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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Roberto Serafim Simões O PAPEL DOS KLESAS NO CONTEXTO MODERNO DO IOGA NO BRASIL: UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE OS POSSÍVEIS DESLOCAMENTOS DA CAUSA DO MAL E DA PRODUÇÃO DE NOVOS BENS DE SALVAÇÃO POR MEIO DA FISIOLOGIA BIOMÉDICA OCIDENTAL. DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO SÃO PAULO 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Roberto Serafim Simões

O PAPEL DOS KLESAS NO CONTEXTO MODERNO DO IOGA NO BRASIL:

UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE OS POSSÍVEIS DESLOCAMENTOS DA

CAUSA DO MAL E DA PRODUÇÃO DE NOVOS BENS DE SALVAÇÃO POR

MEIO DA FISIOLOGIA BIOMÉDICA OCIDENTAL.

DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO

2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Roberto Serafim Simões

O PAPEL DOS KLESAS NO CONTEXTO MODERNO DO IOGA NO BRASIL:

UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE OS POSSÍVEIS DESLOCAMENTOS DA

CAUSA DO MAL E DA PRODUÇÃO DE NOVOS BENS DE SALVAÇÃO POR

MEIO DA FISIOLOGIA BIOMÉDICA OCIDENTAL.

Tese apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do Título de Doutor em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Professor Eduardo Rodrigues da Cruz

DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

SÃO PAULO

2015

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SIMÕES, Roberto Serafim, O papel dos klesas no contexto moderno do ioga no Brasil: Uma investigação sobre os possíveis deslocamentos da causa do mal e da produção de

novos bens de salvação por meio da fisiologia biomédica ocidental. São Paulo, 2015. 175f. Doutorado – Pontifícia Católica De São Paulo, 2015 Área de Concentração: Ciências da Religião

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Banca Examinadora

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DEDICATÓRIA

Aos meus pais, meu irmão

e à minha família, Miila e Jolie.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Eduardo Cruz, pela sua dedicação e parcimônia.

À CAPES, pelo apoio para a elaboração deste projeto.

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RESUMO. O período antigo do ioga emerge em meio a uma sociedade indiana estratificada e influenciado por religiões como o samkhya e o hinduísmo bramânico, sistematizando-se como um dársana ortodoxo hinduísta por meio da escritura antiga Ioga Sutras (IS) alguns séculos antes de era cristã. O IS explica tanto as causas do sofrimento humano quanto a promessa de uma boa vida iogue, baseando-se na teoria comportamental dos klesas (apego, aversão, medo da morte, orgulho e ignorância) como nefastos a evolução espiritual. Um caminho óctuplo ou asthanga ioga (AI) edifica-se a partir dele como a proposta ioguica de salvação da alma. O AI visa, por meio de condutas éticas, práticas rituais corporais e a experiência mística do samadhi atenuar os klesas em busca da união com deus/Isvara. Na idade média indiano, entre os séculos X-XV d.C., esse sistema de crenças ioguico encontra a religiosidade tântrica, jainista e budista elevando o valor do corpo em detrimento a outros aspectos doutrinais do IS.

A fase moderna do ioga, no entanto, está sendo erigida por influência de um novo contexto social-religioso. Atualmente, muito mais do que brâmanes e swamis, o ioga busca a sua legitimidade como caminho espiritual sob a égide da racionalidade científica e de novos movimentos religiosos do ocidente. Nesse processo, o ioga ressignifica a sua linguagem mística que circulava entre os ashrams e florestas indianos dos tempos antigo e medieval, para um público que enfrenta os desafios estressantes de se viver nos grandes centros urbanos ocidentais, sobretudo, uma sociedade do consumo, secular e privatizada religiosamente. Sabe-se que nos tempos atuais o ioga ressignifica a sua fisiologia metafísica à luz da ciência biomédica, desconfio que a teoria dos klesas, pode estar passando por uma reforma religiosa também.

Para buscar compreender essas possíveis transformações soteriológicas do ioga atual, saí a campo e conduzi de forma semiestruturada entrevistas com dez iogues e três cientistas brasileiros da área psicobiológica que investigam o sistema de atos ioguicos como terapia e cura. Os dados revelaram uma percepção de clivagem no ioga moderno, entre pertencer a uma terapêutica Nova Era ou mais uma técnica biomédica ocidental. A partir dessa conjuntura novas crenças despontaram para legitimar o discurso do ioga frente ao panorama social-religioso em que ele vive atualmente. Mais do que simples ressignificação simbólica, a soteriologia ioguica moderna está passado hoje por um processo de transformação soteriológica. As principais transformações que se destacaram, estão: 1) na elevação da concepção de estresse ao nível de klesa ou obstáculo espiritual; e 2) o relaxamento, antagônico ao estresse-klesa, conquista natureza mística do samadhi; e 3) por consequência, a salvação/libertação dos klesas-estresse adquiri substância “empírica” de um estado espiritual imutável de não-estresse ou de uma espécie de “homeostase divina”. Conclui-se que a racionalidade científica ao invés de promover o desencantamento religioso do ioga, legitima-o como um novo sistema de crenças e produz novos bens de salvação (estresse-klesa, relaxamento-samadhi e homeostase-kaivalya). A associação dos benefícios para a saúde das práticas do ioga defendidos e propalados pela fisiologia biomédica associado ao desassossego dos centros urbanos ocidentais, pode ter enfraquecido a teoria comportamental dos klesas como causa essencial do sofrimento humano. Palavras-chave: ioga, fisiologia, klesas, salvação espiritual, relaxamento, estresse.

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ABSTRACT. The ancient yoga period emerges amid a stratified Indian society and influenced by religions like samkhya and the Brahmanical Hinduism if systematizing it as an orthodox Hindu darśana through ancient scripture Yoga Sutras (IS) some centuries before the Christian era. The IS explains both the causes of human suffering and the promise of a good yogi life, based on the behavioral theory of klesas (attachment, aversion, fear of death, pride and ignorance) as adverse spiritual evolution. An eightfold path or asthanga yoga (AI) is built-from it as the yogic proposal for salvation of the soul. The AI aims, through ethical conduct, practices corporal rituals and mystical experience of samadhi mitigate klesas seeking union with God/Isvara. On average Indian age, between X-XV centuries AD, this system of yogic beliefs is the Tantric religiosity, Jain and Buddhist raising the body's value over the other doctrinal aspects of IS.

The modern phase of yoga, however, is being erected under the influence of a new social - religious context . Currently, more than Brahmins and swamis , yoga seeks its legitimacy as spiritual path under the aegis of scientific rationality and new religious movements in the West . In this process , the yoga reframes its mystical language circulating among ashrams and Indian forests of ancient and medieval times to an audience facing the stressful challenges of living in large Western cities, above all, a society of consumption, secular and privatized religiously. It is known that nowadays the yoga reframes its metaphysical physiology in the light of biomedical science , I suspect that the theory of klesas , may be going through a religious reform as well. In order to understand these possible soteriological transformation of the current yoga, I led 13 semi-structured interviews with ten way yogis and three Brazilian scientists psychobiological area investigating the yogic system acts as therapy and healing. The data revealed a cleavage perception in the modern yoga, between belonging to a therapeutic New Age or more a Western biomedical technique. From this juncture new beliefs emerged to legitimize the discourse yoga against the social-religious situation in which it now lives. More than just symbolic reframing, modern yogic soteriology is passed today by a salvific transformation process. The main changes that stood out are: 1) the elevation of design stress level of klesa or spiritual obstacle; and 2) the relaxation antagonistic to stress-klesa, achievement mystical nature of samadhi; and 3) consequently, salvation/liberation of klesas-stress acquire substance "empirical" an unchanging spiritual state of no stress or a kind of "divine homeostasis." It is concluded that scientific rationality rather than promote religious yoga disenchantment, it legitimizes it as a new system of beliefs and produces new goods of salvation (stress-klesa, relaxation-samadhi and homeostasis-kaivalya) . The association of the health benefits of yoga practices defended and propagated by biomedical physiology associated with the restlessness of the western urban centers , may have weakened the behavioral theory of klesas as essential cause of human suffering. Key words: yoga, physiology, klesas, spiritual salvation, relaxation, stress.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 11 Capitulo 1. O IOGA ATRAVÉS DOS TEMPOS: DO IOGA ANTIGO DESCRITO NO IOGA

SUTRAS AO SURGIMENTO DO IOGA MODERNO .............................................................. 25 1.1. Período pré-clássico do ioga................................................................................ 25 1.2. Período clássico do ioga...................................................................................... 27 1.2.1. Apresentação da proposta de salvação do ioga clássico.................................... 29 1.3. Período pós-clássico, pré-moderno ou medieval do ioga.................................... 31 1.3.1. O inicio da corporificação do ioga e a sua medicalização a partir do ayurveda.321.4. O surgimento do ioga moderno........................................................................... 38 1.4.1. A Renascença Indiana.......................................................................................... 38 1.4.2. Ioga moderno....................................................................................................... 39 Capitulo 2. OS KLESAS NO MUNDO MODERNO............................................................... 44 2.1. Os primeiros iogues da geração moderna: a ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia................................................. 44 2.1.1. A ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia................................................................................................................ 47 2.1.2. A ciência legitima o discurso religioso do ioga................................................... 52 2.2. Teoria dos klesas corporificada: sinônimo de estresse e emoções........................ 56 2.3. Klesa e estresse...................................................................................................... 61 2.3.1. Estresse biológico................................................................................................. 632.3.2. Relaxamento......................................................................................................... 65 2.3.3. Prana é real.......................................................................................................... 68 2.4. Profanação do ioga............................................................................................... 69 Capitulo 3 : IOGA NO BRASIL......................................................................................... 723.1. As origens do ioga brasileiro a partir da história latino-americana...................... 72 3.1.1. Fase místico-esotérico.......................................................................................... 74 3.1.2. Fase visitando à Índia.......................................................................................... 76 3.1.3. Fase do ioga indiano conhecendo os iogues latino-americanos......................... 78 3.1.4. Fase da busca identitária e singular do ioga latino-americano.......................... 80 3.1.5. Fase de tensão entre os iogues “híbridos” e os “tradicionalistas” no Brasil.... 83 3.2. Ioga para Nervosos de Hermógenes versus Ioga para Normais do DeRose: iogaterapeutas híbridos e os iogues tradicionalistas....................................................... 86 Capitulo 4. O IOGA BRASILEIRO: CONVERSANDO COM IOGUES E CIENTISTAS SOBRE O

MAL, O BEM E VIAS DE SALVAÇÃO MODERNAS.............................................................. 90 4.1. Considerações preliminares.................................................................................. 90 4.2. O universo da pesquisa......................................................................................... 92 4.3. Entrevistados........................................................................................................ 94 4.3.1. Ravi....................................................................................................................... 94 4.3.2. Centurion.............................................................................................................. 95 4.3.3. Vishnu................................................................................................................... 96 4.3.4. Ganesh.................................................................................................................. 96 4.3.5. Bento..................................................................................................................... 97 4.3.6. Shanti.................................................................................................................... 98

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4.3.7. Hermes.................................................................................................................. 994.3.8. Rudá.................................................................................................................... 1004.3.9. Andurá................................................................................................................ 100 4.3.10. Osiris................................................................................................................ 101 4.3.11. William............................................................................................................. 102 4.4. Questões de aproximação................................................................................. 102 4.4.1. Prática e Estado de ioga ressignificados com vistas a deslegitimar cientistas104 4.4.2. Ciência e Ioga na construção de uma nova espiritualidade terapêutica em andamento........................................................................................................ 108 4.4.3. Fase de transição na comunidade ioguica brasileira em busca da sua identidade religiosa.............................................................................................................. 115 4.4.4. A crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e o relaxamento espiritualizados no convívio social............................................... 119 4.4.5. A busca pela homeostase eterna por meio do relaxamento espiritualizado...... 125 Capitulo 5. A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA

MODERNIDADE: KLESAS, SAMADHI E KAIVALYA SE CORPORIFICAM POR UMA FISIOLOGIA

RELIGIOSA EM ANDAMENTO NO IOGA BRASILEIRO..................................................... 130 5.1. Meu caminho até aqui........................................................................................... 130 5.2. O ioga moderno como produtor de rituais de cura/healing................................... 134 5.3. O ioga como promotor de rituais corporais de cura na restruturação de sua realidade em que se vive.............................................................................................................. 139 5.4. Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya como resposta espiritual do ioga a vida social brasileira em que habitam...................... 144 5.5. O mal-estar, o sofrimento e o sintoma: uma nova perspectiva sobre a soteriologia do ioga................................................................................................................... 148 5.6. Ioga moderno como nova religião em processo.................................................... 152 5.7. Ambivalência dos iogues brasileiros..................................................................... 156 5.8. Alteridade e Alienação presentes nas práticas rituais de cura do ioga moderno... 158 5.9. Kaivalya à brasileira.............................................................................................. 160 CONCLUSÃO.................................................................................................................. 165 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................. 169

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INTRODUÇÃO

Devo confessar que escolho o ioga como objeto pois me sinto mais

confortável em investigar a religiosidade brasileira através dele. Isto porque, em

primeiro lugar, é o universo aonde posso transitar tanto quanto um insider quanto

outsider. Observo colegas estudando campos religiosos que pouco conhecem e

percebo o tempo que investem até compreenderem melhor o seu funcionamento

interno. Bem antes de pensar em ingressar na academia já convivia com pessoas

vivendo em ashrams, alimentando-se de prana, lendo chackras e permanecendo horas

sentadas ou de ponta-cabeça em busca do samadhi. Não esboço qualquer traço de

ironia ou inferioridade ao descrever essas crenças, pois não julgo nada como

excêntrico e enxergo todas as formas de convicção – até mesmo na ciência como

responsável em prolongar a vida com seus cosméticos antirrugas, inteligências

artificiais, programas de treinamento psicofísico e cirurgias plásticas - se igualando a

qualquer outro sistema religioso. E, por último, opto pelo ioga e o seu vínculo com a

fisiologia biomédica, pois pertencem a uma lacuna nos escaninhos da ciência da

religião brasileira que ainda não recebem o devido interesse. Demorei para divisar que

há poucos acadêmicos fora do âmbito biológico preocupados em compreender o

universo social brasileiro do ioga. Dessa forma, o ioga continua me instigando a

compreende-lo melhor e, a partir dele, a religiosidade do brasileiro também pode se

revelar.

O ioga atualmente dialoga com a ciência biomédica e a educação física

elevando o valor da saúde em detrimento a outros aspectos éticos de sua doutrina.

Algumas pesquisas apontam inclusive uma nova tipologia de iogues surgindo, o que

indica inovações sobre o papel do ioga em sociedades modernas: seja de um iogue

mais pragmático ou cientista que compreende a sua prática apenas como técnica

profilática e de condicionamento psicofísico, até o iogue místico convicto que deus e

ele são um. Além da ciência, o ioga desde o início do século passado vem

sincretizando os seus princípios hinduístas com o jainismo e o budismo no período

medieval indiano, e movimentos religiosos denominados Nova Era desde a virada do

século passado, e no Brasil especificamente, de os anos de 1960, com expressões

católicas, espíritas, daimistas e umbandistas.

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Elencar, no entanto, os benefícios psicofisiológicos para terapia e cura das

técnicas de ioga é hoje tarefa simples pela quantidade de trabalhos em biomedicina

sendo realizados, mas poucos são os acadêmicos que se atreveriam a designar nas

ciências sociais o ioga numa classificação definitiva e absoluta. É somente no anos de

1990 que as “humanidades” se aventuram em tais desafios na Europa e nos Estados

Unidos efetivamente (ALTER, 2004, p.85; GUERRIERO, 2014).

Foi a partir das minhas investigações neurobiológicas sobre o ioga

(DANUCALOV & SIMÕES, 2009, p.371) e depois conhecendo outros autores dentro

do programa de ciência da religião, que me deparei também com as repercussões

religiosas que estes estudos fisiológicos da biomedicina infligiam sobre a doutrina

ioguica (SIMÕES, 2011).

Percebo somente agora no final do doutorado, que desde o meu primeiro

trabalho sobre o tema em 2006 e, em seguida, ingressando no programa de pós-

graduação em ciências da religião em 2009, venho investigando de certa forma o o

ioga sob a mesma perspectiva, ainda embrionária no Brasil: a Fisiologia da Religião.

Antes da minha admissão na academia, demonstrei as repercussões neuroquímicas das

práticas contemplativas do ioga e seus benefícios terapêuticos. No mestrado, expus os

arrolamentos da doutrina do ioga contemporâneo com a fisiologia biomédica, mas não

me interessei quanto aos seus benefícios terapêuticos como o fizera outrora, enveredei

pelo aspecto das ciências sociais. A dissertação mostrou que a fisiologia poderia estar

além das óbvias implicações terapêuticas de práticas religiosas e se infiltrar

ressignificando antigas escrituras espirituais com termos biomédicos (Ibid.).

De todo esses estudos sobre o microuniverso ioga, percebo que em complexas

sociedades modernas a secularização, ao invés de diminuir crenças com base no

sobrenatural, autorizou, através da privatização religiosa, novas espiritualidades

ingressassem no campo religioso mundial disputando a hegemonia com as antigas

dominantes (WEBER, 2001; BOURDIEU, 2011, p.79-98). Assim, práticas rituais e

concepções mágicas antes incorporadas exclusivamente no seio de religiões já

institucionalizadas - como o ioga no Hinduísmo, o tai-chi chuan no Taoísmo ou a

cabala no Judaísmo - foram transplantadas do oriente para o ocidente, mas ornadas

como terapêuticas espirituais (HANEGRAAFF, 1999) associadas ao movimento

religioso mais amplo que denominamos Nova Era (CHAMPION, 1989), permitindo-

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os sobreviver ao desencantamento do mundo (HANEGRAAFF, 2003). Assim,

qualquer alteração no contexto sociocultural de uma dada denominação religiosa

suscitará mudanças em sua estrutura de conhecimento do mundo, e com o ioga não

poderia ser diferente.

O ioga, antes um dársana ou “escola filosófica” hinduísta ortodoxa, parece

revelar-se hoje um misto de terapia biomédica e aula de ginástica aonde a ciência,

mais do que qualquer outra religiosidade institucionalizada, mostra-se legitimadora do

seu discurso em sociedades modernas (ver ALTER, 2004). Até o Ministério da Saúde

brasileiro discute a inclusão do ioga em seu Sistema Único de Saúde (SUS)1 e debates

sobre o papel do ioga como prática médica não-convencional são debatidas acadêmica

e politicamente no país (SIEGEL, 2010).

A esta altura, seria lícito supor um ioga sendo praticado destituído de suas

singulares características religiosas, como ocorreu com a acupuntura, haja vista a

difusão indistinta de crenças antigas ioguicas com outras espiritualidades, mas

sobretudo, pela inclusão dos seus ritos corporais em laboratórios científicos e

hospitais, ou seja, em ambientes (aparentemente) laicos e seculares, aonde a teoria dos

klesas, prana, samadhi ou kaivalya não teriam o menor interesse. No entanto, não é

isso que parece ocorrer e alguns pesquisadores já apontam o ioga revelar-se como

uma nova religião em andamento, sobretudo em cidades modernas, com foco em suas

práticas rituais corporais de cura, como veremos.

Para adentramos nesta discussão sem nos perdermos em terminologias em

sânscrito e questões filosóficas sobre a sua espiritualidade, escolhemos apresentar,

mesmo que de forma sucinta e inicial, a soteriologia considerada “tradicional” ou

antiga do ioga, e a confrontarmos com as possíveis alterações acolhidas no seu

contato com a cultura moderna ocidental na configuração do que muitos

investigadores denominam hoje de ioga postural moderno (DeMICHELIS, 2004).

Abaixo descrevo alguns aforismos (sutras) de uma das mais conhecidas e propaladas

escrituras ioguicas, o Ioga Sutras (IS) para que nos auxilie sobre as possíveis

alterações sobre o conceito de klesa como causa iogue do sofrimento humano:

1 http://www.saude.es.gov.br/download/SESA_MANUAL_PIC_VERSAO_FINAL.pdf, acessado em 01/10/2014.

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1.2. Yoga é a supressão dos movimentos da consciência [ou citta vrttis nirodha]. 2.2. Com o propósito de produzir a integração [samadhi] e também com o propósito de tornar tênues as aflições [klesas ou obstáculos espirituais]. 2.3. As aflições [klesas] são: ignorância, sentido de autoafirmação, desejo, aversão e apego à vida. 2.25. Da inexistência desta ignorância [avidya], resulta a conjunção [samadhi]: esta é a revogação do problema, o isolamento (kaivalya), no absoluto, do poder de ver. 2.29. Refreamentos [yamas], observâncias [niyamas], postura [asana], controle do alento [pranayama], bloqueio das interações [prathyahara], concentração [dharana], meditação [dhyana] e integração [samadhi]: estes são os oito componentes do Yoga [ou asthanga ioga, o caminho espiritual óctuplo] (GULMINI, 2002, p.115-262).

Mesmo compreendendo não ser aqui o local acadêmico para realizarmos uma

exegese das escrituras ioguicas, julgo ser pertinente esclarecer melhor os seus

significados. Por isso, se faz necessário que se comente as suas passagens para uma

maior compreensão posterior, aonde analisarei as possíveis reformas soteriológicas

sofridas destes aforismos do ioga com o mundo moderno. Saliento, contudo, que

tenho consciência de que muitos comentaristas modernos do Ioga Sutras (IS),

especialmente brâmanes e acadêmicos europeus do início do século XX, intentaram

adequá-lo ao pensamento racional do ocidente, destituindo-o, em parte, de sua

linguagem mística e mágica para uma racionalidade mais condizente com o

pensamento acadêmico (SARBACKER, 2008, p.165; SINGLETON, 2008, p.77-99).

O ioga de Patanjali descrito no IS, possui um ponto de vista dual da realidade.

O corpo (prakrti) e a alma (purusa), portanto, são irreconciliáveis. É a “consciência”

(citta)2, por meio dos “órgãos sensitivos” (indriyas), que estabelece o rompimento dos

homens e mulheres com a perenidade harmônica de citta-purusa. O iogue crê que a

alma exista em um estado de “não-movimento” ou “harmonia perene”, denominado

em suas escrituras como kaivalya, aonde a alma e a consciência experienciam uma

Bem-aventurança divina constante (ARANYA, 1983, p.22; BERRY, 1992, p.82-87).

2 Citta é formada pelo “intelecto” ou lit. perceber (buddhi), o “ego” ou lit. princípio individual (ahamkara) e a “mente” ou lit. ato de pensar (manas).

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Por outro lado, a inevitável ligação que se estabelece entre a consciência e o

mundo por intermédio do corpo, Patanjali deixa evidente ser a responsável em gerar

um estado espiritual nefasto ao indivíduo, denominado de citta-vrttis ou “movimentos

da mente/consciência”, “turbilhão da mente/consciência” ou “confusão

mental/consciêncial”. Por isso que no sutra 1.2, Patanjali define o próprio ioga como

“a supressão dos movimentos da mente/consciência” (citta-vrtti-nirodha), e no sutra

2.2 anuncia a experiência mística transitória advinda de suas práticas corporais,

denominado de samadhi, como o retorno da consciência (citta) à sua natureza perene

e imutável, símbolo de uma espécie de “estabilidade divina da alma”3 presente em

purusa (BERRY, 1992, p.101-107, p.111; SARBACKER, 2008, p.163).

O IS esclarece que a dificuldade de se restabelecer ao estado harmônico divino

primordial reside nas condutas impuras que se comete deliberadas pelos

comportamentos associados aos klesas (lit. aflição) (SARBACKER, 2008, p.165). No

sutra 2.25 nos é apresentado o “klesa-mãe” ou responsável vital por todo o sofrimento

humano: a ignorância ou a ausência de conhecimento dos indivíduos em não se

reconhecerem já livres de toda e qualquer dor ou angústia existencial (ARANYA,

1983, p.122). Os outros klesas ou causas das aflições ou mal-estar são revelados no

sutra 2.3 como “filhos da ignorância” pelos comportamentos de apego, aversão, medo

da morte e a falsa identidade/orgulho. Os iogues, ao contrário dos cristãos por

exemplo, acreditam que nascem puros e em harmonia; mas no contato com o mundo e

desatentos ou alienados de sua natureza estável de Bem-Aventurança, criam um ciclo

nocivo de sofrimento e “confusão mental” (citta-vrttis) na identificação do corpo e da

consciência com o mundo.

O caminho espiritual óctuplo proposto pelo IS ou asthanga ioga, é ordenado

por oito passos de igual importância, sendo os dois primeiros uma espécie de “dez

mandamentos” que um devoto ao ioga deve seguir na vida diária (yamas e niyamas);

os próximos três descrevem a sua prática ritual corporal (asana, pranayama e o

estado ioguico de prathyahara ou “abstenção dos estímulos externos”); a meditação

propriamente dita é apresentada nos dois seguintes passos (dharana e dhyana); e,

finalmente, a experiência mística de integração novamente da consciência com a alma

3 Ver sutra 4.18: “Os movimentos da consciência [citta] são sempre conhecidos por seu soberano [purusa], em virtude da imutabilidade do ser incondicionado” (GULMINI, 2002, p.381).

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incondicionada (ou deus/Isvara) ou samadhi no oitavo momento, como citado no

sutra 2.29: o retorno ao estado harmônico eterno ou encontro com a alma imaculada e

em constante Bem-aventurança (BERRY, 1992, p.92-107; SARBACKER, 2008,

p.162-164).

Ao findar a defesa da minha dissertação me perguntei se não haveria a ciência

influenciado mais o ioga do que apenas a ressignificação simbólica dos seus preceitos

metafísicos com termos da fisiologia biomédica. Digo isso, pois conversando com

iogues e praticantes posteriormente, mas sobretudo, cursando formações ioguicas e

vivenciando rituais das mais diversas no Brasil entre os anos que escrevia minha

dissertação e esta tese, percebi o quanto do discurso ioguico havia mudado com

relação as escrituras antigas do ioga (IS) que delineei sucintamente acima. Não eram

apenas os chackras que haviam se transformado em glândulas endócrinas ou nadis em

sistema nervoso autônomo. A grande causa do sofrimento iogue não parecia mais

surgir dos comportamentos associado aos klesas, mas do estresse aferido

empiricamente pelos instrumentos da ciência advindo do ritmo de vida das sociedades

de consumo. Os professores e alunos de ioga atuais citam mais termos fisiológicos do

que os sutras de Patanjali em suas aulas; e os klesas, o grande obstáculo espiritual

ioguico de outrora, parecia não mais pertencer ao discurso ioguico moderno. O que

ficou evidente a mim foi um ioga adaptando-se a cadência e as exigências do mundo

moderno brasileiro, mas ainda não compreendia o que isso significava exatamente sob

o ponto de vista da ciência da religião.

Revelamos pela exposição acima do IS, quatro conceitos fundamentais à

proposta antiga de salvação/libertação do ioga: os klesas, os vrttis, kaivalya e o

samadhi. Ao contrário do que se apregoava antigamente, os iogues e praticantes hoje

parecem manifestar maior interesse na aquisição de saúde e bem-estar, do que

reverenciar algum tipo específico de ética religiosa, conduta espiritual de culto a deus

ou à qualquer outra religião institucionalizada (ALTER, 2004).

Estudos mostram que as diferenças que caracterizam a passagem do ioga

antigo para o moderno residem na sua medicalização e, por conseguinte, na

popularização dos seus ritos corporais em técnicas terapêuticas de combate ao estresse

(DeMICHELIS, 2008, p.23-27). Essa transformação, ainda em processo, parece

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acontecer em algumas escolas ioguicas sem incorrer na perda total de sua

espiritualidade.

Numa pesquisa realizada em Londres em 2002 com 750 praticantes de ioga,

descobriu-se que 80-83% destes iogues compreendem as suas práticas tanto como

auxiliares no combate ao estresse, quanto na experiência igualmente válida de uma

vida espiritual plena. Suzane Newcombe concluiu até mesmo ser possível classificar

o ioga hoje como uma religião mística, segundo o conceito desenvolvido por Colin

Campbell a partir de Ernst Troeltsch (NEWCOMBE, 2005). A relação que possa

existir entre estresse e religião a pesquisadora não incluiu em suas perguntas, mas as

suas descobertas ganham mais sentido quando expomos um dos pensamentos de

B.K.S.Iyengar, o líder espiritual da escola de ioga investigada por Newcombe e um

dos iogues mais populares e respeitados do mundo. Segundo ele: “a pessoa

indisciplinada é alguém sem religião; a pessoa disciplinada é religiosa; a saúde é

religião; a doença é falta de religião” (IYENGAR, 2001, p.38). O seu discurso

associado a nossa argumentação até aqui nos direcionam a concluir haver uma estreita

relação se estabelecendo entre a biomedicina e o ioga moderno, que ao invés de

desencantá-lo, pode estar legitimando-o como uma nova religião.

Nas ciências da religião, pesquisas revelam a ocorrência do entrelaçamento

entre doença-sagrado, medicina-religião e cura-salvação em diversas religiões

(FULLER, 2008, p.131-152; LAPLANTINE, 2011, p.213-252). A cientista Sarah

Strauss corrobora essas aproximações nos esclarecendo que o diálogo saúde-doença

para o ioga moderno não corresponderia a um simples mecanismo resultante da

fisiologia compreendida pela biomedicina, mas da experiência subjetiva de um sentir-

se mal, quase como uma angústia ou uma dor incorporada (STRAUSS, 2008). Dessa

forma, é legítimo explorar a provável dialética estabelecida modernamente entre as

noções de klesa como gerador da experiência do mal-estar e do conceito de estresse

para o ioga que vem se instituindo no contexto sociocultural ocidental.

Segundo R.T. Rao, mas corroborado por outros pesquisadores, numa

interpretação moderna do IS, os klesas poderiam hoje corresponder ao agente

estressor ou estresse propriamente dito, fruto dos nocivos comportamentos dos klesas

(tradicionalmente considerado os comportamentos de apego, aversão, medo da morte,

e orgulho, como vimos). O asthanga ioga (AI) - os oito princípios espirituais do ioga

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antigo que versamos anteriormente4 - por sua vez, poderiam estar sendo entendidos

como as técnicas para dominar o “estresse-klesa” (BHAVANANI, 2007; RAO, 2012).

Essas observações são deveras interessantes, mas ao considerar o estresse

como sinônimo de klesa nos faz concluir equivocadamente que toda a manifestação

fisiológica do estresse seria nefasta para a vida humana. Todavia o estresse, na

perspectiva estrita da fisiologia biológica, nunca foi compreendido assim. O estresse

como sinônimo de doença é uma noção popularizada sem o devido respaldo da

ciência e, talvez, incorporada de alguma forma ao complexo sistema de crenças do

ioga moderno.

Os klesas, como demonstramos acima, até o surgir da modernidade sempre

foram sinônimo das cinco aflições espirituais responsáveis por perpetuar o estado de

servidão ou sofrimento humano (SCHONFELD, 2010). Assim, é provável que os

comportamentos dos klesas (ignorância, apego, aversão, medo e orgulho) possam

estar adquirindo outras conotações associadas a resposta biológica do estresse.

Digo isso, pois o estresse biológico é um estado absolutamente normal e

neutro (nem bom ou ruim), muitas vezes benéfico para a manutenção da vida e

somente em situações extenuantes e persistentes, desvantajoso a saúde. Já o estresse

ioguico, revelado por R.T. Rao e Bhavanani, como sinônimo de klesa, fica evidente se

tratar de uma nova concepção criada no seio da espiritualidade ioguica moderna. Há,

assim, um hiato entre o que iogues e biólogos compreendem sobre a noção de

estresse. Todavia, os iogues tendem a associar as manifestações psicofisiológicas de

estresse com as suas antigas crenças em corpos metafísicos e energias sutis ou

transfisiológicas (BHAVANANI, 2007, p.30-40).

Medicalizar o ioga, portanto, atribuindo a ele associações entre estresse e

klesa, pode ter sido uma porta que se abriu para os iogues modernos difundirem as

suas crenças entre a sociedade ocidental. No Brasil por exemplo, temos o Prof.

Hermógenes, iogue brasileiro mais conhecido e carismático do país, que conseguiu

aliar a medicalização das práticas ioguicas com o cristianismo e o espiritismo

fortalecendo, como ele mesmo diz, a saúde física e mental em busca da “auto-

perfeição pelo hatha-ioga” como terapia espiritual para “nervosos” (HERMÓGENES,

4 Yamas, Niyamas, Asanas, Pranayamas, Prathyahara, Dharana, Dhyana e Samadhi.

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2010; 2011).

Não há dúvidas que o ioga moderno enveredou, como já expomos, para sua

medicalização e as suas práticas como técnicas profiláticas em muitos setores da

saúde. Por outro lado, pesquisas apontam igualmente que nunca existiu um “ioga

puro”, e a tradição de ioga do período medieval - o hatha-ioga – seria a responsável (e

não o estilo de vida moderno) pela maior valoração dada ao corpo em detrimento às

suas escrituras antigas (LIBERMAN, 2008, p.113). Esse fato poderia refletir não uma

corrupção dos preceitos espirituais ioguicos “tradicionais”, como afirmam alguns

estudiosos contemporâneos ao ioga (SINGLETON, 2005), mas uma reforma

soteriológica legítima dos seus antigos bens de salvação frente ao transplante do ioga

aos grandes centros urbanos do ocidente. No Brasil, provavelmente mais do que em

qualquer outro país, a associação klesa-estresse-salvação/libertação pode revelar-se

mais nítido e compreensível. Digo isso, pois entre os brasileiros, aliar o ioga como

benéfico para a saúde é bastante popular como revelamos acima com o Prof.

Hermógenes. Além disso, a América Latina em geral, por ter edificado o ioga sem a

influência tão vigorosa de gurus de renome internacional como Iyengar, Jois,

Sivananda e outros, possivelmente pela barreira idiomática, pode ter desenvolvido

características próprias e, talvez, únicas.

Mesmo que escassos, estudos brasileiros corroboram essa possível

singularidade do ioga no Brasil. Pesquisas revelam que o ioga vem perdendo o seu

atributo de errância que predominam em espiritualidades Nova Era (NUNES, 2008),

exprimindo que os iogues brasileiros tem se tornado mais fiéis ao seu guru ou

professor de “formação”. Ao mesmo tempo, o ioga já desperta discussões sobre o seu

papel social, seja de terapêutica ou ginástica laicas (FERNANDES & DA ROCHA,

2005), chegando até mesmo a defender-se politicamente por sua independência do

Conselho Federal Brasileiro de Educação Física, o que favoreceu alguns afirmarem o

seu caráter vivo de sincretismo com a religiosidade brasileira, fomentando algum tipo

novo de espiritualidade (GNERRE, 2010).

Não parece de todo inválido pensar o ioga desenvolvido no Brasil um terreno

fértil para se investigar as possíveis transformações ocorridas na teoria

comportamental dos klesas e a sua dialética com o estresse biológico e provável

produção de novos bens de salvação. Por mais que denominações espirituais possam

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ter milênios de conhecimento, a sua trajetória é fluida e suas imbricações sociais e

religiosas estarão sempre determinando novos caminhos. Cabe-nos aqui saber realizar

as perguntas corretas.

Dessa forma, pensamos em problematizar a nossa pesquisa concentrando-se

em compreender o papel dos klesas (comportamentos de apego, aversão, medo da

morte, orgulho e ignorância) no panorama social brasileiro. Talvez o impacto

soteriológico no transplante do ioga – de uma sociedade estratificada indiana antiga –

para uma sociedade capitalista de consumo, secular e privatizada religiosamente,

como oficialmente o Brasil se apresenta, pode ter reformado a teoria dos klesas para

uma relação direta com a experienciar psicofisíca do estresse. Dessa forma,

descobertas fisiológicas sobre o relaxamento psicofísico, como “produto” das práticas

ioguicas, sobretudo reveladas e propaladas em meios acadêmicos e revistas populares,

podem estar refletindo na diminuição do valor comportamenal dos klesas no ioga

praticado e professado entre os brasileiros. Essa hipótese, associada ao caráter

mutante da religiosidade brasileira poderia estar contribuindo na construção de um

ioga brasileiro mais sincrético religiosamente. Infelizmente as pesquisas sobre o ioga

brasileiro, fora do âmbito biomédico são bastante escassas, por isso, nossos dados

para serem conclusivos precisariam de um número mais substancial de acadêmicos

interessados sobre o tema. Por isso escolhemos dez iogues e três cientistas que,

mesmo reduzido, podem representar uma parcela do microuniverso ioguico brasileiro

ainda em formação.

O processo de secularização e privatização religiosa pode estar refletindo na

relação do ioga com as ciências da saúde que, ao invés de extinguir a religiosidade

ioguica, torna-se responsável por suscitar novos problemas e soluções religiosas que

não seriam possíveis em outros termos. O ioga, antes subordinado a religião hinduísta

e recentemente às terapêuticas espirituais de novos movimentos religiosos Nova Era,

vem adaptando-se ao racionalismo da ciência e a agitação dos grandes centros

urbanos consumistas, utilizando as descobertas empíricas de promoção de

relaxamento físico e atenção mental das pesquisas em fisiologia biomédica sobre as

suas práticas rituais, para reformar a sua antiga teoria dos klesas como causa do

sofrimento humanos e produzir novos bens de salvação.

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No Brasil, por sua característica cultural de sincretismo religioso mas,

sobretudo, pela vinda tardia de iogues indianos, o ioga encontra aqui condições

singulares de desenvolvimento aonde o poder terapêutico religioso de suas práticas

revelou-se de forma mais evidente. Não é coincidência, por exemplo, que as obras de

iogaterapia do Prof.Hermógenes tenham alcançado popularidade, mas as suas

implicações podem ser mais profundas do que a simples mudança de klesas para a sua

ressignificação ao estresse. Talvez, a análise do papel dos klesas no ioga brasileiro

possa refletir também a causa do sofrimento que afeta uma parcela de brasileiros que

transitam o microuniverso ioguico do país.

Quiçá, a relação cura-salvação, o processo de secularização e privatização

religiosa, aliado a racionalização científica, podem ser os responsáveis pela

diminuição no Brasil do valor ético da teoria comportamental dos klesas. A elevação

das sensações e percepções psicocorporais ioguicos de relaxamento, propalados pela

ciência biomédica, por outro lado, podem estar contribuindo como pano-de-fundo às

reformas soteriológicas ioguicas frente aos grandes centros urbanos brasileiros.

Assim, a ressignificação das escrituras modernas do ioga à luz da fisiologia

biomédica podem evidenciar uma adaptação racionalizante em sua proposta

soteriológica. Um exemplo disso são as descobertas terapêuticas da fisiologia

biomédica sobre o efeito benéfico a saúde das práticas ioguicas no combate ao

estresse biológico crônico. Estas comprovações científicas refletem positivamente e

podem se tornar uma das responsáveis principais por converter o estresse em klesa ou

obstáculo espiritual. Por conseguinte, o estresse ioguico pode vir a adquirir o caráter

de gerador de vrttis ou “agitação da mente” (citta-vrttis). Se isso se confirmar, o

estresse ioguico poderá elevar a resposta orgânica antagônica ao estresse biológico, o

relaxamento, ao nível de espiritual, diminuindo sensivelmente o peso comportamental

e ético dos klesas de outrora por outro mais “baseado na experiência pessoal”. Essa

hipótese conduz o kaivalya por sua vez, a um caráter mais “fisiológico” também,

metaforizando-se numa busca pessoal suprassensível por uma espécie de

“homeostase divina”.

O meu objeto é o ioga e o deslocamento religioso dos klesas em sociedades

urbanas do Brasil. Os comportamentos associados aos klesas sempre foram

considerados a base ética da vida de um iogue, o seu foco para se diminuir os vrttis e,

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por resultado, a sua salvação/libertação em vida das aflições humanas na comunhão

com Deus/Isvara (kaivalya). No entanto, percebo modernamente um desvio da

atenção dos klesas para uma atenuação do estresse que toma características do mal a

ser exorcizado em vista as suas repercussões corporais “empíricas”. Focar-me-ei na

dialética estabelecida entre o ioga com a ciência biomédica como contributiva capital

na possível reforma da sua proposta de salvação/libertação religiosa moderna na

busca de uma natureza de “homeostase divina” ou kaivalya.

Para esse intento, vou buscar dados por meio de entrevistas semiestruturadas

com iogues e cientistas psicobiólogos que investigam as práticas ioguicas como

terapia-cura. O meu modo de escolha dos iogues foi selecionar àqueles responsáveis

diretamente em difundir a cultura do ioga no país por meio de cursos de formação

periódicos, retiros espirituais a Índia e workshops, palestras e aulas em universidades

brasileiras sobre a cultura iogue da vida que vale a pena ser vivida. Com relação aos

cientistas, escolhi três que respeitam aos seguintes critérios: pesquisarem o ioga como

terapia, ministrarem palestras e workshops sobre o ioga e as suas práticas e

repercussões biológicas, possuírem artigos sobre o tema publicados

internacionalmente envolvendo a relação ioga e saúde, além de participarem como

palestrantes nos cursos de formação ioguica.

O objetivo central estará em compreender a transformação dos klesas no ioga

moderno em dialética com a ciência biomédica e a religiosidade brasileira. Mas para

isso, precisaremos apresentar primeiro, a proposta de salvação antiga do ioga no

intuito de contextualizar a sua origem antiga. No segundo momento, descreveremos o

transplante do ioga indiano para o ocidente e a tensão que emerge no seu acesso à

modernidade. Dessa tensão ioga-ciência, emerge o ioga moderno e seu enlace com a

biomedicina ocidental. Mas na América Latina esse transplante pode ter desenvolvido

as suas singularidades, como adianrtamos, devido as décadas de insulamento que o

ioga passou. No Brasil em específico, a sua particularidade foi o sincretismo com

religiões nativas e cristãs, mas principalmente, da utilização do discurso laico da

ciência sobre os seus ritos corporais para espiritualizar o relaxamento e adaptar a sua

proposta soteriológica à luz do contexto social moderno.

Entre os meus marcos teóricos, estão os trabalhos de Joseph Alter e Elizabeth

DeMichelis, que nos permitirão esclarecer os objetivos do ioga medieval se encontrar

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e beneficiar-se no seu enlace com a educação física e a biomedicina ocidentais

possibilitando se tornar uma terapêutica espiritual de cura. Com a ajuda teórica de

DeMichelis o ioga, transplantado do oriente no fim do século passado para as

sociedades ocidentais, me permitirá percebe-lo como moderno sem diminui-lo em sua

religiosidade. A pesquisadora Andrea Jain ajuda-me a compor a disseminação do ioga

moderno entre as camadas urbanas ocidentais, de uma perspectiva de contracultura,

do início dos anos de 1960, para a cultura de consumo, a partir dos anos de 1980. Os

trabalhos realizados e organizados por Mark Singleton e colegas (Liberman e

Sarbacker) servirão de base para evidenciar as transformações soteriológicas

ocorrendo com o ioga moderno.

Em nosso primeiro capítulo descreveremos a proposta soteriológica do ioga

clássico, aonde os klesas são apresentados como as causas das aflições espirituais do

ioga. No mesmo capítulo ainda, mostramos como o ioga indiano em contato com o

ocidente, sobretudo a partir da colonização inglesa, ressignifica as suas escrituras e

práticas a partir da fisiologia biomédica. No capítulo dois, discutimos como os klesas

vão sendo metaforizados como estresse e emoções consideradas nefastas ao ioga

moderno. A causa das aflições ioguicas agora, adquirem características bem mais

corporais e medicamentosa, estabelece uma dialética saúde-salvação. A partir do

terceiro capítulo, afunilamos o espectro da nossa investigação nos limitando ao

contexto brasileiro a partir da história do ioga nas terras latino-americanas. Nesse

momento da história moderna do ioga, os países da América Latina recebem o ioga

via discípulos da teosofia e outras ordens esotéricas ocidentais.

Nesse período pouco investigado da história moderna do ioga, percebemos ele

mesclado com diversas influências espirituais, mas sem a legitimidade de algum

iogue verdadeiramente indiano, dando margem a todo tipo de sincretismo, como

ocorre nos Estados Unidos e Europa. No Brasil, o ioga cresce pelas mãos de dois

agentes carismáticos – Hermógenes e DeRose – que popularizam o ioga no país e

influenciam gerações de professores e praticantes de ioga. No capítulo quarto, saio a

campo e entrevisto dez líderes de ioga brasileiros e mais três cientistas que me

fornecem subsídios para minha argumentação hipotética sobre as transformações dos

klesas ou causas do mal ioguico. Suponho que entre os iogues brasileiros à

permanência das crenças em energias transfisiológicas e ordem cósmica, mas também

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a gênese de outras, como da distinção entre estado e prática de ioga. No último

capítulo investigo a hipótese que a mudança ocorrendo com os klesas, podem refletir

a formação de novos bens de salvação/libertação do ioga brasileiro. Hipotetizo que a

transformação soteriológica em processo no país seja fruto do surgir do ioga como um

novo movimento religioso, já desvinculado do hinduísmo e da Nova Era, e permitindo

entrevê-lo como um produtor de sentido para um específico microuniverso de

indivíduos que buscam nas escrituras e práticas de ioga uma nova forma de vida.

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Capitulo 1

O IOGA ATRAVÉS DOS TEMPOS: DO IOGA SUTRAS AO SURGIMENTO DO IOGA MODERNO

Os aforismos de Patanjali (aproximadamente século II a.C.) marcaram o

alvorecer do período considerado clássico do ioga, que se estende até à idade

medieval indiana, quando os iogues entram na sua terceira era histórica, intitulada,

segundo historiadores da religião, como pós-clássica, medieval ou pré-moderna. É

nesta fase histórica que surgem dois dos seus textos basilares, o Hatha-Ioga Pradipika

(HIP) e o Gheranda Samhita (GS). Será a partir dessas escrituras dos séculos X-XV

que o ioga mostra a sua vertente mais corporal - com uma descrição mais minuciosa

de posturas, respiratórios e limpezas – e terapêutica – quando correlaciona as suas

práticas físicas com a medicina tradicional indiana. Portanto, é no período medieval

indiano, que a medicalização e corporificação do ioga tem início. No entanto, mesmo

com todas as suas transformações medievais, o ioga mantem-se sob a égide do

hinduísmo. O que vai realmente marcar o advento do ioga moderno é o seu

desvinculamento gradativo com o hinduísmo quando da sua transplantação para o

contexto ocidental urbano.

A partir do séc.XX, o discurso do swami Vivekananda, no primeiro

parlamento mundial das religiões (1893), marca o advento da fase moderna do ioga

(STRAUSS, 2008, p.58-62). A passagem por esses períodos da história do ioga se

mostra relevante para compreendermos as imbricações deste com outros sistemas de

crenças e as transformações que se impingem na compreensão iogue de realidade

religiosa e não sucumbir a laicidade pelo mundo moderno.

1.1 - Período pré-clássico do ioga

O início do ioga remonta a uma Índia pré-ariana, da tradição nativa dos

drávidas (ELIADE, 1998, p.296). Este povo parece ter florescido como uma grande

civilização às margens do Vale do rio Indo, semelhante em grandeza com outras

civilizações do seu tempo, como os egípcios no Nilo e os sumérios, entre o Tigre e o

Eufrates. O território dravidiano teria sido invadido por uma sociedade, conhecida

como ariana, por volta de 1500-1200 a.C. (GULMINI, 2002, p.24). Acredita-se que

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um tipo de ioga já era praticado pelos drávidas e a sua religiosidade sofrerá influência

do que depois veio a ser conhecido como Hinduísmo pelo brâmanes, a alta casta

sacerdotal ariana.

Supostamente este proto-ioga dravidiano já era uma prática religiosa voltada

para a concentração mental, o controle da respiração, a adoração ritualística, cujos

objetivos principais eram a invocação, a visualização e a união mística com suas

inúmeras divindades (FEUERSTEIN, 1998, p.133-168). Como a religião dos arianos

não aceitava esse ioga arcaico no início, ele foi sumariamente considerado um sistema

religioso heterodoxo pelos seus sacerdotes (ZIMMER, 2000, p.67).

No entanto, aos poucos, talvez por força popular, os brâmanes vão absorvendo

paulatinamente esse ioga nativo como parte das suas próprias crenças. Com o passar

do tempo, uma quantidade admirável de hibridismos foi sendo realizada com esse

proto-ioga dando origem às diversas organizações e tradições ioguicas, algumas

perduram até hoje.

Segundo Georg Feuerstein (1998), podem-se identificar citações desse ioga

autóctone dos drávidas já nos versos do Rig-Veda, os antigos hinos bramânicos

(p.152; 155; 158)5. Em outro livro dos Vedas, o Atharva - que inclui uma extensa

coletânea de encantamentos de amor, maldições e preces aos deuses em busca de

prosperidade - também se podem ler hinos relacionados ao ioga do período pré-

clássico (Ibid., hino 10.7).

Outras referências históricas ao ioga, consideradas pré-clássicas, estão nas

Upanisads, textos pós-védicos que prometiam, igualmente ao ioga mais tarde, uma

“união mística com o Ente Supremo”, muito parecidos com as escrituras ioguicas de

Patanjali, autor de uma geração ioguica posterior (FEUERSTEIN, 1998, p.169), que

veremos adiante.

O que busco salientar aqui é a origem antiga do ioga como caminho religioso

para a transcendência com Deus por meio de práticas rituais corporais e o seu

hibridismo com o Hinduísmo, o conhecimento dominante do seu contexto sócio-

cultural. Além disso, fica nítido os sincretismos sofridos pelo que conhecemos como

ioga ao longo da sua história. O ioga e os iogues parecem assemelhar-se, neste

5 Ver também alguns hinos escolhidos pelo autor nas p.152-160.

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período, muito mais a categoria de magos protegendo-se e lançando feitiços contra

seus inimigos através de suas práticas corporais que trabalhavam com as energias

sutis, do que a de um clero instituído.

1.2 - Período clássico do ioga

O período clássico ioguico marca, no entanto, o aparecimento do documento

que trata especificamente daquilo que se entende como ioga, o Ioga Sutra (IS), uma

coletânea de 196 aforismos que o define e amplia a sua proposta soteriológica e, com

isso, apresenta a causa do sofrimento humano e seus bens de salvação. Ainda hoje, as

escrituras que versam sobre o ioga reverenciam este antigo tratado, fortemente

associado à doutrina religiosa Samkhya, com a diferença de incluir o conceito de

Deus/Isvara, muito provavelmente para ser aceito a ortodoxia hinduísta (GULMINI,

2002, p.173-185).

O IS foi compilado por Patanjali, filósofo brâmane, gramático, médico e figura

semidivina indiana que, provavelmente, viveu séculos antes de Cristo. Patanjali não

inventou o ioga, mas o codificou e o sistematizou como caminho espiritual óctuplo

conhecido como o asthanga-ioga (AI), o ioga real, o ioga clássico ou o raja-ioga.

Segundo o IS, a realização do Si-mesmo é denominada de kaivalya, termo que

significa literalmente solidão e equivale ao termo salvação espiritual. Sendo assim, o

Si-mesmo transcendente (purusa) é solitário (lit.kevala), separado da natureza,

portanto, do corpo (prakrti ou matriz fenomênica, ver GULMINI, 2002, p.438).

Enquanto isto não ocorrer (purusa ou alma perceber-se desvinculado das aflições de

prakrti ou corpo) fica-se condenado a um ciclo de renascimentos (samsara) infinito

em vidas ilusórias ou de dor/sofrimento (maya ou avidya-purusa). O sofrimento

espiritual (lit.dukha), por sua vez, é originado pelo contato do corpo com o mundo.

Em outras palavras, dos estímulos sensoriais (bhutas) com os órgãos psicofísicos de

interação de cada indivíduo (indriyas: jnanendriyas e karmendriyas) 6 , os quais

6 Audição (ouvido) � palavra (voz); tato (pele) � preensão (mãos); visão (olhos) � locomoção (pés); gustação (língua) � excreção (ânus); olfato (nariz) � gozo (sexo) e também a “mente” (manas) que na filosofia do IS é considerado um indriya, pois decodifica as percepções captadas pelos sentidos externos e as retransmite ao “Ser interno” que, além de gerar respostas a estes estímulos, coordena os karmendriyas. O intelecto (buddhi) apenas reconhece ou conceitua, mas não age sobre eles (GULMINI, 2002, p.127-128).

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informam, a todo o momento, à consciência (citta) do mundo externo. A consciência

(citta) de um leigo, no contato com o mundo fenomênico, não consegue diferenciar do

que se origina de purusa (alma imaculada) ou de prakrti (corpo material). Nessa

confusão consciencial (citta-vrttis), os klesas (sentimentos de apego, aversão, medo

da morte e orgulho) manifestam-se no Ser e a dor e o sofrimento surgem enquanto a

plenitude original desaparece. O indivíduo agora está fadado a viver na ignorância

(avidya) ou alienado da sua real natureza divina e em harmonia energética

(GULMINI, 2002, p.125-133).

É importante esclarecermos que o caminho espiritual do ioga não está na

conquista que ainda não temos, mas naquilo que é universal, eterno e divino em nós.

Em outras palavras, ao contrário dos cristãos que já nascem portadores do pecado, o

no ioga, os indivíduos nascem puros mas são contaminados pelo mundo (através do

corpo). Suas práticas clássicas – sobretudo a meditação - são descritas como vias de

salvação/libertação pela purificação do corpo (prakrti) e da mente/consciência ou

espírito (citta). Há, portanto, um estado de harmonia perene que já somos, mas que os

klesas desestabilizam e nos entorpecem.

No entender do ioga, conclui-se, a suprema realização pressupõe a não

identificação do(s) corpo(s) com o purusa ou alma. O prakrti ou corpo fenomênico,

por sua vez, é composto por uma tríplice chamada de rajas (agitação), tamas (inércia)

e sattva (equilíbrio entre a agitação e a inércia que traz inteligência), intitulados nas

escrituras por gunas (Ibid., p.255-256). No momento em que o sistema purusa-prakrti

entra em contato com o mundo material, o indivíduo ordinário que não conhece as

práticas e doutrina ioguicas, rompe o equilíbrio dinâmico de sattva em seu corpo-

mente. Com o equilíbrio de sattva rompido – que é universal e inato - inicia-se todas

as ilusões (maya) criadas sobre si mesmo e o mundo à sua volta, acarretando

infelicidade, angústia e dor existencial (dukha). Em suma, a causa primária de toda

sorte de angústia humana advém dos klesas por romperem o equilíbrio dinâmico,

universal e divino de sattva. Todas as práticas ioguicas – de Patanjali, passando por

Matsyendra e Iyengar – funcionam como técnicas espirituais com o objetivo de

kaivalya, portanto, de retorno do conjunto purusa-prakrti ao equilíbrio eterno e divino

de sattva, aonde purusa não mais se contamine – ou se aliene - pelas ilusões do

mundo material e os livrando do ciclo de samsara ou roda de renascimentos.

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O que se buscou acima revelar é o valor do corpo para o sistema de crenças

iogue. O corpo é, ao mesmo tempo, o responsável por manter e livrar os seres

humanos da sua angústia espiritual. O mundo fenomênico impinge ao Ser, por

intermédio dos corpos, a sua força e ludibria o indivíduo no seu jogo sensível (lila). É

só por meio das práticas ioguicas que o seu adepto poderá vir a vislumbrar novamente

a essência imaculada de sua alma (purusa) e estabelecer-se em equilíbrio ou sattva

(Ibid., p.120; 125), na experiência última de kaivalya.

1.2.1 - Apresentação da proposta de salvação/libertação do ioga clássico

Para adentramos nesta discussão sem nos perdermos em terminologias em

sânscrito e questões filosóficas, escolhemos apresentar, mesmo que de forma sucinta e

inicial, a proposta de aniquilamento do sofrimento humano considerada “tradicional”

ou antiga do ioga, e a confrontarmos com as possíveis alterações acolhidas no seu

contato com a cultura moderna ocidental na configuração do que muitos

investigadores denominam hoje de ioga moderno (DeMICHELIS, 2004). Abaixo,

descrevo alguns aforismos (sutras) de uma das mais conhecidas e propaladas

escrituras ioguicas, o Ioga Sutras (IS), que adiantamos na introdução para que nos

auxilie sobre as possíveis alterações sobre o conceito de klesa como causa iogue do

sofrimento humano:

1.2. Yoga é a supressão dos movimentos da consciência [ou citta vrttis nirodha] (GULMINI, 2002, p.115). 2.2. Com o propósito de produzir a integração [samadhi] e também com o propósito de tornar tênues as aflições [klesas ou obstáculos espirituais] (Ibid.). 2.3. As aflições [klesas] são: ignorância, sentido de autoafirmação, desejo, aversão e apego à vida (Ibid., p.212). 2.25. Da inexistência desta ignorância [avidya], resulta a conjunção [samadhi]: esta é a revogação do problema, o isolamento (kaivalya), no absoluto, do poder de ver (Ibid., p.255). 2.29. Refreamentos [yamas], observâncias [niyamas], postura [asana], controle do alento [pranayama], bloqueio das interações [prathyahara], concentração [dharana], meditação [dhyana] e integração [samadhi]: estes são os oito componentes do Yoga [ou asthanga ioga, o caminho espiritual óctuplo] (Ibid., p.262).

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O ioga de Patanjali descrito no IS, possui um ponto de vista dual da realidade

(BERRY, 1992, p.110; SARBACKER, 2008, p.162). O corpo (prakrti) e a alma

(purusa), portanto, são irreconciliáveis (ARANYA, 1983, p.10; BERRY, 1992, p.77).

É a “consciência” (citta)7, por meio dos “órgãos sensitivos” (indriyas), que estabelece

o rompimento dos homens e mulheres com a perenidade harmônica ou sattva de citta-

purusa quando alcançam kaivalya. O iogue crê que a alma exista num estado de “não-

movimento” ou “harmonia perene”, denominado em suas escrituras como kaivalya,

aonde a alma e a consciência experienciem uma Bem-aventurança divina constante e

eterna (ARANYA, 1983, p.22; BERRY, 1992, p.82-87). Samadhi, no entanto, é uma

experiência religiosa transitória produzida a partir das práticas ioguicas, que

possibilita aos iogues vivenciarem temporariamente um espaço liminar aonde cessa-

se a ação dos klesas em prakrti e o indivíduo sentir a harmonia perene de purusa.

Retorna-se de samadhi com discernimento espiritual maior sobre si-mesmo e os

outros. Seria como um vislumbre de kaivalya – o retorno a perenidade de purusa –

mas com retorno ao mundo ordinário e as suas aflições.

A inevitável ligação que se estabelece entre a consciência e o mundo por

intermédio do corpo, Patanjali deixa evidente ser a responsável em gerar um estado

espiritual nefasto ao indivíduo, denominado de citta-vrttis ou “movimentos da

consciência”, “turbilhão da mente” ou “confusão mental”. Por isso que no sutra 1.2,

Patanjali define o próprio ioga como “a supressão dos movimentos da consciência”

(citta-vrtti-nirodha), e no sutra 2.2 anuncia a experiência mística do samadhi, como o

retorno da consciência (citta) à sua natureza perene e imutável, símbolo de uma

espécie de “estabilidade divina da alma”8 presente em purusa (BERRY, 1992, p.101-

107, p.111; SARBACKER, 2008, p.163).

O IS esclarece que a dificuldade de se restabelecer ao estado harmônico divino

primordial reside nas condutas impuras que se comete deliberadas pelos

comportamentos associados aos klesas (lit. aflição) (SARBACKER, 2008, p.165). No

sutra 2.25 nos é apresentado o “klesa-mãe” ou responsável vital por todo o sofrimento

humano: a ignorância, alienação ou a ausência de conhecimento dos indivíduos em

não se reconhecerem já livres de toda e qualquer dor ou angústia existencial

7 Citta é formada pelo “intelecto” ou lit. perceber (buddhi), o “ego” ou lit. princípio individual (ahamkara) e a “mente” ou lit. ato de pensar (manas). 8 Ver sutra 4.18: “Os movimentos da consciência [citta] são sempre conhecidos por seu soberano [purusa], em virtude da imutabilidade do ser incondicionado” (GULMINI, 2002, p.381).

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(ARANYA, 1983, p.122), ou seja, viventes de um estado permanente de Bem-

Aventurança. Os outros klesas ou causas das aflições são revelados no sutra 2.3 como

“filhos da ignorância” pelos comportamentos de apego, aversão, medo da morte e a

falsa identidade/orgulho ou orgulho. Os iogues, como salientei em outra passagem,

acreditam que nascem puros e em harmonia; mas no contato com o mundo e

desatentos ou ignorantes de sua natureza estável de Bem-Aventurança, criam um ciclo

nocivo de sofrimento e “confusão mental” na identificação do corpo e da consciência

com o mundo. No entanto, é importante deixar sublinhado, a alma (purusa) estará

sempre em estado de harmonia perene ou equilíbrio não sendo maculada pelo corpo.

O caminho espiritual óctuplo proposto pelo IS ou asthanga ioga (AI), é

ordenado por oito passos de igual importância: a ética dos yamas e niyamas; a prática

ritual corporal do asana, pranayama; o estado ioguico de prathyahara ou “abstenção

dos estímulos externos”; a meditação propriamente dita em dharana e dhyana; e

samadhi, como citado no sutra 2.29: o retorno ao estado harmônico eterno ou

encontro com a alma imaculada e em constante Bem-aventurança (BERRY, 1992,

p.92-107; SARBACKER, 2008, p.162-164).

Se a proposta de salvação/libertação descrita acima do ioga antigo já não está

mais tão evidente no discurso moderno, porém a espiritualidade do ioga não foi

esquecida, o que se alterou? Provavelmente modificações soteriológicas podem estar

ocorrendo, e com relação a teoria dos klesas, a experiência mística do samadhi e o

estado espiritual de kaivalya, mas quais? O intento aqui estará em apontar possíveis

caminhos de interpretação de tais reformas na proposta moderna de

salvação/libertação do ioga no microuniverso ioguico brasileiro.

1.3 - Período pós-clássico, pré-moderno ou medieval do ioga

Indiscutivelmente, o ioga mais difundido no mundo atualmente advém do

período pós-clássico, que ficou conhecido como hatha-ioga (HI). Na busca

etimológica da palavra HI, pode-se traduzir hatha por força ou forte, logo, segundo

Eliade, o HI é considerado o ioga do “elogio ao corpo” (2001, p.192-193). O HI inicia

a sua jornada na confluência das religiões e dos movimentos contraculturais que

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apareceram na Índia no primeiro milênio da Era atual, portanto mais de mil anos de

história se passaram desde o IS aos primeiros registros pós-clássicos do ioga.

Assim como Patanjali sistematiza os princípios soteriológicos do ioga em seu

período clássico, Matsyendra e Goraksha, iogues da tradição ioguica Natha,

desenvolvem mais pormenorizadamente as práticas corporais e repercussões

fisiológicas espirituais para a união com Deus (LIBERMAN, 2008, p.100-116).

Enquanto no período clássico o ioga fundamenta as suas crenças no Samkhya, no

período medieval o ioga busca no Tantra, na alquimia islâmica, no Vedanta Advaita e

no Budismo o fundamento religioso e filosófico de suas crenças.

1.3.1 - O início da corporificação do ioga e a sua medicalização a partir da medicina

Ayurveda

A disciplina na execução das posturas, dos exercícios respiratórios, das

vocalizações e das mentalizações por longo tempo, e a devoção por partes específicas

do corpo são muito mais evidentes nos textos ioguicos do período pós-clássico do que

no seu anterior, e o corpo adquire agora uma natureza divina, como um “templo” para

o iogue medieval. Diferente do iogue clássico, que por causa de sua visão dual, lidava

com o corpo como um estorvo para a transcendência. Essa mudança será significativa,

pois quando o ioga encontra o mundo moderno ocidental, de cultura consumista e

individualista, essa visão positiva dada ao corpo incentiva a popularização das suas

práticas e investigação acadêmica sobre as suas repercussões terapêuticas.

A palavra corpo também vai adaptando os seus significados ao longo das eras.

Em sânscrito, por exemplo, corpo pode ser designado tanto por deha, derivado do

radical dih, que ao mesmo tempo em que pode significar “macular” ou “estar

manchado” (ainda indicando uma forte imagem do corpo contaminado ou de ser um

empecilho) ou “ungir”, como “aquilo que é untado ou investido”. No entanto, há outra

expressão para corpo bem mais antiga e resgatada na história medieval do ioga, que é

sharira, do radical shri, que significa “sustentar” ou “apoiar”, evidenciando que o

corpo é também um “meio pelo qual o Self pode vivenciar o mundo” (FEUERSTEIN,

2004, p.164-165). Também há a terminologia ghata, a qual pode ser traduzida como

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pote ou, muitas vezes, por “unidade psicofísica”, segundo alguns iogues (IYENGAR,

2001, p.243) e especialistas contemporâneos em ioga (SOUTO, 2009, p.257-258).

Os textos elaborados filosoficamente por Shankaracharya, o Vedanta Advaita,

é popularizado neste período do ioga. A sua base está no conceito de um mundo não-

dual, dessa forma, diferente das escrituras dualistas de Patanjali que compreende a

alma (purusa) como imaculada pelo corpo (prakrti). Os iogues medievais, pelo

contrário, na busca por desvencilhar-se do klesa-mãe, a ignorância, e do sofrimento

do Ser, percebem o corpo (prakrti) refletindo a alma (purusa). Assim, se preocupam

menos com os tratados filosóficos de sua religiosidade, muito mais pautada pelo

sectarismo teológico dos brâmanes, e desenvolvem um arsenal de práticas fisiológicas

espirituais bem mais sofisticadas do que ao longo dos séculos anteriores9. Para os

hatha-iogues, portanto, o mundo não é mera ilusão agora, eles acreditam que o

sensível e o material são um só e a manifestação da suprema de Deus. Como tudo é

divino, o corpo também o é, e compreender a corporeidade significa também

descobrir o que se é espiritualmente como disse Feuerstein (1998, p.461-463).

Os (hatha)yogins estabeleceram que o corpo humano é homólogo ao Universo, assim, nomearam os nadis e os chackras como rios, montanhas etc. A ideia era buscar a verdade dentro de si mesmo. Se Deus está no Universo, também podemos buscá-lo dentro de nós mesmos (SOUTO, 2009, p.26).

Eliade (2001) corrobora o que se afirmou, comentando que em certa época,

talvez entre os séc.VII-XI, ocorre “uma nova revelação” entre os tântricos, os

budistas, os alquimistas, os hinduístas e os hatha-iogues, que não proclamavam algo

de original, “mas apenas reinterpretavam as doutrinas atemporais segundo a

necessidade do seu tempo”, numa espécie de síntese dos elementos religiosos em

comum (p.252).

Uma vez o corpo estando saudável e forte, o hatha-iogue dá início ao

despertar de uma energia suprassensível adormecida, a kundalini, descrita pela sua

fisiologia espiritual como uma “serpente” enrolada na base da coluna vertebral. A

ascensão da kundalini surge com mais ênfase nos textos medievais e, segundo as

escrituras hatha-iogues, os devotos avançados, desenvolvem uma gama de 9 Mesmo que já existissem, é evidente que, no período que os pesquisadores intitulam de “pré-moderno”, a ênfase física é bem maior do que nos períodos históricos anteriores.

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capacidades transfisiológicas que os qualificam para kaivalya, mas que não é um

privilégio dos iogues medievais, pois outras religiões como o Budismo também

possuem descrições fisiológicas extraordinárias (ver USARSKI, 2009, p.43-44). O

último sutra do tratado mais importante do HI medieval, o HIP, afirma que:

Hatha-Ioga Pradipika (HIP): IV.114 - Enquanto o prana não entrar em sushumna (middle channel), penetrando o Brahmarandhra [lit. porta de Brahma ou Isvara, enquanto o bindu [fluxo vital masculino] não ficar estável por pranavata (controle do movimento de prana) e a mente (citta) sob controle em meditação (contemplação), a Suprema Realidade (Brahman ou Isvara) não aparece com um estado natural da mente [citta], e falar de Jnana [conhecimento religioso] é apenas hipocrisia sem fundamento (PANCHAM SINH, 1914, p.63; SOUTO, 2009, p.238).

Os antigos manuais hatha-iogues, como na citação acima, evidenciam que o

conhecimento religioso - Jnana – só poderia advir, primeiro, por meio do controle do

corpo – controle do prana pelos exercícios respiratórios para obter domínio da mente.

O que está em jogo aqui, é uma crítica ao clero hinduísta preso a exegese das

escrituras e a superioridade dos hatha-iogues ao que eles denominam no texto de

“hipocrisia sem fundamento”. Por isso, o HI descrever um número tão elevado de

limpezas transfisiológicas (kriyas), posturas (ásanas), controle da respiração

(pranayama), gestos e contrações musculares específicas (mudras e bandhas), inibição

sensorial (pratyahara), concentração (dharana), meditação (dhyana) e êxtase ou

experiência religiosa (samadhi), como marca da evolução na trilha ioguica

(FEUERSTEIN, 1998, p.471-482). O que está como pano-de-fundo, reforço, dessas

transformações religiosas é o sistema de castas na Índia, que segregava às castas não-

religiosas o alcance da libertação ou kaivalya. O HI, por outro lado, subvaloriza as

escrituras erigidas e mantidas pelos brâmanes, a alta casta sacerdotal indiana, e

prometem o fim dos klesas e obtenção de kaivalya por meio das experiências do

samadhi descrevendo com pormenores cada técnica e vivências rituais, antes no

domínio exclusivo do clero hinduísta. Lembremos que o ioga tem sua origem anterior

aos Vedas, mas na subjugação da cultura conquistada, a sua filosofia mágico-religiosa

foi sendo substituída pelo saber bramânico que o adequou, sobretudo no IS de

Patanjali, como um darsana hinduísta. Para o HI não ser banido como prática

heterodoxa, como foi o budismo, os iogues medievais asseguraram a sua legitimidade

na autoridade de uma versão não-dual do vedanta, o Vedanta Advaita.

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Segundo o Vedanta Advaita, o ser humano possui mais do que o corpo físico10

e esse fato é relevante, pois será essa fé no corpo como parte do divino que manterá o

ioga como caminho espiritual mesmo em sociedades modernas. Em outras palavras, a

crença em energias transfisiológicas e sua dialética na salvação/libertação por meio de

ritos corporais desenvolvidos neste período medieval, serão mantidos no sistema de

crenças moderno do ioga, como veremos adiante. O candidato a iogue realizado agora

deverá revelar condições transfisiológicas específicas que o qualificarão para a sua

integração com Deus e não apenas nascimento ou educação adequados, como se

valiam os sacerdotes hindus de outrora (ELIADE, 2001, p.205-209; SOUTO, 2009,

p.46-50). Dessa forma, a fisiologia suprassensível do ioga adquire papel central no

êxito de seus devotos, pois será por meio dos seus rituais corporais que os iogues

medievais conseguirão diminuir as volições de citta e desenvolver certo

discernimento espiritual (viveka) na busca pela salvação/libertação em vida das

agruras da vida e comunhão com Deus.

Gheranda Samhita (GS): I.6-8 – O corpo das criaturas viventes é o resultado das boas e más ações. O corpo, a seu tempo, dá origem à ação e, desse modo, o ciclo continua como um ghatiyantra [lit. roda de água]. Como a cisterna sobe e desce a água do poço movida pelos bocéis, similarmente o ciclo da vida e morte de cada indivíduo é impulsionado por seus karmas ou suas ações. O corpo é como uma vasilha de barro cru que, se submergida na água desintegra-se. Por isso, deve ser exposto ao fogo do Yoga para fortalecer-se e purificar-se (Gharote 11 apud SOUTO, 2009, p.266-267).

10 Os três corpos ou shariras correspondem a um orgânico e mais dois sutis-esotéricos, que são: 1) o sthula sharira ou físico, constituído pelos músculos, pelos ossos, pelos órgãos e pelos tecidos; 2) o sukshma sharira, formado pela intuição, pela memória ou pelo conhecimento e pelas emoções; e 3) karana sharira ou causal, também denominado “receptáculo” ou “veículo” da alma individual. Também no Vedanta está a descrição dos cinco koshas ou invólucros do Ser, que são 1) o annamáyákosha ou corpo físico (igual ao sthula sharira); 2) o pránamáyákosha, constituído pelas energias prânicas que percorrem os nadis; 3) o manomáyákosha, corpo formado pelas emoções, mente e os sentidos ou indriyas; 4) o vijñánamáyákosha, constituído pelo intelecto e pelo raciocínio (é o “autor” das ações); e 5) o ánandamáyákosha, o corpo que transita além das misérias humanas (WOODROFFE, 2004, p.43-48; IYENGAR, 2001, p.247-265). 11 O prof. Ghatote é um importante discípulo do Swami Kuvalayananda, precursor da tradição de Kaivalyadhama, famosa por iniciar as primeiras pesquisas científicas com o ioga sob a perspectiva fisiológica e suas repercussões terapêuticas e biomédicas ainda na década de vinte. O Prof. Gharote foi o iogue indiano que mais contribuiu com a disseminação dessa tradição de ioga no Brasil, e as suas visitas ao país motivaram professores de ioga advindos do ambiente universitário da Universidade de São Paulo iniciarem as pesquisas de ioga no Brasil a partir da década de noventa, além de participações das formações de ioga em São Paulo. Atualmente, os livros do Prof. Gharote e Kuvalayananda foram traduzidos em português e seus discípulos, incentivados por eles, são em sua maioria, iogues com formação acadêmica e pesquisadores importantes do ioga como terapia no Brasil.

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Aqui se percebe que, sendo o corpo responsável pelas ações dos seres

humanos, a prática e doutrina fisiológica ioguica tem o poder de modificar e até

mesmo de interromper este ciclo de reencarnações, indicando assim a liberdade

intrínseca do indivíduo para se desenvolver pelo fruto de suas próprias ações (Ibid.,

p.257).

GS: I.10-11 – Os satkarmas purificam o corpo, os ásanas o fortificam, os mudras lhe dão firmeza, o pratyahara produz calma. O pranayama leva à leveza, dhyana leva à realização do Ser e samadhi leva ao isolamento, que é a verdadeira libertação (mukti) (SOUTO, 2009, p.268).

Conclui-se que, enquanto os iogues antigos (pré-clássicos e clássicos)

propõem alcançar o kaivalya pela purificação dos pensamentos, os hatha-iogues (pós-

clássicos ou medievais) preferem antes (ou em conjunto) a purificação fisiológica

espiritual para o mesmo fim (FEUERSTEIN, 1998, p.541; SOUTO, 2009, p.287).

Se há algo em comum entre os períodos históricos, no entanto, está o seu

cuidado extremo no desenvolvimento de uma presença mental ininterrupta com o

livre fluir de prana com fins a certa harmonia ou equilíbrio energético. Por outro lado,

aos hatha-iogues, partes do corpo ganham contornos místicos. Por exemplo, os iogues

medievais crêem que a energia espiritual de kundalini reside no kanda (um

equivalente na anatomia científica seria o períneo); dessa forma, desenvolvem

técnicas de estimulação desta região, cujo intento é ativar a corrente prânica (SOUTO,

2009, p.292).

GS: II.7 – Siddhasana: pressionando o períneo [ou ânus e genitais]12 com o calcanhar posicionado contra ele, descansando o outro tornozelo sobre este ou sobre o pênis, posicionando o queixo no peito, mantendo-se sem movimento, com as indriyas [lit. sentidos] sob controle e olhando fixamente entre as sobrancelhas, esse é chamado siddhasana, que rompe as portas da libertação (moksha) [ou kaivalya] (SOUTO, 2009, p.290).

As escrituras, como se lê, vão aos poucos perdendo parte da sua força

legitimadora da fé e o corpo adquirindo contornos de revelador pessoal da evolução

espiritual do iogue. A experiência espiritual transitória do samadhi agora ganha

12 Em sânscrito está yonisthânakamanghrimûlaghatitam sampidya gulphetaram, a tradução moderna de yoni está vinculada à região do períneo, mas lit. refere-se a atar, juntar, fonte, casa ou vulva, e no contexto ioguico períneo ou vagina (FEUERSTEIN, 1998, p.267-268).

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explicações que permeiam as sensações corporais e a compreensão do funcionamento

do corpo se entrosa com a medicina tradicional indiana, a ayurveda. O ioga medieval

fez surgir uma maior popularização das suas práticas e alcance da sua proposta de

salvação, libertação, purificação ou eliminação dos klesas. Ao invés de regrar as

condutas diárias em observação aos comportamentos nefastos de apego, aversão,

medo da morte e orgulho, os hatha-iogues autorizam a qualquer indivíduo,

independente de sua casta social, purificar o corpo diariamente por meio de práticas

corporais específicas com o mesmo intento dos iogues-brâmanes: vivenciar

temporariamente o samadhi na busca por conhecimento espiritual e livrar-se em vida

de todo o sofrimento humano advindo da agitação da mente/consciência.

Assim se faz a relação da consciência (citta) com o respirar (prana) e o

vivenciar com o divino por exemplo. O primeiro sutra do GS mostra que, praticando

pranayama, “o homem pode assemelhar-se a um Deus” (verso V.1; SOUTO, 2009,

p.385; GRIEGO, 2008, p.23). Os iogues medievais creem agora que o tempo de vida

humano é ditado pelo fluxo de ar (prana) no organismo (verso V.83-84; GRIEGO,

2008, p.29; SOUTO, 2009, p.420) e não pelo nascimento apenas; assim se dedicam

com afinco às funções sutis da fisiologia dos pranayamas e no controle e execução

corretos destes que podem conduzi-los de um simples devoto praticante (sadhaka) a

iogue realizado (que atingiu kaivalya ou estado de equilíbrio eterno das energias

metafísicas que atuam nos corpos) (verso V.91 em GRIEGO, 2008, p.30; SOUTO,

2009, p.422).

GS: V.56-57 – O tipo inferior de pranayama produz calor (indicativo da ativação de kundalini, geralmente associado a algum bandha). O moderado produz tremores especialmente na coluna vertebral, enquanto os mais elevados levam à levitação e desperta-se a energia espiritual [kundalini]. O êxito no pranayama é caracterizado por essas três experiências sucessivamente. (...) Pelo pranayama, a mente experimenta felicidade e o praticante a encontra. (Ibid., p.408-409)

A corporificação do ioga não é assunto moderno, como já adiantamos, mas

fruto de sua popularização e parte do movimento contracultural indiano medieval

denominado de Tantra. Quando o ioga aporta nas sociedades secularizadas ocidentais,

esse aspecto sobressai-se e ganha novos significados. O que se transforma realmente

na passagem para os tempos atuais ioguico, reside em quem valida o discurso

religioso do ioga. Até aqui (era medieval), mesmo com todos os hibridismos sofridos

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com outras religiosidades, o ioga se mantém como escola ortodoxa hinduísta, um

darsana. O ioga, ao contrário do Budismo, não pode ser percebido ainda como uma

religião autônoma na Índia medieval por força hinduísta, mas como parte deste

complexo sistema religioso. Na contemporaneidade, no entanto, esse quadro se

modifica sensivelmente.

1.4 – O Surgimento do ioga moderno

O ioga, na sua faceta moderna, se viu envolto por outros desafios, que obrigou

os iogues, mais uma vez, a se ajustarem às novas racionalidades que surgiram,

sobretudo, no seu contato com a ciência moderna ocidental. A fisiologia e a

neurociência trouxeram soluções que antes eram monopólio exclusivo da fisiologia

espiritual do ioga medieval. Desse modo, explicar o samadhi, o poder espiritual dos

ásanas, pranayamas e kryias não era mais agora algo exclusivo de sacerdotes

hinduístas ou iogues ascetas, mas estava sendo também investigado por um novo

sistema de conhecimento, a ciência.

1.4.1 - A Renascença Indiana

É no período denominado de renascentista que alguns indianos vão estudar na

Europa e percebem que o seu país, apesar da grandiosidade da sua terra, a sua história

e cultura, sofre com a precariedade do seu sistema de saúde, com as crenças populares

envoltas pela sua religiosidade, com uma educação ineficiente e pela economia

explorada pelos britânicos. Muitos destes jovens entendem que seu povo poderia (e

deveria) se beneficiar também dos avanços da ciência, da tecnologia e da medicina

ocidental que eles testemunham, geralmente nos centros acadêmicos do mesmo país

que os colonizava.

Os intelectuais de Bengali, como ficaram conhecidos, abriram o diálogo com

os ingleses, instituindo uma ideologia e a modernização do seu país, o que veio a

inspirar na formatação de um ioga menos místico e mais condizente com o

pensamento racional-empírico e positivista do ocidental que os colonizava. Foi uma

espécie de movimento de contracultura sobre o domínio britânico, concedendo os

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direitos políticos das mulheres, a extinção das castas, da poligamia e das crenças

populares religiosas, assim como tornaram obrigatório o ensino da língua inglesa nas

escolas. Além disto, eles tentaram instituir um Deus único dentro do panteão hindu,

tendo sido os primeiros a traduzirem a literatura védica para o inglês, permitindo um

debate inter-religioso e crítico.

Foi assim, por meio de uma verdadeira reforma social, política, cultural e

religiosa, que esses indianos buscaram construir e expor ao mundo uma perspectiva

mais secular de seu país e de sua religiosidade menos “primitiva e mágica”. Com isto,

o ioga, como um emblema da sua religiosidade, sofreu influências que transformariam

o seu sistema de crenças, soteriologia e de práticas rituais sofrendo mutações e

propiciando o advento de modernas organizações e tradições ioguicas, sendo algumas

bem mais seculares do que outras. Um dos resultados dessa abertura e privatização

religiosa do ioga foi o embate entre o materialismo da ciência ocidental e a mística e

mágica do ioga medieval (DeMICHELIS, 2008, p.20-21, 30; ELIADE &

COULIANO, 2009, p.183).

Desta forma, o ioga antigo, pautado altamente por uma fisiologia espiritual e

pelas crenças populares, perde espaço frente ao progresso e o renascimento do

continente indiano e sua entrada em uma economia neoliberal e capitalismo de

consumo e, com estes, todos os problemas teológicos que os acompanham, como

secularização e privatização religiosa, obrigando aos iogues da geração moderna

(re)construírem o seu complexo sistema de crenças, bem como os seus bens de

salvação/libertação frente as descobertas da fisiologia biomédica ocidental sobre as

suas práticas rituais corporais que tomavam contato agora.

1.4.2 - Ioga moderno

Desde 1757 que a colonização indiana pelos britânicos teve início, mas para o

ocidente, o ioga desembarca oficialmente nas suas terras com o swami Vivekananda

(1863-1902), em 1893, na cidade de Chicago nos Estados Unidos. A sua visita foi,

por convite do primeiro parlamento mundial das religiões, como o representante do

Hinduísmo nesse evento. No seu discurso apresenta já um ioga com distintos

sincretismos dos tempos pré-modernos (pós-clássico ou medieval), tanto em termos

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ideológicos quanto fisiológicos (STRAUSS, 2008, p.58-63). Para Vivekananda, iogue

discípulo de Ramakrishna, líder religioso da renascença indiana, o ioga é considerado

como um ideal de religião universal (ver o seu discurso no parlamento em

VIVEKANANDA 2007)13. Sendo médico de formação, Vivekananda foi um dos

primeiros a ressignificar a fisiologia espiritual do ioga em termos biomédicos

ocidentais modernamente (KUVALAYANANDA, 2008, p.103-104 em notas;

STRAUSS, 2008, p.63).

O ioga que Vivekananda oferece aos emissários das principais religiões ali

presentes, é o de uma tradição religiosa pautada em uma das formas pela qual o ser

humano alcança a sua verdadeira liberdade e manifesta a sua divindade interior. Não

havia ainda uma pretensão de classificar o ioga como uma “espiritualidade” e,

portanto, diferente de “religião”. Vivekananda, na verdade, se propõe a demonstrar,

nos seus pronunciamentos e depois em outras palestras e livros, que a religiosidade

indiana, condensada por ele com o nome ioga, se sustentaria tanto filosoficamente

quanto cientificamente e estaria à altura de qualquer outra religião ali representada.

Vivekananda dá entrada ao que modernamente se populariza entre os iogues atuais, o

início da instituição do ioga como um novo movimento religioso ainda em andamento

(DeMICHELIS, 2004, p.248-260; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2014, p.95-129).

O seu discurso ficou bastante popular, o que lhe possibilitou fundar

organizações ioguicas por cidades do mundo inteiro, tendo o seu pensamento, em

relação à religiosidade ioguica e à ciência formado a base intelectual e ideológica de

uma geração de iogues que veio depois dele 14 (DESIKACHAR et.al., 1980).

Vivekananda também ficou conhecido como um defensor da tolerância religiosa,

tornando-se um dos grandes ídolos do hinduísmo moderno, além de um grande

inspirador dos novos movimentos religiosos que primam, assim como o ioga

moderno, por assimilar os seus ensinamentos religiosos como os científicos

(NANDA, 2007; STRAUSS, 2008, p.64-65; VALLE, 2008, p.200).

O ioga, então, inicia mais uma vez as suas relações híbridas com novas

culturas, sociedades, políticas, economias e geografias, como em outros momentos

13 E até hoje essa imagem transmitida por ele continua viva nos meios ioguicos ver DESIKACHAR (2006), p.10. 14 “O ioga é uma cultura universal” (IYENGAR, 2001, p.41).

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históricos que apresentamos anteriormente. Contudo, agora, esse contato vai alterar o

caráter do iogue renunciante do mundo de tempos passados, para um ascetismo que

dialoga com o mundo nos tempos atuais (STRAUSS, 2008, p.64), pautando-se em

escrituras religiosas como o Bhagavad-Gita. Os iogues indianos modernos

desenvolvem discursos retóricos que os autorizam a participar das sociedades

ocidentais e não mais ser necessário se retirar em ashrans na floresta para

vivenciarem o samadhi e o viveka (lit. discernimento espiritual), o que veremos que

os iogues brasileiros irão denominar em suas audições de “estado de ioga”.

Consideremos agora a diferença entre um yogue-asceta e um monge samsari (que se propõe a participar do jogo exterior de maya). Diga-se desde já que o “samsari” não precisa jogar obedecendo ao ego. Com efeito, é grato por Deus e muito útil ao desenvolvimento espiritual participar do jogo divino sem recorrer ao ego, em vez de procurar envolvê-lo no processo. (KRIYANANDA, 2007, p.241)

Nos períodos anteriores do ioga, o ioga precisava se afastar de samsara e não

participar da vida social com o motivo de não se envolver no “jogo exterior de maya”

ou de ilusão. Agora, no período moderno e longe do manto protetor da religiosidade

hinduísta, os iogues precisam aprender a lidar com novos desafios e, por conseguinte,

com novos obstáculos que afligem a vida e seus novos discípulos/alunos. Enquanto

aqueles iogues clássicos e medievais abandonavam o convívio social e dedicavam a

sua busca religiosa retirados do convívio leigo (ver sutra I.16 do HIP)15, os modernos

se globalizam e adquirem a preocupação de difundir os seus ensinamentos para o

mundo, se tornando assim bem mais proselitistas do que em tempos passados sob a

tutela hinduísta. Esta passagem histórica de renúncia necessária ao mundo e agora, de

participar do mundo e difundir as suas ideias ioguicas aos outros, se configura uma

das características mais marcantes do ioga que se conhece atualmente segundo Sarah

Strauss (2008, p.63-64). Esse período de transição do ioga medieval para o moderno

também marca o questionamento por parte de acadêmicos e iogues do fim da

espiritualidade e, por conseguinte, a exigência do “retorno” a sua essência e

“tradição”. Muito desses discursos virão da aproximação que o ioga moderno fará

com a ciência, mas sobretudo pelos seus inúmeros hibridismos. Esses fatos são os

15 “O Yoga é realizado com muito êxito quando se cumprem estes seis requisitos: entusiasmo, determinação, coragem, compreensão correta, fé no guru e abandono do contato público” (SOUTO, 2009, p.91-92).

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responsáveis pela busca dessa tese em desvendar a transformação que a proposta

soteriológica do ioga sofreu no seu contato com as sociedades modernas ocidentais.

Segundo estudiosos contemporâneos, o ioga atual precisou aprender a lidar

com os acontecimentos, principalmente os advindos do nacionalismo indiano, do

ocultismo ocidental, da filosofia neo-vedanta, dos sistemas de cultura físicos

modernos (DeMICHELIS, 2008, p.20), do islamismo, do cristianismo primitivo, da

ciência moderna (principalmente a fisiologia e a biomedicina ocidental) e do

movimento religioso Nova Era (LIBERMAN, 2008, p.100-117). Este será o novo

pano-de-fundo que configurará o ioga que se conhece atualmente.

Elizabeth DeMichelis salienta os pontos-chaves que facilitam a compreensão

do surgimento do ioga moderno. Segundo DeMichelis (2008), desde 1600, por

intermédio da Companhia das Índias Orientais, que a Índia vem estabelecendo relação

com os países da Europa e América, mas é a partir de 1750 que as sociedades

ocidentais voltam o seu interesse para a economia, o sistema sócio-político e a cultura

indiana. Com isto, de 1830 em diante que surgem os debates devido aos movimentos

de reforma sócio-religiosa na Índia Britânica, abrindo-se um diálogo entre os

intelectuais e as autoridades sobre a anglicização da colônia. Os primeiros sinais de

uma ocidentalização da religiosidade indiana ocorrem por volta de 1850, como se

pode ler nos escritos do naturalista, poeta e transcendentalista norte-americano, Henry

David Thoreau (p.30)16.

No início do século XX, presencia-se o surgimento do movimento Nova Era e

a rápida modernização das religiões asiáticas, as quais dão início a um produtivo

diálogo com outras crenças e culturas, fato que continua até hoje. Entre 1914 e 1945,

devido às duas grandes guerras mundiais, a disseminação das ideias modernas do ioga

diminui a sua influência, sendo retomada novamente a partir da independência da

Índia em 1947. Por intermédio de iogues carismáticos e convidados pela onda

contracultural que acontece nos anos sessenta, várias organizações do ioga se

popularizam por todo o mundo. Após um período de certa indiferença pelo ioga, na

década de oitenta, nos anos noventa surge uma entusiástica aculturação por uma

16 “... I would fain practice the yoga faithfully... To some extent, and a at rare intervals, even I am a yogi”... De bom grado praticar o yoga fielmente... Até certo ponto, e em raros intervalos, eu mesmo sou um iogue”.

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geração de praticantes e de devotos seguidores da sua proposta salvífica e de saúde

(DeMICHELIS, 2008, p.21).

O ioga, no início da década de 1990, se lança no mundo, principalmente por

meio de alguns iogues, entre tantos outros, como swami Vivekananda, sri Yogendra,

Paramahansa Yogananda, swami Kuvalayananda, swami Sivananda e

Krishnamacharya (ALTER, 2004, p.73-108; FEUERSTEIN, 2005, p.53-55;

SINGLETON & BYRNE, 2008, p.17-35; p.40-74). Os métodos ioguicos mais

populares e praticados contemporaneamente se devem aos iogues mencionados

acima, tendo as suas ideias edificado algumas das inúmeras escolas, tradições ou

organizações ioguicas religiosas no mundo atual17. Pode-se afirmar que somente as

organizações ioguicas que aprenderam a fomentar e a divulgar a religiosidade ioguica

por intermédio de pesquisas fisiológicas dos seus métodos e tradições, é que

sobreviveram no mundo moderno. Algumas, inclusive, se orgulham de terem artigos

publicados em revistas científicas sobre os benefícios das suas práticas para a saúde18.

O interessante aqui é o apelo à saúde que a prática religiosa do ioga oferece

agora e o diálogo que aprendeu a estabelecer com a biomedicina. A ciência, ao invés

de desencantar o ioga, serviu-lhe de veículo proselitista. Para se entender o que

permitiu esta configuração atual, o que transformou a religiosidade ioguica numa

espécie de panaceia, mas sobretudo, reformou os antigos conceitos de mal contido nos

klesas para uma linguagem atual e “científica”, será necessário evidenciar como as

escrituras antigas e medievais indianas foram ressignificadas pela ciência biomédica e

fisiologia. A vivência integrativa transitória do samadhi, o estado permanente de

equilíbrio de kaivalya e os klesas, como obstáculos espirituais ioguico agora,

ganharão correspondentes fisiológicos empíricos da biomedicina ocidental. Não há

nada de novo, mas um desdobramento da corporificação e medicalização do ioga

medieval a um novo contexto social, político, econômico e religioso, mas que

implicará em profundas mudanças na via salvífica/libertadora do ioga moderno.

17 The Yoga Institute (1918), de sri Yogendra; Self-Realization Fellowship (1920), de Paramahansa Yogananda; Kaivalyadhama Yoga Institute (1924), do swami Kuvalayananda; “Yoga de Krishnamacharya” (1924), de Krishnamacharya; Sivananda Yoga: The Divine Life Society (1936), do swami Sivananda; e o Vivekananda Kendra Yoga Research Foundation (1972), fundada por Eknathji Ramkrishna Ranade (1914-1982), organização esta baseada nos princípios de Vivekananda. 18 Ver TELLES, NAGARATHNA & NAGENDRA (1994); http://www.kdham.com/srd.html, acessado 27/08/2010; http://www.vkendra.org/projects, acessado 27/08/2010; e http://www.sivanandaonline.org/html/sadhanapages/yoga/Yoga.shtm, acessado 27/08/2010.

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Capitulo 2

OS KLESAS NO MUNDO MODERNO

2.1 - Os primeiros iogues da geração moderna: a ressignificação das escrituras

do ioga moderno a luz da ciência biomédica e fisiologia

Os iogues19 a partir de Vivekananda inauguram as primeiras denominações

religiosas do ioga moderno no mundo, com a missão bem clara em difundir a ciência

do ioga (ver SIMÕES, 2011). A ciência, assim, será o grande canal proselitista que o

ioga se empenha a utilizar para disseminar as suas ideias religiosas nas sociedades

urbanas ocidentais (DeMICHELIS, 2008, p.23; STRAUSS, 2008, p.62-67). A partir

de agora, o ioga vai desenhando novos bens de salvação mesclando seu conhecimento

dos períodos históricos passados com o saber da ciência biomédica e sua fisiologia

pautada na racionalidade ocidental. As doenças devem ser combatidas pelos ásanas,

pranayamas e meditação, mas mesclando-se a nervos, hormônios e partes específicas

do cérebro com energias transfisiológicas.

por meio dos exercícios [de ioga] mantemos nossa flexibilidade e força da coluna vertebral, assim a circulação [sanguínea] é aumentada e os nervos mantém seus suprimentos de nutrientes e oxigênio. Os ásanas também afetam os órgãos internos e o sistema endócrino20. [A intenção do instituto de Kaivalyadhama é] desvencilhar [o ioga] de toda uma capa de misticismo acumulada ao longo de séculos de transmissão oral Isso só poderia ser conseguido com pesquisa exaustiva em textos e escrituras originais [doutrinas], e por meio de experimentação laboratorial [fisiologia biomédica empírica-racional do Ocidente]. (KUVALAYANANDA, 2008, p.2)

Andrea R. Jain, avaliou as formas como um dos métodos do ioga moderno

(Preksha Dhayan de Acharya Mahaprajna) se apropria do discurso científico

ocidental na sua doutrina (JAIN, 2010), em particular, das técnicas corporais e

meditativas dos sistemas de ioga clássicos e pré-modernos e baseando-se no discurso

biomédico ocidental. 19 Sri Yogendra (1897-1989), seguido por Paramahansa Yogananda (1893-1952), swami Kuvalayananda (1883-1966), swami Sivananda Saraswati (1887-1963) e sri Turumalai Krishnamacharya (1888-1989). 20 Grifo meu. Ver http://www.sivananda.org/teachings/fivepoints.html acessado 06/01/2011.

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A autora percebeu que o corpo no ioga investigado, tornou-se uma “sutil

metafísica somatizada”, utilizando-se da compreensão biomédica da fisiologia para

localizar e identificar as funções de partes dos corpos sutis e os processos fisiológicos

da realidade empírica. Para a pesquisadora, esta reinterpretação não substituiu apenas

a simbologia fisiológica espiritual antiga pela científica moderna, mas a reinventou,

formatando uma fisiologia ioguica agora com elementos científicos.

Eu avaliei a apropriação das técnicas físicas e meditativas dos sistemas de ioga antigos em suas explicações metafísicas do ioga pelo discurso biomédico. Eu demonstro como, no sistema Mahaprajna Preksha, o corpo metafísico sutil foi somatizado. Em outras palavras, Mahaprajna utiliza-se do conhecimento biomédico da fisiologia para localizer e identificar as funções das partes sutis do corpo metafísico e processos da fisiologia do corpo (JAIN, 2010).

O que se indica, é que o fato mencionado por Jain não é algo isolado de um

grupo religioso, tradição ou iogue específico, mas da própria história do ioga na

modernidade que vem ganhando contornos espirituais próprios e dialogando mais

com os padrões ocidentais de racionalidade do que a magia medieval indiana; assim,

essas ressignificações e reformas teológicas se justificam pela aculturação que o

complexo religioso ioguico sofreu no contato com os outros povos e seus sistema de

crenças, na busca por manter o seu discurso legítimo em um mundo onde a lógica

científica parece prevalecer mais do que a fé (ou a lógica religiosa).

No livro Afirmações, por exemplo, Yogananda procura correlacionar o poder

terapêutico do ioga por meio de descrições científicas, profetizando que a fisiologia

cardiorrespiratória científica explicaria o pranayama (parte da prática ioguica

composta por respiratórios mais intensos), “cuja aplicação o ser humano pode

alcançar uma experiência pessoal e direta com Deus (...) comum a toda religião

verdadeira” no intuito de promover harmonia entre os diversos povos e os países do

mundo. Não é apenas ele, mas outros como Iyengar também fazem frequentes

referências à junção religiosa ioga-ciência. A partir de agora, o ioga como uma

religião terapêutica virá aos poucos sendo configurada.

O pranayama é o elo de ligação entre o organismo fisiológico do homem e sua dimensão espiritual. Tal como o calor físico é o cerne de nossa vida, o pranayama é o cerne do ioga (IYENGAR, 2001, p.183).

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O ioga moderno vai alicerçando-se, segundo os seus emissários

contemporâneos, com auxílio de “um conjunto de técnicas científicas utilizadas para

alcançar a comunhão com Deus” (Ibid., p.130-131). A sua doutrina antiga funda-se

modernamente – proclamam os iogues do início do séc.XX - também na fisiologia

científica para, assim como os iogues clássicos e medievais o fizeram com as outras

sabedorias, dialogar com os conceitos fisiológicos espirituais de outrora. Desta forma,

a fisiologia biomédica científica e os tratados religiosos ioguicos se hibridam.

Se estimarmos a quantidade de sangue expulsa em cada contração dos ventrículos do coração, soma ao redor de cento e dez mililitros, este órgão move um peso equivalente a oito quilogramas de sangue por minuto. Assim, no lapso de um dia, o coração impulsiona aproximadamente doze toneladas de sangue. Estas cifras demonstram o enorme trabalho do coração. O controle consciente do sono – aprender a dormir e despertar com nossa vontade - forma parte do treinamento yoguico que capacita o ser humano em regular os batimentos cardíacos. Quando se é capaz de controlar conscientemente a frequência cardíaca, se alcança o domínio da morte. (YOGANANDA, 2008, p.134) a cortisona [principal hormônio do estresse] do ioga é vislumbrar a alma (IYENGAR, 2001, p.138).

Nas citações acima evidencia-se as aproximações “científicas” do ioga

moderno. Quando Yogananda diz poder vencer a morte controlando-se a frequência

cardíaca e a respiração, pode estar evidenciando algo que desenvolverei mais adiante:

os obstáculos do ioga, os klesas, estão se transformando em doenças psicossomáticas

e sentimentos nefastos a serem exorcizados pelas práticas corporais do ioga moderno.

Importante relembrar que os klesas, como responsáveis em produzir o turbilhão da

mente/consciência (citta-vrttis), estarão intimamente relacionados agora em

modificações fisiológicas advindas das imbricações construídas modernamente com a

linguagem da ciência biomédica. Dessa forma, quando Yogananda acima afirma que

se “alcança o domínio da morte” no controle consciente dos batimentos cardíacos,

associa diretamente (mesmo sem mencionar) um dos klesas (Medo da morte) vencido

no controle de repercussões corporais.

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2.1.1. A ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica

e fisiologia

O discurso do conhecimento fisiológico da ciência legitima o iogue moderno a

abrir mão da sua antiga teoria ética para aniquilação do Mal/klesa, para o controle

deste por meio de rituais corporais de purificação ou exorcizo do klesa que vai sendo

materializado por assim dizer. Os hatha-iogues já o faziam isso na Índia medieval; o

novo, no entanto, é a ressignificação pela linguagem científica. Outro dado a recordar

são os motivos que conduziram os iogues medievais a corporificarem seus discursos.

Esse processo deveu-se na crítica que faziam ao sistema estratificado da sociedade

indiana que impedia acesso a salvação (kaivalya) de quem não pertencia a mais alta

casta social. Em outras palavras, aos indianos de castas inferiores, só lhes restavam

obedecer aos ditames bramânicos para total extinção do Mal/klesa. A motivação de

muitos líderes religiosos que participaram do movimento renascentista na Índia no

final do séc. XIX, estava, entre outros, na eliminação das diferenças das castas da

sociedade (FARQUHAR, 1915, p.387-429). Assim, parece lícito supor que o pano-

de-fundo que encobre o discurso corporificado dos iogues modernos pode estar ainda

fundado, não apenas em um simples ajuste ou adaptação simbólica, mas numa crítica

social moderna por uma parcela insatisfeita com a vida dos grandes centros urbanos.

Quando Yogananda associa o “treinamento ioguico” na diminuição dos

“batimentos cardíacos” e aniquilação de um dos klesas, pode estar ponderando sobre

o ritmo agitado da vida ocidental urbana que agora estes iogues indianos tomam

contato e, percebendo o mal à dialética saúde-salvação que esse ritmo implica aos

seus indivíduos, desenvolve novos métodos de ioga para serem aplicados a um novo

coletivo. Segundo Iyengar, “ao controlar a respiração, você está controlando a

consciência, e, ao controlar a consciência, você dá ritmo à respiração”. Como

veremos, essa moderna dialética ioguica se estabelecendo pode, como alguns

pesquisadores apontarão, transformar os klesas, o samadhi e kaivalya em conceitos

advindo da fisiologia biomédica, reformulando o Mal, a vivência espiritual e a

salvação/libertação religiosa do ioga moderno.

O iogue Yogananda faz uma releitura moderna do HIP (sutras I-41 e II-2),

dizendo que “quando não há movimento nas células, na mente ou em qualquer um dos

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vasos da alma, prevalece o que se chama de kumbhaka” (p.29, 185)21. Assim como

Kuvalayananda tentou aliar o valor religioso com o científico do ioga, Iyengar (2001)

também se dedicou às correlações entre a anatomia e a fisiologia biomédica com a

religiosidade do ioga.

aplicando-se fundamentalmente a vontade, deverá fixar-se a atenção entre sobrancelhas [shambavi mudra]; quando se utilizam afirmações do tipo intelectual, o centro da concentração será o bulbo raquídeo (centro da força vital inteligente); e as afirmações devocionais, a concentração se focará no coração. Por meio da prática dessas afirmações, adquire-se o poder de dirigir conscientemente a atenção para as fontes vitais da vontade, do pensamento e do sentimento (YOGANANDA, 2008, p.76). Concentrar-se, com os olhos fechados, na região do bulbo raquídeo, e sentir que o poder da visão, presente nos olhos, fluem através do nervo óptico para a retina. Fixar o olhar entre as sobrancelhas, imaginando que o fluxo da energia vital se dirige desde o bulbo raquídeo para os olhos, transformando estes últimos em dois focos de luz. Este exercício produz benefícios tanto físicos como mentais (Ibid., p.114).

Yogananda, desta forma, faz uma releitura de um clássico e importante mudra

da doutrina medieval do HI, o shambavi mudra, pelo prisma da fisiologia científica.

Em outra obra, Kriyananda (2007), comentando o seu guru Yogananda, volta a se

referir ao bulbo (ou medula oblonga) e ao nadi sushumna como a espinha, e prana

como energia.

(...) o caminho do despertar divino é, conforme dissemos, a espinha. A energia penetra no corpo através da medula oblonga, na base do cérebro. (...) A energia (...) transita pelos nervos [nadis] (...) até o cérebro, desce pela espinha (...). Quando, por ocasião da morte, a consciência se retira do corpo, a energia primeiro recua das extremidades para a espinha, sobe por ela e sai pela medula oblonga, deixando o corpo (p.51).

O bulbo ou medula oblonga (porção anatômica inferior do tronco encefálico e

responsável pelas funções vitais do corpo) para Yogananda possui também, um pólo

negativo e outro positivo. O primeiro, que corresponde ao ajna chackra, situa-se no

próprio bulbo; e o segundo, que o reflete, localiza-se na confluência dos três

principais nadis (ida, pingala e sushumna), que ele reinterpreta como sendo os nervos

(Ibid., p.51), da região conhecida como shambavi mudra, dentro da anatomia e da

fisiologia espiritual do ioga (WOODROFFE, 2004, p.56).

21 Grifo meu.

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Dentro desta lógica ioga-ciência que vem se edificando no microuniverso

ioguico moderno, a região cerebral do bulbo - como responsável por inúmeros nervos

motores e sensitivos cranianos - influirá também na dialética prana-citta ou energia

cósmica absorvida a cada ato respiratório e a consciência. Na próxima subseção,

perceberemos que essa corporificação da fisiologia sutil do ioga se estenderá também

a noção de klesa e a sua conversão, de conceito metafísico, ao das emoções possíveis

de serem sentidas e percebidas no corpo. Consequentemente, “materializada” e

possível de mensuração empírica - mesmo que a ciência ocidental, admitem muitos

dos iogues que entrevistei, ainda não possui mecanismos tecnológicos para isso. Se as

noções de prana, citta, nadis e demais símbolos transfisiológicos do ioga se

corporificam modernamente, é bem provável que encontremos correspondentes

fisiológicos empíricos para os klesas, samadhi e kaivalya, mesmo que sejam conceitos

ideais erigidos pela ciência.

No HIP, segundo Iyengar (2001), o ioga é prana-vrtti-nirodha (acalmar as

flutuações da respiração); já o IS afirma que ioga é citta-vrtti-nirodha (acalmar as

flutuações da mente) (p.29); assim, é lícito pensar, dentro da nova racionalidade

fisiológica religiosa do ioga moderno, que o bulbo tenha participação direta nesse

processo, como afirmam os iogues acima, pois ele (o bulbo) também é o centro

respiratório pela fisiologia biomédica. Se relembrarmos que os klesas são os

responsáveis pela produção dos vrttis, e estes, pela corporificação que o ioga vem

sofrendo, podem estar assumindo um caráter de induzir as “flutuações da mente” (IS

1:2). Dessa forma, supor a participação real dos klesas em estados

mentais/emocionais modernamente, pode ser possível.

A citação abaixo reforça a transformação da transfisiologia medieval aos

padrões ocidentais de racionalidade. Kriyananda (J. Donald Waters), um ocidental

discípulo direto de Paramahansa Yogananda, insiste no caráter empírico de ajna

chackra, quando busca demonstrar que a meditação ioguica nessa região metafísica

pode desbloquear energias espirituais no corpo. No fundo, o objetivo dos iogues

modernos está em permitir o livre fluir das energias (prana) através das suas novas

técnicas rituais. Serão, logo, elas as técnicas ioguicas - e não mais a autoridade do alto

clero – as responsáveis por eliminar as manifestações maléficas dos klesas.

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[O iogue] pode-se perguntar: o olho espiritual [ajna chackra] é puramente simbólico? Não, é real e constitui, de fato, um reflexo da medula, a partir da qual a energia desce a espinha por três nadis ou canais sutis de força vital [prana]. (...) A espinha é o canal principal por onde a energia flui. O fluxo ascendente da energia [que conduz kundalini] pode ser bloqueado por alguns plexos [chackras] na espinha, de onde ela passa para o sistema nervoso e daí para o corpo, sustentando e ativando os diferentes órgãos e membros. Quando em meditação profunda, o yogue transfere energia do corpo exterior [koshas] para a espinha e a faz subir para o cérebro [último chackra], ele encontra essa passagem bloqueada pelo fluxo externo de energia proveniente daqueles plexos (ou centros, mas que nos tratados yoguicos recebem o nome de chackras). A energia de cada chackra deve ser conduzida para a espinha a fim de prosseguir sua jornada ascendente (KRIYANANDA, 2007, p.52-53).

Kriyananda acima nos exemplifica a “realidade” das energias “bloqueadas”

com correspondentes nos plexos, coluna vertebral e glândulas, locais anatômicos

pertencentes ao conhecimento científico. Mas, o que as bloqueia agora, acreditam os

iogues modernos, são as contrações musculares, a alimentação inadequada e as

doenças. Dessa forma, os músculos relaxados pela ação de posturas ioguicas

específicas, combinados aos respiratórios (pranayamas), alimentação vegetariana

devem agir no desbloqueio de prana nos chackras e, consequentemente, no

reestabelecimento da saúde. No fundo, não devemos nos esquecer que o responsável

real por essa configuração nefasta (de energias bloqueadas) são a ação dos klesas, que

produzem o “turbilhão da mente” e permitem que doenças se instalem em nossos

corpos e mentes em desequilíbrio por uma má circulação prânica. No entanto, para se

compreender a lógica aqui se desenhando é preciso também, estimar os klesas - o mal

a ser aniquilado – como responsáveis velados desse processo. Com isso, novos bens

de salvação se configuram como uma possível reforma no modo como os iogues

modernos percebem a causa do mal que os atormenta e os afastam de kaivalya, que

representa, desde os tempos antigos, um estado perene de equilíbrio divino em sattva

ou o estado da alma/purusa imaculada.

Como exemplo da busca incessante por corporificar todas as manifestações

suprassensíveis das escrituras antigas, tomemos como exemplo os chackras. Os

chackras, vórtices de energia que canalizam e potencializam prana, sempre foram de

natureza mística, mas eles também sofreram reformulações significativas na sua

interação com o sistema de crenças da ciência. Eles (os chackras) continuam a ser

representados nos corpos transfisiológicos do ioga, mas ganharam correspondências

das mais variadas dentro da fisicalidade orgânica da fisiologia ocidental, como plexos,

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glândulas e junções celulares (gap junctions), como se observa nas pesquisas

fisiológicas modernas da religião, mas também na voz da doutrina ioguica atual.

Chakras são centros da energia espiritual. Eles estão localizados no corpo astral, mas eles possuem correspondência com centros no corpo físico também. (...) há certos plexos no corpo físico (SIVANANDA, 2000, p.7). Mais de dois milênios atrás, Patanjali deu-se conta da importância do cérebro. Ele descreveu a parte frontal como o cérebro analítico, a posterior como o cérebro do raciocínio, a inferior com a sede do estado de graça (o que, a propósito, corresponde às descobertas da ciência médica moderna, segundo a qual o hipotálamo, situado na base do encéfalo, é o centro do prazer e da dor), e a parte superior como o cérebro criativo ou sede da consciência, a nascente do ser, do ego ou do orgulho, o berço da individualidade (IYENGAR, 2001, p.174). Por meio (...) das posturas do Yoga, podemos ajudar a suprimir e aliviar a congestão dos nervos ou das vértebras (nadis), facilitando assim o livre fluxo da energia vital (prana) (YOGANANDA, 2008, p.43).

O iogue, segundo Yogananda (2009):

(...) faz circular mentalmente sua energia vital [prana] (por meio das técnicas físicas, kriyas, ásanas, mudras e pranayamas), em direção ascendente e descendente, ao redor dos seis centros da coluna vertebral [chackras] (plexos medular, cervical, dorsal, lombar, sacral e coccígeo)” (p.248).

Percebe-se as aproximações que as escrituras ioguicas modernas se esforçam

em estabelecer com a fisiologia biomédica ocidental. De certa forma, estes adquirem

aspectos milenaristas e têm ultrapassado as simples analogias anatômicas. Há,

portanto, uma esperança (e fé) de que a ciência “comprove” os benefícios do ioga

como caminho espiritual. Mais do que isso, que a ciência alie-se ao ioga –

demonstrando a eficácia de suas práticas espirituais – no combate ao Mal/klesa. Com

isso em mente, o Mal/klesa não pode continuar centrado em condutas éticas pautadas

por brâmanes indianos do séc.II a.C.; o Mal/klesa precisa também ser ressignificado.

Se, como já sabemos, os klesas impedem o acesso a kaivalya pois produzem “agitação

mental”, é necessário que o sistema nervoso autônomo, responsável por induzir

involuntariamente – desse modo, por forças que não cabe a nenhum indivíduo

controlar – o indesejável movimento mental, estar associado a forças e localizações de

uma anatomia transcendente. O respirar e o prana agora serão associados como

mediadores dos mundos material e espiritual. Assim, as posturas e os respiratórios do

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ioga adquirem agora os responsáveis por conduzir, durante as práticas corporais, seus

praticantes, igualmente, a um espaço transitório de acesso ao espiritual.

2.1.2. A ciência legitima o discurso religioso do ioga

No plano fisiológico, pingala corresponde ao sistema nervoso simpático; ida, ao parassimpático; e susumna, ao sistema nervoso central. A frieza atribuída a ida [pois, corresponde dentro da representação simbólica da fisiologia do HI medieval como chandra-nadi, ou “canal da lua; e pingala como surya-nadi, ou “canal do sol”] no HIP é explicada, pela ciência moderna, em virtude de sua ligação com o hipotálamo, situado na base do cérebro, e que é o centro responsável pela manutenção da temperatura estável do corpo. Assim, o hipotálamo é o plexo lunar, do qual desce ida, assim como pingala ascende de sua base no plexo solar. Susumna corresponde ao sistema nervoso central, e essa energia divina, produzida pela fusão de ida e pingala, é vista como energia elétrica (kundalini [nota autor]), segundo a fisiologia. Susumna existe em todas as partes do corpo e não apenas na espinha, porque o sistema nervoso central age em todo o organismo (IYENGAR, 2001, p.188-190).

O pranayama está na fronteira entre os mundos material e espiritual, e o [músculo do] diafragma é o ponto de encontro dos planos fisiológico e espiritual do seu corpo. Lembre que kumbhaka não é segurar o fôlego; é reter energia [prana] (Ibid., p.186).

Kuvalayananda (2008), nos seus comentários, faz extensas exposições

fisiológico-anatômicas precisas e condizentes com o pensamento da ciência ocidental,

e desfere duras críticas aos seus companheiros de fé que descrevem a fisiologia

espiritual das práticas ioguicas como “crenças populares”, pois não estão pautadas,

segundo ele, em pesquisas laboratoriais sob a perspectiva da lógica ocidental, como

ele o faz (p.104 em notas). No entanto, frequentemente e ao longo de seus principais

livros (Asana e Pranayamas), não deixa de salientar o “valor espiritual” do ásana e

do pranayama. Essa ambivalência (CRUZ, 2008, p.13) 22 acompanha os iogues

modernos e, o que pode parecer uma contradição, se revelará adiante, uma posição

ideológica de legitimação importante ao microuniverso religioso do ioga que vem se

configurando contemporaneamente. Os iogues modernos lutam por desvencilhar-se da

magia hinduísta medieval, mas esse desencantamento se revelará na substituição por

novas crenças igualmente mágicas, mas fundamentadas numa nova proposta de

22 Ver uma discussão aprofundada sobre a “dupla face” da realidade.

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salvação/libertação estabelecida entre a dialética saúde-Bem-equilíbrio-Kaivalya e

doença-Mal-desequilíbrio-klesa.

[Paschimatana é executado quando] Sentado, o estudante mantêm as pernas esticadas e unidas. Inclina então o tronco um pouco para a frente, forma um gancho com os dedos indicadores e segura com eles os grandes artelhos com os dedos assegura não só o completo relaxamento, como também um completo estiramento dos músculos posteriores das pernas (Ibid., p.120). A Paschimatana é considerada de grande valor espiritual. São conhecidos casos em que sua prática por cultores espiritualistas permitiu que o praticante ouvisse o Anahata Dhvani, isto é, o som sutil. O tempo de permanência na Paschimatana deve ser criteriosamente regulado. Quando continuado por muito tempo, causará prisão de ventre. Para finalidades espirituais, entretanto, esta Asana deverá ser praticada diariamente por mais de uma hora (Ibid., p.122).

Como exemplo, selecionou-se do seu livro Asanas alguns trechos que

esclarecem a ambivalência originada pelas pesquisas fisiológicas empíricas ocidentais

que se querem mostrar, sobre o uddiyana bandha e paschimotanasana (ou

paschimatana). Percebe-se claramente que os ásanas possuem a capacidade de

induzir ao relaxamento e liberar o aprisionamento de prana, ao mesmo tempo que

essa falha no fluxo energético prânico possui extensões terapêuticas, como a prisão de

ventre. Se a agitação da mente é fruto agora da manifestação física dos klesas, as

práticas corporais do ioga (fundadas em posturas, respiratórios e meditação) resultam

em um profundo relaxamento documentado pela ciência da fisiologia biomédica. O

kaivalya deve estar em algum ponto advindo do relaxamento psicofísico, um estado

no qual os klesas cessem definitivamente de atuar e o equilíbrio de purusa manifeste-

se.

Em Asanas, por exemplo, Kuvalayananda (2005) dedica um capítulo inteiro ao

“Estudo científico das posturas yóguicas” (p.147-164), dividindo os ásanas em

“Meditativos” e “Culturais”. O objetivo das posturas Culturais é puramente orgânico,

segundo o autor. Kuvalayananda descreve toda a sua formação em pesquisas

empíricas da fisiologia ocidental aplicada a investigar e propalar os benefícios

terapêuticos, em particular do fortalecimento e alongamento da coluna vertebral,

assim como as posições anatômicas e as inserções articulares e os principais grupos

musculares envolvidos. No aspecto Meditativo dos ásanas, o alvo é estabelecer-se

numa postura confortável para a execução dos pranayamas e dos estados

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contemplativos do ioga, respeitando toda a tradição antiga ioguica desde Patanjali. No

entanto, entre as narrações altamente versadas sobre a ciência biomédica e as suas

observações, surgem demonstrações pautadas em uma fisiologia transfisiológica e não

na fisiologia científica. Por exemplo, após descrever que os ásanas Culturais têm por

objetivo fortalecer a coluna, influenciar as áreas cerebrais e produzir “o mais alto

vigor orgânico para todo o corpo”, esclarece que isto deve ocorrer para que ambas

“possam suportar a interação da força espiritual do kundalini, quando a mesma for

despertada pelas práticas yoguicas adiantadas” (Ibid., p.147)23.

Esse aumento do suprimento sanguíneo e o consequente fortalecimento dos nervos é responsável até certo ponto pelo despertar de Kundalini (KUVALAYANANDA, 2005, p.162). Isso não significa que os ateus não possam praticar as posturas yoguicas. Queremos dizer, portanto, sendo todos os outros fatores iguais (doutrina e fé), um genuíno “teísta” poderá praticar os asanas com maiores vantagens que um ateu (KUVALAYANANDA, 2005, p.50 em notas).

Essa dialética, entre o que é ciência e o que faz parte da espiritualidade

ioguica, conduziu os iogues modernos a uma situação singular, pois mesmo a

fisiologia científica não explicando, por si só, a fisiologia transfisiológica dos nadis,

da kundalini e dos chackras, eles (os iogues) não deixaram de associar as suas

escrituras religiosas da profana e secularizante ciência. Mas por que arriscaram-se a

desencantar a sua religiosidade e transformar seus rituais corporais de transcendência

numa simples terapêutica a serviço exclusivamente da biomedicina ocidental

(ALTER, 2004, p.76)? A resposta é simples: proselitismo religioso e fé. Os iogues

modernos acreditam em suas práticas corporais como transformadoras de indivíduos,

e se fortalecem ainda mais quando respaldados pelos resultados positivos que a

ciência biomédica revela sobre as suas práticas e terapia de doenças.

O ambicioso objetivo de Swami Kuvalayananda, (...) era alcançar uma reconstrução espiritual da sociedade em escala mundial. (...) Estes experimentos [científicos empíricos] o convenceram de que a antiga ciência do Yoga, abordada pelos métodos experimentais da ciência moderna, poderia ajudar a humanidade a revivescer física e espiritualmente. Esta se tornou a missão de sua vida (KUVALAYANANDA, 2008, p.2-3).

23 Grifo meu.

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O ioga moderno, conclui Strauss (2008), parece ter causado uma reorientação

fundamental baseada numa “nova teoria para uma antiga prática”, convidando a sua

comunidade a exercer a sua religiosidade ao lado também dos avanços da ciência,

sobretudo da fisiologia biomédica empírica (p.49-74). A secularização trazida pelo

contato com a ciência associada à privatização religiosa presente nas sociedades

ocidentais originou reformas profundas na disputa, produção e manutenção dos bens

de salvação e soteriologia do ioga na modernidade. Por isso, o ioga pode não estar

mais sendo acolhido pelo hinduísmo e nem por nenhuma outra espiritualidade que lhe

dê legitimidade de discurso (JAIN, 2014, p.130-157), não porque não tenha

legitimidade espiritual, mas porque talvez esteja se configurando como um novo

movimento religioso.

O discurso ioguico vai se pautando na ciência da fisiologia biomédica, não

apenas para erigir um “novo discurso coerente” e desmistificado, mas talvez,

igualmente como os iogues medievais o fizeram em seu tempo, para reformular a

sociedade urbana ocidental de sistema capitalista de consumo e economia neoliberal

em que foram transplantados. O Mal/klesa, samadhi e kaivalya podem estar

modificados agora, pois o alvo não está mais apontado para o alto clero indiano que

mantinham rígidos princípios éticos e uma sociedade em castas sem mobilidade social

(LIBERMAN, 2008, p.100-115). O ioga moderno podem estar se desvinculando dos

seus antigos laços hinduístas e erigindo novos contornos espirituais. Alguns autores

inclusive já o identificam como uma nova prática religiosa do corpo (JAIN, 2014,

p.95-129), uma religião mística (NEWCOMBE, 2004) e/ou uma religião secular com

rituais de cura (DeMICHELIS, 2004, p.248-260).

2.2 - Teoria dos klesas corporificada: sinônimo de estresse e emoções

Iyengar, um dos iogues modernos mais influentes nas sociedades ocidentais,

descreve no capítulo Bem-Aventurança: O corpo divino, do seu livro Luz na Vida: A

jornada do ioga para a integridade, os klesas com sensíveis transformações. Uma das

primeiras influências que se percebe está em relação ao recurso literário da

comparação com o cristianismo. Iyengar (2006, p.188) se utiliza de uma parábola de

Jesus para explicar o sentido do klesa-mãe, a Ignorância:

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O Senhor Jesus explica isso bem (a Ignorância). Ele disse que se você construir a sua casa na areia, isso vai ceder. Se você construir ela na rocha, vai ficar firme. Isso significa que a vida precisa ser erigida em uma fundação firme da realidade. Infelizmente, o que parece firme, isto é, as coisas da vida que nos oferecem segurança , riqueza, posses, preconceitos, crenças, privilégio e posição, não são sólidos em tudo. Que remete para quando eu disse que aprender a viver com a incerteza é a grande arte de viver. Jesus também quis dizer que, somente uma vida construída sobre valores espirituais estará baseada firmemente na verdade e vai se manter de pé até aos choques da vida.

Para Iyengar, os klesas são como forças do mal inatas nos seres humanos no

qual as sociedades ocidentais associam ao Demônio, ele diz. O Mal/klesas seria

responsável por causar as “flutuações da consciência”, como já elencamos. Conduzir

a vida baseada na Ignorância, no Medo da morte, no Apego, na Aversão e no Orgulho

é como construir uma casa na areia, compara. E continua, o “demônio no ioga”

(klesa) é alienado ou alienante: “Ele [klesa] é ignorante. Na verdade, ele é a

Ignorância dele mesmo. Para os hindus, o arquinimigo é o estado do não-

conhecimento” (IYENGAR et.al., 2005, p.190).

Para explicar os klesas, Iyengar também se utiliza de comparações corporais

com a saúde e áreas encefálicas específicas. O klesa Medo da morte, por exemplo,

possui existência, acredita, em nível psicobiológico e corresponde aos lobos

posteriores do cérebro pelas mesmas razões que os chackras foram associados às

glândulas e os nadis ao sistema nervoso:

Abhinivesa (medo da morte) é um instintivo apego a vida. Abhinivesa pode facilmente ser experienciado se você prolongar bastante a retenção no fim da exalação. O pânico se instala. Isso é ignorância, ou um equívoco fundamental da Realidade, que sustenta e alimenta todas as outras aflições (IYENGAR et.al., 2005, p.199).

A Ignorância (avidya) e a Falsa identidade de si-mesmo (asmita), possuem

correlação aflitiva na porção encefálica da “inteligência” (Ibid., p.196): “Aqui a falta

do conhecimento espiritual combinado com orgulho ou arrogância inflam o ego,

causando presunção e a perda do senso do eu em harmonia”. O klesa Apego (raga)

produz na mente o desejo, enquanto o klesa Aversão, (dvesa), ódio. Essas klesas,

segundo Iyengar:

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Produzem uma desarmonia entre o corpo e a mente, nos quais podem originar desordens psicossomáticas. (...) E ambos os klesas, possuem correspondentes cerebrais no hipotálamo (Ibid.).

Iyengar conclui em sua análise moderna aos klesas, que “devemos manter o

nosso corpo tão saudável quanto possível no caminho espiritual”, pois na doença nós

esquecemos nossos corpos e os klesas, constantemente modificados pelos estímulos

externos, causam flutuações em nossos ciclos respiratórios e consciências – portanto,

ao fluxo prânico, como vimos na subseção anterior - corrompendo nossas vidas e

viciando nossas melhores intenções.

O que sublinhei em suas duas citações anteriores (harmonia e desarmonia) é

crucial para o nosso entendimento da reforma em andamento, pois Iyengar segue o

mesmo caminho que descrevemos no início deste capítulo, de associar os antigos

conceitos transfisiológicos do ioga com os da fisiologia biomédica, no entanto, com

relação aos klesas, não ocorre uma simples ressignificação, mas uma verdadeira

reforma em como percebê-los, senti-los e combate-los. Os klesas como Mal para

Iyengar, por “agitar a consciência”, influi na harmonia do(s) nosso(s) corpo(s) através

do bloqueio de prana pelo mal funcionamento (fisiologia, lit. estudo do

funcionamento do corpo) dos chackras (agora, glândulas e plexos com influência no

sistema nervoso autônomo, como vimos). Em última instância, kaivalya relaciona-se

de alguma forma com a harmonia perene do corpo fisiológico, pois com o diálogo

saúde-salvação estabelecido, as doenças nos afastam de kaivalya para Iyengar.

Com a corporificação do klesa e a medicalização do ioga - em menor valor

com a ayurveda e com maior intensidade com a biomedicina ocidental -, percebe-se,

como argumentaremos no quarto capítulo, uma preocupação em observar as reações

psicofísicas com a perda de certa harmonia fisiológica perene inata aos seres

humanos, acreditam os iogues, que associarei ao estado de kaivalya, a libertação final

do sofrimento. Mais do que observância nos comportamentos éticos contidos, por

exemplo, nos yamas e niyamas (os dois primeiros passos do AI, a proposta antiga de

Patanjali para um iogue se safar do sofrimento advindo do ciclo de samsara ou

reencarnações), a questão se privatiza e é transferida para a prática corporal

propriamente dita.

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Ao que tudo indica, as práticas corporais do ioga, estariam voltadas como

rituais “purificadoras” das forças maléficas dos klesas, ao mesmo tempo que

solidificariam a vida ioguica na “rocha da verdade”, parafraseando Iyengar em sua

analogia dos klesas com a parábola de Jesus. Há inclusive um dos métodos/tradições

de ioga mais populares no mundo, o Asthanga Vinyasa Yoga, que se destaca por suas

rígidas séries de posturas combinadas com respiratório (ujjay), contrações musculares

específicas (bandhas) e saltos (os vinyasas), aonde o objetivo está literalmente – e

fisiologicamente - elevar o calor físico, para assim “eliminar substâncias nocivas ao

corpo” através de tapas. A orientação é praticar com janelas e portas fechadas para

suar ou produzir tapas como purificador. A expressão tapas, lit. significa austeridade,

mas como deriva da palavra tap, pode exprimir “fornecer calor” ou ainda “fazer-se

quente” (SMITH, 2008, p.143-150).

Tapas provê ao devoto um “calor na cabeça” [head heat], transformando-o em um vidente. De um modo semelhante, o esforço da prática ascética acende o “fogo interior” [inner fire] da iluminação, em uma visão de êxtase. Como o rsis [místicos hindus que escreveram os textos religiosos do hinduísmo], o asceta, através de tapas, é capaz de “ver”. Neste contexto, tapas adquire a forma de um “meditar cognitivo” [cognitive brooding], ou “intensa meditação”. O poder aqui empregado para tapas é claramente de “poder contemplativo” (KAEBLER, 1989, p.145-146)

Com o calor corporal gerado pela prática ioguica, o praticante pode alcançar a

iluminação e ser capaz de “ver” como os antigos místicos hindus. Em outras palavras,

para o ioga moderno, desde os hatha-iogues, o corpo vem adquirindo caráter não só

de “templo divino”, mas de referência de caminho espiritual e determinante no

alcance a kaivalya ou o estado permanente de equilíbrio. Outro ponto são as práticas

corporais do ioga como rituais de cura, como já apontou DeMichelis e descreveremos

melhor no quinto capítulo. Desse modo, o samadhi, como vivência transitória do

cessar do citta-vrttis (ou agitação mental), torna-se não somente de “cura de doenças”,

mas principalmente da eliminação do Mal/klesas como resultado das suas práticas de

corpo. Com a materialização dos klesas, os valores espirituais do ioga se desprendem

das crenças metafísicas das suas antigas escrituras, transformando a saúde em

referência do Bem e a doença, sinônimo do Mal, portanto, dos klesas.

Em outro artigo mais sofisticado, a filósofa da religião Anindita Balsev

aproxima os klesas aos conceitos da emoção. A sua análise nos permite compreender

como a noção dos klesas, samadhi e kaivalya podem estar atualmente atrelando a

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soteriologia do ioga ao corpo, aonde, como expusemos acima, suas práticas se

transformaram em rituais de cura e purificação.

A autora inicia nos lembrando que um dos comentaristas mais famosos e

citados do IS, Vyasa, revela que o objetivo do ioga é diminuir as agitações da mente,

no entanto, ele diz: “O rio chamado mente flui em duas direções” (BALSEV, 1991). E

Balsev nos explica:

A imagem das “duas direções” transformam o fluxo da vida mental... As duas direções são primeiro caracterizadas como fluindo em direção ao bom e através do mal (vahati kalyaanaaya vahati papaayaca), pelos quais expressam primariamente uma consideração ética. (...) fluir em direção a discriminação (viveka) e isolamento/salvação (kaivalya) é bom, enquanto o que nos prende na existência neste mundo (samsara) é o mal, claramente indicando uma proposta soteriológica. (...) Esta metáfora da mente como um rio em duas direções, porém, adquire um significado técnico no Yoga-Sutras introduzindo uma divisão dos estados da mente, classificando-as em dois grupos: klista [ou klesa/dor/Mal] e aklista-vrtti [não-klesa-vrtti/não-sofrimento].

Em outras palavras, Balsev argumenta que a palavra klesa é usada sempre

como sinônimo de dukha ou sofrimento, mas que não é meramente o oposto de sukha

ou prazer. O significado de klesa é uma oposição à busca salvacionista/libertadora em

direção ao rompimento do ciclo de samsara ou renascimentos, o que significa se

apropriar do estado de kaivalya. Teríamos então uma busca por kaivalya não somente

pela atenuação do apego, da aversão, do medo da morte e do orgulho, causados pela

ignorância, mas na igualmente busca dos seus opostos ou aklista-vrtti – o movimento

da mente para longe do sofrimento, de klesa. Por isso, a autora vai buscar os

correspondentes emocionais dos klesas para trabalhar com a ideia que certas emoções

seriam nefastas por nos acorrentar na agitação da mente e, por conseguinte, nos

enredar no ciclo de samsara.

Como os klesas aparecem, pergunta Balsev. Os IS afirmam ser o klesa-

Ignorância, a mãe de todos os outros klesas. Desse modo, a filósofa argumenta que a

aversão adviria das sementes da dor e a falsa cognição que certos objetos da mente,

associados a dor, causariam sempre sofrimento, por isso nos manteríamos afastados,

em aversão a eles. Assim, objetos mentais denominados de klesa-Aversão estariam

associados aos sentimentos de retaliação, de malícia, da vingança e do ódio, centros,

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portanto, dos klesas Apego e Aversão, aonde o desejo e o prazer seriam os núcleos

emocionais destes.

Para a autora, o klesa Medo da morte, incidiria do temor angustiante dos seres

humanos em saber que vão morrer mas não quando. O klesa-Senso do Eu ou Orgulho,

estaria no erro de julgamento, segundo a autora, da base intelectiva para os três erros

de julgamento anteriores, pois tanto o desejo, quanto ódio ou o medo estariam

centrados em nosso ego individual que não percebe ainda que somos purusa, o ser

Imaculado e em equilíbrio e harmonia eternos (sattva), por isso associa o klesa-

Orgulho ao sentimento do egoísmo.

Estas quatro aflições, comenta Balsev, não estão sempre presentes em suas

formas totalmente manifestas. Em tom psicanalítico, continua, a descrição dos klesas

encontradas no IS 2:4, descrevem-nos de forma dormentes (prasupra), atenuados

(tanu), interceptados (vicchinna) e manifestos plenamente (udaara). Este é, de fato,

um aspecto significativo da análise dos klesas no ioga em conexão com a perspectiva

transcultural do estudo da emoção que a filósofa conduz em sua argumentação:

A mente, como o Yoga o vê, é naturalmente atraído em direção a samsara. A mente é cativa dos Klesas. Suas modificações incessantes estão, em grande parte, ligados a isso. Egoísmo, desejo, ódio e medo dominam a vida mental, mal dando-lhe uma chance para discriminar a si mesmo. Assim, falhando por causa da ignorância em descobrir a sua fundação não intencional (o purusa) carrega a ideia errônea sobre a natureza do eu: raiz do do Klesa asmita [ignorância]. Este, por sua vez, envolve-se mais com as polaridades que são características do redemoinho de existência que é samsara. Virtude e vício, prazer e dor, e apego e aversão são os seis raios da roda de samsara [ou ciclo de renascimentos]. Transcendendo o papel psicológico e ético da vida mental, a descrição soteriológica emerge. A vida mental é percebida não apenas como uma teia de estados coloridos com aflições; estes são interceptados por aqueles que se opõem a esta tendência. Para usar o imaginário do Yoga, estes aklista vrttis (movimento da mente não causador do sofrimento) produzem brechas que podem orientar para o conhecimento discriminativo (viveka) e para a salvação [kaivalya].

Em resumo, pode-se pensar que há emoções que deveriam ser cultivadas para

ajudar diretamente na criação de um estado de espírito apropriado, portanto, útil para

a prática de ioga. Seriam estas emoções que, gradualmente e eventualmente,

“purgariam” a mente de suas impurezas. Dispondo os klesas como emoções, Balsev

argumenta, a partir da sua interpretação do IS, que não seriam meramente

consequência de uma ação, mas os principais responsáveis (motivação) pelas ações

humanas, uma espécie de aspecto natural dos seres humanos ainda enredados na

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ilusão ou alienação da vida espiritual (maya). Os klesas não teriam, desta forma,

valores morais ou imorais, racionais ou irracionais, mas ativamente propulsores de

ações e responsáveis pela permanência dos homens e mulheres em samsara. Balsev

esclarece que a mente, no ioga, seria espontaneamente cativa dos klesas. Purusa ou

alma, que é imaculada e perene, ou seja, não contaminada por prakrti ou

corpo/emoções, é o objetivo do ioga. Kaivalya, então, seria o retorno da nossa

consciência, livre das perturbações emocionais dos klesas (egoísmo, desejo, ódio e

medo), ao estado de equilíbrio eterno de purusa ou alma. Sendo a Ignorância, a matriz

dos klesas, a busca espiritual ioguica é conhecer a verdade que está por trás das

perturbações mentais advindas dos klesas (BALSEV, 1991).

Outro ponto ressaltado pela autora está não somente na pura e simples “cessar

da mente”, mas do cessar do fluir da mente presa na “direção” das emoções atreladas

aos klesas. Assim, as práticas do ioga devem conduzir o devoto a cessar a influência

dos klesas, mas correr em direção ao fluxo das emoções opostas aos klesas, ou seja,

do apego-desejo, aversão-ódio, medo da morte ao medo como “resposta biológica” e

orgulho-egoísmo. Em suma, da fuga do mal em busca do bem. As práticas de ioga

seriam então rituais de cura também dessas emoções deletérias para a proposta da

vida ioguica que vale a pena ser vivida.

A partir dessa análise e das colocações de Iyengar anteriormente, que

associam os klesas com enfermidade, a prática corporal moderna do ioga parece se

tornar um ritual exorcista das emoções do medo, do ódio, do desejo e do egoísmo que,

por sua vez, possuiriam extensões negativas ao fluir de prana pelos chackras e a

elevação consequente, dos níveis de estresse, fruto de tensões musculares. Mas qual a

relação sendo estabelecida entre essas emoções/klesas apresentadas por Balsev, com a

manifestação de doenças psicofísicas?

2.3 - Klesa e estresse

Nas ciências da religião, pesquisas revelam a ocorrência do entrelaçamento

entre doença-sagrado, medicina-religião e cura-salvação em diversas religiões

(FULLER, 2008, p.131-152; LAPLANTINE, 2011, p.213-252). A cientista Sarah

Strauss corrobora essas aproximações com o ioga moderno nos esclarecendo que no

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ioga moderno a doença seria uma espécie de sintoma a um sentir-se mal, angústia ou

dor incorporada (STRAUSS, 2008), talvez um mal-estar. Dessa forma, é legítimo

explorar o provável diálogo estabelecido modernamente entre as noções da

experiência do mal/angústia/dor e de certas emoções nefastas, como o fez Balsev,

e/ou conceito de estresse, originado na obstrução prânica devido aos bloqueios

psicofísicos descritos por Iyengar e todos os líderes do ioga que citamos.

Segundo R.T. Rao, mas corroborado por outros pesquisadores, os klesas

poderiam hoje estabelecer correspondência ao agente estressor ou estresse

propriamente dito; e dukha (lit.dor), à experiência dolorosa ou o próprio sofrimento

espiritual advindo dos nocivos comportamentos dos klesas. O asthanga ioga (AI) - os

oito princípios espirituais do ioga clássico 24 - por sua vez, poderia estar sendo

versado, dentro da comunidade ioguica atual, como as técnicas para dominar e

eliminar tanto as emoções-klesa quanto o estresse originado por essa dialética do mal

(BHAVANANI, 2007; RAO, 2012).

Essas observações - considerar o estresse como sinônimo de klesa ou resultado

de certas emoções -, por outro lado, nos faz concluir equivocadamente que toda a

manifestação fisiológica do estresse seria nefasta para a vida humana ou produtora do

desejo, do ódio, do medo ou egoísmo – e ainda considerar essas emoções sempre

como moralmente condenáveis para a vida humana; o que é uma inverdade, ao menos

não-científica por ser irrefutável. Todavia o estresse especificamente, na perspectiva

estrita da biologia, nunca foi compreendido assim. O estresse como sinônimo só de

doença é uma noção popularizada sem o devido respaldo da ciência e, talvez

incorporada de alguma forma ao complexo sistema de crenças do ioga moderno.

Os klesas até o surgir da modernidade sempre foi sinônimo de cinco aflições

espirituais responsáveis por perpetuar o estado de servidão ou sofrimento humano em

samsara (SCHONFELD, 2010). Assim, é plausível pensar nos comportamentos dos

klesas adquirindo outras conotações se estabelecendo a resposta biológica do estresse,

de emoções nefastas, bloqueios energéticos sutis, contrações neuromusculares

crônicas e manifestações de doença. Por força, talvez, da agitação das grandes cidades

urbanas, local este aonde o ioga moderno se populariza, o estresse pode estar sendo

24 Yamas, Niyamas, Asanas, Pranayamas, Prathyahara, Dharana, Dhyana e Samadhi.

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associado como grande causador das moléstias do mundo, por isso, fonte das nefastas

emoções de ódio, egoísmo, desejo e medo. Mas, o estresse causador de doenças é uma

construção moderna e não nasce da fisiologia biomédica, mas de construções

contemporâneas do senso-comum.

2.3.1 - Estresse biológico

Em 1916, o fisiologista norte-americano Walter Cannon apresenta pela

primeira vez o termo estresse num artigo publicado na revista Nature, no intento de

elucidar uma resposta fisiológica natural de emergência dos seres vivos, contida na

sua hoje clássica, teoria de luta-ou-fuga (CANNON, 1927). Em 1932, o mesmo autor

denomina de homeostase (homeo stasis ou estado de equilíbrio) a capacidade do

organismo em preservar um conjunto de mecanismos regulatórios que mantém a

constituição do seu meio interno dentro de limites adequados para a sua sobrevivência

que pode ser rompido em situações estressantes, como hipoglicemia, um leão

correndo para nos atacar ou uma fatura vencida por dificuldade financeira.

Assim, o conceito de homeostase é um estado psicofísico ideal, nunca

alcançável, pois nosso organismo está a todo instante numa luta intensa de busca pelo

equilíbrio dinâmico de suas forças, estado este (homeostase) só alcançado

definitivamente na morte. Quando acordamos por exemplo, depois de oito horas de

sono, nossos níveis de glicose estão baixíssimos – o que denominamos de

hipoglicemia, por isso, em desajuste fisiológico e longe dos níveis ideais de

homeostase. A hipoglicemia aciona o nosso eixo-do-estresse e mecanismos

fisiológicos regulatórios inatos entram em ação. Nesse momento, até tomarmos nosso

desjejum, a fisiologia humana busca mecanismos compensatórios ao agente estressor

hipoglicemia. Em outras palavras, de restituir o estado fisiológico ideal e utópico de

“harmonia” ou homeostase. No estado estressante hipoglicêmico, o pâncreas inibe a

secreção do hormônio insulina (responsável por transportar a glicose do sangue para

as células) e aciona o seu antagonista, o hormônio glucagon. O glucagon secretado

pelo pâncreas, por sua vez, vai direto ao fígado degradar o glicogênio estocado e

ofertá-lo na forma de glicose (a menor parte molecular do glicogênio). Quando esse

processo atinge níveis satisfatórios de glicose circulante no sangue, quimioreceptores

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de glicose informam ao sistema nervoso central que inibe o glucagon e aciona

novamente o hormônio insulina a entrar em ação e transportar essa glicose para as

células e reestabelecer a homeostase desse sistema. Mas o processo continua, pois no

desjejum os sistemas digestórios são acionados e, após alimentar-se, o fígado

precisará processar as gorduras e carboidratos excedentes na forma de glicogênio no

fígado, aguardando um novo momento de hipoglicemia. Em suma, apesar de

exaustiva a descrição, o que saliento é a presença constante do estresse/Mal e da

homeostase/Bem atuando no teatro do corpo, no qual os iogues transplantaram – não

somente como metáfora, como vimos até então – da linguagem neutra da fisiologia

biomédica da ciência para a simbologia da sua fisiologia religiosa, sutil ou metafísica.

É lícito supor, que o klesa como estresse ou emoções específicas, é uma narrativa

religiosa moderna do ioga.

Hans Seyle em 1936, concordou com Cannon, mas ampliou a concepção de

estresse classificando-a em três fases distintas: 1) Alarme: quando o organismo reage

instintivamente a um agente estressor qualquer na resposta de luta-fuga e rompe a sua

homeostase, esse equilíbrio dinâmico do organismo; 2) Adaptativa: manifesta no

momento em que organismo gera uma resposta satisfatória e “equilibra” novamente

seu estado homeostático; e 3) Crônica: um estado em que a resposta fisiológica ao

agente estressor não é suficiente ao organismo retomar seu estado homeostático

normal. Segundo Seyle e Cannon, mas ainda válido na atual fisiologia, seria somente

na terceira fase (a crônica) em que o estresse, como resposta orgânica natural, poderia

refletir negativamente sobre a saúde do organismo e, inclusive desenvolver respostas

emocionais negativas a saúde do indivíduo, como o medo, a raiva, a fome e a dor (ver

CANNON, 1927; SEYLE, 1976), impossíveis de não serem associadas pela

interpretação de Balsev. Walter Cannon, logo, assim como os iogues, também

associou emoções com a manifestação do estresse. Os iogues modernos podem estar

ajustando a causa do mal de sua soteriologia, ou seja, os klesas, a doenças associadas

ao estresse como ansiedade e a depressão, frutos agora, do ódio, do desejo, do medo e

do egoísmo (PINEL, 2005, p.459-465; ver SAPOLSKY, 2008).

Assim, enquanto o estresse biológico é um estado fisiológico normal e neutro

na fisiologia humana, na sua maioria benéfico para a manutenção da vida, como

quando nos prepara para um jogging ou enfrentar uma banca de defesa de doutorado;

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é somente em situações extenuantes e persistentes, desvantajoso à saúde. O estresse

ioguico, por outro lado, revelado por R.T. Rao e Bhavanani como sinônimo de klesa,

assim como os klesas-emoções negativas de Balsev, fica evidente se tratar de uma

nova concepção criada no seio da religiosidade ioguica moderna. Há, logo, um hiato

entre o que iogues e biólogos compreendem sobre a noção de estresse e emoções.

Além disso, os iogues tendem a associar as manifestações psicofisiológicas de

estresse e das emoções sem perder de vista as suas antigas crenças em corpos

metafísicos e energias transfisiológicas como o demonstrei na subseção anterior

(BHAVANANI, 2007, p.30-40), algo inadmissível no meio acadêmico.

Dois fatos interligados podem esclarecer melhor a contenda que busco expor

entre o cenário aparentemente sereno que envolve o ioga e a ciência. A primeira diz

respeito à resposta psicofisiológica de relaxamento que a ciência propala como

resultado empírico dos ritos corporais ioguicos modernos, portanto, uma resposta

“cientificamente” antagônica ao do estresse biológico, mas de estreita relação com a

ideia de homeostase revelada anteriormente. E a segunda, reside na permanência da

crença em energias tranfisiológicas, sobretudo prana, entre os iogues modernos

(FULLER, 2008, p.133-150; SAMUEL & JOHNSTON, 2013). O relaxamento,

resultado inequívoco das práticas ioguicas, pois legitimado pela fisiologia ocidental, e

a crença em energias transfisiológicas são peças chaves na elucidação da questão

klesa-estresse-emoção-ignorância e kaivalya-homeostase-conhecimento.

2.3.2 - Relaxamento

Walter Cannon alertava, ainda 1919, sobre as consequências fisiológicas que

sofremos sob estresse, mesmo que em estado natural de sobrevivência, não se

tratando de estresse crônico. Ainda assim, o processo digestivo, por exemplo, sofreria

forte influência quando - ainda que mentalmente, e não apenas de forma ambiental –

manifestamos certas emoções inatas. Isso diz que, quando com raiva, medo, fome e

dor, nosso corpo reage também com a mesma resposta fisiológica do estresse, pois

representam para o organismo, por milhares de anos de evolução humana, essas

emoções foram associadas ao perigo da morte (CANNON, 1927).

Neil Jacobson, em 1932 compilava em seus livros títulos imperativos como

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You Must Relax: Practical Methods for Reducing the Tensions of Modern Living,

aonde alertava sobre a necessidade do momento de relaxamento para as tensões

ocasionadas pela vida moderna. Eles construiu teorias importantes sobre os “Nervos

da Guerra”, por exemplo, devido a sua preocupação como medo que assombrava na

época, ou o excesso de estresse sofrido por aqueles que passavam horas trabalhando

em hospitais de guerra e cuidando de soldados feridos (JACOBSON, 1934).

Para Petho Sandor, médico húngaro que desenvolve o método terapêutico do

toque sutil e leciona na Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Sandor percebeu enquanto tocava partes do corpo durante o atendimento em feridos

da segunda grande guerra, uma benéfica resposta ao relaxamento. Assim, desenvolveu

seu método psicoanalítico aonde o relaxamento ocupa uma posição de destaque em

suas obras de psicologia. Ele analisa as comutações dos processos fisiológicos

associados ao relaxamento: suas autoregulações psicofisiológicas, aquisição e

manutenção de memórias, mas sobretudo, em como os processos de relaxamento

atuam sobre a afetividade humana. O resultado clínico, segundo o autor, além do

descanso em nível fisiológico de equilíbrio orgânico, atinge processos inconscientes

que auxiliam na introspecção dos pacientes a reproduzir de forma construtiva antigas

vivências, emoções e sentimentos, promovendo assim, novas coordenações e

estruturações psicobiológicas (SANDOR, 1974).

O método de Sandor pretende pelo relaxamento progressive conduzir o

paciente a experimentar “um outro modo de relacionamento consigo mesmo, e com o

mundo circundante, e a enfrentar as tensões que lhe eram pouco conscientes” (Ibid.,

p.13). Por influência das couraças neuromusculares do caráter de W.Reich e da

“energia psíquica” de G.Jung – dentre outros -, o autor visa pelo relaxamento, o

paciente voltar a viver e a experimentar as situações que o angustiam, para que assim,

“seja expectador de suas próprias vivências internas desatando ao mesmo tempo

certas inibições, principalmente corticais, que podem se manifestar como crítica,

ceticismo e intelectualização exagerada.” (Ibid.). Através das sessões

psicoterapeuticas de relaxamento de Sandor, ele analisa as narrativas dos pacientes

“nestes estados oníricos” conduzidos por ele, percebe que o contato dos pacientes,

durante esses estados, possibilita a eles tomarem decisões assertivas em suas vidas,

como comentado abaixo:

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Vimos através da exposição [comentada extensivamente por Sandor em seu livro com pormenores cada conteúdo inconsciente resgatado durante as suas sessões de relaxamento], como [a paciente] entrou em uma longa e ininterrupta série de mutações e como no processo de liberação vem adquirindo a função diretora [da sua vida]. Transfere para si a responsabilidade de auto-direção, e notamos que assumindo-a, está ampliando sua consciência. Assim tornam-se conscientes os conteúdos em virtude da apropriação, assimilação, transformação dos elementos até então inconscientes. Isto significa um aumento e extensão do nível de integração, organização e utilização sempre mais produtiva, do próprio dinamismo psíquico (Ibid., p.18).

Assim como o ioga no Brasil o fará modernamente, o relaxamento aqui ganha

contornos de uma técnica psicoterapêutica de acesso ao inconsciente e de um

“processo de liberação” e com o poder de “ampliar a consciência”. Se Sandor se apoia

no ioga ou ao contrário não temos como saber, mas que o relaxamento conquista um

sentido de “integrar, organizar e utilizar” o conteúdo inconsciente reprimido para

ganho de maior “dinamismo psíquico”, não há dúvidas. E serão esses atributos que,

somados a corporificação e medicalização do ioga, transformarão o relaxamento em

parte indissociável e importante no processo que acompanha qualquer prática de ioga

brasileira. Não será coincidência que o relaxamento fará parte de todos os discursos

de iogues e cientistas brasileiros.

A partir da década de trinta, como vimos, publicações de divulgação científica

em fisiologia e biomedicina preocupam-se sobre como atenuar as angústias advindas

do terror da segunda guerra mundial e das atribulações cada vez maiores dos

trabalhadores dos centros urbanos que, a partir da revolução industrial, mas sobretudo

no intuito de reconstruir a vida do estresse da violência humana alcançam

popularidade entre os meios alternativos das sociedades ocidentais25 desejosos de

transformação social. Com isso, a ciência fez a sua parte elevando o caráter benéfico

do relaxamento, particularmente sobre os primeiros achados com meditadores e a

elevação das ondas eletroencefálicas alfa, sabidamente associadas com profundos

estados de relaxamento, portanto, associadas a diminuição da pressão sanguínea, dos

batimentos cardíacos e baixa do metabolismo (BENSON, 2000). Com o ioga, mas

também a partir do estudo de novas terapias trazidas como espiritualidades Nova Era,

25 The wisdom of the body: How the human body reacts to disturbance and danger and maintains the stability essential to life de Walter B. Cannon (1932); The Relaxation Response de Herbert Benson (1975); You Must Relaxation: Practical Methods for Reducing the Tensions of Modern Living de Neil Jacobson (1976), e Stress in the health and disease de Hans Seyle (1976).

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descobre-se meios terapêuticos de baixo custo que poderiam ser estendidos a grandes

populações.

Benson, através dos estudos preliminares de Walter Cannon, Jacobson, Seyle e

Sandor, desenvolve a hipótese que, se nascemos dotados de um eixo do estresse para

lutar ou fugir da raiva, medo, fome e dor, deveríamos também possuir um outro

processo fisiológico antagônico a esse, responsável por reestabelecer o organismo ao

estado de homeostase. A esse estado hipotético, o autor denominou de resposta do

relaxamento, tese esta defendida em seu principal livro The Relaxation Response, com

cursos ministrados na Universidade de Harvard até hoje. Concomitantemente, os

trabalhos de Herbert Benson (ver BENSON, 2000) difundem a prática meditativa e a

do ioga como promotores inequívocos à saúde da resposta do relaxamento,

impulsionando a crença moderna do ioga como terapia de combate ao estresse e suas

correspondentes emocionais por meio de práticas corporais específicas.

No entanto, toda essa fundamentação fisiológica da biomedicina ocidental,

deveria fundamentar a total aniquilação do ioga como proposta soteriológica não

preservá-lo como “caminho espiritual” em sociedades laicas e fundadas pela razão das

ciências empíricas.

2.3.3 - Prana é real

Com a imbricação do ioga com o racionalismo e o empirismo da ciência

moderna, o conceito religioso de prana, ao invés de desencantar-se, se ressignifica e

ganha existência “real” a partir do Mesmerismo de Franz Mesmer e do conceito de

orgone e das couraças neuromusculares do caráter desenvolvidos na psicologia de

W. Reich (SINGLETON, 2005; SAMUEL & JOHNSTON, 2013). O psicólogo da

religião William James ainda no início dos anos de 1900 e Robert Fuller atualmente,

revelam que seria a fé em tal existência metafísica de energia corpórea a responsável

pelo qual, os iogues atuais e os religiosos investigados por James, perceberem as

doenças fundamentadas não na fisiologia apenas, mas em algum tipo de desequilíbrio

energético sutil ou esotérico (JAMES, 1995, p.59-88; FULLER, 2008, p.133; p.143-

144).

Os klesas, originalmente, comportamentos pautados nos ditames hinduístas,

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atualmente vêm ganhando interpretações corporificadas, como demonstramos e

prana, como energia transfisiológica, exerce papel fundamental na permanência dos

klesas como causa do mal associado ao estresse e emoções nefastas.

Atualmente, as práticas ioguicas permaneceram com o seu caráter de

purificação do corpo aonde o foco está na obtenção, por meio delas, do livre fluir de

prana. Como vimos em outras citações, é fundamental a crença em energias

transfisiológicas por dois motivos: primeiro por permitir aos praticantes de ioga

possam, eles mesmos, perceber a atuação dos klesas/Mal, pois a obstrução dos canais

energéticos no corpo faz com que surja doenças, cansaço e fadiga, causas encarnadas

da atuação nefasta dos klesas. Em segundo, mantendo a crença em prana, retira do

saber científico qualquer possibilidade de secularizar o ioga. Em outras palavras,

sendo o prana real sob o ponto de vista da fisiologia religiosa do ioga, reserva apenas

aos líderes ioguicos a manipulação de sua força mágica na eliminação do sofrimento

humano. Os cientistas podem investigar as repercussões fisiológicas da sua

biomedicina, mas da cura dos klesas, apenas aos iogues se mantém esse poder.

Essa corporificação, seja como manifestação de doença ou em componentes

emocionais, deslegitimaram as escrituras antigas do ioga, privatizando a sua análise

pelos próprios iogues. Os líderes ioguicos, com isso, perceberam a perda de

autoridade sob a sua comunidade em detrimento a ciência biomédica e, com isso,

reformaram, como veremos, a causa do mal ioguico sob o manto da “ciência” e

caminharam para o seu afastamento da religião hinduísta, erigindo os seus contornos

de religiosidade própria e distinta, longe, tanto da nebulosa Nova Era, quanto da

ortodoxia hinduísta, mas revelando para alguns, uma profanação do ioga.

2.4 - Profanação do ioga

Mark Singleton se aprofunda neste tema, tendo como marco teórico o artigo A

salvação pelo relaxamento de W. James, e demonstra que o rótulo de “combate ao

estresse” que as práticas do ioga moderno conquistaram, seriam consequência da

imbricação do ioga com as terapias proprioceptivas ocidentais e não de sua origem

hinduísta de comunhão com deus/Isvara, como exposta no IS e reveladas no capítulo

primeiro. Segundo ele, o ioga em contato com o estilo de vida agitado das grandes

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cidades do mundo ocidental teria direcionado a sua salvação para o relaxamento. Esse

fato pode revelar uma corrupção da ancestralidade espiritual do ioga em detrimento a

uma coletividade que não descansa, contribuindo dessa forma, com a ideologia

capitalista do consumo e do trabalho (SINGLETON, 2005).

Não há dúvidas que o ioga moderno enveredou, como já expomos, para sua

medicalização e as suas práticas como técnicas profanas em muitos setores da saúde.

Por outro lado, pesquisas apontam igualmente que nunca existiu um “ioga puro”, e a

tradição de ioga do seu período medieval - o hatha-ioga – seria a responsável (e não o

estilo de vida moderno) pela maior valoração dada ao corpo em detrimento às suas

escrituras clássicas (LIBERMAN, 2008, p.113). Assim, a influência social capitalista

desenvolveu, sem dúvidas, no florescer do relaxamento como “produto”

contemporâneo mais importante revelado pelo ioga. E a ciência, não o IS (Ioga

Sutras), são a base intelectiva para isso ocorrer. No entanto, ao contrário do que

Singleton mesmo afirma, esse fato poderia refletir não uma corrupção dos preceitos

espirituais ioguicos clássicos, mas uma reforma soteriológica legítima dos seus

antigos bens de salvação. A proposta de salvação ioguica, antes pautados

exclusivamente nos ensinamentos hinduístas dos klesas, kaivalya e samadhi perdem o

seu sentido religioso em meio a sociedades secularizadas e privatizadas

religiosamente. Reflexo disso são os debates que ocorrem discutindo se o ioga de

Patanjali teria mesmo influência do hinduísmo ou não seria fruto de um sincretismo

de outras religiões como o Budismo (NICHOLSON, 2013). O Brasil, mesmo

(aparentemente) laicizado, por sua própria característica cultural sincrética, pode

revelar com maior nitidez as matizes religiosas dessa transformação em processo que

autoriza iogues modernos a transformar os seus próprios bens de salvação.

O que podemos resumir da nossa discussão neste capítulo, é a conotação que

os klesas assumiram no ioga moderno. A partir de 1915, fisiologistas ocidentais

descobrem e nomeiam uma resposta orgânica natural acionada na raiva, no medo, na

fome e na dor que denominaram de resposta de luta-fuga que aciona o eixo do

estresse e rompe com o equilíbrio fisiológico do organismo, a homeostase. Mais tarde,

os mesmos fisiologistas julgam haver uma igual resposta inata, mas oposta a do

estresse que denominaram de reposta do relaxamento. Cria-se aí uma polaridade do

estresse-Mal-sofrimento e do relaxamento-Bem-cura como uma experiência, mesmo

que transitória, do Bem no microuniverso espiritual do ioga moderno. A homeostase,

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seria o estado ideal, utópico, portanto, inalcançável, mas essencial para a vida

humana.

O ioga quando importado da Índia para as grandes cidades ocidentais já

encontra esse panorama e, talvez, apenas esteja adaptando e ajustando a sua fisiologia

religiosa neste novo contexto. Admitindo esses fatos, nos é lícito supor porquê os

klesas venham assumido a responsabilidade de causa o estresse-ioguico, o samadhi

envolvendo-se com o relaxamento. Como explica o próprio Sandor, o relaxamento

pode permitir acesso ao inconsciente e as mais profundas emoções e memórias.

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Capitulo 3

IOGA NO BRASIL

3.1. As origens do ioga brasileiro a partir da história latino-americana

Não é tarefa fácil traçar um panorama histórico e social do ioga na América

Latina. Sempre que buscamos referencias do ioga, invariavelmente, o encontramos

descrito sem identidade própria e parte indistinta de algum outro fenômeno religioso.

É como se o ioga apenas “emprestasse” partes da sua doutrina e práticas corpóreas

para compor outras religiosidades e não possuísse o seu próprio microuniverso

religioso de atuação (GUERRIERO, 2006; Id., 2014). O caráter mais terapêutico das

práticas ioguicas são as que recebem o apelo maior do meio acadêmico. No entanto,

para um praticante do ioga e cientista da religião já está bem documentado o ioga

como possível fenômeno religioso autônomo em processo (DeMICHELIS, 2004;

JAIN, 2014; GUERRIERO, 2014). Mas não foi sempre assim, o ioga dos seus

períodos antigo e medieval era percebido como darsana hinduísta, o que significa

pertença ao Hinduísmo. Um iogue rezando o pai-nosso, pais-de-santo fazendo surya-

namaskar, daimistas cantando mantras e iogues reconhecendo os seus mestres em

terreiros de umbanda são cenários, sem dúvidas, do universo brasileiro26.

O ioga no seu encontro com o mundo ocidental sofre modificações, sobretudo

da teosofia, da educação física, da biomedicina e da economia capitalista de consumo

(SINGLETON, 2005). Isso fez com que emergisse o ioga postural moderno

(DeMICHELIS, 2004) como uma prática religiosa do corpo (JAIN, 2014). O meu

desafio, no entanto, está em construir não somente a origem do ioga brasileiro, mas

mostrar que, ao contrário de países de língua inglesa, o ioga latino-americano recebeu

influências sócio-religiosas diferentes destes, o que ocasionou reformas na sua

proposta de salvação baseada na teoria dos klesas.

26 Ver relato de Swami Sevananda com a Umbanda no Brasil em SEVANANDA, S. 1953. Yo que caminé el mundo. Montevideo, Uruguay. Com relação a citação dos pais-de-santo realizando posturas ioguicas antes da gira faz parte de acervo do autor em entrevistas para esta tese. O umbandista em questão é Alexandre Cumino de São Paulo. A respeito de iogues rezando a referência está nos livros do Prof. Hermógenes, mas também em FRANCA, N.M.; RAHM, H.J. & ROQUE, M.X.C. 2007. Yoga crista e a espiritualidade de Santo Inacio de Loyola. São Paulo: Edições Loyola. Na imbricação mencionada do Santo Daime com ioga ver DAWSON, A. 2013. Santo Daime: A new world religion. London: Bloomsbury Academic, p.37.

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O insulamento, que demonstrarei abaixo, que o ioga latino-americano passou

ao longo de cem anos foi escolhido por ser um período pelo qual o ioga se desenvolve

nos países latino-americanos sem qualquer legitimação indiana presente. Isso parece

ter ocorrido por um afastamento natural - talvez devido a barreira idiomática

(espanhol e português ao invés do inglês) - o que dificultou a vinda e permanência de

gurus indianos e, consequentemente, no estabelecimento tardio de organizações

ioguicas indianas27. Esse fato, por outro lado, não desautorizou o ioga a disseminar-se

em países sul-americanos, pelo contrário, produziu crenças, gurus e sistemas de

práticas sincretizados por elementos religiosos nativos e cristãos, tornando algumas

expressões ioguicas únicas - como é o caso do ioga brasileiro Caminho do Coração do

Swami Prem Baba, o SwáSthya-Yôga do Mestre DeRose e a Yogaterapia do Prof.

Hermógenes.

Pela escassez de informações acadêmicas coletei o maior número possível de

dados sobre as principais escolas e tradições ioguicas que chegaram às cidades sul-

americanas nos próprios sites de divulgação das mais importantes organizações

ioguicas presentes e, depois identifiquei os principais personagens nativos e

estrangeiros que participaram (e participam ainda) na difusão do ioga como fenômeno

religioso na América Latina. Por fim, verifiquei a veracidade desses dados com

iogues representantes hoje dessas instituições e com livros, teses e dissertações

acadêmicas sobre o assunto, além da coleta de dados advindas das minhas próprias

entrevistas para esta tese (descritas no próximo capítulo). A partir da análise desses

documentos, identifiquei cinco fases distintas que compuseram a identidade do ioga

na América Latina: 1) Fase Místico-esotérico, 2) Fase visita à Índia, 3) Fase do ioga

indiano conhecendo os iogues latino-americanos, 4) Fase da busca identitária e

singular do ioga latino-americano e 5) Fase de tensão entre os iogues híbridos e os

tradicionalistas no Brasil. A análise da configuração do ioga latino-americano ajudará

a perceber os caminhos pelos quais aos iogues brasileiros reformam a teoria dos

klesas emprestando termos e conceitos biomédicos.

27 Como veremos o ioga chega por volta de 1900 em países latino-americanos, mas o primeiro guru indiano a se instalar por aqui só ocorre em 1970 na Nicarágua enfrentando grande resistência de frentes católicas.

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3.1.1. Fase místico-esotérico

Segundo informações colhidas dos sites dos próprios personagens e de outras

fortes, o ioga desembarca na América Latina entre 1899-1900 com a norte-americana

Katherine Augusta Westcott Tingley. Essa discípula de Blavatsky funda a primeira

academia de ioga que se tem notícia na América Latina, o Raja Yoga Academy, na

capital cubana 28 (TINGLEY, 2012). O objetivo de Tingley será o mesmo dos

próximos três personagens que aparecem neste início de ioga latino-americano:

difundir os ensinamentos ioguicos por meio de denominações esotéricas, como a

teosofia, o martinismo, a rosa-cruz e a maçonaria. Neste momento, pela ausência de

iogues indianos que legitimassem o que era ou não da “tradição do ioga”, figuras

carismáticas e controversas, em sua maioria pertencentes de instituições herméticas e

ocultistas como Tingley, farão o ioga implantar-se no contexto latino-americano entre

os anos de 1900-1950. A principal contribuição deles para o ioga é o caráter de

terapia espiritual e hibridismo religioso que difundem entre os discípulos e iogues

que formam.

Assim como Tingley, acredita-se que outro imigrante, o francês Léo Alvarez

Costet de Mascheville (antes Jehel, depois swami Servananda) viaja a Argentina,

Uruguai e Brasil, entre os anos de 1924-1947, arrolando ensinamentos secretos de

uma ordem iniciática chamada de Grupo Independente de Estudos Esotéricos

(GIDEE). O GIDEE apresenta o ioga como veículo de desenvolvimento espiritual, ao

lado da cabala, astrologia, budismo e outros elementos ocultistas de origem martinista

e da Associação Mística Internacional (AMO), ordem esotérica originada por outro

iogue francês estabelecido no Uruguai, Cesar Della Rosa29.

Serge Raynaud de la Ferriere, o nosso último personagem da primeira fase

ioguica latino-americana, parece ter chegado a Medellin/Colômbia em 1947, se

propondo a difundir o ioga através da Grande Fraternidade Universal ou A Missão da

Ordem de Aquarius. Em Caracas/Venezuela, Serge Raynaud inaugurará a primeira

28 http://www.britannica.com/EBchecked/topic/596592/Katherine-Augusta-Westcott-Tingley acessado 05/01/15; http://www.theosophy-nw.org/theosnw/theos/kt-selec.htm, http://libraries.ucsd.edu/speccoll/DigitalArchives/bp510_p633-h37-1922/bp510_p633-h37-1922.pdf, http://www.theosociety.org/pasadena/sunrise/47-97-8/th-ktgk1.htm acessado 05/01/2015. 29 http://www.escuelainternacionaldeyoga.biz/fundador.html acessado 05/01/2015.

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sede da sua ordem esotérica e um ashram com aulas gratuitas de ioga, repetindo o

mesmo acontecimento na capital colombiana em 195830.

O ioga entre os latino-americanos, até meados dos anos de 1960, pode-se

pressupor, ainda não possui características autônomas de uma espiritualidade singular,

como já pode se perceber em organizações ioguicas indianas e importadas já para o

ocidente - como de Kaivalyadhama, Instituto de Yogendra e outras - mas se mantém

envolto pelo esoterismo de movimentos espiritualistas herméticos de ordens

ocultistas. Tingley, Léo Alvarez, Cesar Della Rosa Bandio e Serge Raynaud de la

Ferriere, influenciam a disseminação de um ioga esotérico e místico e exercem um

papel quase mítico na história do ioga pelos países latino-americanos. Cesar Bandio,

por exemplo, é reconhecido ainda hoje em alguns círculos ioguicos modernos, como

discípulo direto de Ramakrshina e amigo pessoal do swami Sivananda - fatos estes

não confirmados pelos discípulos contemporâneos de Sivananda e Ramakrishna.

Registros atribuem a Cesar Bandio, a fundação da primeira Federação

Internacional de Ioga na França, Uruguai e Argentina, entre os anos de 1936-1941. Os

fatos mostram também a importância de Léo Costet no início do ioga sul-americano.

Em 1947, Costet teria realizado uma palestra sobre ioga, provavelmente em alguma

ordem esotérica do Rio de Janeiro/Brasil, despertando o interesse do público

conservador e católico, em especial do General Caio Miranda, que virá a ser o

primeiro e grande difusor do ioga brasileiro, e depois do Coronel Hermógenes.

Interessante registrar neste momento, que o iogue brasileiro DeRose citará em

algumas passagens de sua autobiografia ter sido considerado - por iniciados de ordens

ocultistas do Brasil e pela sincronicidade de sua data de nascimento (18/02)31 - a

reencarnação de Ramakrishna, assim como se declarar simpatizante de Sivananda, a

exemplo de Leo Costet. De alguma forma, a legitimidade de Léo Costet ainda é

importante na configuração do ioga brasileiro, mesmo que atualmente seja fortemente

combatido por uma nova geração de iogues mais ortodoxos que negam as ligações

destes primeiros iogues europeus com tradições indianas.

Até aqui, podemos perceber que o ioga aporta na América Latina pelas mãos

de místicos personagens que apresentavam um ioga, de certa forma, pouco envolvido 30 http://www.elfez.com.br/SRF.pdf acessado 05/01/2015. 31 DeRose (2006), p.27: “Encarnei em 1944, cento e oito anos após o nascimento de Rámakrishna”; Ibid., p.48: “Alguns ficavam cativados pela profundidade das técnicas que eu ensinava e pela seriedade que sempre marcou minhas atitudes. Esses extrapolavam a meu favor, declarando que eu devia ser a reencarnação de algum Mestre hindu”.

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com o Hinduísmo e muito mais com as suas próprias ordens ocultistas de origem

ocidental. Não são, nem indianos e muitos menos representantes autorizados por

nenhuma escola de ioga tradicional conhecida ou confirmadas historicamente que

trazem o ioga neste primeiro momento, mas sem dúvidas serão eles os responsáveis

por apresentar e disseminar o ioga ao longo dos próximos sessenta anos em terras

latino-americanas.

3.1.2. Fase visitando à Índia

Mesmo que em 1929, tenhamos notícia da visita do swami Yogananda, o

primeiro iogue indiano a pisar em solo latino-americano32, o estabelecimento efetivo

de organizações indianas de ioga só virá acontecer realmente a partir de 1950. Neste

período agora, que marca os anos de 1950-1973 - portanto mais de setenta anos de

ioga desde a chegada de Tingley -, serão os próprios latino-americanos que se

aventurarão a traduzir o ioga da Índia para a sua cultura. Como exemplo do que

buscamos identificar, em 1987, o colombiano Luz Fanny Vargas narra apresentar ao

seu país a tradição de ioga Anaisa, recebido por ele os ensinamentos desta tradição

ioguica em preparação de anos por lamas tibetanos, budistas e indianos33 - mas que

ninguém tem notícia ou consegue confirmar, a não ser os seus próprios discípulos

diretos - e por sucessivas experiências místicas no Peru. O iogue brasileiro Mestre

DeRose teve o primeiro contato com seu mestre espiritual não-encarnado –

Bhávajánanda - em um terreiro de Umbanda em 1969, no Rio de Janeiro. Enquanto

Hermógenes, outra figura importante no cenário ioguico brasileiro, foi buscar, no

mesmo período, confirmação de seu trabalho com o ioga em sessões espíritas com

Chico Xavier, no qual foi amigo e professor de ioga.

Estamos no auge dos movimentos de contracultura e o ioga, que se

popularizou entre os meios esotéricos-místicos mais formais das grandes lojas

maçônicas e fraternidades esotéricas no período passado, ganha um público elitizado

e interessado por uma vertente mais terapêutica-holística do que mágica-tradicional.

Essa segunda fase vai sendo marcada por novas descobertas e uma nova geração de

iogues latino-americanos que já iniciam sincretismos do ioga com religiões nativas e

32 http://yoganandaharmony.com/yogananda-history-chapter-1 acessado 05/01/2015. 33 http://www.yogamedellin.info/practica/centros-yoga/anaisayoga acessado em 05/01/2015.

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cristãs, além de terapêuticas medicinais. Mas também por uma segunda geração

carente de escrituras ioguicas, se aventurando agora a buscá-las diretamente na Índia.

Um dos primeiros iogues a se arriscar nessa jornada de busca pelo ioga

indiano, é o chileno Don Benjamim Gusman. A partir de informações colhidas entre

os seus próprios discípulos, Don Benjamin foi iniciado pelo iogue indiano Sri

Janárdana da ordem ioguica Suddha Dharma Mandalam (SDM)34. O curioso é que

este chileno nunca esteve na Índia. Ele recebeu toda a iniciação do SDM por cartas

entre os anos de 1918-192435. Após esse período de extensas correspondências, Don

Benjamim Gusman teria auferido o nome iniciático de Sri Vayera Yogui Dasa e

autorizado a fundar, segundo seus discípulos, três organizações de sua ordem religiosa

no Chile, no Brasil e depois no Uruguai ao longo das três próximas décadas.

Será somente em 1967, que uma sul-americana, a brasileira Ignez Novaes

Romeu, retorna da Índia realmente com os ensinamentos tradicionais de uma escola

ioguica moderna. Ignez estuda e se inicia no ioga de Kaivalyadhama do swami

Kuvalayananda, considerado o primeiro iogue a iniciar exames laboratoriais e a

aplicar as práticas rituais ioguicas como terapia com aval da ciência biomédica

(ALTER, 2004). Outra brasileira a visitar a Índia neste período é Maria Helena de

Bastos Freire que em 1973 conhece Sri K. Pattabhi Jois, discípulo Krishnamacharya e

considerado “pai do ioga moderno” (SINGLETON, 2010). Agora, mesmo sem os

principais gurus modernos do ioga visitando os países latino-americanos, diversos

iogues da porção sul e central da américa vão absorver o conhecimento do ioga

diretamente da Índia e de gurus legitimados por alguma tradição ioguica

verdadeiramente indiana.

Os principais líderes do ioga latino-americano iniciam as primeiras

interpretações e traduções elementares da doutrina clássica do ioga. Até então, o que

os latino-americanos conheciam do ioga vinham dos ensinamentos orais da primeira

geração de iogues descritos acima, portanto, sem nenhuma literatura expressiva do

ioga.

No início dos anos de 1970, um grupo de iogues discípulos brasileiros de Léo

Costet, visitam o ashram de Sri Yogendra na Índia - famoso por mesclar as práticas

34 http://sarvamangalamashram.blogspot.pt/2012/11/sri-vajera-yogui-dasa.html acessado 05/01/2015 35 Dados confirmados por documentos cedidos por Erick Schulz por email, discípulo da ordem SDM no Brasil.

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de ioga com a biomedicina ocidental - e retornam ao Brasil com a ideia de unificar e

institucionalizar todos os tipos de ioga praticados nos países latino-americanos. Esse

movimento marca uma nova fase ioguica brasileira que visa agora a consolidação do

ioga como prática regulamentada. O ioga, nesta próxima fase, irá ganhar popularidade

e iogues mais ortodoxos - preocupados na crescente descaracterização dos valores

espirituais do ioga - buscam institucionalizar o ioga.

3.1.3. Fase do ioga indiano conhecendo os iogues latino-americanos

Com o primeiro contato estabelecido entre iogues latino-americanos e os

indianos, inicia-se uma inevitável comparação - e busca por legitimação - entre o ioga

praticado por décadas de transmissão via as grandes ordens místico-esotéricas

europeias - da primeira fase descrita acima - com o ioga de “tradição” ou linhagem de

gurus “verdadeiramente” indianos, sobretudo dos iogues advindos da segunda fase

latino-americana. Isso ocasiona, a partir de 1970, um movimento entre a comunidade

ioguica sul-americana por regularizar o que era ou não ioga e quem estaria ou não

autorizado a ensiná-lo. Assim, congressos e confederações de ioga começam a surgir

nas principais capitais sul-americanas. É também nesta fase, que os iogues indianos

começam a visitar a América Latina com maior interesse proselitista. As escolas e

organização de ioga indianas já percebem o interesse pelo ocidente de sua

religiosidade, algo que inicia com Vivekananda, como já mostramos anteriormente,

mas o olhar agora também se volta a promissores países como Argentina, Brasil e

Uruguai.

Mesmo o registro histórico desses acontecimentos venham de fontes não

acadêmicas, em geral, de documentos fornecidos pelas próprias instituições, não nos

furta de estabelecer o registro. De qualquer forma, acredita-se que depois do swami

Yogananda, em 1929 no México, apenas em 1950, que pequenos círculos de

meditação da Self-Realization Fellowship (SRF) do swami Yogananda se fizeram

presentes na capital cubana36. Em 1970, o indiano swami guru Devanand Sarawati Ji

Maharaj, discípulo de Mauna Swami, funda pessoalmente na Nicarágua a primeira

organização ioguica latino-americana, a Sociedade Internacional da Realização

36 http://mhaiyoga.com/mhai-cuba/yoga-history acessado 05/01/2015

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Divina (ou Escola de Yoga Ascética e Iniciática de Shankara)37. Alguns anos mais

tarde, os discípulos mexicanos Sri Ramesh e Jose Luis Pallaviccini Norori fundam na

capital mexicana, em 1974, a ordem do Centro Devanand de Meditação já com

distintos traços sincréticos cristãos, como podemos ler nos pronunciamentos de

Norori abaixo:

Cristo volverá para no irse nunca más ¡Cristo es un estado evolutivo que se alcanza cuando se Ilumina el quinto Chacra, un estado sublime de verdad, Amor, Armonía, Paz, nosotros en esta escuela y con la gracia de nuestro Amado Maestro, estamos en un estado más profundo.38

Entre os anos de 1971-1972, em viagem pela América Latina, swami

Satyananda Saraswati, discípulo de Sivananda, estabelece as bases da Bihar School of

Yoga no Uruguai, Colômbia, Brasil, Chile, Argentina, Cuba e Porto Rico. Mas será

apenas em 1976, agora pelas mãos do swami Vishnudevananda que o primeiro

instituto sul-americano de ioga de Sivananda - o Divine Life Society (DLS) – é

fundado no Uruguai 39, depois na Argentina em 2000 e, posteriormente no Brasil em

200140. No Paraguai, em 1972, conforme fonte de seus próprios discípulos, o indiano

Shrii Shrii Anandamurti, discípulo de Dada Haratmananda, lança as bases da

Sociedade de Yoga Ananda Marga (AVADUTHA, 1996). Em 1975, swami

Satyananda, discípulo de Sivananda, funda o Satyananda Ashram em Brasília/Brasil

sob a orientação do brasileiro, iniciado na Índia, swami Hamsananda Sarasvati.

Ao longo dos anos de 1980, um fato peculiar pode representar o que pretendo

salientar na próxima fase de implantação da espiritualidade ioguica brasileira. Ocorre

um dos mais marcantes sincretismos do ioga com as religiões nativas latino-

americanos, a fusão deste com o Santo Daime. Um terapeuta holístico e pertencente

da religião brasileira Santo Daime veio configurando o que mais tarde se tornará a

primeira fusão do ioga com uma religião nativa sul-americana, o Caminho do

Coração, hoje com filiais nos Estados Unidos, Índia e Brasil (ver LABATE, 2000).

Nesta mesma toada e período, outros dois iogues também irão configurar contornos

37 http://elmaestrodelpresente.org/category/maestros-de-sabiduria/ acessado 05/01/2015 38 http://elmaestrodelpresente.org/actual-guru-devanand-eloy/ acessado 05/01/2015. “Cristo voltará para nunca mais voltar. Cristo é um estado evolutivo alcançado quando se ilumina o quinto Chakra, um estado sublime de verdade, amor, harmonia, paz, nós, desta escola almejamos com a graça de nosso Amado Mestre de Luz, que está em um estado mais profundo.” 39 http://www.sivananda.org/montevideo/ acessado 05/01/2015 40 http://www.sivanandayogatradicional.com.br/index.php?pgref=quemsomos acessado 05/01/2015

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bem brasileiros, como a Iogaterapia do Prof. Hermógens que mescla muito bem

elementos cristãos, espíritas e da medicina holística e o SwáSthya Yôga do Mestre

DeRose que, mesmo influenciado por ordens ocultistas, trilhou um caminho ortodoxo

no ioga. A justificativa para o seu “tradicionalismo” reside na codificação que recebeu

através de processos mediúnicos de um ioga pré-védico, portanto, antes até mesmo do

IS de Patanjali. No entanto, mesmo que velado, é possível identificar fortes elementos

da magia umbandistas em seus discursos e construções espirituais ioguicas, como a

utilização de amuletos e diversos processos de “proteção espiritual”, que são ausentes

na literatura do ioga moderno norte-americano e europeu, por exemplo. Os paradoxos

e ambivalências são uma característica do ioga brasileiro, assim, precisaria de uma

outra tese para me aprofundar nas influências específicas que cada líder do ioga

brasileiro recebeu para configurar o ioga que professa. De qualquer modo, nos

concentraremos na dialética que nos interessa aqui entre saúde-salvação e as

transformações soteriológicas em samadhi, kaivalya e os klesas.

Parece lícito estimar que nesta terceira fase, entre os anos de 1950 e meados

de 1980, o ioga na América Latina começa a conhecer e se aprofundar com o ioga

advindo da Índia propriamente dita e a desenhar o que os acadêmicos estrangeiros

denominaram posteriormente de ioga moderno (DeMICHELIS, 2004), mas com

fortes nuances do sincretismo religioso brasileiro.

3.1.4. Fase da busca identitária e singular do ioga latino-americano

A partir da década de 1970, o ioga na América Latina já formou os seus

próprios gurus e importou diversas organizações e linhagens do ioga moderno. Agora,

os iogues latino-americanos buscam compor a sua própria identidade. Neste tempo,

nasce uma luta por quem possui ou estabelece melhor as regras de conduta de um

professor e escola (ou linhagem) de ioga. Assim, inúmeras associações, federações e

confederações tem início e marca esse quarto período ioguico latino-americano.

O ioga agora, especificamente entre os anos de 1980-1990, ganha grande

popularidade e corporifica sobremaneira as suas práticas corporais, se confundindo

entre uma prática de educação física, técnica terapêutica ou atividade religiosa, como

em outras partes do mundo (SHAVER, 2010). No Brasil, o governo federal entra no

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congresso nacional visando incluir o ioga como método exclusivamente físico, o que

desautorizaria os líderes do ioga “formarem”41 seus próprios professores/discípulos e

ministrarem suas aulas sem antes passar por uma inspeção federal. Em outras

palavras, essa proposta legitimaria o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF)

para fiscalizar as práticas ioguicas, tornando totalmente laico o exercício de lecionar

ioga no país.

A contenda causa grande repercussão na comunidade ioguica latino-americana

e se resolve estabelecendo entre as duas partes - governo brasileiro e comunidade

ioguica brasileira - que o ioga não poderia ser fiscalizado por nenhum órgão

governamental, pois se trataria de uma atividade filosófica-religiosa e não

exclusivamente corporal. Hoje em dia, a discussão está sob outro ângulo: a inclusão

ou não do ioga como terapêutica não-convencional no Sistema Único de Saúde

brasileiro (ver SIEGEL, 2010). No entanto, essas propostas vão, aos poucos, minando

a hegemonia da vertente ioguica híbrida e permitindo a ala mais tradicional do ioga

brasileiro levantar a sua voz.

Esses fatos sociais registram o espírito desta fase histórica do ioga na América

Latina, marcada pela desavença e conflitos de identidade do papel e legitimidade do

ioga professado. O episódio do CONFEF ocorrido no Brasil pode ser compreendido

como o marco de uma crise identitária para os iogues brasileiros, que buscam agora

estabelecer as diretrizes e delimitações da sua prática, ensino e formação de novos

professores de ioga no cenário religioso do país. O ioga já não é mais incipiente e

começa a se popularizar entre a população brasileira, sobretudo é percebido pelas

religiões dominantes que imprimem as suas retóricas de aniquilação (USARSKI,

2001) sobre a proposta religiosa alternativa no qual o ioga representa agora 42

(APOLLONI, 2004).

Parte dessa busca por uma identidade se faz nas inúmeras tentativas dos

iogues se reunirem em torno de federações e confederações nacionais, latino-

americanas, sul-americanas e internacionais. A história credita ao iogue francês Cesar

Della Rosa, o idealizador da primeira federação de ioga na América Latina, no

Uruguai ainda em 1936, como vimos. Mas, pode-se pensar que o seu nome apareça 41 Termo insider que significa introduzir a um iniciante os ensinamentos e práticas corporais do ioga. 42 http://blog.comshalom.org/carmadelio/29260-pode-um-cristao-praticar-yoga acessado 05/01/2015, https://laverdadysololaverdad.wordpress.com/2011/06/30/15-razones-del-por-que-el-yoga-es-sumamente-peligroso/ acessado 05/01/2015

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como “fundador” apenas para legitimar a autoridade dessas fundações que começam a

despontar agora nesta última fase.

Esses núcleos seriam as primeiras tentativas de reunir as diferentes escolas

ioguicas latino-americanas sob a mesma égide de pensamento. Em 1975, a brasileira

Maria Helena de Bastos Freire estabelece uma associação internacional que reuniria

todos os professores de ioga, a International Yoga Teachers Association (IYTA),

muito motivada pelo o que assistiu no congresso de ioga que participou na Austrália

em 1971. A partir disso, inúmeros outras associações, uniões nacionais e congressos

vão sendo realizadas em toda América Latina que perduram até os dias de hoje,

todavia a ideia das federações nunca ganhariam a força que pretendiam possuir.

Mesmo sem o sucesso ou adesão requerido, a partir de 1985, o argentino

Fernando Estevez Griego (ou swami Maitreyananda), ex-discípulo do tradicionalista

Mestre DeRose, associado a outros iogues latino-americanos funda a União Latino-

Americana de Yoga (ULAY) no intuito de agrupar as já existentes federações e

associações nacionais de ioga como da Argentina, Brasil, México, Chile, Colômbia,

Uruguai, Cuba e Quebec, além de promover intercâmbios e formar o Conselho

Latino-Americano de Yoga (CLAY). A partir de agora, Griego articula-se com

diversos outros líderes de federações de ioga mundiais para fechar acordos entre elas

e a ULAY. O intento de Griego gera frutos e, em 1987, ocorre o primeiro de inúmeros

congressos latino-americanos e mundiais de ioga, em geral, tendo ele mesmo - Griego

ou seus amigos e discípulos - na presidência das bancas e das federações. Nenhuma

delas, entretanto, conseguem estabelecer um diálogo integrativo entre todas as

diversas linhagens e denominações de ioga moderno existentes no território latino-

americano43.

Outro aspecto do ioga neste período, e que se torna o grande propulsor do ioga

e fonte de rendimentos financeiros, é o estabelecimento de cursos regulares de

formação de professores de ioga44. Um dos primeiros cursos de formação, ocorre em

1981, através de um romeno radicado no Brasil, Georg Kritikós (ou swami

Sarvananda), discípulo de Léo Costet no Rio de Janeiro/Brasil (SANCHES, 2014). A

partir do sucesso desses cursos de formação, aumenta-se a demanda de professores de

43 http://www.federacaointernacionaldeyoga.org/history.html acessado 05/01/2015 44 Um curso de duração média de um ano que autoriza os seus “formandos” a lecionar o ioga a outros. O custo do curso é bastante elevado, o que sustenta financeiramente grande parte dos líderes de ioga latino-americanos.

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ioga e a popularização do ioga (e vice-versa). Parte desse público de professores do

ioga moderno se tornam devotos de seus líderes espirituais responsáveis pela sua

formação, diferenciando o ioga moderno dos demais novos movimentos religiosos

Nova Era de característica “errantes”45 (NUNES, 2008). Essa característica de não-

errância pode ser um indicativo do ioga agora já ir se configurando como uma

possível denominação religiosa autônoma e, por isso, responsável por constituir

contornos mais definidos de sua religiosidade, como legitimação de seus líderes, mas

também de apresentar uma proposta soteriológica adaptada a cultura que se insere

agora. As suas escrituras vão sendo ressignificadas pela biomedicina, como vimos no

capítulo segundo, e os klesas ganhando contornos fisiológicos biomédicos por

décadas no Brasil da associação do ioga com a cura e terapia de doenças.

Outras duas formas características do ioga moderno brasileiro, talvez pela

escassez ainda de gurus indianos, se concentram nas regulares viagens à Índia e a

outros locais sagrados do mundo (como Machu Pichu, Japão, Jerusalém e Nepal)

promovido pelos seus novos líderes espirituais, e comercialização de livros, cd’s e

dvd’s e outros produtos, como divulgação de suas propostas espirituais e sustento

financeiro. Essa proliferação de produtos ofertados pela demanda do ioga unido ao

fator sincretismo religioso, fez surgir uma tensão entre iogues ortodoxos ou

“tradicionalistas” e iogues mais tolerantes e incentivadores dos “hibridismos” do ioga

com outras religiões e práticas. Dois exemplos desses hibridismos que comporão a

última fase ioguica são as novas escolas que veem se estabelecendo, como o

AcroYoga de Gabriel Watel e o Yoga Restaurativo de Miila Derzett46. O próximo

estágio se aprofunda no momento atual do cenário ioguico brasileiro.

3.1.5. Fase de tensão entre os iogues “híbridos” e os “tradicionalistas” no Brasil

Com o fracasso da tentativa de unificação de diversas denominações de ioga

em federações e alianças, além do evidente desmembramento de elementos das suas

práticas rituais - como a meditação e os ásanas – alocados em outros fenômenos

religiosos e investigados pela ciência biomédica, como em outros países (ALTER,

2004). O ioga nesta última fase pode ser compreendido de diversas formas, seja

45 Ver o termo “errância” em AMARAL, 2000. 46 http://acrobrasil.com/ acessado 10/01/2015; http://yogarestaurativa.blogspot.com.br/ acessado 10/01/2015.

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técnica terapêutica laica, exercício físico ou ritual terapêutico espiritual. DeMichelis

nos ajuda a compreender melhor este período alocando o ioga moderno em cinco

disposições: 1) Ioga Moderno Psicossomático de Vivekananda, 2) Ioga Moderno de

inspiração Neo-Hinduísta, 3) Ioga Moderno Postural, 4) Ioga Meditativo e 5) Formas

Denominacionais de Ioga (DeMICHELIS, 2004). Há de certa forma, principalmente

dentre as diversas denominações modernas do ioga mais tradicionalistas, uma

percepção de “ressignificação simbólica” de suas escrituras antigas em andamento

(sobretudo pela ciência biomédica) (SIMÕES, 2011) e buscam resgatar os valores

espirituais “originais” neste estágio atual.

O ioga, antes um dársana ou “escola filosófica” hinduísta ortodoxa

(JOHNSON, 2010, p.93-94), parece revelar-se agora um misto de terapia de

relaxamento aonde a ciência, mais do que o Hinduísmo (NICHOLSON, 2013),

mostra-se legitimadora do seu discurso em sociedades modernas (ver ALTER, 2004;

SIMÕES, 2011).

Nicholson analisa em seu artigo Is yoga hindu? discute a legitimidade do ioga

moderno. O autor começa citando uma campanha que ocorreu nos Estados Unidos, da

comunidade hinduísta, sobre a descaracterização do ioga, pois, segundo eles, seria

uma prática genuinamente hinduísta que estaria sendo deturpada pelo ocidente em

aulas profanas de ginástica. Por outro lado, o autor nos lembra que em 1989, Joseph

Cardinal Ratzinger alertava a todos os cristãos que a fusão da meditação cristã com

outras formas não-cristãs poderia ser examinada como um perigo a fé por induzir ao

sincretismo. O próprio Patanjali é suspeito, por alguns autores, de não ser tão hindu

assim no seu IS. Nicholson assim, faz uma viagem histórica pelas influências ioguicas

de sua origem até o momento presente e conclui ser muito difícil determinar um só

influência religiosa “legítima”. O fascinante de seus argumentos está na posição de

marginalidade que a história colocou os iogues medievais – os hatha-iogues – por sua

verve contrária a autoridade dos Vedas e da autoridade bramânica, mas também pela

aproximação da tradição hatha-ioguica dos Nathas com os ensinamentos dos sufis,

um ramo de místicos islâmicos.

Porém, quando nós olhamos os caminhos em que o yoga foi descrito nos textos entre os séculos XIV-XVII no nordeste da Índia, frequentemente nós encontramos formas do que nós agora pensamos como um “ioga hindu” sincretizado com as práticas islâmicas dos sufis. Eles parecem ter ímpeto tansgressor desta borda para os dois lados: no lado hindu, pelo grupo

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associado como Hatha-Yoga conhecidos como Natha iogues, e entre os muçulmanos, pelos sufis das ordens Chishti e Shattari. O fenômeno dos muçulmanos praticando yoga na India continuou bem até o período da colonização inglesa.

Nicholson conclui que a proposta do “Yoga Cristão”, assim como da junção

do Hatha-Ioga com os sufis, mais do que sinal do apocalipse ou de Kali Yuga (era das

trevas no hinduísmo), deveria ser considerada algo positiva, pois conclui: “nós

estaremos melhor se a considerarmos uma promissora nova confluência e não uma

corrupção da sua religiosidade”. No Brasil, as influências distintas também ocorreram

como nos tempos passados descritos por Nicholson. Destacam-se neste período duas

linhas bem distintas de atuação do ioga no Brasil. A primeira descendente daqueles

primeiros místicos que trouxeram o ioga para terras latinas da América. Deles, herda-

se o aspecto do ioga como terapia espiritual que figuram em iogues como Prof.

Hermógenes e swami Prem Baba no Brasil, e Eduardo Pimentel, atual presidente da

associação cubana de ioga. Estes se mostram bem mais “híbridos” e tolerantes aos

sincretismos modernos do ioga e elevam os seus aspectos iogaterapêuticos. A segunda

linha de iogues, são os iogues ortodoxos tradicionalistas que iniciam um movimento

forte de resgate da cultura ioguica “original”, considerando-se os verdadeiros

responsáveis portadores da “essência do ioga”. Mesmo que também tenham, como

vimos, sincretizado com elementos religiosos de seus países e não neguem os

benefícios terapêuticos demonstrados pela ciência, julgam-se os responsáveis por

eliminar as permissividades advindas da ala híbrida do ioga, como veremos mais

explícito nas narrativas do capítulo 4.

A partir desse contexto híbridos versus tradicionalistas, o ioga brasileiro veio

delimitando naturalmente os seus contornos singulares, e revelando iogues mais fiéis

ao seu guru ou professor de “formação” como uma tendência a partir dos anos de

2000 no Brasil (NUNES, 2008). Ao mesmo tempo, despertam discussões sobre o

papel social e psicológica das práticas do ioga, seja de terapêutica ou ginástica laicas

(FERNANDES & DA ROCHA, 2005), chegando até mesmo alguns iogues

defenderem-se politicamente por sua independência da educação física (como

revelamos anteriormente), o que favoreceu alguns afirmarem o seu caráter vivo de

sincretismo com a religiosidades brasileiras, fomentando algum tipo novo de

espiritualidade (GNERRE, 2010).

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3.2. Ioga para Nervosos de Hermógenes versus Ioga para Normais do DeRose:

iogaterapeutas híbridos e os iogues tradicionalistas

Em estudo recente, o historiador Raphael Sanchez disserta sobre as

representações do ioga no Brasil sob a figura de Hermógenes e DeRose. A dissertação

de Sanchez em suas considerações finais demonstra como a mídia brasileira – a partir

da análise de capas das duas maiores revistas direcionadas ao público ioguico no país

- “demonizou” o tradicionalismo defendido por DeRose enquanto percebe em

Hermógenes o “mais querido e referência espiritual” no país (SANCHEZ, 2014).

Durante os anos de 1900-1960, o ioga brasileiro permanecia circunscrito a

meios esotéricos das grandes fraternidades ocultistas, predominantemente da elite

brasileira e nada conhecido do público em geral. Era um ioga sem características

próprias e fazendo parte de uma colcha de retalhos mística e mágica. A partir dos

anos de 1960-1990, o ioga brasileiro foi construindo a sua própria identidade, aonde o

aspecto terapêutico-cristão-espírita de Hermógenes sobressaiu-se ao ortodoxo-

mágico-hinduísta de DeRose.

As trajetórias de Hermógenes e DeRose possuem similaridades. Ambos

desenvolvem seus trabalhos com o ioga no Rio de Janeiro e, apenas da diferença de

idade, são contemporâneos. Os dois também publicam muitos livros e se dedicam

com afinco na divulgação do ioga com distintas particularidades e não possuem um

guru ou mestre de referencia propriamente dito, que os indiquem a seguir uma

“tradição” por assim dizer. A diferença mesmo reside na posição ideológica que

adotam.

O Prof. Hermógenes foi um capitão da reserva do exército brasileiro que aos

35 anos de idade, em 1955, é diagnosticado com tuberculose. O ioga entra nesse

período, como é descrito em bibliografia (CARUSO, 2012, p.18). Hermógenes

dedica-se, durante o repouso obrigatório para o tratamento, lendo, relaxando,

meditado, autossugestões e vivências espirituais. Em 1960, lança o seu primeiro livro,

Autoperfeição com Hatha Yoga e em 1962 abre a Academia Hermógenes. Como não

existia literatura sobre ioga e muito menos, como dissemos, líderes de ioga

autorizados por qualquer tradição indiana, as primeiras leituras de Hermógenes foram

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as obras Sport et Yoga, de Selvarajan Yesudian e Elisabeth Haich e The Yoga System

of Health and Relief from Tension, de Yogi Vithaldas (Ibid., p.35). A perspectiva

medicinal do ioga foi porta de entrada para Hermógenes que foi revelando a dialética

cura-salvação até o final de sua vida.

Desejo tirar de você a ansiedade por curar-se depressa, mostrando o andamento da libertação. A cura demasiado rápida, em muitos casos, é ilusória. Não pretendo para você uma frustradora pseudocura. O que realmente lhe convém é cada vez uma dose maior de sattvidade [refere-se aqui ao conceito de sattva que já comentamos e associamos ao estado de homeostase], de paz, de integração de si mesmo e maior penetração nos planos mais divinos de seu ser (HERMÓGENES, 2011, p.81).

Outra forte aproximação para o ioga praticado e disseminado por Hermógenes

é a do sincretismo com o cristianismo e espiritismo. Hermógenes é hábil em alinhavar

os conceitos da teosofia com o ioga, budismo e Jesus. Seus livros como Yoga

caminho para Deus (1975), Superação (1975), Yoga, paz com a vida (1978), Convite

a não-violência (1983), Deus investe em você (1985), O essencial da vida (1989) e

Viver em Deus (1992), representam a tônica do hibridismo que queremos revelar

como diretriz do ioga que professa (SANCHEZ, 2014, p.51-53). Além do

cristianismo, Hermógenes estabelece um vínculo de discípulo do guru indiano Sai

Baba, tornando-se o principal difusor da mensagem do mestre no Brasil e Portugal.

Em sua biografia, relata-se o aparecimento da silhueta de Sai Baba por trás do iogue

brasileiro (CARUSO, 2012, p.95). Há o registro também de carta psicografada por

intermédio de Chico Xavier, do espírito Bezerra de Menezes endereçada a

Hermógenes, confirmando “que o seu trabalho tem a ajuda de uma elevada equipe

espiritual de apoio” (Ibid., p.73).

Essas e outras referências de renome espiritual no Brasil e no mundo, vão

gabaritando um iogue brasileiro, sem tradição legitimada no contexto ioguico, a

justificar e autorizar o seu discurso iogaterapêutico:

Na pessoa nervosa, os “corpos” ou “planos de ser” se encontram em desarmonia. Seus nervos e glândulas estão em desarranjo. O estresse pode ter origem na perturbação da economia energético-vital. Pode ser gerado por emoções em conflito, bem como resultar de estarmos afastados dos níveis divinos do Espírito. Pode ser que tudo isso junto, interagindo, é que mantém o sofrimento. Yoga é a redenção desse sofrimento, mercê de seu poder hamonizador e reequilibrante. Onde reina o caos, o yoga leva o cosmo. Razão por que se constitui salvação contra o nervosismo. Se você não é nervoso, salva-o, preventivamente. Se já o é, salva-o curativamente. Nervosismo é desarmonia. Yoga é harmonia. Yoga e estresse não coexistem

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(HERMÓGENES, 2011, p.45).

De um modo geral, como mesmo afirma Sanchez, são muitas as frentes que

buscam construir a imagem de Hermógenes em torno de um líder ioguico legitimado

(SANCHEZ, 2014, p.58).

O iogue DeRose, por outro lado, foge dos sincretismos religiosos, apesar das

aproximações que desenvolveu no seu início com a sociedade Rosa Cruz e presença

em uma sessão de umbanda, relatado em sua própria autobiografia (DEROSE, 2006,

p.45-94). No entanto, o que fica presente é a sua ortodoxia com relação aos

hibridismos de Hermógenes:

O Yôga (yoga) proporciona saúde e vitalidade, mas se pessoas enfermas ou idosas tentarem praticar, terão que satisfazer-se com uma interpretação tão extremamente simplificada e adaptada que termina comprometendo a autenticidade e transformando-se numa outra coisa que não pode mais chamar-se Yôga (yoga), nem tem a mesma proposta.47

O iogue DeRose busca fundamentação de sua tradição (hoje método) em

estudos, segundo ele, de antigos textos (que ele nunca revela) que eles mesmo

codifica e que afirma terem origem pré-védica. Com essa retórica, anula qualquer tipo

de especulação de sua veracidade. De qualquer modo, DeRose toma um caminho

totalmente oposto a que Hermógenes enveredou: em um modelo tipo “empresarial”

aonde seus professores/discípulos se filiam a sua escola/tradição/método e são

proibidos de ler livros não autorizados por ele e ameaçados de expulsos

imediatamente caso infrinja qualquer regra. O seu discurso é altamente sectário

portanto, ao contrário de Hermógenes que nem curso de formação desenvolveu

formalmente, todos os seus professores foram formados pelo contato direto com as

aulas dele. Segundo o próprio Sanchez:

Por meio de um discurso de autenticidade, DeRose criou elementos que lhe deram suporte para negar as outras modalidades, vistas como formas deturpadas de Yoga, cuja memória não merece ser acessada. Uma memória impedida que pode ser nociva e comprometedora dos estudos daqueles que a acessarem. Dessa forma, recomenda não frequentar outras escolas, outras

47 Disponível em: http://www.uni-yoga.org/cultura-e-entretenimento/tudo-sobre-yoga/#iten7. Acessando em 30/06/15.

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egrégoras e não experimentar outros métodos. (SANCHEZ, 2014, p.64)

Dessa forma, DeRose deslegitima o iogaterapia de Hermógenes como “formas

deturpadas de Yoga”, e considera o seu método (Swasthya Yôga) “pré-védico”,

portanto, numa posição irrefutável, pois se trata de um conhecimento oral antes de

qualquer escritura que a possa autorizar. No entanto, a partir do final de 1990 e início

dos anos 2000, o Brasil recebe, com maior volume, institutos e organizações de ioga

com base na Índia e outras denominações norte-americanas. Com a abertura de novos

modelos de ioga, por assim dizer, a autoridade desses dois grandes líderes de ioga no

país decresce, culminando com DeRose retirando em meados de 2004 o nome ioga de

suas escolas e optando por “Método DeRose de qualidade de vida”. O ioga, como os

próprios entrevistados no próximo capítulo revelarão, passa por uma transição no

Brasil, pois o próprio DeRose agora, mais do que sair do microuniverso ioguico

brasileiro, parece não mais acreditar no ioga como via salvífica. Seu método agora se

utiliza também de outras técnicas para “o desenvolvimento pessoal”, como ele mesmo

diz. Será o ioga híbrido e permissivo de Hermógenes vencendo a ortodoxia e elitismo

de DeRose ou apenas a virada de mais uma fase nos ajustes e acomodações do ioga

latino-americano?

Para compreender o sucesso de um e o fracasso de outro, é necessário antes

partir de uma outra perspectiva que não revelamos: não há vencedores e perdedores.

O ioga, como estrutura religiosa autônoma e ainda em processo, mantém a sua lógica

a partir do jogo entre iogues híbridos e ortodoxos. Dito de outra forma, sem a

permissividade sincrética dos híbridos, personalizado na figura do Prof. Hermógenes,

o ioga não teria se popularizado e galgado os laboratórios de fisiologia científicos. Por

outro lado, os sincretismos advindos dos iogues híbridos poderiam ter diluído os

ensinamentos ioguicos em meio as mais diversas construções, se não existissem os

iogues tradicionalistas que freiam aos avanços híbridos e promovem, através do

sectarismo e mecanismos retóricos de deslegitimação de discursos, o resgate e

manutenção de conceitos caros ao ioga. O contorno que desenha e determina certa

estrutura do ioga brasileiro é assegurado pelos discursos contraditórios e ambivalentes

de híbridos e tradicionais.

Enquanto DeRose deixa claro que ioga “é qualquer metodologia estritamente

prática que conduza ao samádhi”. Hermógenes afirma que: “O verdadeiro religioso

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faz do relaxamento um ato essencialmente místico. Para ele o relaxamento é um modo

prático, concreto e vivencial de rezar. No relaxamento, confia-se em Deus”. Com isso

em mente, no próximo capítulo, revelarei que a reforma na proposta salvífica do ioga

brasileiro desenvolveu discursos díspares, mas inclusivos. Em outras palavras, o

hibridismo de Hermógenes e o tradicionalismo do DeRose, diferentes no formato, são

complementares no microuniverso ioguico brasileiro. Enquanto a ala híbrida vincula-

se com o catolicismo popular brasileiro e biomedicina ocidental e pouco com os

elementos hinduístas; os tradicionalistas estão em constante alerta a traduções do ioga

sem o devido respaldo das suas escrituras.

Talvez a reforma soteriológica em processo no país se fez necessária - período

este que os iogues entrevistados a seguir se reportarão como “fase de transição” - para

desenvolver a versão iogaterapêutica de Hermógenes, hegemônica no país por mais

de setenta anos, menos pragmática devido a sua aproximação e apropriação da

ciência. Assim, hoje, a teoria dos klesas, a experiência mística do samadhi e o estado

libertador de kaivalya não pareçam mais estar fundamentadas nas escrituras

tradicionais hinduísta tão-somente, mas estabelecendo-se dialeticamente entre saúde-

salvação. As entrevistas a seguir confirmarão aprofundarão essa discussão.

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Capitulo 4 O IOGA BRASILEIRO: CONVERSANDO COM IOGUES E CIENTISTAS

SOBRE O MAL, O BEM E VIAS DE SALVAÇÃO MODERNAS

4.1. Considerações preliminares

O ioga, apesar de sua visibilidade nacional, foi objeto de escassas

investigações no Brasil e América Latina sobre os princípios espirituais que o

norteiam contemporaneamente. Talvez por essa deficiência acadêmica, é bastante

comum, mesmo entre antropólogos e sociólogos, envolver o ioga dentro de novas

denominações espirituais e sem os limites que o singularizam. Defendo aqui o ioga

com características próprias e, no Brasil particularmente, a Iogaterapia do Prof.

Hermógenes prevaleceu como hegemônica ao longo de mais de cinquenta anos sobre

o Swasthya yôga do Mestre DeRose. Mas isso não significa que esse microuniverso

espiritual seja monolítico. Para facilitar a minha investigação por meio de entrevistas,

adotei o ioga brasileiro em três grupos de agentes ou interlocutores ideais: 1)

professores, 2) mentores e 3) cientistas.

O primeiro grupo de agentes é formado pelos professores que operam no

microuniverso religioso do ioga brasileiro ministrando aulas regulares em academias,

studios e espaços exclusivos. Estes são os principais divulgadores do grupo mentores,

pois mesmo que alguns não se sintam “discípulos” destes, propalam, vendem e

compram produtos proselitistas para serem divulgados aos seus alunos. O segundo

grupo é constituído pelo o que eu denomino de mentores do ioga. Estes são os

principais responsáveis por conservar, reformar, construir e disseminar os princípios

espirituais ioguicos no Brasil. Os mentores se diferenciam do anterior por: 1)

organizarem os seus próprios cursos de formação de professores de ioga, dessa forma,

renovando também os divulgadores da sua própria espiritualidade, tradição, método

ou escola ioguica entre alunos/praticantes; 2) os mentores também detém o poder de

fomentar seus ideias ioguicos através da produção e distribuição de seus próprios

produtos de ioga, como workshops, kirtans ou satsangs, livros, cd’s, dvd’s e etc; e 3)

por meio de retiros, viagens e/ou peregrinações a lugares especiais ao microuniverso

do ioga - como Índia, Japão, Machu Pichu, Nepal, Tibete e outros - conduzem alunos

e professores de ioga promulgando os princípios ioguicos que professam.

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Durante as minhas primeiras entrevistas, no entanto, percebi que o grupo

cientistas que investigam as práticas ioguicas como terapêuticas também contribuíam

com a divulgação do ioga e de suas práticas corporais. Serão esses agentes, ao lado

dos mentores, que justificarão a eficácia das práticas do ioga entre os alunos e

professores. Senti a necessidade de incluir, então, o grupo cientistas, pois identifiquei

também uma forte presença de elementos da ciência nos discursos dos mentores.

Poderia inclusive ter incluído um quarto grupo, o de alunos/praticantes, mas

entendo que estes, mesmos mais numerosos (obviamente), atuam como consumidores

religiosos do que determinantes na construção e manutenção de novos bens de

salvação como os agentes anteriores. Se a minha pergunta fosse outra, provavelmente

a inclusão destes seria imprescindível. Outro ponto a não considerá-los, é o

comportamento difuso e errante que ainda prevalece neste grupo - apesar de estar em

processo de transição. A categoria alunos/praticantes cessam, algumas vezes, esse

comportamento (difuso e errante) quando ingressam em algum curso de formação,

mas neste momento, deixam de agir como alunos/praticantes e são autorizados à

categoria de professores ou mesmo mentores, dependendo da postura que exercerem

no microuniverso ioguico brasileiro.

4.2. O universo da pesquisa

Compreendo que as três categorias acima (professores, mentores e cientistas)

funcionam de forma orgânica - e não institucional – permitindo coesão ao ioga

brasileiro como entidade espiritual autônoma. Dito em outras palavras, estes agentes

organizam e dirigem o ioga como uma estrutura religiosa “invisível”. Ao contrário da

Índia, Europa ou Estados Unidos, aonde tradições e escolas modernas de ioga se

instalaram com toda a legitimidade de seus líderes instituídos por linhagens

ancestrais, o ioga na América Latina, como mostramos na sua história, precisou

organizar a sua própria estrutura que o impedisse de romper seus limites de fenômeno

religioso singular. Essa estruturação legitima, interpreta e constrói suas próprias

doutrinas e sistemas de atos e está baseada entre duas instâncias de pensamento

ideias: iogues híbridos - na figura do Prof. Hermógenes - e tradicionalistas - na figura

do mestre DeRose. Como descreverei em próximas subseções, a história dos meus

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entrevistados vai se configurar como discípulos diretos, dissidentes ou simpatizantes

do ioga híbrido ou tradicionalista de alguma forma.

Escolhi assim, dez iogues do grupo mentores e mais três cientistas. A escolha

por esses dez iogues obedecem a importância destes na configuração e legitimidade

do discurso do ioga brasileiro. Há outros que poderiam compor esse quadro, mas não

acredito que se modificaria o conteúdo registrado. Através de entrevistas de caráter

qualitativo busquei hipotetizar qual o papel dos klesas no contexto espiritual do ioga

brasileiro.

As perguntas de forma semi-estruturadas, foram elabordas deixando os

entrevistados falarem com certa fluidez sobre os assuntos pré-abordados: 1)

Trajetória de vida: aqui consegui perceber que, mesmo conversando com dez iogues,

poderiam dividi-los em apenas dois grupos como adiantei acima (híbridos e

tradicionais); 2) Relaxamento: como minha hipótese partiu da ideia do estresse ter se

revelado um “obstáculo espiritual” - ou klesa – no ioga moderno, precisei discutir

sobre o seu oposto fisiológico (relaxamento) e perceber como os iogues entreviatados

se posicionariam sobre tal tema. O assunto surgia, geralmente, com a pergunta: “O

que o Sr. X pensa sobre o papel do relaxamento nas práticas e filosofia do ioga?”; 3)

Hinduísmo: aqui me preocupei em colher informações sobre o papel desta

religiosidade sobre o ioga moderno. A minha hipótese é que talvez o ioga não esteja

mais unicamente vinculado aos preceitos religiosos hinduístas; 4) Ecumenismo: neste

tópico conduzi a discussão sobre a influência de outras religiões e espiritualidades

sendo incluídas ao microuniverso religioso do ioga. Aqui pude analisar com mais

acuidade as tênues linhas que o sustentam (ou não) como identidade singular; 5) Ioga,

religião e suas influências espirituais: a pergunta aqui era, invariavelmente, direta e

sem rodeios como “O Sr.X considera o ioga uma religião? Por quê? Como o Sr.

classificaria o ioga?”. Meu foco nesta questão estava em compreender se os iogues

entrevistados ainda se comportariam como os adeptos da nova era, que rejeitam o

rótulo de “religioso”; 6) Ciência: o tema surge com o intento de revelar o quanto do

discurso científico afeta a comunidade do ioga; 7) Estresse, klesas e obstáculos

espirituais: por motivos óbvios a questão busca revelar as possíveis nuances

estabelecidas entre os temas centrais da tese.

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4.3. Entrevistados

A escolha dos iogues entrevistados e classificados como “mentores”, como se

revelará a seguir, foi proposta por uma tríade que os separam dos professores e

alunos/praticantes. A tríade é formada por: 1) Estabelecimento de um curso de

formação que solidifique a ideologia espiritual que professe; 2) Edificação de

produtos sobre a proposta espiritual ioguica, como livros, cd’s, dvd’s e outros; e 3)

Peregrinações organizadas e guiadas a locais de importância espiritual para o ioga,

mas sobretudo, ao mentor e o seu ideal ioguico propriamente dito. Essa tríade

funciona e sustenta a estrutura religiosa “invisível” que comentei anteriormente.

A exceção se faz ao Prof. Hermógenes, que nunca possuiu uma escola de

formação propriamente dita, mas as suas obras se constituem verdadeiros livros

didáticos de ingresso ao microuniverso da sua cosmovisão do ioga, como veremos na

história de alguns mentores. Por respeito aos entrevistados, todos terão aos seus

nomes preservados.

4.3.1. Ravi

Pertence à tradição do swami Kuvalayananda e conhece o ioga no ambiente

acadêmico da Universidade de São Paulo (USP) na década de setenta pelas mãos de

Dona Inêz, também discípula do mesmo mestre e primeira iogue mulher no Brasil.

Assim como sua mentora, Ravi foi estudar em Lonavla/Índia no instituto de

Kaivalyadhama por quase dois anos. Lá, teve como mentor o Prof. Gharote entre os

anos de 1979-1980, coordenador na época do instituto fundado por swami

Kuvalayananda e considerado um dos primeiros incentivadores do “ioga científico” e

discípulo direto do swami. Ravi, inclusive, foi responsável por trazer o Prof. Gharote

diversas vezes ao Brasil em seus cursos de formação.

Em 1981 começa a lecionar ioga no campus da USP e se mantém lá até hoje.

A partir de 1996, inaugura o seu curso de formação em professor de ioga com a

chancela de uma universidade de São Paulo, aonde forma muitos professores de ioga

no Brasil na mesma perspectiva que estudou na Índia. Conseguiu incentivar os

estudos científicos do ioga, por isso possui entre os seus alunos, muitos com formação

acadêmica superior - inclusive ele mesmo possui mestrado em Neurologia. Ravi e

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seus formados incentivam o ioga e as suas práticas a serem investigadas como forma

terapêutica no Brasil. Além dos cursos de formação que promove, organiza retiros,

palestras e viagens periódicas à Índia, mas também recentemente, ao Japão com a

monja Coen – conhecida representante do zen budismo no Brasil. Possui, devido a sua

formação e fidelização apenas a Kuvalayananda, forte tendência tradicionalista.

4.3.2. Centurion

De origem espírita teve fortes experiências, como narra, do curandeirismo por

parte dos seus avós. Se considera um “cristomaníaco” e possui em suas costas tatuado

a figura do anjo São Gabriel, com quem diz conseguir se comunicar e pedir

aconselhamentos.

Nasce em 1965 e com 25 anos (1980) descobre o ioga com um professor da

tradição de Iyengar no Brasil, em reuniões de uma organização de estudos esotéricos

em São Paulo no qual fazia parte. Foi aluno do DeRose por um ano, mas depois

decidiu se aprofundar mais no ioga e viajou para Índia por quase dois anos. Foi

quando aprendeu a iogaterapia e ayurveda pela tradição da Bihar School, do swami

Satyananda - discípulo de Sivananda. Na Índia ainda, conhece o iogue Pattabhi Jois,

idealizador de um dos métodos de ioga mais conhecidos Ocidente, o Asthanga

Vinyasa Yoga.

Foi o primeiro professor representante brasileiro desta tradição e se torna

bastante popular por lecionar para artistas nacionais. Possui, inclusive dvd’s de ensino

deste método. Após um incidente ocorrido em um dos seus retiros no ano de 2008, é

praticamente banido pela comunidade ioguica, mas mantém o seu ashram em

funcionamento em São Paulo. Enquanto atuava com maior autoridade no

microuniverso do ioga brasileiro, formou os principais professores do método de Jois

no país, além de possuir escolas de ioga, promover palestras e retiros de ioga. Por seu

sincretismo com a figura de Jesus Cristo, São Miguel e o espiritismo é considerado

aqui como híbrido.

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4.3.3. Vishnu

Nascido em Campinas, cidade do interior de São Paulo, conhece o ioga por

intermédio de sua mãe que já praticava através dos livros do Prof. Hermógenes em

casa na década de 1980. Em 1990, com 18 anos, vai estudar nos Estados Unidos e se

gradua no equivalente ao curso de Educação Física, e continua no estrangeiro

trabalhando em algumas cidades deste país e na Espanha com treinamento desportivo

e ioga. Neste período, entra em contato com outros métodos de ioga moderno, como o

Power Yoga, e se aperfeiçoa neste.

Em 1994, ainda nos Estados Unidos, diz ter “sentido um chamado” de voltar

ao Brasil para disseminar o conhecimento do ioga. Estabelecendo-se na cidade de

Florianópolis percebe o ioga brasileiro, segundo ele: “respirando dois ambientes: ou

se era Hermógenes ou DeRose”. Depois de praticar alguns meses no método

Swasthya Yôga, diz ter sido hostilizado pelo professor e saiu. Decide então, abrir a sua

própria escola de ioga na cidade e é o primeiro professor de Power Yoga no país.

Conta que ensinava “yoga fitness”, divertindo-se hoje do nome que inventou na

época.

A partir dos anos de 2000, envereda por um trabalho bem mais sincrético

espiritualmente no intuito de proteger-se dos rótulos e denominações diferentes de

ioga no país, mas também fugir da comparações de praticar e ensinar um ioga

“americanizado”. Neste mesmo projeto, além dos cursos de formação, retiros,

workshops com temas bastante ecléticos que sincretizam Jesus, xamanismo brasileiro

com ensinamentos do Bhagavad Gita, lança cd’s e dvd’s de encontros musicais

ecumênicos de mantras e canções de comunhão espiritual. Viaja anualmente para

Índia e outros locais como Machu Pichu e os Andes promovendo encontros

xamânicos com o ioga. Sua vertente é claramente híbrida e se tornou um dos iogues

mais conhecidos no Brasil desta vertente atualmente.

4.3.4. Ganesh

Conhece o ioga na juventude no Uruguai, seu país natal. Estabeleceu-se no

Brasil como um dos principais formados do mestre DeRose. Depois de mais de dez

anos praticando e promovendo o Swasthya Yôga rompe com DeRose por divergências

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doutrinais. Essa ruptura gera insultos entre ambos e até hoje é fruto de discussões e

ofensas.

Anos mais tarde se filia ao mestre Pattabhi Jois e se torna divulgador e

praticante do método Asthanga Vinyasa Yoga, mas abandona anos depois, novamente

por não acreditar mais na proposta e objetivo dessa tradição de ioga. Há alguns anos

se aprofunda nos ensinamentos vedantinos do guru indiano swami Dayananda

Saraswati. O Swami Dayananda Ashram é um centro de estudos do vedanta advaita

de Shankara e sânscrito estabelecido na Índia desde os anos de 1960. Dayananda e

seus discípulos, como uma interpretação mais voltada para os problemas

contemporâneos do mundo através dos textos clássicos hinduístas promovem retiros e

cursos de ioga, sânscrito e vedanta para indianos, mas sobretudo estrangeiros48.

Ganesh produz cursos de formação em ioga e viaja às principais cidades

brasileiras e algumas da Europa promovendo o ioga e seu guru. Além disso, guia

anualmente (em geral seus formados) em peregrinação ao ashram do seu mestre e a

outras cidades da Índia no intuito, como todos os mentores do ioga brasileiro, difundir

e conservar a tradição do ioga que confessam. Seu posicionamento a favor do

tradicionalismo do ioga é o mais evidente entre todos os entrevistados, assumindo,

muitas vezes, uma ortodoxia mais forte do que DeRose.

4.3.5. Bento

Era um empresário bem sucedido do ramo da telefonia com mais de 500

funcionários, mas cansou do ritmo da sua vida acelerada de executivo e trocou tudo

pela espiritualidade do ioga. Começou como aluno em uma das unidades do Swasthya

Yôga de DeRose. Decidiu fazer uma formação de ioga e as concluiu em duas no

Brasil: de Ravi e Visnhu.

Após as formações decidiu comprar uma escola de ioga em São Paulo e

ingressou em uma viagem de quase dois meses à Índia com um renomado professor

de ioga do estilo Iyengar. Durante a viagem diz ter sofrido uma profunda angústia e

pensou que iria morrer. Foi quando obteve uma “revelação aos pés do Himalaia” que

48 Ver www.dayananda.org/swami-dayananda.html, acessado 01/07/2015.

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mudaria definitivamente a sua vida. O conteúdo da revelação girava em torno de por

que os professores e iogues (mentores, como denomino) que conheceu no Brasil “não

eram boas pessoas”. Percebeu que o ioga que ensinavam e praticavam não estava

funcionando a elas e, obviamente, também não funcionaria para os alunos que

formavam. Assim, decidiu montar o seu próprio curso de formação, organizar viagens

à Índia e promover cursos, workshops e sat sanghas para difundir o ioga. No mesmo

período fundou uma Organização Não-Governamental, o Ser Humano Sem

Fronteiras.

Possui, ao contrário de todos os outros entrevistados, um guia espiritual

católico, Dom Alexandre, seu “guru”. Dom Alexandre ministra cursos e orienta leigos

e religiosos na meditação cristã da Igreja de São Bento em São Paulo. Foi na mesma

igreja, que Bento, após mais uma de suas crises existenciais, encontrou Dom

Alexandre que ofereceu encaminhamento espiritual a ele nunca mais interrompeu.

Sua linha de disseminação do ioga é obviamente plural, sincrética e híbrida, portanto.

4.3.6. Shanti

Inicia no ioga aos 14 anos na cidade de Florianópolis (1987) e considera-se

uma “buscadora espiritual”. Foi aluna e professora do método do mestre DeRose por

muitos anos, quando se desentendem por discordâncias doutrinais. Morou na Europa

por quase dois anos e conhece novas escolas de ioga em sua estada. Quando viajou

pela Índia por seis meses se interessou pelo ioga de Satyananda, discípulo de

Sivananda, e estuda na Bihar School, conhecida por mesclar o conhecimento do ioga

com princípios da biomedicina Ocidental e o ayurveda indiano.

Por intermédio de um professor de ioga no Brasil conhece o Asthanga Vinyasa

Yoga e, até recentemente, dedica-se ao ensino e formação de outros iogues neste

método. Após uma formação no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, conhecido

reduto de fomentação de novos métodos de ioga, toma conhecimento de uma

formação em Asthanga Vinyasa Yoga promovido sistema It’s Yoga e conhece em

Bali/Indonésia a sua guruji (não mencionada o nome).

Há alguns anos foi acometida de um linfoma que muda drasticamente a sua

vida, a sua prática de ioga e forma de viver a vida. O estilo de ioga Asthanga é

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bastante vigoroso fisicamente, desta forma, com o câncer e o tratamento

medicamentoso, Shanti diminui drasticamente o seu ritmo de prática corporal e,

consequentemente, revê o seu ioga espiritualmente também. Frente a esses fatos, e

aconselhada por outros amigos iogues, se volta aos ensinamentos iogaterapêuticos do

Prof. Hermógenes e encontra consolo espiritual em suas obras. Deste modo, de

tradicionalista vem ressignificando a sua prática pessoal, discurso em suas formações,

retiros e viagens a Índia que organiza para uma vertente se aproximando do

sincretismo, portanto, do ioga mais híbrido de Hermógenes.

4.3.7. Hermes

Inicia no ioga desde criança com a mãe, professora de ioga formada pelo

método do mestre DeRose. No entanto, são com os livros do Prof. Hermógenes que

primeiro trava contato literário com a doutrina do ioga. Hermes aos 16 anos inicia a

sua formação nas escolas de ioga que DeRose coordenava no Rio de Janeiro na

década de 80, aonde se destaca e se transforma professor e a lecionar na própria

metodologia.

Anos após professor do Swasthya, rompe com o mestre DeRose e inicia

caminhada própria no microuniverso do ioga brasileiro, abrindo escola, organizando

formações, palestras e apresentações de método próprio em desenvolvimento. Nesse

ínterim, muda-se para São Paulo, lança livros e ganha notoriedade em âmbito

nacional. Atualmente organiza também viagens à Índia, mantém seus cursos de

formação e venda de produtos de ioga em escola própria.

Assim como outros dissidentes do mestre DeRose, Hermes verte por um ioga

mais tradicionalista do que híbrido. Durante as entrevistas, por exemplo, apesar de ser

grato pela contribuição do Prof. Hermógenes não vê com bons olhos o sincretismo

que promove com o cristianismo e terapia, acreditando que haverá um dia em que

todos saberão as deformações que se fez com o hatha-ioga no Ocidente.

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4.3.8. Rudá

Estabelece contato com o ioga pela primeira vez com a mãe. Segundo ele,

durante o processo depressivo da mãe, o pai de Duda presenteia-a com um livro de

ioga do Prof. Hermógenes na ânsia de resgatá-la desse quadro enfermo. Anos mais

tarde, ele e a mãe ingressam em curso de formação do Prof. Cláudio Duarte em São

Paulo.

O Prof. Cláudio Duarte foi um conhecido iogue brasileiro que nos anos de

introdução do ioga no Brasil (anos de 1970-1980), travou dissensões com a autoridade

do mestre DeRose e seu “yôga”, por isso Duarte sempre grafou “yóga” justamente

para diferenciar-se do Swasthya Yôga. Essa discussão gramatical é clássica entre os

iogues brasileiros entre as décadas de sessenta aos anos de 2000, e revela na verdade,

uma disputa que ajudou ao ioga brasileiro consolidar-se como fenômeno religioso

singular, ao mesmo tempo que acarretou desentendimentos. O que nos interessa aqui,

é ter conhecimento que Rudá participou e vivenciou muito dessa contenda, assim

como todos os mentores anteriores que descrevi e que entrevistei.

Após formar-se em Educação Física, em 1998, Rudá inicia outra formação,

mas agora com o Centurion no método do Asthanga Vinyasa Yoga. A sua formação

acadêmica em Educação Física e vivência entre o meio ioguico brasileiro o capacitou

ser convidado ministrar o ioga como disciplina de graduação em universidade

paulista. Participou integralmente na idealização de uma formação para professores de

ioga e, mesmo não desenvolvendo ainda peregrinações periódicas a locais “sagrados”

ao ioga como seus colegas, a posição de formador de professores de ioga com a

chancela acadêmica, algo realizado apenas por Ravi e DeRose anos passados, o

autorizam como um mentor em andamento de sua própria metodologia de ensino

espiritual. Por sua vivencia mais abrangente, ensina e professa o ioga híbrido.

4.3.9. Andurá

O cientista Andurá conhece o ioga e a meditação através das artes marciais

ainda jovem. Segundo ele, fez e conheceu as mais diversas práticas meditativas, mas

as considerava todas “muito místicas”. Quando convidado pela Universidade Federal

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de São Paulo para o seu doutorado envereda na discussão das benéficas repercussões

da meditação para gestantes.

Em 1994, a sua tese gera ótima recepção da comunidade acadêmica

internacional pela definição operacional que concebe para a meditação - descrita na

subseção 4.4.4. Atualmente ainda atua como pesquisador, mas a sua principal

ocupação está voltada para os cursos que produz e ministra de formação para

facilitadores de meditação em saúde. Seu curso, de certa forma, se assemelha com as

formações em ioga realizadas pelos mentores do ioga descritos acima, no quesito a

referência aos textos do ioga (mesmo que historicamente) a respeito da meditação.

Como veremos, o posicionamento de Andurá com relação aos mentores do ioga

brasileiro, chega a ultrapassar, em alguns momentos, os limites do que a ciência está

autorizada a discutir. Sua figura, no entanto, em alguns núcleos ioguicos é valorizada,

enquanto que abolida em outros, e suas definições sobre estados e práticas

meditativas/ioguicas podem chegar a desautorizar discursos ioguicos alheios.

4.3.10. Osiris

A cientista Osiris conhece a meditação/ioga através da vida como desportista

nas artes marciais. Sua graduação em biologia pela Universidade de São Paulo e

depois os anos do mestrado (1999), doutorado (2002) e pós-doutorado (2012) pelo

Albert Einstein de São Paulo, a autorizaram ser considerada uma das mais

importantes pesquisadoras na área de meditação do país.

Atualmente é professora afiliada do departamento de Psicobiologia da

Universidade de São Paulo e as suas principais pesquisas abordam a neurofisiologia

de estados de consciência como a meditação através da neuroimagem funcional e a

avaliação de intervenções que envolvem treinamento de habilidades cognitivas e

comportamentais que promovam uma melhor qualidade de vida e bem-estar. Está

hoje também bastante envolvida com o Instituto Palas Athena de São Paulo que

divulga, entre outros assuntos, a vinda do Dalai Lama ao Brasil e outros cientistas e

monges que investigam práticas espirituais de contemplação.

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4.3.11. William

Aprende as práticas de ioga e meditação ainda adolescente com o seu pai em

São Paulo. Graduado em Educação Física, deu continuidade a vida acadêmica com o

mestrado em Farmacologia e o doutorado investigando o ioga como uso terapêutico.

Praticando ioga depois em Santos/SP, aprende uma espiritualidade muito mais

medicinal do que vedântica, pois o seu professor na época foi bastante inspirado nas

obras do Prof. Hermógenes. Já adulto resolve ingressar em uma formação para

professores de ioga com Ravi, no “ioga científico”. Ministra aulas na rede pública da

cidade de Santos/SP, mas depois abandona e segue a vida de professor acadêmico

aonde atua até hoje. Seu doutorado concorreu a prêmios nacionais de revelação

acadêmica e possui artigos acadêmicos publicados pelo mesmo departamento da

Universidade Federal de São Paulo de seus dois colegas anteriores.

4.4. Questões de aproximação

A partir da análise das sete questões pré-elaboradas iniciais (1. Trajetória de

vida; 2. Relaxamento; 3. Hinduísmo; 4. Ecumenismo; 5. Ioga, religião e influências

espirituais; 6. Ciência; e 7. Klesas, estresse e obstáculos espirituais) agrupei os

comentários em quatro subseções que seguem: 4.4.1. Práticas e estados de ioga

ressignificados; 4.4.2. Ciência e ioga na construção de uma nova espiritualidade

terapêutica em andamento; 4.4.3. Fase de transição na comunidade ioguica brasileira

em busca da sua identidade religiosa; 4.4.4. A crença na ordem cósmica e prana

estabelecendo dialética entre o estresse e o relaxamento espiritualizados; 4.4.5.

Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya; 4.4.6. A

crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e o

relaxamento espiritualizados.

A ordem das perguntas não necessariamente seguiram-se como expostas

acima, mas serviram muito bem de estrutura para as gravações das entrevistas. Os

conteúdos das questões formaram a base para elaboração das questões subsequentes e

me ajudaram a organizar os argumentos discutidos no capítulo cinco.

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Com relação as quatro subseções a seguir, elas são cruciais para se hipotetizar

a lógica que sustenta a estrutura do ioga como um novo movimento religioso,

desvinculado do hinduísmo e demais denominações advindas da Nova Era, mas

sobretudo, para se buscar ampliar a compreensão dos meandros que levaram

possivelmente o ioga brasileiro acomodar as causas do Mal/klesas à configuração

atual. No primeiro momento, apresento uma divisão que os líderes do ioga realizaram

entre “prática ou método” de “estado ou experiência” do ioga, permitindo a eles

mesmos excluírem do seu microuniverso qualquer tentativa de secularizar o ioga pela

fisiologia científica biomédica. Essa estratégia resguarda a promessa ioguica de

salvação/libertação, ao mesmo tempo em que autoriza os avanços da ciência na

investigação dos seus benefícios terapêuticos.

Na subseção ulterior, exponho pela primeira vez uma nova categoria de

agentes atuando na manutenção e reformulação do discurso do ioga. Mesmo sem a

intenção real (e muitas vezes, contra a pretensão dos agentes), o conteúdo discursivo

dos cientistas os incluem como parte inclusiva, junto com a dos mentores, ao

microuniverso ioguico em formação brasileiro. Logo, posso supor algumas

colocações dos cientistas, uma condição destes de “cientistas-monges” ou

“meditadores-cientistas”. Esta posição de cientistas-monges, não os encaixa nem

como alunos e muito menos como mentores. De alguma forma, durante a análise das

entrevistas, foi se evidenciando cada vez mais a importância do conteúdo da fala dos

cientistas na construção compreensiva dos klesas ao lado do posicionamento dos

mentores sobre o mesmo tema.

A partir do relato dos cientistas entrevistados, aflora em alguns momentos, um

discurso que visa desautorizar a fala dos mentores do ioga com relação aos conteúdos

doutrinários e práticos, por exemplo. Em palavras mais simples, há críticas de

mentores contra posicionamentos de cientistas, mas também de cientistas criticando o

conhecimento (e posicionamento ético) inadequado dos mentores sobre suas doutrinas

e sistema de atos espirituais. A contenda não reside – reforço - entre ciência e ioga,

mas entre cientistas e iogues. Desse modo, ao invés de analisá-los como um

posicionamento da ciência, avalio-os como parte integrante da estrutura religiosa

“invisível” que, hipoteticamente ainda, parece reger o ioga brasileiro.

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Na análise da terceira subseção, mostro uma fase de transição com o fim da

disputa entre os agentes mais populares ao longo de setenta anos do ioga brasileiro, o

embate entre o Prof. Hermógenes e Mestre DeRose. O término dessa contenda (em

processo ainda), entretanto, não impede que novos mentores do ioga surjam em cena

com o mesmo mote discursivo: híbridos versus tradicionalistas. A diferença agora fica

a cargo do maior tom propalado pelos “herdeiros” atuais da ortodoxia ioguica

brasileira. Em suma, a hegemonia está em processo de inversão, agora são os

tradicionalistas, herdeiros de certa forma do mestre DeRose, levantarem as suas vozes

contra os hibridismos e permissividades religiosas, talvez, no intento de resguardar ou

“resgatar” certo “purismo” no ioga em que vivem.

Na última subseção percebo duas crenças antigas que permanecem e

alinhavam os novos símbolos e bens de salvação do ioga no país: prana ou energia

transfisiológica, e a ideia de ordem cósmica que rege desde a natureza, a sociedade, o

funcionamento dos corpos até a vida em si. Essas duas crenças irão substanciar as

transformações advindas do entrelaçamento do ioga com a fisiologia científica,

sobretudo, estabelecendo diálogo espiritual entre o conceito do estresse-ioguico com

os klesas e emoções nefastas à dialética saúde-salvação, já levantada em capítulos

anteriores e retomada aqui.

4.4.1. Prática e Estado de ioga ressignificados com vistas a deslegitimar cientistas

Analisaremos ao longo deste capítulo trechos das entrevistas, tanto com iogues

quanto cientistas brasileiros, no intuito de apresentar os seus discursos que podem

estar em movimento de uma nova proposta de salvação do ioga no país. Notaremos

uma reforma espiritual ocorrendo na compreensão brasileira da teoria dos klesas no

seu encontro com o microuniverso religioso ioguico. Segundo o psicanalista brasileiro

Christian Dunker, podemos pressupor o sofrimento centrado no desejo de uma vida

diferente; esta angústia, na perda da experiência de uma forma de viver ainda não

reconhecida, implicaria na necessidade de compreende-la como obstáculo ou

contradição não reconhecidas (DUNKER, 2015, p.19-22). Os klesas, como os

obstáculos à kaivalya ou causa do sofrimento espiritual, podem estar centrados no

desejo de iogues brasileiros por uma vida diferente ou em experiências de um jeito de

vida ainda não descoberto.

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Dessa forma, a teoria clássica dos klesas - ou os obstáculos que originam o

sofrimento de um grupo de iogues indianos do século II a.C. - quando encontram

cultura e sociedade diferentes, torna-se plausível supor, modificarem os sintomas e/ou

causas do que foi o impedimento à felicidade de outrora (ignorância, apego, aversão,

medo da morte e orgulho). Logo, investigar os klesas no microuniverso do ioga

brasileiro, pode contribuir - o mínimo que seja - na compreensão das causas do

sofrimento existencial dos que buscam no ioga uma vida mais plena e feliz. Abaixo,

inicio apresentando o diálogo estabelecido entre o estresse como obstáculo espiritual

ao samadhi, a vivência religiosa transitória que antecede kaivalya:

Hermes: o estresse impede a [experiência do] samadhi. Bento: o estresse impede ao estado de ioga. Tem o estresse controlado, que as vezes é necessário, mas tem o estresse que é um realmente um obstáculo (...) o método abaixa o estresse-obstáculo e assim, auxilia-nos a atingir o estado. (...) Não existe deus no ioga, pois Isvara é um estado. Shanti: o estresse nos afasta, nos desconecta [do estado]. E é o estado de ioga que abaixa o estresse. Ele acalma a mente, aterra... e assim, nos ajuda a conectar novamente.

O “estado” ao qual os iogues mencionam parece se referir a experiência do

próprio samadhi ou comunhão com deus/Isvara como explicitou Bento, enquanto a

“prática” ou o “método” vem configurando-se como o sistema de atos com empíricas

repercussões averiguadas pela ciência no intuito do alcance da cura de doenças (sejam

de ordens físicas ou psíquicas). O objetivo permanece: diminuir os efeitos do

“estresse-ioguico” no corpo, mas o pano-de-fundo se revela em curar-se de forma

transcendente de certa angústia latente ou obstáculo/klesa que impede que o samadhi

ou “estado de ioga” ocorra. Outros entrevistados, inclusive cientistas, aprofundam a

questão nos fornecendo mais chaves-de-leitura:

Shanti: Reagir é algo negativo porque não se tem consciência na reação. O ioga lhe traz para o momento presente. A prática no tapete é um ritual de nos trazer para o presente, o Eu. Rudá: o ioga diminui a agitação, o estresse e a ansiedade da minha vida, ao mesmo tempo o ioga me dá energia, me tira de um estado torpor e me deixa no estado de ioga. O estresse me desconecta e me faz sair do estado de ioga... a união. A respiração [pranayama] me traz para o aqui-e-agora e diminui os meus vrttis [causador da agitação mental advindo dos klesas] e meu estresse.

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Andurá: Meditar serve para reduzir estresse e aumento da performance mental e aumenta o sistema autoimune. Meditar pode desacelerar a mente e ajudar pessoas em tratamento psicoterapêuticos. Osiris: Ioga é para redução de estresse. A resposta do estresse salva vidas. Mas na cultura do ioga o estresse atinge o status de ser melhor manejado. Os iogues buscam diminuir o estresse, aumentar o bem-estar e ser alguém melhor. Não ser tão afetável pela sociedade moderna, de consumo e estressada, é um dos grandes objetivos dos iogues com quem convivo e estudo. (...) As posturas do ioga podem diminuir as aflições mentais e conduzir ao relaxamento. Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a primeira fase da meditação. (...) O ioga tem uma vertente “terapia” sim. Ioga é instrumento anti-estresse pela maiorias das pessoas. William: Sem dúvidas, a prática ioguica repercute na redução do estresse a melhora do sistema autoimune de seus adeptos.

A dicotomia entre prática e estado no ioga foi se evidenciando durante as

minhas audições, mas no decorrer da coleta de dados fui percebendo ser possível

correlacionar essa separação apresentada, entre prática e estado de ioga, como uma

nova compreensão dos klesas ou causa da angústia, estresse, emoções extremas ou

ansiedade. Se adotarmos modernamente, pela fundamentação do capítulo 2, os

klesas a partir das repercussões deletérias do estresse e sentimentos/emoções

específicas, a manifestação do estado de ioga pode estar sendo relacionada com

menores manifestações de doenças no corpo-mente. Como consequência, esses fatos

corroboram as nossas suposições de que as práticas de ioga estabeleceriam uma

relação em processo entre terapia-cura-salvação específica ao contexto brasileiro.

Por enquanto, o que fica é que as práticas corporais e o estados de ioga foram

ressignificados e distinguidos.

O contato do ioga com a ciência – além de outros fatores como veremos –

pode ter enfraquecido a força das escrituras ioguicas calcadas no hinduísmo e outras

religiões ao longo de séculos na Índia, e elevado o das sensações corporais e as suas

repercussões terapêuticas legitimados pela ciência desde o início do séc. XX.

Centurion: o ioga sempre esteve desvinculado do hinduísmo enquanto religião. Vishnu: o ioga está desvinculado do hinduísmo modernamente. Ravi: A imbricação do ioga com as religiões é algo ruim para ele. É um erro achar que juntar duas religiões pode gerar uma terceira melhor. Não acho correto rezar o pai-nosso no ioga. Cada religião deve manter as suas concepções restritas ao seu próprio contexto religioso. Não preciso do hinduísmo para praticar o ioga. Mesmo que o ioga peça alguma divindade a quem entregar-se. Isvara é o deus pessoal e você o compõe. A ciência

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corrobora com o ioga. Prana não é científico porque a ciência ainda não conseguiu provar. É uma questão de tempo. Shanti: o encontro do ioga com a ciência foi excelente para o ioga. O ioga produz saúde. A ciência afasta a mística do ioga.

Fica evidente acima que o hinduísmo vem perdendo a sua força de coesão da

comunidade moderna do ioga, e a ciência, como uma das principais ferramentas

proselitistas do ioga moderno (ALTER, 2004), possivelmente auxiliando a elevar os

aspectos mais corporais e terapêuticos do ioga. Assim, mesmo que a face mais física e

terapêutica do ioga exista desde os seus tempos medievais (como demonstramos no

primeiro capítulo), contemporaneamente, foi o enfraquecimento do ioga como

religiosidade autônoma, o fator que o diferencia de tempos passados. É bastante

comum, mesmo cientistas da religião, incluírem diversas denominações de ioga sob a

esfera de novos movimentos religiosos (GUERRIERO, 2006, p.111-132), ao invés de

pertencentes ao mesmo microuniverso religioso, o que remove a perspectiva de

investigá-lo como uma religião autônoma. Isso reduz o ioga e não nos permite

compreende-lo em sua íntegra.

O ioga moderno, por questões sociais que desenvolvemos no capítulo 1, teve a

ciência como seu principal veículo de ajuste e adaptação quando da transplantação do

ioga indiano para os grandes centros urbanos ocidentais (DeMICHELIS, 2008, p.17-

21). Isso aproximou muitos cientistas conhecerem, praticarem e investigarem o ioga e

a meditação com fins medicinais. No Brasil, como expomos no terceiro capítulo,

foram os próprios brasileiros que vieram estabelecendo suas diretrizes de conduta

ética e causas do sofrimento. Os discursos versados nas obras de Amit Goswami,

Fritjof Capra, Allan Wallace, Deepak Chopra e outros, que criticam o realismo

materialista da ciência, a origem mística das religiões e a capacidade delas em

transmitir a essência de suas experiências para as sociedades modernas (NOGUEIRA,

2010), parecem ter autorizado, ambivalentemente, cientistas brasileiros a disputarem

com os iogues, na produção e manutenção de novos bens de salvação no ioga,

fazendo surgir o que identifiquei aqui como cientistas-monges. Com base em

caracteres fisiológicos, estes cientista-monges e o iogues-mentores (como

Hermógenes), acabaram legitimando com a chancela da ciência as práticas modernas

do ioga como inibidoras do estresse e promotoras da saúde via experiência do

relaxamento.

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Andurá: Não podemos confundir o estado de dhyana [meditação propriamente dita] com o método de dhyana. Com isso, perdemos a essência dos sutras de Patanjali. Ninguém mais sabe o que ele quis dizer. Eles [os iogues] não aceitaram a minha definição operacional de meditação [acadêmica, portanto legítima]. Para eles, não existe prática de dhyana, é só estado, e isso é um erro. A prática meditativa não é sagrada do ponto de vista mental. William: Quando assistimos um iogue afastar dois de seus professores porque um deles relaciona ioga com religião, fica evidente que se eles falam [mentores] que ioga é religião perdem mercado, é uma hipocrisia e ignorância alimentadas por uma necessidade de sobreviver nesse mundo caótico. É o mundo do capital. Hoje ninguém domina no campo do ioga. O DeRose foi um grande dominante, as demais pequenas seitas sendo esmagadas o destruíram. Talvez por isso DeRose diz que não trabalha mais com ioga. Há um desgaste do nome ioga. O ioga pode ter virado uma PNL [Programação Neolinguística]. Talvez se o ioga assumir que é religião tomará de mil a zero das religiões pentecostais: tem promessas mais divertidas do que a do ioga. O ioga promete diminuir estresse e dor nas costas. O ioga nos anos 1960-70 tinha uma grande promessa, mas foi diluída no movimento contracultural peace and love.

A partir das citações dos cientistas acima, percebe-se que o foco não está na

desmistificação do ioga, mas em deslegitimar o discurso dos mentores do ioga

brasileiro pelos cientistas-monges. Quando Andurá, por exemplo, afirma que os

iogues não sabem o que Patanjali quis dizer, se posiciona como detentor deste saber e

não os iogues com quem convive e investiga em seu laboratório. Para ele, por

exemplo, dhyana não é apenas um “estado de ioga” - portanto, do alcance exclusivo

de iogues autorizados pela “tradição” - mas também uma “técnica”. Sendo uma

técnica, convida a ciência – e a si-mesmo - a participar do microuniverso

religioso/espiritual do ioga, no qual apenas os iogues-mentores possuíam o direito de

discursar até início do séc. XX. Com as práticas e estados ioguicos divididos a sua

autoridade entre iogues e cientistas, o ioga brasileiro busca meios próprios de

autorizar seus líderes de existir e delimitar seus limites como espiritualidade

autônoma.

4.4.2. Ciência e Ioga na construção de uma nova espiritualidade terapêutica em

andamento

Segundo Silas Guerriero, classificar novos movimentos religiosos não é tarefa

das mais fáceis. Contudo, todas as religiões, sem exceção, surgem do seio de

sociedades e são elas reflexos da maneira de viver de núcleos sociais específicos e

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concretos (GUERRIERO, 2006, p.21; Id., 2014), por isso ajudam a responder (e erigir

muitas vezes também) o sofrimento dos indivíduos que a compõem. Em cada

sociedade moderna, no entanto, centenas de religiões convivem entre si e, muitas

vezes, o encontro de duas – ou mais - delas possibilitam o aparecimento de uma

terceira. Guerriero cita o exemplo da ISKSON, um novo movimento religioso que

aparece em Nova Iorque e São Francisco, nos Estados Unidos, com a vinda de um

guru indiano, mas que depois se expande a dezenas de outras cidades ocidentais. A

ISKCON (Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna), a exemplo do

ioga, é transplantada da Índia e depois acaba ganhando contornos espirituais

definitivamente singulares que a tornaram possível hoje, distingui-la como uma

religião particular, com suas próprias práticas, doutrinas e líderes constituídos.

Mesmo comparada ao Hinduísmo, a sua principal influência religiosa, a ISKCON é

absolutamente autônoma e independente (GUERRIERO, 2001). Talvez o ioga

moderno possa enverdar pelo mesmo caminho.

As influências do ioga moderno são vastas, dos hinduístas - sua referência

mais óbvia – aos jainistas, shikhis, budistas, tântricos, sufis muçulmanos e,

recentemente bebeu de movimentos ocultistas europeus, mas sobretudo, da ciência

biomédica ocidental (ALTER, 2004; DeMICHELIS, 2004; SINGLETON & BYRNE,

2008; SINGLETON, 2010). No Brasil, os iogues-híbridos e os cientistas-monges

comungam de certa permissividade com outras espiritualidades, além de acalentarem

o romantismo do surgir de uma “nova ciência” – como leremos - que na verdade,

corresponde ao desejo de ruptura com a ordem vigente, tanto das religiões dominantes

quanto do empirismo da ciência, pensamento típico da espiritualidade Nova Era

(AMARAL, 2000, p.21-32). E é justamente neste ponto, que talvez os agentes do ioga

brasileiro parecem concordar. Híbridos, tradicionalistas e cientistas-monges parecem

direcionar as suas narrativas na busca de traduzir a espiritualidade do ioga, cada um

com as suas particularidades – como estamos destacando -, mas atuando na sociedade

brasileira como agentes religiosos na cura do sofrimento espiritual do microuniverso

que atuam.

O ioga brasileiro, no entanto, ainda não permite definições tão evidentes de

um novo movimento religioso estabelecido como já ocorre com a ISKCON, mas todo

início requer certa motivação tanto de seu microuniverso consolidar-se, quanto da

ciência da religião em compreende-los. Mas algumas pesquisas no universo europeu e

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norte-americano (DeMICHELIS, 2004; NEWCOMBE, 2008; JAIN, 2010) e no Brasil

também já apontam tais aproximações (GNERRE, 2010; GUERRIERO, 2014;

SANCHEZ, 2014). Como esclarece Guerriero, as religiões não surgem do nada ou da

“mente de um líder criativo”, mas da ruptura ou posição contrária à revelação original

(GUERRIERO, 2006, p.21). Talvez o ioga brasileiro, e as suas transformações que

revela-se sobre a sua soteriologia venham corroborar tal posição de um novo

movimento religioso em formação. As principais características dos novos

movimentos religiosos modernos são o seu forte sentimento de mudança social e a

universalidade que proclamam suas crenças (Ibid., p.74-76). Das duas características

dos novos movimentos religiosos descritas por Guerriero, o sentido de pertença a uma

religião universal está presente no ioga moderno desde os pronunciamentos de swami

Vivekananda, ainda no final do século XIX, como já expomos no primeiro capítulo.

Com relação ao desejo por mudanças sociais, teceremos justificativas nas subseções

que se seguem que poderão auxiliar as ciências da religião na classificação do ioga

como um novo movimento religioso em processo no Brasil. Por ora, analisaremos as

audições que solidificam a influência de cientistas e iogues nas transformações

soteriológicas do ioga no Brasil.

Rudá: Vivemos em um mundo que precisamos de comprovações científicas, mas se as pessoas não experienciarem o estado de relaxamento espiritual do ioga, não haverá mudança de estar presente. O entrosamento do ioga com a ciência é necessário. Ravi: A ciência precisa da espiritualidade para comprovar seus dados, não é o ioga que necessita dela. A ciência reconhece a espiritualidade para a cura de doenças. Centurion: o estresse é uma crença científica. Ele na verdade não existe [sic], mas o ioga pode eliminar essa crença.

Por isso talvez, cientistas e mesmo alguns iogues entrevistados, parecem

elevar a técnica ou a prática mais do que o valor das suas escrituras. A questão que

levanto, no entanto, é o discurso do ioga e da ciência se assimilarem em diversas

passagens com relação à maior ênfase na prática do ioga do que no valor das

escrituras e de seus líderes exclusivamente:

Shanti: [O ioga] É estar presente. Agir e não reagir. O iogue deve transpirar e transbordar ioga. O ioga deve se transformar em conhecimento. Não preciso ser nada para ser iogue. Só preciso praticar. (...) Não precisa ter fé

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no ioga, é fazer e vem a sensação. A ciência provocou uma certeza inabalável em minhas crenças. Ravi: O ioga é uma técnica. Aplique as suas técnicas que funciona. DeRose: As técnicas conduzem ao autoconhecimento. Centurion: O ioga é um amplificador. O ioga é um caminho científico que comprova ou nega as minhas crenças. O ioga é uma técnica.

Pela exposição acima podemos identificar no discurso dos iogues Shanti e

Rudá, por exemplo, positividade na aproximação do ioga com a ciência, assim como

o fizeram os primeiros iogues modernos como Vivekananda, Kuvalayananda,

Sivananda, Iyengar e outros. Há uma certeza, que nasce com os teóricos que

investigam o que chamaram de processo secularização (HANEGRAAFF, 2000;

PARTRIDGE, 2005, p.1), pelo qual a ciência afastaria a religião de toda manifestação

de magia e da superstição de outrora, ou como afirmaram os iogues Shanti e

Centurion, a ciência assevera o surgir de uma fé nas suas próprias crenças ioguicas.

À primeira vista, a afirmação pode não fazer sentido, mas como vimos no

capítulo 2, a confiança no ioga foi testada no início do século passado mais pelos

resultados laboratoriais da biologia sobre as suas práticas, do que na exegese de seus

preceitos espirituais. Quando o iogue Centurion afirma que o estresse é uma “crença”

desenvolvida e disseminada pela ciência, ou quando Ravi pondera que é a ciência e

não o ioga, que se beneficiou da aproximação com a espiritualidade; eles estão, ao

mesmo tempo, criticando a posição da realidade materialista de alguns setores da

ciência, como reafirmando um sincretismo religioso ocorrendo entre o ioga e ciência,

típicos do movimento Nova Era (CHAMPION, 1989, p.158; Id. 2001). Quando o

cientista Andurá, na passagem transcrita abaixo, assegura que se a ciência continuar

sob o estrito paradigma materialista, “inviabilizará” o seu próprio desenvolvimento,

defende, de certa forma, o ioga como verdade universal:

Andurá:  Um cientista que medita pode no máximo encontrar um estado de relaxamento da lógica absoluto, mas nunca experimentar a dissolução do ego oriental [sic], da fusão com o todo, o absoluto. Um dia a ciência irá inviabilizar a própria ciência. Acredito no surgir de uma nova ciência. Estamos rasgando tudo ao meio: o ioga, a ciência... Existe um ponto de relaxamento de função mental absolutamente fora dos padrões habituais e científicos. O iogue/meditador alcança esse estado desperto e a ciência não consegue ainda explicar. Todo meditador já percebeu, experimentou o nada. Tudo são conceitos. O estado que vem depois, um estado inexplicável, incognoscível... é o que a ciência não alcança.

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O ioga parece ter se beneficiado da força proselitista da ciência em difundir as

suas práticas espirituais como promotoras da saúde e bem-estar desde os anos de 1920

(ALTER, 2004). Por isso, incorporou em seus discursos uma supervalorização da

prática, técnica ou método do ioga em relação ao estado ou experiência, como

apresentei na subseção passada. É possível entrever, no entanto, a insistência de

alguns iogues e todos os cientistas entrevistados, que o ioga seja “só prática”, sem

nenhuma referência religiosa, provavelmente, por força da privatização religiosa

ocidental. Contudo, posicionamentos extremistas vindo dos cientistas visam, talvez,

deslegitimar o discurso religioso dos iogues-tradicionais principalmente:

William: Duvido do conceito de “iluminação” e "libertação" apregoado por iogues modernos. Não consigo mais ver valor nisso, na juventude acreditava, mas hoje acho patético. Acho que é um delírio e não me interesso mais por isso. Me importo, pessoalmente, apenas em ser uma pessoa melhor. Acredito que deveriam estar preocupado em se perguntar qual a proposta deles para a salvação do ioga! O ioga não ajuda em termos do diálogo com o outro. O ioga/meditação é in... O ioga pode ajudar a aumentar a tolerância e não a legitimação do discurso do outro. O ioga corre o risco de desenvolver o egoísmo. Osiris: As práticas religiosas são passíveis de serem averiguadas pela ciência, é inevitável que a ciência as estudem, e isso empresta capital a elas, mas a ciência não se interessa com a filosofia das práticas religiosas, mas para a melhora da saúde e da atenção. A junção do ioga com a biomedicina é natural, pois o ioga afirma que a sua prática é boa para a saúde e a ciência vai averiguar. Os próprios textos clássicos do ioga afirmam que é bom para a saúde.

Esse estado ao qual William apregoa como “patético”, Osiris afirma “não

interessar à ciência” e no qual Andurá assegura ser o “estado que vem depois” e que a

“ciência não alcança”, pode ser a própria experiência religiosa do samadhi, conteúdo

discursivo dos líderes espirituais do ioga, mas que muitos neuroteólogos visam

reduzir a neurotransmissores, hormônios e regiões encefálicas e trazê-los ao campo do

saber científico exclusivamente (MARINO JR, 2005).

Andurá: Muitos iogues sofrem do “orgulho espiritual”. Eles [os iogues], estão, ao mesmo tempo, tendo um aporte acadêmico de dados mas, por outro lado, têm um aporte de posturas espiritualizadas, de uma nova forma de vida, de perceber o mundo em que vive. Eles precisam, na minha opinião, retirar todos os valores culturais das práticas meditativas [e de ioga], de oração e etc. Isso [cultura que envolve os preceitos ioguicos] são ações mentais. Meditação deve levar ao não eu, você deve se fundir na meditação ou na prática que faz. O meditador experiente perde a capacidade de sentir emoções extremas. Iogue tem que ensinar a prática. Os conceitos do ioga, vedanta, tradição e etc, deveriam ser evitados. Há um excesso de discurso no mundo do ioga. Isso afasta o iogue da meditação. O iogue

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precisa esquecer toda a sua doutrina para não incorrer no risco de conduzir o ioga para uma religião.

Em seu discurso retórico, Andurá se utiliza da ciência para comprovar a

eficiência do seu próprio “método” de meditação a partir da experiência pessoal e de

sua tese de doutoramento e suas inúmeras pesquisas científicas. Outro ponto

importante, que aparece levado em sua fala, é a afirmação de que iogues experientes

(ou mentores) devem desenvolver uma capacidade de arrefecer as suas “emoções

extremas”, “evitar” e “esquecer” toda a sua doutrina espiritual. Essa estratégia de

aniquilação do discurso religioso do ioga, argumentarei nas próximas subseções, pode

estar fomentando o regresso de iogues mais ortodoxos no Brasil, herdeiros do

discurso tradicionalista do iogue DeRose. Se o ioga se institucionalizar como uma

religião organizada, como algumas investigações já sugerem, o projeto de estabelecer

o ioga como algo secular, como pretende Andurá e outros cientistas-monges, cai por

terra. Dito de outra forma, quando Andurá sugere aos iogues-mentores ensinar

“apenas a prática”, remove o estado do ioga da discussão, pois como ele mesmo diz

em outro momento, “esse estado a ciência não consegue explicar”; desse modo, a sua

posição de “cientista” não o autoriza a participar do debate. 

Andurá: A ciência comprovou academicamente que a meditação faz bem. Não é mentira... criação como o da religião. Não é um truque para a pessoa alcançar outro estado e convencer as pessoas a meditar, pois depois levo-os a experimentar um estado além. Só falo sobre isso [o estado além que a ciência não alcança] para o meu grupo de facilitadores [adeptos de sua formação mais “avançados”]. No ioga/meditação, deve se ter confiança, pois a fé só se entende quando se alcança o estado final. Quando a onda se percebe parte do oceano [sic]. Aí, a consciência da ligação não se perde mais... isso é fé ou amor. Osiris: A maior parte das pessoas nem entendem o que é o ioga atualmente. O ioga se encaixa talvez mais como um processo espiritual. A meditação muda a sua vida realmente. Por isso, o ioga não pode ser autodidata se o seu objetivo é espiritual. Sinto que o principal da prática meditativa é você por você mesmo. Agora, se o ioga se declarasse uma religião perderia adeptos. William: O ioga não é ciência e muito menos filosofia. Filosofia e ciência são criações ocidentais. O que caracteriza a filosofia, por exemplo, é estabelecer um pensamento racional para suportar conclusões. Dizer que o ioga é uma filosofia é uma apropriação indevida assim como o ioga é ciência também. No ioga não há nada lógico. É uma conclusão atrás da outra, e não premissas que levam a uma conclusão lógica, racional. O ioga é experiencial. Enquanto você não têm experiência, você precisa acreditar... crer em quem diz que teve. São critérios de validação diferentes. Isso não torna o ioga, a ciência ou a filosofia melhor, mas são critérios de validação diferentes.

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Acima, pode-se entrever que entre os cientistas entrevistados é possível

identificar semelhanças de legitimação de seus discursos com a fala dos iogues-

mentores. Quando Andurá articula que a ciência não é “mentira” ou “criação

religiosa”, toma para si, de alguma maneira, parte da posição de líder espiritual. Esse

discurso é o que denominamos como a de um cientista-monge, pois ele se coloca

como um “facilitador” – o equivalente, neste momento, de um líder do ioga - na

condução de um “estado além”, um “outro estado”, no qual, como ele mesmo

pondera, nem a ciência consegue explicar. Tanto Osiris quanto William também

desautorizam o ioga como religião, talvez nem tanto (como Andurá) para galgar

posicionamentos de liderança no microuniverso do ioga/meditação no Brasil, mas

para desvencilhar seus trabalhos acadêmicos a mística dos estados de ioga. Estes,

assim garantem, que se o ioga assumir para si a denominação de religião, perderá

adeptos e se tornará ilógico e irracional frente ao público leigo que o pratica.

O ioga, dividindo-se, como visto na subseção anterior, entre técnica e estado,

por um lado reduz o valor das compreensões estritamente fisiológicas da biomedicina,

e por outro eleva as suas experiências e estados espirituais. Essa tática religiosa,

constituída sem uma liderança em específico ou organizada, afasta qualquer redução

da religiosidade de seus “estados” por parte de cientistas, mas torna fértil o terreno ao

discurso negativo dos cientistas que buscam desmerecer retóricas ortodoxas de grupos

ioguicos tradicionalistas no país. Enquanto o cientista Andurá se esmera em defender

o estado místico de dhyana, como plausível de ser compreendido também como

método ou prática de ioga/meditação, pode estar, na verdade, buscando enfraquecer a

fala de iogues-tradicionalistas, mas não do ioga/meditação em si. Não é de se

estranhar portanto, que o setor mais tradicionalista do ioga brasileiro se levante contra

esse tipo de posicionamento. Um reflexo concreto dessa “fase de transição” se mostra

na preocupação recente entre iogues brasileiros de preservar a pronúncia correta do

sânscrito, do cuidado na tradução das escrituras e posicionamentos não velados em

obras e sites da internet desmerecendo aproximações do ioga com outras religiões -

como a católica, a daimista e a espírita. Mesmo carecendo de uma pesquisa mais

abrangente, nossos dados apontam uma sensível mudança de posicionamento na

comunidade ioguica brasileira de híbrida e permissiva aos sincretismos, para uma fase

bem mais tradicionalista.

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4.4.3. Fase de transição na comunidade ioguica brasileira em busca da sua

identidade religiosa

Como vimos em outros capítulos, o ioga moderno se adaptou no seu

deslocamento da Índia para os centros urbanos das grandes cidades ocidentais. O

racionalismo empírico da ciência proporcionou a popularização do ioga como

promotor da saúde via as suas repercussões fisiológicas de diminuição do estresse

pelo relaxamento de suas práticas. O iogaterapia e o sincretismo religioso do Prof.

Hermógenes no Brasil marcaram uma época mais híbrida do ioga, por outro lado, o

seu aspecto físico foi, ambivalentemente, sendo mais ressaltado do que as suas

escrituras advindas da espiritualidade hindu. Esse fato autorizou novos “iogas” e

agentes surgirem ao microuniverso ioguico brasileiro, inclusive cientistas, sobretudo a

partir dos anos de 2000 com a influência do ioga e cientistas-monges norte-

americanos. Assim, a demanda também se diversificou. Nem todos buscam as aulas

de ioga para a transcendência e comunhão com Deus, mas para diminuir dores nas

costas, emagrecer, aumento do rendimento esportivo e etc. (SINGLETON, 2010).

O que está em jogo, entretanto, defendo, talvez não esteja na preocupação pela

elevação do aspecto corporal e medicamentoso do ioga em contraposição à sua

espiritualidade. A questão por trás no Brasil pode estar na transição da hegemonia do

discurso híbrido para o despontar da ala tradicionalista em resguardo a legitimidade

do ioga como espiritualidade singular no Brasil. Esse provável deslocamento sensível

que vem ocorrendo imprime os tons de transição de discursos e marca a chegada de

novos líderes e a saída de outros.

Ravi: O ioga passa por mais uma transição. A comunidade ioguica no Brasil melhorou dos tempos dos anos de 1980. Há alguns iogues de interesse sério, que falam a mesma linguagem, mas há outros que se preocuparam apenas com os ásanas (competição e moda). Ioga é para dar liberdade. Ioga é meditação. Mas no mundo moderno o ioga se desvinculou da meditação, por estar muito vinculado as posturas que compete com a educação física e perde espaço pela incompetência dos professores de ioga. A “Americanização do ioga” é sinônimo da predominância do lado físico do ioga. Muitos esqueceram-se da meditação, desatrelou-se uma coisa da outra.  Hermes: Estamos em uma fase de transição da fisicalidade para a não fisicalidade. Não há resgaste do ioga, mas uma correção de direção. (...) O ioga hoje esta sendo recontada por indianos, assim, passa-se por uma transição que a revisa pelo olhar dos próprios indianos. O ioga atual está todo errado, foi interpretado incorretamente.

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Shanti: Em 2000 eu e o Ganesh dávamos cursos e lotava. Hoje não é mais assim. Acredito que ainda existe uma procura, mas há mais gente e tipos de ioga e assim, diminuiu a demanda. Há a concorrência com o pilates, [ginástica] funcional e novos estereótipos do ioga... Há um preconceito com os professores de ioga que cresce na mídia [cita a série da TV brasileira “Surtadas do Yoga” que é transmitido pela GNT como exemplo]. Bento ironiza: Todo mundo no ioga brasileiro se acha parte da centelha divina. Osiris: Há uma tribo de iogalike... querem fazer parte de um grupo. O grupo do ioga é cool.

O principal aspecto que se mostra é a preocupação dos iogues e cientistas

entrevistados à exagerada perspectiva física do ioga que se sobrepõe às

manifestações, segundo eles, mais sutis e espirituais. O iogue DeRose, por exemplo,

substituiu o nome “swasthya yôga” que carregou por décadas em suas escolas, para

“Método DeRose” em meados de 2007-2008. Como ele mesmo relata em sua

entrevista: “Precisei reformular-me e migrar do setor ioga para o setor cultural. O ioga

está em um período de transição, sem dúvidas”.

Entre os iogues, é possível perceber uma mudança na forma como eles se

percebem e à sua comunidade. Hermes diz que inclui ásanas em suas aulas, por

exemplo, de forma estratégica e mercadológica, pois afirma: “As pessoas não querem

ioga, querem o que veem nas revistas”. Ele inclusive confirma adicionar em sua

formação de ioga muito de “saúde” para satisfazer os alunos, mas depois do primeiro

mês começa a mudar o discurso para incluir a mente, o inconsciente e depois a

“criação do espaço mítico [sic]”, influenciado, segundo ele, pela tradição dos Nathas

(iogues medievais indianos) e tântricos (ELIADE, 2001, p.180-198). A iogue

entrevistada Shanti declara algo bem parecido. Ela afirma que “o ioga sempre a

salva”, mas com receio de tratar do ioga como religião e ser “mal interpretada”,

direciona o conteúdo religioso no qual acredita, durante a prática física do ioga, que

ela mesmo define “como um ritual em cima do mat [tapetinho de prática]”. E é esse

ritual que possibilita seus alunos “conectarem-se novamente”:

Shanti: Prefiro enganar as pessoas que o ioga não é religião, pois sei que depois da prática elas vão se sentir conectadas, e isso é religião para mim. As pessoas do ioga não falam de religião, pois querem ter mais alunos. Bento: No Brasil há um preconceito entre as religiões e os espaços de ioga. Mesmo entre os iogues, recebo muitas críticas devido as minhas relações com o cristianismo. Vou ser sincero com você: esse mercado do ioga é pior do que o da telefonia aonde eu trabalhava.

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Centurion: Ioga no Brasil é business. Há uma briga por poder no ioga, mesmo na Índia. Vishnu: O ioga possui um mercado e por isso não se falam em religião. O ioga se divide em estado de ioga-meditativo e um método ou prática. Este segundo é igual a qualquer outra religião.

Os iogues entrevistados chegam a declarar, como lemos, que omitem a se

pronunciar sobre a religiosidade do ioga no qual acreditam abertamente para “não

perderem alunos”. Não porque consideram algo menor intelectual ou

ideologicamente, mas por questões de estratégia de mercado e adaptação social. Com

o movimento da renascença indiana no início do século XX, como apresentamos, a

religiosidade ioguica foi sendo traduzida pelos experimentos da ciência biomédica

sobre as suas práticas. Desse modo, podemos supor que os resultados terapêuticos do

ioga se sobrepuseram aos da sua ética espiritual, portanto, dos klesas. Não seria

surpresa constatarmos que além dos klesas estarem sendo encarnados em estresse e

emoções, o samadhi e kaivalya, venham também construindo correspondentes

igualmente corporificados. Relembrando que samadhi aqui é interpretado como uma

vivência religiosa transitória advinda das práticas corporais do ioga; e kaivalya o

estado de libertação final das agruras da vida, portanto, o fim permanente da ação dos

klesas, logo, do estresse-ioguico.

Como alerta Joseph Alter, o conceito de saúde foi ganhando novas

perspectivas no contexto ioguico moderno e abrindo espaço para o espiritual como

um modelo de terapêutica religiosa (ALTER, 2004, p.XII). Esse modelo estende-se

também para os círculos acadêmicos como podemos assistir em hospitais e o próprio

ministério da saúde brasileiro (SIEGEL, 2010). Entretanto, o proselitismo do ioga

moderno em difundir-se como uma terapêutica religiosa imbricada com a ciência, e

sem uma organização mais formal de estrutura religiosa, pode estar abrindo o leque

de opções ioguicas no mercado religioso a tal ponto dos iogues perceberem a sua

religiosidade sem contornos definidos.

Com isso, a ala ortodoxa ioguica no Brasil levanta a sua voz com receio de

assistir passivamente a extinção do ioga pela “corporificação excessiva”, como alguns

comentaram nas entrevistas que fizemos. Esses fatos, defendo, podem estar

contribuindo para que diversas “linhagens” de ioga surjam competindo no mercado

religioso brasileiro. A resposta do microuniverso ioguico do país frente a esse

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panorama atual, pode refletir no retorno de discursos mais tradicionalistas, herdeiros

da ortodoxia de DeRose, como se lê nas audições de Ganesh e Hermes:

Ganesh: o ioga é uma espiritualidade originalmente. Eu gosto da palavra “resgate”. Me considero responsável pelo resgate da tradição do ioga no Brasil. Faço parte de uma tradição ancestral de ioga. Há uns malucos neo-iogues que pregam algo diferente da tradição. Se utilizam de conceitos do vedanta sem fazer parte da tradição e misturam com um pensamento mágico... Eu sou contra a isso. Eu sou um guardião da tradição do ioga original. Sou seguidor de um sidantha. A minha opinião não serve para nada, pois eu falo através da tradição, não do meu ego. Me preocupo em não distorcer a palavra do vedanta, pois a visão do ioga é plenamente em si mesmo e plena. Não pode ser acrescida e nem tirada. É uma posição ortodoxa, irredutível, tenho consciência disso e não me arrependo, pois respeito a tradição. O ioga é uma visão que mostra uma possibilidade para você perceber-se vinculado com algo que você já é, e no qual você têm lampejos ou intuição, mas que você ainda não percebeu plenamente. É um método de transmissão dessa visão da tradição. Hermes: O ioga tinha uma verve de terapia no seu início aqui no Brasil. Haviam aqueles que praticavam o ioga como terapia. Isso foi errado. O ioga não é uma terapia.

A crítica dos iogues no Brasil, dessa forma, pode não residir na fisicalidade do

ioga, mas no seu pragmatismo terapêutico, ou seja, pelo seu exclusivo uso prático na

remissão de doenças psicofísicas. O que, percebem os iogues-tradicionalistas,

autorizam a entrada indiscriminada dos cientistas-monges e competição na

legitimação das suas escrituras e práticas. No entanto, não há uma crítica direta a

ciência, ou seja, ela continua importante mesmo aos iogues tradicionalistas que se

mostram contra a fisicalidade de suas práticas. Verifico que a reforma soteriológica

do ioga em andamento com relação aos klesas, talvez não exortarão as descobertas

científicas; nem mesmo os iogues ortodoxos como Ganesh, Hermes e DeRose

parecem intentar esse fato. Abaixo, descreverei com mais propriedade a dialética

estabelecendo-se entre saúde-salvação-kaivalya e relaxamento-prática-samadhi, no

intento de corroborar com estudos de outros países que já apontam o ioga como

religião (DeMICHELIS, 2004; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2010):

Shanti: Não precisa ter fé no ioga, é fazer e vem a sensação. A ciência provocou uma certeza inabalável em minhas crenças [sic]. (...) as aulas de ioga precisam ser preenchidas de espiritualidade. Rudrá: Não quero dar aula para pessoas doentes. Quero e sempre dei aulas para pessoas sãs. Mas sei que a prática pode prevenir de doenças, pois diminui o estresse. Posso relatar por experiência que os alunos vão

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percebendo que a sua saúde melhora com a prática. A prática de ioga aumenta a consciência sobre a própria saúde.

Os iogues mais tradicionalistas parecem já ter percebido que a relação estreita

ciência-ioga estabelecida ao longo de mais de cem anos, tem ultrapassado os ditames

materialistas da ciência empírica. Essa aliança tríplice, marcada pelo diálogo entre

iogues híbridos, tradicionalistas e cientistas-monges - nem sempre pacífica mas em

equilíbrio dinâmico – é a possível responsável em comandar uma reforma em

processo da proposta salvífica do ioga moderno no Brasil, mesclando dados da

fisiologia biomédica sobre as práticas ioguicas e de seus antigos conceitos espirituais:

klesas, samadhi e kaivalya.

4.4.4. A crença na ordem cósmica e prana estabelecendo dialética entre o estresse e

o relaxamento espiritualizados no convívio social

Há a presença, no conteúdo de todos os iogues entrevistados, da crença de

uma certa “harmonia perene” ordenada cosmicamente que é desfeita na experiência

nefasta do estresse, responsável pelo desarranjo energético sutil, que viemos expondo

desde o capítulo 2. Os iogues no Brasil acreditam no estresse como indicativo

corporal e transfisiológico de desvio do caminho divino proposto para cada ser

humano, aonde a doença estaria no centro dessa desarmonização em nível

psicofisiológico. Mas qual seria a origem de tal sofrimento que tornou possível o

estresse tornar-se o obstáculo espiritual, tomando o papel original dos klesas. As

práticas do ioga, funcionam no Brasil, como profilaxia e tratamento espiritual de

doenças como ansiedade, insônia e depressão. Como comentado por Osiris, com base

em artigo científico, quase 20% dos paulistanos sofrem de desordens mentais deste

tipo, que possuem como base fisiológica o estresse crônico. O estresse crônico, por

sua vez, tem suas razões de manifestação nefasta decorrentes de estímulos

psicofísicos decorrentes do meio em que se vive. Assim, desvelar o panorama social

aonde vivem e atuam os agentes do microuniverso ioguico brasileiro

(alunos/praticantes, professores, mentores e cientistas-monges) pode revelar o âmago

de suas transformações soteriológicas em andamento.

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O sofrimento humano no Brasil contemporâneo urbano, segundo Dunker,

advém na perda de experiência de uma forma de vida social ainda não reconhecida,

como apresentado em sua lógica do condomínio (DUNKER, 2015), que abordaremos

abaixo. Por ora, me refiro ao sofrimento ioguico brasileiro como busca de uma vida

social em harmonia, pois como já argumentamos no primeiro capítulo, o iogue

moderno ao abandonar a vida solitária de asceta, se lança na procura da harmonia

perene de kaivalya na vida urbana dos grandes centros ocidentais. Como

demonstramos na subseção anterior com Guerriero, religiões surgem de contextos

sociais e são expressões latentes das maneiras encontradas destes grupos conviverem,

resolvendo problemas e adaptando realidades. Portanto, o microuniverso do ioga

brasileiro pode refletir uma promessa de vida boa em resposta aos anseios de uma

camada específica da sociedade urbana bastante estressada, pois como

exaustivamente argumentamos até aqui, os klesas, causa do mal, estão sendo

corporificados em reações como desejo, ódio, medo e egoísmo, frutos da ignorância

de não saber o que estão fazendo com suas vidas, por isso a crença na ordem cósmica.

A crença numa ordem cósmica pode prover de sentido a alienação da vida. Há, talvez,

permeando o nosso objeto, uma esperança metafísica (quase milenarista) de um lugar

melhor para se viver. O que os iogues brasileiros buscam, talvez esteja, mais do que o

egoísta equilíbrio físico e mental, na harmonia social.

A promessa edificada pelos brasileiros, de “harmonia social” e a “imagem de

felicidade”, nas expressões do próprio Dunker, podem ter sido colhidas, sobretudo, do

cinema e programas televisivos norte-americanos e “revestidas de ascetismo”

(ascetismo aqui empregado no sentido de alcançar uma vida), mas refletidas dentro

dos condomínios: ilhas imaginárias que refletiriam a ordem nas relações sociais

(DUNKER, 2015, p.50-51). Havia, no imaginário brasileiro do início da década de

setenta (com a construção de Alphaville em São Paulo) os condomínios como projetos

ideários de amor e amizade, de uma vida social sem “muros e grades” (Ibid., p.48).

No entanto, complementa o autor, o plano “teológico e metafísico” da vida social

harmônica em condomínios no Brasil escapou do esperado:

A forma de vida em condomínios vem sendo retratada, de forma sistemática, como repleta de mau gosto, investida de artificialidade, de superficialidade e esvaziamento. O crime ressurgiu dentro dos condomínios: primeiro, pequenas desobediências de trânsito, depois, consumo de drogas e, finalmente, desavenças entre vizinhos.” (Ibid., p.51).

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É possível entrever essa “lógica do condomínio” de Dunker na fala dos iogues.

Mesmo não podendo afirmar que todos os iogues brasileiros vivam esse panorama

descrito por Dunker, é bem provável pelo público de alta renda que circula no

microuniverso ioguico do país que não fuja muito deste cenário. Só para se ter uma

ideia, a revista norte-americana Yoga Journal Brasil, especializada em ioga no Brasil,

necessita de um investimento de R$16,90/mês, a mensalidade média de duas aulas

semanais de ioga gira em torno de R$ 350,00/mês, um curso de formação R$ 4.500,00

e as viagens anuais de peregrinação à Índia não saem por menos do que R$ 15.000,00.

Definitivamente, a religiosidade ioguica não é para todo mundo, mas ao que tudo

indica, aos moradores dos condomínios fechados de São Paulo, Rio de Janeiro,

Florianópolis, Belo Horizontes e outras cidades de alto poder aquisitivo. De qualquer

forma, a narração dos iogues-mentores, que ensinam e convivem com esse grande

público, muitas vezes, por mais de um mês - em retiros, cursos de formação e longas

estadas nos melhores hotéis da Índia - refletem uma grande insatisfação e estresse

com a vida em que vivem:

Ravi: Vivemos papéis que são falsos (pai, cientista, professor). Antes de nascer já éramos alguma coisa e depois de morrer continuaremos ser. O que somos então? São as identificações dos papéis [que ocupamos] que originam o sofrimento humano. Hermes continua: o personagem constrói a realidade física da pessoa. Há um eu por trás que você já é. Ganesh: O estresse existe, mas não tem razão de se deixar manifestá-lo físico e mentalmente, pois o estresse é fruto da ignorância de não se perceber dentro de uma ordem [cósmica]. Todos nós somos parte dela. As causas do sofrimento humano está em não se compreender que você não é o papel que ocupa [na sociedade ou família]. O ioga lhe dá a possibilidade de você perceber-se algo que você já é, mas que você não percebe plenamente. Vishnu: Os obstáculos do ioga são nossas próprias máscaras. Rudrá: Os obstáculos sou eu mesmo que construo. Shanti: Isvara é a consciência que permeia tudo. Estamos imersos em Isvara. Não temos consciência dele, mas o ioga ajuda na conexão com deus que está dentro de nós. Eu me conecto comigo, eu me conecto com o universo. Há um plano maior de Isvara. Andurá: a meditação nos ajuda a contar menos histórias sobre nós mesmos. Sob o ponto de vista operacional, a meditação é um procedimento autoinduzido e com técnica específica. Mas os dois itens operacionais mais importantes são aqueles que chamamos de “âncora” e de “relaxamento da lógica”. Âncora é um artifício de autofocalização. O relaxamento da lógica

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consiste em não se envolver nas próprias sequências de pensamento. Como isso é possível? Ora, mantendo a atenção na âncora, guardando apenas um pouquinho de energia para uma sutil atenção ao eventual envolvimento em sequências de pensamento. Sempre que o meditador se perceber envolvido nelas, ele deve “abandoná-las” e voltar sua atenção apenas para a âncora.

Esses discursos denotam, como dissemos, a crença de que existe algo perene,

em harmonia eterna e imutável, mas que perdemos ou nos “desconectamos” com o

advento do estresse, nos tornando ignorantes, portanto, de quem somos, mas

sobretudo, de como vivemos. Essa promessa de harmonia divina é purusa inserido na

vida em sociedade. Mesmo na fala do cientista Andurá, há uma crença em algo perene

e harmônico que se manifesta “no relaxamento da lógica”. A ignorância, klesa-mãe de

todos males, se ressignifica fisiologicamente, no estado do estresse, na “sequência dos

pensamentos” que devemos “abandonar” para compreender algo que ainda não

conhecemos, que perfaz “nossas máscaras” que os klesas-estresse encobrem. Os

iogues julgam que tudo o que pensamos ser faz parte da construção de um

“personagem”, de uma ilusão. Imagem muito parecida com a descrição da vida em

condomínio retratada acima. É o antigo conceito de maya ou avidya, mas revisitado

modernamente por influência da biomedicina, mas a sua origem manifestante pode

estar, em última instância, na sociedade em que os iogues vivem e/ou percebem e

buscam, como todas as religiões, maneiras de resolver.

O estresse-ioguico pode estar representando agora um desequilíbrio também

na vida social, concebido como desordem cósmica pelos iogues. A doença para eles,

pode significar um indicativo de viver fora da proposta de Deus, da ordem cósmica,

como argumentam. A biomedicina ocidental, ao lado das escrituras ioguicas, também

autorizam aos iogues - pela “comprovação científica” – que uma vida em desarmonia,

provoca o mal manifesto em doenças advindas do estresse cotidiano e,

consequentemente, de uma vida agitada e sem o descanso/relaxamento adequados. Os

iogues e os cientistas, podem estar, logo, tecendo uma critica ao estilo de vida

moderno, como afirma a cientista Osiris:

Osiris: Ioga é para redução de estresse. A resposta do estresse salva vidas. Mas na cultura do ioga o estresse atinge o status de ser melhor manejado. Os iogues buscam diminuir o estresse, aumentar o bem-estar e ser alguém melhor. Não ser tão afetável pela sociedade moderna, de consumo e estressada, é um dos grandes objetivos dos iogues com quem convivo e estudo. (...) As posturas do ioga podem diminuir as aflições mentais e conduzir ao relaxamento. Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a

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primeira fase da meditação. (...) O ioga tem uma vertente “terapia” sim. Ioga é instrumento anti-estresse pela maiorias das pessoas. Só para se ter ideia, uma pesquisa recente [2012] com habitantes da cidade de São Paulo, indicou que 20% da população é afetada por desordens mentais de ansiedade. O ioga e a meditação dispõe de meio concretos e de baixo custo para amenizar o sofrimento de muita gente.49

O estresse e o relaxamento, desse modo, parecem estabelecer relação com a

nova espiritualidade ioguica brasileira e auxiliam na sua proposta de salvação ou de

fim do sofrimento. Mais do que a busca por uma boa vida reclusa e de afastamento

social, os iogues modernos almejam alcançar a vida que vale a pena ser vivida no

convívio com outras pessoas. É lícito supor, que os iogues que orbitam o seu

microuniverso, podem estar propondo, além de técnicas “anti-estresse”, uma via de

salvação/libertação que promete a possibilidade de uma existência em comunhão feliz

e sem estresse, através de práticas espiritualizadas de relaxamento e busca de uma

vida harmônica, tanto psicofísica, quanto social e espiritual.

As informações colhidas nas entrevistas com os cientistas sobre a relação

estresse-ioga parecem corroborar as nossas argumentações. As duas falas ioguicas

abaixo, novamente reproduzem a dialética estabelecendo-se entre klesas-estresse,

samadhi-relaxamento e kaivalya-homeostase.

Shanti: Reagir é algo negativo porque não se tem consciência na reação. O ioga lhe traz para o momento presente. A prática no tapete é um ritual de nos trazer para o presente, o Eu. Rudá: o ioga diminui a agitação, o estresse e a ansiedade da minha vida, ao mesmo tempo o ioga me dá energia, me tira de um estado torpor e me deixa no estado de ioga. O estresse me desconecta e me faz sair do estado de ioga... a união. A respiração [pranayama] me traz para o aqui-e-agora e diminui os meus vrttis [causador da agitação mental advindo dos klesas] e meu estresse.

O estresse-biológico, como já expomos repetidas vezes, é uma reação

autônoma do organismo a qualquer agente/estímulo estressor. Mas na cosmovisão

ioguica moderna, a referência ao “reagir”, como vimos no discurso de Shanti acima,

é sempre algo “negativo”, o próprio “mal” ou klesa. Portanto, é imprescindível que

as práticas ioguicas eliminem ou purifiquem o corpo-mente de suas manifestações.

49 ANDRADE, L.H. et al. 2012. Mental disorders in megacities: findings from the São Paulo megacity mental health survey, Brazil. PLoS One, 7(2): e31879.

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Qualquer reação automática - leia-se comportamento - que produza estresse, é

geradora inequívoca dos klesas e precisam serem removidas. Os argumentos que os

iogues e os cientistas alinharam sobre o estado meditativo/ioga, sugerem que “reagir

sem pensar” é prejudicial, causa da dor e sofrimento, portanto. Explico-me melhor:

quando o cientista Andurá afirmou anteriormente que o meditador experiente

(iogue-mentor ou cientista-monge) perde a sua capacidade tanto de sentir emoções

extremas quanto de se envolver na sequência de pensamento, significa que durante

esse momento transitório do estado de ioga/meditação, pode controlar as suas

reações instintivas, portanto, inconscientes. É o mesmo que Shanti denominou do

“reagir sem pensar” como negativo, e que o iogue Rudá asseverou, quando afirma o

ioga conseguir removê-lo do “estado de torpor” da sua vida.

Se a resposta inata de luta-fuga, promovida por agentes estressores é o reagir

“sem pensar” ou “inconscientemente”, está intrínseco (digamos até biológico-inato)

que o estresse se torna um obstáculo para o ioga e sinônimo de klesa, como

mostrado no capítulo 2, mas não por motivos biomédicos apenas, mas sobretudo,

pois furta transitoriamente a “consciência” do seu “estado presente”, como alguns

entrevistados descreveram como empecilho a se atingir o estado de ioga.

Relembremos que no capítulo 1, ioga é cessar voluntariamente as modificações da

mente/consciência e não extingui-la, como Patanjali no sutra 1:2. A doença,

metáfora para o sofrimento espiritual dos iogues brasileiros, pode revelar-se, em

nível social, uma existência ignorante50, de tomada de decisões sem pensar ou viver

em “estado de torpor”, como adiantou Rudá. Já é possível conjurar neste momento

da reflexão, que o estresse-ioguico pode ser interpretado ultrapassando os reduzidos

limites das representações físicas e mentais. A crença na ordem cósmica e energias

transfisiológicas, pode justificar o estresse e o relaxamento estarem conquistando

caracteres espirituais de convívio social mais benfazejos e seguros.

50 Em termos gerais, o conceito de ignorância que vem do sânscrito avidya, significa ser ignorante da sua real natureza e do seu real relacionamento com o mundo, que resulta em instância espiritual, sofrimento (ver JOHNSON, 2010, p.40).

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4.4.5. A busca pela homeostase eterna por meio do relaxamento espiritualizado

Sem dúvidas o relaxamento, como já comentamos, é uma construção moderna

do ioga por meio da ciência. Foi a ciência, e não as antigas escrituras ioguicas, que

demonstraram a manifestação do relaxamento como resultado da prática de ioga e

benéfica para a saúde dos seus adeptos. Provavelmente, mesmo que inconsciente, por

ser uma experiência antagônica ao estresse, o relaxamento pode ter sido eleito a

referência física benéfica da espiritualidade do ioga; e o estresse, o mal a ser

combatido.

Bento: O relaxamento é uma referência física do estado de ioga. Ravi: O relaxamento é uma característica do ioga. Vishnu: O ioga é relaxamento. Ganesh: O relaxamento é uma parte inicial do ioga. Para se compreender quem se é, a pessoa precisa estar relaxada, segundo a minha tradição.

Shanti: O relaxar nos ajuda a estar presentes. Rudrá: Não consigo pensar no ioga sem o relaxamento que ele produz.

O relaxamento veio adquirindo, assim, ao longo das últimas décadas, uma

acepção maior do que apenas referência física: o relaxamento pode ter conquistado o

status de espiritual e convidado a participar da proposta de salvação/libertação do

ioga moderno (SINGLETON, 2005). Em nenhum outro momento histórico do ioga, o

relaxamento é citado em suas escrituras. Na verdade, como já discutimos, o

relaxamento foi introduzido no ioga a partir da psicologia de W. Reich, das

explicações biomédicas de Petho Sandor e da educação física, por isso, o “bem-estar”

e o “estar presente” dos relatos acima, aparecem com o “estado” dos iogues em

vivenciar o todo maior organizado e determinado pela ordem cósmica, que relatamos

acima. Os iogues que entrevistei acreditam ter um papel a cumprir no universo, e o

relaxamento é o meio que os ajudam a compreender-se ou não na senda correta do

ioga, no caminho para Deus.

O conceito de “conectar” citados ao longo deste capítulo, nos fornece duas

ideias importantes a considerar: a primeira é a do ioga nos restaurar a um plano de

vida divino; e o segundo, é a dialética que o ioga estabeleceu entre perceber-se nesta

ordem cósmica ou equilíbrio perene com o adoecimento. A doença, assim, assume

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tanto o papel de punição ou aviso divino de estar fora do desígnio projetado por

Deus/Isvara. Introduzo essa discussão a partir de uma citação do iogue Ganesh

publicada em uma importante revista especializada em ioga no Brasil, sobre como ele

compreende a depressão e a ansiedade:

Ganesh: Se a ansiedade é a dificuldade para lidar com o excesso de aprêmios no cotidiano, a depressão é a falta mais absoluta de horizontes, estímulos ou inspiração para agir. Assim, se quisermos ficar distantes desses dois extremos, devemos encontrar o caminho do meio. Isso é chamado sattva. Ioga é um relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica-espiritual para isso. Relaxamento é a parte inicial do ioga. Para se compreender quem se é, precisamos estar relaxados, segundo a minha tradição. Relaxar, focar, expandir, reavaliar seus paradigmas, isso é a meditação propriamente dita. Emocionalmente falando, o ioga nos ensina a colocar-se. Isto se traduz numa postura mais serena e numa melhor disposição no cotidiano. O relaxamento e os exercícios de concentração tomam conta desta esfera. O ioga possui como efeitos mais evidentes deixar o praticante em estado de equilíbrio.

Assim como Hermógenes e Smith (2008), Ganesh resgata novamente a ideia

de sattva ou “estado de equilíbrio” rompido pelo “mundo estressado”. O ioga foi

traduzido nas entrevistas de alguns iogues-mentores como sinônimo de “relaxamento

dos pensamentos” ou “para se compreender que se é, precisamos de relaxamento”.

Desse modo, quando a ciência define homeostase, como um estado de equilíbrio

orgânico ideal na fisiologia biomédica, mas impossível de se conquistar sob a

perspectiva da ciência; dentro da espiritualidade ioguica moderna, ela se torna a

própria tradução da liberdade conquistada pelo equilíbrio (corporal, mental, social e

espiritual) desejado. É plausível, logo, considerar que o estado de homeostase

adquirindo a categoria equivalente a kaivalya: “o caminho do meio” ou

estabelecimento permanente em sattva. O grande causador ou obstáculo espiritual do

ioga moderno, o estresse e o medo, são forças maléficas que impedem o estado de

homeostase estabelecer-se definitivamente. A luta entre o mal e o bem ioguicos,

podemos supor, se arrefece a cada relaxamento espiritual promovido pelas suas

práticas.

Ravi: Relaxamento é uma característica do ioga. Ioga é um processo de relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica espiritual para este fim. O grande perturbador do ioga moderno. Ficar quieto é um problema para a sociedade moderna.

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Vishnu: O ioga é sinônimo de relaxamento. O estresse impede ao estado. Bento: o relaxamento é uma referência física do estado de ioga. Osiris: O bem-estar que o ioga me traz me provoca o relaxamento, e o relaxar nos ajuda a estar presentes. Rudrá: Não consigo pensar na prática do ioga sem o relaxamento que ela produz. O estresse me desconecta e me faz sair do estado de ioga, de união. Andurá: O relaxamento corporal e a respiração ioguica adequada já o prepara para uma prática meditativa. Osiris: Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a primeira fase da meditação.

Centurion: O ioga é a união para harmonizarmos. O ioga é a união das diversidades. O ioga nos deixa com um mental mais calmo, equilibrado.

DeRose: o estresse impede ao samadhi.

Shanti: O estresse nos afasta, nos desconecta. O ioga abaixa o estresse, acalma a mente... aterra, e assim, nos ajuda a conectar novamente. Hermes: No ioga moderno o estresse ocupa um lugar que não fazia parte do ioga antigo, que ele está revelando. A diminuição do estresse físico tem uma correlação direta com moksa [equivalente a kaivalya].

Posso pensar agora que, para o iogue compreender o seu lugar social na ordem

cósmica, é preciso atingir antes uma profunda vivência de “relaxamento” a partir das

técnicas ioguicas. O estresse, portanto, o estado antagônico ao relaxamento, pode

estar sendo concebido modernamente como condição espiritual que afastaria os

iogues do seu objetivo: o kaivalya (lit. liberdade). Mesmo entre os cientistas

entrevistados, revelou-se que a prática de ioga pode estreitar relação positiva entre o

relaxar e a ponderação dos próprios problemas cotidianos.

Andurá: Com um relaxamento corporal e a uma respiração adequada, você já está bem preparado para uma prática meditativa. A busca é alcançar o relaxamento da lógica, que demora em torno de 5-10min. Osiris: as posturas do ioga podem diminuir as aflições mentais. Nunca vi ninguém meditar sem relaxar, é a primeira fase da meditação. William: Sempre que estabeleci uma rotina de meditação/ioga obtive maior serenidade em meus comportamentos com os outros.

Abaixo reforço, propositadamente, essa questão do equilíbrio inato e perene

na fala dos iogues para revelar suas lógicas com a homeostase-kaivalya:

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Ganesh: O ioga lida com aquilo que é universal e eterno, que não muda. Os valores [do ioga são] universais e suas diferentes aplicações, bem como as formas de encontrar a felicidade e a liberdade que são inatas a nós mesmos. Filosofias vão e vem, como opiniões e teorias, mas a visão do ioga permanece. Hermes: O ioga me dá a convicção, a certeza que estou no caminho certo. Algo ou alguém cuida de mim e de você. O ioga lhe dá estabilidade para perceber isso, você se apoia em você mesmo. E isso o liberta para se realizar no mundo. Rudrá: O ioga ajuda a afirmar nosso propósito de vida, nosso dharma ter um propósito, um Dever a cumprir. Shanti: O ioga me mostra que cada um de nós veio para fazer algo.

As ideias da harmonia eterna e divina e do relaxamento espiritual se

complementam. Neste ponto, a iogue Shanti nos auxilia quando esclarece o processo

do equilíbrio energético como o oposto ao estado deletério do estresse no ioga e

iniciado com iogues renascentistas que revelamos no capítulo 1 e exposta

anteriormente com as obras iogaterapêuticas de Hermógenes:

Shanti: A doença tem a ver com a sua história pessoal; tem um sentido. Se eu não praticasse o ioga seria obesa e depressiva [sic]. A doença é uma desarmonia da energia sutil. Os chackras desalinhados repercutem em doenças. A energia (prana) circula e a sua má circulação ocasiona em doenças. O ioga é uma forma de se conectar consigo mesmo. O ioga afina o corpo, que com a doença desafina, como um instrumento.

Como comentamos no terceiro capítulo, a história pessoal do Prof.

Hermógenes com o ioga também ocorreu por meio de uma doença: a tuberculose. A

partir daí, os seus ensinamentos ioguicos sincretizaram a doutrina ioguica, com a

advinda do cristianismo popular brasileiro combinados com os benefícios terapêuticos

do ioga para a saúde descobertos cientificamente. Foi o Prof. Hermógenes, como

apresentei, que consolidou no Brasil o mote ioga-saúde-salvação e disseminou, por

meio de suas obras, o ioga como terapia no Brasil.

Permanece a crença em energias sutis, como teóricos já alertaram nos

capítulos anteriores. Entretanto, a ideia do desalinhamento energético originado pelo

estresse, se reflete em doenças físicas e mentais advindas, ao que parece ser lícito

julgar, de problemas também do meio social. Para o microuniverso ioguico brasileiro,

o câncer em Shanti, a tuberculose em Hermógenes ou as origens da ansiedade e da

depressão, como comentado por Ganesh, possuem as suas causas em desarranjos

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energéticos transfisiológicos, fruto do estresse cotidiano. Em outras palavras, de uma

vida vivida fora da ordem cósmica, de uma vida alienante que, em última análise,

pode ter ligação com uma narrativa ioguica do mal-estar de um microuniverso de

brasileiros. A doença manifesta física e mentalmente, seria apenas um sintoma do

mal-estar de origem espiritual, cármica possivelmente.

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Capitulo 5

A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA MODERNIDADE: KLESAS, SAMADHI E KAIVALYA SE CORPORIFICAM

POR UMA FISIOLOGIA RELIGIOSA EM ANDAMENTO NO IOGA BRASILEIRO

5.1. Meu caminho até aqui

Apresento no capítulo 1, a proposta soteriológica do ioga clássico mostrando

que o obstáculo espiritual estava contido na teoria dos klesas. Os klesas, por sua vez,

foram apresentados por Patanjali, no Ioga Sutras, como cinco comportamentos:

Ignorância, Apego, Aversão, Medo da morte e Orgulho. Seriam eles, portanto, o cerne

do mal do ioga, motivo de todo sofrimento humano (dukha). O klesa-Ignorância,

precursor de todos os outros, nasceria de uma mente/consciência entorpecida (citta-

vrttis) no contato da alma (purusa) com o corpo e o mundo (prakrti), enredando os

seres humanos no ciclo de samsara. A visão de mundo é dual e a reencarnação possui

caráter negativo (GULMINI, 2002).

Os iogues clássicos acreditavam que existiria uma ordem cósmica e as suas

posições sociais, vivendo em uma rígida estrutura de castas, eram determinadas pelos

deuses e mantidas pelos sacerdotes brâmanes, a mais alta casta desta estrutura social,

religiosa e política. A proposta soteriológica do ioga deste período, sendo erigida e

mantida pelo clero, determinava oito passos espirituais (asthanga-ioga) que

prometiam o cessar do turbilhão da mente/consciência (citta-vrttis) em direção a

comunhão com deus/Isvara e o fim da vida enredada por samsara, portanto, do

sofrimento humano (dukha). O samadhi constituiu o último passo espiritual da via

salvífica do ioga e é apresentado como uma experiência religiosa – transitória - do

cessar voluntário de citta-vrttis. Com o cessar da mente/consciência, adviria a

harmonia energética transfisiológica de prana no complexo corpo-mente/consciência,

denominada de sattva. Neste espaço transitório de samadhi, fruto da prática corporal

do ioga, os devotos experienciam o retorno em sua real natureza divina - purusa - ou

estado Imaculado da alma em eterno equilíbrio sattvico. O kaivalya, o estado Último

do ioga, é logo, representado como o momento em que o estado transitório do

samadhi se converte em permanente cessar de citta-vrttis. O devoto em kaivalya se

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liberta em vida do klesa-mãe Ignorância e compreende samsara sem as ilusões

(maya) que o envolviam na dor (dukha) e no sofrimento humano (klesas) (Ibid.).

Na fase histórica posterior, o ioga adentra ao seu período medieval ou pré-

moderno. Estamos agora por volta do séc. X e a configuração social da Índia também

se altera. Dentro desse novo panorama social e político, surge uma tradição de iogues-

místicos denominados de hatha-iogues ou iogues do corpo. Estes, agora, dispensam o

sentido de pertença na alta casta sacerdotal para serem ordenados líderes espirituais

no ioga e, indícios históricos apontam, serem os hatha-iogues os responsáveis em

popularizar as práticas incrementando as suas técnicas corporais e imbricando-se com

a medicina ayurveda, o tantrismo, o budismo, o islamismo e a versão não-dual do

Vedanta Advaita (LIBERMAN, 2008, p.100-116).

Os hatha-iogues questionam a infalibilidade dos Vedas e a legitimidade

bramânica na manutenção social em castas. A tradição hatha-ioguica diminui os

valores das escrituras e supervalorizam as suas práticas corporais. A exemplo dos

místicos judeus e cristãos, os hatha-iogues elevam as técnicas corporais dos iogues

clássicos (ásanas, pranayamas, mudras, mantras, kriyas) ao nível de rituais de

comunhão com deus sem a intermediação de sacerdotes instituídos pela estrutura

religiosa hinduísta vigente. Um exemplo são as descrições do samadhi, agora,

carregadas de símbolos de uma fisiologia transfisiológica espiritualizada, aonde

sensações corporais e poderes mágicos (siddhis) obtém posição importante em sua

cosmovisão. Desse modo, enquanto os klesas para os iogues clássicos eram

conquistados exclusivamente por uma rígida ética religiosa pautada na doutrina, os

iogues pré-modernos dispensam as escrituras erigidas e mantidas pela elite sacerdotal

indiana, e encontram meios singulares de afastar os klesas-Mal de suas vidas por meio

de práticas rituais (PANCHAM SINH, 1914, p.63; SOUTO, 2009, p.238).

O período pré-moderno do ioga marca, assim, uma época de contestação da

ordem cósmica bramânica e estratificação da sociedade indiana, transformado os

klesas em bloqueios energéticos transfisiológicos e responsáveis pela manifestação de

doenças. A reencarnação ainda era um problema, pois as castas permaneciam

instituídas pelo clero hinduísta e incorporadas pela cultura vigente, mas a

medicalização e a corporificação do ioga carregavam consigo o objetivo implícito

espiritual de prolongar a vida do hatha-iogue na busca por kaivalya e afrontar o status

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quo social, político e religioso da sociedade indiana medieval (ELIADE, 2001, p.205-

209; SOUTO, 2009, 46-50).

No capítulo 2, descrevo como a partir de 1858, com a chegada da colonização

inglesa na Índia, o ioga se defronta com a perspectiva do mundo ocidental moderno,

sobretudo a realidade empírica da ciência e a moral cristã protestante. Os klesas,

como ética religiosa, definitivamente deixam de fazer qualquer sentido frente ao

pensamento “lógico” de seus colonizadores, que rejeitam as práticas físicas e crenças

em energias metafísicas, como métodos aniquilatórios do Mal/klesas. Dessa forma, a

partir de 1920, uma nova geração de hatha-iogues surge, influenciando e

influenciados por um movimento contracultural conhecido como Renascença Indiana,

que visava a independência do seu país do colonialismo inglês (FARQUHAR, 1915,

p.387-429). Estes iogues modernos aventuram-se a demonstrar, pela “lógica”

científica, o poder terapêutico de seus rituais corporais na promoção da saúde,

principalmente pela resposta psicofísica ao relaxamento, diminuição do estresse,

elevação do sistema autoimune e condicionamento físico, agora corroborados também

pela ciência fisiológica da biomedicina ocidental. As escrituras ioguicas de outrora, de

Patanjali a Matsyendra, vão sendo ressignificadas por novos conceitos e sendo

incluídos a fisiologia religiosa do ioga (SIMÕES, 2011).

Modernamente, considerações antes transfisiológicas e místico-mágicas como

prana, nadis, kundalini e chackras ganham correspondentes da empiria fisiológica

como sistema nervoso simpático, glândulas endócrinas, áreas encefálicas,

neurotransmissores e hormônios. As práticas ioguicas são agora, investigadas nos

maiores e bem conceituados laboratórios de fisiologia do mundo, e as suas

repercussões clínicas dissecadas por tomógrafos e ressonantes magnéticos. Os klesas

modernamente, assim como ocorreu em suas escrituras, foram sendo ressignificados

por conceitos psicofisiológicos empíricos da ciência ocidental: o klesa-Ignorância

ganha contornos de estresse; o Apego se converte no sentimento de desejo; a Aversão

em ódio; o Medo da morte em temor de envelhecer e adoentar; e o Orgulho em

egoísmo (BALSEV, 1991; BHAVANANI, 2007; RAO, 2012).

No capítulo 3, no intento de restringir meu objeto, fui investigar os klesas no

contexto brasileiro. A escolha por esse afunilamento se deve, como argumento com

mais propriedade no texto, pelo isolamento por quase setenta anos desde a chegada do

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ioga no continente latino-americano até a vinda do primeiro mestre iogue

verdadeiramente indiano no Brasil. Esse fato pode revelar a estrutura que rege as

adaptações do ioga moderno quando transplantado para as sociedades urbanas

ocidentais, mas sem a influência da cultura indiana, como nos países em que ele foi

implantado pelas mãos dos próprios iogues indianos (SINGLETON & GOLDBERG,

2014). No Brasil especificamente, por barreira idiomática ou desinteresse proselitista,

este período de insulamento possibilitou ao ioga verde-amarelo construir o seu sentido

de existência espiritual entre dois personagens principais – Hermógenes e DeRose -

(GNERRE, 2010) e mesclando religiões populares), como o catolicismo, o

espiritismo, a umbanda, o santo daime e a medicina ocidental.

O caminho de estabelecimento do ioga brasileiro passou por fases distintas e é

marcado por disputas internas entre iogues mais permissivos a sincretismos, os

iogues-híbridos: com o objetivo de popularizar a filosofia e prática religiosa do ioga;

e outros mais ortodoxos e “puristas”, os iogues-tradicionalistas: que buscaram o

sectarismo da prática e de sua filosofia numa posição de preservação da “essência” do

ioga. Essa disputa originou uma estrutura religiosa regulatória “invisível” e não-

institucionalizada, mas responsável em manter, produzir e aniquilar elementos

soteriológicos e bens de salvação ao ioga brasileiro. Os klesas e suas novas

configurações, com certeza, passaram (e passam ainda) pelas mãos dessa estrutura

religiosa regulatória. Por isso, saí a campo para entrevistar líderes híbridos e

tradicionalistas do ioga brasileiro e conhecer o que eles compreendem hoje como as

causas do Mal, e/ou se a teoria ética dos klesas clássicos ainda trazem conforto

espiritual frente o sofrimento de uma parcela de brasileiros que frequentam aulas de

ioga regularmente com fins espirituais.

No capítulo 4, escolhi dez iogues (entre híbridos e tradicionalistas) e mais três

cientistas brasileiros que investigam as práticas ioguicas exclusivamente com fins

terapêuticos. Dos resultados apresentados, vimos que: 1) a junção do ioga com a

ciência biomédica convidou profissionais da área da saúde adentrarem ao

microuniverso religioso do ioga como “facilitadores” na aplicação dos princípios

éticos, terapêuticos e de condicionamento psicofísico ao público leigo, competindo

com iogues híbridos e tradicionalistas. Como resultado, 2) um novo tipo de líder de

ioga surge, os cientistas-monges, que intensificam ainda mais a corporificação e

medicalização do ioga, mas sobretudo, ajudam a legitimar o discurso da fisiologia

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religiosa de híbridos e tradicionalistas em uma simbiose ambivalente. Os líderes de

ioga no Brasil estabeleceram, assim, 3) uma latente dialética entre saúde-salvação.

Contudo, para manter o ioga como um movimento religioso e não se desintegrar

como prática laica e diferenciar-se das espiritualidades terapêuticas Nova Era,

produziram uma distinção entre 4) “prática ou método” e “experiência ou estado” de

ioga. Essas distinções auxiliam à sua estrutura religiosa do ioga em andamento

deslegitimar ou aceitar métodos/práticas de ioga atuarem no seu microuniverso em

formação ou serem excluídas como heréticas. Duas crenças, no entanto, permanecem

vivas dos períodos históricos indianos anteriores: 5) a crença em energias

transfisiológicas (como prana, kundalini, chackras e nadis), e 6) em uma ordem

cósmica que rege o mundo.

Se buscarmos localizar aonde se encaixam a teoria do klesa-estresse/Mal, a

resposta certamente deve surgir na dialética estabelecida entre saúde-salvação, da

crítica social em que os iogues vivem, mas traduzida por uma linguagem simbólica

religiosa condizente com a sua nova fisiologia.

5.2. O ioga moderno como produtor de rituais de cura/healing

Mostrei até aqui a ciência se apoderando de muitas das práticas ioguicas, ao

mesmo tempo, fornecendo respostas neurofisiológicas para narrativas fisiológicas

espirituais do ioga moderno. As técnicas do ioga moderno se transformaram em

soluções biomédicas anti-estresse, auxiliando a medicina ocidental criar uma dezena

de novas formas de tratamento de baixo custo para as mais diversas enfermidades. O

próprio Ministério da Saúde Brasileiro instituiu práticas de ioga e meditação em suas

unidades básicas de saúde e criou um novo setor que estuda implantações de terapias

antes alternativas, agora integrativas e complementares. Em suma, há um crescente

interesse no ioga como terapia. Dessa forma, seria lícito supor que o ioga se

encaminhe para secularização (CARRETE & KING, 2005). Mas não é só isso que

constatam as pesquisas no âmbito das ciências da religião.

Para Andrea Jain, o ioga moderno não seria uma terapia secular ou um mero

produto espiritual do mercado religioso de consumo Nova Era, mas descendente de

uma religiosidade indiana mais antiga, inserido aos problemas contemporâneos do seu

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encontro com o mundo moderno ocidental (JAIN, 2010, p.95-125). A autora analisa

em seu livro Selling Yoga, que o ioga moderno derivaria a sua definição de duas

forças históricas: a cultura de consumo advinda do capitalismo globalizado, e de um

desdobramento do pensamento do ioga pré-moderno ou medieval indiano. Ela credita

a capacidade do ioga de se moldar em novos formatos sem perder certa

homogeneidade espiritual. Ela confirma ser o ioga atual fruto da cultura de consumo

(CARRETE & KING, 2005), mas que não possui apenas significados e funções

utilitaristas ou hedonistas, pois todas as religiões atuantes hoje em dia passam e

passaram pelas mesmas adaptações, essa crítica, logo, não seria exclusividade do

ioga. O ioga moderno vem se estabelecendo, conclui, como uma verdadeira prática

religiosa corporal como respostas às adversidades contemporâneas (JAIN, 2010,

p.172-174).

Com relação aos valores e ética modernos do ioga, Jain corrobora conosco

dizendo que o problema do sofrimento no ioga moderno – contidos no complexo

klesas, samadhi e kaivalya - está intrinsecamente ligado a questão da saúde (JAIN,

2010, p.95-129). Apresentamos em outros momentos que na antropologia da doença é

bastante investigada a dialética estabelecida entre saúde-salvação e doença-sofrimento

espiritual (HANEGRAAFF, 1998; LAPLANTINE, 2011, p.213-252). O ioga

moderno, ao invés de secularizar as suas práticas no encontro com a ciência

biomédica, sacralizou o corpo e desenvolveu, a partir dos iogues medievais (JAIN,

2010), práticas corporais de purificação para a cura de doenças e do estresse cotidiano

(DeMICHELIS, 2004; SMITH, 2008, p.140-159) no intuito de alcançar kaivalya ou

libertação do sofrimento. A via salvífica que abrange esse intento, sem dúvidas, pode

estar centrado de alguma forma na experiência transcendente e “integrativa” do

samadhi, pois como vimos no capítulo anterior, o “estado” ou “experiência” do ioga

está frequentemente associado esse conceito. Sarbacker encontrou similaridades dessa

experiência com o conceito de espaço liminar na obra de Victor Turner

(SARBACKER, 2008, p.166-179).

Victor Turner em Floresta de Símbolos, descreve como Liminaridade, a fase

de transição (ou liminar) aonde os indivíduos que participam de processos rituais

perdem, momentaneamente, o seu status social e alcançam uma posição de “entre-

lugar” (betwixt and between). Seria um afastamento que lhe fornece um conhecimento

específico com o poder de relevar a arbitrariedade das convenções sociais em que

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vivem e se submetem (TURNER, 2005, p.138). Segundo o autor ainda, ao mesmo

tempo que é impossível viver na liminaridade eternamente, ela conserva em si a

potencialidade desagregadora e revolucionária de produzir narrativas possíveis de

solucionar problemas existenciais da vida humana, pois o inconsciente é posto em

questão neste momento. Para o indivíduo compreender a si mesmo e a sua posição na

estrutura biopsicossocial é primeiro necessário distanciar-se dessa estrutura, como se

morresse. Ele passa então, por um processo liminar, como uma experiência

transcendente temporária, em que ele é colocado em igualdade e humildade,

desprovido de qualquer posição social privilegiada que, porventura, ocupe fora da

liminaridade. Após isso, ele volta a integrar-se à sua estrutura biopsicossocial, mas

agora provido de um novo discernimento espiritual sobre si-mesmo e os outros como

se tivesse renascido (Ibid., p.116-159). É possível correlacionar essa descrição com o

samadhi e o conhecimento espiritual advindo de viveka.

DeMichelis em sua obra A history of modern yoga, descreve as aulas de ioga

moderno como um ritual de cura a partir de três fases: 1) A fase de separação, onde se

introduz os praticantes a um tempo de aquietação e recolhimento; 2) A Fase da prática

de posturas propriamente ditas; e 3) A fase de incorporação ou relaxamento final. A

primeira fase duraria em média uns dez minutos e corresponderia a chegada dos

alunos a sala de prática e um momento de aquietamento. Recriando o modelo de Van

Gennep (1960) considerado por Turner: Fase inicial de separação simbólica do seu

meio; Fase Liminar propriamente dita; e Fase de Passagem ou Retorno (TURNER,

2005, p.138).

A primeira fase funcionaria como que abrindo um espaço do

cotidiano/profano para a concentração de um momento mais introspectivo e de foco

em si-mesmo. A segunda fase está baseada nas práticas de posturas e respiratórios. O

objetivo está no desbloqueio das energias transfisiológicas e seria o momento da

“purificação” e/ou “desintoxicação”, como alguns iogues denominam, constituindo aí

a liminaridade. Na última fase é o momento em que autora se refere como

“transição”, aonde o samadhi ou espaço liminar vai ser desfeito e o aluno inicia o seu

retorno a realidade ordinária. Mas a volta traz consigo um novo conhecimento sobre

si-mesmo e o mundo que o rodeia ou samsara propriamente dito. Nesta fase final, por

meio do relaxamento profundo conduzidos com o aluno deitado em decúbito dorsal

sobre seu mat, postura (ásana) esta denominada de savasana, que significa

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literalmente postura do cadáver ou do morto. De acordo com DeMichelis, é durante

esse momento que, como transportados à morte, os iogues vivenciam um processo de

limpeza ou de revigoração (cleansing/revivifying process) espiritual consumado

(DeMICHELIS, 2004, p.248-260).

O relato de uma prática de ioga descrito por DeMichelis sugere esse espaço

liminar e todo o processo ritual de forma mais explícita:

Quando eu entro na sala de prática aonde eu tenho minhas aulas de Hatha, eu sempre sinto como seu eu estivesse me separando de mim mesmo e do mundo agitado lá fora. Eu deixo meus sapatos fora da sala, meu despertador e meu celular, com meu estresse e meus prazos. Todos meus problemas deixo lá fora, eu entro no santuário da minha sala de ioga. A sala tem uma parede de janelas e uma claraboia iluminando o chão de madeira, paredes cor creme com luz natural. Os sons de natureza calmos tocando, e algumas plantas ajudam criar a ilusão que eu entrei em um jardim secreto. Eu encontro um lugar para meu tapete de ioga entre vinte ou mais outros alunos, maioria mulheres, que veem também deixar seus estresse na porta. Nossa instrutora, Beth, esta sentada em posição de lótus na frente da sala, cumprimentando-nos com um sorriso de boas vindas para sentarmos em nossas versões da posição de lótus. Ela inicia a aula com uma oração. Sua voz emana calma, ajudando-me a deixar meus olhos descansar e meu corpo relaxar para que a minha mente possa focar. A partir daí, nós vamos realizar uma série de alongamentos. Com cada postura, eu encontro um novo músculo e perco-me com a ajuda da minha respiração. Apesar dos lentos movimentos, meu corpo é fortemente exigido na permanência de cada postura e eu posso sentir o suor em minhas costas a partir do aquecimento do meu corpo. Eu sou convidada para a postura de relaxamento final e meditação. Como se eu não estivesse ali, Beth me acalma, a sua voz relaxante me guia através de uma oração, a qual me relembra que meu esforço deve permanecer na devoção apenas no meu próprio ser (DeMICHELIS, 2004, p.259-260 apud Dalton, 2001, p.37).

Depois da morte simbólica advinda do relaxamento profundo, como explicou

DeMichelis, os alunos retornam ao mundo “normal” do dia-a-dia, mas restaurados

pelo contato com a experiência do samadhi-liminaridade. O ioga postural moderno,

conclui DeMichelis, construiu um espaço mágico-religioso em suas aulas – o espaço

liminar - como uma passagem e defendendo o ioga atual como uma religião secular

de cura ritual. O ioga moderno e as suas práticas rituais de cura, conclui a autora, são

uma forma religiosa privatizada em resposta a uma demanda das sociedades

contemporâneas na busca por Deus ou “realização pessoal”, que encontrou

certamente, um lugar singular em nossa sociedade (Ibid.).

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Hanegraaff, entretanto, nos ajuda a ampliar a compreensão do papel da

espiritualidade e ritual de cura ioguico moderno comentado por DeMichelis e Jain,

quando sugere que movimentos religiosos advindos da Nova Era, uma das influências

do ioga moderno (SINGLETON, 2010), não possuem apenas objetivos utilitaristas

nas curas físicas, mas podem implicar soluções religiosas para os problemas mais

íntimos do mundo moderno que não puderam ser resolvidos pela tecnologia científica

(HANEGRAAFF, 1998, p.44-47). E complementa, propondo que quando se fala em

“crescimento pessoal”, pode-se entender como um modelo de “salvação religiosa”

também (Ibid., p.23-35). Os livros do Prof. Hermógenes, conhecido como o “pai da

medicina holística brasileira”, podem denotar essa característica, sobretudo nas obras:

Autoperfeição com Hatha Yoga, Yoga para Nervosos, Dê uma chance a Deus, Deus

investe em você, Yoga : Caminho para Deus e outros.

Dessa forma, a manutenção do ioga como proposta soteriológica e não apenas

terapêutica orgânica parece se perfazer. A “cura” sobre o qual o ioga moderno se

debruça pode não estar meramente no corpo orgânico ou na “mente”. Quando os

iogues se referem a kaivalya, talvez estejam em busca da libertação de um mal-estar

representado metaforicamente em sofrimento advindo do “estresse” e suas derivações

emocionais.

Para Hanegraaff há uma diferença entre disease/doença e illness/“mal-estar”.

Disease/doença refere-se a uma anormalidade na estrutura e/ou funcionalidade dos

órgãos e sistemas, é um estado patológico culturalmente organizado por um modelo

biomédico. Illness/mal-estar, por sua vez, refere-se as percepções e experiências

pessoais de estados socialmente desvalorizados, que podem ou não incluir doenças e

possuem seus próprios sentidos para a cura. Essa distinção, continua o autor, é de

crucial importância para diferenciar a medicina tradicional - como o ayurveda de

onde o ioga medieval iniciou a sua medicalização e corporificação - da medicina

ocidental – aonde o ioga ressignifica a sua doutrina e prática ritual modernamente.

Curing/remediar, assim, se remete ao tratamento da disease/doença, enquanto

healing/”restaurar” ao illness/mal-estar. Curing/remediar pode encontrar lugar,

quando se ocupa apenas do órgão afetado; e healing/restaurar, quando se preocupa

com todos os aspectos que englobam o illness/mal-estar (Ibid., p.23-25), ou seja, aos

aspectos físicos, psicológicos, sociais e espirituais.

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Os críticos à medicina ocidental dizem que seus médicos se especializaram em

curar doenças, mas se esqueceram da “arte de healing/restaurar”. Hanegraaff credita a

isso ao enorme crescimento de aproximações de healing/tratamentos “restaurativos”

alternativos, mais do que apenas o curing/”remediações” de disease/doenças. Assim,

o ioga e seus rituais de cura pelo relaxamento está implícito, como expõe Hanegraaff,

uma crítica à medicina ocidental oficial. Illness/mal-estar portanto, como base dos

rituais de cura ioguicos modernos, pode ser interpretado não apenas como um simples

fato biofísico, mas parte total da experiência fenomênica de transformação pessoal

para eliminar todo e qualquer tipo de sofrimento ou angústia humana. A

salvação/libertação religiosa pode se configurar como uma forma radical de

“healing/restaurativa”, conclui o autor (Ibid. p.42-47).

Parece lícito incluir o conceito de kaivalya nessa proposta, aonde os seus

rituais adquiririam um caráter, a partir da discussão até aqui, de “restaurar do mal-

estar” (illness healing) os iogues modernos, com a intenção de atuar na construção de

novas narrativas para uma boa vida a partir da interpretação do samadhi como espaço

liminar.

5.3. O ioga como promotor de rituais corporais de cura na restruturação de sua

realidade em que se vive

Os hatha-iogues como apresentamos no primeiro capítulo, muito antes dos

iogues modernos, já se imbricavam com a profilaxia de doenças por meio da dialética

estabelecida com a medicina ayurveda, como também numerosos exemplos de

obtenção de perfeição corporal, beleza e outros poderes físicos e transfisiológicos. No

entanto, havia uma preocupação em afastar-se do convívio social para se alcançar a

libertação (kaivalya) e tais poderes adquiridos por meio de suas práticas rituais

(samadhi). Como já expomos no primeiro capítulo, o iogue acredita na sua alma

imaculada (purusa) e em equilíbrio divino (estado sattvico). O contato da alma

imaculada com o mundo fenomênico, ou seja, o mundo sensível, logo, em relação

com outras pessoas, o complexo corpo/mente-alma (prakrti) pode estar propenso a

originar as agitações na mente/consciência (os citta-vrttis), estes os klesas e, por fim,

o sofrimento (dukha). Por isso, nas escrituras medievais do ioga, afirma-se:

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I:12. Deve-se praticar Hatha Yoga em uma pequena e solitária ermida (matha), livre de pedras, água e fogo (excessiva exposição aos elementos naturais), em uma região onde impere a justiça, a paz e a prosperidade. (KUPFER, 2002, p.19) I:14. Neste lugar, o yogi, livre de toda preocupação, dedicar-se-á unicamente à prática do Yoga, seguindo as instruções do seu guru. (Ibid., p.20)

Mas quando o ioga encontra o ocidente, esse panorama se inverte, e os iogues

são convidados a participar mais “ativamente” do convívio social. No primeiro

capítulo, descrevemos extensivamente sobre os motivos de tais transformações. Algo,

no entanto, permaneceu, como as energias transfisiológicas, a ordem cósmica e a

corporificação de tais símbolos. Mas ao invés da fisiologia e anatomia advinda do

ayurveda, houve a sua ressignificação a partir da ciência biomédica (ver capítulos 1 e

2).

Victor Turner nos alerta que é bastante comum que os aspectos cognitivos

adquiridos nos espaços liminares (samadhi) serem simbolizados pela fisiologia

humana como “modelo para ideias e processos sociais, cósmicos e religiosos”. Essas

metáforas, continua o autor, são “uma variante de um tema iniciático amplamente

difundido: o de que o corpo humano é um microcosmo do universo” (TURNER, 2005

p.153). O que buscamos revelar, no entanto, é que o conhecimento adquirido pelo

samadhi em busca de kaivalya pode estar estabelecendo relação direta com a

permanência da crença na ordem cósmica e, portanto agora, com a harmonia do

corpo. Mas a ordem social pode se articular “nos termos de um paradigma humano

anatômico” também (Ibid.). E continua:

O corpo é encarado como uma espécie de modelo simbólico para a comunicação de gnosis, do conhecimento místico sobre a natureza das coisas e de como vieram a ser o que são (Ibid.).

O que o iogue moderno busca, entretanto, pode não ser em almejar um mundo

celestial, no sentido de fora desta realidade, mas transformar a sua própria realidade a

partir do conhecimento apreendido pelos encontros liminares em samadhi. Dito de

outra forma, para os iogues modernos que renunciaram viver afastados da sociedade,

kaivalya e samsara podem estar coexistindo no mesmo mundo real, mas numa

geografia suprassensível diferente (USARSKI, 2007, p.190). Esse conhecimento

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transcendente seria adquirido, como já expomos, dos samadhis vivenciados a cada

aula ritual de ioga. Samsara, considerado o mundo como normalmente

experienciamos (JOHNSON, 2010, p.286), continua sendo o local gerador dos klesas

e do sofrimento. Mas o sofrimento no ioga advém do klesa-ignorância, logo, é um

sofrimento desconhecido, um mal-estar: uma aflição mal definida ou indisposição que

não chega a configurar doença51. O praticante sabe que sofre, mas não o por quê: ele

está alienado, ignorante do real motivo do seu sofrimento. A ideia de kaivalya, a

libertação final do ioga, a partir da sua fase moderna que desenvolve-se no centro

urbano das grandes cidades ocidentais, é lícito supor, tecer diálogo com o mundo

fenomênico, consequentemente, com o outro também: adquirir, de alguma forma,

certa alteridade. Afirmamos isso, baseando-se na discussão da passagem do ioga

medieval para o moderno, quando abandona aos seus votos de asceta renunciante que

se retirava nos ashrams das florestas indianas (SARBACKER, 2008, p.173-177).

O pesquisador Sarbacker, a partir do processo ritual do ioga descrito na

subseção anterior, vai associar a experiência advinda do samadhi/liminaridade com a

aquisição dos iogues de certo poder numinoso ou estado de divindade. Segundo ele,

essa divindade adquirida, poderia estar sendo associada, como já comentamos, com

beleza física, um corpo sem doenças, mas também a aquisição de uma “alteridade

espiritual” na contemporaneidade (Ibid., p.177). O autor explica que essa alteridade

ou distinção espiritual frente ao meio social, a partir do poder simbólico de suas

deidades em conjunto a gnosis advinda do samadhi, pode ter desenvolvido a ideia de

que os seus rituais edifiquem no praticante uma certa convicção - disposição, vontade,

motivação – da necessidade de transformação real do mundo em que vive. Traduzido,

como explica Jain, no discurso de justiça social, direitos humanos e sustentabilidade

planetária (JAIN, 2010, p.95-129).

As deidades do ioga são representações tangíveis do numinoso poder do ioga, a representação simbólica do poder e “alteridade” (antiestrutura) através do qual o praticante de ioga se esforça a alcançar. (...) Estas [deidades, como Shiva, Krsna e etc.] contribuem na criação de um ambiente que simbolicamente represente uma realidade alternativa ou idealizada que o praticante espera entrar ou fazer parte através da prática (SARBACKER, 2008, p.177.).

51 Dicionário de Português licenciado para Oxford University Press [português].

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Trabalhos recentes no Brasil corroboram com Sarbacker quando expõem

relatos de indivíduos que depois de um curso de formação em ioga, mudam

drasticamente o estilo de vida:

Eu não conhecia nada do Yoga. Eu não fazia idéia de toda a filosofia que tinha por trás. Sabia o que todo mundo sabe, que a pessoa fica mais calma que alonga, asanas né? Eu tinha tido um problema no joelho muito sério, e tinha ficado um ano praticamente mancando. E aí superei essa fase. Teve muito de psicológico nesse meu problema do joelho, né? Eu jogava muita frustração e ele não conseguia melhorar. Resolvi que, não, tudo bem, está certo, temcoisas erradas na minha vida e eu resolvi arrumar.

E eu vejo muito nesse sentido como se realmente várias técnicas e várias maneiras de você conduzir um estilo de vida voltado para o autoconhecimento e que consegue integrar realmente as várias facetas da vida. Desde a sua vida conjugal, sua vida profissional. A sua vida com relação com o teu corpo, com relação a tudo. Mas acima de tudo é esse grande objetivo do autoconhecimento no sentido da libertação mesmo, de moksa [equivalente a kaivalya]. No momento quando eu via o Yoga aind como uma técnica, ou seja, ali eu vou praticar Yoga e você toma contato com certas coisas, entra em certos tipos de pontos de vista com relação as coisas e depois você entra em outras práticas de trabalho e vê que tudo motive para a prática de Yoga. Hoje para mim o Yoga é um estilo de vida, uma maneira de ver o mundo econsequentemente a gente mesmo. Mas no início não era. Como eu falei eu tinha um interesse desde o início que era s uma questão física (NUNES, 2008).

A questão da alteridade espiritual desenvolvida no praticante, pode o capacitar

positivamente a perceber um mundo melhor para se viver, um mundo em que os

klesas cessem de agir e o mal-estar e sofrimento desapareçam. Segundo o autor, o

samadhi/liminaridade desenvolveria no praticante a fé, como “aquisição” de certa

“divindade” que os rituais iriam lhe proporcionando:

O estúdio [sala moderna onde é praticado o ioga] tornam-se uma morada para o divino, um espaço numinoso que está mais perto do mundo ideal que os iogues se esforçam para criar ou viver (SARBACKER, 2008, p.177).

O Prof. Hermógenes nos ajuda a compreender essa certeza distintiva de um

outro mundo a partir do ioga; mas neste, não em outro. Em sua obra Yoga, um

caminho para Deus, esclarece:

Que tem Yoga com tudo isso? Yoga é exatamente a viagem dos que, intoxicados de divertimento, acordado pelas abençoadas pancadas das vicissitudes, saudosos da “casa do Pai”, já decisivamente convertidos, tornaram-se aspirantes ao Eterno.

Yoga é o caminho e o caminhar que conduzem a Deus.

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Você, ainda estranhado, poderia perguntar: “Como pode uma ginástica fazer tanto?!” Yoga não é ginástica. Nenhuma ginástica, só, é Yoga. Há uma ginástica muito inteligente chamada Hatha Yoga que ajuda o caminhante, dando-lhe adequadas condições físicas e psicológicas para que vença as obstruções e as fadigas do caminhar. Mas é apenas um aspecto particular de todo um nobre sistema que, alquimicamente, leva a alma a Deus (HERMÓGENES, 2005, p.30-32). Se o que mais nos afasta de Deus e nos vincula ao mundo é nosso imperfeito amar, é a nossa incapacidade para o verdadeiro amor, nosso caminhar tem de ser não contra o mundo, mas a favor de Deus. Será a universalização e divinização de nosso amor que poderá cortar as amarras de servidão e dar-nos, na unificação com o Deus que amemos, a libertação salvadora (Ibid., p.20). É errôneo pensar que o yoguin, pelo fato de ter despertado e visto o falso valor do que é mundano, deva abandonar a sociedade, a convivência, e partir para uma floresta, para a beira de um rio ou para uma caverna na montanha. Nada disso. Agora, desperto e armado de discernimento, mais do que antes, pode e deve participar, e de forma mais fecunda (Ibid., p.184).

As narrativas poéticas de Hermógenes nos conduzem a julgar que ele mesmo

tenha atingido essa alteridade espiritual que lhe dava esta convicção do poder do ioga

como “caminho para Deus” ou “libertação salvadora”, argumentados por Sarbacker.

Não é coincidência também que Hermógenes e DeRose tenham se tornado, por anos

no Brasil, duas autoridades sobre a “verdade” do ioga. O primeiro exaltando o

sincretismo, e o segundo uma perspectiva tradicionalista do ioga no Brasil. A

convivência de ambos pensamentos, entretanto, não eliminou nenhum nem o outro de

atuarem no país. Pelo contrário, ambos jeitos de viver o ioga brasileiro, apesar de

contendas descritas ao longo do capítulo 3, pode ter fomentado a diversidade e

singularidade que buscamos evidenciar desse ioga. A similaridade entre ambas

cosmovisões em processo ainda no Brasil está na promessa de cura pelo Hermógenes,

e de crescimento pessoal em DeRose, ambos, como vimos, sinônimos de salvação

religiosa.

Os processos rituais do ioga, para cura ou “crescimento pessoal”, pode

estabelecer dialética com a saúde. No entanto, a cura restaurativa/illness não deve

estar centrada egoisticamente em si-mesmo, caso contrário, o iogue incorre na dor

decorrente do klesa-egoísmo. A cura restaurativa em direção a kaivalya, portanto,

deve abranger numa transformação na forma e no mundo propriamente dito em que se

vive. A libertação final, kaivalya, logo, pode residir na modificação do próprio

“samsara” em mundo melhor.

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5.4. Aproximação entre relaxamento-samadhi e homeostase eterna-kaivalya

como resposta espiritual do ioga a vida social brasileira em que habitam

Como argumentou Balsev no segundo capítulo, podemos associar

modernamente os klesas - os clássicos obstáculos a vida espiritual plena no ioga,

causa de um viver ignorante ou “inconsciente” - não somente ao estresse, mas a

sentimentos e emoções específicas como desejo, ódio, medo e egoísmo (BALSEV,

1991). Sabe-se, pela psicofisiologia, que a sensação de medo pode ser o principal

gatilho para a resposta de luta-fuga do estresse, mas também de explicações

religiosas (FULLER, 2008, p.28-49). Robert Fuller explica em seu livro Spirituality

in the flesh, no capítulo Religion and natural selection, que as emoções podem ser

estratégias adaptativas, e que o medo poderia estar envolvido na criação, por

exemplo, de anjos e deuses protetores no intuito de aplacar as mais profundas

ansiedades e angústias humanas. O autor nos fornece o exemplo da imaginação

apocalíptica, esclarecendo que, se esta crença sobrevive mesmo em tempos

modernos, seria lícito presumir que ela esteja incorporada em nossas mais íntimas

motivações, mais do que puramente fruto da cultura erigida por um povo (Ibid.,

p.32-33).

Logo, o medo, como principal acionador do estresse no ioga, pode estar

estabelecendo relações com a ideia negativa da “aniquilação da consciência” ou do

“viver entorpecido”, como alguns iogues comentaram. As práticas ioguicas

corporais modernas, para o brasileiro, poderiam estar funcionando para o libertar, ao

invés de samsara (pois no Brasil reencarnar é algo positivo), do medo. Mas medo do

quê? Difícil afirmar algo, mas provavelmente os klesas possam estar envolvidos

nesta construção narrativa.

Resgatando as contribuições de Balsev sobre os klesas do segundo capítulo, o

sentimento de desejo como desdobramento emocional do klesa-apego, pode ser

associado a carência de algo, de sentir falta ou do próprio medo de não ter, de faltar.

O ódio, emoção negativa advinda do klesa-aversão, é uma das principais respostas

emocionais ao medo também, sobretudo quando não temos o que desejamos. O

egoísmo, definido quando um indivíduo coloca os seus desejos acima dos demais ou

não considera o dos outros, guardaria em si a força de irromper o sentimento

anterior de ódio ou a emoção do medo ao estranho, logo, do diferente de mim. Visto

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por essa ótica estritamente psicofisiológica, todos os klesas, carregam em si as

mesmas reações do estresse ao medo: de estar constantemente em alerta, em

prontidão para lutar ou fugir. As metáforas corporais do ioga moderno descritos ao

longo deste capítulo, de desconexão com o viver, do vazio, do torpor e outras

similares, podem indicar que os agentes espirituais do microuniverso do ioga

brasileiro venham de encontro a buscar soluções para o sofrimento de si-mesmos e

da sua comunidade, sobretudo da alienação ou ignorância de quem são e qual papel

devem ocupar na sociedade e suas próprias vidas, consequentemente. Esse indivíduo

social que vive com medo e em “alerta”, logo, se não carecesse de nada, não

desejaria; e assim, sofreria bem menos os efeitos nefastos do medo desencadeador

do estresse/klesa, promotor em última instância, da “extinção momentânea da

consciência”, do “estado de ioga” ou da alienação. As práticas corporais do ioga, a

partir disso, extrapolam os fins orgânicos, eles abarcam uma dimensão espiritual de

cura no sentido da doença/illness comentado por Hanegraaff anteriormente.

Quando a cientista Osiris coloca que o principal motivo dos iogues com quem

convive é “não ser tão afetável pela sociedade moderna, de consumo e estressada”,

conjura os argumentos acima. Dito mais simples, a ignorância (klesa-mãe), pode

manifestar-se no desejar o que não se têm ou, estar socialmente despossuído de

acesso a isso. A cientista Osiris, moradora de São Paulo e pesquisadora de técnicas

meditativas/ioguicas como terapia, durante sua fala cita um artigo científico sobre

como a ansiedade é comum nos grandes centros urbanos brasileiros, como já

comentamos. A chave para o fim da angústia existencial que perturba o

microuniverso ioguico, pode centrar-se assim, na extinção do medo de uma parcela

de brasileiros da classe média social através das suas práticas espirituais. Um medo

de não ter como satisfazer os seus desejos, de odiar por não ter, e/ou do medo

egoísta de colocar os seus apetites acima dos outros. O medo, como gatilho

psicofisiológico acionador do estresse, transforma-se, devido aos iogues-mentores e

cientistas-monges, em sinônimo do klesa-mãe Ignorância, pois “furta a consciência”,

“desconecta da realidade”, afasta os seus da ordem cósmica, aproxima-os de

doenças, mas sobretudo, aliena-os no sentido hegeliano aonde a consciência se

afasta de sua real natureza52, purusa. A doença, na nova doutrina ioguica sendo

52 Alienação: no hegelianismo, processo em que a consciência se torna estranha a si mesma, afastada de sua real natureza. Dicionário de Português licenciado para Oxford University Press (português).

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estabelecida, como ansiedade, depressão, insônia e demais ligadas ao estresse-

ioguico, a manifestação última do afastamento de purusa ou da alma com Deus.

Assim, as vivências espirituais liminares do samadhi, sinônimo da

momentânea extinção do estresse-ioguico, podem estar relacionadas as práticas

corporais purificadoras do estresse e ordenadora das energias cósmicas. A via, no

entanto, mais segura para a promessa de purificação do klesa-estresse, logo, pode

estar pautado no relaxamento conduzido em nível espiritual. Em suma, a dialética é

simples: a experiência transitória do samadhi é central nas práticas ioguicas, pois

contrária à manifestação dos klesas; assim como, a experiência do relaxamento

somente manifesta-se na ausência do estresse ou medo, seja em nível fisiológico,

psicológico ou social, mas também agora, em nível espiritual.

As obras do Prof. Hermógenes são ricas em construções espiritualizadas entre

saúde, harmonia e salvação que buscamos elencar. No capítulo O que é curar-se do

livro Yoga para nervosos, Hermógenes evidencia um estado de perfeita harmonia

alcançado pelo relaxamento obtido nas práticas corporais do ioga: “Não pretendo para

você uma frustradora pseudocura. O que realmente lhe convém é cada vez uma dose

maior de sattvidade” (HERMÓGENES, 2011, p.81).

E sattva, no glossário do mesmo livro, representa “o princípio de sabedoria,

serenidade, santidade...” (Ibid., p.465). Já vimos que sattva simboliza também,

pautado nas escrituras antigas do ioga, uma experiência transitória de equilíbrio

perfeito e de comunhão com Deus. O conceito de sattva, portanto, pode ser

compreendido metaforicamente a um equilíbrio das forças energéticas que governam

os corpos suprassensíveis. Kaivalya, a libertação ou estado Último do ioga, como já

discutido no primeiro capítulo, representaria a conservação eterna do estado sattvico,

quando as forças maléficas dos klesas, enfim cessariam definitivamente de agir (ver

capítulo 1, subseção 1.2).

O Prof. Hermógenes, no livro Yoga: caminho para Deus, no capítulo que trata

especificamente do hatha-ioga, A austera disciplina, diz:

Se o caminhante tem as pernas frágeis para tão longe e duro caminho, deve fortalece-las antes de começar a andar. Quando os Mestres aconselham “pratiquem tapas” estão querendo salvar os caminhantes de uma provável derrota. Ela [tapas] não é para os que cedem às fadigas, aos desconfortos, às

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ciladas, aos desafios, às barreiras... O yoguin, praticando tapas, queima, no fogo da austeridade, as sementes da impureza. E defende-se de todos os cansaços, desânimos, preguiças, fossos e fossas. Tapas é para dar ao corpo higidez, energia, resistência e para prolongar-lhe juventude e vida. Hatha Yoga é para aprimorar o corpo como instrumento. Para o yoguin, “o corpo é o templo do Espírito Santo”. Tapas conserta, aprimora e purifica o templo (HERMÓGENES, 2006, p.81-82).

Em outra passagem do Yoga para nervosos, no capítulo Os milagres do

relaxamento, do Prof. Hermógenes, a relação relaxamento-samadhi ou “libertação” é

evidenciada como um “milagre”:

Nem mesmo os psicotrópicos mais fortes, administrados pelo especialista [da área médica psiquiátrica], tinham conseguido fazê-la dormir. Havia seus dias porém que, sem qualquer medicamento, vinha dormindo normalmente. Havia seis dias que lhe ensinara a relaxar. O semblante de felicidade com que contava sua libertação convenceu a todos [ele estava em uma conferência médica] de que, de fato, o “milagre” ocorrera (HERMÓGENES, 2011, p.69).

Como vimos na seção 2.2 desta tese, Teoria dos klesas corporificada:

sinônimo de estresse e emoções, o pesquisador Benjamin Smith (2008), analisando

um dos métodos modernos mais populares do hatha-ioga, conclui que tapas é o fator

primordial nas tradições modernas do ioga. O conceito de tapas se materializaria no

intuito de elevar o calor corporal, eliminando “no fogo de tapas” todas as

“substâncias nocivas ao corpo” ou, como coloca Hermógenes acima, “as sementes da

impureza”. É a mesmo lógica discursiva. Como expomos, são os klesas a presença

nociva e impura a serem expurgados para o firme reestabelecimento da “higidez” ou a

boa saúde, como nos explica Hermógenes.

Já discutimos também que o estresse, em nível psicofisiológico científico,

desestabiliza o organismo, removendo-lhe da sua homeostase ideal, de um estado de

equilíbrio dinâmico no jogo bioquímico que só tem fim na morte. O organismo passa

a sua vida inteira se ajustando psicobiologicamente, em uma eterna e vã luta por um

estado de homeostase eterno que não pode ser alcançado em vida. Talvez, como fruto

da ressignificação que a doutrina e prática do ioga sofreu modernamente, kaivalya

tenha se traduzido, dentro da linguagem de uma fisiologia da religião, na conquista de

um estado homeostático eterno e divino. Mas para isso se confirmar, seria necessário

que o braço forte do hinduísmo, que percebe o ioga como darsana (ou lit. um ponto

de vista filosófico-religioso), diminuísse a sua pressão legitimadora. Em outras

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palavras, seria preciso que a ortodoxia e o tradicionalismo se calasse e o hibridismo

com a sua permissividade sincrética se revelasse, para que novas soluções religiosas

surgissem. No Brasil, ao longo de décadas, esse panorama se fez dominante. Além

disso, o Brasil e os seus problemas sociais podem estar servindo de diretriz para os

líderes do ioga aqui, identificarem outras as causas do sofrimento humano.

5.5. O mal-estar, o sofrimento e o sintoma: uma nova perspectiva sobre a

soteriologia do ioga

O psicanalista Christian Dunker diferencia mal-estar, sofrimento e sintoma.

Para ele, mal-estar não é a própria angústia ou dor, mas uma deficiência perceptiva da

origem do sofrimento propriamente dito (DUNKER, 2015, p.205).

O tormento, a angústia que se repete, que se remói, a angústia cuja causa, razão ou motivo não se discerne muito bem, pode ser então predicado como mal-estar (Ibid.).

Dunker, a partir de uma interpretação do clássico conceito de Freud, conceitua

mal-estar como a impossibilidade de estar, a negação do estar, e não apenas a negação

pura e simples do bem-estar (Ibid., p.192). Assim, o autor sugere que o mal-estar é

essa ausência de lugar ou sensação de impedimento de ascender espiritualmente

(“escansão do ser”) ou, parafraseando a metáfora do próprio psicanalista: “a

impossibilidade de ‘uma clareira’ no caminhar da floresta da vida” (Ibid.). O autor

comenta que a tradução para o mal-estar freudiano é difícil, pois remete a algo que

não pode ser designado objetivamente, por isso a utilização das metáforas – sobretudo

nesse caso – são imprescindíveis para defini-lo.

A noção de sofrimento, definida como o “reconhecimento da dimensão do

mal-estar”, deve responder essencialmente a três condições: uma teoria que

identifique e nomeie o sofrimento; estruturar o sofrimento dentro de uma narrativa; e

deve envolver meios de determinar o sentido de sofrer e inverter o seu significado

para não mais senti-lo (Ibid., p.219-220).

Os atos de reconhecimento determinam a ontologia da experiência de sofrimento, estabelecendo, por exemplo, a linha de corte entre o sofrimento que dever ser suportado como necessário e o sofrimento que é contingente e

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pode ser modificado. (...) Nesse sentido, todo sofrimento contém uma demanda de reconhecimento e responde a uma política de identificação. A segunda condição (...) exprime um processo transformativo que é reconhecido num âmbito da linguagem intermediário entre o discurso e a fala (...) teorias sexuais infantis, o romance familiar do neurótico, assim como o mito individual do neurótico, são expressões psicanalíticas do que chamamos de narrativa. A terceira condição da experiência de sofrimento é que ela envolve processos de indeterminação de sentido e de inversão de significação. É a experiência psicológica que a criança experimenta quando suspende e confunde a relação entre aquele que pratica a ação e aquele que sofre a ação (Ibid., p.219).

O sintoma para o mal-estar, explica Dunker, como não poderia ser de outra

forma, organiza-se sempre por meio de metáforas: a “metáfora do sintoma”, diz o

autor (Ibid., p.212). O sintoma, ou modos de sofrer, é um fragmento de liberdade

perdido, imposto a si e aos outros (Ibid., p.32). Assim, a normalidade é apenas uma

normalopatia, ou seja, um “excesso de adaptação ao mundo tal como ele se

apresenta”, mas que revela sempre um sintoma de extrema tolerância às agruras da

vida (Ibid., p.185-272). Assim, kaivalya, por sua própria definição (liberdade,

libertação ou liberação), pode representar “um fragmento da liberdade perdida”,

metaforizada na ideia da alma (purusa) contaminada em contato com o mundo

(samsara). As aulas de ioga modernas, processos rituais de retorno/passagem

transitória na purificação de uma alma que sofre, poderiam representar uma

alternativa para o fim do sofrer. Há uma promessa implícita de um dia, pelo

conhecimento espiritual advindo do samadhi/liminaridade, libertar enfim, do mal-

estar que acomete seus alunos/praticantes.

Há um insistente reconhecimento dessa dimensão do mal-estar como inerente às relações entre existência e verdade (Ibid., p.193).

Dunker explica que o cerne das narrativas de sofrimento são sempre transversais, ou seja, possuem causalidade específicas. Assim, a incapacidade do sujeito em reconhecer-se em sua própria história particular ou com dificuldade de estabelecer formas sociais universalmente compartilháveis, causam, em última instância, essa perda da experiência da causa de seu mal-estar (Ibid., p.273).

O diagnóstico, seja ele formal ou informal, clínico ou crítico, disciplinar ou discursivo, reconhece, nomeia e sanciona formas de vidas entendidas como perspectiva provisória e montagem híbrida entre exigências de linguagem, de desejo e de trabalho. (...) Assim, o ressentimento social é um diagnóstico, a biopolítica é um diagnóstico, a personalidade autoritária é um

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diagnóstico, o declínio do homem público é um diagnóstico, a cultura do narcisismo é um diagnóstico. (...) Fica claro, assim, que o que estamos chamando de diagnóstico não deve ser entendido como classificação ou inclusão do caso em sua regra correspondente, como absorção da variável à cláusula genérica, como um juizado de pequenas causas, mas como reconstrução de uma forma de vida (Ibid., p.274).

Dito de forma mais simples, o mal-estar reside na eminência da morte,

representada pela finitude do nosso corpo, mas sobretudo, na violência generalizada

dos grandes centros urbanos e na insegurança e medo das relações humanas. Esse

mal-estar sem possibilidade de nomeação determinante nos dispõe à repetição

angustiante da dor de existir. Precisamos criar, assim, uma forma de vida condizente à

nossa narrativa de vida, pois não há manual de classificação que abarque todas as

mazelas existenciais. Uma nova forma de vida significa, segundo o autor, “nada mais

do que uma perspectiva” (Ibid., p.280). Daí, talvez, a justificativa da resistência das

religiões instituídas existirem e novos fenômenos religiosos surgirem, pois, de fato,

religiões são criativos depositórios de novas formas de se viver, novas narrativas para

justificar a angústia, portanto, que se repete devido ao mal-estar. As práticas e

doutrinas religiosas funcionariam como “diagnósticos” nomeando sofrimentos,

acalentado sintomas e produzindo legitimação espiritual ao sofrimento humano.

Se queremos pensar o diagnóstico como reconstrução de uma forma de vida – no duplo sentido, prático e teórico -, devemos partir da evidência discursiva de que as diferentes formas de vida pressupõem suas próprias práticas produtivas ou improdutivas de nomeação do mal-estar (autodiagnostico) (Ibid., p.276). Diagnosticar é reconstruir uma forma de vida, definida pelo modo como esta lida com a perda da experiência e com a experiência da perda (Ibid., p.282).

A questão da perda da experiência ou experiência da perda, como ressalta o

autor acima, reside no conceito de alteridade e alienação, causadores do mal-estar e os

mecanismos desenvolvidos – novas formas de se viver - para superar o sofrimento. A

alienação centra-se em não saber, ser ignorante portanto, da origem do mal-estar; e a

necessidade de desenvolvimento de certa alteridade ou qualidade pessoal que o

distinga dos outros, assim, tenha condições em erigir um jeito próprio de produzir as

suas próprias “clareiras no caminhar pela floresta”, metáfora utilizada pelo próprio

Dunker.

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O autor comenta que no século XIX era comum que a aceleração da vida

moderna, com o seu nervosismo, sua irritabilidade e seu cansaço, fossem o quadro de

referência para o diagnóstico psicanalítico da neurastenia, uma fadiga extrema que

atingia tanto física quanto intelectualmente parte da população europeia. Era o mesmo

momento histórico e geográfico que o ioga estava sendo apresentado ao mundo

moderno. Assim, é bem provável que a origem da metaforização moderna dos klesas

em estresse e emoções associadas como nefastas, assim como sintomas

correspondentes como agitação da mente, irritação, neuroses e nervosismo, tenham

aqui a sua origem.

Neste ponto da discussão já nos é possível apresentar os klesas, causas

espirituais da ignorância de conhecer a si-mesmo, ao conceito de alienação. Sendo o

samadhi condição da aquisição de certa alteridade espiritual, como vimos em

Sarbacker (2008), e kaivalya, a superação (lit. liberdade ou liberação) do klesa-

Ignorância, nos parece lícito pensar nos klesas mais do que simples fomentadores da

“agitação mental” ou repercussões ao eixo psicofisiológico do estresse. Com vistas a

aquisição de discernimento espiritual ou gnosis da experiência liminar do samadhi, e

pensando no klesa-Ignorância como o principal obstáculo espiritual a kaivalya, é

permitido compreende-lo como causa, portanto, da alienação espiritual dentro da

narrativa discursiva do ioga moderno, mas ressignificado – metáfora com o corpo,

como Victor Turner adiantou na subseção anterior.

Dunker esclarece ainda, que ao longo dos tempos históricos modernos, criou-

se vários jeitos de sofrer o mal-estar inominável: neurastenia e psiscatenia no fim do

séc. XIX; neuroses do caráter nos de 1940; narcisismo pós-guerra; borderlines na

década de 1980 e depressão, pânico e anorexia em 2000 (Ibid., p.32). Podemos pensar

em outras maneiras erigidas para suportar o mal-estar a partir das narrativas modernas

do ioga também.

A permanência na crença de energias transfisiológicas e a questão da ordem

cósmica, dialogam dando coerência a forma de se viver ioguica moderna também. A

causa do mal no ioga é pautada hoje no estresse e emoções como ódio, desejo,

egoísmo e medo, de certa forma, como já demonstramos em outros autores, giram em

torno de causadores de nervosismo, irritabilidade, fadiga e agitação mental. Na

verdade, a definição de ioga que nos chegou, é justamente a “diminuição voluntária

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das modificações mentais”. Uma das fases do processo ritual do ioga é descrito

literalmente como uma “postura de relaxamento final”; e o seu objetivo, na criação de

um “espaço transitório simbólico/liminar” – samadhi ou estado de ioga - entre o

mundo estressante das grandes cidades. Isso tudo atrelado a inversão no qual os

iogues medievais, na passagem para a sua fase história moderna, precisaram se

adaptar, não mais sendo possível retirar-se do convívio social, metáfora de samsara.

A sua busca para um “mundo prometido” – kaivalya -, aonde os klesas não mais

atuem e a alma liberte-se do seu mal-estar inominável, precisou ser modificado.

Estamos tratando aqui, provavelmente, de nova uma narrativa metafórica

moderna em aliviar o sofrimento de muitos brasileiros. Dessa forma, os rituais

corporificados do ioga moderno podem estar sendo encarregados de capacitar seus

devotos de certa alteridade que os aliviem da alienação, compreendidos aqui, como a

ausência do sentir, da falta experiência, a causa intrínseca do mal-estar que os

afligem.

5.6. Ioga moderno como nova religião em processo

Podemos afirmar que desde a chegada do swami Vivekananda no ocidente, o

ioga começou a ser percebido como um novo movimento religioso em andamento

(DeMICHELIS, 2004, p.248-260; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2014, p.95-129). Mas

classificá-lo, assim como qualquer outra religião não é tarefa simples. DeMichelis,

como vimos, define o ioga como uma religião secular de cura; Newcombe como uma

religião mística; e Jain uma prática religiosa corporal. Além disso, inúmeros trabalhos

têm se esforçado em legitimar o ioga moderno como uma nova espiritualidade e não

apenas atividade física e/ou terapia biomédica (LIBERMAN, 2008, p.100-116;

SMITH, 2008, p.140-160; SINGLETON, 2010; GNERRE, 2010; GUERRIERO,

2014).

A história do ioga como religião singular, desvinculado assim tanto do

hinduísmo quanto da Nova Era, tem início a partir dos novos movimentos religiosos

indianos durante ainda o século XIX, no período que comentamos no primeiro

capítulo, de Renascença Indiana (FARQUAR, 1915). DeMichelis afirma que o

movimento religioso Brahma Samaj, nascido neste período, teria sido o estopim para

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uma releitura moderna das escrituras vedantinas dando início ao Neo-Hinduísmo e/ou

Neo-Vedanta (DeMICHELIS, 2004, p.51-66). Desse movimento surge Vivekananda,

porta-voz de um ioga já ressignificado pela fisiologia biomédica científica com

práticas rituais de cura e mensagem de “religião universal” (VIVEKANANDA,

2007). O ioga agora entra no seu período moderno da história e as implicações sobre a

sua soteriologia e religiosidade serão profundas.

A proposta soteriológica do ioga, continua viva, mas estudos indicam que

precisou ser muito bem ajustada no seu transplante da Índia para o mundo moderno

ocidental. Se na Índia pré-colonial britânica, ao longo de milhares de anos, o ioga

sempre foi descrito como um darsana hindu, em menos de 50 anos de contato com as

sociedades urbanas do ocidente, no entanto, suas diretrizes salvífica/libertadoras

foram, consideravelmente, transformadas: klesas, samadhi e kaivalya vem adquirindo

novos contornos e objetivos que, mesmo o mais perspicaz guru retirado por anos nas

mais longínquas florestas e cavernas indianas, sequer um dia vislumbrou em suas

práticas meditativas.

Observações a partir das descrições de Victor Turner, sugerem o espaço

liminar um espaço transicional aonde o indivíduo no processo ritual é um não-algo ou

algo entre. O ritual do ioga, portanto, como representante ioguico deste espaço, se

torna o entre-lugar de “refúgio” aonde se possa vivenciar, a cada aula de ioga,

adquirindo discernimento (gnosis), mas sobretudo, uma sensação de “estar em casa”

ou “retornar ao seu equilíbrio”, no sentido de igualdade social, espiritual, psíquica e

física. Turner ressalta isso quando diz que na liminaridade o participante do processo

ritual:

Não tem status, propriedade, insígnia, vestimenta secular, graduação, posição de parentesco, nada que possa distingui-los, estruturalmente, de seus companheiros (TURNER, 2005, p.143).

Turner esclarece ainda que é um lugar aonde “As pessoas podem ser elas

mesmas, quando não desempenham papéis institucionalizados”. Quando perguntei

aos iogues brasileiros sobre a causa do mal, quase em uníssono eles responderam

como “o falso papel que ocupam na sociedade” ou “as máscaras que vivemos”. O

kaivalya, poderia representar a libertação final destes papéis, pois para Turner a

liminaridade representa a mudança no Ser (Ibid., p.137-158). Assim, cada aula de

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ioga, o praticante vivencia essa mudança no Ser, que representaria, hipoteticamente, o

remover das máscaras e o falso papel que ocupam na sociedade. Mas, sobretudo,

produziria uma geografia suprassensível que motivaria cada iogue ansiar um mundo

melhor a se viver, longe dos klesas, portanto, longe da alienação, do apego, do ódio,

do medo e do egoísmo e, quiçá, mais perto da alteridade, do desapego, do amor, da

esperança e do altruísmo.

Turner, no entanto, se preocupa em explicar que o espaço liminar não se trata

de uma irracionalidade, mas “um modo de provocar os pensamentos”, aonde uma ou

duas coisas podem ser interpretadas de formas diferentes na liminaridade.

A liminaridade é o reino da hipótese primitiva, onde há uma certa liberdade para prestidigitar com os fatores da existência. Como nas obras de Rabelais, há uma promíscua mistura e justaposição das categorias de evento, experiência e conhecimento, com uma intenção pedagógica. Essa liberdade tem, no entanto, limites bastante estreitos. Os neófitos voltam à sociedade secular com as faculdades mais alertas, talvez, e conhecimento incrementado sobre como são as coisas, mas são, uma vez mais, obrigadas à lei e ao costume. Como à menina Bemba (...) mostram-lhes que as maneiras de agir e pensar diferentes daquelas estabelecidas pelos deuses e ancestrais, em última análise, não funcionam e podem ter consequências desastrosas (Ibid., p.152).

Defendo que essa experiência liminar de Turner advinda de processos rituais,

seja o estado de ioga relatado pelos iogues brasileiros. Respeitando a tendência do

ioga moderno, toda a linguagem foi ressignificada pela da fisiologia biomédica, e no

ioga brasileiro isso não foi diferente. Portanto, como DeMichelis (2004) mesmo

descreve, esse espaço liminar pode ter sido simbolicamente ressignificado como o

“relaxamento” produzido por suas práticas corporais, mas agora com o status de

espiritualizada.

Ganesh: Ioga é um relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica-espiritual para isso. Relaxar, focar, expandir, reavaliar seus paradigmas, isso é a meditação propriamente dita. Emocionalmente falando, o ioga nos ensina a colocar-se. Isto se traduz numa postura mais serena e numa melhor disposição no cotidiano. O relaxamento e os exercícios de concentração tomam conta desta esfera. O ioga possui como efeitos mais evidentes deixar o praticante em estado de equilíbrio.

Ravi: Ioga é um processo de relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica espiritual para este fim. Portanto, o grande perturbador do

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ioga moderno. Ficar quieto é um problema para a sociedade moderna.

Centurion: O ioga nos deixa com um mental mais calmo, equilibrado.

DeRose: O estresse impede ao samadhi. Bento: O estresse impede ao estado. Shanti: O estresse nos afasta, nos desconecta. O ioga abaixa o estresse, acalma a mente... aterra, e assim, nos ajuda a conectar novamente.

Se, como vimos, o estresse adquiriu características de klesa, e o relaxamento

de espiritual em dialética com o samadhi/liminiaridade, é lícito supor pensar em

kaivalya, um estado onde não há mais a influência dos klesas, agora estresse e

conquistado na gnosis do relaxamento espiritual advindo das práticas rituais de cura

do ioga moderno, deve estar relacionado a algum termo da fisiologia que represente

esse equilíbrio e harmonia sem a influência do estresse e local de manifestação

propícia ao relaxamento. Defendo a ideia da homeostase espiritual como

denominação de kaivalya modernamente. Como já apresentei o conceito de

homeostase no primeiro capítulo, permito-me apenas a relembrar que a homeostase é

um estado ideal e nunca estabelecido definitivamente, apenas na morte encontraremos

um estado “eterno” de homeostase. Homeostase é sempre um estado de eterna luta

contra forças contrárias na busca constante de reequilíbrio. Portanto, se kaivalya

representaria a salvação/libertação espiritual do ioga moderno. No Brasil, kaivalya-

homeostase divina, pode significar que os iogues brasileiros acreditam no fim do

sofrimento, da dor e do mal-estar que os atormentam, no equilíbrio diário de forças

contrárias que agem constantemente. Em outras palavras, o iogue brasileiro pode

compreender que o fim da sua dor, só com a morte, pois em vida, a batalha contra o

mal é cotidiana.

Essa religiosidade ioguica brasileira pode ser encontrada nas narrativas dos

nossos entrevistados quando revelam que ioga é “viver o presente”, “reagir é algo

negativo, pois nos tira do agora” ou “a prática no tapete funciona como um ritual para

reequilibrar as energias do corpo que se desarmonizam no dia-a-dia”. Nenhum dos

iogues entrevistados, por exemplo, demonstrou qualquer receio da reencarnação, algo

bastante preocupante ao iogue indiano que acredita que as suas ações neste mundo

podem faze-lo vir numa próxima vida como um inseto, por exemplo. O brasileiro não

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parece se preocupar com isso. O seu grande foco parece estar na resolução dos seus

problemas neste exato momento. Outra característica que pode ajudar na compreensão

do novo panorama social-religioso do ioga brasileiro está na redução do aspecto

“errante” dos praticantes e professores. Nunes (2008), mostrou que os indivíduos que

atuam no microuniverso ioguico brasileiro têm se fixado mais em torno do seu

professor ou líder de ioga. Isso evidencia o princípio que ele denominou de “retorno à

tradição”, mas que poderíamos conceber como criação de maior vínculo com um

mestre de ioga em desenvolvimento. Seria lícito supor, que este poderá se configurar

o caminho natural para a institucionalização das diversas tradições, escolas e métodos

em estruturas religiosas mais “estáveis”, similares ao de igreja.

Se as religiões, sem exceção, surgem do seio de sociedades e são elas reflexos

da maneira de viver de núcleos sociais específicos e concretos (GUERRIERO, 2006,

p.21; Id., 2014); talvez o ioga brasileiro possa vir a ajudar a responder o sofrimento de

uma parcela de indivíduos devotados às suas crenças de algum forma.

5.7. Ambivalência dos iogues brasileiros

Não há dúvidas que o ioga tenha suas influências na Nova Era e das

sociedades que vivem sobre o regime capitalista globalizado. Mas, como esclarece

Jain (2014), esse fato é algo vivido por todas as religiões modernas e não

exclusividade do ioga. Mostramos também que o ioga, mesmo tendo tido as suas

práticas dissecadas pela fisiologia biomédica e investigadas por tomógrafos, a ciência

não conseguiu secularizá-lo. Pelo contrário, como elencamos na exposição do

capítulo dois e três, o ioga conseguiu reverter a situação e, além de ressignificar as

suas escrituras sob o signo da fisiologia biomédica ocidental, “converteu” muitos

cientistas a representarem seus paradigmas de investigação como Deepak Chopra,

Amit Goswami, Allan Wallace, e outros que chegam, até mesmo, a discutir a

legitimidade das narrativas religiosas com iogues, como mostrado no capítulo 4, pela

apresentação das entrevistas de cientistas. Dessa forma, o ioga não pode ser

compreendido como uma simples técnica biomédica para remissão de doenças. O seu

discurso revela uma via de salvação/libertação para o sofrimento de uma parcela de

indivíduos que segue a sua espiritualidade de forma religiosa, ou seja, dando-lhes um

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sentido de vida pautado no transcendente, talvez com a mesma verve de criatividade

intelectiva do espiritismo brasileiro.

o esoterismo leva não apenas a uma “ciência alternativa”, mas também a uma maneira de relacionar religião e ciência. Com menos traços esotéricos há o importante movimento espírita-kardecista. Ao contrário do esoterismo, que basicamente traduz ou reproduz material importado, o espiritismo brasileiro é genuinamente criativo. É um movimento típico da classe média branca, com muitas pessoas detentoras de graus universitários elevados e que trabalham em instituições acadêmicas respeitadas. Por conta de sua ênfase na leitura e na crença em “doutores espirituais”, sua forma peculiar de “diálogo religião-ciência” segue o esforço de justificar racionalmente o valor médico e psicológico de terapias religiosas. Sociedades acadêmicas tem sido constituídas, e esta tendência racionalista e empiricamente orientada tem se tornado comum em várias regiões do país (CRUZ, 2007, p.275).

No Brasil especificamente, houve um esforço em conjunto não só de iogues,

como Hermógenes e DeRose, mas também de médicos, psicólogos, educadores

físicos, fisioterapeutas e demais cientistas, que se esforçaram para interpretar a sua

doutrina e transformá-lo em prática aceita até mesmo pelo ministério da saúde. Por

mais de cinco décadas de total insulamento de seu conhecimento, como descrevemos

na história do ioga latino-americano, o ioga brasileiro pode seguir o mesmo caminho

que o espiritismo no que diz respeito ao seu enlace positivo entre ciência-religião

relatado acima. A discussão, por exemplo, que alimenta compêndios acadêmicos de

nossos vizinhos europeus e norte-americanos no esforço em justificar o ioga moderno

tão “autêntico” quanto o antigo ou clássico (JAIN, 2010), nunca sequer foi cogitado

verdadeiramente por aqui. O brasileiro nunca se preocupou com a autenticidade do

ioga propalado no país. Mesmo ocorrido contendas sobre grafias e acentos do nome

ioga, ou tentativas frustradas de unificação dos “iogas” no Brasil, não houve

realmente grandes contendas, como no caso que descritos no trabalho Jain sobre o

ioga ser hinduísta, budista ou jainista (Ibid.).

Parece lícito supor que na ausência de mestres e gurus indianos, assim como

acesso a escrituras autorizadas, as primeiras décadas de instalação do ioga no Brasil

se construiu a partir tão somente das próprias experiências e vivências, como fez

Hermógenes na cura da sua doença ou DeRose no mergulho da mística sincrética, o

ioga brasileiro se apossa do ioga indiano chegou até ele e o transforma em narrativa

espiritual própria em mais uma alternativa para compreensão do seu mal-estar: em

mais uma forma de viver e sofrer. É lícito supor que os iogues brasileiros tenham

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erigidos as suas próprias vias de salvação do mal-estar que os aflige, assim como a

descrição do mundo ideal a ser conquistado na aquisição da sabedoria de kaivalya.

Tracei, portanto, a partir da figura de dois líderes do ioga brasileiro –

Hermógenes-híbrido e DeRose-tradicionalista – a história de consolidação do ioga

brasileiro. Mesmo distinguindo os dois entre híbridos e tradicionalistas, a divisão se

deu por motivos metodológicos e ilustrativos de “tendências”, pois ambos se

consideram genuinamente autênticos ao mesmo tempo concebidos de forma original.

Quando no caso do governo federal brasileiro sugerir fiscalizar os professores de ioga

pelo conselho de educação física ambos, híbridos e tradicionalistas, se uniram contra

o poder do Estado. O ioga brasileiro, mesmo diferente, se complementa. Isso ficou

evidenciado durante as entrevistas, na diferenciação entre “prática” e “estado” de

ioga. Essa distinção, como descrevemos, primeiro, não precisou de nenhuma reunião

entre os líderes do ioga no Brasil, foi estabelecido espontaneamente ao seu

microuniverso para afastar de qualquer poder governamental o direito de fiscalizá-lo;

e segundo, que o ioga, como religiosidade, não pudesse ser fiscalizada como

“atividade física”, ou seja, quem legitima o que é ou não ioga no Brasil, são os

próprios líderes de ioga no país, mas de forma ainda não-institucionalizado. Essa

forma ambígua e paradoxal pode ter sido o que permitiu tanto Hermógenes quanto

DeRose se tornarem líderes e formadores da maioria dos professores e novos líderes

de ioga.

5.8. Alteridade e Alienação presentes nas práticas rituais de cura do ioga

moderno

Andrea Jain em seu livro Selling Yoga, apresenta o termo ritual ioguico como

uma série de comportamentos que evocam ou orientam o praticante em direção a uma

“dimensão sagrada” que transcenda a compreensão de vida convencional e ordinária

(JAIN, 2010, p.126). Ao invés da expressão “dimensão sagrada”, prefiro assumir a

mesma terminologia utilizada pelos líderes de ioga que entrevistei no Brasil: estado

de ioga. O estado ou experiência de ioga corresponde ao samadhi e advém do cessar

voluntário das flutuações da mente/consciência (citta-vrttis-nirodha). Em outras

palavras, a via de salvação/libertação do ioga moderno, como mostramos, capacita

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aos iogues modernos uma certa alteridade espiritual que o liberta do aprisionamento

social em que vive em sofrimento.

O entrelaçamento entre samadhi e alteridade espiritual, e o klesa-Ignorância

em dialética com o alienação (SARBACKER, 2008, p.173-179), hipotetizamos que

kaivalya pode também ser interpretado como libertação/salvação da alienação

espiritual de “quem somos”.

É evidente que o jeito de viver de um iogue existe e o motiva a

transformações. Há uma esperança de uma vida melhor, de uma vida que permita,

mesmo que durante os sessenta minutos de aula de ioga, vivenciem o

samadhi/liminaridade que diminua seus sintomas da dor e do sofrimento. O que

almejam é alcançar o relaxamento espiritual de seus rituais, mas sobretudo,

purificarem o klesa-Ignorância metaforizado em estresse da sociedade em que vivem,

instaurando a homeostase espiritual de kaivalya.

Os rituais do ioga e seus espaços liminares que produzem relaxamento e fé em

uma vida sem estresse, podem representar tentativas de uma parcela da população

brasileira em buscar novas alternativas religiosas às suas mais profundas angústias

sociais, políticas e econômicas ajuizadas na ética do ioga moderno. O ioga em contato

com as sociedades ocidentais - leia-se novas formas de viver, mas também de sofrer -

ressignificaram toda a sua doutrina e práticas corporais por conceitos da ciência

fisiológica biomédica (ALTER, 2004; JAIN, 2010; SIMÕES, 2011), transformando

os seus principais obstáculos espirituais (klesas) à salvação (kaivalya) em estresse

(BHAVANANI, 2007; RAO, 2012) ou emoções específicas (BALSEV, 1992).

Contudo, agora, esse contato altera o caráter do iogue renunciante do mundo

de tempos passados, para um ascetismo que dialoga com o mundo nos tempos atuais

(STRAUSS, 2008, p.64). Assim, em cada sociedade que o ioga toma contato adapta e

acomoda as suas narrativas de formas de viver. No Brasil, com certeza, o ioga indiano

encontrou um sofrimento diferente a ser combatido que o fez rever a sua doutrinas e

significados de prática. O conhecimento advindo (gnosis) do samadhi/liminaridade

pode não ser o mesmo que de outras instâncias. O que atormenta um indiano medieval

pode não corresponder a um brasileiro moderno. Mesmo que, hipoteticamente, o

mesmo estado liminar/samadhi promovido pela mesma prática ritual tenham

sobrevividos da época de Patanjali, um praticante brasileiro moderno deve obter outro

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tipo de conhecimento (viveka), pelo simples motivo que a dor que ele sofre ser

advinda de outro mal-estar que o aflige. Assim, é lógico que os klesas, ou obstáculos

espirituais do ioga não sejam mais os mesmos de outrora. Mas qual mal-estar

atormenta os brasileiros?

5.9. Kaivalya à brasileira

No Brasil, segundo a tese de Dunker, impera-se duas forças contrárias que

convivem em harmonia ao espírito dos brasileiros, por assim dizer: uma que o

percebe como “cordial” e outra como “intolerante”. A perspectiva cordial, retomada a

partir de intérpretes clássicos como Silvio Romero, Afonso Celso, Paulo Prado,

Manuel Bonfim e Cassiano Ricardo enfatiza o problema da ausência do Estado nas

resoluções particulares que autorizam os brasileiros a burlar normas e ordens

vigentes. É o exemplo, segundo a interpretação psicanalítica do autor, do caráter

brasileiro ser classificado como o “malandro”, pois na ausência da figura paterna,

simbolizada pelo Estado que o abandona e, percebida como explorador e ausente ao

mesmo tempo, legitima-o a resolução das suas angústias do seu jeito. Sob o ponto de

vista da intolerância, o que se sublinha é o excesso de Estado que dificulta a

individualização necessária para que o brasileiro realize as funções que se destina,

como no caso do massacre em Canudos, gesto exemplar contra uma comunidade que

desafia a autonomia do Estado – do pai – e este age com força desmesurada e violenta

aos seus que desafiam a sua autoridade (Ibid., p.137). O primeiro aspecto do caráter

nacional lhe permite certa alteridade, do “jeitinho brasileiro”; mas o segundo,

funciona como mecanismo de alienação, do “não adianta fazer nada mesmo”. Esse

jogo de forças contrárias e ambivalentes é o que define o problema da identidade do

brasileiro e a causa do seu mal-estar e sofrimento. A solução encontrada, conclui o

autor, é a “união dos contrários” com a persistente sensação de estar num “estado de

exílio permanente” (Ibid., p.171).

Talvez ser essa sensação de não-lugar que o estado de exílio representa, que

os iogues brasileiros não tenham podido identificar os obstáculos espirituais que os

impedem à kaivalya quando das entrevistas. Nenhum iogue brasileiro conseguiu

definir com clareza ou identificar a causa específica do sofrimento no ioga a partir dos

klesas. Na verdade, os klesas não são sequer citados, na maioria das vezes. Isso

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poderia representar falta de conhecimento, mas não é esse o caso. Os iogues

brasileiros são muito claros e possuem um discernimento e compreensão bem definida

da espiritualidade do ioga. Muitos dos líderes entrevistados inclusive, possuem seus

próprios gurus indianos e estabelecem contato periódico com a cultura indiana e

acadêmica. Essa falta sobre os klesas pode refletir que os obstáculos espirituais ao

iogue brasileiro, globalizado e secular, não tenham mais contornos tão definidos como

na sociedade de Patanjali. Ou, essa não clareza da natureza dos klesas possa estar

relacionada na ambivalência da “alma antropofágica” do brasileiro esclarecida por

Dunker.

A ambiguidade e paradoxalidade característica do brasileiro é diferente de

puro e simples sincretismo que somam duas características e criam uma terceira

totalmente diferentes das duas anteriores. A antropofagia da alma brasileira, estaria

mais relacionada com a convivência dos contrários e uma “nova forma de vida”

(DUNKER, 2015, p.273-320). Enquanto DeRose, por exemplo, se posiciona

oficialmente como um tradicionalista, alguém que foi buscar a mais pura essência do

ioga em sua origem pré-védica, a sua tradição de ioga é obscura e legitimada, como

ele mesmo descreve, por um espírito de luz indiano desencarnado (Bhajavananda) que

o auxilia na decodificação de seu método e que aparece a ele num terreiro de

candomblé no Rio de Janeiro, como comenta em entrevista e na própria autobiografia.

É nessa gira, por intermediação de preto-velho que DeRose percebe “que está no

caminho certo para trabalhar com o ioga”. Por outro lado, a característica híbrida de

Hermógenes é ao mesmo tempo marcada por um respeito de reverência ímpar aos

princípios de seu guru, Sai Baba, digno de um iogue ortodoxo brâmane. A

classificação realizada aqui – tradicionais e híbridos - foi puramente ideal e por

questões metodológicas, como ressaltamos desde o início. Rotular o ioga brasileiro é

tarefa difícil, senão inclassificável, mas foi necessária para agora mostrar a sua

própria indefinição de “alma”. E é nesse ponto que retomo o cerne da tese aqui

apresentada: O que liberta os iogues brasileiros do seu sofrimento? Ou de outra

forma, do que os brasileiros dedicados à espiritualidade do ioga querem se

libertar/salvar?

Entre as narrativas dos iogues brasileiros entrevistados, pode-se perceber certa

indefinição da causa do sofrimento humano. Os klesas ou equivalentes, não puderam

ser identificados com clareza. Talvez pelo número reduzido de entrevistados, mas

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mesmo que assim o fosse, os dez entrevistados líderes de ioga são os responsáveis por

uma parcela expressiva de novos professores que adentram ao microuniverso ioguico

brasileiro e difundem o que aprenderam com estes líderes aos seus alunos. Dessa

forma, é lícíto supor que, mesmo restrito o número de entrevistas, elas puderam

revelar que a salvação/libertação espiritual do ioga brasileiro, possa estar inserida na

resolução dos problemas da sociedade, no mundo fenomênico e não em outro. O

brasileiro se preocupa com esse mundo. O obstáculo à salvação/libertação espiritual

proposta pelo ioga no Brasil pode ainda estar indefinida, não possuindo um lugar,

uma resposta orgânica específica ou uma emoção singular, como vimos elencada por

nossos colegas em outras instâncias. No Brasil, pelo contrário, os klesas podem residir

num jogo de polaridades permanente.

Ravi: Vivemos papéis que são falsos (pai, cientista, professor). Antes de nascer já éramos alguma coisa e depois de morrer continuaremos ser. O que somos então? São as identificações dos papéis [que ocupamos] que originam o sofrimento humano.

Hermes: O personagem constrói a realidade física da pessoa. Há um eu por trás que você já é.

Ganesh: O estresse existe, mas não tem razão de se deixar manifestá-lo físico e mentalmente, pois o estresse é fruto da ignorância de não se perceber dentro de uma ordem [cósmica]. Todos nós somos parte dela. As causas do sofrimento humano está em não se compreender que você não é o papel que ocupa [na sociedade ou família]. O ioga lhe dá a possibilidade de você perceber-se algo que você já é, mas que você não percebe plenamente.

Vishnu: Os obstáculos do ioga são nossas próprias máscaras. Rudá: Os obstáculos sou eu mesmo que construo. Shanti: Isvara é a consciência que permeia tudo. Estamos imersos em Isvara. Não temos consciência Dele, mas o ioga ajuda na conexão com Deus que está dentro de nós. Eu me conecto comigo, eu me conecto com o universo. Há um plano maior de Isvara.

Andurá: A meditação nos ajuda a contar menos histórias sobre nós mesmos.

Em todos os discursos acima está implícito uma insatisfação e anomia do seu

desempenho social ou na ordem cósmica, por assim dizer. Os iogues brasileiros,

habitantes da classe média, em geral profissionais liberais ou microempresários,

descrevem os klesas indefinidamente como algo que os alienam e responsaveis por

afastar os indivíduos da “harmonia”, ordem cósmica, portanto, da homeostase

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espiritual que kaivalya promete e está representado no corpo. Kaivalya no Brasil,

parece manifestar-se dentro de uma lógica dinâmica, assim, de difícil classificação,

pois muda a todo instante à mais sutil oscilação. A sua narrativa, no entanto, pode

estar obedecendo a mesma lógica na qual os klesas, o samadhi e as energias

suprassensíveis correspondem e como ressaltamos ao longo de toda a tese: na

ressignificação da fisiologia biomédica ocidental. Por isso, o representamos aqui

nesse equilíbrio dinâmico metaforizado em homeostase, descrito no segundo capítulo,

por forças internas do organismo em busca constante (eternas, por assim dizer) da

manutenção da harmonia do nosso corpo-mente e o colocar em “relaxamento”: em

um estado ideal que não precise fazer nenhum esforço. O objetivo último do ioga no

Brasil, parece estar em adquirir as mesmas características da “união de forças

contrárias” e “exílio permanente” que Dunker afirma serem as motivações do mal-

estar brasileiro.

Kaivalya para o brasileiro não aparece como “estado final”, mas algo que os

“conecta novamente” ou “em equilíbrio”. Em outras palavras, há um possível “entrar

e sair” do estado de ioga e não um definitivo “local salvífico/libertador”, como o céu

cristão. Kaivalya está mais para o “Nosso Lar” espírita, no sentido estrito de lugar de

transição ou purificação, pois logo em seguida os iogues descrevem o “desconectar”

de novo num eterno retorno do estado ordinário ao sublime. Nada parece indicar um

estado definitivo em kaivalya para o brasileiro.

O que o ioga, como caminho espiritual em processo, mas sobretudo como

promulgador de uma nova forma de vida, propõem libertar seu devoto do estado de

alienação ou klesa-mãe-Ignorância (avidya), que foi traduzido metaforicamente

modernamente como estresse e outras emoções, que podem ser, na verdade, reflexos

ou sintomas – para utilizar as expressões de Dunker – de um sofrimento maior

advindo do mal-estar. Kaivalya poderia refletir o libertar não apenas do estresse, no

sentido conservador, que o associa com o “estilo de vida agitado das grandes

cidades”, mas de uma nova narrativa, uma metáfora de um estado de eterno equilíbrio

de estar, portanto, com alteridade, vencendo o mal-estar de não estar. Kaivalya-

homeostase não seria, talvez, o fim do sofrimento, mas o discernimento da causa

espiritual do mal-estar, da angústia da alma. Estabelecer-se na Verdade de kaivalya,

talvez esteja mais em tomar consciência que se sofre, mas resiste com a coragem e a

fé que a cada prática ritual, o praticante ou aluno de ioga pode superá-lo mais um dia,

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no constante jogo de equilíbrio do viver. O kaivalya verde-amarelo pode estar mais na

impermanência, no jogo de cintura, como o próprio jeito do brasileiro, do que no

alcance do estado permanente de não-sofrimento do ioga indiano.

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CONCLUSÃO

O ioga é um fenômeno espiritual desde a sua definição como darsana na

tradição do hinduísmo indiano. Atualmente, o enlace da espiritualidade do ioga aos

conceitos da ciência fisiológica biomédica moderna ocidental, vem possibilitando a

diversos autores contemporâneos o perceberem como um novo fenômeno religioso

(DeMICHELIS, 2004; NEWCOMBE, 2008; JAIN, 2010). Devido a isso, a proposta

soteriológica do ioga moderno possui estreitos laços com as suas aplicações

terapêuticas, ao mesmo tempo que a ciência também tem se utilizado das suas práticas

como terapia de baixo custo em muitos indivíduos, sobretudo no Brasil (SIEGEL,

2010). Essa ponte ciência-religião estabelecendo-se entre setores da saúde brasileiros

e o ioga, muitos médicos, fisioterapeutas, psicólogos e profissionais de educação

física têm se utilizado das práticas corporais ioguicas. No entanto, essa aproximação

com a ciência não o secularizou, pelo contrário, a ciência se tornou sua via explicativa

religiosa em busca da salvação/libertação para o ioga moderno.

Os klesas, os grandes responsáveis pelo sofrimento ou mal-estar humano na

perspectiva ioguica clássica, foram sendo ressignificados, assim como todas as

escrituras modernas do ioga, à luz da ciência fisiológica biomédica (SIMÕES, 2011).

Assim, o klesa-Ignorância recebeu contornos de estresse, o klesa-Apego de

sentimento de desejo, o klesa-Aversão de ódio, o klesa-Medo de Morte de medo como

gatilho responsivo ao estresse, e o klesa-Orgulho de egoísmo. No Brasil em

específico, por causa ao insulamento que o ioga sofreu por mais de cinquenta anos

sem a presença de líderes indianos do ioga que o legitimassem como religiosidade, o

ioga verde-amarelo desenvolveu particularidades que o pudemos classificar

idealmente em duas grandes perspectivas: os iogues híbridos, na figura do Prof.

Hermógenes, muito mais permissivos a sincretismos com religiões nativas e do

cristianismo primitivo; e os iogues tradicionalistas, inspirados pelo Mestre DeRose,

que buscam primar pela “essência” e “purismo” do ioga ortodoxo da Índia.

Pelos dados coletados das entrevistas com dez líderes de ioga e mais três

cientistas que investigam os aspectos terapêuticos do ioga, identificamos cinco

características: 1) A ausência da presença dos klesas em suas narrativas como

obstáculos espirituais, assim como uma definição específica de algo similar; 2) Houve

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uma distinção muito clara entre prática ou método de ioga, de estado ou

experiência/vivência de ioga. O primeiro parece se referir a qualquer prática, mesmo

secular; e o segundo ao foco de quem se devota religiosamente as práticas e

compreensão das suas escrituras. 3) Todos se referem ao momento atual como uma

“fase de transição” do ioga brasileiro do hibridismo ao tradicionalismo; 4) Duas

crenças permanecem de seus períodos históricos anteriores, numa Ordem Cósmica

que rege o mundo e o corpo, e em energias transfisiológicas; 5) Parece haver uma

relação estabelecida entre relaxamento e os conceitos espirituais de samadhi e

kaivalya.

Dentro desse quadro investigativo e de nossos marcos teóricos, mostramos que

as práticas corporais do ioga se transformaram em rituais corporais de cura

(DeMICHELIS, 2004; JAIN, 2010). A partir da descrição de processo ritual em

Victor Turner desenvolvido por DeMichelis (2004), Liberman (2008), Sarbacker

(2008) e Andrea Jain (2010), o conceito de samadhi no ioga nos permite estabelecer

correlação com o espaço liminar ou liminaridade elevando o relaxamento, como

terceira fase das práticas rituais corporais do ioga, em espiritual e responsável pelo

ritual de passagem do estresse cotidiano do ambiente das grandes cidades ocidentais

ao conhecimento (gnosis) advindo da liminaridade (TURNER, 2005). Essa gnosis, ou

discernimento espiritual do ioga (viveka), ficou estabelecido que empossa o praticante

de ioga de certa “alteridade espiritual” que remove a alienação ou ignorância e o põe

em processo de “crescimento pessoal”, que segundo Hanegraaff (1998) pode ser

considerado similar ao conceito de salvação/libertação religiosa, portanto, kaivalya.

Os klesas-estresse e emoções equivalentes na relação com a resposta do estresse,

como indicamos, seriam os empecilhos para que o relaxamento espiritual propiciasse

a vivencia do samadhi.

Os conceitos de klesa metaforizados em estresse, como apresentados por

Bhavanani e Rao no segundo capítulo e/ou emoções em Balsev, assim como a sua

ausência no microuniverso do ioga brasileiro investigado, necessitam de pesquisas

com maior abrangência, mas ainda assim, podem revelar uma nova concepção das

causas do mal ioguico moderno. Nossa investigação nos permite supor que esses fatos

podem revelar uma nova concepção para os klesas, dessa forma, alertar o ioga como

um novo movimento religioso em processo. No Brasil, particularmente, os klesas

parecem estar relacionados com a carência do iogue brasileiro conseguir firmar a sua

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alteridade na sociedade, sobretudo nas narrativas de que vivem em “máscaras” e

“papéis sociais” que precisam desempenhar. Isso pode corroborar com a análise de

Dunker sobre a sociedade brasileira que foge de seu sofrimento com a fantasia da vida

em forma de condomínio. Aquela que imaginamos poder nos isolar do mundo

estressante que nos alfige por meio dos excessivos ruídos, violência, trânsito e etc.

atrás dos muros, catracas e grades dos condomínios. Associei essa configuração com

os papés que precisamos sustentar dentro dessa lógica que Dunker descreveu com

alienante do indivíduo. Pareceu-me bastante similar com a proposta do ioga brasileiro

em criar rituais coporais de relaxamento espiritual como via de salvação/libertação

desta “lógica dos muros” do condomínio. Os obstáculos espirituais ao ioga no Brasil

parece ser mais “concreto” do que o estresse e emoções específicas. O iogue

brasileiro parece ainda não conseguir nomear a causa. Talvez tenha muitas causas, ou

vise de forma mais urgente certa alteridade espirtitual, como mostramos.

No Brasil em específico, essa alteridade espiritual indicado por Sarbacker

(2008), indicaria o kaivalya ao estado de ioga descrito pelos entrevistados,

obedecendo a ressignificação que passa o ioga pela linguagem metaforizada pela

fisiologia ocidental, um caráter de “homeostase divina”. Escolhemos o termo

homeostase para representar uma metáfora em fisiologia, pois kaivalya ao iogue

brasileiro parece não representar, como no caso do seu conceito clássico indiano, o

“fim do sofrimento”, mas um equilíbrio dinâmico, assim como o conceito utilizado

pela fisiologia científica e caracterizado pelos iogues entrevistados. A não

identificação dos klesas no discurso ioguico nacional pode relevar não haver,

portanto, para este contexto sócio-religioso, um ou demais “obstáculos espirituais” à

salvação/libertação final, definição clássica à kaivalya. No Brasil, como sugerimos

pelo estudo psicanalítico e histórico do mal-estar e causas do sofrimento brasileiro,

pode ser algo que não não tenha definição clara. O mal-estar que assola os brasileiro

modernos, segundo Dunker (2015), residiria na sensação de “exílio permanente” que

faz com os brasileiros talvez sintam o seu mal-estar ou sofrimento existencial em um

“não-estar” presente. Desse modo, é lícito supor kaivalya, ao microuniverso ioguico

verde-amarelo, como buscando espiritualmente certa “harmonia” e “equilíbrio”

reiteradamente citada nas narrativas dos iogues nacionais. Ambivalentemente, o

kaivalya brasileiro não está compreendido como um estado ou local geográfico

suprassensível, mas talvez por um permanente e eterno não-sofrer em samsara ou na

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própria existência. Kaivalya à brasileira, portanto, estaria mais para um eterno jogo

dinâmico de equilíbrio de forças contrárias do aqui-e-agora e não em um mundo

vindouro ou “supramental”, mas similar ao conceito fisiológico de homeostase, como

propomos, um estado de bem-aventurança mas sujeito a mudança por qualquer sutil

oscilação corpo-mente-ambiente, que caracterizaria, em nossa comparação pela

análise de Dunker (2015), a forma de viver do brasileiro.

Como pano-de-fundo da discussão acima, reside o valor da “fisiologia da

religião” (USARSKI, 2007, p.13) como uma possível subdisciplina auxiliar em

processo na ciência da religião no Brasil. Em outras instâncias, o seu valor heurístico

pode ser já percebido (LAKOFF & JOHNNSON, 1999; FULLER, 2008;

WINKELMAN & BAKER, 2010), mas no Brasil ainda bastante incipiente as

pesquisas que consideram o corpo como parte importante na compreensão de um

fenômeno religioso. Outro ponto que levantamos, está na ciência funcionando como

legitimadora de discursos religiosos ao invés de responsável pela secularização de

narrativas religiosas. Com o ioga percebeu-se aqui que ela é uma das mais

importantes responsáveis por fomentar o surgir de seus novos bens de salvação

(klesas, samadhi e kaivalya).

A investigação do ioga, fora dos muros que o cercam como terapêutica

espiritual ou secular de cura e profilaxia de doenças, pode ampliar o espectro de sua

religiosidade na compreensão das mais profundas angústias existenciais de uma

parcela determinada das sociedades urbanas no Brasil, que o praticam não apenas para

aquisição de uma boa saúde, mas como uma nova forma de viver e sofrer.

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