissividades religiosas, talvez, no intento de resguardar ou
“resgatar” certo “purismo” no ioga em que vivem.
Na última subseção percebo duas crenças antigas que permanecem e
alinhavam os novos símbolos e bens de salvação do ioga no país: prana ou energia
transfisiológica, e a ideia de ordem cósmica que rege desde a natureza, a sociedade, o
funcionamento dos corpos até a vida em si. Essas duas crenças irão substanciar as
transformações advindas do entrelaçamento do ioga com a fisiologia científica,
sobretudo, estabelecendo diálogo espiritual entre o conceito do estresse-ioguico com
os klesas e emoções nefastas à dialética saúde-salvação, já levantada em capítulos
anteriores e retomada aqui.
4.4.1. Prática e Estado de ioga ressignificados com vistas a deslegitimar cientistas
Analisaremos ao longo deste capítulo trechos das entrevistas, tanto com iogues
quanto cientistas brasileiros, no intuito de apresentar os seus discursos que podem
estar em movimento de uma nova proposta de salvação do ioga no país. Notaremos
uma reforma espiritual ocorrendo na compreensão brasileira da teoria dos klesas no
seu encontro com o microuniverso religioso ioguico. Segundo o psicanalista brasileiro
Christian Dunker, podemos pressupor o sofrimento centrado no desejo de uma vida
diferente; esta angústia, na perda da experiência de uma forma de viver ainda não
reconhecida, implicaria na necessidade de compreende-la como obstáculo ou
contradição não reconhecidas (DUNKER, 2015, p.19-22). Os klesas, como os
obstáculos à kaivalya ou causa do sofrimento espiritual, podem estar centrados no
desejo de iogues brasileiros por uma vida diferente ou em experiências de um jeito de
vida ainda não descoberto.
105
Dessa forma, a teoria clássica dos klesas - ou os obstáculos que originam o
sofrimento de um grupo de iogues indianos do século II a.C. - quando encontram
cultura e sociedade diferentes, torna-se plausível supor, modificarem os sintomas e/ou
causas do que foi o impedimento à felicidade de outrora (ignorância, apego, aversão,
medo da morte e orgulho). Logo, investigar os klesas no microuniverso do ioga
brasileiro, pode contribuir - o mínimo que seja - na compreensão das causas do
sofrimento existencial dos que buscam no ioga uma vida mais plena e feliz. Abaixo,
inicio apresentando o diálogo estabelecido entre o estresse como obstáculo espiritual
ao samadhi, a vivência religiosa transitória que antecede kaivalya:
Hermes: o estresse impede a [experiência do] samadhi. Bento: o estresse impede ao estado de ioga. Tem o estresse controlado, que as vezes é necessário, mas tem o estresse que é um realmente um obstáculo (...) o método abaixa o estresse-obstáculo e assim, auxilia-nos a atingir o estado. (...) Não existe deus no ioga, pois Isvara é um estado. Shanti: o estresse nos afasta, nos desconecta [do estado]. E é o estado de ioga que abaixa o estresse. Ele acalma a mente, aterra... e assim, nos ajuda a conectar novamente.
O “estado” ao qual os iogues mencionam parece se referir a experiência do
próprio samadhi ou comunhão com deus/Isvara como explicitou Bento, enquanto a
“prática” ou o “método” vem configurando-se como o sistema de atos com empíricas
repercussões averiguadas pela ciência no intuito do alcance da cura de doenças (sejam
de ordens físicas ou psíquicas). O objetivo permanece: diminuir os efeitos do
“estresse-ioguico” no corpo, mas o pano-de-fundo se revela em curar-se de forma
transcendente de certa angústia latente ou obstáculo/klesa que impede que o samadhi
ou “estado de ioga” ocorra. Outros entrevistados, inclusive cientistas, aprofundam a
questão nos fornecendo mais chaves-de-leitura:
Shanti: Reagir é algo negativo porque não se tem consciência na reação. O ioga lhe traz para o momento presente. A prática no tapete é um ritual de nos trazer para o presente, o Eu. Rudá: o ioga diminui a agitação, o estresse e a ansiedade da minha vida, ao mesmo tempo o ioga me dá energia, me tira de um estado torpor e me deixa no estado de ioga. O estresse me desconecta e me faz sair do estado de ioga... a união. A respiração [pranayama] me traz para o aqui-e-agora e diminui os meus vrttis [causador da agitação mental advindo dos klesas] e meu estresse.
106
Andurá: Meditar serve para reduzir estresse e aumento da performance mental e aumenta o sistema autoimune. Meditar pode desacelerar a mente e ajudar pessoas em tratamento psicoterapêuticos. Osiris: Ioga é para redução de estresse. A resposta do estresse salva vidas. Mas na cultura do ioga o estresse atinge o status de ser melhor manejado. Os iogues buscam diminuir o estresse, aumentar o bem-estar e ser alguém melhor. Não ser tão afetável pela sociedade moderna, de consumo e estressada, é um dos grandes objetivos dos iogues com quem convivo e estudo. (...) As posturas do ioga podem diminuir as aflições mentais e conduzir ao relaxamento. Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a primeira fase da meditação. (...) O ioga tem uma vertente “terapia” sim. Ioga é instrumento anti-estresse pela maiorias das pessoas. William: Sem dúvidas, a prática ioguica repercute na redução do estresse a melhora do sistema autoimune de seus adeptos.
A dicotomia entre prática e estado no ioga foi se evidenciando durante as
minhas audições, mas no decorrer da coleta de dados fui percebendo ser possível
correlacionar essa separação apresentada, entre prática e estado de ioga, como uma
nova compreensão dos klesas ou causa da angústia, estresse, emoções extremas ou
ansiedade. Se adotarmos modernamente, pela fundamentação do capítulo 2, os
klesas a partir das repercussões deletérias do estresse e sentimentos/emoções
específicas, a manifestação do estado de ioga pode estar sendo relacionada com
menores manifestações de doenças no corpo-mente. Como consequência, esses fatos
corroboram as nossas suposições de que as práticas de ioga estabeleceriam uma
relação em processo entre terapia-cura-salvação específica ao contexto brasileiro.
Por enquanto, o que fica é que as práticas corporais e o estados de ioga foram
ressignificados e distinguidos.
O contato do ioga com a ciência – além de outros fatores como veremos –
pode ter enfraquecido a força das escrituras ioguicas calcadas no hinduísmo e outras
religiões ao longo de séculos na Índia, e elevado o das sensações corporais e as suas
repercussões terapêuticas legitimados pela ciência desde o início do séc. XX.
Centurion: o ioga sempre esteve desvinculado do hinduísmo enquanto religião. Vishnu: o ioga está desvinculado do hinduísmo modernamente. Ravi: A imbricação do ioga com as religiões é algo ruim para ele. É um erro achar que juntar duas religiões pode gerar uma terceira melhor. Não acho correto rezar o pai-nosso no ioga. Cada religião deve manter as suas concepções restritas ao seu próprio contexto religioso. Não preciso do hinduísmo para praticar o ioga. Mesmo que o ioga peça alguma divindade a quem entregar-se. Isvara é o deus pessoal e você o compõe. A ciência
107
corrobora com o ioga. Prana não é científico porque a ciência ainda não conseguiu provar. É uma questão de tempo. Shanti: o encontro do ioga com a ciência foi excelente para o ioga. O ioga produz saúde. A ciência afasta a mística do ioga.
Fica evidente acima que o hinduísmo vem perdendo a sua força de coesão da
comunidade moderna do ioga, e a ciência, como uma das principais ferramentas
proselitistas do ioga moderno (ALTER, 2004), possivelmente auxiliando a elevar os
aspectos mais corporais e terapêuticos do ioga. Assim, mesmo que a face mais física e
terapêutica do ioga exista desde os seus tempos medievais (como demonstramos no
primeiro capítulo), contemporaneamente, foi o enfraquecimento do ioga como
religiosidade autônoma, o fator que o diferencia de tempos passados. É bastante
comum, mesmo cientistas da religião, incluírem diversas denominações de ioga sob a
esfera de novos movimentos religiosos (GUERRIERO, 2006, p.111-132), ao invés de
pertencentes ao mesmo microuniverso religioso, o que remove a perspectiva de
investigá-lo como uma religião autônoma. Isso reduz o ioga e não nos permite
compreende-lo em sua íntegra.
O ioga moderno, por questões sociais que desenvolvemos no capítulo 1, teve a
ciência como seu principal veículo de ajuste e adaptação quando da transplantação do
ioga indiano para os grandes centros urbanos ocidentais (DeMICHELIS, 2008, p.17-
21). Isso aproximou muitos cientistas conhecerem, praticarem e investigarem o ioga e
a meditação com fins medicinais. No Brasil, como expomos no terceiro capítulo,
foram os próprios brasileiros que vieram estabelecendo suas diretrizes de conduta
ética e causas do sofrimento. Os discursos versados nas obras de Amit Goswami,
Fritjof Capra, Allan Wallace, Deepak Chopra e outros, que criticam o realismo
materialista da ciência, a origem mística das religiões e a capacidade delas em
transmitir a essência de suas experiências para as sociedades modernas (NOGUEIRA,
2010), parecem ter autorizado, ambivalentemente, cientistas brasileiros a disputarem
com os iogues, na produção e manutenção de novos bens de salvação no ioga,
fazendo surgir o que identifiquei aqui como cientistas-monges. Com base em
caracteres fisiológicos, estes cientista-monges e o iogues-mentores (como
Hermógenes), acabaram legitimando com a chancela da ciência as práticas modernas
do ioga como inibidoras do estresse e promotoras da saúde via experiência do
relaxamento.
108
Andurá: Não podemos confundir o estado de dhyana [meditação propriamente dita] com o método de dhyana. Com isso, perdemos a essência dos sutras de Patanjali. Ninguém mais sabe o que ele quis dizer. Eles [os iogues] não aceitaram a minha definição operacional de meditação [acadêmica, portanto legítima]. Para eles, não existe prática de dhyana, é só estado, e isso é um erro. A prática meditativa não é sagrada do ponto de vista mental. William: Quando assistimos um iogue afastar dois de seus professores porque um deles relaciona ioga com religião, fica evidente que se eles falam [mentores] que ioga é religião perdem mercado, é uma hipocrisia e ignorância alimentadas por uma necessidade de sobreviver nesse mundo caótico. É o mundo do capital. Hoje ninguém domina no campo do ioga. O DeRose foi um grande dominante, as demais pequenas seitas sendo esmagadas o destruíram. Talvez por isso DeRose diz que não trabalha mais com ioga. Há um desgaste do nome ioga. O ioga pode ter virado uma PNL [Programação Neolinguística]. Talvez se o ioga assumir que é religião tomará de mil a zero das religiões pentecostais: tem promessas mais divertidas do que a do ioga. O ioga promete diminuir estresse e dor nas costas. O ioga nos anos 1960-70 tinha uma grande promessa, mas foi diluída no movimento contracultural peace and love.
A partir das citações dos cientistas acima, percebe-se que o foco não está na
desmistificação do ioga, mas em deslegitimar o discurso dos mentores do ioga
brasileiro pelos cientistas-monges. Quando Andurá, por exemplo, afirma que os
iogues não sabem o que Patanjali quis dizer, se posiciona como detentor deste saber e
não os iogues com quem convive e investiga em seu laboratório. Para ele, por
exemplo, dhyana não é apenas um “estado de ioga” - portanto, do alcance exclusivo
de iogues autorizados pela “tradição” - mas também uma “técnica”. Sendo uma
técnica, convida a ciência – e a si-mesmo - a participar do microuniverso
religioso/espiritual do ioga, no qual apenas os iogues-mentores possuíam o direito de
discursar até início do séc. XX. Com as práticas e estados ioguicos divididos a sua
autoridade entre iogues e cientistas, o ioga brasileiro busca meios próprios de
autorizar seus líderes de existir e delimitar seus limites como espiritualidade
autônoma.
4.4.2. Ciência e Ioga na construção de uma nova espiritualidade terapêutica em
andamento
Segundo Silas Guerriero, classificar novos movimentos religiosos não é tarefa
das mais fáceis. Contudo, todas as religiões, sem exceção, surgem do seio de
sociedades e são elas reflexos da maneira de viver de núcleos sociais específicos e
109
concretos (GUERRIERO, 2006, p.21; Id., 2014), por isso ajudam a responder (e erigir
muitas vezes também) o sofrimento dos indivíduos que a compõem. Em cada
sociedade moderna, no entanto, centenas de religiões convivem entre si e, muitas
vezes, o encontro de duas – ou mais - delas possibilitam o aparecimento de uma
terceira. Guerriero cita o exemplo da ISKSON, um novo movimento religioso que
aparece em Nova Iorque e São Francisco, nos Estados Unidos, com a vinda de um
guru indiano, mas que depois se expande a dezenas de outras cidades ocidentais. A
ISKCON (Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna), a exemplo do
ioga, é transplantada da Índia e depois acaba ganhando contornos espirituais
definitivamente singulares que a tornaram possível hoje, distingui-la como uma
religião particular, com suas próprias práticas, doutrinas e líderes constituídos.
Mesmo comparada ao Hinduísmo, a sua principal influência religiosa, a ISKCON é
absolutamente autônoma e independente (GUERRIERO, 2001). Talvez o ioga
moderno possa enverdar pelo mesmo caminho.
As influências do ioga moderno são vastas, dos hinduístas - sua referência
mais óbvia – aos jainistas, shikhis, budistas, tântricos, sufis muçulmanos e,
recentemente bebeu de movimentos ocultistas europeus, mas sobretudo, da ciência
biomédica ocidental (ALTER, 2004; DeMICHELIS, 2004; SINGLETON & BYRNE,
2008; SINGLETON, 2010). No Brasil, os iogues-híbridos e os cientistas-monges
comungam de certa permissividade com outras espiritualidades, além de acalentarem
o romantismo do surgir de uma “nova ciência” – como leremos - que na verdade,
corresponde ao desejo de ruptura com a ordem vigente, tanto das religiões dominantes
quanto do empirismo da ciência, pensamento típico da espiritualidade Nova Era
(AMARAL, 2000, p.21-32). E é justamente neste ponto, que talvez os agentes do ioga
brasileiro parecem concordar. Híbridos, tradicionalistas e cientistas-monges parecem
direcionar as suas narrativas na busca de traduzir a espiritualidade do ioga, cada um
com as suas particularidades – como estamos destacando -, mas atuando na sociedade
brasileira como agentes religiosos na cura do sofrimento espiritual do microuniverso
que atuam.
O ioga brasileiro, no entanto, ainda não permite definições tão evidentes de
um novo movimento religioso estabelecido como já ocorre com a ISKCON, mas todo
início requer certa motivação tanto de seu microuniverso consolidar-se, quanto da
ciência da religião em compreende-los. Mas algumas pesquisas no universo europeu e
110
norte-americano (DeMICHELIS, 2004; NEWCOMBE, 2008; JAIN, 2010) e no Brasil
também já apontam tais aproximações (GNERRE, 2010; GUERRIERO, 2014;
SANCHEZ, 2014). Como esclarece Guerriero, as religiões não surgem do nada ou da
“mente de um líder criativo”, mas da ruptura ou posição contrária à revelação original
(GUERRIERO, 2006, p.21). Talvez o ioga brasileiro, e as suas transformações que
revela-se sobre a sua soteriologia venham corroborar tal posição de um novo
movimento religioso em formação. As principais características dos novos
movimentos religiosos modernos são o seu forte sentimento de mudança social e a
universalidade que proclamam suas crenças (Ibid., p.74-76). Das duas características
dos novos movimentos religiosos descritas por Guerriero, o sentido de pertença a uma
religião universal está presente no ioga moderno desde os pronunciamentos de swami
Vivekananda, ainda no final do século XIX, como já expomos no primeiro capítulo.
Com relação ao desejo por mudanças sociais, teceremos justificativas nas subseções
que se seguem que poderão auxiliar as ciências da religião na classificação do ioga
como um novo movimento religioso em processo no Brasil. Por ora, analisaremos as
audições que solidificam a influência de cientistas e iogues nas transformações
soteriológicas do ioga no Brasil.
Rudá: Vivemos em um mundo que precisamos de comprovações científicas, mas se as pessoas não experienciarem o estado de relaxamento espiritual do ioga, não haverá mudança de estar presente. O entrosamento do ioga com a ciência é necessário. Ravi: A ciência precisa da espiritualidade para comprovar seus dados, não é o ioga que necessita dela. A ciência reconhece a espiritualidade para a cura de doenças. Centurion: o estresse é uma crença científica. Ele na verdade não existe [sic], mas o ioga pode eliminar essa crença.
Por isso talvez, cientistas e mesmo alguns iogues entrevistados, parecem
elevar a técnica ou a prática mais do que o valor das suas escrituras. A questão que
levanto, no entanto, é o discurso do ioga e da ciência se assimilarem em diversas
passagens com relação à maior ênfase na prática do ioga do que no valor das
escrituras e de seus líderes exclusivamente:
Shanti: [O ioga] É estar presente. Agir e não reagir. O iogue deve transpirar e transbordar ioga. O ioga deve se transformar em conhecimento. Não preciso ser nada para ser iogue. Só preciso praticar. (...) Não precisa ter fé
111
no ioga, é fazer e vem a sensação. A ciência provocou uma certeza inabalável em minhas crenças. Ravi: O ioga é uma técnica. Aplique as suas técnicas que funciona. DeRose: As técnicas conduzem ao autoconhecimento. Centurion: O ioga é um amplificador. O ioga é um caminho científico que comprova ou nega as minhas crenças. O ioga é uma técnica.
Pela exposição acima podemos identificar no discurso dos iogues Shanti e
Rudá, por exemplo, positividade na aproximação do ioga com a ciência, assim como
o fizeram os primeiros iogues modernos como Vivekananda, Kuvalayananda,
Sivananda, Iyengar e outros. Há uma certeza, que nasce com os teóricos que
investigam o que chamaram de processo secularização (HANEGRAAFF, 2000;
PARTRIDGE, 2005, p.1), pelo qual a ciência afastaria a religião de toda manifestação
de magia e da superstição de outrora, ou como afirmaram os iogues Shanti e
Centurion, a ciência assevera o surgir de uma fé nas suas próprias crenças ioguicas.
À primeira vista, a afirmação pode não fazer sentido, mas como vimos no
capítulo 2, a confiança no ioga foi testada no início do século passado mais pelos
resultados laboratoriais da biologia sobre as suas práticas, do que na exegese de seus
preceitos espirituais. Quando o iogue Centurion afirma que o estresse é uma “crença”
desenvolvida e disseminada pela ciência, ou quando Ravi pondera que é a ciência e
não o ioga, que se beneficiou da aproximação com a espiritualidade; eles estão, ao
mesmo tempo, criticando a posição da realidade materialista de alguns setores da
ciência, como reafirmando um sincretismo religioso ocorrendo entre o ioga e ciência,
típicos do movimento Nova Era (CHAMPION, 1989, p.158; Id. 2001). Quando o
cientista Andurá, na passagem transcrita abaixo, assegura que se a ciência continuar
sob o estrito paradigma materialista, “inviabilizará” o seu próprio desenvolvimento,
defende, de certa forma, o ioga como verdade universal:
Andurá: Um cientista que medita pode no máximo encontrar um estado de relaxamento da lógica absoluto, mas nunca experimentar a dissolução do ego oriental [sic], da fusão com o todo, o absoluto. Um dia a ciência irá inviabilizar a própria ciência. Acredito no surgir de uma nova ciência. Estamos rasgando tudo ao meio: o ioga, a ciência... Existe um ponto de relaxamento de função mental absolutamente fora dos padrões habituais e científicos. O iogue/meditador alcança esse estado desperto e a ciência não consegue ainda explicar. Todo meditador já percebeu, experimentou o nada. Tudo são conceitos. O estado que vem depois, um estado inexplicável, incognoscível... é o que a ciência não alcança.
112
O ioga parece ter se beneficiado da força proselitista da ciência em difundir as
suas práticas espirituais como promotoras da saúde e bem-estar desde os anos de 1920
(ALTER, 2004). Por isso, incorporou em seus discursos uma supervalorização da
prática, técnica ou método do ioga em relação ao estado ou experiência, como
apresentei na subseção passada. É possível entrever, no entanto, a insistência de
alguns iogues e todos os cientistas entrevistados, que o ioga seja “só prática”, sem
nenhuma referência religiosa, provavelmente, por força da privatização religiosa
ocidental. Contudo, posicionamentos extremistas vindo dos cientistas visam, talvez,
deslegitimar o discurso religioso dos iogues-tradicionais principalmente:
William: Duvido do conceito de “iluminação” e "libertação" apregoado por iogues modernos. Não consigo mais ver valor nisso, na juventude acreditava, mas hoje acho patético. Acho que é um delírio e não me interesso mais por isso. Me importo, pessoalmente, apenas em ser uma pessoa melhor. Acredito que deveriam estar preocupado em se perguntar qual a proposta deles para a salvação do ioga! O ioga não ajuda em termos do diálogo com o outro. O ioga/meditação é in... O ioga pode ajudar a aumentar a tolerância e não a legitimação do discurso do outro. O ioga corre o risco de desenvolver o egoísmo. Osiris: As práticas religiosas são passíveis de serem averiguadas pela ciência, é inevitável que a ciência as estudem, e isso empresta capital a elas, mas a ciência não se interessa com a filosofia das práticas religiosas, mas para a melhora da saúde e da atenção. A junção do ioga com a biomedicina é natural, pois o ioga afirma que a sua prática é boa para a saúde e a ciência vai averiguar. Os próprios textos clássicos do ioga afirmam que é bom para a saúde.
Esse estado ao qual William apregoa como “patético”, Osiris afirma “não
interessar à ciência” e no qual Andurá assegura ser o “estado que vem depois” e que a
“ciência não alcança”, pode ser a própria experiência religiosa do samadhi, conteúdo
discursivo dos líderes espirituais do ioga, mas que muitos neuroteólogos visam
reduzir a neurotransmissores, hormônios e regiões encefálicas e trazê-los ao campo do
saber científico exclusivamente (MARINO JR, 2005).
Andurá: Muitos iogues sofrem do “orgulho espiritual”. Eles [os iogues], estão, ao mesmo tempo, tendo um aporte acadêmico de dados mas, por outro lado, têm um aporte de posturas espiritualizadas, de uma nova forma de vida, de perceber o mundo em que vive. Eles precisam, na minha opinião, retirar todos os valores culturais das práticas meditativas [e de ioga], de oração e etc. Isso [cultura que envolve os preceitos ioguicos] são ações mentais. Meditação deve levar ao não eu, você deve se fundir na meditação ou na prática que faz. O meditador experiente perde a capacidade de sentir emoções extremas. Iogue tem que ensinar a prática. Os conceitos do ioga, vedanta, tradição e etc, deveriam ser evitados. Há um excesso de discurso no mundo do ioga. Isso afasta o iogue da meditação. O iogue
113
precisa esquecer toda a sua doutrina para não incorrer no risco de conduzir o ioga para uma religião.
Em seu discurso retórico, Andurá se utiliza da ciência para comprovar a
eficiência do seu próprio “método” de meditação a partir da experiência pessoal e de
sua tese de doutoramento e suas inúmeras pesquisas científicas. Outro ponto
importante, que aparece levado em sua fala, é a afirmação de que iogues experientes
(ou mentores) devem desenvolver uma capacidade de arrefecer as suas “emoções
extremas”, “evitar” e “esquecer” toda a sua doutrina espiritual. Essa estratégia de
aniquilação do discurso religioso do ioga, argumentarei nas próximas subseções, pode
estar fomentando o regresso de iogues mais ortodoxos no Brasil, herdeiros do
discurso tradicionalista do iogue DeRose. Se o ioga se institucionalizar como uma
religião organizada, como algumas investigações já sugerem, o projeto de estabelecer
o ioga como algo secular, como pretende Andurá e outros cientistas-monges, cai por
terra. Dito de outra forma, quando Andurá sugere aos iogues-mentores ensinar
“apenas a prática”, remove o estado do ioga da discussão, pois como ele mesmo diz
em outro momento, “esse estado a ciência não consegue explicar”; desse modo, a sua
posição de “cientista” não o autoriza a participar do debate.
Andurá: A ciência comprovou academicamente que a meditação faz bem. Não é mentira... criação como o da religião. Não é um truque para a pessoa alcançar outro estado e convencer as pessoas a meditar, pois depois levo-os a experimentar um estado além. Só falo sobre isso [o estado além que a ciência não alcança] para o meu grupo de facilitadores [adeptos de sua formação mais “avançados”]. No ioga/meditação, deve se ter confiança, pois a fé só se entende quando se alcança o estado final. Quando a onda se percebe parte do oceano [sic]. Aí, a consciência da ligação não se perde mais... isso é fé ou amor. Osiris: A maior parte das pessoas nem entendem o que é o ioga atualmente. O ioga se encaixa talvez mais como um processo espiritual. A meditação muda a sua vida realmente. Por isso, o ioga não pode ser autodidata se o seu objetivo é espiritual. Sinto que o principal da prática meditativa é você por você mesmo. Agora, se o ioga se declarasse uma religião perderia adeptos. William: O ioga não é ciência e muito menos filosofia. Filosofia e ciência são criações ocidentais. O que caracteriza a filosofia, por exemplo, é estabelecer um pensamento racional para suportar conclusões. Dizer que o ioga é uma filosofia é uma apropriação indevida assim como o ioga é ciência também. No ioga não há nada lógico. É uma conclusão atrás da outra, e não premissas que levam a uma conclusão lógica, racional. O ioga é experiencial. Enquanto você não têm experiência, você precisa acreditar... crer em quem diz que teve. São critérios de validação diferentes. Isso não torna o ioga, a ciência ou a filosofia melhor, mas são critérios de validação diferentes.
114
Acima, pode-se entrever que entre os cientistas entrevistados é possível
identificar semelhanças de legitimação de seus discursos com a fala dos iogues-
mentores. Quando Andurá articula que a ciência não é “mentira” ou “criação
religiosa”, toma para si, de alguma maneira, parte da posição de líder espiritual. Esse
discurso é o que denominamos como a de um cientista-monge, pois ele se coloca
como um “facilitador” – o equivalente, neste momento, de um líder do ioga - na
condução de um “estado além”, um “outro estado”, no qual, como ele mesmo
pondera, nem a ciência consegue explicar. Tanto Osiris quanto William também
desautorizam o ioga como religião, talvez nem tanto (como Andurá) para galgar
posicionamentos de liderança no microuniverso do ioga/meditação no Brasil, mas
para desvencilhar seus trabalhos acadêmicos a mística dos estados de ioga. Estes,
assim garantem, que se o ioga assumir para si a denominação de religião, perderá
adeptos e se tornará ilógico e irracional frente ao público leigo que o pratica.
O ioga, dividindo-se, como visto na subseção anterior, entre técnica e estado,
por um lado reduz o valor das compreensões estritamente fisiológicas da biomedicina,
e por outro eleva as suas experiências e estados espirituais. Essa tática religiosa,
constituída sem uma liderança em específico ou organizada, afasta qualquer redução
da religiosidade de seus “estados” por parte de cientistas, mas torna fértil o terreno ao
discurso negativo dos cientistas que buscam desmerecer retóricas ortodoxas de grupos
ioguicos tradicionalistas no país. Enquanto o cientista Andurá se esmera em defender
o estado místico de dhyana, como plausível de ser compreendido também como
método ou prática de ioga/meditação, pode estar, na verdade, buscando enfraquecer a
fala de iogues-tradicionalistas, mas não do ioga/meditação em si. Não é de se
estranhar portanto, que o setor mais tradicionalista do ioga brasileiro se levante contra
esse tipo de posicionamento. Um reflexo concreto dessa “fase de transição” se mostra
na preocupação recente entre iogues brasileiros de preservar a pronúncia correta do
sânscrito, do cuidado na tradução das escrituras e posicionamentos não velados em
obras e sites da internet desmerecendo aproximações do ioga com outras religiões -
como a católica, a daimista e a espírita. Mesmo carecendo de uma pesquisa mais
abrangente, nossos dados apontam uma sensível mudança de posicionamento na
comunidade ioguica brasileira de híbrida e permissiva aos sincretismos, para uma fase
bem mais tradicionalista.
115
4.4.3. Fase de transição na comunidade ioguica brasileira em busca da sua
identidade religiosa
Como vimos em outros capítulos, o ioga moderno se adaptou no seu
deslocamento da Índia para os centros urbanos das grandes cidades ocidentais. O
racionalismo empírico da ciência proporcionou a popularização do ioga como
promotor da saúde via as suas repercussões fisiológicas de diminuição do estresse
pelo relaxamento de suas práticas. O iogaterapia e o sincretismo religioso do Prof.
Hermógenes no Brasil marcaram uma época mais híbrida do ioga, por outro lado, o
seu aspecto físico foi, ambivalentemente, sendo mais ressaltado do que as suas
escrituras advindas da espiritualidade hindu. Esse fato autorizou novos “iogas” e
agentes surgirem ao microuniverso ioguico brasileiro, inclusive cientistas, sobretudo a
partir dos anos de 2000 com a influência do ioga e cientistas-monges norte-
americanos. Assim, a demanda também se diversificou. Nem todos buscam as aulas
de ioga para a transcendência e comunhão com Deus, mas para diminuir dores nas
costas, emagrecer, aumento do rendimento esportivo e etc. (SINGLETON, 2010).
O que está em jogo, entretanto, defendo, talvez não esteja na preocupação pela
elevação do aspecto corporal e medicamentoso do ioga em contraposição à sua
espiritualidade. A questão por trás no Brasil pode estar na transição da hegemonia do
discurso híbrido para o despontar da ala tradicionalista em resguardo a legitimidade
do ioga como espiritualidade singular no Brasil. Esse provável deslocamento sensível
que vem ocorrendo imprime os tons de transição de discursos e marca a chegada de
novos líderes e a saída de outros.
Ravi: O ioga passa por mais uma transição. A comunidade ioguica no Brasil melhorou dos tempos dos anos de 1980. Há alguns iogues de interesse sério, que falam a mesma linguagem, mas há outros que se preocuparam apenas com os ásanas (competição e moda). Ioga é para dar liberdade. Ioga é meditação. Mas no mundo moderno o ioga se desvinculou da meditação, por estar muito vinculado as posturas que compete com a educação física e perde espaço pela incompetência dos professores de ioga. A “Americanização do ioga” é sinônimo da predominância do lado físico do ioga. Muitos esqueceram-se da meditação, desatrelou-se uma coisa da outra. Hermes: Estamos em uma fase de transição da fisicalidade para a não fisicalidade. Não há resgaste do ioga, mas uma correção de direção. (...) O ioga hoje esta sendo recontada por indianos, assim, passa-se por uma transição que a revisa pelo olhar dos próprios indianos. O ioga atual está todo errado, foi interpretado incorretamente.
116
Shanti: Em 2000 eu e o Ganesh dávamos cursos e lotava. Hoje não é mais assim. Acredito que ainda existe uma procura, mas há mais gente e tipos de ioga e assim, diminuiu a demanda. Há a concorrência com o pilates, [ginástica] funcional e novos estereótipos do ioga... Há um preconceito com os professores de ioga que cresce na mídia [cita a série da TV brasileira “Surtadas do Yoga” que é transmitido pela GNT como exemplo]. Bento ironiza: Todo mundo no ioga brasileiro se acha parte da centelha divina. Osiris: Há uma tribo de iogalike... querem fazer parte de um grupo. O grupo do ioga é cool.
O principal aspecto que se mostra é a preocupação dos iogues e cientistas
entrevistados à exagerada perspectiva física do ioga que se sobrepõe às
manifestações, segundo eles, mais sutis e espirituais. O iogue DeRose, por exemplo,
substituiu o nome “swasthya yôga” que carregou por décadas em suas escolas, para
“Método DeRose” em meados de 2007-2008. Como ele mesmo relata em sua
entrevista: “Precisei reformular-me e migrar do setor ioga para o setor cultural. O ioga
está em um período de transição, sem dúvidas”.
Entre os iogues, é possível perceber uma mudança na forma como eles se
percebem e à sua comunidade. Hermes diz que inclui ásanas em suas aulas, por
exemplo, de forma estratégica e mercadológica, pois afirma: “As pessoas não querem
ioga, querem o que veem nas revistas”. Ele inclusive confirma adicionar em sua
formação de ioga muito de “saúde” para satisfazer os alunos, mas depois do primeiro
mês começa a mudar o discurso para incluir a mente, o inconsciente e depois a
“criação do espaço mítico [sic]”, influenciado, segundo ele, pela tradição dos Nathas
(iogues medievais indianos) e tântricos (ELIADE, 2001, p.180-198). A iogue
entrevistada Shanti declara algo bem parecido. Ela afirma que “o ioga sempre a
salva”, mas com receio de tratar do ioga como religião e ser “mal interpretada”,
direciona o conteúdo religioso no qual acredita, durante a prática física do ioga, que
ela mesmo define “como um ritual em cima do mat [tapetinho de prática]”. E é esse
ritual que possibilita seus alunos “conectarem-se novamente”:
Shanti: Prefiro enganar as pessoas que o ioga não é religião, pois sei que depois da prática elas vão se sentir conectadas, e isso é religião para mim. As pessoas do ioga não falam de religião, pois querem ter mais alunos. Bento: No Brasil há um preconceito entre as religiões e os espaços de ioga. Mesmo entre os iogues, recebo muitas críticas devido as minhas relações com o cristianismo. Vou ser sincero com você: esse mercado do ioga é pior do que o da telefonia aonde eu trabalhava.
117
Centurion: Ioga no Brasil é business. Há uma briga por poder no ioga, mesmo na Índia. Vishnu: O ioga possui um mercado e por isso não se falam em religião. O ioga se divide em estado de ioga-meditativo e um método ou prática. Este segundo é igual a qualquer outra religião.
Os iogues entrevistados chegam a declarar, como lemos, que omitem a se
pronunciar sobre a religiosidade do ioga no qual acreditam abertamente para “não
perderem alunos”. Não porque consideram algo menor intelectual ou
ideologicamente, mas por questões de estratégia de mercado e adaptação social. Com
o movimento da renascença indiana no início do século XX, como apresentamos, a
religiosidade ioguica foi sendo traduzida pelos experimentos da ciência biomédica
sobre as suas práticas. Desse modo, podemos supor que os resultados terapêuticos do
ioga se sobrepuseram aos da sua ética espiritual, portanto, dos klesas. Não seria
surpresa constatarmos que além dos klesas estarem sendo encarnados em estresse e
emoções, o samadhi e kaivalya, venham também construindo correspondentes
igualmente corporificados. Relembrando que samadhi aqui é interpretado como uma
vivência religiosa transitória advinda das práticas corporais do ioga; e kaivalya o
estado de libertação final das agruras da vida, portanto, o fim permanente da ação dos
klesas, logo, do estresse-ioguico.
Como alerta Joseph Alter, o conceito de saúde foi ganhando novas
perspectivas no contexto ioguico moderno e abrindo espaço para o espiritual como
um modelo de terapêutica religiosa (ALTER, 2004, p.XII). Esse modelo estende-se
também para os círculos acadêmicos como podemos assistir em hospitais e o próprio
ministério da saúde brasileiro (SIEGEL, 2010). Entretanto, o proselitismo do ioga
moderno em difundir-se como uma terapêutica religiosa imbricada com a ciência, e
sem uma organização mais formal de estrutura religiosa, pode estar abrindo o leque
de opções ioguicas no mercado religioso a tal ponto dos iogues perceberem a sua
religiosidade sem contornos definidos.
Com isso, a ala ortodoxa ioguica no Brasil levanta a sua voz com receio de
assistir passivamente a extinção do ioga pela “corporificação excessiva”, como alguns
comentaram nas entrevistas que fizemos. Esses fatos, defendo, podem estar
contribuindo para que diversas “linhagens” de ioga surjam competindo no mercado
religioso brasileiro. A resposta do microuniverso ioguico do país frente a esse
118
panorama atual, pode refletir no retorno de discursos mais tradicionalistas, herdeiros
da ortodoxia de DeRose, como se lê nas audições de Ganesh e Hermes:
Ganesh: o ioga é uma espiritualidade originalmente. Eu gosto da palavra “resgate”. Me considero responsável pelo resgate da tradição do ioga no Brasil. Faço parte de uma tradição ancestral de ioga. Há uns malucos neo-iogues que pregam algo diferente da tradição. Se utilizam de conceitos do vedanta sem fazer parte da tradição e misturam com um pensamento mágico... Eu sou contra a isso. Eu sou um guardião da tradição do ioga original. Sou seguidor de um sidantha. A minha opinião não serve para nada, pois eu falo através da tradição, não do meu ego. Me preocupo em não distorcer a palavra do vedanta, pois a visão do ioga é plenamente em si mesmo e plena. Não pode ser acrescida e nem tirada. É uma posição ortodoxa, irredutível, tenho consciência disso e não me arrependo, pois respeito a tradição. O ioga é uma visão que mostra uma possibilidade para você perceber-se vinculado com algo que você já é, e no qual você têm lampejos ou intuição, mas que você ainda não percebeu plenamente. É um método de transmissão dessa visão da tradição. Hermes: O ioga tinha uma verve de terapia no seu início aqui no Brasil. Haviam aqueles que praticavam o ioga como terapia. Isso foi errado. O ioga não é uma terapia.
A crítica dos iogues no Brasil, dessa forma, pode não residir na fisicalidade do
ioga, mas no seu pragmatismo terapêutico, ou seja, pelo seu exclusivo uso prático na
remissão de doenças psicofísicas. O que, percebem os iogues-tradicionalistas,
autorizam a entrada indiscriminada dos cientistas-monges e competição na
legitimação das suas escrituras e práticas. No entanto, não há uma crítica direta a
ciência, ou seja, ela continua importante mesmo aos iogues tradicionalistas que se
mostram contra a fisicalidade de suas práticas. Verifico que a reforma soteriológica
do ioga em andamento com relação aos klesas, talvez não exortarão as descobertas
científicas; nem mesmo os iogues ortodoxos como Ganesh, Hermes e DeRose
parecem intentar esse fato. Abaixo, descreverei com mais propriedade a dialética
estabelecendo-se entre saúde-salvação-kaivalya e relaxamento-prática-samadhi, no
intento de corroborar com estudos de outros países que já apontam o ioga como
religião (DeMICHELIS, 2004; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2010):
Shanti: Não precisa ter fé no ioga, é fazer e vem a sensação. A ciência provocou uma certeza inabalável em minhas crenças [sic]. (...) as aulas de ioga precisam ser preenchidas de espiritualidade. Rudrá: Não quero dar aula para pessoas doentes. Quero e sempre dei aulas para pessoas sãs. Mas sei que a prática pode prevenir de doenças, pois diminui o estresse. Posso relatar por experiência que os alunos vão
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percebendo que a sua saúde melhora com a prática. A prática de ioga aumenta a consciência sobre a própria saúde.
Os iogues mais tradicionalistas parecem já ter percebido que a relação estreita
ciência-ioga estabelecida ao longo de mais de cem anos, tem ultrapassado os ditames
materialistas da ciência empírica. Essa aliança tríplice, marcada pelo diálogo entre
iogues híbridos, tradicionalistas e cientistas-monges - nem sempre pacífica mas em
equilíbrio dinâmico – é a possível responsável em comandar uma reforma em
processo da proposta salvífica do ioga moderno no Brasil, mesclando dados da
fisiologia biomédica sobre as práticas ioguicas e de seus antigos conceitos espirituais:
klesas, samadhi e kaivalya.
4.4.4. A crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e
o relaxamento espiritualizados no convívio social
Há a presença, no conteúdo de todos os iogues entrevistados, da crença de
uma certa “harmonia perene” ordenada cosmicamente que é desfeita na experiência
nefasta do estresse, responsável pelo desarranjo energético sutil, que viemos expondo
desde o capítulo 2. Os iogues no Brasil acreditam no estresse como indicativo
corporal e transfisiológico de desvio do caminho divino proposto para cada ser
humano, aonde a doença estaria no centro dessa desarmonização em nível
psicofisiológico. Mas qual seria a origem de tal sofrimento que tornou possível o
estresse tornar-se o obstáculo espiritual, tomando o papel original dos klesas. As
práticas do ioga, funcionam no Brasil, como profilaxia e tratamento espiritual de
doenças como ansiedade, insônia e depressão. Como comentado por Osiris, com base
em artigo científico, quase 20% dos paulistanos sofrem de desordens mentais deste
tipo, que possuem como base fisiológica o estresse crônico. O estresse crônico, por
sua vez, tem suas razões de manifestação nefasta decorrentes de estímulos
psicofísicos decorrentes do meio em que se vive. Assim, desvelar o panorama social
aonde vivem e atuam os agentes do microuniverso ioguico brasileiro
(alunos/praticantes, professores, mentores e cientistas-monges) pode revelar o âmago
de suas transformações soteriológicas em andamento.
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O sofrimento humano no Brasil contemporâneo urbano, segundo Dunker,
advém na perda de experiência de uma forma de vida social ainda não reconhecida,
como apresentado em sua lógica do condomínio (DUNKER, 2015), que abordaremos
abaixo. Por ora, me refiro ao sofrimento ioguico brasileiro como busca de uma vida
social em harmonia, pois como já argumentamos no primeiro capítulo, o iogue
moderno ao abandonar a vida solitária de asceta, se lança na procura da harmonia
perene de kaivalya na vida urbana dos grandes centros ocidentais. Como
demonstramos na subseção anterior com Guerriero, religiões surgem de contextos
sociais e são expressões latentes das maneiras encontradas destes grupos conviverem,
resolvendo problemas e adaptando realidades. Portanto, o microuniverso do ioga
brasileiro pode refletir uma promessa de vida boa em resposta aos anseios de uma
camada específica da sociedade urbana bastante estressada, pois como
exaustivamente argumentamos até aqui, os klesas, causa do mal, estão sendo
corporificados em reações como desejo, ódio, medo e egoísmo, frutos da ignorância
de não saber o que estão fazendo com suas vidas, por isso a crença na ordem cósmica.
A crença numa ordem cósmica pode prover de sentido a alienação da vida. Há, talvez,
permeando o nosso objeto, uma esperança metafísica (quase milenarista) de um lugar
melhor para se viver. O que os iogues brasileiros buscam, talvez esteja, mais do que o
egoísta equilíbrio físico e mental, na harmonia social.
A promessa edificada pelos brasileiros, de “harmonia social” e a “imagem de
felicidade”, nas expressões do próprio Dunker, podem ter sido colhidas, sobretudo, do
cinema e programas televisivos norte-americanos e “revestidas de ascetismo”
(ascetismo aqui empregado no sentido de alcançar uma vida), mas refletidas dentro
dos condomínios: ilhas imaginárias que refletiriam a ordem nas relações sociais
(DUNKER, 2015, p.50-51). Havia, no imaginário brasileiro do início da década de
setenta (com a construção de Alphaville em São Paulo) os condomínios como projetos
ideários de amor e amizade, de uma vida social sem “muros e grades” (Ibid., p.48).
No entanto, complementa o autor, o plano “teológico e metafísico” da vida social
harmônica em condomínios no Brasil escapou do esperado:
A forma de vida em condomínios vem sendo retratada, de forma sistemática, como repleta de mau gosto, investida de artificialidade, de superficialidade e esvaziamento. O crime ressurgiu dentro dos condomínios: primeiro, pequenas desobediências de trânsito, depois, consumo de drogas e, finalmente, desavenças entre vizinhos.” (Ibid., p.51).
121
É possível entrever essa “lógica do condomínio” de Dunker na fala dos iogues.
Mesmo não podendo afirmar que todos os iogues brasileiros vivam esse panorama
descrito por Dunker, é bem provável pelo público de alta renda que circula no
microuniverso ioguico do país que não fuja muito deste cenário. Só para se ter uma
ideia, a revista norte-americana Yoga Journal Brasil, especializada em ioga no Brasil,
necessita de um investimento de R$16,90/mês, a mensalidade média de duas aulas
semanais de ioga gira em torno de R$ 350,00/mês, um curso de formação R$ 4.500,00
e as viagens anuais de peregrinação à Índia não saem por menos do que R$ 15.000,00.
Definitivamente, a religiosidade ioguica não é para todo mundo, mas ao que tudo
indica, aos moradores dos condomínios fechados de São Paulo, Rio de Janeiro,
Florianópolis, Belo Horizontes e outras cidades de alto poder aquisitivo. De qualquer
forma, a narração dos iogues-mentores, que ensinam e convivem com esse grande
público, muitas vezes, por mais de um mês - em retiros, cursos de formação e longas
estadas nos melhores hotéis da Índia - refletem uma grande insatisfação e estresse
com a vida em que vivem:
Ravi: Vivemos papéis que são falsos (pai, cientista, professor). Antes de nascer já éramos alguma coisa e depois de morrer continuaremos ser. O que somos então? São as identificações dos papéis [que ocupamos] que originam o sofrimento humano. Hermes continua: o personagem constrói a realidade física da pessoa. Há um eu por trás que você já é. Ganesh: O estresse existe, mas não tem razão de se deixar manifestá-lo físico e mentalmente, pois o estresse é fruto da ignorância de não se perceber dentro de uma ordem [cósmica]. Todos nós somos parte dela. As causas do sofrimento humano está em não se compreender que você não é o papel que ocupa [na sociedade ou família]. O ioga lhe dá a possibilidade de você perceber-se algo que você já é, mas que você não percebe plenamente. Vishnu: Os obstáculos do ioga são nossas próprias máscaras. Rudrá: Os obstáculos sou eu mesmo que construo. Shanti: Isvara é a consciência que permeia tudo. Estamos imersos em Isvara. Não temos consciência dele, mas o ioga ajuda na conexão com deus que está dentro de nós. Eu me conecto comigo, eu me conecto com o universo. Há um plano maior de Isvara. Andurá: a meditação nos ajuda a contar menos histórias sobre nós mesmos. Sob o ponto de vista operacional, a meditação é um procedimento autoinduzido e com técnica específica. Mas os dois itens operacionais mais importantes são aqueles que chamamos de “âncora” e de “relaxamento da lógica”. Âncora é um artifício de autofocalização. O relaxamento da lógica
122
consiste em não se envolver nas próprias sequências de pensamento. Como isso é possível? Ora, mantendo a atenção na âncora, guardando apenas um pouquinho de energia para uma sutil atenção ao eventual envolvimento em sequências de pensamento. Sempre que o meditador se perceber envolvido nelas, ele deve “abandoná-las” e voltar sua atenção apenas para a âncora.
Esses discursos denotam, como dissemos, a crença de que existe algo perene,
em harmonia eterna e imutável, mas que perdemos ou nos “desconectamos” com o
advento do estresse, nos tornando ignorantes, portanto, de quem somos, mas
sobretudo, de como vivemos. Essa promessa de harmonia divina é purusa inserido na
vida em sociedade. Mesmo na fala do cientista Andurá, há uma crença em algo perene
e harmônico que se manifesta “no relaxamento da lógica”. A ignorância, klesa-mãe de
todos males, se ressignifica fisiologicamente, no estado do estresse, na “sequência dos
pensamentos” que devemos “abandonar” para compreender algo que ainda não
conhecemos, que perfaz “nossas máscaras” que os klesas-estresse encobrem. Os
iogues julgam que tudo o que pensamos ser faz parte da construção de um
“personagem”, de uma ilusão. Imagem muito parecida com a descrição da vida em
condomínio retratada acima. É o antigo conceito de maya ou avidya, mas revisitado
modernamente por influência da biomedicina, mas a sua origem manifestante pode
estar, em última instância, na sociedade em que os iogues vivem e/ou percebem e
buscam, como todas as religiões, maneiras de resolver.
O estresse-ioguico pode estar representando agora um desequilíbrio também
na vida social, concebido como desordem cósmica pelos iogues. A doença para eles,
pode significar um indicativo de viver fora da proposta de Deus, da ordem cósmica,
como argumentam. A biomedicina ocidental, ao lado das escrituras ioguicas, também
autorizam aos iogues - pela “comprovação científica” – que uma vida em desarmonia,
provoca o mal manifesto em doenças advindas do estresse cotidiano e,
consequentemente, de uma vida agitada e sem o descanso/relaxamento adequados. Os
iogues e os cientistas, podem estar, logo, tecendo uma critica ao estilo de vida
moderno, como afirma a cientista Osiris:
Osiris: Ioga é para redução de estresse. A resposta do estresse salva vidas. Mas na cultura do ioga o estresse atinge o status de ser melhor manejado. Os iogues buscam diminuir o estresse, aumentar o bem-estar e ser alguém melhor. Não ser tão afetável pela sociedade moderna, de consumo e estressada, é um dos grandes objetivos dos iogues com quem convivo e estudo. (...) As posturas do ioga podem diminuir as aflições mentais e conduzir ao relaxamento. Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a
123
primeira fase da meditação. (...) O ioga tem uma vertente “terapia” sim. Ioga é instrumento anti-estresse pela maiorias das pessoas. Só para se ter ideia, uma pesquisa recente [2012] com habitantes da cidade de São Paulo, indicou que 20% da população é afetada por desordens mentais de ansiedade. O ioga e a meditação dispõe de meio concretos e de baixo custo para amenizar o sofrimento de muita gente.49
O estresse e o relaxamento, desse modo, parecem estabelecer relação com a
nova espiritualidade ioguica brasileira e auxiliam na sua proposta de salvação ou de
fim do sofrimento. Mais do que a busca por uma boa vida reclusa e de afastamento
social, os iogues modernos almejam alcançar a vida que vale a pena ser vivida no
convívio com outras pessoas. É lícito supor, que os iogues que orbitam o seu
microuniverso, podem estar propondo, além de técnicas “anti-estresse”, uma via de
salvação/libertação que promete a possibilidade de uma existência em comunhão feliz
e sem estresse, através de práticas espiritualizadas de relaxamento e busca de uma
vida harmônica, tanto psicofísica, quanto social e espiritual.
As informações colhidas nas entrevistas com os cientistas sobre a relação
estresse-ioga parecem corroborar as nossas argumentações. As duas falas ioguicas
abaixo, novamente reproduzem a dialética estabelecendo-se entre klesas-estresse,
samadhi-relaxamento e kaivalya-homeostase.
Shanti: Reagir é algo negativo porque não se tem consciência na reação. O ioga lhe traz para o momento presente. A prática no tapete é um ritual de nos trazer para o presente, o Eu. Rudá: o ioga diminui a agitação, o estresse e a ansiedade da minha vida, ao mesmo tempo o ioga me dá energia, me tira de um estado torpor e me deixa no estado de ioga. O estresse me desconecta e me faz sair do estado de ioga... a união. A respiração [pranayama] me traz para o aqui-e-agora e diminui os meus vrttis [causador da agitação mental advindo dos klesas] e meu estresse.
O estresse-biológico, como já expomos repetidas vezes, é uma reação
autônoma do organismo a qualquer agente/estímulo estressor. Mas na cosmovisão
ioguica moderna, a referência ao “reagir”, como vimos no discurso de Shanti acima,
é sempre algo “negativo”, o próprio “mal” ou klesa. Portanto, é imprescindível que
as práticas ioguicas eliminem ou purifiquem o corpo-mente de suas manifestações.
49 ANDRADE, L.H. et al. 2012. Mental disorders in megacities: findings from the São Paulo megacity mental health survey, Brazil. PLoS One, 7(2): e31879.
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Qualquer reação automática - leia-se comportamento - que produza estresse, é
geradora inequívoca dos klesas e precisam serem removidas. Os argumentos que os
iogues e os cientistas alinharam sobre o estado meditativo/ioga, sugerem que “reagir
sem pensar” é prejudicial, causa da dor e sofrimento, portanto. Explico-me melhor:
quando o cientista Andurá afirmou anteriormente que o meditador experiente
(iogue-mentor ou cientista-monge) perde a sua capacidade tanto de sentir emoções
extremas quanto de se envolver na sequência de pensamento, significa que durante
esse momento transitório do estado de ioga/meditação, pode controlar as suas
reações instintivas, portanto, inconscientes. É o mesmo que Shanti denominou do
“reagir sem pensar” como negativo, e que o iogue Rudá asseverou, quando afirma o
ioga conseguir removê-lo do “estado de torpor” da sua vida.
Se a resposta inata de luta-fuga, promovida por agentes estressores é o reagir
“sem pensar” ou “inconscientemente”, está intrínseco (digamos até biológico-inato)
que o estresse se torna um obstáculo para o ioga e sinônimo de klesa, como
mostrado no capítulo 2, mas não por motivos biomédicos apenas, mas sobretudo,
pois furta transitoriamente a “consciência” do seu “estado presente”, como alguns
entrevistados descreveram como empecilho a se atingir o estado de ioga.
Relembremos que no capítulo 1, ioga é cessar voluntariamente as modificações da
mente/consciência e não extingui-la, como Patanjali no sutra 1:2. A doença,
metáfora para o sofrimento espiritual dos iogues brasileiros, pode revelar-se, em
nível social, uma existência ignorante50, de tomada de decisões sem pensar ou viver
em “estado de torpor”, como adiantou Rudá. Já é possível conjurar neste momento
da reflexão, que o estresse-ioguico pode ser interpretado ultrapassando os reduzidos
limites das representações físicas e mentais. A crença na ordem cósmica e energias
transfisiológicas, pode justificar o estresse e o relaxamento estarem conquistando
caracteres espirituais de convívio social mais benfazejos e seguros.
50 Em termos gerais, o conceito de ignorância que vem do sânscrito avidya, significa ser ignorante da sua real natureza e do seu real relacionamento com o mundo, que resulta em instância espiritual, sofrimento (ver JOHNSON, 2010, p.40).
125
4.4.5. A busca pela homeostase eterna por meio do relaxamento espiritualizado
Sem dúvidas o relaxamento, como já comentamos, é uma construção moderna
do ioga por meio da ciência. Foi a ciência, e não as antigas escrituras ioguicas, que
demonstraram a manifestação do relaxamento como resultado da prática de ioga e
benéfica para a saúde dos seus adeptos. Provavelmente, mesmo que inconsciente, por
ser uma experiência antagônica ao estresse, o relaxamento pode ter sido eleito a
referência física benéfica da espiritualidade do ioga; e o estresse, o mal a ser
combatido.
Bento: O relaxamento é uma referência física do estado de ioga. Ravi: O relaxamento é uma característica do ioga. Vishnu: O ioga é relaxamento. Ganesh: O relaxamento é uma parte inicial do ioga. Para se compreender quem se é, a pessoa precisa estar relaxada, segundo a minha tradição.
Shanti: O relaxar nos ajuda a estar presentes. Rudrá: Não consigo pensar no ioga sem o relaxamento que ele produz.
O relaxamento veio adquirindo, assim, ao longo das últimas décadas, uma
acepção maior do que apenas referência física: o relaxamento pode ter conquistado o
status de espiritual e convidado a participar da proposta de salvação/libertação do
ioga moderno (SINGLETON, 2005). Em nenhum outro momento histórico do ioga, o
relaxamento é citado em suas escrituras. Na verdade, como já discutimos, o
relaxamento foi introduzido no ioga a partir da psicologia de W. Reich, das
explicações biomédicas de Petho Sandor e da educação física, por isso, o “bem-estar”
e o “estar presente” dos relatos acima, aparecem com o “estado” dos iogues em
vivenciar o todo maior organizado e determinado pela ordem cósmica, que relatamos
acima. Os iogues que entrevistei acreditam ter um papel a cumprir no universo, e o
relaxamento é o meio que os ajudam a compreender-se ou não na senda correta do
ioga, no caminho para Deus.
O conceito de “conectar” citados ao longo deste capítulo, nos fornece duas
ideias importantes a considerar: a primeira é a do ioga nos restaurar a um plano de
vida divino; e o segundo, é a dialética que o ioga estabeleceu entre perceber-se nesta
ordem cósmica ou equilíbrio perene com o adoecimento. A doença, assim, assume
126
tanto o papel de punição ou aviso divino de estar fora do desígnio projetado por
Deus/Isvara. Introduzo essa discussão a partir de uma citação do iogue Ganesh
publicada em uma importante revista especializada em ioga no Brasil, sobre como ele
compreende a depressão e a ansiedade:
Ganesh: Se a ansiedade é a dificuldade para lidar com o excesso de aprêmios no cotidiano, a depressão é a falta mais absoluta de horizontes, estímulos ou inspiração para agir. Assim, se quisermos ficar distantes desses dois extremos, devemos encontrar o caminho do meio. Isso é chamado sattva. Ioga é um relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica-espiritual para isso. Relaxamento é a parte inicial do ioga. Para se compreender quem se é, precisamos estar relaxados, segundo a minha tradição. Relaxar, focar, expandir, reavaliar seus paradigmas, isso é a meditação propriamente dita. Emocionalmente falando, o ioga nos ensina a colocar-se. Isto se traduz numa postura mais serena e numa melhor disposição no cotidiano. O relaxamento e os exercícios de concentração tomam conta desta esfera. O ioga possui como efeitos mais evidentes deixar o praticante em estado de equilíbrio.
Assim como Hermógenes e Smith (2008), Ganesh resgata novamente a ideia
de sattva ou “estado de equilíbrio” rompido pelo “mundo estressado”. O ioga foi
traduzido nas entrevistas de alguns iogues-mentores como sinônimo de “relaxamento
dos pensamentos” ou “para se compreender que se é, precisamos de relaxamento”.
Desse modo, quando a ciência define homeostase, como um estado de equilíbrio
orgânico ideal na fisiologia biomédica, mas impossível de se conquistar sob a
perspectiva da ciência; dentro da espiritualidade ioguica moderna, ela se torna a
própria tradução da liberdade conquistada pelo equilíbrio (corporal, mental, social e
espiritual) desejado. É plausível, logo, considerar que o estado de homeostase
adquirindo a categoria equivalente a kaivalya: “o caminho do meio” ou
estabelecimento permanente em sattva. O grande causador ou obstáculo espiritual do
ioga moderno, o estresse e o medo, são forças maléficas que impedem o estado de
homeostase estabelecer-se definitivamente. A luta entre o mal e o bem ioguicos,
podemos supor, se arrefece a cada relaxamento espiritual promovido pelas suas
práticas.
Ravi: Relaxamento é uma característica do ioga. Ioga é um processo de relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica espiritual para este fim. O grande perturbador do ioga moderno. Ficar quieto é um problema para a sociedade moderna.
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Vishnu: O ioga é sinônimo de relaxamento. O estresse impede ao estado. Bento: o relaxamento é uma referência física do estado de ioga. Osiris: O bem-estar que o ioga me traz me provoca o relaxamento, e o relaxar nos ajuda a estar presentes. Rudrá: Não consigo pensar na prática do ioga sem o relaxamento que ela produz. O estresse me desconecta e me faz sair do estado de ioga, de união. Andurá: O relaxamento corporal e a respiração ioguica adequada já o prepara para uma prática meditativa. Osiris: Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a primeira fase da meditação.
Centurion: O ioga é a união para harmonizarmos. O ioga é a união das diversidades. O ioga nos deixa com um mental mais calmo, equilibrado.
DeRose: o estresse impede ao samadhi.
Shanti: O estresse nos afasta, nos desconecta. O ioga abaixa o estresse, acalma a mente... aterra, e assim, nos ajuda a conectar novamente. Hermes: No ioga moderno o estresse ocupa um lugar que não fazia parte do ioga antigo, que ele está revelando. A diminuição do estresse físico tem uma correlação direta com moksa [equivalente a kaivalya].
Posso pensar agora que, para o iogue compreender o seu lugar social na ordem
cósmica, é preciso atingir antes uma profunda vivência de “relaxamento” a partir das
técnicas ioguicas. O estresse, portanto, o estado antagônico ao relaxamento, pode
estar sendo concebido modernamente como condição espiritual que afastaria os
iogues do seu objetivo: o kaivalya (lit. liberdade). Mesmo entre os cientistas
entrevistados, revelou-se que a prática de ioga pode estreitar relação positiva entre o
relaxar e a ponderação dos próprios problemas cotidianos.
Andurá: Com um relaxamento corporal e a uma respiração adequada, você já está bem preparado para uma prática meditativa. A busca é alcançar o relaxamento da lógica, que demora em torno de 5-10min. Osiris: as posturas do ioga podem diminuir as aflições mentais. Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a primeira fase da meditação. William: Sempre que estabeleci uma rotina de meditação/ioga obtive maior serenidade em meus comportamentos com os outros.
Abaixo reforço, propositadamente, essa questão do equilíbrio inato e perene
na fala dos iogues para revelar suas lógicas com a homeostase-kaivalya:
128
Ganesh: O ioga lida com aquilo que é universal e eterno, que não muda. Os valores [do ioga são] universais e suas diferentes aplicações, bem como as formas de encontrar a felicidade e a liberdade que são inatas a nós mesmos. Filosofias vão e vem, como opiniões e teorias, mas a visão do ioga permanece. Hermes: O ioga me dá a convicção, a certeza que estou no caminho certo. Algo ou alguém cuida de mim e de você. O ioga lhe dá estabilidade para perceber isso, você se apoia em você mesmo. E isso o liberta para se realizar no mundo. Rudrá: O ioga ajuda a afirmar nosso propósito de vida, nosso dharma ter um propósito, um Dever a cumprir. Shanti: O ioga me mostra que cada um de nós veio para fazer algo.
As ideias da harmonia eterna e divina e do relaxamento espiritual se
complementam. Neste ponto, a iogue Shanti nos auxilia quando esclarece o processo
do equilíbrio energético como o oposto ao estado deletério do estresse no ioga e
iniciado com iogues renascentistas que revelamos no capítulo 1 e exposta
anteriormente com as obras iogaterapêuticas de Hermógenes:
Shanti: A doença tem a ver com a sua história pessoal; tem um sentido. Se eu não praticasse o ioga seria obesa e depressiva [sic]. A doença é uma desarmonia da energia sutil. Os chackras desalinhados repercutem em doenças. A energia (prana) circula e a sua má circulação ocasiona em doenças. O ioga é uma forma de se conectar consigo mesmo. O ioga afina o corpo, que com a doença desafina, como um instrumento.
Como comentamos no terceiro capítulo, a história pessoal do Prof.
Hermógenes com o ioga também ocorreu por meio de uma doença: a tuberculose. A
partir daí, os seus ensinamentos ioguicos sincretizaram a doutrina ioguica, com a
advinda do cristianismo popular brasileiro combinados com os benefícios terapêuticos
do ioga para a saúde descobertos cientificamente. Foi o Prof. Hermógenes, como
apresentei, que consolidou no Brasil o mote ioga-saúde-salvação e disseminou, por
meio de suas obras, o ioga como terapia no Brasil.
Permanece a crença em energias sutis, como teóricos já alertaram nos
capítulos anteriores. Entretanto, a ideia do desalinhamento energético originado pelo
estresse, se reflete em doenças físicas e mentais advindas, ao que parece ser lícito
julgar, de problemas também do meio social. Para o microuniverso ioguico brasileiro,
o câncer em Shanti, a tuberculose em Hermógenes ou as origens da ansiedade e da
depressão, como comentado por Ganesh, possuem as suas causas em desarranjos
129
energéticos transfisiológicos, fruto do estresse cotidiano. Em outras palavras, de uma
vida vivida fora da ordem cósmica, de uma vida alienante que, em última análise,
pode ter ligação com uma narrativa ioguica do mal-estar de um microuniverso de
brasileiros. A doença manifesta física e mentalmente, seria apenas um sintoma do
mal-estar de origem espiritual, cármica possivelmente.
130
Capitulo 5
A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA MODERNIDADE: KLESAS, SAMADHI E KAIVALYA SE CORPORIFICAM
POR UMA FISIOLOGIA RELIGIOSA EM ANDAMENTO NO IOGA BRASILEIRO
5.1. Meu caminho até aqui
Apresento no capítulo 1, a proposta soteriológica do ioga clássico mostrando
que o obstáculo espiritual estava contido na teoria dos klesas. Os klesas, por sua vez,
foram apresentados por Patanjali, no Ioga Sutras, como cinco comportamentos:
Ignorância, Apego, Aversão, Medo da morte e Orgulho. Seriam eles, portanto, o cerne
do mal do ioga, motivo de todo sofrimento humano (dukha). O klesa-Ignorância,
precursor de todos os outros, nasceria de uma mente/consciência entorpecida (citta-
vrttis) no contato da alma (purusa) com o corpo e o mundo (prakrti), enredando os
seres humanos no ciclo de samsara. A visão de mundo é dual e a reencarnação possui
caráter negativo (GULMINI, 2002).
Os iogues clássicos acreditavam que existiria uma ordem cósmica e as suas
posições sociais, vivendo em uma rígida estrutura de castas, eram determinadas pelos
deuses e mantidas pelos sacerdotes brâmanes, a mais alta casta desta estrutura social,
religiosa e política. A proposta soteriológica do ioga deste período, sendo erigida e
mantida pelo clero, determinava oito passos espirituais (asthanga-ioga) que
prometiam o cessar do turbilhão da mente/consciência (citta-vrttis) em direção a
comunhão com deus/Isvara e o fim da vida enredada por samsara, portanto, do
sofrimento humano (dukha). O samadhi constituiu o último passo espiritual da via
salvífica do ioga e é apresentado como uma experiência religiosa – transitória - do
cessar voluntário de citta-vrttis. Com o cessar da mente/consciência, adviria a
harmonia energética transfisiológica de prana no complexo corpo-mente/consciência,
denominada de sattva. Neste espaço transitório de samadhi, fruto da prática corporal
do ioga, os devotos experienciam o retorno em sua real natureza divina - purusa - ou
estado Imaculado da alma em eterno equilíbrio sattvico. O kaivalya, o estado Último
do ioga, é logo, representado como o momento em que o estado transitório do
samadhi se converte em permanente cessar de citta-vrttis. O devoto em kaivalya se
131
liberta em vida do klesa-mãe Ignorância e compreende samsara sem as ilusões
(maya) que o envolviam na dor (dukha) e no sofrimento humano (klesas) (Ibid.).
Na fase histórica posterior, o ioga adentra ao seu período medieval ou pré-
moderno. Estamos agora por volta do séc. X e a configuração social da Índia também
se altera. Dentro desse novo panorama social e político, surge uma tradição de iogues-
místicos denominados de hatha-iogues ou iogues do corpo. Estes, agora, dispensam o
sentido de pertença na alta casta sacerdotal para serem ordenados líderes espirituais
no ioga e, indícios históricos apontam, serem os hatha-iogues os responsáveis em
popularizar as práticas incrementando as suas técnicas corporais e imbricando-se com
a medicina ayurveda, o tantrismo, o budismo, o islamismo e a versão não-dual do
Vedanta Advaita (LIBERMAN, 2008, p.100-116).
Os hatha-iogues questionam a infalibilidade dos Vedas e a legitimidade
bramânica na manutenção social em castas. A tradição hatha-ioguica diminui os
valores das escrituras e supervalorizam as suas práticas corporais. A exemplo dos
místicos judeus e cristãos, os hatha-iogues elevam as técnicas corporais dos iogues
clássicos (ásanas, pranayamas, mudras, mantras, kriyas) ao nível de rituais de
comunhão com deus sem a intermediação de sacerdotes instituídos pela estrutura
religiosa hinduísta vigente. Um exemplo são as descrições do samadhi, agora,
carregadas de símbolos de uma fisiologia transfisiológica espiritualizada, aonde
sensações corporais e poderes mágicos (siddhis) obtém posição importante em sua
cosmovisão. Desse modo, enquanto os klesas para os iogues clássicos eram
conquistados exclusivamente por uma rígida ética religiosa pautada na doutrina, os
iogues pré-modernos dispensam as escrituras erigidas e mantidas pela elite sacerdotal
indiana, e encontram meios singulares de afastar os klesas-Mal de suas vidas por meio
de práticas rituais (PANCHAM SINH, 1914, p.63; SOUTO, 2009, p.238).
O período pré-moderno do ioga marca, assim, uma época de contestação da
ordem cósmica bramânica e estratificação da sociedade indiana, transformado os
klesas em bloqueios energéticos transfisiológicos e responsáveis pela manifestação de
doenças. A reencarnação ainda era um problema, pois as castas permaneciam
instituídas pelo clero hinduísta e incorporadas pela cultura vigente, mas a
medicalização e a corporificação do ioga carregavam consigo o objetivo implícito
espiritual de prolongar a vida do hatha-iogue na busca por kaivalya e afrontar o status
132
quo social, político e religioso da sociedade indiana medieval (ELIADE, 2001, p.205-
209; SOUTO, 2009, 46-50).
No capítulo 2, descrevo como a partir de 1858, com a chegada da colonização
inglesa na Índia, o ioga se defronta com a perspectiva do mundo ocidental moderno,
sobretudo a realidade empírica da ciência e a moral cristã protestante. Os klesas,
como ética religiosa, definitivamente deixam de fazer qualquer sentido frente ao
pensamento “lógico” de seus colonizadores, que rejeitam as práticas físicas e crenças
em energias metafísicas, como métodos aniquilatórios do Mal/klesas. Dessa forma, a
partir de 1920, uma nova geração de hatha-iogues surge, influenciando e
influenciados por um movimento contracultural conhecido como Renascença Indiana,
que visava a independência do seu país do colonialismo inglês (FARQUHAR, 1915,
p.387-429). Estes iogues modernos aventuram-se a demonstrar, pela “lógica”
científica, o poder terapêutico de seus rituais corporais na promoção da saúde,
principalmente pela resposta psicofísica ao relaxamento, diminuição do estresse,
elevação do sistema autoimune e condicionamento físico, agora corroborados também
pela ciência fisiológica da biomedicina ocidental. As escrituras ioguicas de outrora, de
Patanjali a Matsyendra, vão sendo ressignificadas por novos conceitos e sendo
incluídos a fisiologia religiosa do ioga (SIMÕES, 2011).
Modernamente, considerações antes transfisiológicas e místico-mágicas como
prana, nadis, kundalini e chackras ganham correspondentes da empiria fisiológica
como sistema nervoso simpático, glândulas endócrinas, áreas encefálicas,
neurotransmissores e hormônios. As práticas ioguicas são agora, investigadas nos
maiores e bem conceituados laboratórios de fisiologia do mundo, e as suas
repercussões clínicas dissecadas por tomógrafos e ressonantes magnéticos. Os klesas
modernamente, assim como ocorreu em suas escrituras, foram sendo ressignificados
por conceitos psicofisiológicos empíricos da ciência ocidental: o klesa-Ignorância
ganha contornos de estresse; o Apego se converte no sentimento de desejo; a Aversão
em ódio; o Medo da morte em temor de envelhecer e adoentar; e o Orgulho em
egoísmo (BALSEV, 1991; BHAVANANI, 2007; RAO, 2012).
No capítulo 3, no intento de restringir meu objeto, fui investigar os klesas no
contexto brasileiro. A escolha por esse afunilamento se deve, como argumento com
mais propriedade no texto, pelo isolamento por quase setenta anos desde a chegada do
133
ioga no continente latino-americano até a vinda do primeiro mestre iogue
verdadeiramente indiano no Brasil. Esse fato pode revelar a estrutura que rege as
adaptações do ioga moderno quando transplantado para as sociedades urbanas
ocidentais, mas sem a influência da cultura indiana, como nos países em que ele foi
implantado pelas mãos dos próprios iogues indianos (SINGLETON & GOLDBERG,
2014). No Brasil especificamente, por barreira idiomática ou desinteresse proselitista,
este período de insulamento possibilitou ao ioga verde-amarelo construir o seu sentido
de existência espiritual entre dois personagens principais – Hermógenes e DeRose -
(GNERRE, 2010) e mesclando religiões populares), como o catolicismo, o
espiritismo, a umbanda, o santo daime e a medicina ocidental.
O caminho de estabelecimento do ioga brasileiro passou por fases distintas e é
marcado por disputas internas entre iogues mais permissivos a sincretismos, os
iogues-híbridos: com o objetivo de popularizar a filosofia e prática religiosa do ioga;
e outros mais ortodoxos e “puristas”, os iogues-tradicionalistas: que buscaram o
sectarismo da prática e de sua filosofia numa posição de preservação da “essência” do
ioga. Essa disputa originou uma estrutura religiosa regulatória “invisível” e não-
institucionalizada, mas responsável em manter, produzir e aniquilar elementos
soteriológicos e bens de salvação ao ioga brasileiro. Os klesas e suas novas
configurações, com certeza, passaram (e passam ainda) pelas mãos dessa estrutura
religiosa regulatória. Por isso, saí a campo para entrevistar líderes híbridos e
tradicionalistas do ioga brasileiro e conhecer o que eles compreendem hoje como as
causas do Mal, e/ou se a teoria ética dos klesas clássicos ainda trazem conforto
espiritual frente o sofrimento de uma parcela de brasileiros que frequentam aulas de
ioga regularmente com fins espirituais.
No capítulo 4, escolhi dez iogues (entre híbridos e tradicionalistas) e mais três
cientistas brasileiros que investigam as práticas ioguicas exclusivamente com fins
terapêuticos. Dos resultados apresentados, vimos que: 1) a junção do ioga com a
ciência biomédica convidou profissionais da área da saúde adentrarem ao
microuniverso religioso do ioga como “facilitadores” na aplicação dos princípios
éticos, terapêuticos e de condicionamento psicofísico ao público leigo, competindo
com iogues híbridos e tradicionalistas. Como resultado, 2) um novo tipo de líder de
ioga surge, os cientistas-monges, que intensificam ainda mais a corporificação e
medicalização do ioga, mas sobretudo, ajudam a legitimar o discurso da fisiologia
134
religiosa de híbridos e tradicionalistas em uma simbiose ambivalente. Os líderes de
ioga no Brasil estabeleceram, assim, 3) uma latente dialética entre saúde-salvação.
Contudo, para manter o ioga como um movimento religioso e não se desintegrar
como prática laica e diferenciar-se das espiritualidades terapêuticas Nova Era,
produziram uma distinção entre 4) “prática ou método” e “experiência ou estado” de
ioga. Essas distinções auxiliam à sua estrutura religiosa do ioga em andamento
deslegitimar ou aceitar métodos/práticas de ioga atuarem no seu microuniverso em
formação ou serem excluídas como heréticas. Duas crenças, no entanto, permanecem
vivas dos períodos históricos indianos anteriores: 5) a crença em energias
transfisiológicas (como prana, kundalini, chackras e nadis), e 6) em uma ordem
cósmica que rege o mundo.
Se buscarmos localizar aonde se encaixam a teoria do klesa-estresse/Mal, a
resposta certamente deve surgir na dialética estabelecida entre saúde-salvação, da
crítica social em que os iogues vivem, mas traduzida por uma linguagem simbólica
religiosa condizente com a sua nova fisiologia.
5.2. O ioga moderno como produtor de rituais de cura/healing
Mostrei até aqui a ciência se apoderando de muitas das práticas ioguicas, ao
mesmo tempo, fornecendo respostas neurofisiológicas para narrativas fisiológicas
espirituais do ioga moderno. As técnicas do ioga moderno se transformaram em
soluções biomédicas anti-estresse, auxiliando a medicina ocidental criar uma dezena
de novas formas de tratamento de baixo custo para as mais diversas enfermidades. O
próprio Ministério da Saúde Brasileiro instituiu práticas de ioga e meditação em suas
unidades básicas de saúde e criou um novo setor que estuda implantações de terapias
antes alternativas, agora integrativas e complementares. Em suma, há um crescente
interesse no ioga como terapia. Dessa forma, seria lícito supor que o ioga se
encaminhe para secularização (CARRETE & KING, 2005). Mas não é só isso que
constatam as pesquisas no âmbito das ciências da religião.
Para Andrea Jain, o ioga moderno não seria uma terapia secular ou um mero
produto espiritual do mercado religioso de consumo Nova Era, mas descendente de
uma religiosidade indiana mais antiga, inserido aos problemas contemporâneos do seu
135
encontro com o mundo moderno ocidental (JAIN, 2010, p.95-125). A autora analisa
em seu livro Selling Yoga, que o ioga moderno derivaria a sua definição de duas
forças históricas: a cultura de consumo advinda do capitalismo globalizado, e de um
desdobramento do pensamento do ioga pré-moderno ou medieval indiano. Ela credita
a capacidade do ioga de se moldar em novos formatos sem perder certa
homogeneidade espiritual. Ela confirma ser o ioga atual fruto da cultura de consumo
(CARRETE & KING, 2005), mas que não possui apenas significados e funções
utilitaristas ou hedonistas, pois todas as religiões atuantes hoje em dia passam e
passaram pelas mesmas adaptações, essa crítica, logo, não seria exclusividade do
ioga. O ioga moderno vem se estabelecendo, conclui, como uma verdadeira prática
religiosa corporal como respostas às adversidades contemporâneas (JAIN, 2010,
p.172-174).
Com relação aos valores e ética modernos do ioga, Jain corrobora conosco
dizendo que o problema do sofrimento no ioga moderno – contidos no complexo
klesas, samadhi e kaivalya - está intrinsecamente ligado a questão da saúde (JAIN,
2010, p.95-129). Apresentamos em outros momentos que na antropologia da doença é
bastante investigada a dialética estabelecida entre saúde-salvação e doença-sofrimento
espiritual (HANEGRAAFF, 1998; LAPLANTINE, 2011, p.213-252). O ioga
moderno, ao invés de secularizar as suas práticas no encontro com a ciência
biomédica, sacralizou o corpo e desenvolveu, a partir dos iogues medievais (JAIN,
2010), práticas corporais de purificação para a cura de doenças e do estresse cotidiano
(DeMICHELIS, 2004; SMITH, 2008, p.140-159) no intuito de alcançar kaivalya ou
libertação do sofrimento. A via salvífica que abrange esse intento, sem dúvidas, pode
estar centrado de alguma forma na experiência transcendente e “integrativa” do
samadhi, pois como vimos no capítulo anterior, o “estado” ou “experiência” do ioga
está frequentemente associado esse conceito. Sarbacker encontrou similaridades dessa
experiência com o conceito de espaço liminar na obra de Victor Turner
(SARBACKER, 2008, p.166-179).
Victor Turner em Floresta de Símbolos, descreve como Liminaridade, a fase
de transição (ou liminar) aonde os indivíduos que participam de processos rituais
perdem, momentaneamente, o seu status social e alcançam uma posição de “entre-
lugar” (betwixt and between). Seria um afastamento que lhe fornece um conhecimento
específico com o poder de relevar a arbitrariedade das convenções sociais em que
136
vivem e se submetem (TURNER, 2005, p.138). Segundo o autor ainda, ao mesmo
tempo que é impossível viver na liminaridade eternamente, ela conserva em si a
potencialidade desagregadora e revolucionária de produzir narrativas possíveis de
solucionar problemas existenciais da vida humana, pois o inconsciente é posto em
questão neste momento. Para o indivíduo compreender a si mesmo e a sua posição na
estrutura biopsicossocial é primeiro necessário distanciar-se dessa estrutura, como se
morresse. Ele passa então, por um processo liminar, como uma experiência
transcendente temporária, em que ele é colocado em igualdade e humildade,
desprovido de qualquer posição social privilegiada que, porventura, ocupe fora da
liminaridade. Após isso, ele volta a integrar-se à sua estrutura biopsicossocial, mas
agora provido de um novo discernimento espiritual sobre si-mesmo e os outros como
se tivesse renascido (Ibid., p.116-159). É possível correlacionar essa descrição com o
samadhi e o conhecimento espiritual advindo de viveka.
DeMichelis em sua obra A history of modern yoga, descreve as aulas de ioga
moderno como um ritual de cura a partir de três fases: 1) A fase de separação, onde se
introduz os praticantes a um tempo de aquietação e recolhimento; 2) A Fase da prática
de posturas propriamente ditas; e 3) A fase de incorporação ou relaxamento final. A
primeira fase duraria em média uns dez minutos e corresponderia a chegada dos
alunos a sala de prática e um momento de aquietamento. Recriando o modelo de Van
Gennep (1960) considerado por Turner: Fase inicial de separação simbólica do seu
meio; Fase Liminar propriamente dita; e Fase de Passagem ou Retorno (TURNER,
2005, p.138).
A primeira fase funcionaria como que abrindo um espaço do
cotidiano/profano para a concentração de um momento mais introspectivo e de foco
em si-mesmo. A segunda fase está baseada nas práticas de posturas e respiratórios. O
objetivo está no desbloqueio das energias transfisiológicas e seria o momento da
“purificação” e/ou “desintoxicação”, como alguns iogues denominam, constituindo aí
a liminaridade. Na última fase é o momento em que autora se refere como
“transição”, aonde o samadhi ou espaço liminar vai ser desfeito e o aluno inicia o seu
retorno a realidade ordinária. Mas a volta traz consigo um novo conhecimento sobre
si-mesmo e o mundo que o rodeia ou samsara propriamente dito. Nesta fase final, por
meio do relaxamento profundo conduzidos com o aluno deitado em decúbito dorsal
sobre seu mat, postura (ásana) esta denominada de savasana, que significa
137
literalmente postura do cadáver ou do morto. De acordo com DeMichelis, é durante
esse momento que, como transportados à morte, os iogues vivenciam um processo de
limpeza ou de revigoração (cleansing/revivifying process) espiritual consumado
(DeMICHELIS, 2004, p.248-260).
O relato de uma prática de ioga descrito por DeMichelis sugere esse espaço
liminar e todo o processo ritual de forma mais explícita:
Quando eu entro na sala de prática aonde eu tenho minhas aulas de Hatha, eu sempre sinto como seu eu estivesse me separando de mim mesmo e do mundo agitado lá fora. Eu deixo meus sapatos fora da sala, meu despertador e meu celular, com meu estresse e meus prazos. Todos meus problemas deixo lá fora, eu entro no santuário da minha sala de ioga. A sala tem uma parede de janelas e uma claraboia iluminando o chão de madeira, paredes cor creme com luz natural. Os sons de natureza calmos tocando, e algumas plantas ajudam criar a ilusão que eu entrei em um jardim secreto. Eu encontro um lugar para meu tapete de ioga entre vinte ou mais outros alunos, maioria mulheres, que veem também deixar seus estresse na porta. Nossa instrutora, Beth, esta sentada em posição de lótus na frente da sala, cumprimentando-nos com um sorriso de boas vindas para sentarmos em nossas versões da posição de lótus. Ela inicia a aula com uma oração. Sua voz emana calma, ajudando-me a deixar meus olhos descansar e meu corpo relaxar para que a minha mente possa focar. A partir daí, nós vamos realizar uma série de alongamentos. Com cada postura, eu encontro um novo músculo e perco-me com a ajuda da minha respiração. Apesar dos lentos movimentos, meu corpo é fortemente exigido na permanência de cada postura e eu posso sentir o suor em minhas costas a partir do aquecimento do meu corpo. Eu sou convidada para a postura de relaxamento final e meditação. Como se eu não estivesse ali, Beth me acalma, a sua voz relaxante me guia através de uma oração, a qual me relembra que meu esforço deve permanecer na devoção apenas no meu próprio ser (DeMICHELIS, 2004, p.259-260 apud Dalton, 2001, p.37).
Depois da morte simbólica advinda do relaxamento profundo, como explicou
DeMichelis, os alunos retornam ao mundo “normal” do dia-a-dia, mas restaurados
pelo contato com a experiência do samadhi-liminaridade. O ioga postural moderno,
conclui DeMichelis, construiu um espaço mágico-religioso em suas aulas – o espaço
liminar - como uma passagem e defendendo o ioga atual como uma religião secular
de cura ritual. O ioga moderno e as suas práticas rituais de cura, conclui a autora, são
uma forma religiosa privatizada em resposta a uma demanda das sociedades
contemporâneas na busca por Deus ou “realização pessoal”, que encontrou
certamente, um lugar singular em nossa sociedade (Ibid.).
138
Hanegraaff, entretanto, nos ajuda a ampliar a compreensão do papel da
espiritualidade e ritual de cura ioguico moderno comentado por DeMichelis e Jain,
quando sugere que movimentos religiosos advindos da Nova Era, uma das influências
do ioga moderno (SINGLETON, 2010), não possuem apenas objetivos utilitaristas
nas curas físicas, mas podem implicar soluções religiosas para os problemas mais
íntimos do mundo moderno que não puderam ser resolvidos pela tecnologia científica
(HANEGRAAFF, 1998, p.44-47). E complementa, propondo que quando se fala em
“crescimento pessoal”, pode-se entender como um modelo de “salvação religiosa”
também (Ibid., p.23-35). Os livros do Prof. Hermógenes, conhecido como o “pai da
medicina holística brasileira”, podem denotar essa característica, sobretudo nas obras:
Autoperfeição com Hatha Yoga, Yoga para Nervosos, Dê uma chance a Deus, Deus
investe em você, Yoga : Caminho para Deus e outros.
Dessa forma, a manutenção do ioga como proposta soteriológica e não apenas
terapêutica orgânica parece se perfazer. A “cura” sobre o qual o ioga moderno se
debruça pode não estar meramente no corpo orgânico ou na “mente”. Quando os
iogues se referem a kaivalya, talvez estejam em busca da libertação de um mal-estar
representado metaforicamente em sofrimento advindo do “estresse” e suas derivações
emocionais.
Para Hanegraaff há uma diferença entre disease/doença e illness/“mal-estar”.
Disease/doença refere-se a uma anormalidade na estrutura e/ou funcionalidade dos
órgãos e sistemas, é um estado patológico culturalmente organizado por um modelo
biomédico. Illness/mal-estar, por sua vez, refere-se as percepções e experiências
pessoais de estados socialmente desvalorizados, que podem ou não incluir doenças e
possuem seus próprios sentidos para a cura. Essa distinção, continua o autor, é de
crucial importância para diferenciar a medicina tradicional - como o ayurveda de
onde o ioga medieval iniciou a sua medicalização e corporificação - da medicina
ocidental – aonde o ioga ressignifica a sua doutrina e prática ritual modernamente.
Curing/remediar, assim, se remete ao tratamento da disease/doença, enquanto
healing/”restaurar” ao illness/mal-estar. Curing/remediar pode encontrar lugar,
quando se ocupa apenas do órgão afetado; e healing/restaurar, quando se preocupa
com todos os aspectos que englobam o illness/mal-estar (Ibid., p.23-25), ou seja, aos
aspectos físicos, psicológicos, sociais e espirituais.
139
Os críticos à medicina ocidental dizem que seus médicos se especializaram em
curar doenças, mas se esqueceram da “arte de healing/restaurar”. Hanegraaff credita a
isso ao enorme crescimento de aproximações de healing/tratamentos “restaurativos”
alternativos, mais do que apenas o curing/”remediações” de disease/doenças. Assim,
o ioga e seus rituais de cura pelo relaxamento está implícito, como expõe Hanegraaff,
uma crítica à medicina ocidental oficial. Illness/mal-estar portanto, como base dos
rituais de cura ioguicos modernos, pode ser interpretado não apenas como um simples
fato biofísico, mas parte total da experiência fenomênica de transformação pessoal
para eliminar todo e qualquer tipo de sofrimento ou angústia humana. A
salvação/libertação religiosa pode se configurar como uma forma radical de
“healing/restaurativa”, conclui o autor (Ibid. p.42-47).
Parece lícito incluir o conceito de kaivalya nessa proposta, aonde os seus
rituais adquiririam um caráter, a partir da discussão até aqui, de “restaurar do mal-
estar” (illness healing) os iogues modernos, com a intenção de atuar na construção de
novas narrativas para uma boa vida a partir da interpretação do samadhi como espaço
liminar.
5.3. O ioga como promotor de rituais corporais de cura na restruturação de sua
realidade em que se vive
Os hatha-iogues como apresentamos no primeiro capítulo, muito antes dos
iogues modernos, já se imbricavam com a profilaxia de doenças por meio da dialética
estabelecida com a medicina ayurveda, como também numerosos exemplos de
obtenção de perfeição corporal, beleza e outros poderes físicos e transfisiológicos. No
entanto, havia uma preocupação em afastar-se do convívio social para se alcançar a
libertação (kaivalya) e tais poderes adquiridos por meio de suas práticas rituais
(samadhi). Como já expomos no primeiro capítulo, o iogue acredita na sua alma
imaculada (purusa) e em equilíbrio divino (estado sattvico). O contato da alma
imaculada com o mundo fenomênico, ou seja, o mundo sensível, logo, em relação
com outras pessoas, o complexo corpo/mente-alma (prakrti) pode estar propenso a
originar as agitações na mente/consciência (os citta-vrttis), estes os klesas e, por fim,
o sofrimento (dukha). Por isso, nas escrituras medievais do ioga, afirma-se:
140
I:12. Deve-se praticar Hatha Yoga em uma pequena e solitária ermida (matha), livre de pedras, água e fogo (excessiva exposição aos elementos naturais), em uma região onde impere a justiça, a paz e a prosperidade. (KUPFER, 2002, p.19) I:14. Neste lugar, o yogi, livre de toda preocupação, dedicar-se-á unicamente à prática do Yoga, seguindo as instruções do seu guru. (Ibid., p.20)
Mas quando o ioga encontra o ocidente, esse panorama se inverte, e os iogues
são convidados a participar mais “ativamente” do convívio social. No primeiro
capítulo, descrevemos extensivamente sobre os motivos de tais transformações. Algo,
no entanto, permaneceu, como as energias transfisiológicas, a ordem cósmica e a
corporificação de tais símbolos. Mas ao invés da fisiologia e anatomia advinda do
ayurveda, houve a sua ressignificação a partir da ciência biomédica (ver capítulos 1 e
2).
Victor Turner nos alerta que é bastante comum que os aspectos cognitivos
adquiridos nos espaços liminares (samadhi) serem simbolizados pela fisiologia
humana como “modelo para ideias e processos sociais, cósmicos e religiosos”. Essas
metáforas, continua o autor, são “uma variante de um tema iniciático amplamente
difundido: o de que o corpo humano é um microcosmo do universo” (TURNER, 2005
p.153). O que buscamos revelar, no entanto, é que o conhecimento adquirido pelo
samadhi em busca de kaivalya pode estar estabelecendo relação direta com a
permanência da crença na ordem cósmica e, portanto agora, com a harmonia do
corpo. Mas a ordem social pode se articular “nos termos de um paradigma humano
anatômico” também (Ibid.). E continua:
O corpo é encarado como uma espécie de modelo simbólico para a comunicação de gnosis, do conhecimento místico sobre a natureza das coisas e de como vieram a ser o que são (Ibid.).
O que o iogue moderno busca, entretanto, pode não ser em almejar um mundo
celestial, no sentido de fora desta realidade, mas transformar a sua própria realidade a
partir do conhecimento apreendido pelos encontros liminares em samadhi. Dito de
outra forma, para os iogues modernos que renunciaram viver afastados da sociedade,
kaivalya e samsara podem estar coexistindo no mesmo mundo real, mas numa
geografia suprassensível diferente (USARSKI, 2007, p.190). Esse conhecimento
141
transcendente seria adquirido, como já expomos, dos samadhis vivenciados a cada
aula ritual de ioga. Samsara, considerado o mundo como normalmente
experienciamos (JOHNSON, 2010, p.286), continua sendo o local gerador dos klesas
e do sofrimento. Mas o sofrimento no ioga advém do klesa-ignorância, logo, é um
sofrimento desconhecido, um mal-estar: uma aflição mal definida ou indisposição que
não chega a configurar doença51. O praticante sabe que sofre, mas não o por quê: ele
está alienado, ignorante do real motivo do seu sofrimento. A ideia de kaivalya, a
libertação final do ioga, a partir da sua fase moderna que desenvolve-se no centro
urbano das grandes cidades ocidentais, é lícito supor, tecer diálogo com o mundo
fenomênico, consequentemente, com o outro também: adquirir, de alguma forma,
certa alteridade. Afirmamos isso, baseando-se na discussão da passagem do ioga
medieval para o moderno, quando abandona aos seus votos de asceta renunciante que
se retirava nos ashrams das florestas indianas (SARBACKER, 2008, p.173-177).
O pesquisador Sarbacker, a partir do processo ritual do ioga descrito na
subseção anterior, vai associar a experiência advinda do samadhi/liminaridade com a
aquisição dos iogues de certo poder numinoso ou estado de divindade. Segundo ele,
essa divindade adquirida, poderia estar sendo associada, como já comentamos, com
beleza física, um corpo sem doenças, mas também a aquisição de uma “alteridade
espiritual” na contemporaneidade (Ibid., p.177). O autor explica que essa alteridade
ou distinção espiritual frente ao meio social, a partir do poder simbólico de suas
deidades em conjunto a gnosis advinda do samadhi, pode ter desenvolvido a ideia de
que os seus rituais edifiquem no praticante uma certa convicção - disposição, vontade,
motivação – da necessidade de transformação real do mundo em que vive. Traduzido,
como explica Jain, no discurso de justiça social, direitos humanos e sustentabilidade
planetária (JAIN, 2010, p.95-129).
As deidades do ioga são representações tangíveis do numinoso poder do ioga, a representação simbólica do poder e “alteridade” (antiestrutura) através do qual o praticante de ioga se esforça a alcançar. (...) Estas [deidades, como Shiva, Krsna e etc.] contribuem na criação de um ambiente que simbolicamente represente uma realidade alternativa ou idealizada que o praticante espera entrar ou fazer parte através da prática (SARBACKER, 2008, p.177.).
51 Dicionário de Português licenciado para Oxford University Press [português].
142
Trabalhos recentes no Brasil corroboram com Sarbacker quando expõem
relatos de indivíduos que depois de um curso de formação em ioga, mudam
drasticamente o estilo de vida:
Eu não conhecia nada do Yoga. Eu não fazia idéia de toda a filosofia que tinha por trás. Sabia o que todo mundo sabe, que a pessoa fica mais calma que alonga, asanas né? Eu tinha tido um problema no joelho muito sério, e tinha ficado um ano praticamente mancando. E aí superei essa fase. Teve muito de psicológico nesse meu problema do joelho, né? Eu jogava muita frustração e ele não conseguia melhorar. Resolvi que, não, tudo bem, está certo, temcoisas erradas na minha vida e eu resolvi arrumar.
E eu vejo muito nesse sentido como se realmente várias técnicas e várias maneiras de você conduzir um estilo de vida voltado para o autoconhecimento e que consegue integrar realmente as várias facetas da vida. Desde a sua vida conjugal, sua vida profissional. A sua vida com relação com o teu corpo, com relação a tudo. Mas acima de tudo é esse grande objetivo do autoconhecimento no sentido da libertação mesmo, de moksa [equivalente a kaivalya]. No momento quando eu via o Yoga aind como uma técnica, ou seja, ali eu vou praticar Yoga e você toma contato com certas coisas, entra em certos tipos de pontos de vista com relação as coisas e depois você entra em outras práticas de trabalho e vê que tudo motive para a prática de Yoga. Hoje para mim o Yoga é um estilo de vida, uma maneira de ver o mundo econsequentemente a gente mesmo. Mas no início não era. Como eu falei eu tinha um interesse desde o início que era s uma questão física (NUNES, 2008).
A questão da alteridade espiritual desenvolvida no praticante, pode o capacitar
positivamente a perceber um mundo melhor para se viver, um mundo em que os
klesas cessem de agir e o mal-estar e sofrimento desapareçam. Segundo o autor, o
samadhi/liminaridade desenvolveria no praticante a fé, como “aquisição” de certa
“divindade” que os rituais iriam lhe proporcionando:
O estúdio [sala moderna onde é praticado o ioga] tornam-se uma morada para o divino, um espaço numinoso que está mais perto do mundo ideal que os iogues se esforçam para criar ou viver (SARBACKER, 2008, p.177).
O Prof. Hermógenes nos ajuda a compreender essa certeza distintiva de um
outro mundo a partir do ioga; mas neste, não em outro. Em sua obra Yoga, um
caminho para Deus, esclarece:
Que tem Yoga com tudo isso? Yoga é exatamente a viagem dos que, intoxicados de divertimento, acordado pelas abençoadas pancadas das vicissitudes, saudosos da “casa do Pai”, já decisivamente convertidos, tornaram-se aspirantes ao Eterno.
Yoga é o caminho e o caminhar que conduzem a Deus.
143
Você, ainda estranhado, poderia perguntar: “Como pode uma ginástica fazer tanto?!” Yoga não é ginástica. Nenhuma ginástica, só, é Yoga. Há uma ginástica muito inteligente chamada Hatha Yoga que ajuda o caminhante, dando-lhe adequadas condições físicas e psicológicas para que vença as obstruções e as fadigas do caminhar. Mas é apenas um aspecto particular de todo um nobre sistema que, alquimicamente, leva a alma a Deus (HERMÓGENES, 2005, p.30-32). Se o que mais nos afasta de Deus e nos vincula ao mundo é nosso imperfeito amar, é a nossa incapacidade para o verdadeiro amor, nosso caminhar tem de ser não contra o mundo, mas a favor de Deus. Será a universalização e divinização de nosso amor que poderá cortar as amarras de servidão e dar-nos, na unificação com o Deus que amemos, a libertação salvadora (Ibid., p.20). É errôneo pensar que o yoguin, pelo fato de ter despertado e visto o falso valor do que é mundano, deva abandonar a sociedade, a convivência, e partir para uma floresta, para a beira de um rio ou para uma caverna na montanha. Nada disso. Agora, desperto e armado de discernimento, mais do que antes, pode e deve participar, e de forma mais fecunda (Ibid., p.184).
As narrativas poéticas de Hermógenes nos conduzem a julgar que ele mesmo
tenha atingido essa alteridade espiritual que lhe dava esta convicção do poder do ioga
como “caminho para Deus” ou “libertação salvadora”, argumentados por Sarbacker.
Não é coincidência também que Hermógenes e DeRose tenham se tornado, por anos
no Brasil, duas autoridades sobre a “verdade” do ioga. O primeiro exaltando o
sincretismo, e o segundo uma perspectiva tradicionalista do ioga no Brasil. A
convivência de ambos pensamentos, entretanto, não eliminou nenhum nem o outro de
atuarem no país. Pelo contrário, ambos jeitos de viver o ioga brasileiro, apesar de
contendas descritas ao longo do capítulo 3, pode ter fomentado a diversidade e
singularidade que buscamos evidenciar desse ioga. A similaridade entre ambas
cosmovisões em processo ainda no Brasil está na promessa de cura pelo Hermógenes,
e de crescimento pessoal em DeRose, ambos, como vimos, sinônimos de salvação
religiosa.
Os processos rituais do ioga, para cura ou “crescimento pessoal”, pode
estabelecer dialética com a saúde. No entanto, a cura restaurativa/illness não deve
estar centrada egoisticamente em si-mesmo, caso contrário, o iogue incorre na dor
decorrente do klesa-egoísmo. A cura restaurativa em direção a kaivalya, portanto,
deve abranger numa transformação na forma e no mundo propriamente dito em que se
vive. A libertação final, kaivalya, logo, pode residir na modificação do próprio
“samsara” em mundo melhor.
144
5.4. Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya
como resposta espiritual do ioga a vida social brasileira em que habitam
Como argumentou Balsev no segundo capítulo, podemos associar
modernamente os klesas - os clássicos obstáculos a vida espiritual plena no ioga,
causa de um viver ignorante ou “inconsciente” - não somente ao estresse, mas a
sentimentos e emoções específicas como desejo, ódio, medo e egoísmo (BALSEV,
1991). Sabe-se, pela psicofisiologia, que a sensação de medo pode ser o principal
gatilho para a resposta de luta-fuga do estresse, mas também de explicações
religiosas (FULLER, 2008, p.28-49). Robert Fuller explica em seu livro Spirituality
in the flesh, no capítulo Religion and natural selection, que as emoções podem ser
estratégias adaptativas, e que o medo poderia estar envolvido na criação, por
exemplo, de anjos e deuses protetores no intuito de aplacar as mais profundas
ansiedades e angústias humanas. O autor nos fornece o exemplo da imaginação
apocalíptica, esclarecendo que, se esta crença sobrevive mesmo em tempos
modernos, seria lícito presumir que ela esteja incorporada em nossas mais íntimas
motivações, mais do que puramente fruto da cultura erigida por um povo (Ibid.,
p.32-33).
Logo, o medo, como principal acionador do estresse no ioga, pode estar
estabelecendo relações com a ideia negativa da “aniquilação da consciência” ou do
“viver entorpecido”, como alguns iogues comentaram. As práticas ioguicas
corporais modernas, para o brasileiro, poderiam estar funcionando para o libertar, ao
invés de samsara (pois no Brasil reencarnar é algo positivo), do medo. Mas medo do
quê? Difícil afirmar algo, mas provavelmente os klesas possam estar envolvidos
nesta construção narrativa.
Resgatando as contribuições de Balsev sobre os klesas do segundo capítulo, o
sentimento de desejo como desdobramento emocional do klesa-apego, pode ser
associado a carência de algo, de sentir falta ou do próprio medo de não ter, de faltar.
O ódio, emoção negativa advinda do klesa-aversão, é uma das principais respostas
emocionais ao medo também, sobretudo quando não temos o que desejamos. O
egoísmo, definido quando um indivíduo coloca os seus desejos acima dos demais ou
não considera o dos outros, guardaria em si a força de irromper o sentimento
anterior de ódio ou a emoção do medo ao estranho, logo, do diferente de mim. Visto
145
por essa ótica estritamente psicofisiológica, todos os klesas, carregam em si as
mesmas reações do estresse ao medo: de estar constantemente em alerta, em
prontidão para lutar ou fugir. As metáforas corporais do ioga moderno descritos ao
longo deste capítulo, de desconexão com o viver, do vazio, do torpor e outras
similares, podem indicar que os agentes espirituais do microuniverso do ioga
brasileiro venham de encontro a buscar soluções para o sofrimento de si-mesmos e
da sua comunidade, sobretudo da alienação ou ignorância de quem são e qual papel
devem ocupar na sociedade e suas próprias vidas, consequentemente. Esse indivíduo
social que vive com medo e em “alerta”, logo, se não carecesse de nada, não
desejaria; e assim, sofreria bem menos os efeitos nefastos do medo desencadeador
do estresse/klesa, promotor em última instância, da “extinção momentânea da
consciência”, do “estado de ioga” ou da alienação. As práticas corporais do ioga, a
partir disso, extrapolam os fins orgânicos, eles abarcam uma dimensão espiritual de
cura no sentido da doença/illness comentado por Hanegraaff anteriormente.
Quando a cientista Osiris coloca que o principal motivo dos iogues com quem
convive é “não ser tão afetável pela sociedade moderna, de consumo e estressada”,
conjura os argumentos acima. Dito mais simples, a ignorância (klesa-mãe), pode
manifestar-se no desejar o que não se têm ou, estar socialmente despossuído de
acesso a isso. A cientista Osiris, moradora de São Paulo e pesquisadora de técnicas
meditativas/ioguicas como terapia, durante sua fala cita um artigo científico sobre
como a ansiedade é comum nos grandes centros urbanos brasileiros, como já
comentamos. A chave para o fim da angústia existencial que perturba o
microuniverso ioguico, pode centrar-se assim, na extinção do medo de uma parcela
de brasileiros da classe média social através das suas práticas espirituais. Um medo
de não ter como satisfazer os seus desejos, de odiar por não ter, e/ou do medo
egoísta de colocar os seus apetites acima dos outros. O medo, como gatilho
psicofisiológico acionador do estresse, transforma-se, devido aos iogues-mentores e
cientistas-monges, em sinônimo do klesa-mãe Ignorância, pois “furta a consciência”,
“desconecta da realidade”, afasta os seus da ordem cósmica, aproxima-os de
doenças, mas sobretudo, aliena-os no sentido hegeliano aonde a consciência se
afasta de sua real natureza52, purusa. A doença, na nova doutrina ioguica sendo
52 Alienação: no hegelianismo, processo em que a consciência se torna estranha a si mesma, afastada de sua real natureza. Dicionário de Português licenciado para Oxford University Press (português).
146
estabelecida, como ansiedade, depressão, insônia e demais ligadas ao estresse-
ioguico, a manifestação última do afastamento de purusa ou da alma com Deus.
Assim, as vivências espirituais liminares do samadhi, sinônimo da
momentânea extinção do estresse-ioguico, podem estar relacionadas as práticas
corporais purificadoras do estresse e ordenadora das energias cósmicas. A via, no
entanto, mais segura para a promessa de purificação do klesa-estresse, logo, pode
estar pautado no relaxamento conduzido em nível espiritual. Em suma, a dialética é
simples: a experiência transitória do samadhi é central nas práticas ioguicas, pois
contrária à manifestação dos klesas; assim como, a experiência do relaxamento
somente manifesta-se na ausência do estresse ou medo, seja em nível fisiológico,
psicológico ou social, mas também agora, em nível espiritual.
As obras do Prof. Hermógenes são ricas em construções espiritualizadas entre
saúde, harmonia e salvação que buscamos elencar. No capítulo O que é curar-se do
livro Yoga para nervosos, Hermógenes evidencia um estado de perfeita harmonia
alcançado pelo relaxamento obtido nas práticas corporais do ioga: “Não pretendo para
você uma frustradora pseudocura. O que realmente lhe convém é cada vez uma dose
maior de sattvidade” (HERMÓGENES, 2011, p.81).
E sattva, no glossário do mesmo livro, representa “o princípio de sabedoria,
serenidade, santidade...” (Ibid., p.465). Já vimos que sattva simboliza também,
pautado nas escrituras antigas do ioga, uma experiência transitória de equilíbrio
perfeito e de comunhão com Deus. O conceito de sattva, portanto, pode ser
compreendido metaforicamente a um equilíbrio das forças energéticas que governam
os corpos suprassensíveis. Kaivalya, a libertação ou estado Último do ioga, como já
discutido no primeiro capítulo, representaria a conservação eterna do estado sattvico,
quando as forças maléficas dos klesas, enfim cessariam definitivamente de agir (ver
capítulo 1, subseção 1.2).
O Prof. Hermógenes, no livro Yoga: caminho para Deus, no capítulo que trata
especificamente do hatha-ioga, A austera disciplina, diz:
Se o caminhante tem as pernas frágeis para tão longe e duro caminho, deve fortalece-las antes de começar a andar. Quando os Mestres aconselham “pratiquem tapas” estão querendo salvar os caminhantes de uma provável derrota. Ela [tapas] não é para os que cedem às fadigas, aos desconfortos, às
147
ciladas, aos desafios, às barreiras... O yoguin, praticando tapas, queima, no fogo da austeridade, as sementes da impureza. E defende-se de todos os cansaços, desânimos, preguiças, fossos e fossas. Tapas é para dar ao corpo higidez, energia, resistência e para prolongar-lhe juventude e vida. Hatha Yoga é para aprimorar o corpo como instrumento. Para o yoguin, “o corpo é o templo do Espírito Santo”. Tapas conserta, aprimora e purifica o templo (HERMÓGENES, 2006, p.81-82).
Em outra passagem do Yoga para nervosos, no capítulo Os milagres do
relaxamento, do Prof. Hermógenes, a relação relaxamento-samadhi ou “libertação” é
evidenciada como um “milagre”:
Nem mesmo os psicotrópicos mais fortes, administrados pelo especialista [da área médica psiquiátrica], tinham conseguido fazê-la dormir. Havia seus dias porém que, sem qualquer medicamento, vinha dormindo normalmente. Havia seis dias que lhe ensinara a relaxar. O semblante de felicidade com que contava sua libertação convenceu a todos [ele estava em uma conferência médica] de que, de fato, o “milagre” ocorrera (HERMÓGENES, 2011, p.69).
Como vimos na seção 2.2 desta tese, Teoria dos klesas corporificada:
sinônimo de estresse e emoções, o pesquisador Benjamin Smith (2008), analisando
um dos métodos modernos mais populares do hatha-ioga, conclui que tapas é o fator
primordial nas tradições modernas do ioga. O conceito de tapas se materializaria no
intuito de elevar o calor corporal, eliminando “no fogo de tapas” todas as
“substâncias nocivas ao corpo” ou, como coloca Hermógenes acima, “as sementes da
impureza”. É a mesmo lógica discursiva. Como expomos, são os klesas a presença
nociva e impura a serem expurgados para o firme reestabelecimento da “higidez” ou a
boa saúde, como nos explica Hermógenes.
Já discutimos também que o estresse, em nível psicofisiológico científico,
desestabiliza o organismo, removendo-lhe da sua homeostase ideal, de um estado de
equilíbrio dinâmico no jogo bioquímico que só tem fim na morte. O organismo passa
a sua vida inteira se ajustando psicobiologicamente, em uma eterna e vã luta por um
estado de homeostase eterno que não pode ser alcançado em vida. Talvez, como fruto
da ressignificação que a doutrina e prática do ioga sofreu modernamente, kaivalya
tenha se traduzido, dentro da linguagem de uma fisiologia da religião, na conquista de
um estado homeostático eterno e divino. Mas para isso se confirmar, seria necessário
que o braço forte do hinduísmo, que percebe o ioga como darsana (ou lit. um ponto
de vista filosófico-religioso), diminuísse a sua pressão legitimadora. Em outras
148
palavras, seria preciso que a ortodoxia e o tradicionalismo se calasse e o hibridismo
com a sua permissividade sincrética se revelasse, para que novas soluções religiosas
surgissem. No Brasil, ao longo de décadas, esse panorama se fez dominante. Além
disso, o Brasil e os seus problemas sociais podem estar servindo de diretriz para os
líderes do ioga aqui, identificarem outras as causas do sofrimento humano.
5.5. O mal-estar, o sofrimento e o sintoma: uma nova perspectiva sobre a
soteriologia do ioga
O psicanalista Christian Dunker diferencia mal-estar, sofrimento e sintoma.
Para ele, mal-estar não é a própria angústia ou dor, mas uma deficiência perceptiva da
origem do sofrimento propriamente dito (DUNKER, 2015, p.205).
O tormento, a angústia que se repete, que se remói, a angústia cuja causa, razão ou motivo não se discerne muito bem, pode ser então predicado como mal-estar (Ibid.).
Dunker, a partir de uma interpretação do clássico conceito de Freud, conceitua
mal-estar como a impossibilidade de estar, a negação do estar, e não apenas a negação
pura e simples do bem-estar (Ibid., p.192). Assim, o autor sugere que o mal-estar é
essa ausência de lugar ou sensação de impedimento de ascender espiritualmente
(“escansão do ser”) ou, parafraseando a metáfora do próprio psicanalista: “a
impossibilidade de ‘uma clareira’ no caminhar da floresta da vida” (Ibid.). O autor
comenta que a tradução para o mal-estar freudiano é difícil, pois remete a algo que
não pode ser designado objetivamente, por isso a utilização das metáforas – sobretudo
nesse caso – são imprescindíveis para defini-lo.
A noção de sofrimento, definida como o “reconhecimento da dimensão do
mal-estar”, deve responder essencialmente a três condições: uma teoria que
identifique e nomeie o sofrimento; estruturar o sofrimento dentro de uma narrativa; e
deve envolver meios de determinar o sentido de sofrer e inverter o seu significado
para não mais senti-lo (Ibid., p.219-220).
Os atos de reconhecimento determinam a ontologia da experiência de sofrimento, estabelecendo, por exemplo, a linha de corte entre o sofrimento que dever ser suportado como necessário e o sofrimento que é contingente e
149
pode ser modificado. (...) Nesse sentido, todo sofrimento contém uma demanda de reconhecimento e responde a uma política de identificação. A segunda condição (...) exprime um processo transformativo que é reconhecido num âmbito da linguagem intermediário entre o discurso e a fala (...) teorias sexuais infantis, o romance familiar do neurótico, assim como o mito individual do neurótico, são expressões psicanalíticas do que chamamos de narrativa. A terceira condição da experiência de sofrimento é que ela envolve processos de indeterminação de sentido e de inversão de significação. É a experiência psicológica que a criança experimenta quando suspende e confunde a relação entre aquele que pratica a ação e aquele que sofre a ação (Ibid., p.219).
O sintoma para o mal-estar, explica Dunker, como não poderia ser de outra
forma, organiza-se sempre por meio de metáforas: a “metáfora do sintoma”, diz o
autor (Ibid., p.212). O sintoma, ou modos de sofrer, é um fragmento de liberdade
perdido, imposto a si e aos outros (Ibid., p.32). Assim, a normalidade é apenas uma
normalopatia, ou seja, um “excesso de adaptação ao mundo tal como ele se
apresenta”, mas que revela sempre um sintoma de extrema tolerância às agruras da
vida (Ibid., p.185-272). Assim, kaivalya, por sua própria definição (liberdade,
libertação ou liberação), pode representar “um fragmento da liberdade perdida”,
metaforizada na ideia da alma (purusa) contaminada em contato com o mundo
(samsara). As aulas de ioga modernas, processos rituais de retorno/passagem
transitória na purificação de uma alma que sofre, poderiam representar uma
alternativa para o fim do sofrer. Há uma promessa implícita de um dia, pelo
conhecimento espiritual advindo do samadhi/liminaridade, libertar enfim, do mal-
estar que acomete seus alunos/praticantes.
Há um insistente reconhecimento dessa dimensão do mal-estar como inerente às relações entre existência e verdade (Ibid., p.193).
Dunker explica que o cerne das narrativas de sofrimento são sempre transversais, ou seja, possuem causalidade específicas. Assim, a incapacidade do sujeito em reconhecer-se em sua própria história particular ou com dificuldade de estabelecer formas sociais universalmente compartilháveis, causam, em última instância, essa perda da experiência da causa de seu mal-estar (Ibid., p.273).
O diagnóstico, seja ele formal ou informal, clínico ou crítico, disciplinar ou discursivo, reconhece, nomeia e sanciona formas de vidas entendidas como perspectiva provisória e montagem híbrida entre exigências de linguagem, de desejo e de trabalho. (...) Assim, o ressentimento social é um diagnóstico, a biopolítica é um diagnóstico, a personalidade autoritária é um
150
diagnóstico, o declínio do homem público é um diagnóstico, a cultura do narcisismo é um diagnóstico. (...) Fica claro, assim, que o que estamos chamando de diagnóstico não deve ser entendido como classificação ou inclusão do caso em sua regra correspondente, como absorção da variável à cláusula genérica, como um juizado de pequenas causas, mas como reconstrução de uma forma de vida (Ibid., p.274).
Dito de forma mais simples, o mal-estar reside na eminência da morte,
representada pela finitude do nosso corpo, mas sobretudo, na violência generalizada
dos grandes centros urbanos e na insegurança e medo das relações humanas. Esse
mal-estar sem possibilidade de nomeação determinante nos dispõe à repetição
angustiante da dor de existir. Precisamos criar, assim, uma forma de vida condizente à
nossa narrativa de vida, pois não há manual de classificação que abarque todas as
mazelas existenciais. Uma nova forma de vida significa, segundo o autor, “nada mais
do que uma perspectiva” (Ibid., p.280). Daí, talvez, a justificativa da resistência das
religiões instituídas existirem e novos fenômenos religiosos surgirem, pois, de fato,
religiões são criativos depositórios de novas formas de se viver, novas narrativas para
justificar a angústia, portanto, que se repete devido ao mal-estar. As práticas e
doutrinas religiosas funcionariam como “diagnósticos” nomeando sofrimentos,
acalentado sintomas e produzindo legitimação espiritual ao sofrimento humano.
Se queremos pensar o diagnóstico como reconstrução de uma forma de vida – no duplo sentido, prático e teórico -, devemos partir da evidência discursiva de que as diferentes formas de vida pressupõem suas próprias práticas produtivas ou improdutivas de nomeação do mal-estar (autodiagnostico) (Ibid., p.276). Diagnosticar é reconstruir uma forma de vida, definida pelo modo como esta lida com a perda da experiência e com a experiência da perda (Ibid., p.282).
A questão da perda da experiência ou experiência da perda, como ressalta o
autor acima, reside no conceito de alteridade e alienação, causadores do mal-estar e os
mecanismos desenvolvidos – novas formas de se viver - para superar o sofrimento. A
alienação centra-se em não saber, ser ignorante portanto, da origem do mal-estar; e a
necessidade de desenvolvimento de certa alteridade ou qualidade pessoal que o
distinga dos outros, assim, tenha condições em erigir um jeito próprio de produzir as
suas próprias “clareiras no caminhar pela floresta”, metáfora utilizada pelo próprio
Dunker.
151
O autor comenta que no século XIX era comum que a aceleração da vida
moderna, com o seu nervosismo, sua irritabilidade e seu cansaço, fossem o quadro de
referência para o diagnóstico psicanalítico da neurastenia, uma fadiga extrema que
atingia tanto física quanto intelectualmente parte da população europeia. Era o mesmo
momento histórico e geográfico que o ioga estava sendo apresentado ao mundo
moderno. Assim, é bem provável que a origem da metaforização moderna dos klesas
em estresse e emoções associadas como nefastas, assim como sintomas
correspondentes como agitação da mente, irritação, neuroses e nervosismo, tenham
aqui a sua origem.
Neste ponto da discussão já nos é possível apresentar os klesas, causas
espirituais da ignorância de conhecer a si-mesmo, ao conceito de alienação. Sendo o
samadhi condição da aquisição de certa alteridade espiritual, como vimos em
Sarbacker (2008), e kaivalya, a superação (lit. liberdade ou liberação) do klesa-
Ignorância, nos parece lícito pensar nos klesas mais do que simples fomentadores da
“agitação mental” ou repercussões ao eixo psicofisiológico do estresse. Com vistas a
aquisição de discernimento espiritual ou gnosis da experiência liminar do samadhi, e
pensando no klesa-Ignorância como o principal obstáculo espiritual a kaivalya, é
permitido compreende-lo como causa, portanto, da alienação espiritual dentro da
narrativa discursiva do ioga moderno, mas ressignificado – metáfora com o corpo,
como Victor Turner adiantou na subseção anterior.
Dunker esclarece ainda, que ao longo dos tempos históricos modernos, criou-
se vários jeitos de sofrer o mal-estar inominável: neurastenia e psiscatenia no fim do
séc. XIX; neuroses do caráter nos de 1940; narcisismo pós-guerra; borderlines na
década de 1980 e depressão, pânico e anorexia em 2000 (Ibid., p.32). Podemos pensar
em outras maneiras erigidas para suportar o mal-estar a partir das narrativas modernas
do ioga também.
A permanência na crença de energias transfisiológicas e a questão da ordem
cósmica, dialogam dando coerência a forma de se viver ioguica moderna também. A
causa do mal no ioga é pautada hoje no estresse e emoções como ódio, desejo,
egoísmo e medo, de certa forma, como já demonstramos em outros autores, giram em
torno de causadores de nervosismo, irritabilidade, fadiga e agitação mental. Na
verdade, a definição de ioga que nos chegou, é justamente a “diminuição voluntária
152
das modificações mentais”. Uma das fases do processo ritual do ioga é descrito
literalmente como uma “postura de relaxamento final”; e o seu objetivo, na criação de
um “espaço transitório simbólico/liminar” – samadhi ou estado de ioga - entre o
mundo estressante das grandes cidades. Isso tudo atrelado a inversão no qual os
iogues medievais, na passagem para a sua fase história moderna, precisaram se
adaptar, não mais sendo possível retirar-se do convívio social, metáfora de samsara.
A sua busca para um “mundo prometido” – kaivalya -, aonde os klesas não mais
atuem e a alma liberte-se do seu mal-estar inominável, precisou ser modificado.
Estamos tratando aqui, provavelmente, de nova uma narrativa metafórica
moderna em aliviar o sofrimento de muitos brasileiros. Dessa forma, os rituais
corporificados do ioga moderno podem estar sendo encarregados de capacitar seus
devotos de certa alteridade que os aliviem da alienação, compreendidos aqui, como a
ausência do sentir, da falta experiência, a causa intrínseca do mal-estar que os
afligem.
5.6. Ioga moderno como nova religião em processo
Podemos afirmar que desde a chegada do swami Vivekananda no ocidente, o
ioga começou a ser percebido como um novo movimento religioso em andamento
(DeMICHELIS, 2004, p.248-260; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2014, p.95-129). Mas
classificá-lo, assim como qualquer outra religião não é tarefa simples. DeMichelis,
como vimos, define o ioga como uma religião secular de cura; Newcombe como uma
religião mística; e Jain uma prática religiosa corporal. Além disso, inúmeros trabalhos
têm se esforçado em legitimar o ioga moderno como uma nova espiritualidade e não
apenas atividade física e/ou terapia biomédica (LIBERMAN, 2008, p.100-116;
SMITH, 2008, p.140-160; SINGLETON, 2010; GNERRE, 2010; GUERRIERO,
2014).
A história do ioga como religião singular, desvinculado assim tanto do
hinduísmo quanto da Nova Era, tem início a partir dos novos movimentos religiosos
indianos durante ainda o século XIX, no período que comentamos no primeiro
capítulo, de Renascença Indiana (FARQUAR, 1915). DeMichelis afirma que o
movimento religioso Brahma Samaj, nascido neste período, teria sido o estopim para
153
uma releitura moderna das escrituras vedantinas dando início ao Neo-Hinduísmo e/ou
Neo-Vedanta (DeMICHELIS, 2004, p.51-66). Desse movimento surge Vivekananda,
porta-voz de um ioga já ressignificado pela fisiologia biomédica científica com
práticas rituais de cura e mensagem de “religião universal” (VIVEKANANDA,
2007). O ioga agora entra no seu período moderno da história e as implicações sobre a
sua soteriologia e religiosidade serão profundas.
A proposta soteriológica do ioga, continua viva, mas estudos indicam que
precisou ser muito bem ajustada no seu transplante da Índia para o mundo moderno
ocidental. Se na Índia pré-colonial britânica, ao longo de milhares de anos, o ioga
sempre foi descrito como um darsana hindu, em menos de 50 anos de contato com as
sociedades urbanas do ocidente, no entanto, suas diretrizes salvífica/libertadoras
foram, consideravelmente, transformadas: klesas, samadhi e kaivalya vem adquirindo
novos contornos e objetivos que, mesmo o mais perspicaz guru retirado por anos nas
mais longínquas florestas e cavernas indianas, sequer um dia vislumbrou em suas
práticas meditativas.
Observações a partir das descrições de Victor Turner, sugerem o espaço
liminar um espaço transicional aonde o indivíduo no processo ritual é um não-algo ou
algo entre. O ritual do ioga, portanto, como representante ioguico deste espaço, se
torna o entre-lugar de “refúgio” aonde se possa vivenciar, a cada aula de ioga,
adquirindo discernimento (gnosis), mas sobretudo, uma sensação de “estar em casa”
ou “retornar ao seu equilíbrio”, no sentido de igualdade social, espiritual, psíquica e
física. Turner ressalta isso quando diz que na liminaridade o participante do processo
ritual:
Não tem status, propriedade, insígnia, vestimenta secular, graduação, posição de parentesco, nada que possa distingui-los, estruturalmente, de seus companheiros (TURNER, 2005, p.143).
Turner esclarece ainda que é um lugar aonde “As pessoas podem ser elas
mesmas, quando não desempenham papéis institucionalizados”. Quando perguntei
aos iogues brasileiros sobre a causa do mal, quase em uníssono eles responderam
como “o falso papel que ocupam na sociedade” ou “as máscaras que vivemos”. O
kaivalya, poderia representar a libertação final destes papéis, pois para Turner a
liminaridade representa a mudança no Ser (Ibid., p.137-158). Assim, cada aula de
154
ioga, o praticante vivencia essa mudança no Ser, que representaria, hipoteticamente, o
remover das máscaras e o falso papel que ocupam na sociedade. Mas, sobretudo,
produziria uma geografia suprassensível que motivaria cada iogue ansiar um mundo
melhor a se viver, longe dos klesas, portanto, longe da alienação, do apego, do ódio,
do medo e do egoísmo e, quiçá, mais perto da alteridade, do desapego, do amor, da
esperança e do altruísmo.
Turner, no entanto, se preocupa em explicar que o espaço liminar não se trata
de uma irracionalidade, mas “um modo de provocar os pensamentos”, aonde uma ou
duas coisas podem ser interpretadas de formas diferentes na liminaridade.
A liminaridade é o reino da hipótese primitiva, onde há uma certa liberdade para prestidigitar com os fatores da existência. Como nas obras de Rabelais, há uma promíscua mistura e justaposição das categorias de evento, experiência e conhecimento, com uma intenção pedagógica. Essa liberdade tem, no entanto, limites bastante estreitos. Os neófitos voltam à sociedade secular com as faculdades mais alertas, talvez, e conhecimento incrementado sobre como são as coisas, mas são, uma vez mais, obrigadas à lei e ao costume. Como à menina Bemba (...) mostram-lhes que as maneiras de agir e pensar diferentes daquelas estabelecidas pelos deuses e ancestrais, em última análise, não funcionam e podem ter consequências desastrosas (Ibid., p.152).
Defendo que essa experiência liminar de Turner advinda de processos rituais,
seja o estado de ioga relatado pelos iogues brasileiros. Respeitando a tendência do
ioga moderno, toda a linguagem foi ressignificada pela da fisiologia biomédica, e no
ioga brasileiro isso não foi diferente. Portanto, como DeMichelis (2004) mesmo
descreve, esse espaço liminar pode ter sido simbolicamente ressignificado como o
“relaxamento” produzido por suas práticas corporais, mas agora com o status de
espiritualizada.
Ganesh: Ioga é um relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica-espiritual para isso. Relaxar, focar, expandir, reavaliar seus paradigmas, isso é a meditação propriamente dita. Emocionalmente falando, o ioga nos ensina a colocar-se. Isto se traduz numa postura mais serena e numa melhor disposição no cotidiano. O relaxamento e os exercícios de concentração tomam conta desta esfera. O ioga possui como efeitos mais evidentes deixar o praticante em estado de equilíbrio.
Ravi: Ioga é um processo de relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica espiritual para este fim. Portanto, o grande perturbador do
155
ioga moderno. Ficar quieto é um problema para a sociedade moderna.
Centurion: O ioga nos deixa com um mental mais calmo, equilibrado.
DeRose: O estresse impede ao samadhi. Bento: O estresse impede ao estado. Shanti: O estresse nos afasta, nos desconecta. O ioga abaixa o estresse, acalma a mente... aterra, e assim, nos ajuda a conectar novamente.
Se, como vimos, o estresse adquiriu características de klesa, e o relaxamento
de espiritual em dialética com o samadhi/liminiaridade, é lícito supor pensar em
kaivalya, um estado onde não há mais a influência dos klesas, agora estresse e
conquistado na gnosis do relaxamento espiritual advindo das práticas rituais de cura
do ioga moderno, deve estar relacionado a algum termo da fisiologia que represente
esse equilíbrio e harmonia sem a influência do estresse e local de manifestação
propícia ao relaxamento. Defendo a ideia da homeostase espiritual como
denominação de kaivalya modernamente. Como já apresentei o conceito de
homeostase no primeiro capítulo, permito-me apenas a relembrar que a homeostase é
um estado ideal e nunca estabelecido definitivamente, apenas na morte encontraremos
um estado “eterno” de homeostase. Homeostase é sempre um estado de eterna luta
contra forças contrárias na busca constante de reequilíbrio. Portanto, se kaivalya
representaria a salvação/libertação espiritual do ioga moderno. No Brasil, kaivalya-
homeostase divina, pode significar que os iogues brasileiros acreditam no fim do
sofrimento, da dor e do mal-estar que os atormentam, no equilíbrio diário de forças
contrárias que agem constantemente. Em outras palavras, o iogue brasileiro pode
compreender que o fim da sua dor, só com a morte, pois em vida, a batalha contra o
mal é cotidiana.
Essa religiosidade ioguica brasileira pode ser encontrada nas narrativas dos
nossos entrevistados quando revelam que ioga é “viver o presente”, “reagir é algo
negativo, pois nos tira do agora” ou “a prática no tapete funciona como um ritual para
reequilibrar as energias do corpo que se desarmonizam no dia-a-dia”. Nenhum dos
iogues entrevistados, por exemplo, demonstrou qualquer receio da reencarnação, algo
bastante preocupante ao iogue indiano que acredita que as suas ações neste mundo
podem faze-lo vir numa próxima vida como um inseto, por exemplo. O brasileiro não
156
parece se preocupar com isso. O seu grande foco parece estar na resolução dos seus
problemas neste exato momento. Outra característica que pode ajudar na compreensão
do novo panorama social-religioso do ioga brasileiro está na redução do aspecto
“errante” dos praticantes e professores. Nunes (2008), mostrou que os indivíduos que
atuam no microuniverso ioguico brasileiro têm se fixado mais em torno do seu
professor ou líder de ioga. Isso evidencia o princípio que ele denominou de “retorno à
tradição”, mas que poderíamos conceber como criação de maior vínculo com um
mestre de ioga em desenvolvimento. Seria lícito supor, que este poderá se configurar
o caminho natural para a institucionalização das diversas tradições, escolas e métodos
em estruturas religiosas mais “estáveis”, similares ao de igreja.
Se as religiões, sem exceção, surgem do seio de sociedades e são elas reflexos
da maneira de viver de núcleos sociais específicos e concretos (GUERRIERO, 2006,
p.21; Id., 2014); talvez o ioga brasileiro possa vir a ajudar a responder o sofrimento de
uma parcela de indivíduos devotados às suas crenças de algum forma.
5.7. Ambivalência dos iogues brasileiros
Não há dúvidas que o ioga tenha suas influências na Nova Era e das
sociedades que vivem sobre o regime capitalista globalizado. Mas, como esclarece
Jain (2014), esse fato é algo vivido por todas as religiões modernas e não
exclusividade do ioga. Mostramos também que o ioga, mesmo tendo tido as suas
práticas dissecadas pela fisiologia biomédica e investigadas por tomógrafos, a ciência
não conseguiu secularizá-lo. Pelo contrário, como elencamos na exposição do
capítulo dois e três, o ioga conseguiu reverter a situação e, além de ressignificar as
suas escrituras sob o signo da fisiologia biomédica ocidental, “converteu” muitos
cientistas a representarem seus paradigmas de investigação como Deepak Chopra,
Amit Goswami, Allan Wallace, e outros que chegam, até mesmo, a discutir a
legitimidade das narrativas religiosas com iogues, como mostrado no capítulo 4, pela
apresentação das entrevistas de cientistas. Dessa forma, o ioga não pode ser
compreendido como uma simples técnica biomédica para remissão de doenças. O seu
discurso revela uma via de salvação/libertação para o sofrimento de uma parcela de
indivíduos que segue a sua espiritualidade de forma religiosa, ou seja, dando-lhes um
157
sentido de vida pautado no transcendente, talvez com a mesma verve de criatividade
intelectiva do espiritismo brasileiro.
o esoterismo leva não apenas a uma “ciência alternativa”, mas também a uma maneira de relacionar religião e ciência. Com menos traços esotéricos há o importante movimento espírita-kardecista. Ao contrário do esoterismo, que basicamente traduz ou reproduz material importado, o espiritismo brasileiro é genuinamente criativo. É um movimento típico da classe média branca, com muitas pessoas detentoras de graus universitários elevados e que trabalham em instituições acadêmicas respeitadas. Por conta de sua ênfase na leitura e na crença em “doutores espirituais”, sua forma peculiar de “diálogo religião-ciência” segue o esforço de justificar racionalmente o valor médico e psicológico de terapias religiosas. Sociedades acadêmicas tem sido constituídas, e esta tendência racionalista e empiricamente orientada tem se tornado comum em várias regiões do país (CRUZ, 2007, p.275).
No Brasil especificamente, houve um esforço em conjunto não só de iogues,
como Hermógenes e DeRose, mas também de médicos, psicólogos, educadores
físicos, fisioterapeutas e demais cientistas, que se esforçaram para interpretar a sua
doutrina e transformá-lo em prática aceita até mesmo pelo ministério da saúde. Por
mais de cinco décadas de total insulamento de seu conhecimento, como descrevemos
na história do ioga latino-americano, o ioga brasileiro pode seguir o mesmo caminho
que o espiritismo no que diz respeito ao seu enlace positivo entre ciência-religião
relatado acima. A discussão, por exemplo, que alimenta compêndios acadêmicos de
nossos vizinhos europeus e norte-americanos no esforço em justificar o ioga moderno
tão “autêntico” quanto o antigo ou clássico (JAIN, 2010), nunca sequer foi cogitado
verdadeiramente por aqui. O brasileiro nunca se preocupou com a autenticidade do
ioga propalado no país. Mesmo ocorrido contendas sobre grafias e acentos do nome
ioga, ou tentativas frustradas de unificação dos “iogas” no Brasil, não houve
realmente grandes contendas, como no caso que descritos no trabalho Jain sobre o
ioga ser hinduísta, budista ou jainista (Ibid.).
Parece lícito supor que na ausência de mestres e gurus indianos, assim como
acesso a escrituras autorizadas, as primeiras décadas de instalação do ioga no Brasil
se construiu a partir tão somente das próprias experiências e vivências, como fez
Hermógenes na cura da sua doença ou DeRose no mergulho da mística sincrética, o
ioga brasileiro se apossa do ioga indiano chegou até ele e o transforma em narrativa
espiritual própria em mais uma alternativa para compreensão do seu mal-estar: em
mais uma forma de viver e sofrer. É lícito supor que os iogues brasileiros tenham
158
erigidos as suas próprias vias de salvação do mal-estar que os aflige, assim como a
descrição do mundo ideal a ser conquistado na aquisição da sabedoria de kaivalya.
Tracei, portanto, a partir da figura de dois líderes do ioga brasileiro –
Hermógenes-híbrido e DeRose-tradicionalista – a história de consolidação do ioga
brasileiro. Mesmo distinguindo os dois entre híbridos e tradicionalistas, a divisão se
deu por motivos metodológicos e ilustrativos de “tendências”, pois ambos se
consideram genuinamente autênticos ao mesmo tempo concebidos de forma original.
Quando no caso do governo federal brasileiro sugerir fiscalizar os professores de ioga
pelo conselho de educação física ambos, híbridos e tradicionalistas, se uniram contra
o poder do Estado. O ioga brasileiro, mesmo diferente, se complementa. Isso ficou
evidenciado durante as entrevistas, na diferenciação entre “prática” e “estado” de
ioga. Essa distinção, como descrevemos, primeiro, não precisou de nenhuma reunião
entre os líderes do ioga no Brasil, foi estabelecido espontaneamente ao seu
microuniverso para afastar de qualquer poder governamental o direito de fiscalizá-lo;
e segundo, que o ioga, como religiosidade, não pudesse ser fiscalizada como
“atividade física”, ou seja, quem legitima o que é ou não ioga no Brasil, são os
próprios líderes de ioga no país, mas de forma ainda não-institucionalizado. Essa
forma ambígua e paradoxal pode ter sido o que permitiu tanto Hermógenes quanto
DeRose se tornarem líderes e formadores da maioria dos professores e novos líderes
de ioga.
5.8. Alteridade e Alienação presentes nas práticas rituais de cura do ioga
moderno
Andrea Jain em seu livro Selling Yoga, apresenta o termo ritual ioguico como
uma série de comportamentos que evocam ou orientam o praticante em direção a uma
“dimensão sagrada” que transcenda a compreensão de vida convencional e ordinária
(JAIN, 2010, p.126). Ao invés da expressão “dimensão sagrada”, prefiro assumir a
mesma terminologia utilizada pelos líderes de ioga que entrevistei no Brasil: estado
de ioga. O estado ou experiência de ioga corresponde ao samadhi e advém do cessar
voluntário das flutuações da mente/consciência (citta-vrttis-nirodha). Em outras
palavras, a via de salvação/libertação do ioga moderno, como mostramos, capacita
159
aos iogues modernos uma certa alteridade espiritual que o liberta do aprisionamento
social em que vive em sofrimento.
O entrelaçamento entre samadhi e alteridade espiritual, e o klesa-Ignorância
em dialética com o alienação (SARBACKER, 2008, p.173-179), hipotetizamos que
kaivalya pode também ser interpretado como libertação/salvação da alienação
espiritual de “quem somos”.
É evidente que o jeito de viver de um iogue existe e o motiva a
transformações. Há uma esperança de uma vida melhor, de uma vida que permita,
mesmo que durante os sessenta minutos de aula de ioga, vivenciem o
samadhi/liminaridade que diminua seus sintomas da dor e do sofrimento. O que
almejam é alcançar o relaxamento espiritual de seus rituais, mas sobretudo,
purificarem o klesa-Ignorância metaforizado em estresse da sociedade em que vivem,
instaurando a homeostase espiritual de kaivalya.
Os rituais do ioga e seus espaços liminares que produzem relaxamento e fé em
uma vida sem estresse, podem representar tentativas de uma parcela da população
brasileira em buscar novas alternativas religiosas às suas mais profundas angústias
sociais, políticas e econômicas ajuizadas na ética do ioga moderno. O ioga em contato
com as sociedades ocidentais - leia-se novas formas de viver, mas também de sofrer -
ressignificaram toda a sua doutrina e práticas corporais por conceitos da ciência
fisiológica biomédica (ALTER, 2004; JAIN, 2010; SIMÕES, 2011), transformando
os seus principais obstáculos espirituais (klesas) à salvação (kaivalya) em estresse
(BHAVANANI, 2007; RAO, 2012) ou emoções específicas (BALSEV, 1992).
Contudo, agora, esse contato altera o caráter do iogue renunciante do mundo
de tempos passados, para um ascetismo que dialoga com o mundo nos tempos atuais
(STRAUSS, 2008, p.64). Assim, em cada sociedade que o ioga toma contato adapta e
acomoda as suas narrativas de formas de viver. No Brasil, com certeza, o ioga indiano
encontrou um sofrimento diferente a ser combatido que o fez rever a sua doutrinas e
significados de prática. O conhecimento advindo (gnosis) do samadhi/liminaridade
pode não ser o mesmo que de outras instâncias. O que atormenta um indiano medieval
pode não corresponder a um brasileiro moderno. Mesmo que, hipoteticamente, o
mesmo estado liminar/samadhi promovido pela mesma prática ritual tenham
sobrevividos da época de Patanjali, um praticante brasileiro moderno deve obter outro
160
tipo de conhecimento (viveka), pelo simples motivo que a dor que ele sofre ser
advinda de outro mal-estar que o aflige. Assim, é lógico que os klesas, ou obstáculos
espirituais do ioga não sejam mais os mesmos de outrora. Mas qual mal-estar
atormenta os brasileiros?
5.9. Kaivalya à brasileira
No Brasil, segundo a tese de Dunker, impera-se duas forças contrárias que
convivem em harmonia ao espírito dos brasileiros, por assim dizer: uma que o
percebe como “cordial” e outra como “intolerante”. A perspectiva cordial, retomada a
partir de intérpretes clássicos como Silvio Romero, Afonso Celso, Paulo Prado,
Manuel Bonfim e Cassiano Ricardo enfatiza o problema da ausência do Estado nas
resoluções particulares que autorizam os brasileiros a burlar normas e ordens
vigentes. É o exemplo, segundo a interpretação psicanalítica do autor, do caráter
brasileiro ser classificado como o “malandro”, pois na ausência da figura paterna,
simbolizada pelo Estado que o abandona e, percebida como explorador e ausente ao
mesmo tempo, legitima-o a resolução das suas angústias do seu jeito. Sob o ponto de
vista da intolerância, o que se sublinha é o excesso de Estado que dificulta a
individualização necessária para que o brasileiro realize as funções que se destina,
como no caso do massacre em Canudos, gesto exemplar contra uma comunidade que
desafia a autonomia do Estado – do pai – e este age com força desmesurada e violenta
aos seus que desafiam a sua autoridade (Ibid., p.137). O primeiro aspecto do caráter
nacional lhe permite certa alteridade, do “jeitinho brasileiro”; mas o segundo,
funciona como mecanismo de alienação, do “não adianta fazer nada mesmo”. Esse
jogo de forças contrárias e ambivalentes é o que define o problema da identidade do
brasileiro e a causa do seu mal-estar e sofrimento. A solução encontrada, conclui o
autor, é a “união dos contrários” com a persistente sensação de estar num “estado de
exílio permanente” (Ibid., p.171).
Talvez ser essa sensação de não-lugar que o estado de exílio representa, que
os iogues brasileiros não tenham podido identificar os obstáculos espirituais que os
impedem à kaivalya quando das entrevistas. Nenhum iogue brasileiro conseguiu
definir com clareza ou identificar a causa específica do sofrimento no ioga a partir dos
klesas. Na verdade, os klesas não são sequer citados, na maioria das vezes. Isso
161
poderia representar falta de conhecimento, mas não é esse o caso. Os iogues
brasileiros são muito claros e possuem um discernimento e compreensão bem definida
da espiritualidade do ioga. Muitos dos líderes entrevistados inclusive, possuem seus
próprios gurus indianos e estabelecem contato periódico com a cultura indiana e
acadêmica. Essa falta sobre os klesas pode refletir que os obstáculos espirituais ao
iogue brasileiro, globalizado e secular, não tenham mais contornos tão definidos como
na sociedade de Patanjali. Ou, essa não clareza da natureza dos klesas possa estar
relacionada na ambivalência da “alma antropofágica” do brasileiro esclarecida por
Dunker.
A ambiguidade e paradoxalidade característica do brasileiro é diferente de
puro e simples sincretismo que somam duas características e criam uma terceira
totalmente diferentes das duas anteriores. A antropofagia da alma brasileira, estaria
mais relacionada com a convivência dos contrários e uma “nova forma de vida”
(DUNKER, 2015, p.273-320). Enquanto DeRose, por exemplo, se posiciona
oficialmente como um tradicionalista, alguém que foi buscar a mais pura essência do
ioga em sua origem pré-védica, a sua tradição de ioga é obscura e legitimada, como
ele mesmo descreve, por um espírito de luz indiano desencarnado (Bhajavananda) que
o auxilia na decodificação de seu método e que aparece a ele num terreiro de
candomblé no Rio de Janeiro, como comenta em entrevista e na própria autobiografia.
É nessa gira, por intermediação de preto-velho que DeRose percebe “que está no
caminho certo para trabalhar com o ioga”. Por outro lado, a característica híbrida de
Hermógenes é ao mesmo tempo marcada por um respeito de reverência ímpar aos
princípios de seu guru, Sai Baba, digno de um iogue ortodoxo brâmane. A
classificação realizada aqui – tradicionais e híbridos - foi puramente ideal e por
questões metodológicas, como ressaltamos desde o início. Rotular o ioga brasileiro é
tarefa difícil, senão inclassificável, mas foi necessária para agora mostrar a sua
própria indefinição de “alma”. E é nesse ponto que retomo o cerne da tese aqui
apresentada: O que liberta os iogues brasileiros do seu sofrimento? Ou de outra
forma, do que os brasileiros dedicados à espiritualidade do ioga querem se
libertar/salvar?
Entre as narrativas dos iogues brasileiros entrevistados, pode-se perceber certa
indefinição da causa do sofrimento humano. Os klesas ou equivalentes, não puderam
ser identificados com clareza. Talvez pelo número reduzido de entrevistados, mas
162
mesmo que assim o fosse, os dez entrevistados líderes de ioga são os responsáveis por
uma parcela expressiva de novos professores que adentram ao microuniverso ioguico
brasileiro e difundem o que aprenderam com estes líderes aos seus alunos. Dessa
forma, é lícíto supor que, mesmo restrito o número de entrevistas, elas puderam
revelar que a salvação/libertação espiritual do ioga brasileiro, possa estar inserida na
resolução dos problemas da sociedade, no mundo fenomênico e não em outro. O
brasileiro se preocupa com esse mundo. O obstáculo à salvação/libertação espiritual
proposta pelo ioga no Brasil pode ainda estar indefinida, não possuindo um lugar,
uma resposta orgânica específica ou uma emoção singular, como vimos elencada por
nossos colegas em outras instâncias. No Brasil, pelo contrário, os klesas podem residir
num jogo de polaridades permanente.
Ravi: Vivemos papéis que são falsos (pai, cientista, professor). Antes de nascer já éramos alguma coisa e depois de morrer continuaremos ser. O que somos então? São as identificações dos papéis [que ocupamos] que originam o sofrimento humano.
Hermes: O personagem constrói a realidade física da pessoa. Há um eu por trás que você já é.
Ganesh: O estresse existe, mas não tem razão de se deixar manifestá-lo físico e mentalmente, pois o estresse é fruto da ignorância de não se perceber dentro de uma ordem [cósmica]. Todos nós somos parte dela. As causas do sofrimento humano está em não se compreender que você não é o papel que ocupa [na sociedade ou família]. O ioga lhe dá a possibilidade de você perceber-se algo que você já é, mas que você não percebe plenamente.
Vishnu: Os obstáculos do ioga são nossas próprias máscaras. Rudá: Os obstáculos sou eu mesmo que construo. Shanti: Isvara é a consciência que permeia tudo. Estamos imersos em Isvara. Não temos consciência Dele, mas o ioga ajuda na conexão com Deus que está dentro de nós. Eu me conecto comigo, eu me conecto com o universo. Há um plano maior de Isvara.
Andurá: A meditação nos ajuda a contar menos histórias sobre nós mesmos.
Em todos os discursos acima está implícito uma insatisfação e anomia do seu
desempenho social ou na ordem cósmica, por assim dizer. Os iogues brasileiros,
habitantes da classe média, em geral profissionais liberais ou microempresários,
descrevem os klesas indefinidamente como algo que os alienam e responsaveis por
afastar os indivíduos da “harmonia”, ordem cósmica, portanto, da homeostase
163
espiritual que kaivalya promete e está representado no corpo. Kaivalya no Brasil,
parece manifestar-se dentro de uma lógica dinâmica, assim, de difícil classificação,
pois muda a todo instante à mais sutil oscilação. A sua narrativa, no entanto, pode
estar obedecendo a mesma lógica na qual os klesas, o samadhi e as energias
suprassensíveis correspondem e como ressaltamos ao longo de toda a tese: na
ressignificação da fisiologia biomédica ocidental. Por isso, o representamos aqui
nesse equilíbrio dinâmico metaforizado em homeostase, descrito no segundo capítulo,
por forças internas do organismo em busca constante (eternas, por assim dizer) da
manutenção da harmonia do nosso corpo-mente e o colocar em “relaxamento”: em
um estado ideal que não precise fazer nenhum esforço. O objetivo último do ioga no
Brasil, parece estar em adquirir as mesmas características da “união de forças
contrárias” e “exílio permanente” que Dunker afirma serem as motivações do mal-
estar brasileiro.
Kaivalya para o brasileiro não aparece como “estado final”, mas algo que os
“conecta novamente” ou “em equilíbrio”. Em outras palavras, há um possível “entrar
e sair” do estado de ioga e não um definitivo “local salvífico/libertador”, como o céu
cristão. Kaivalya está mais para o “Nosso Lar” espírita, no sentido estrito de lugar de
transição ou purificação, pois logo em seguida os iogues descrevem o “desconectar”
de novo num eterno retorno do estado ordinário ao sublime. Nada parece indicar um
estado definitivo em kaivalya para o brasileiro.
O que o ioga, como caminho espiritual em processo, mas sobretudo como
promulgador de uma nova forma de vida, propõem libertar seu devoto do estado de
alienação ou klesa-mãe-Ignorância (avidya), que foi traduzido metaforicamente
modernamente como estresse e outras emoções, que podem ser, na verdade, reflexos
ou sintomas – para utilizar as expressões de Dunker – de um sofrimento maior
advindo do mal-estar. Kaivalya poderia refletir o libertar não apenas do estresse, no
sentido conservador, que o associa com o “estilo de vida agitado das grandes
cidades”, mas de uma nova narrativa, uma metáfora de um estado de eterno equilíbrio
de estar, portanto, com alteridade, vencendo o mal-estar de não estar. Kaivalya-
homeostase não seria, talvez, o fim do sofrimento, mas o discernimento da causa
espiritual do mal-estar, da angústia da alma. Estabelecer-se na Verdade de kaivalya,
talvez esteja mais em tomar consciência que se sofre, mas resiste com a coragem e a
fé que a cada prática ritual, o praticante ou aluno de ioga pode superá-lo mais um dia,
164
no constante jogo de equilíbrio do viver. O kaivalya verde-amarelo pode estar mais na
impermanência, no jogo de cintura, como o próprio jeito do brasileiro, do que no
alcance do estado permanente de não-sofrimento do ioga indiano.
165
CONCLUSÃO
O ioga é um fenômeno espiritual desde a sua definição como darsana na
tradição do hinduísmo indiano. Atualmente, o enlace da espiritualidade do ioga aos
conceitos da ciência fisiológica biomédica moderna ocidental, vem possibilitando a
diversos autores contemporâneos o perceberem como um novo fenômeno religioso
(DeMICHELIS, 2004; NEWCOMBE, 2008; JAIN, 2010). Devido a isso, a proposta
soteriológica do ioga moderno possui estreitos laços com as suas aplicações
terapêuticas, ao mesmo tempo que a ciência também tem se utilizado das suas práticas
como terapia de baixo custo em muitos indivíduos, sobretudo no Brasil (SIEGEL,
2010). Essa ponte ciência-religião estabelecendo-se entre setores da saúde brasileiros
e o ioga, muitos médicos, fisioterapeutas, psicólogos e profissionais de educação
física têm se utilizado das práticas corporais ioguicas. No entanto, essa aproximação
com a ciência não o secularizou, pelo contrário, a ciência se tornou sua via explicativa
religiosa em busca da salvação/libertação para o ioga moderno.
Os klesas, os grandes responsáveis pelo sofrimento ou mal-estar humano na
perspectiva ioguica clássica, foram sendo ressignificados, assim como todas as
escrituras modernas do ioga, à luz da ciência fisiológica biomédica (SIMÕES, 2011).
Assim, o klesa-Ignorância recebeu contornos de estresse, o klesa-Apego de
sentimento de desejo, o klesa-Aversão de ódio, o klesa-Medo de Morte de medo como
gatilho responsivo ao estresse, e o klesa-Orgulho de egoísmo. No Brasil em
específico, por causa ao insulamento que o ioga sofreu por mais de cinquenta anos
sem a presença de líderes indianos do ioga que o legitimassem como religiosidade, o
ioga verde-amarelo desenvolveu particularidades que o pudemos classificar
idealmente em duas grandes perspectivas: os iogues híbridos, na figura do Prof.
Hermógenes, muito mais permissivos a sincretismos com religiões nativas e do
cristianismo primitivo; e os iogues tradicionalistas, inspirados pelo Mestre DeRose,
que buscam primar pela “essência” e “purismo” do ioga ortodoxo da Índia.
Pelos dados coletados das entrevistas com dez líderes de ioga e mais três
cientistas que investigam os aspectos terapêuticos do ioga, identificamos cinco
características: 1) A ausência da presença dos klesas em suas narrativas como
obstáculos espirituais, assim como uma definição específica de algo similar; 2) Houve
166
uma distinção muito clara entre prática ou método de ioga, de estado ou
experiência/vivência de ioga. O primeiro parece se referir a qualquer prática, mesmo
secular; e o segundo ao foco de quem se devota religiosamente as práticas e
compreensão das suas escrituras. 3) Todos se referem ao momento atual como uma
“fase de transição” do ioga brasileiro do hibridismo ao tradicionalismo; 4) Duas
crenças permanecem de seus períodos históricos anteriores, numa Ordem Cósmica
que rege o mundo e o corpo, e em energias transfisiológicas; 5) Parece haver uma
relação estabelecida entre relaxamento e os conceitos espirituais de samadhi e
kaivalya.
Dentro desse quadro investigativo e de nossos marcos teóricos, mostramos que
as práticas corporais do ioga se transformaram em rituais corporais de cura
(DeMICHELIS, 2004; JAIN, 2010). A partir da descrição de processo ritual em
Victor Turner desenvolvido por DeMichelis (2004), Liberman (2008), Sarbacker
(2008) e Andrea Jain (2010), o conceito de samadhi no ioga nos permite estabelecer
correlação com o espaço liminar ou liminaridade elevando o relaxamento, como
terceira fase das práticas rituais corporais do ioga, em espiritual e responsável pelo
ritual de passagem do estresse cotidiano do ambiente das grandes cidades ocidentais
ao conhecimento (gnosis) advindo da liminaridade (TURNER, 2005). Essa gnosis, ou
discernimento espiritual do ioga (viveka), ficou estabelecido que empossa o praticante
de ioga de certa “alteridade espiritual” que remove a alienação ou ignorância e o põe
em processo de “crescimento pessoal”, que segundo Hanegraaff (1998) pode ser
considerado similar ao conceito de salvação/libertação religiosa, portanto, kaivalya.
Os klesas-estresse e emoções equivalentes na relação com a resposta do estresse,
como indicamos, seriam os empecilhos para que o relaxamento espiritual propiciasse
a vivencia do samadhi.
Os conceitos de klesa metaforizados em estresse, como apresentados por
Bhavanani e Rao no segundo capítulo e/ou emoções em Balsev, assim como a sua
ausência no microuniverso do ioga brasileiro investigado, necessitam de pesquisas
com maior abrangência, mas ainda assim, podem revelar uma nova concepção das
causas do mal ioguico moderno. Nossa investigação nos permite supor que esses fatos
podem revelar uma nova concepção para os klesas, dessa forma, alertar o ioga como
um novo movimento religioso em processo. No Brasil, particularmente, os klesas
parecem estar relacionados com a carência do iogue brasileiro conseguir firmar a sua
167
alteridade na sociedade, sobretudo nas narrativas de que vivem em “máscaras” e
“papéis sociais” que precisam desempenhar. Isso pode corroborar com a análise de
Dunker sobre a sociedade brasileira que foge de seu sofrimento com a fantasia da vida
em forma de condomínio. Aquela que imaginamos poder nos isolar do mundo
estressante que nos alfige por meio dos excessivos ruídos, violência, trânsito e etc.
atrás dos muros, catracas e grades dos condomínios. Associei essa configuração com
os papés que precisamos sustentar dentro dessa lógica que Dunker descreveu com
alienante do indivíduo. Pareceu-me bastante similar com a proposta do ioga brasileiro
em criar rituais coporais de relaxamento espiritual como via de salvação/libertação
desta “lógica dos muros” do condomínio. Os obstáculos espirituais ao ioga no Brasil
parece ser mais “concreto” do que o estresse e emoções específicas. O iogue
brasileiro parece ainda não conseguir nomear a causa. Talvez tenha muitas causas, ou
vise de forma mais urgente certa alteridade espirtitual, como mostramos.
No Brasil em específico, essa alteridade espiritual indicado por Sarbacker
(2008), indicaria o kaivalya ao estado de ioga descrito pelos entrevistados,
obedecendo a ressignificação que passa o ioga pela linguagem metaforizada pela
fisiologia ocidental, um caráter de “homeostase divina”. Escolhemos o termo
homeostase para representar uma metáfora em fisiologia, pois kaivalya ao iogue
brasileiro parece não representar, como no caso do seu conceito clássico indiano, o
“fim do sofrimento”, mas um equilíbrio dinâmico, assim como o conceito utilizado
pela fisiologia científica e caracterizado pelos iogues entrevistados. A não
identificação dos klesas no discurso ioguico nacional pode relevar não haver,
portanto, para este contexto sócio-religioso, um ou demais “obstáculos espirituais” à
salvação/libertação final, definição clássica à kaivalya. No Brasil, como sugerimos
pelo estudo psicanalítico e histórico do mal-estar e causas do sofrimento brasileiro,
pode ser algo que não não tenha definição clara. O mal-estar que assola os brasileiro
modernos, segundo Dunker (2015), residiria na sensação de “exílio permanente” que
faz com os brasileiros talvez sintam o seu mal-estar ou sofrimento existencial em um
“não-estar” presente. Desse modo, é lícito supor kaivalya, ao microuniverso ioguico
verde-amarelo, como buscando espiritualmente certa “harmonia” e “equilíbrio”
reiteradamente citada nas narrativas dos iogues nacionais. Ambivalentemente, o
kaivalya brasileiro não está compreendido como um estado ou local geográfico
suprassensível, mas talvez por um permanente e eterno não-sofrer em samsara ou na
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própria existência. Kaivalya à brasileira, portanto, estaria mais para um eterno jogo
dinâmico de equilíbrio de forças contrárias do aqui-e-agora e não em um mundo
vindouro ou “supramental”, mas similar ao conceito fisiológico de homeostase, como
propomos, um estado de bem-aventurança mas sujeito a mudança por qualquer sutil
oscilação corpo-mente-ambiente, que caracterizaria, em nossa comparação pela
análise de Dunker (2015), a forma de viver do brasileiro.
Como pano-de-fundo da discussão acima, reside o valor da “fisiologia da
religião” (USARSKI, 2007, p.13) como uma possível subdisciplina auxiliar em
processo na ciência da religião no Brasil. Em outras instâncias, o seu valor heurístico
pode ser já percebido (LAKOFF & JOHNNSON, 1999; FULLER, 2008;
WINKELMAN & BAKER, 2010), mas no Brasil ainda bastante incipiente as
pesquisas que consideram o corpo como parte importante na compreensão de um
fenômeno religioso. Outro ponto que levantamos, está na ciência funcionando como
legitimadora de discursos religiosos ao invés de responsável pela secularização de
narrativas religiosas. Com o ioga percebeu-se aqui que ela é uma das mais
importantes responsáveis por fomentar o surgir de seus novos bens de salvação
(klesas, samadhi e kaivalya).
A investigação do ioga, fora dos muros que o cercam como terapêutica
espiritual ou secular de cura e profilaxia de doenças, pode ampliar o espectro de sua
religiosidade na compreensão das mais profundas angústias existenciais de uma
parcela determinada das sociedades urbanas no Brasil, que o praticam não apenas para
aquisição de uma boa saúde, mas como uma nova forma de viver e sofrer.
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