polÍticas pÚblicas e a formaÇÃo de professores: o pnaic...
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POLÍTICAS PÚBLICAS E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES: O PNAIC COMO
OBJETO DE ESTUDO
Elianeth Dias Kanthack HERNANDES – FFC UNESP/Marília
Andrea Ramos de OLIVEIRA – FCT UNESP/Presidente Prudente
Ana Laura Dias de SOUZA - FCT UNESP/Presidente Prudente
Eixo Temático: Eixo 5 – Política de Formação de Professores
Email: [email protected]
1. Introdução
São inegáveis os avanços desde as últimas décadas do sec. XX quanto à
universalização do acesso à educação no Brasil, conforme dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) que em seu quadro síntese de 2013 (BRASIL/IBGE,
2013) revela ter, de 2007 a 2013, 98,4% de crianças entre 6 a 14 anos na escola. Apesar
de assegurado o acesso, dados obtidos em avaliações nacionais e internacionais
revelam que o fato das crianças frequentarem a escola não tem garantido que todas se
apropriem dos conhecimentos fundamentais para o desenvolvimento das habilidades de
leitura e escrita. Tal ineficácia no sistema de educação brasileiro denota que cerca de
700 mil alunos ingressam no 6º ano do ensino fundamental sem o pleno domínio da
leitura e da escrita (BRASIL/MEC, 2013).
Diante desse contexto, o Ministério da Educação lançou o Pacto Nacional
pela Alfabetização na Idade Certa, política pública cujo objetivo é garantir a alfabetização
plena de crianças até 8 anos de idade em todo o território brasileiro, sendo suas ações
integrantes organizadas em quatro eixos de atuação: formação continuada de
professores alfabetizadores, materiais didáticos e pedagógicos, avaliação e gestão,
controle social e mobilização (BRASIL, 2012). Para seus propositores, o PNAIC
configura-se como política de “continuidade” do governo brasileiro voltada à formação
dos professores alfabetizadores, iniciado com o Programa de Formação de Professores
Alfabetizadores - PROFA, em 2001, seguido, em 2005, pelo Pró-Letramento. O Pacto se
destaca, ainda, pela mobilização e adesão nacional, pelo maior número de profissionais
envolvidos, e pelo desenvolvimento em todos os estados da federação, implantado em
5.420 municípios, envolvendo 38 universidades públicas (BRASIL/MEC, 2014).
Dada sua abrangência, torna-se relevante o acompanhamento do
programa dentro do ciclo de políticas públicas, sendo que este texto, como outros já
divulgados, visa contribuir para a análise de alguns aspectos do PNAIC, verificando quais
bases teóricas sustentaram sua concepção, sua efetiva implementação no estado de São
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Paulo, destacando-se o município de Birigui, no interior paulista, como contributo para
reflexão crítica acerca de sua efetividade diante dos resultados parciais já alcançados.
Tal qual Secchi (2013, p.2), entende-se uma política pública como “diretriz
elaborada para enfrentar um problema público” que possui como elementos fundamentais
“intencionalidade pública e resposta a um problema público”. Nos documentos que
justificam a proposta de realização do PNAIC, fica evidente que os propositores dessa
política a entendem da mesma forma descrita por Pires e Schneckenberg (2015, p.114):
“como política pública educacional de valorização e profissionalização de docentes,
repercutindo como condição para uma educação emancipatória, que busca garantir a
alfabetização dos alunos e a valorização docente”. Conforme aponta Rolkouski (2013), o
PNAIC é uma política pública de formação de professores que se mostra complexa e
robusta em face dos investimentos realizados e que, embora já venha trazendo
inovações e demonstre alguns avanços, ainda revela fragilidades e questões com as
quais o poder público terá de lidar se pretende enfrentar eficazmente o analfabetismo.
O presente artigo objetiva ampliar as discussões sobre essa política,
direcionadas pelas seguintes categorias de investigação: 1) Como o PNAIC pode ser
entendido a partir de algumas tipologias de análise de políticas públicas?; 2) O que dizem
os documentos oficiais sobre o PNAIC?; 3) O que acontece na implementação do PNAIC
em município que participa desse programa de formação?
2. O Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
O Governo Federal institui o PNAIC com a publicação da Portaria MEC
867, de 04 de julho de 2012. O documento legal estabeleceu critérios e
responsabilidades para que fosse firmada a parceria entre os estados e municípios com
relação aos compromissos previstos no Decreto 6.094/2007 (BRASIL, 2007), em especial
o que estabelece o inciso II do art. 2º da referida legislação, ao estabelecer a
necessidade de “alfabetizar as crianças até, no máximo, os oito anos de idade, aferindo
os resultados por exame periódico específico”.
Além de definir quem serão os atores sociais que participarão do Pacto e
as responsabilidades e atribuições de cada um, a referida Portaria estabelece que o
programa priorize a alfabetização nos conteúdos relativos ao ensino de Língua
Portuguesa e de Matemática, prevê também a realização de avaliações externas anuais
para os concluintes do 2º e do 3º ano do Ensino Fundamental, sob a responsabilidade do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP, e apoio
gerencial aos estados e municípios que tenham aderido ao PNAIC.
A formação continuada oferecida pelo PNAIC aos professores
alfabetizadores seguiu o modelo “em cascata”. Essa metodologia de formação, de acordo
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com Gatti e Barreto (2009, p. 202), tem a característica de constituir-se em “[...] um
primeiro grupo de profissionais que é capacitado e transforma-se em capacitador de um
novo grupo [...]”. Nessa organização, as universidades parceiras, no caso de São Paulo
UNICAMP, UFSCAR e UNESP, selecionam os chamados “Formadores”, que organizam e
executam os momentos de formação dos Orientadores (professores da própria rede de
ensino que, de preferência, tenham participado da formação do Pró-letramento e que são
indicados para a função para realizarem a formação com os professores alfabetizadores).
Sobre essa estrutura de programa de formação de professores, as referidas autoras
alertam que, “[...] embora permita envolver um contingente profissional bastante
expressivo em termos numéricos, tem-se mostrado pouco efetivo quando se trata de
difundir os fundamentos de uma reforma em suas nuances, profundidade e implicações”.
A divisão territorial do PNAIC aconteceu por polos constituídos por
Municípios e Diretorias Regionais de Ensino, sob a responsabilidade de uma das
Universidades Públicas (Estaduais e Federais) que assumiram a tarefa de proceder a
formação dos orientadores de estudo dessas redes. Os polos constituíram-se pelos
seguintes participantes: supervisores gerais (indicados pelas Universidades), os
professores/formadores (selecionados pelas universidades), os coordenadores das redes
estaduais e municipais, os orientadores de estudos (indicados pelas Secretarias
Municipais da Educação) e os professores/alfabetizadores em regência das classes de
1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental.
3. O PNAIC e as tipologias de análise do ciclo de políticas públicas
Para que melhor se entenda essa política pública de formação de
professores, este estudo fundamentou-se em algumas tipologias de análise de conteúdo
de políticas públicas apresentadas por Secchi (2013), concluindo-se que, se utilizada a
tipologia de Lowi (1964, p. 689), que considera o impacto causado pela ação política na
sociedade, o PNAIC estaria enquadrado nas chamadas “políticas distributivas”, uma vez
que seus benefícios se concentram em um grupo de atores, no caso professores
alfabetizadores e estudantes – 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental –, e seus custos são
difusos para toda coletividade/contribuintes. Já de acordo com a tipologia organizada por
Wilson (apud SERCHI, 2013, p.26), ao analisar a relação custo-benefício na sociedade
segundo a percepção dos próprios destinatários das políticas públicas, o Pacto está entre
as “políticas de tipo clientelista”. Essa tipologia tem a mesma lógica de análise do que
Lowi (1984) considera uma política do tipo distributiva. À luz da tipologia organizada por
Gormley (1986, p. 598), o PNAIC se enquadra como política do grupo denominado “sala
operatória”, considerando o fato de ser um programa tecnicamente muito denso e com
apelo popular. Essa classificação proposta por Gormley leva em consideração o nível de
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saliência e complexidade do planejamento, implementação e avaliação da política pública
em proposição. Por fim, segundo a tipologia de Gustafsson (1983), cujo critério de
distinção toma como parâmetro o conhecimento e a intenção do propositor da política
(policymaker), entende-se que o Pacto está dentre as denominadas “pseudopolíticas”,
pelo interesse de seus propositores de vê-la funcionando, mas sem o conhecimento
técnico suficiente para estruturá-la adequadamente.
A tentativa de classificar o PNAIC segundo as tipologias explicitadas
intencionou facilitar sua análise e, com isso, identificar que o programa concentra seus
benefícios em um grupo de atores – não atende a todos os níveis da educação, mas
apenas os atores envolvidos nos primeiros três anos do Ensino Fundamental – e tem
seus custos difusos. É uma ação política de forte apelo popular, mas demanda um
grande conhecimento técnico porque envolve concepções e procedimentos sobre ensino,
aprendizagem, leitura e escrita, e sobre formação de professores. Além disso, exige
conhecimentos estratégicos e logísticos para o gerenciamento de pessoas e verbas.
Os estudos sobre os ciclos de políticas públicas permite o entendimento
acerca da existência de uma complexidade muito grande na análise de todas as etapas
desse ciclo, o que determinou a opção, nos limites deste texto, por colocar o foco da
investigação nos níveis da implementação, que, segundo Secchi (2013, p. 55), é a “etapa
que sucede à tomada de decisão”. Tendo como base o pensamento de O’Toole Jr.
(2003), foi possível, ainda, entender a fase de implementação como aquela em que
propostas, procedimentos e processos sociais são convertidos de intenção a ação. A
maior atenção a essa fase considera o alerta de Secchi (2013, p.9), quando diz:
[...] a cada nível da política pública, há um entendimento diferente dosproblemas e das soluções, há uma configuração institucional diferente,existem atores e interesses diferentes (Giuliani, 2005). O analista de políticapública é que escolhe o nível de análise. A análise de política pública é umatarefa complexa [...].
Sob tal perspectiva, para que melhor se dimensione o Pacto dentro dos
contextos de políticas públicas e entender como o programa vem se efetivando, deve-se
pesquisá-lo e analisá-lo a partir do ciclo de políticas públicas, tomando como exemplo o
modelo proposto por Secchi (2010), segundo o qual a análise dos dados leva à
identificação do problema e posterior formação da agenda e, principalmente, a breve
análise a partir dos contextos, dos materiais e discursos que acompanham sua
implementação. Como já mencionado, a identificação do problema na perspectiva
nacional tem como referência o alto índice de crianças que terminam o primeiro ciclo do
ensino fundamental com defasagens na alfabetização. É importante lembrar que tal
preocupação não é fato novo. De acordo com estudos de Mortatti (2010), a partir da
década de 1930, a educação de modo geral e a alfabetização de modo particular
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passaram a ser compreendidas enquanto áreas importantes para a promoção e
efetivação do desenvolvimento nacional.
De lá para cá, saber ler e escrever se tornou o principal índice de medida etestagem da eficiência da escola pública, laica e gratuita. E com diferentesfinalidades, de diferentes formas e com diferentes conteúdos, visando aenfrentar as dificuldades das crianças em aprender a ler e escrever, paraassim responder mais adequadamente a certas urgências políticas, sociaise educacionais do país, diferentes sujeitos foram atribuindo diferentessentidos a esse ensino inicial da leitura e escrita. (MORTATI, 2010, p. 330)
O fato é que a iniciativa da criação do Pacto foi impulsionada mais
recentemente por dados levantados pelo Censo de 2010 (IBGE, 2010): uma taxa de
analfabetismo aos 8 anos de idade no Brasil de 15,2% – por região, tendo-se: Norte
27,3%; Nordeste 25,4%; Sudeste 7,8%; Sul 5,6%; Centro-Oeste 9,0%. Já a Prova ABC –
Avaliação Brasileira do Final do Ciclo de Alfabetização, aplicada no início de 2011 a fim
de verificar a qualidade da alfabetização de estudantes egressos do 3º ano, mostrou que
somente 59,3% atingiram os conhecimentos esperados em escrita, 56,1% em leitura e
42,8% em matemática (BRASIL/INEP, 2011). Evidenciam-se, ainda, variações entre as
diferentes regiões do país e redes de ensino (pública e privada).
Os dados verificados pelo Censo (IBGE, 2010) mostraram realidades bem
destoantes entre as regiões – o menor índice de analfabetismo está no Paraná, 4,9%, e o
maior em Alagoas, 35,0%. Mais do que percursos diferentes no tocante a programas de
formação continuada de professores, os índices permitem que questionamentos sejam
suscitados sobre a pretensão, ou tentativa, do PNAIC de “uniformizar” um modelo de
formação em âmbito nacional. Além de desconsiderar as contribuições que os estados
com melhores indicadores de alfabetismo poderiam agregar aos com menores taxas,
houve registro de concomitância de programas de formação de professores
desenvolvidos pelos governos federal e estadual observada no Estado de São Paulo,
situação que, “longe de evidenciar parceria, estabelece concorrência entre os programas,
dispersando seus potenciais beneficiados, além de representar desperdício de recursos
materiais, humanos e financeiros” (CARDOSO et al., 2014, p.13).
Tem-se a clareza de que a análise dos reais efeitos da implementação do
PNAIC só será possível a partir de um olhar que considere sua articulação com o
contexto maior da educação nacional e sob a perspectiva das políticas públicas que
demandam a sua implementação. Sendo assim, a análise dos dados foi sendo realizada
considerando-se esse contexto mais amplo e a complexidade do objeto de pesquisa.
4. O PNAIC: origem e contexto
De acordo com o Caderno de Apresentação do PNAIC 2015, a
implementação do Programa, bem como sua continuidade, se justificam porque, ainda
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que os dados nacionais apontem decréscimo na taxa de analfabetismo funcional, esse
índice ainda é expressivo – 27,8 milhões entre pessoas de 15 anos ou mais e que
possuem menos de 4 anos de estudos completos, segundo dados do IBGE, em 2012 – o
que teria despertado a atenção para a necessidade de implementação de políticas
públicas para a educação. Ainda de acordo com o documento, os dados “justificam a
preocupação do MEC com a baixa consistência entre a escolaridade e desempenho dos
alunos, bem como com a necessidade de repensar a escola devido à grande
porcentagem de evasão no decorrer da vida escolar”, oportunizando propostas para lidar
com a precariedade qualitativa dos sistemas de ensino (BRASIL, 2015, p. 13).
Tendo essa justificativa e com base no modelo adotado no Ceará com o
Programa de Alfabetização na Idade Certa (PAIC), executado pela Secretaria de
Educação do Estado do Ceará (SEDUC-CE) desde 2007, o MEC propõe o PNAIC. É
preciso esclarecer que o programa desenvolvido no estado do Ceará serviu como
referência porque a sua taxa de analfabetismo é de 18,7%, a menor dentre os da Região
Nordeste. No entanto, cabe lembrar que, se comparada com estados de outras regiões,
como Minas Gerais, 6,7%, e Paraná, 4,9%, há significativas diferenças. Ainda assim, o
MEC resolveu se basear na iniciativa aparentemente exitosa do Pacto cearense, que,
segundo dados divulgados pelo Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica
do Ceará-Alfabetização (SPAECE-Alfa), apresentou, entre 2007 e 2010, dois resultados
significativos: o percentual de crianças não alfabetizadas passou de 33% para 7%; e o
percentual de crianças agrupadas no estágio recomendado de alfabetização subiu de
30% para 55%. No PAIC, todavia, o processo de alfabetização deveria estar consolidado
no 2º ano do Ensino Fundamental e não no 3º como no Pacto Nacional, o que, segundo
Gomes (2012), demonstra certa coerência interna da política pública cearense, visto que
o objetivo central do programa é a alfabetização efetiva da criança e não a avaliação do
poder público. É compreensível, nesse caso, que a avaliação ocorra no segundo ano e o
último do ciclo de alfabetização dedique-se a ajustes necessários à conclusão satisfatória
do processo, a partir dos dados coletados pela avaliação externa.
Apesar dos questionamentos aos modelos propostos para sua
implementação, estudos já realizados (SANTOS, 2014) reconhecem o mérito do PNAIC
em propiciar, pela primeira vez no campo educacional, a integração federativa, ao propor
a participação articulada do governo federal e dos governos estaduais e municipais, onde
há predominância de mecanismos de cooperação entre os entes federados. Como
destaca Santos et. al (2014), iniciativa semelhante no Brasil só havia sido realizada no
campo da saúde, na implementação do SUS (Sistema Único de Saúde), no início da
década de 1990. Considerando-se, ainda, o fato de um maior número de Instituições de
Ensino Superior – IES – ter sido instado a colaborar ativamente, definindo conteúdo e
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metodologia de formação, elaborando materiais de apoio, realizando ações de formação
“em rede” e, ainda, envolvendo-se no processo de melhoria das redes públicas de
ensino, esse programa deveria representar um diferencial na alfabetização brasileira.
Embora pesquisas de Cardoso et al. (2014) já tenham apontado falhas na
falta de acompanhamento efetivo dos formadores das IES junto aos Orientadores de
Estudo, conforme previa a resolução FNDE 04/2013 (BRASIL/FNDE, 2013), devido a
uma série de problemas operacionais, logísticos e dificuldades de natureza orçamentária,
dificultando também, assim, a tematização, análise e discussão dos professores
alfabetizadores (CARDOSO et al., 2014, p.13), entende-se que este estudo investigativo
pode elucidar aspectos dessa política que ainda não estão devidamente explicitados.
Ao se optar pela realização do estudo sobre essa ação política na área
educacional, já se previam dificuldades porque, assim como Arretche (2001, p. 45),
entende-se que o processo de implementação modifica as políticas e muitas vezes
distanciam os objetivos e o desenho do programa, tal como foi idealizado, dos resultados
alcançados, principalmente quando estão envolvidos diversos atores, como é o caso do
PNAIC. A respeito desses movimentos contraditórios e dos campos de força existentes
dentro de uma política pública, Draibe (2001, p.26) faz a seguinte afirmação:
As políticas ou programas têm vida. Nascem, crescem, transformaram-se,reformam-se. Eventualmente estagnam-se, às vezes morrem. Percorrem,então, um ciclo vital. Um processo de desenvolvimento, de maturação e,alguns deles de envelhecimento ou decrepitude. É este ciclo (ou alguns deseus momentos) que constitui o objeto das avaliações de processo. Aspolíticas e os programas também têm, em contrapartida, carne e osso,melhor, têm corpo e alma. São decididas e elaboradas por pessoas, sãodirigidas por pessoas ou ao seu habitat, são gerenciadas e implementadaspor pessoas e, quando isso ocorre são avaliadas também por pessoas. Ora,as pessoas ou o grupo de pessoas que animam as políticas, fazem-nosegundo seus valores, seus interesses, suas opções, suas perspectivas,que não são consensuais, nem muito menos unânimes, como sabemos. Aocontrário, o campo onde florescem as políticas e programas, pode serpensado como um campo de força, de embates, de conflitos, que sesucedem e se ‘resolvem’ ao longo do tempo.
A seleção de procedimentos de coleta de dados considerou que o PNAIC
atinge todos os estados, com adesão informada pelo MEC de mais de 90% dos 5570
municípios brasileiros. Dada sua amplitude, optou-se por direcionar a análise de forma
especial ao programa de formação desenvolvido em um município paulista, no caso,
Birigui. Tal escolha motivou-se pelo fato de que essa cidade tem obtido de forma
sistemática índices positivos nas avaliações externas em larga escala, mesmo antes da
implementação do PNAIC. De acordo com os dados oficiais divulgados (SPCIDADES,
2008), em 2008 Birigui já obtinha mais de 92% de alunos alfabetizados ao final do
segundo ano de escolaridade, daí o interesse em analisar os benefícios e a aceitação
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deste Programa de Formação de Alfabetizadores, que objetiva propiciar o que o
município já tem garantido com sucesso significativo.
5. O PNAIC no município
O cenário no município de Birigui não se diferencia em muito do contexto
nacional no tocante ao perfil dos profissionais que atuam na educação. Gatti e Nunes
(2009), ao traçarem o perfil dos profissionais formados para a atuação no ensino
fundamental, revelam que a maior parte dos licenciados em Pedagogia é egressa de
instituições privadas, cujos cursos apresentam grades curriculares fragmentadas, com
grande variabilidade de disciplinas, sem a necessária articulação curricular; são docentes
com formação inicial inconsistente, mais voltada a aspectos teóricos, contemplando muito
pouco as possibilidades de práticas educacionais fundamentadas nessas teorias.
Embora se reconheça a fragilidade da formação inicial dos professores,
não se defende aqui uma formação continuada voltada ao preenchimento de lacunas que
porventura se percebam na atuação desses docentes. Vislumbra-se a possibilidade da
formação continuada como etapa de um único processo – a formação docente –,
conforme estudos que mostram o quão necessário se faz “avançar e criar um novo
paradigma, no qual a formação do educador se efetive num continuum, processo em que
a formação inicial, a formação contínua, a prática profissional, os saberes da profissão e
a carreira profissional sejam elementos articulados entre si” (FUSARI, 1998, p. 538-539).
A concepção de formação continuada assumida por Birigui, em especial
através da Lei Complementar nº 32, de 17 de setembro de 2010, que dispõe sobre o
estatuto e plano de carreira do magistério público e dos profissionais de apoio
educacional, e revelada em suas propostas formativas, ao colocar o próprio docente
como protagonista desse processo, inclui, também, em suas ações a formação de
profissionais formadores – coordenadores pedagógicos, diretores e vice-diretores de
escola, supervisores de ensino, integrantes da Oficina Pedagógica. Focar o espaço
escolar como lugar de aprendizagens, principalmente para os profissionais que nela
atuam, não se revela um fator a ser descortinado pela implantação do PNAIC, mas uma
certeza que se reafirma com as concepções que o programa traz.
É, pois, no contexto da singularidade de projetos formativos e sob a égide
do exercício da autonomia na condução desses projetos que a Secretaria Municipal de
Educação de Birigui, na incumbência de elaborar, coordenar e desenvolver práticas
formativas de acordo com necessidades da rede, entendeu, desde a implantação do
PNAIC, a imprescindibilidade de incluir nas ações do Pacto os gestores da educação
municipal – diretores, vice-diretores e coordenadores pedagógicos de escolas, diretores e
orientadores pedagógicos de centro de educação infantil, supervisores de ensino e
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coordenadores de área da oficina pedagógica – que participaram dos encontros de
formação.
Mais do que oferecer subsídios aos orientadores de estudos do município,
a Secretaria de Educação possibilitou que toda a comunidade pedagógica
compreendesse e vivenciasse o PNAIC na rede. Entender a decisão leva a refletir sobre
o estabelecimento de comunidades de aprendizagem. Uma escola “comprometida
formalmente” com a alfabetização de todas as crianças até os 8 anos de idade exige o
envolvimento de todos os que nela atuam. Responsabilizar o professor isoladamente é
desconsiderar o papel fundamental na formação desse profissional exercido pelos
gestores.
Não se tratou mudar a essência do PNAIC, tampouco o PNAIC
representou a mudança do que Birigui já vinha construindo em termos de formação
continuada. Guaraldo (2015, p.5) destaca que as ações em Birigui permitem verificar “a
solidificação de uma cultura de aprendizagem que diz respeito ao desejo genuíno dos
membros da profissão em melhorar sua prática pelo desenvolvimento de hábitos de
aprendizagem experimentados dia após dia”. Acrescenta ser esse contexto aprendente
que “tem colocado as escolas de Birigui dentre as cidades com os melhores resultados
no país”. Para a pesquisadora, esse contexto impulsiona um movimento revelador de
diversas e simultâneas ações, dentre as quais se destacam: conhecimento docente do
que ensinam e como ensinam; comprometimento docente com a aprendizagem de
sucesso; reflexão docente de maneira sistemática sobre sua prática e aprendizado com a
experiência. Relacionam-se, assim, os princípios adotados pelo município e os princípios
gerais de formação continuada assumidos pelo PNAIC: a prática da reflexidade; a
mobilização dos saberes docentes; a constituição da identidade profissional; a
socialização; o engajamento; a colaboração. O diferencial de Birigui parece ser o de
incluir os gestores como também aprendizes, de profissionais que se formam enquanto
formam seus docentes, e que aprendem com eles e se edificam em concomitância,
evidenciando que “conceber um projeto educativo local é impor certo grau de autonomia,
é revelar singularidades, é desvelar a identidade da escola e seu compromisso
pedagógico sem depender da tutela dos órgãos centrais” (DOMINGUES, 2014, p.79).
De acordo com dados disponibilizados pela Secretaria Municipal de
Educação de Birigui, em 2013, o município recebeu 129 inscrições de professores
alfabetizadores para o PNAIC. Desses, 112 foram certificados pela UNESP por terem
concluído todas as atividades do curso. Já do grupo de gestores e professores auxiliares,
a quem a SME incluiu na formação, dos 56 inscritos, 32 cumpriram todas as etapas do
programa. Sendo assim, somaram-se 185 inscritos e 144 concluintes: 78% do público
que se interessou pelo Pacto o fez em sua totalidade e cumpriu com suas exigências.
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Para que melhor se dimensionem os efeitos de programas de formação de
professores – incluindo o PNAIC – em Birigui, buscaram-se informações nos sítios oficiais
sobre os resultados alcançados por seus alunos no IDEB dos últimos anos, constatando-
se que, em 2007, o IDEB registrado foi de 5,5; em 2009, 6,3; em 2011, também 6,3; em
2013, 7,3, superando a meta estabelecida para 2021, que é de 7,2. Evidencia-se a
constante melhoria nos índices de desempenho do município nas avaliações do IDEB,
com avanço considerável no período em que foi oferecida a formação do PNAIC.
6. Conclusões
Percebe-se que, para induzir mudanças consistentes e duradouras no
setor educacional, não bastam bons diagnósticos e mobilização social em torno de um
problema. Torna-se indispensável que o tema seja alçado, de fato, à condição de
prioridade na agenda política. Procurou-se analisar brevemente tal relevância tendo por
base dados da implementação do PNAIC. Com essa finalidade, ainda, buscou-se
classificar o PNAIC a partir de algumas tipologias de análise de políticas públicas,
permitindo identificar que esse programa tem seus benefícios concentrados em um grupo
de atores e tem seus custos difusos. É uma ação política de forte apelo popular, mas
demanda grande conhecimento técnico porque envolve concepções e procedimentos
sobre ensino, aprendizagem, leitura e escrita, e sobre formação de professores. Além
disso, exige conhecimentos estratégicos e logísticos para o gerenciamento de pessoas e
verbas. Tudo isso, agrega complexidade à implementação dessa política educacional.
Fica evidente que os gestores da SME de Birigui redesenharam o PNAIC a
partir de uma cultura formativa já consolidada no município e, para isso, incluíram atores
cuja participação não estava prevista pelos propositores da política educacional,
demonstrando-se, assim, que realmente “as políticas ou programas têm vida. Nascem,
crescem, transformaram-se, reformam-se”.
7. Referências
ARRETCHE, M. Uma contribuição para fazermos avaliações menos ingênuas. In:BARREIRA, M. C. R. N.; CARVALHO, M. C. B. de (orgs). Tendências e perspectivas naavaliação de políticas públicas e programas sociais. São Paulo: IEE; São Paulo: PUC/SP,2001.
BIRIGUI. Lei Complementar nº 32/2010, de 17 de setembro de 2010. Dispõe sobre oEstatuto e Plano de Carreira do magistério público e dos profissionais de apoioeducacional do município de Birigui e dá outras providências.
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regime de colaboração com municípios, Distrito Federal e Estados. Diário Oficial daUnião, Brasília, 24 abr. 2007.
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