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Page 1: Página 1 de 74 - Início | ISPSN · 2019. 5. 3. · Página 5 de 74 que traz um começo, que “cria um começo” e que reinventa um começo a partir da dor e da cura. A cidade

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Nordm13 ndash JULHO 2018|ISSN 2304-0688

investigacaosolnascenteispsnorg

inaciovalentim82ispsnorg

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fatimasousaispsnorg

CONSELHO DE REDACCcedilAtildeO

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Fernando Rampeacuterez (UCM) Espanha

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Nuno Melin (UL CFCUL) Portugal

Pamela Colombo (CSIC) Espanha

Raimundo Tavares (Advogado) ndash Cabo Verde

Vicente Muntildeoz-Reja (UAM) Espanha

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EDITORIAL

AS LEIS DA PERIFERIA E A CIDADE FILOSOacuteFICA

Nos uacuteltimos tempos temos vivido um surto gritante de inseguranccedila na cidade A preocupaccedilatildeo

com a questatildeo da seguranccedila ultrapassou aquela de encontrar um emprego aliaacutes razatildeo mais

do que suficiente porque soacute os vivos podem trabalhar soacute aqueles que estatildeo em boas

condiccedilotildees fiacutesicas podem trabalhar A periferia criou novas leis e eacute na base destas leis que todo

o mundo vive a lei do medo a lei do estar-sem-estar enfim a lei do aprisionamento na

liberdade Parece que a periferia tomou conta da cidade porque provavelmente poucas

vezes ela foi escutada sem o entardecer do verniz O infractor eacute visto como perifeacuterico e como

delinquente e esquecemos que a proacutepria cidade pode ser perifeacuterica a partir do momento que

natildeo responde agraves expectativas da cidade Nenhum cidadatildeo espera do poliacutetico (salvo aquele

que eacute tremendamente ingeacutenuo) a honestidade a integridade ou honradez porque tambeacutem

ele sabe que natildeo tem todas estas qualidades aliaacutes natildeo tem e parece que natildeo lhes

preocupam tanto desde que os seus problemas sejam resolvidos E eacute isso que ele espera do

poliacutetico Espera que este resolva os seus problemas e a inseguranccedila eacute um destes problemas

que ele espera que o poliacutetico resolva A natildeo resoluccedilatildeo do problema tambeacutem conduz agrave cidade

na linguagem perifeacuterica naquilo que natildeo eacute o centro natildeo estaacute no centro e natildeo faz o centro

natildeo eacute tatildeo importante quanto o centro Nunca nos perguntamos se os verdadeiros

delinquentes satildeo aquelas pessoas que violam as leis da cidade de modo expliacutecito porque

invadem as nossas casas porque apropriam-se dos nossos bens dentro e fora de casa

Provavelmente natildeo sejam os verdadeiros delinquentes Porque os piores delinquentes podem

ser aqueles que natildeo tecircm a consciecircncia traacutegica natildeo tecircm consciecircncia infeliz como diz Spinoza

Dormem mas dormem porque natildeo pensam nos outros porque natildeo se revecircem nos outros e

porque criaram uma legitimidade proacutepria para a sua forma de violecircncia e nisto se parecem

com os proponentes da violecircncia perifeacuterica De modo que soacute o genealogista pode salvar a

cidade das suas duas violecircncias a violecircncia daqueles que estatildeo estampados como violentos e

a violecircncia daqueles que dormem apesar de serem tremendamente violentos O genealogista

eacute o filoacutesofo diz o Nietzsche de Foucault e de Deleuze mas natildeo aquele filoacutesofo que aceita que

todo o mundo olhe para ele como aquele que reflecte nas coisas ou que medita nas coisas

como se as outras aacutereas do saber natildeo reflectissem natildeo meditassem O genealogista eacute aquele

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que traz um comeccedilo que ldquocria um comeccedilordquo e que reinventa um comeccedilo a partir da dor e da

cura A cidade deve ser filosoacutefica natildeo para fazer aquilo que jaacute foi feito aquilo que jaacute foi criado

O genealogista natildeo pode aceitar os conceitos que servem apenas para ordquo limpar e fazer

brilharrdquo numa falsa luminosidade O genealogista deve dar a cidade o entendimento do

entristecimento O genealogista enquanto educador natildeo traz apenas a reflexatildeo e a

contemplaccedilatildeo traz sobretudo para a cidade o entristecimento porque vem para dizer aos

outros aquilo que eles natildeo querem ouvir vem para dizer aquilo que mais ningueacutem diria Eacute por

isso que a resposta filosoacutefica deve ser dura contrariamente agraves outras aacutereas do saber porque eacute

uma resposta que consiste no entristecimento A filosofia como educaccedilatildeo encara um

entristecimento mas um entristecimento alegre porque conduz agrave libertaccedilatildeo Ela oferece-nos

a possibilidade de perguntarmo-nos o que somos o que fazemos e se a nossa resposta for

honesta connosco mesmo poderemos fazer um bom trabalho para a cidade O genealogista eacute

um incomodador soacute pode incomodar e soacute deve incomodar para a libertaccedilatildeo tem que

proporcionar aos outros um comportamento de Lisias de Fedro Ter vergonha do que se

pensa saber

Por uacuteltimo dizer que esta 13ordf ediccedilatildeo conteacutem alguns artigos publicados na revista OPINIAtildeO

FILOSOacuteFICA da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUCRS) traz as mais

variadas reflexotildees no acircmbito acadeacutemico-cientiacutefico

A este respeito o Professor Flaviano Kambalu reflecte sobre o conceito de pessoa a sua

complexidade e a sua relaccedilatildeo com a unidade africana Tenta encontrar os princiacutepios e os

fundamentos metafiacutesicos que podem sustentar a possibilidade da uniatildeo

O Dr Nlando Faustino reactualiza ao histoacuterico pensador das independecircncias (agrave sua maneira)

Frantz Fanon Atraveacutes da obra ldquoOs condenados da terrardquo de Fanon faz uma leitura

desconstrutivista da colonizaccedilatildeo vista como uma oportunidade para a civilizaccedilatildeo Recusa com

Fanon a ideia de que a ldquocolonizaccedilatildeo igual a civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo e

defende precisamente a ideia da despersonalizaccedilatildeo imanente do processo colonializador

Por sua vez Inaacutecio Valentim lanccedila a interrogaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo e o processo educativo

liberal em Aacutefrica Discute a ideia da possibilidade de educar e com quem ser educado

Os Doutores Abel da Silva e Irene Moiseacutes Inaacuteculo pensam a educaccedilatildeo desde a perspectiva natildeo

universitaacuteria a partir do cunho da lei Procuram compreender e destacar a negatividade de

uma intervenccedilatildeo excessiva dos elementos natildeo autorizados no processo educativo

Inaacutecio Valentim

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IacuteNDICE

EDITORIAL 4

ARTIGOS 7

FILOSOFIA

O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA 8

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU

HISTOacuteRIA

A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA A PARTIR DE FRANTZ FANON 20

NLANDU MATONDO FAUSTINO

PEDAGOGIA

laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO LIBERAL EM AacuteFRICA 44

INAacuteCIO VALENTIM

EDUCACcedilAtildeO

CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS 62

ABEL JOSEacute DA SILVA

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS

NORMAS DE PUBLICACcedilAtildeO 72

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FILOSOFIA O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU a

Resumo

A vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante A Aacutefrica eacute um complexo e heterogeacuteneo mosaico

de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees cujo fundamento metafiacutesico de origem

representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica O fundamento metafiacutesico de origem

eacute importante porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do

que o que os separa Nisto o diaacutelogo eacute necessaacuterio para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente

se vatildeo intensificando na actualidade O diaacutelogo conducente agrave unidade natildeo obriga mas se

move no respeito da liberdade da pessoa e da soberania de cada Estado Enfim trata-se de um

diaacutelogo sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Palavras-chave Pessoa humana Aacutefrica Fundamento Metafiacutesico Fundamento Metafiacutesico e

Diaacutelogo

Abstract

The vocation to unity is a natural feature of the human because it is essentially free relational

and dialoguing Africa is a complex and heterogeneous mosaic of peoples languages races

cultures ethnic groups and religions whose metaphysical foundation of origin represents an

indivisible unity in historical reality The metaphysical basis of origin is important because in

all fields everything that unites human beings is stronger than what divides them In this

dialogue is necessary to overcome the historical prejudices and disagreements the divisions

intolerances and fundamentalisms that unfortunately are intensifying at the present time The

a Doutor em Filosofia Religioso Saletino e Decano da Faculdade de Direito da Universidade Katiavala Bwila

Benguela ndash Angola

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dialog leading to the unit doesnrsquot oblige but moves in respect of freedom of the person and

of the sovereignty of each State At last it is a sincere dialog and fruitful that acknowledging

all the legitimate diversity promotes respect harmony and collaboration

Keywords The Human Person Africa Metaphysical foundation Metaphysical foundation

and Dialogue

Premissa

No actual contexto de crescente e incisiva globalizaccedilatildeo eacute difiacutecil subtrair-se ao dever ou agrave

necessidade de prestar conta de si mesmos Neste clima cultural tambeacutem a unidade africana eacute

chamada a justificar-se ou seja a justificar o seu direito de continuar a ser Agrave primeira vista

poderia parecer que a sua justificaccedilatildeo natildeo seja hoje um problema visto que eacute cada vez mais

difuso o uso do termo unidade e da expressatildeo uniatildeo africana Mas urge reflectir nesta unidade

agrave luz da filosofia para lhe compreender o seu verdadeiro significado

Aprendemos com Nicola Abbagnano que laquonada do que eacute humano eacute estranho agrave filosofia [hellip]

aliaacutes esta eacute o mesmo homem que se interroga a si mesmo e procura as razotildees e o fundamento

do seu serraquo1 Esta eacute a filosofia na sua adesatildeo agrave existecircncia humana e ao mesmo tempo na sua

amplitude em relaccedilatildeo aos problemas do homem Natildeo de um homem que vive no Uacuterano mas

do homem concreto que na sua vida experimenta acircnsias e insuficiecircncias alegrias e

esperanccedilas tristezas e anguacutestias2 Portanto todas as coisas satildeo susceptiacuteveis de reflexatildeo

filosoacutefica inclusive a proacutepria unidade africana exige filosofar

De facto filosofar eacute examinar a realidade e isso de um modo ou de outro todos fazemos

constantemente Ao se tentar resolver os problemas globais sociais ou pessoais eacute impossiacutevel

se abster da racionalidade Entretanto haacute uma gama de situaccedilotildees onde a razatildeo natildeo pode

avanccedilar por falta ou excesso de dados o que impossibilita decisotildees objectivas Entra em cena

entatildeo a parte subjectiva humana mais especificamente a Intuiccedilatildeo como meio de direccionar

nosso foco de entendimento e apontar caminhos a serem trilhados pela racionalidade

Soacute que actualmente a filosofia passa por uma perda de identidade Existe uma verdadeira

inflaccedilatildeo do termo filosofia e como toda a inflaccedilatildeo eacute sintoma de queda de valores de crise

difusa e profunda Hoje o termo filosofia indica muitas vezes coisas difiacuteceis proacuteprias do

hiperuracircnio e natildeo o homem que natildeo aceitando passivamente as informaccedilotildees fornecidas pela

experiecircncia imediata desenvolve uma postura de questionamento proacuteprio sobre a realidade

interroga-se a si mesmo e metodoloacutegica e ordenadamente procura as razotildees e o fundamento

1 N ABBAGNANO Storia della filosofia I UTET Torino 1963 p XVII

2 Cf CONCIacuteLIO VATICANO II Gaudium et Spes n 1

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do seu ser buscando como faziam os gregos um instrumento fundamental e o uacutenico

racionalmente possiacutevel para a soluccedilatildeo dos problemas da vida

A confusatildeo com relaccedilatildeo agrave filosofia e a desinformaccedilatildeo geral que permeia mesmo o meio

acadeacutemico chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimeacutericas no sentido de se

eliminar a Filosofia Entretanto ciecircncia alguma pode se ocupar da macro realidade O

empirismo natildeo pode ser aplicado agrave civilizaccedilatildeo humana agrave mente ao total Quem estabelece a

comunicaccedilatildeo entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia Cremos ser

este o quadro em que se deve inserir a reflexatildeo sobre a unidade africana que aqui fazemos

partindo da metafiacutesica do termo pessoa

Tal reflexatildeo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vatildeo

desafiando a unidade do continente africano Haacute uma verdade hoje admitida por quase todos

e ateacute pelos mais preconceituosos arqueoacutelogos de que a humanidade e a civilizaccedilatildeo

desenvolveram-se na noite dos tempos no berccedilo deste continente gigantesco chamado Aacutefrica3

Temos consciecircncia de que a Aacutefrica eacute um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas Embora esta imensidatildeo nos aconselhe a natildeo fazer

generalizaccedilotildees na avaliaccedilatildeo dos problemas natildeo nos impede de buscar e propor soluccedilotildees aos

problemas inerentes agrave falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito

de pessoa

1 Breve excursus histoacuterico-filosoacutefico do conceito de pessoa

11 A densidade semacircntico-etimoloacutegica do termo pessoa

A densidade semacircntica do termo pessoa formou-se no tempo graccedilas ao contributo cultural de

muitos filotildees de reflexatildeo O conceito de pessoa tem pois um percurso rico quanto complexo

De recordar que na antiguidade greco-romana natildeo se encontra bem claro o conceito de pessoa

Todavia seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias

Etimologicamente e segundo algumas pesquisas atentas os primeiros indiacutecios do termo

pessoa encontram-se no acircmbito da cultura etrusca De facto o termo phersu utilizado nos

ritos em honra de Phersepona e que significaria maacutescara4 passou a significar o indiviacuteduo

3 Cf Carlos SERRANO ndash Mauriacutecio WALDMAN Memoacuteria drsquoAacutefrica A temaacutetica africana em sala de aula

Cortez Editora Satildeo Paulo 20082 p 75 Cf Tambeacutem Luigi TRANFO Africa La transizione Tra sfruttamento e

indifferenza EMI Bologna 1995 p 269 Pedro F MIGUEL Aacutefrica Uma visatildeo global Viverein Roma 2013

p 11 4 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique in

laquoRevue des sciences religieusesraquo XXII (1948) 277-299 A MILANO Persona in teologia Dehoniane Napoli

1984 pp 16-71

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mascarado a personagem que o actor representa no drama ou seja o indiviacuteduo humano

moral e social5

Nesta senda do indiviacuteduo mascarado Edith Stein observa que visto que nas comeacutedias e nas

trageacutedias se representavam personagens famosos o nome pessoa foi imposto para significar

sujeitos que tinham um papel na sociedade por isso alguns definem a pessoa como laquouma

hipoacutestase marcada por uma qualificada conexatildeo com a sua dignidaderaquo 6

Natildeo encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Boeacutecio que liga pessoa ao

verbo personare aludindo agrave amplificaccedilatildeo da voz de quem fala por detraacutes da maacutescara Assim

pessoa eacute segundo Boeacutecio laquodecta est volvatur sonusraquo 7 Tambeacutem natildeo eacute correcto afirmar que

pessoa seja a contracccedilatildeo de per se una como quereria a proposta de Alano di Lilla8

12 O percurso evolutivo do conceito de pessoa

Com Ciacutecero e Seacuteneca a evoluccedilatildeo do conceito de pessoa deu passos importantes sem

contudo chegar agrave definiccedilatildeo hodierna

Do segundo seacuteculo em diante o conceito de pessoa entra no uso corrente na onda do esforccedilo

de clarificaccedilatildeo exigida pelas controveacutersias teoloacutegicas sobre o dogma trinitaacuterio Poreacutem foi

com Boeacutecio que o conceito de pessoa adquire o actual conteuacutedo teoacuterico E isto no contexto da

clarificaccedilatildeo conceitual sobre as questotildees teoreacuteticas que emergiam da doutrina sobre a

Trindade

Segundo Boeacutecio laquopersona est rationalis naturae individua substantiaraquo (pessoa eacute substacircncia

individual de natureza racional) 9 Boeacutecio elabora esta definiccedilatildeo servindo-se do patrimoacutenio

filosoacutefico grego e latino De facto ele sistematiza os conceitos latinos de persona natura e

substantia estabelecendo uma equivalecircncia com os vocaacutebulos gregos πρόσωπον ούσία

ύπόστασις que na oscilaccedilatildeo terminoloacutegica do tempo eram usados de maneira equiacutevoca e

confusa

Com Boeacutecio a natura toma definitivamente o lugar de ούσία entendida como essecircncia e

substantia passa a traduzir o grego ύπόστασις10

Satildeo poucos os filoacutesofos que no medievo natildeo

5 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique op

cit pp 298-299 6 Edith STEIN Essere finito e essere eterno Per una elevavazione al senso dellrsquoessere Cittagrave Nuova Roma

1988 p 380 7 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1344

8 Cf Enrico BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico in AAVV Persona e

personalismo Aspetti filosofici e teologici Fondazione Lanza Padova 1992 p 43 9 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1343

10 Cf Claudio MICAELLI ldquoNaturardquo e ldquoPersonardquo nel ldquoContra Eutychen et Nestoriumrdquo di Boezio Osservazioni

su alcuni problemi filosofici e linguistici in Luca OBERTELLO (a cura di) Atti del Congresso Internazionale di

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tinham encontrado a definiccedilatildeo de Boeacutecio satisfatoacuteria porque essa interpretava a realidade que

se tentava definir precisando-lhe o significado

Esta definiccedilatildeo pessoa eacute substacircncia individual de natureza racional que durante o medievo

faz cultura e caracteriza a tradiccedilatildeo teoloacutegica latina surge sob o impulso das disputas contra os

nestorianos os quais sustentavam que em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em

uniatildeo permanente e moral e contra os monofisistas que sustentavam a existecircncia em Cristo de

uma soacute natureza a divina11

Na definiccedilatildeo de Boeacutecio o termo pessoa tem um sentido mais especiacutefico e refere-se agrave estrutura

fundamental e metafiacutesica do indiviacuteduo ou seja agrave substacircncia individual dotada de uma

natureza racional Quer dizer nem todos os seres naturais satildeo pessoas mas apenas aqueles

substanciais

Por isso a pessoa eacute substacircncia individual Eacute individual porque tem caracteriacutesticas que a

distinguem dos outros indiviacuteduos da mesma espeacutecie caracteriacutesticas que natildeo satildeo definiacuteveis

nem comunicaacuteveis aos outros Eacute substacircncia porque eacute existente em si por si e em nenhum

outro Dizer substacircncia individual significa portanto dizer que a pessoa natildeo tem necessidade

para existir de aderir a um outro ser e conteacutem no seu quid alguma coisa de

incomunicabilidade que divide com nenhum outro12

A pessoa eacute igualmente de natureza racional O seu conhecer natildeo eacute impresso na mateacuteria nem eacute

limitado por essa Dizer natureza racional significa por isso que a pessoa natildeo soacute exerce as

actividades conexas agrave natureza mas tem a capacidade de desenvolvecirc-las capacidade possuiacuteda

por natureza ou seja com o nascimento13

A pessoa eacute pois o gau mais elevado de ser

substancial porque essa eacute consciente do seu ser substacircncia individual

Toda a pessoa eacute portanto antes de mais um indiviacuteduo Mas ao mesmo tempo muito mais que

indiviacuteduo porque natildeo eacute uma personagem mas uma substacircncia individual que possui em si

uma certa dignidade em razatildeo da sua racionalidade Por isso natildeo basta afirmar que a pessoa eacute

Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott 1980) Herder Roma 1981 p 336 11

Fruto destas disputas eacute a obra de Boeacutecio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium

cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestoacuterio De recordar poreacutem que desde

os primeiros seacuteculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importacircncia ndashcom Tertuliano os Padres

Capadoacutecios S Agostinho e S Joatildeo Damasceno ndash nos interrogativos teoreacuteticos que emergiam da Revelaccedilatildeo e nas

controveacutersias teoloacutegicas acerca do dogma trinitaacuterio Tais controveacutersias se concluiacuteram com a foacutermula das trecircs

pessoas ou hipoacutestases na uacutenica substacircncia ούσία ou natureza divina Os Padres da Igreja separando de maneira

definitiva o conceito de πρόσωπον da referencia agrave personagem

traacutegica ou coacutemica deram focirclego a um aprofundamento do

conceito de pessoa tambeacutem na reflexatildeo filosoacutefica (cf Gregorio DI NISSA La grande catechesi CIttagrave Nuova

Roma 1982 p 51 Gregorio NAZIANZENO I cinque discorsi teologici CIttagrave Nuova Roma 1986 p 175)

12 Cf San Tommaso DrsquoAQUINO Questiones disputatae De potentia q 9 a 2 ID Summa Theologiae I q

29 a 13

Cf E BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico op cit p 48

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algo de individual e nem mesmo que eacute uma substacircncia ou uma natureza para defini-la do

ponto de vista metafiacutesico

Visto que a individualidade eacute acidente isto eacute pertence agravequilo que existe como perfeiccedilatildeo e eacute

caracteriacutestica de um sujeito e enquanto a substacircncia e a natureza indicam o que eacute proacuteprio da

espeacutecie ocorre a substacircncia individual de uma natureza racional para que exista pessoa

Ocorre portanto que se refira a uma substacircncia individualizada de um ser racional para que

exista pessoa do ponto de vista metafiacutesico Somente um ser racional pode corresponder agrave

dignidade de pessoa porque pessoa eacute enfim um ser em si que natildeo pode ser substituiacutedo por

um outro e que eacute capaz de operaccedilotildees proacuteprias e racionais

Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da foacutermula de Boeacutecio Satildeo

Tomaacutes elabora a sua definiccedilatildeo de pessoa como laquosubsistens in rationali naturaraquo 14

Com a foacutermula subsistens in rationali natura Satildeo Tomaacutes evidencia natildeo soacute o aspecto comum ndash

pressuposto universalmente aceite da pessoa ndash assim como expresso pela substacircncia

individual da definiccedilatildeo de Boeacutecio mas evidencia sobretudo aquele individual isto eacute o

existente considerado na acepccedilatildeo mais proacutepria ou seja o seu ser uacutenico e irrepetiacutevel De facto

na definiccedilatildeo de Boeacutecio a substacircncia individual parece ser concebida como individualidade A

individualidade poreacutem eacute determinaccedilatildeo da coisa e natildeo ainda do quem eacute uma conotaccedilatildeo

natural da pessoa e natildeo da mesma pessoa

Satildeo Tomaacutes condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o

que de mais nobre e perfeito haacute no universo e por isso afirma laquopersona significat id quod est

perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturaraquo 15

Pessoa eacute a natureza racional que existe num indiviacuteduo concreto Por isso somente aquilo que

eacute subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa E eacute o subsistir de maneira

individual na natureza racional que confere a dignidade agrave pessoa ou seja laquoquia magnae

dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur

personaraquo 16

De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana natildeo eacute a abstracta razatildeo ndash como parece

indicar a natureza racional da definiccedilatildeo de Boeacutecio ndash mas a racionalidade possuiacuteda por um

subsistente ou seja de um ser concreto E este em virtude de um actus essendi proacuteprio que

confere actualidade agrave substacircncia e agraves suas determinaccedilotildees Tudo isto que a pessoa sabe quer e

faz brota do proacuteprio acto em virtude do qual eacute aquilo que eacute

14

Cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 29 a 3 c 15

Ibidem 16

Ibidem

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Da elaboraccedilatildeo de Satildeo Tomaacutes compreende-se essencialmente o caraacutecter racional da pessoa

racional enquanto capaz de ser consciente do proacuteprio ser17

A pessoa eacute todo o indiviacuteduo de

natureza racional livre atravessado por tradiccedilotildees e culturas responsaacutevel relacional

inteligente volitivo dialogante e por isso fundamento de unidade entre indiviacuteduos e povos

2 Do conceito da pessoa agrave construccedilatildeo da unidade africana

Antes da conquista das independecircncias os colonos procuravam inflamar as diferenccedilas

fechando as coloacutenias em si mesmas num clima de reserva ciumenta de distacircncia e quase de

desconfianccedila Com as independecircncias os encontros entre paiacuteses antigamente colonizados se

multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaboraccedilatildeo E com a criaccedilatildeo da

Organizaccedilatildeo da Unidade Africana (OUA) que veio desempenhar o papel extremamente

precioso de lugar de encontros de oacutergatildeo de diaacutelogo e de troca de experiecircncias entre Chefes de

Estado e de Governo africanos o esforccedilo para a unidade se exprimiu de modo mais visiacutevel

Contudo a vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante E enquanto essencialmente relacionais e

dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e

que os distinguem das outras espeacutecies de seres Todos os homens tecircm as mesmas tendecircncias e

exigecircncias fundamentais quanto ao aneacutelito da unidade Todo o homem eacute chamado agrave comunhatildeo

e estaacute aberto agrave comunicaccedilatildeo e ao diaacutelogo

O homem eacute capaz pois de intercacircmbio de dar-se aos outros e deles receber porque a sua

natureza o abre agrave comunhatildeo agrave comunicaccedilatildeo e agrave unidade A sua natureza relacional e

dialogante natildeo eacute apenas uma necessidade mas eacute sobretudo um dom que o ambiente que o

impede de continuar fechado e isolado no egoiacutesmo e aberto aos conflitos De facto o homem

eacute aquilo que eacute pela sua inconfundiacutevel individualidade mas tambeacutem pelo seu ser aberto ao

outro e agraves realidades extriacutensecas por causa da sua sociabilidade A sociabilidade eacute pois uma

expressatildeo da sua humanidade e a unidade uma sua actuaccedilatildeo

Por isso a unidade africana pressupotildee a uniatildeo consciente entre africanos e o comum e

orgacircnico esforccedilo para conseguir o bem humano integral A unidade africana na base da

descoberta da comum humanidade articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para

com todos e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros

17

Muitas vezes o termo racional eacute confuso com o termo intelectual Na verdade intelecto e razatildeo diferem O

intelectual eacute um conhecimento simples e imediato enquanto o racional passa de um conhecimento simples para

um mais complexo (cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 59 a 1)

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povos do continente para alcanccedilar o bem comum18

Enfim a unidade encontra a sua raiz na essecircncia metafiacutesica da pessoa humana e exprime por

conseguinte a estrutura ontoloacutegica dos africanos e diz respeito agrave proacutepria possibilidade da sua

realizaccedilatildeo Por isso as divisotildees e os conflitos lupescos natildeo fazem parte da normalidade

africana

Portanto apesar de Aacutefrica ser um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas o continente africano explica-se como unidade na

diversidade E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos eacute garantida

metafisicamente pela origem pelo facto mesmo de sermos africanos ndash do Cabo ao Cairo de

Dar es-Salaam a Dakar ndash mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas

O fundamento metafiacutesico de origem representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica

uma forccedila inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as

diversidades presentes nos Estados africanos a incomunicabilidade geograacutefica a hipocrisia

as tensotildees e os desejos separatistas e conduzir a um compromisso claro entre os africanos

respeitando as suas diversidades e os seus interesses reciacuteprocos empenhando num projecto

comum para uma Aacutefrica mais humana e mais social em que reinem sempre o respeito muacutetuo

o reconhecimento e a protecccedilatildeo dos direitos humanos fundamentais e se faccedila valer o lado

melhor dos africanos os valores basilares da paz da justiccedila da liberdade da toleracircncia da

participaccedilatildeo e da solidariedade Este fundamento metafiacutesico de origem eacute importante

porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do que o que os

separa

Contudo a unidade africana deve ser construiacuteda e aprofundada de forma dinacircmica e

incessante porque os pressupostos da uniatildeo representados pelos factores geograacuteficos pela

multiplicidade das tradiccedilotildees regionais nacionais culturais e religiosas pelos interesses

econoacutemicos trocas econoacutemicas paciacuteficas e seguras pela heranccedila e tradiccedilotildees socioculturais

africanas mais autecircnticas em si natildeo bastam para criar a uniatildeo poliacutetica Eacute necessaacuterio voltarmos

agrave metafiacutesica da unidade e reelaborar juntos a histoacuteria da Aacutefrica que aleacutem das muito boas

experiecircncias de unidade eacute ainda caracterizada nalguns casos por desentendimentos lutas

fratricidas entre etnias e ateacute por conflitos beacutelicos

Com razatildeo Kwame Nkrumah apelava na sua obra A Aacutefrica deve unir-se agrave unidade natildeo

tanto para indicar a necessidade ou condiccedilatildeo de estar unidos mas sobretudo o acto de se unir

18

Cf L F KAMBALU A democracia personalista Os fundamentos onto-antropoloacutegicos da poliacutetica agrave luz de

Pietro Pavan Paulinas Lisboa 2012 pp 51-64

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porque os pressupostos geograacuteficos e econoacutemicos por si soacute natildeo bastam para criar a uniatildeo

Ocorrem instituiccedilotildees vinculativas bem como vontade e consciecircncia de pertenccedila a um mesmo

continente chamado Aacutefrica A consciecircncia deve preceder agrave formaccedilatildeo poliacutetica da unidade

africana que natildeo se poderaacute alcanccedilar de forma duradoira sem valores comuns Outrossim

ocorre recordar que a unidade eacute em si um bem somente quando eacute ordenada quando responde

agrave razatildeo objectiva da verdade da justiccedila e do bem O mesmo eacute dizer que a unidade eacute um bem

que vale tanto quanto respeita o que haacute de valor nas partes que a compotildeem

A unidade perde valor quando se realiza de modo maciccedilo esmagador absoluto destruidor e

totalitaacuterio abolindo o espaccedilo que permite o diaacutelogo destruindo desta forma a esfera em que os

homens agem tomam decisotildees comuns e operam colaborando Por isso sem liberdade nem

diaacutelogo a unidade africana seria impossiacutevel porque a Aacutefrica natildeo seria mais o espaccedilo onde cada

indiviacuteduo aos outros as proacuteprias capacidades em vista do bem comum segundo princiacutepios de

igualdade substancial Neste sentido a Aacutefrica seria um conjunto de indiviacuteduos e por

conseguinte um conjunto de Estados sem laccedilos entre si Cada um veria o outro natildeo como um

semelhante com quem eacute chamado a relacionar-se e tomar iniciativas mas um inimigo de

quem se defender

Enfim para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma

poliacutetica que envolva todas as pessoas e forccedilas a todos os niacuteveis na busca do bem comum ou

seja na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem agraves exigecircncias

intriacutensecas e imutaacuteveis da natureza humana Trata-se pois de condiccedilotildees econoacutemicas

juriacutedicas morais e religiosas que tornam possiacutevel e favorecem o conseguimento pleno e faacutecil

do desenvolvimento integral das pessoas

As exigecircncias histoacutericas e os significados de unidade satildeo sempre mutaacuteveis Mudam conforme

se entenda o que leva os homens a unirem-se a niacutevel ontoloacutegico e histoacuterico ou seja

consoante a efectiva existecircncia daquele princiacutepio originaacuterio em cada homem e povo ou

consoante o plano social poliacutetico religioso e cultural em que se actua a unidade De facto

natildeo poucas vezes os proacuteprios acontecimentos histoacutericos e as proacuteprias diferenccedilas exigem que

se redefinam os instrumentos poliacuteticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova

filosofia de relaccedilotildees entre povos e Estados que vatildeo aleacutem do que no passado natildeo foi possiacutevel

Tais diferenccedilas podem provir de uma profunda oposiccedilatildeo e de uma divergecircncia quanto ao fim

As diferenccedilas podem provir tambeacutem de uma dupla visatildeo de um mesmo objectivo Seja qual

for a origem das diferenccedilas a atitude sadia eacute compreender as realidades e promover o diaacutelogo

e ver como as proacuteprias diferenccedilas permitem situar melhor o objecto

Por isso eacute mister que nos diversos acircmbitos questotildees e temas sobre os quais incumbe o risco

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da divisatildeo os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma soacute voz cultivando e

empenhando-se intensa livre e conscientemente ao diaacutelogo

O diaacutelogo eacute fundamental para a vida poliacutetica sobretudo quando exerce a funccedilatildeo da busca da

verdade e do bem No caso da Aacutefrica o diaacutelogo torna-se uma exigecircncia insubstituiacutevel para

superar as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente se vatildeo intensificando

na actualidade O diaacutelogo eacute igualmente fundamental para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos culturais raciais sociais e religiosos e promover e concretizar a

unidade a justiccedila e a paz natildeo soacute por causa do pluralismo eacutetnico cultural racial social e

religioso do continente mas sobretudo por causa do seu pluralismo poliacutetico pois atraveacutes do

diaacutelogo cada indiviacuteduo ou povo enriquece o proacuteprio ponto de vista e converge para as noccedilotildees

de verdade e de bem humano e se empenha a potenciaacute-las corresponsavelmente para a

unidade

O diaacutelogo eacute tambeacutem essencial para a unidade poliacutetica social e econoacutemica e o

desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos pois tal como os povos tambeacutem

os Estados tecircm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si proacuteprios e no encontro

com os outros se realizarem plenamente Por isso o isolamento seria um impedimento

insuperaacutevel para a unidade e a realizaccedilatildeo do proacuteprio continente africano

Tal diaacutelogo deve basear-se em valores princiacutepios e normas aceites e deve ser assegurado por

um sistema constitucional e de direito pela promoccedilatildeo da justiccedila da paz e da liberdade para o

continente africano pela experiecircncia da verdade e pela busca constante de compreensatildeo dos

fundamentos que tecircm plasmado a Uniatildeo Africana

O diaacutelogo natildeo se processa sem dificuldades e eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes da discussatildeo e

argumentaccedilatildeo eacute reconheciacutevel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a

dignidade pessoa humana e eacute possiacutevel a diversos niacuteveis no plano da experiecircncia quotidiana

para as questotildees sociais comunitaacuterias familiares eacuteticas e ecoloacutegicas no plano do encontro

das culturas para o respeito e o melhor conhecimento reciacuteproco no plano desportivo para o

cultivo do sentimento de pertenccedila a um todo continental no plano poliacutetico para questotildees que

dizem respeito agrave seguranccedila econoacutemica cultural e juriacutedica no plano militar para questotildees que

dizem respeito agrave garantia da seguranccedila e integridade territorial bem como agrave erradicaccedilatildeo de

conflitos em Aacutefrica

Trata-se de um diaacutelogo gradual e sempre pronto a recomeccedilar Um diaacutelogo que natildeo obriga mas

se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado trata-se de um

diaacutelogo que natildeo eacute apenas instrumental nem nasce de taacutecticas ou de interesses mas um diaacutelogo

sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

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concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Enfim trata-se de uma actividade que apresenta motivaccedilotildees exigecircncias e dignidade proacutepria e

implica um muacutetuo esforccedilo de compreensatildeo por parte dos interlocutores que se compreendem

verdadeiramente quando descobrem aleacutem dos laccedilos que os unem e os integram uns aos outros

e dos valores a eles comuns as razotildees ideais em que cada um deles se inspira para realizaacute-los

Outrossim tal diaacutelogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente beneacuteficos como o

aumento da maturidade dos africanos ndash numa penetraccedilatildeo mais autecircntica da complexa

realidade do mundo hodierno em que a Aacutefrica se move ndash a resoluccedilatildeo dos problemas a

superaccedilatildeo dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de

todas as naccedilotildees bem como pela seguranccedila e bem-estar do continente africano

Tudo isso levanta muitos e difiacuteceis problemas de ordem econoacutemica social e poliacutetica Poreacutem

estaacute de facto que diante das diferenccedilas e dos antagonismos que o continente africano vive

actualmente soacute a consciecircncia da comum humanidade e o diaacutelogo franco luacutecido e proveitoso

pode permitir construir um caminho de toleracircncia e aceitaccedilatildeo muacutetuas para a realizaccedilatildeo de uma

convivecircncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da

pessoa humana da mobilidade interna da integraccedilatildeo soacutecio-econoacutemica do continente e do

florescimento de um mercado interno Isto faraacute tambeacutem com que os africanos natildeo sejam

meros fornecedores de mateacuterias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos

estrangeiros mas produtores e consumidores de produtos do seu proacuteprio continente

Um diaacutelogo natildeo inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade mas um diaacutelogo

franco na base da consciecircncia de pessoas humanas e do respeito reciacuteproco De facto sem

diaacutelogo franco natildeo haacute progresso porquanto o progresso eacute liberdade e somente a verdade que

pode exprimir-se nos torna livres

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HISTOacuteRIA A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO

SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA

A PARTIR DE FRANTZ FANON

NLANDU MATONDO FAUSTINO a

Resumo

O presente trabalho procurou desconstruir a partir das teses de Frantz Fanon sobretudo

aquelas formuladas nos ldquoCondenados da Terrardquo a ideia de uma suposta missatildeo civilizadora

subjacente na intenccedilatildeo colonizadora consubstanciada na equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual a

civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo Partindo de uma indagaccedilatildeo da validade criticaacutevel

da equaccedilatildeo em epiacutegrafe cruzou os factos agraves doutrinas que versam sobre o fenoacutemeno da

colonizaccedilatildeo de Aacutefrica e chegou a depreender com uma certa objectividade de que a

colonizaccedilatildeo em Aacutefrica tal ficou visto por Fanon foi mais um movimento de

despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeo dos africanos em geral e dos negros em particular do que

um projecto de humanizaccedilatildeo e de emancipaccedilatildeo dos indiacutegenas de Aacutefrica negra Ficou portanto

evidente ao longo deste trabalho de que a colonizaccedilatildeo foi uma violecircncia que extraiu a sua

originalidade na substantivaccedilatildeo do colonizado Uma violecircncia que natildeo soacute presidiu ao arranjo

do mundo colonial como tambeacutem ritmou e alimentou a destruiccedilatildeo antropoloacutegica e ontoloacutegica

do negro-africano incluindo todas as suas formas sociais arrasou completamente os seus

sistemas de referecircncias econoacutemicas os seus modos ldquoessendi et operandirdquo e decretou a crise

soacutecio-cultural dos povos negros de Aacutefrica

Palavras-chaves colonizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo violecircncia despersonalizaccedilatildeo descolonizaccedilatildeo

emancipaccedilatildeo

Abstract

The present study sought to deconstruct from the theses of Frantz Fanon especially those

formulated in The Wretched of the Earthrdquo the idea of a supposed civilizing mission

underlying the colonizing intention embodied in the equation colonization equal to

civilization and paganism equal to savageryrdquo Crossed the facts to the doctrines that focus on

a Doutorando em Filosofia na Universidade de Eacutevora Mestre em Ciecircncias da Educaccedilatildeo pela mesma

Universidade Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catoacutelica de

Angola

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the phenomenon of colonisation of Africa this was seen by Fanon was more a movement of

depersonalization of Africans in general and the negroes in particular than a draft of

humanization and emancipation of the peoples of black Africa Therefore became evident

throughout this work that the colonization was a violence that drew its originality of the

colonized

A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world as well as

marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African including all

its social forms wiped out completely their systems of economic references their modes

essendi et operandi and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa

Key words colonization civilization violence depersonalization decolonisation

emancipation

Introduccedilatildeo

A reflexatildeo em torno dos desafios da descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica continua actual e actuante em

qualquer discurso intelectual ou poliacutetico sobre o estado da naccedilatildeo de muitos Estados africanos

passados que satildeo aproximadamente seis deacutecadas desde que muitos deles se tornaram

independentes Esta actualidade pode todavia natildeo parecer evidente quando o enfoque do

discurso for a colonizaccedilatildeo De facto pode parecer anacroacutenico e mesmo sintomaacutetico falar da

colonizaccedilatildeo para tentar justificar a qualquer preccedilo o subdesenvolvimento e a instabilidade

sociopoliacutetica na actualidade de muitos Estados africanos independentes Bom ou malgrado

essa sensaccedilatildeo de anacronismo que sugere uma espeacutecie de eacutepokeacute em torno do fenoacutemeno

colonial perde a sua legitimidade na medida em que a pertinecircncia do discurso sobre a

descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica torna ldquoipsis verbirdquo procedente o discurso sobre a colonizaccedilatildeo Ou

seja toda a fala em torno da descolonizaccedilatildeo sugere de uma ou de outra forma uma incursatildeo

sobre a colonizaccedilatildeo Vamos ao longo deste trabalho procurar descortinar o conceito de

colonizaccedilatildeo na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do

trampolim que pode sugerir agrave nossa cogitaccedilatildeo sobre a descolonizaccedilatildeo Para o efeito

propomos a seguinte estrutura 1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a

partir da analiacutetica de Fanon 2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo

igual a civilizaccedilatildeo 3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel

deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo 4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos a uma possiacutevel

verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida 5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de

Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco 6 Desconstruindo o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista

erguida na recusa do humano enquanto diferente 7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta do

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mundo colonial uma antiacutetese agrave pretensatildeo de uma suposta missatildeo emancipadora dos

africanos subjacente na intenccedilatildeo colonizadora

1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a partir da sua analiacutetica

em Fanon

Natildeo eacute possiacutevel falar da descolonizaccedilatildeo em Fanon sem falar da colonizaccedilatildeo enquanto

referecircncia inofuscaacutevel e movimento historicizante que confere corpo e sentido mateacuteria e

forma a qualquer anaacutelise criacutetica do projecto de descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica Esta eacute de resto a

loacutegica que suporta o argumento de Fanon que passamos a transcrever

a descolonizaccedilatildeo [hellip] eacute um processo histoacuterico [hellip] natildeo pode ser

compreendida natildeo encontra a sua inteligibilidade natildeo se torna transparente

para si mesma senatildeo na exacta medida em que se faz discerniacutevel o

movimento historicizante que lhe daacute forma e conteuacutedo ndash a opressatildeo colonial

(Fanon 1968 p 26 ou Fanon 2002 p 452)

Desde esta perspectiva a anaacutelise sobre a colonizaccedilatildeo ganha uma particular relevacircncia na

medida em que se nos apresenta natildeo soacute como fundamento a partir do qual se pode erguer

qualquer avaliaccedilatildeo sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleoloacutegico da luta

dos africanos rumo agrave sua efectiva emancipaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo no universalismo humano

mas tambeacutem como pretexto para (re) pensar o caminho de superaccedilatildeo das novas formas de

colonizaccedilatildeo que grassam ainda Aacutefrica e que em si constituem um verdadeiro impasse para

uma descolonizaccedilatildeo efectiva do continente africano Importa desde jaacute sublinhar que esta

reflexatildeo de tipo histoacuterico natildeo encontra o seu real significado na descriccedilatildeo dos factos que ela

encerra nem na narraccedilatildeo histoacuterica que a constitui O seu real alcance reside na sua capacidade

de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a

descolonizaccedilatildeo vislumbrado pelos africanos passados que satildeo cinquenta e sete anos apoacutes a

morte de Fanon

Tem-se com efeito e natildeo poucas vezes associado a colonizaccedilatildeo de Aacutefrica a um projecto

civilizador ou modernizador que teraacute sido frustrado ou interrompido por uma espeacutecie de

ambiccedilatildeo irracional dos africanos admitindo-se deste modo a hipoacutetese segundo a qual a

colonizaccedilatildeo teraacute sido um ldquoprojecto interrompidordquo de civilizaccedilatildeo (modernizaccedilatildeo) da Aacutefrica e

dos africanos De recordar que o ldquodiscurso sobre o colonialismordquo de Aimeacute Ceacutesaire resulta

precisamente da necessidade de dissertar sobre uma possiacutevel analogia entre a ldquocolonizaccedilatildeo e

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a civilizaccedilatildeordquo Provocaccedilatildeo ou natildeo mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer

sobre o binocircmio colonizaccedilatildeo-civilizaccedilatildeo pelo Franco-Senegalecircs Alioune Diop fundador e

Director da Revista ldquoPreacutesence Africainerdquo em Paris 1950 insinua a existecircncia de tendecircncias

que aproximavam a colonizaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo Esta provocaccedilatildeo tal como nos parece ser natildeo

deixa de ser no plano metodoloacutegico um bom ponto de partida para uma discussatildeo mais

objectiva e criacutetica da concepccedilatildeo fanoniana do colonialismo porquanto nos permite lanccedilar a

discussatildeo levantando uma seacuterie de perguntas tais como 1 Eacute possiacutevel sustentar por via de

argumentaccedilatildeo uma provaacutevel analogia entre os dois conceitos em anaacutelise a saber colonizaccedilatildeo

e civilizaccedilatildeo 2 Teraacute havido realmente um plano colonial de civilizar ou modernizar a

Aacutefrica em proveito dos africanos 3 Era sensato legitimar a opressatildeo colonial a partir dos

progressos alcanccedilados nas coloacutenias de Aacutefrica durante a administraccedilatildeo colonial Dito de outro

modo Seraacute que os niacuteveis de desenvolvimento conseguidos em vaacuterios domiacutenios social

administrativo tecnoloacutegico e poliacutetico sob o regime colonial conferiam efectivamente a

merecida dignidade a Aacutefrica e aos africanos 4 Teraacute a Aacutefrica realmente recusado o

desenvolvimento como diria Axel Kabu ao engajar-se na luta pela descolonizaccedilatildeo 5 E hoje

em plena era poacutes-colonial poderatildeo os africanos afirmar com realismo franqueza e

frontalidade que os ideais que nortearam o projecto da descolonizaccedilatildeo foram alcanccedilados 6

Teraacute alguma razatildeo de ser o postulado segundo o qual o projecto de descolonizaccedilatildeo teraacute sido

abortado na sua menor idade admitindo-se deste modo um possiacutevel equiacutevoco entre os

liacutederes e os intelectuais africanos que teratildeo confundido as independecircncias (enquanto meio)

com a descolonizaccedilatildeo (enquanto fim da longa marcha usando a expressatildeo de Reneacute Dumont

rumo a um continente mais humano mais livre mais autoacutenomo mais justo e mais proacutespero)

Ao longo desta reflexatildeo tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas

perguntas tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon

2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeo

Qual teraacute sido o verdadeiro retrato do colonialismo um processo de civilizaccedilatildeo dos

chamados indiacutegenas ou um ldquomovimento de despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeordquo dos povos

africanos Eacute evidente que para Fanon esta questatildeo nem sequer merece ser colocada De

facto o jovem martinicano eacute bastante incisivo e objectivo na sua anaacutelise Para ele a

colonizaccedilatildeo eacute antes de mais uma ldquoviolecircnciardquo conceito que de resto daacute tiacutetulo ao Iordm capiacutetulo

do Les Damneacutes de la Terre (Fanon 1968 p23 ou 2002 p448) Na sua oacuteptica a violecircncia foi

precisamente o elemento estrateacutegico e estruturante da loacutegica colonial Trata-se de uma

violecircncia que extrai sua originalidade na substantificaccedilatildeo do colonizado que a proacutepria

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situaccedilatildeo colonial segrega e alimenta Aliaacutes o encontro entre o colonizador e o colonizado diz

Fanon teve sempre o retrato de violecircncia e nunca foi expressatildeo de uma vontade civilizadora

ou humanizadora Pode se ler em Fanon que a colonizaccedilatildeo eacute a categorizaccedilatildeo de um encontro

que

se desenrolou sob o signo da violecircncia e sua coabitaccedilatildeo ndash ou melhor

a exploraccedilatildeo do colonizado pelo colono ndash foi levada a cabo com

grande reforccedilo de baionetas e canhotildees [hellip] A violecircncia [hellip] presidiu

ao arranjo do mundo colonial [hellip] ritmou incansavelmente a

destruiccedilatildeo das formas sociais indiacutegenas [hellip] arrasou completamente

os sistemas de referecircncias da economia os modos da aparecircncia e do

vestuaacuterio do colonizado (Fanon 1968 pp 26 e 30)

Eacute possiacutevel aproximar em boa verdade uma situaccedilatildeo de uma clara alienaccedilatildeo antropoloacutegica

fazendo feacute agrave descriccedilatildeo de Fanon a um projecto de civilizaccedilatildeo sem cair em sofismas que

desemboquem numa contradiccedilatildeo De notar que este mesmo entendimento de Fanon eacute

corroborado pelo seu antigo mestre Aimeacute Ceacutesaire que parafraseamos nos seguintes termos a

colonizaccedilatildeo enquanto violecircncia no sentido mais bruto da palavra eacute uma autecircntica antiacutetese da

civilizaccedilatildeo ela por natureza desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado A

colonizaccedilatildeo legitima o ilegiacutetimo e normaliza o anormal pode-se matar agrave vontade na

Indochina torturar em Madagaacutescar prender na Aacutefrica negra seviciar nas Antilhashellip (cfr

Ceacutesaire 1978 pp 7 e 14) Natildeo eacute preciso muita hermenecircutica para apreender nos dizeres de

Sartre de que a violecircncia constitui o ldquomodus operandirdquo proacuteprio do sistema colonial que nem

as suas geniais trapaccedilas conseguem disfarccedilar A peculiaridade do agir colonial distancia a

colonizaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo E para deixar tudo a nu Sartre faz a seguinte inconfidecircncia

ldquonossos soldados no ultramar rechaccedilam o universalismo metropolitano

aplicam ao geacutenero humano o numerus clausus uma vez que ningueacutem pode

sem crime espoliar seu semelhante escravizaacute-lo ou mataacute-lo eles datildeo por

assente que o colonizado natildeo eacute o semelhante do homem Nossa tropa de

choque recebeu a missatildeo de transformar essa certeza abstrata em realidade a

ordem eacute rebaixar os habitantes do territoacuterio anexado ao niacutevel do macaco

superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [hellip] nada

deve ser poupado para liquidar as suas tradiccedilotildees para substituir a liacutengua deles

pela nossa para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossahelliprdquo (Sartre Les

Damneacutes 1961 p 9)

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Esta violecircncia que parte do plano simboacutelico conceitual atingiu o seu ponto auge com

desterramento dos indiacutegenas feitos estrangeiros na sua proacutepria terra como foi o caso do

coacutedigo civil imposto aos argelinos visando regular o direito agrave propriedade e agrave heranccedila com a

uacutenica finalidade de desterrar os autoacutectones tirando-lhes o que de mais precioso tinha ndash a sua

proacutepria terra De realccedilar que o referido coacutedigo tinha aprovado a titularidade comum de terras

entre a classe-meacutedia francesa e a sociedade tribal como estrateacutegia de expropriaccedilatildeo de terras

aos autoacutectones atraveacutes de poliacuteticas especulativas (cfr Sartre 1967 p39)

Desde este ponto de vista pode-se aferir que os ldquomodus essendi et operandirdquo do colonialismo

configuravam em certa medida aquilo que Sartre chamou de ldquoimoralidade narcisistardquo da

ambiccedilatildeo ocidental da qual emerge o impulso que modifica inevitavelmente qualquer

indiviacuteduo que adere agrave dinacircmica colonial dando-lhe boa consciecircncia e boas razotildees de ver no

outro (natildeo branco) um simples animal Esta constataccedilatildeo sartriana valida sem qualquer

sombra de duacutevida a convicccedilatildeo de Ceacutesaire para quem o colonialismo eacute brutalidade

intimidaccedilatildeo crueldade sadismo choque violaccedilatildeo roubo desprezo culturas obrigatoacuterias

desconfianccedila massas aviltadas ausecircncia de contacto humano relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de

submissatildeo que transformam o negro colonizado em criado ajudante comitre e instrumento de

produccedilatildeo (cfr Ceacutesaire 1978 p25) A partir destes pressupostos torna-se de facto forccediloso

concluir que natildeo existe tal como defende Fanon qualquer sustentabilidade quer

argumentacional quer factual para a validaccedilatildeo da equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeordquo

pois os factos atestam que colonizaccedilatildeo eacute o oposto de civilizaccedilatildeo Mas uma deacutemarche

etimoloacutegica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano teoacuterico

conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem

3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo

Para fundamentar com maior objectividade o alcance da deduccedilatildeo decorrente da narrativa de

Fanon em relaccedilatildeo a conjecturada correlaccedilatildeo entre os dois conceitos em anaacutelise pareceu-nos

mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos no sentido de os tornar mais

inteligiacuteveis para daiacute depreender o seu justo significado e consequentemente confirmar ou

infirmar a suposta correlaccedilatildeo entre ambas Conveacutem no entanto sublinhar que o caraacutecter

polisseacutemico dos conceitos em epiacutegrafe natildeo nos permite ignorar o facto de que natildeo eacute tatildeo faacutecil

quer do ponto de vista conceitual quer do ponto de vista factual traccedilar a linha de

convergecircncia ou de divergecircncia entre eles pois o proacuteprio caraacutecter multidisciplinar que o

conceito de civilizaccedilatildeo envolve hoje confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta

qualquer entendimento homogeacuteneo linear e conclusivo Acresce-se a este dado o facto de

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que nos dias que correm o conceito de civilizaccedilatildeo eacute reivindicado como objeto de estudo da

antropologia da ciecircncia da cultura do direito da histoacuteria da filosofia poliacutetica da sociologia

poliacutetica da religiatildeo etc proporcionando-lhe um enquadramento episteacutemico bastante

complexo que recusa qualquer unicidade semacircntica No entanto um recuo estrateacutegico e

metodoloacutegico ao seacuteculo das luzes onde o significado do termo ldquocivilizaccedilatildeordquo emergiu da

proacutepria raiz etimoloacutegica do conceito ldquocivilisrdquo ldquocivisrdquo cujo entendimento remetia agrave acccedilatildeo

de tornar civil ou urbano pode permitir uma espeacutecie de unidade de sentido a partir do qual se

pode fundamentar a possiacutevel analogia conceitual destes dois termos

A Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura natildeo foge muito desta percepccedilatildeo quando define a

colonizaccedilatildeo como um fenoacutemeno sociopoliacutetico baseado na dependecircncia de um grupo humano

ou de um territoacuterio a um outro que exerce nele influecircncias demograacuteficas econoacutemicas

culturais sociais ou poliacuteticas Entendimento agrave luz do qual alguns teoacutericos nos seacuteculos XIX e

XX basearam a sua definiccedilatildeo de colonizaccedilatildeo como atividade pela qual um povo de cultura

superior ocupa e organiza por conta proacutepria um territoacuterio habitado por povos de cultura

inferior estendendo a sua soberania desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas

segundo o princiacutepio da civilizaccedilatildeo Observa-se aqui a missatildeo civilizadora subjacente ao

conceito da colonizaccedilatildeo enquanto fenoacutemeno sociopoliacutetico cuja meta eacute levar as coloacutenias ao

desenvolvimento cultural social econoacutemico e cientiacutefico ou seja agrave modernizaccedilatildeo do territoacuterio

ocupado Este eacute de resto o significado que decorre do entendimento filoloacutegico do conceito de

colonizaccedilatildeo cuja estrutura originaacuteria se funda em torno de dois pressupostos basilares

nomeadamente o cultivo da terra isto eacute o desenvolvimento econoacutemico e o cultivo dos

homens ou seja a promoccedilatildeo sociocultural e econoacutemica das populaccedilotildees consideradas na

posiccedilatildeo receptiva (cfr Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura nordm5 p996ss)

De salientar que o conceito de civilizaccedilatildeo emergiu e muito provavelmente antes de qualquer

outro paiacutes no contexto sociocultural francecircs e fazia referecircncia essencialmente a trecircs

dimensotildees que vale a pena enumerar a primeira era referente ao primado da vida em

comunidade sobre a vida solitaacuteria a segunda fazia alusatildeo ao primado da vida na cidade sobre

a vida no campo a uacuteltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o

selvagem isto eacute o homem moderno distinguido pela ciecircncia e pela teacutecnica sobre o baacuterbaro

(cfr Enciclopeacutedia LB da Cultura nordm5) Neste contexto teoacuterico-conceitual civilizar era de

facto sinoacutenimo de trabalhar na integraccedilatildeo dos indiacutegenas na comunidade metropolitana na

modernizaccedilatildeo da vida do campo isto eacute levando as condiccedilotildees da cidade ao campo (energia

eleacutectrica aacutegua potaacutevel educaccedilatildeo escolar assistecircncia meacutedica e medicamentosahellip) e na policcedilatildeo

do baacuterbaro pela chamada ldquoculturardquo cientiacutefica e tecnoloacutegica

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Este parece ser o entendimento mais viaacutevel para o exame a que nos propusemos da

correlaccedilatildeo destes dois vocaacutebulos O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e

sustentabilidade episteacutemica no Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea editorial

Verbo acresce ainda mais o nosso interesse por esta perspectiva (cfr 2001 p833) Segundo

o Dicionaacuterio ora referenciado a ldquocivilizaccedilatildeordquo eacute a acccedilatildeo ou o resultado de transmitir

conhecimentos comportamentos e teacutecnicas consideradas desejaacuteveis numa sociedade moderna

Por conseguinte civilizar eacute dar caracteriacutesticas proacuteprias de sociedades teacutecnicas cientiacutefica e

economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas ou ainda dar haacutebitos e ajudar a

desenvolver comportamentos desejaacuteveis numa sociedade desenvolvida Conclui-se pois que

do ponto de vista conceitual ou definicional existem razotildees para fundamentar a presumiacutevel

correlaccedilatildeo entre os conceitos de ldquocolonizaccedilatildeo e civilizaccedilatildeordquo Mas a natildeo homogeneidade de

compreensatildeo na interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo destes conceitos agrave partida polisseacutemicos e

multidisciplinares e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descriccedilotildees fanonianas

obrigam-nos a dar um passo a mais espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e

continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo

4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos agrave uma possiacutevel verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de

partida

Se eacute possiacutevel aferir do ponto de vista definicional uma certa correlaccedilatildeo analoacutegica entre os

conceitos que fundam a nossa equaccedilatildeo de partida tal como ficou patenteado no ponto

anterior do ponto de vista doutrinal e factual esta correlaccedilatildeo carece de uma anaacutelise

minuciosa que permita apurar se a propensatildeo civilizadora inerente ao conceito de colonizaccedilatildeo

pelo menos no plano teoacuterico-conceitual conseguiu vincar como aspecto norteador da acccedilatildeo

colonial ou teraacute por alguma razatildeo ficado ofuscada durante o processo colonial Impotildee-se-

nos a este niacutevel retomar o ponto de vista de Fanon para quem a colonizaccedilatildeo eacute antes de

mais uma violecircncia que se consubstancia na animalizaccedilatildeo e na aniquilaccedilatildeo dos (negros)

colonizados Para sustentar o seu argumento Fanon comeccedila por relembrar a atitude do colono

que em vaacuterias circunstacircncias fez recurso a ldquouma linguagem zooloacutegica usando expressotildees

como ldquo[hellip] hordas fedor buliacutecio [hellip] e quando os quisesse descrever com mais exatidatildeo

[hellip] recorria constantemente ao bestiaacuteriordquo para designar os negros (Fanon 1968 p 31 ou

2002 p 456) Esta animalizaccedilatildeo do colonizado eacute para Fanon a expressatildeo mais eloquente de

uma violecircncia absoluta que desenraiacuteza o aviltado de sua humanidade E para reforccedilar a sua

criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista o colono via-se na necessidade de

encontrar novos atributos que pudessem explicitar da melhor maneira possiacutevel a real

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dimensatildeo semacircntica subjacente nos conceitos de ldquoindiacutegena e selvagemrdquo que em si jaacute natildeo

eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de

Aacutefrica entre outros

demografia galopante massas histeacutericas rostos de onde fugiu qualquer traccedilo

de humanidade corpos obesos que natildeo se assemelham mais a nada corte sem

cabeccedila nem cauda crianccedilas que datildeo a impressatildeo de natildeo pertencerem a

ningueacutem preguiccedila estendida ao sol ritmo vegetalhellip (Fanon 1968 p 32 ou

Fanon 2002 p457)

A validade histoacuterica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento Eacute sensato

falar de um projecto de civilizaccedilatildeo de animais sem converter a proacutepria racionalidade

civilizadora numa irracionalidade animal Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade

animal de uma civilizaccedilatildeo cuja racionalidade eacute o epicentro da sua acccedilatildeo muitos preferiram

considerar as afirmaccedilotildees de Fanon de irresponsaacuteveis e repletas de inverdades qualificando o

proacuteprio Fanon de agitador e instigador da violecircncia ante a sua incisiva caracterizaccedilatildeo do

sistema colonial Dentre outros podemos citar Alain Finkierkraut cujo pensamento mais do

que uma antiacutetese agraves teses de Fanon eacute uma tentativa de demonstraccedilatildeo da derrota do projecto da

descolonizaccedilatildeo Piegraverre Bourdieu de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que

pesam sobre Fanon eacute paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010 p 109)

como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus Simone de

Beauvoir Germaine Tillion Jasques Amrouche e outros que como Fanon e Sartre tiveram a

ousadia de denunciar cada um agrave sua maneira a violecircncia inerente ao sistema colonial

forjando novas noccedilotildees de identidade poliacutetica que continuam a influenciar o debate poliacutetico na

actualidade

No seu ldquomarxismo encontra Bourdieurdquo Burawoy procura mostrar que apesar da enorme

distacircncia que separa o quadro teoacuterico-reflexivo de Bourdieu e Fanon nomeadamente ldquoo

marxismo terceiro-mundista de um lado e a teoria da modernizaccedilatildeo de outro ladordquo o

pensamento destes dois autores apresenta inuacutemeras similitudes sobretudo entre o Fanon do

Le Damneacutes de la terre de 1961 e o Bourdieu de Sociologie de lrsquoAlgerie de 1958 Embora

natildeo seja objecto deste debate julgamos oportuno e procedente mencionar a tiacutetulo de

exemplo algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violecircncia como uma das

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave natureza proacutepria do sistema colonial e nos termos muito

semelhantes aqueles que aparecem nas paacuteginas 26 e 30 do Le Damneacutes de la terre de Fanon

(cfr 1968) ao afirmar

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o sistema colonial enquanto tal natildeo poderaacute ser destruiacutedo senatildeo atraveacutes de

um questionamento radical Todas as mutaccedilotildees satildeo submetidas agrave lei de tudo

ou nada Este facto estaacute na consciecircncia pelo menos de forma confusa quer

entre os membros da sociedade dominante quer entre os membros da

sociedade dominada [hellip] Mas eacute preciso admitir que o primeiro e uacutenico

questionamento radical do sistema eacute aquele que o proacuteprio sistema engendrou

isto eacute a revoluccedilatildeo contra os princiacutepios que o fundaram [hellip] A situaccedilatildeo

colonial criou o despreziacutevel e ao mesmo tempo o desprezo mas criou

tambeacutem a revolta contra o desprezo Assim cresce cada vez mais a tensatildeo

que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu 1958 pp 28 e 129)

Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu numa clara aproximaccedilatildeo da

colonizaccedilatildeo agrave violecircncia De facto a violecircncia simboacutelica e real eacute depreendida em muitos

cenaacuterios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial

Vaacuterios satildeo os etnoacutelogos e ideoacutelogos que nas entrelinhas do seu pensamento conferem uma

certa razatildeo a um tal pressuposto Alfred de Vigny por exemplo faz jus a esta violecircncia

simboacutelica ao afirmar sem rodeios que o mundo natildeo europeu eacute um mundo animal mundo dos

baacuterbaros mundo da morte e consequentemente uma ameaccedila ao mundo europeu Partindo

deste postulado deduz-se que para De Vigny a colonizaccedilatildeo era um processo compulsivo de

civilizaccedilatildeo isto eacute uma opccedilatildeo para a vida e tal como diz ldquose se prefere a vida agrave morte tem de

se preferir a civilizaccedilatildeo agrave barbaridaderdquo que natildeo eacute apenas um reino animal e de morte mas

tambeacutem uma ameaccedila agrave civilizaccedilatildeo Em virtude disto conclui De Vigny ldquonenhum povo tem o

direito de permanecer baacuterbaro ao lado das naccedilotildees civilizadasrdquo Depreende-se daqui que a

uacutenica loacutegica vaacutelida eacute a disjuntiva ldquoto be or not to berdquo como diria Shakespeare ldquothat is the

questionrdquo (cfr De Vigny 2003 p87)

Esta apreciaccedilatildeo lacoacutenica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que como De

Vigny tambeacutem considera a colonizaccedilatildeo como uma obra civilizadora uma espeacutecie de direito e

dever das sociedades evoluiacutedas Folliet baseia o seu argumento nas caracteriacutesticas

heterogeacuteneas das sociedades isto eacute nos desniacuteveis existentes entre as sociedades colonizadas e

colonizadoras quer nos planos econoacutemico administrativo cultural social e poliacutetico quer nos

planos cientiacutefico e tecnoloacutegico Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizaccedilatildeo

seria possivelmente o processo de supressatildeo destes desniacuteveis sociais com o auxiacutelio das

sociedades mais desenvolvidas Pelo que a manutenccedilatildeo destes desniacuteveis como forma

hegemoacutenica de controlo ou de manutenccedilatildeo de superioridade foge do acircmbito da colonizaccedilatildeo

para desembocar no campo de acccedilatildeo do colonialismo (cfr Folliet 1932 p 75) Eacute caso para

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dizer que o entendimento teoacuterico de Folliet apresenta uma diferenccedila niacutetida entre a colonizaccedilatildeo

que seria para o autor o sinoacutenimo de civilizaccedilatildeo e o colonialismo que pode ser visto como

processo de exploraccedilatildeo e subjugaccedilatildeo das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades

desenvolvidas

Mas eacute preciso dizer que se do ponto de vista conceitual Folliet deu um tamanho salto

qualitativo propiciador de uma possiacutevel coabitaccedilatildeo paciacutefica entre o colono e o colonizador

aludindo agrave missatildeo civilizadora da colonizaccedilatildeo do ponto de vista praacutetico o discurso follietiano

deu lugar a muitas ambiguidades sobretudo quando o proacuteprio autor considera a colonizaccedilatildeo

como forma mais viaacutevel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em

territoacuterios subdesenvolvidos e valorizaacute-los para o bem-comum da humanidade sem definir as

regras nem as modalidades ou os viacutenculos contractuais para tal Com efeito Folliet considera

um dado assente que ldquoas naccedilotildees economicamente mais evoluiacutedas tecircm o direito de explorar as

riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagensrdquo (Folliet 1932 pp 101 e 268) E

para natildeo camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violecircncia Folliet

defende a necessidade da manutenccedilatildeo das desigualdades entre o colonizador e o colonizado

numa clara opccedilatildeo pelo colonialismo em detrimento da colonizaccedilatildeo contrariando a sua proacutepria

doutrina com o seguinte posicionamento

a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores de modo que o sujeito

colonizado natildeo passe numa vontade de vinganccedila a esquecer a sua

heteronomia absoluta eacute portanto uacutetil e necessaacuterio que as mais vastas

propriedades as mais ricas induacutestrias os mais frutuosos comeacutercios pertenccedilam

aos representantes da raccedila superior (Folliet 1932 p228)

Uma possiacutevel deduccedilatildeo leva-nos por um lado a aferir a inadequaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida

com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analiacuteticos da questatildeo em

estudo e a considerar por outro lado a emergecircncia da categoria de dominaccedilatildeo como outro

elemento caracteriacutestico da estrateacutegia colonial na relaccedilatildeo colonizadocolonizador Este

princiacutepio que eacute em si mesmo o elemento estruturante da tensatildeo e ao mesmo tempo

provocador da dialeacutectica do senhor e do escravo permite-nos um salto para o exame da

possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a Aacutefrica em proveito dos

africanos

5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco

Eacute possiacutevel compatibilizar o instinto de dominaccedilatildeo com a vontade de promover ou de

emancipar Guillaume Sureacutena num movimento contraacuterio ao nosso itineraacuterio apresenta um

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discurso capaz de relanccedilar a discussatildeo No seu artigo intitulado ldquoPsycanalyse et

anticolonialismerdquo Sureacutena lamenta o desperdiacutecio de uma oportunidade que teria resultado num

possiacutevel encontro inter-civilizacional frutiacutefero e que no entanto teraacute sido frustrado pela

vontade dominadora do instinto colonial Os textos surenianos insinuam que do ponto de

vista praacutetico a civilizaccedilatildeo europeia nunca teve qualquer plano de promover nem de

reconhecer as outras civilizaccedilotildees como parceiras importantes para um crescimento conjunto

A sua ambiccedilatildeo foi sempre de conhecer para dominar e subjugar como ficou explicitado nesta

passagem

este encontro de civilizaccedilotildees tatildeo diferentes poderia ter sido o momento de um

intercacircmbio fecundo e de um enriquecimento muacutetuo como lamentou o

antropoacutelogo francecircs Claude Levi-Strauss Mas para a metafiacutesica europeia

desde a Greacutecia antiga o saber foi sempre o equivalente de ldquomaitriserrdquo isto eacute

de dominar As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados

sob os conceitos com partiacuteculas latinas e gregas Os locais geograacuteficos

receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridiacuteculos por

falta de qualquer relaccedilatildeo com os espiacuteritos que os habitavam outrora (Sureacutena

1943 p 4)

Diga-se pois de passagem que foi assim na Greacutecia antiga foi assim ateacute ao seacuteculo XX e

nada justifica que natildeo continue assim nos dias que hatildeo-de vir Mas a questatildeo eacute qual o destino

que o instinto dominador das naccedilotildees pode proporcionar agrave espeacutecie humana Conveacutem recordar

que num passado mais recente da histoacuteria da Europa a colonizaccedilatildeo assumiu o caraacutecter de

dominaccedilatildeo dos povos e dos seus recursos naturais Os europeus sempre mostraram-se mais

interessados com uma partenogeacutenese profunda dos africanos para os submeter mais

facilmente e natildeo para os civilizar De facto desde o iniacutecio do seacuteculo XVII com as grandes

navegaccedilotildees e os descobrimentos das ameacutericas o interesse em explorar e conquistar novas

terras ganhou um enorme vigor na Europa e com ele emergiu tambeacutem a chamada

colonizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de povoamento A primeira forma de colonizaccedilatildeo foi o momento

no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as coloacutenias tinham uma

utilidade meramente lucrativa junto da metroacutepole A segunda acontecia de maneira

espontacircnea mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econoacutemica

com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem aiacute acorria

Muitos estudos mostram que no continente africano este tipo de colonizaccedilatildeo foi sempre

acompanhado de desterramento de zonas araacuteveis ou de pastagem dos autoacutectones bem como

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da supressatildeo dos eventuais direitos que detinham1 Embora referindo-se a um contexto muito

mais preteacuterito ao de Fanon Ceacutesaire Sartre e outros Iva Cabral traz ao de cima a ideia de

dominaccedilatildeo e de exploraccedilatildeo como elementos catalisadores do interesse europeu em Aacutefrica

ajudando assim na desconstruccedilatildeo da hipoacutetese de um possiacutevel plano colonial para o

desenvolvimento de Aacutefrica e dos africanos De facto Iva Cabral afirma que a experiecircncia

ultramarina se resumia na conquista das praccedilas do Norte de Aacutefrica e na fixaccedilatildeo de guarniccedilotildees

e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territoacuterios tropicais de

Aacutefrica natildeo pelo desejo de levar a civilizaccedilatildeo agraves terras longiacutenquas de Aacutefrica mas por causa

dos inuacutemeros privileacutegios econoacutemicos e sociais que tinham os quais incluiacuteam em alguns

casos a sociedade escravocrata de produccedilatildeo no Atlacircntico (cfr 2015 p25)

Este suporte histoacuterico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra

um reforccedilo na posiccedilatildeo de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa

anaacutelise sobre as categorias de dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo como sustentaacuteculos da acccedilatildeo

colonizadora quando num tom autocriacutetico apontando o dedo aos seus irmatildeos europeus

pinta sem complexo nem contemplaccedilotildees o verdadeiro retrato da Europa colonial permitindo

a apreensatildeo da razatildeo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opressatildeo contra os

autoacutectones em territoacuterios colonizados sobretudo em Aacutefrica nestes termos

sabeis muito bem que somos exploradores Sabeis que nos apoderamos do

ouro e dos metais e posteriormente do petroacuteleo dos continentes novos e que

os trouxemos para as velhas metroacutepoles Com excelentes resultados palaacutecios

catedrais capitais industriais [hellip] A Europa empanturrada de riquezas

concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes entre noacutes

lucramos com a exploraccedilatildeo colonial (Fanon 1968 p 17)

Se tomamos a seacuterio as diversas constataccedilotildees dos autores supra mencionados torna-se

insustentaacutevel a hipoacutetese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos

africanos e da Aacutefrica num contexto de exploraccedilatildeo no seu sentido mais radical e mais bruto do

termo isto eacute uma exploraccedilatildeo natildeo soacute de recursos naturais dos territoacuterios colonizados mas

tambeacutem do seu proacuteprio capital humano Num tal contexto aproximar a colonizaccedilatildeo da

civilizaccedilatildeo eacute admitir agrave partida uma ambiguidade semacircntica na compreensatildeo destes dois

conceitos Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade Ceacutesaire diz que a colonizaccedilatildeo natildeo

deve ser confundida com uma empresa filantroacutepica nem com uma nobre vontade de recuar as

fronteiras da ignoracircncia da doenccedila da tirania e ateacute mesmo da propagaccedilatildeo de Deus e muito

1 Cfr httpsptwikipediaogwikicolonizaccedilatildeo Enciclopeacutedia livre 15022017

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menos com uma poliacutetica de extensatildeo dos direitos do povo colonizado como pretendeu o

pedantismo cristatildeo que concebeu o referido equiacutevoco ao enunciar uma equaccedilatildeo eacutetica e

religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria tornando-se assim responsaacutevel pelas consequecircncias

abominaacuteveis decorrentes dos actos coloniais cujas viacutetimas seriam os iacutendios os amarelos e os

negros (cfr Ceacutesaire 1978 pp14-15)

Pode se depreender dos textos de Ceacutesaire que a colonizaccedilatildeo eacute a manifestaccedilatildeo sem precedente

da ganacircncia do aventureiro e do pirata do comerciante e do armador do pesquisador de ouro

e do mercado do apetite e da forccedila tendo por detraacutes a sombra maleacutefica projetada de uma

forma de civilizaccedilatildeo que a dado momento da sua histoacuteria se viu obrigada internamente a

alargar agrave escala mundial a concorrecircncia das suas economias Se natildeo como se pode perceber

que a Franccedila em particular e a Europa em geral conseguissem progressivamente tal como

alude Dino Constantini transformar os princiacutepios democraacuteticos e humanistas tatildeo-reclamados

naquela circunscriccedilatildeo do globo em instrumentos de justificaccedilatildeo de dominaccedilatildeo com regulares

violaccedilotildees nas coloacutenias dando lugar a uma degeneraccedilatildeo sem precedente de uma suposta

ldquomissatildeo civilizadorardquo da Europa em Aacutefrica (cfr Constatini 2008 pp 33 e 53) Para pocircr a nu

o paradoxo de uma civilizaccedilatildeo dita humanista mas na praacutetica contestadora da proacutepria

humanidade no ldquodiferenterdquo Constatini evoca o coacutedigo civil de 1791 que coloca as coloacutenias

fora do direito comum institucionalizando uma cisatildeo social juridicamente fundamentada

entre as populaccedilotildees brancas e negras legitimando ao mesmo tempo a violecircncia primeiro no

plano simboacutelico e posteriormente no plano concreto numa clara declaraccedilatildeo de recusa de

reconhecimento e de integraccedilatildeo dos negros na vida da metroacutepole Eacute preciso dizer que esta

fragmentaccedilatildeo social legitimada pelo coacutedigo civil supra citado serviu de base para a

consagraccedilatildeo de uma nova compreensatildeo do conceito da ldquohumanidaderdquo que reduziria os

direitos humanos a direitos de cidadania reservando-os apenas aos europeus

Eacute o paradoxo no caso da Franccedila de uma Repuacuteblica que nunca deixou de contestar contra a

violecircncia de que tinha sido viacutetima em 1871 cegamente transformada numa autecircntica maacutequina

de violecircncia contra outros humanos sem qualquer fundamento legiacutetimo (cfr Constatini 2008

p 286) Eacute a contradiccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo ocidental defensora de direitos humanos mas que

natildeo hesita de reduzir os outros humanos agrave categoria de sub-humanos eacute a estrateacutegia de um

imaginaacuterio ideoloacutegico que no plano psicoloacutegico confere legitimidade a todas as barbaacuteries dos

colonizadores sobre os colonizados eacute a ironia de uma civilizaccedilatildeo cuja linha de demarcaccedilatildeo

com a barbaridade natildeo eacute expliacutecita Nem mesmo a dignidade humana universal e abstracta

apregoada pelos moralistas desta civilizaccedilatildeo como um dos valores mais sublimes entre os

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humanos em especial pela religiatildeo cristatilde mais consagrada ao serviccedilo do imperialismo do

que de Deus na oacuteptica de Ceacutesaire conseguiu dissimular a violecircncia contra o colonizado

6 Desmistificando o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista erguida na recusa do

ldquodiferenterdquo

Parece ter ficado evidente que a colonizaccedilatildeo se identificou mais com uma dinacircmica de

exploraccedilatildeo dos povos colonizados do que com um projecto de integraccedilatildeo dos indiacutegenas na

metroacutepole Iva Cabral ajuda-nos mais uma vez a perceber como a loacutegica do lucro presidiu a

todas as estrateacutegias e legislaccedilotildees coloniais Numa perspectiva simplesmente histoacuterica a autora

apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos

enunciados de Fanon que concedem sentido e substacircncia a este trabalho Com efeito Iva

Cabral afirma que as decisotildees poliacuteticas do regime colonial criavam condiccedilotildees para que os

filhos da meacutedia e baixa nobreza portuguesa neste particular mercadores e aventureiros

vislumbrassem no territoacuterio receacutem-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto

mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as

mercadorias daiacute advindas poderiam trazer (cfr Cabral 2015 p27)

Eacute loacutegico conjecturar que num tal jogo de lucro faacutecil que natildeo podia natildeo contar com os

recursos naturais e com o capital humano africanos como meios ideais para minimizar os

custos e maximizar os lucros a preocupaccedilatildeo pela integraccedilatildeo dos africanos no clube dos

evoluiacutedos e emancipados seria uma espeacutecie de atentado ao espiacuterito de negoacutecio Este postulado

encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da

recusa do ldquooutrordquo o diferente feito uma ameaccedila para o ldquonoacutesrdquo ideologicamente construiacutedo e

consagrado como o uacutenico paradigma possiacutevel de humanidade na seguinte declaraccedilatildeo

havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se

recusaram no seacuteculo de Colombo em reconhecer seus semelhantes homens

degradados que povoavam o novo mundo [hellip] Era impossiacutevel fixar um

instante do olhar no selvagem sem ler o anaacutetema escrito natildeo digo somente na

sua alma mas ateacute na forma exterior do seu corpo (De Maistre Joseph Apud

Ceacutesaire 1978 p 33)

Esta declaraccedilatildeo deixa transparecer uma inferecircncia loacutegica quase irrefutaacutevel de que o referido

anaacutetema dos indiacutegenas soacute natildeo se consumou ao extermiacutenio na perspectiva do colono por

razotildees de iacutendole puramente utilitarista como se depreende nesta passagem do jaacute citado autor

nesta transcriccedilatildeo de Ceacutesaire

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sob o ponto de vista de selecccedilatildeo consideraria deploraacutevel o desenvolvimento

numeacuterico [hellip] dos elementos amarelos e negros que seriam de eliminaccedilatildeo

difiacutecil Se todavia a sociedade futura se organizar numa base dualista com

uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raccedila inferior confiada agrave

mais grosseira matildeo-de-obra eacute possiacutevel que este uacuteltimo papel incumba aos

elementos amarelos e negros Neste caso aliaacutes natildeo seria um embaraccedilo mas

uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre Joseph Apud Ceacutesaire

1978 p 33)

Fica desvendado nestes dizeres do De Maistre o retrato do narcismo nihilista de muitos

artistas da europa colonial consubstanciado na ideia e na pretensatildeo de uma raccedila superior que

se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contaacutegio Eacute o drama de uma Europa

feita refeacutem pelo seu proacuteprio mito de pureza civilizacional uniracial um mito enganoso

pretensioso e pernicioso que potildee em causa a aspiraccedilatildeo de uma poliacutetica enquanto exigecircncia de

construccedilatildeo de uma comunidade humana na qual a consciecircncia da diversidade dos humanos e a

necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condiccedilatildeo ldquosine qua nonrdquo da

prosperidade e da sobrevivecircncia da proacutepria espeacutecie humana Lamentavelmente este

entendimento da poliacutetica como espaccedilo intermediaacuterio onde se joga a liberdade e interacccedilatildeo dos

humanos enquanto seres iguais e autoacutenomos eacute constantemente posto em causa como diz

Martha Nussbaum pelos apologistas deste mito que em todas as sociedades alimentam uma

falsa convicccedilatildeo de pureza etnocecircntrica ou ldquoclassececircntricardquo geradora de violecircncia contra os

excluiacutedos (cfr Nussbaum 2010 p 48) comprometendo a possibilidade de fazer da poliacutetica o

lugar por excelecircncia da profundidade humana

Para compreender as mais profundas motivaccedilotildees que levam os indiviacuteduos a um tal instinto

nihilista Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi que examina a possiacutevel

conexatildeo existente entre os domiacutenios psicoloacutegico e poliacutetico Com efeito Gandhi concluiacutera que

os desejos gananciosos o instinto de agressatildeo e a ansiedade narcisista satildeo empecilhos para a

edificaccedilatildeo de uma verdadeira civilizaccedilatildeo humana Pelo que a luta poliacutetica pela construccedilatildeo de

uma civilizaccedilatildeo humana assente nos pilares da liberdade empatia e igualdade deve ser

precedida de uma luta contra o medo do outro a ganacircncia e o instinto de agressatildeo narcisista

intriacutensecos em cada indiviacuteduo (cfr Nussbaum 2010 pp 48-50) E se partimos da hipoacutetese de

que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multidotildees ao oacutedio ao genociacutedio e agrave

instrumentalizaccedilatildeo dos ldquooutrosrdquo tidos como da raccedila inferior ou sub-humana ocorre mais em

contextos de pouca capacidade criacutetica ou de uma intelectualidade materialista ou

ldquoventriacuteloquerdquo usando a expressatildeo de Fabien Eboussi Boulaga isto eacute de uma intelectualidade

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corrupta desprovida de princiacutepios eacuteticos e humanistas forccediloso eacute concluir que por mais que a

Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizaccedilatildeo dos africanos natildeo teria condiccedilotildees

efectivas de o fazer ante a sua ganacircncia e arrogacircncia eurocentristas encorajadas por uma

jactacircncia ostensiva feito veneno instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do

lucro cuja solidificaccedilatildeo se daacute com o asselvajamento dos africanos em geral e dos negros em

particular

Eacute precisamente este instinto egoiacutesta e materialista que transparece na maneira como Ernest

Renan concebe o colonialismo Para ele o colonialismo eacute uma necessidade poliacutetica de

primeira ordem eacute a conquista de um paiacutes de raccedila inferior pela raccedila superior que se instala na

coloacutenia atraveacutes de um governo Trata-se na perspectiva deste autor de algo de extrema

normalidade que nada tem de chocante A colonizaccedilatildeo soacute se torna chocante se e somente se

as conquistas forem entre raccedilas iguais Assim se por um lado estas conquistas devem ser

desencorajadas e censuradas entre raccedilas iguais elas devem ser encorajadas entre as raccedilas

desiguais porque a regeneraccedilatildeo ou degeneraccedilatildeo de raccedilas inferiores pelas raccedilas superiores

deve estar na ordem providencial da humanidade ldquoRegere imperio populosrdquo eis a nossa

vocaccedilatildeo A natureza criou uma raccedila de trabalhadores industriais ndash eacute a raccedila chinesa uma de

jornaleiros agriacutecolas ndash eacute a raccedila negra [hellip] uma raccedila de senhores e de soldados eacute raccedila

europeiardquo Nesta oacuteptica a reduccedilatildeo desta nobre raccedila agrave classe trabalhadora em condiccedilotildees

degradantes como as dos negros e dos chineses gera revolta (cfr Renan 1967 pp 69-70) O

mais perplexo em tudo isso eacute que Renan numa enorme ousadia intelectual natildeo se tenha

inibido do seu instinto de superioridade racial ao defender de forma paradoxal numa obra

intitulada ldquoLa Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la Francerdquo a seguinte convicccedilatildeo

noacutes esperamos natildeo a igualdade mas sim a dominaccedilatildeo O paiacutes de raccedila

estrangeira deveraacute voltar a ser um paiacutes de servos de jornaleiros agriacutecolas ou

de trabalhadores industriais Natildeo se trata de suprimir as desigualdades entre

os homens mas de as ampliar e as converter em lei (Renan 1967 p69-70)

Uma visatildeo demasiado materialista e narcisista que mereceu num tom iroacutenico a criacutetica de

Ceacutesaire que qualifica o colono muito distinto muito humanista e muito cristatildeo do seacuteculo XX

como uma autecircntica encarnaccedilatildeo de Hitler Eacute o retrato do colono que traz em si segundo

Ceacutesaire ldquoum Hitler que se ignora que vive nele e que eacute o seu demoacutenio e se o vitupera eacute por

falta de loacutegica ou pelo instinto de afinidade racial pois os factos atestam que o que muitos

deles natildeo perdoam a Hitler natildeo eacute o crime em si nem tatildeo-pouco o crime contra a humanidade

mas o crime contra o homem branco a humilhaccedilatildeo do homem brancordquo Assim natildeo restam

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duacutevidas de que do ponto de vista do seu desenvolvimento socio-histoacuterico a colonizaccedilatildeo eacute

uma suprema barbaacuterie um nazismo pouco expressivo por ser aplicado aos negros e aos aacuterabes

de Aacutefrica Mas na sua essecircncia um tal narcisismo constitui a negaccedilatildeo mais eloquente do

humanismo universal e formal reivindicado por Fanon e ao mesmo tempo uma clara

renuacutencia dos ideais filosoacuteficos morais e cristatildeos de uma civilizaccedilatildeo decaiacuteda (cfr Ceacutesaire

1978 pp 18-19)

Estaacute assim denunciada a patologia de uma civilizaccedilatildeo que fundou a sua filosofia de acccedilatildeo na

estigmatizaccedilatildeo do ldquodiferenterdquo e na fragmentaccedilatildeo do mundo em puro e impuro Eacute a construccedilatildeo

patoloacutegica usando a expressatildeo da Nussbaum de um ldquonoacutesrdquo que se julga imaculado e de um

ldquoelesrdquo preconceitualmente denotado vil perigoso e contagioso Esta denunciada patologia

obriga-nos a retomar algumas das questotildees supra referenciadas tais como eacute possiacutevel pensar a

missatildeo civilizadora da Europa colonial num contexto de clara recusa da alteridade ou de

reconhecimento do africano como sujeito autoacutenomo dotado de razatildeo e de humanidade

Como compreender uma missatildeo civilizadora assente numa loacutegica social do segundo excluiacutedo

isto eacute numa loacutegica social fracturante e nihilista Seraacute que Aacutefrica ao engajar-se na luta pela

descolonizaccedilatildeo teraacute efectivamente recusado o projecto de desenvolvimento que configurava

a missatildeo civilizadora da potecircncia colonial Vamos no proacuteximo ponto tentar encontrar alguns

elementos de resposta a estes questionamentos em certa medida jaacute respondidos

7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta uma antiacutetese agrave pretensatildeo colonial da emancipaccedilatildeo

da Aacutefrica dos africanos

A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta da sociedade ou seja a bipolarizaccedilatildeo social assente no

princiacutepio da desigualdade entre as cidades dos homens isto eacute dos europeus e os bairros

indiacutegenas ou dos selvagens categorias sociais criadas pelo proacuteprio colono contradiz agrave

partida qualquer pretensatildeo colonial de reconhecimento e integraccedilatildeo da Aacutefrica e dos africanos

no universalismo humano (cfr Fanon 1968 p 27 ou 2002 p 453) Aliaacutes a estrutura social

montada pelo colono determinava ldquoa priorirdquo que as relaccedilotildees entre os habitantes dos dois

mundos fossem de exploradores e explorados dominadores e dominados opressores e

oprimidos superiores e inferiores homens e sub-homens Conveacutem no entanto sublinhar que

toda a violecircncia colonial tinha como grande propoacutesito a criaccedilatildeo de um ambiente de medo e

inibiccedilatildeo do colonizado no intuito de facilitar a dinamizaccedilatildeo da exploraccedilatildeo e a pilhagem de

recursos naturais num contexto inovador de mercantilismo que muito precisava do concurso

forccedilado dos proacuteprios indiacutegenas Para dar conta do dinamismo interno de uma tal

compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta Fanon escreve

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em sua zona o colono potildee em marcha o movimento de dominaccedilatildeo de

exploraccedilatildeo e de pilhagem Na outra zona a coisa colonizada oprimida e

espoliada alimenta como pode esse movimento [hellip] as mateacuterias-primas vatildeo

e vecircm legitimando a presenccedila do colono Enquanto o acocorado mais morto

do que vivo o colonizado se eterniza num sonho [hellip] o colono faz histoacuteria

Sua vida eacute uma epopeia uma odisseia (Fanon 1968 p 38 ou 2002 p 463)

Como se pode depreender mais uma vez este maniqueiacutesmo eacute em si mesmo uma antiacutetese de

qualquer projecto civilizador natildeo soacute pelo facto de se constituir num factor provocador de

desprezo e ignomiacutenia dos colonizados mas tambeacutem e sobretudo por ser um factor

desestabilizador suscitador de oacutedio e de violecircncia entre os habitantes das duas zonas Cocircnscio

desta tensatildeo latente e subjacente a esta configuraccedilatildeo geopoliacutetica opressiva o colono interpocircs

como deduz Fanon uma estrutura fronteiriccedila forte e intimidatoacuteria capaz de assegurar a

atmosfera de submissatildeo e de inibiccedilatildeo dos explorados tal como se pode ler

o mundo colonizado eacute um mundo cindido em dois A linha divisoacuteria a

fronteira eacute indicada pelos quarteis e delegacias de poliacutecia Nas coloacutenias o

interlocutor legal e institucional do colonizado o porta-voz do colono e do

regime de opressatildeo eacute o gendarme ou o soldado Nas sociedades capitalistas o

ensino religioso ou leigo a formaccedilatildeo de reflexos morais [hellip] criam em torno

do explorado uma atmosfera de submissatildeo e inibiccedilatildeo que torna

consideravelmente mais leve a tarefa das forccedilas da ordem [hellip] O

intermediaacuterio do poder utiliza uma linguagem de pura violecircncia [hellip] natildeo

torna mais leve a opressatildeo natildeo dissimula a dominaccedilatildeo Exibe-as manifesta-

as com a boa consciecircncia das forccedilas da ordem [hellip] leva a violecircncia agrave casa e

ao ceacuterebro do colonizado (Fanon 1968 p 28 ou Fanon 2002 pp 453-454)

Este e outros cenaacuterios permitem situar a originalidade do instinto colonial no princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica e social e no de desigualdade econoacutemica entre duas espeacutecies a

branca e a negra ou aacuterabe pois a patologia narcisista de superioridade racial estruturou no

imaginaacuterio individual e colectivo do colonizador a convicccedilatildeo de que ser branco significa ser

superior e consequentemente rico e ser negro ou aacuterabe africano eacute o oposto disto (cfr Fanon

1968 p 29 ou Fanon 2002 p 455) Este maniqueiacutesmo que toma balanccedilo no plano simboacutelico

no qual o branco remete agrave noccedilatildeo do bem do belo e do bom e o negro o seu oposto

desembarca no plano concreto com reflexos inofuscaacuteveis na configuraccedilatildeo geograacutefica da

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estrutura social montada pelo regime colonial A cidade do colono eacute uma cidade vida

enquanto no bairro do colonizado se sobrevive milagrosamente a cidade do colono eacute segura

mas no bairro indiacutegena a inseguranccedila eacute o proacuteprio cartatildeo-de-visita a cidade do colono eacute uma

cidade soacutelida toda de pedra e ferro iluminada asfaltada as ruas limpas lisas sem buracos

mas o bairro indiacutegena eacute o oposto disso Na cidade do colono os habitantes estatildeo

permanentemente saciados e repletos de boas coisas Em contrapartida o bairro indiacutegena ou

negro eacute um lugar mal-afamado e povoado eacute o bairro de homens mal-afamados aiacute nasce-se

natildeo importa como nem onde e morre-se natildeo importa a onde nem de quecirc Eacute um mundo sem

intervalos ou seja os homens estatildeo uns sobre os outros eacute o mundo dos famintos dos

analfabetos e dos doentes e indigentes (cfr Fanon 1968 p 28-29 ou Fanon 2002 pp 453-

454)

O mundo colonial diz Fanon forjou um povo sem alma e sem referecircncia originaacuterias O

colono criou categorias sub-humanas para destruir a autoestima dos negros e dos aacuterabes de

Aacutefrica Fez deles uma espeacutecie de quintessecircncia do mal considerando-os como seres

impermeaacuteveis agrave moral e agrave eacutetica com ausecircncia e negaccedilatildeo de valores mal absoluto elementos

corrosivos que destroem tudo o que se aproxima deles elementos deformadores que

desfiguram tudo o que se refere agrave esteacutetica ou agrave moral depositaacuterios de forccedilas cegas (cfr

Fanon 1968 p 31 ou Fanon 2002 p 456) Esta convicccedilatildeo levou M Meyer a afirmar em

plena Assembleia Nacional Francesa que

[hellip] natildeo era necessaacuterio prostituir a Repuacuteblica fazendo penetrar nela o povo

argelino Os valores com efeito se tornam irreversivelmente envenenados e

pervertidos desde que entram em contacto com a populaccedilatildeo colonizada Os

costumes do colonizado suas tradiccedilotildees [hellip] sobretudo seus mitos satildeo a

proacutepria marca desta indigecircncia desta depravaccedilatildeo constitucional (Fanon

1968 p31 ou Fanon 2002 p 456)

Este discurso forjado no seu espaccedilo existencial levou Ceacutesaire (1978 p17) agrave conclusatildeo de que

a Europa colonial se esmerou antes de mais em descivilizar primeiro o proacuteprio colonizador

embrutececirc-lo degradaacute-lo despertaacute-lo para os instintos ocultos para a cobiccedila para a violecircncia

para o oacutedio racial e para o relativismo moral e posteriormente descivilizar o colonizado

Todo este quadro legitima sobremaneira o anseio dos africanos pela liberdade e pelo

reconhecimento da sua dignidade Para desmascarar o argumento segundo o qual o

engajamento dos africanos na luta pela descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica teraacute sido uma espeacutecie de

recusa do desenvolvimento do Continente africano pelos africanos Ceacutesaire passa em revista

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e em jeito de balanccedilo o vasto fresco dos horrores da dominaccedilatildeo colonial em particular a

francesa em Aacutefrica deixando claro que nenhum desenvolvimento vale mais do que a

dignidade humana e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos povos Apoiando

o seu raciociacutenio nos factos Com efeito Ceacutesaire afirma que a equaccedilatildeo mais ajustada agrave

realidade vivida eacute colonizaccedilatildeo igual coisificaccedilatildeo e natildeo desenvolvimento porque no fim de

contas o fiel da balanccedila pende mais para prejuiacutezos do que para ganhos tal como consta do

longo extrato que extraiacutemos do texto de Ceacutesaire

falam-me de progressos de realizaccedilotildees de doenccedilas curadas de niacuteveis de vida

elevados acima de si proacuteprios eu falo de sociedades esvaziadas de si

proacuteprias de culturas espezinhadas de instituiccedilotildees minadas de terras

confiscadas de religiotildees assassinadas de magnificecircncias artiacutesticas

aniquiladas de extraordinaacuterias possibilidades suprimidas Lanccedilam-me agrave cara

factos estatiacutesticas quilometragens de estradas de canais de caminhos-de-

ferro mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano falo

dos que no momento em que escrevo cavam agrave matildeo o porto de Abidjan falo

de milhotildees de homens arrancados aos seus deuses agrave sua terra aos seus

haacutebitos agrave sua vida agrave danccedila agrave sabedoria falo de milhotildees de homens a quem

inculcaram sabiamente o medo o complexo de inferioridade o tremor a

genuflexatildeo o desespero o servilismo Laccedilam-me em cheio aos olhos

toneladas de algodatildeo ou cacau exportado hectares de oliveiras ou de vinha

plantadas mas eu falo de economias naturais de economias harmoniosas e

viaacuteveis de economias adaptadas agrave condiccedilatildeo do homem indiacutegena

desorganizadas de culturas de subsistecircncias destruiacutedas de subalimentaccedilatildeo

instalada de desenvolvimento agriacutecola orientada unicamente para benefiacutecio

das metroacutepoles de rapinas de produtos de rapinas de mateacuterias-primas

Ufanam-se de abusos suprimidos eu tambeacutem falo de abusos mas para dizer

que aos antigos ndash muito reais ndash sobrepuseram outros muito detestaacuteveis

Falam-me de tiranos locais trazidos agrave razatildeo poreacutem constato que regra geral

eles fazem muito boa parelha com os novos e que destes aos antigos e vice-

versa se estabeleceu em detrimento dos povos um circuito de bons serviccedilos

e cumplicidade Falam-me de civilizaccedilatildeo eu falo de proletarizaccedilatildeo e de

mistificaccedilatildeo [hellip] Cada dia que passa cada negaccedilatildeo de justiccedila cada carga

policial cada reclamaccedilatildeo operaacuteria afogada em sangue cada escacircndalo

abafado cada expediccedilatildeo punitiva cada poliacutecia e cada miliciano fazem-nos

sentir o preccedilo das nossas velhas sociedadesrdquo (Ceacutesaire 1978 pp25-26)

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Disso decorre que a essecircncia do colonialismo tal como realccedilou Maacuterio Pinto de Andrade

reside em dois aspectos no ldquoregime de exploraccedilatildeo desenfreada de imensas massas humanas

que encontra a sua legitimidade e sustentabilidade na violecircnciardquo e na ldquoforma moderna de

pilhagemrdquo (cfr Ceacutesaire Aimeacute 1978 p7) Assim se os niacuteveis cientiacuteficos tecnoloacutegicos e

organizacionais ostentados pela Europa colonial lhe conferem a todos os tiacutetulos um estatuto

de uma civilizaccedilatildeo o mesmo jaacute natildeo se daacute do ponto de vista da sua relaccedilatildeo com as coloacutenias

Por esta razatildeo Ceacutesaire chamou-lhe de civilizaccedilatildeo decadente enferma e moacuterbida por se ter

revelado incapaz de resolver os grandes problemas que criou nomeadamente o do

proletariado e o colonial Ouccedilamos Ceacutesaire a respeito

ldquouma civilizaccedilatildeo que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu

funcionamento suscita eacute uma civilizaccedilatildeo decadente Uma civilizaccedilatildeo que

prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais eacute uma civilizaccedilatildeo

enferma Uma civilizaccedilatildeo que trapaceia com os seus princiacutepios eacute uma

civilizaccedilatildeo moacuterbidardquo (Ceacutesaire 1978 p13)

Teratildeo Fanon Ceacutesaire Sartre e outros exagerado na sua criacutetica do colonialismo

Possivelmente sim Contudo a larga unanimidade existente sobre o assunto permite-nos

atribuir uma certa objectividade e verdade histoacuterica a muitos dos enunciados que nos satildeo

dados a apreciar Reneacute Grousset (1954 p 76) quase duas deacutecadas antes de Ceacutesaire

analisando o percurso evolutivo das civilizaccedilotildees constatava que nenhuma civilizaccedilatildeo

apareceu logo no iniacutecio tatildeo promissora e tatildeo ameaccedilada como a civilizaccedilatildeo ocidental A sua

ameaccedila em seu entender natildeo vem apenas da espada nuclear vem tambeacutem e sobretudo do

egoiacutesmo e do materialismo que inspiram os povos que a comandam Estaacute portanto evidente

que o regime colonial europeu foi essencialmente uma conquista assente em fins de

exploraccedilatildeo dos indiacutegenas Esta ideia ceacutesairiana de uma Europa exploradora no sentido

accedilambarcador do termo aparece tambeacutem no ldquoLe geacutenociderdquo no qual Jean-Paul Sartre eacute

perentoacuterio em afirmar que a colonizaccedilatildeo natildeo eacute uma mera conquista como foi a anexaccedilatildeo de

Alsace-Lorraine pela Alemanha na sua verdadeira natureza a colonizaccedilatildeo eacute um acto de

genociacutedio cultural Numa ldquodeacutemarcherdquo fenomenoloacutegica Sartre mostra que a colonizaccedilatildeo natildeo

acontece sem a liquidaccedilatildeo sistemaacutetica de todas as caracteriacutesticas particulares de sociedades

nativas e simultaneamente sem a recusa da sua integraccedilatildeo massiva na metroacutepole e sem a

negaccedilatildeo do seu acesso agraves vantagens da metroacutepole

Concordamos assim com Sartre que a colonizaccedilatildeo eacute um sistema de negoacutecio que requer

inevitavelmente a existecircncia de um sub-proletariado nacional forccedilado a trabalhar por

miseraacuteveis salaacuterios Vale dizer que no sistema colonial a coloacutenia teve uma funccedilatildeo

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instrumental ou seja foi usada para vender as suas mateacuterias-primas e seus produtos agriacutecolas

a um preccedilo irrisoacuterio agrave metroacutepole Em retorno a metroacutepole vendeu os bens manufaturados agraves

coloacutenias a preccedilo do mercado Este negoacutecio que contou com a comparticipaccedilatildeo da burguesia

nacional condenou os africanos a viverem num submundo de miseacuteria como negros fantasmas

continuamente recordados da sua condiccedilatildeo de sub-humanos (cfr Sartre 1967 p39)

Estaacute visto que a colonizaccedilatildeo partindo da efiacutegie aqui apresentada eacute um projecto oposto aos

ideais civilizacionais tal como alude Ceacutesaire ao desmistificar a tentativa de atribuir ao

processo de colonizaccedilatildeo uma intenccedilatildeo civilizadora A maldiccedilatildeo mais comum nesta mateacuteria eacute

deixarmo-nos iludir de boa-feacute por uma hipoacutetese colectiva e haacutebil em enunciar mal os

problemas para melhor justificar as soluccedilotildees que se lhes aplicam conferindo facilmente

legitimidade a um conjunto de praacuteticas abominaacuteveis atribuindo-lhes a categoria de um mal

necessaacuterio com vista a um fim nobre ndash a civilizaccedilatildeo dos selvagens (Ceacutesaire 1978 p14)

Conclusatildeo

A reflexatildeo feita nas paacuteginas anteriores permitiu-nos deduzir a existecircncia de uma possiacutevel

analogia entre a colonizaccedilatildeo e a civilizaccedilatildeo do ponto de vista teoacuterico conceitual Mas do

ponto de vista praacutetico tudo natildeo passou de uma simples ilusatildeo Uma ilusatildeo cimentada pela

foacutermula do pedantismo cristatildeo que procurou atribuir uma presumiacutevel missatildeo civilizadora ao

fenoacutemeno de colonizaccedilatildeo ao estabelecer a equaccedilatildeo cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria A anaacutelise mostrou que do ponto de vista doutrinal e factual

uma tal equaccedilatildeo eacute insustentaacutevel porquanto a colonizaccedilatildeo se assumiu mais como violecircncia

contra os povos colonizados e exploraccedilatildeo dos seus recursos naturais e da sua forccedila de trabalho

e nunca como projecto colonial de emancipaccedilatildeo dos povos colonizados Esta conclusatildeo pode

ter sido previsiacutevel mas como foi referido no princiacutepio deste trabalho esta anaacutelise sobre o

colonialismo encontra a sua utilidade neste texto na medida em que se nos apresenta como

movimento historicizante que constitui a mateacuteria e a forma que nos permitem vislumbrar o

horizonte teleoloacutegico da descolonizaccedilatildeo enquanto proposta de emergecircncia do novo nova

realidade novos seres e novo continente uma espeacutecie de antiacutetese do mundo colonial

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Obras do autor

1 FANON Frantz Frantz Fanon Ouevres Paris Eacuteditions La Deacutecouverte 2011

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Outras obras

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2 BURAWOY Michael Marxismo encontra Bourdieu Campinas Editora Unicamp 2010

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4 OLUacuteFEacuteMI Taacuteiwo (2004) ldquoPost-Independence African Political Philosophyrdquo In Kwasi Wiredu A

Companion to African Philosophy Cornwall MPG Books Ltd Bodmim 2004 pp 243-260

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PEDAGOGIA laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO

LIBERAL EM AacuteFRICA

INAacuteCIO VALENTIM a

inaciovalentim82gmailcom

Resumo

Nada eacute tatildeo enobrecedor como ensinar e aprender A nobreza reside na consciecircncia estaacute no

encontro com o outro estaacute na disponibilidade que eacute criada para si e para o outro e estaacute

sobretudo no comprometimento que se tem consigo mesmo e com o outro O outro como o

rosto como memoacuteria e como um ldquooutro eurdquo Isto eacute o que ensinar e aprender nos oferece e nos

sugere Ter a noccedilatildeo de que todo o acto de ensinar eacute essencialmente um processo de aprender

de aprendizagem e de dar a possibilidade de interrogar-se sobre o aprendido e sobre

aprendizagem O objectivo deste artigo eacute de reflectir sobre a hermenecircutica do aprender o que

chamamos aprender e como acontece

Palavras-chave aprender comprometimento inacessibilidade responsabilidade fazer e

ensinar

Abstract

Nothing is so ennobling as teaching and learning The nobility lies in its consciousness is in

the encounter with the other it is in the availability that is created for itself and to the other

and itrsquos mainly in the compromise that it has with oneself and with the other The other as the

face as memory and as other selfrdquo This is what teaching and learning offers and suggests to

us Have the notion that the whole act of teaching is essentially a process of learning learning

and giving the possibility to question them about the learned and about learning The aim of

this article is to reflect on the hermeneutics of learning what we learn and how it happens

Keywords learning commitment inaccessibility responsibility doing and teaching

a Doutor em Filosofia pela Universidade Carlos III de Madrid Professor e Investigador Titular Director Geral do

Instituto Superior Politeacutecnico Sol Nascente Huambo - Angola wwwispsnorg

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O termo laquoaprenderraquo oferece agrave primeira vista com uma leitura muito atenta uma ideia muito

escorregadia apresenta algo de inacessibilidade algo que nos passa entre os dedos como

aacutegua como liacutequido como vento como espiacuterito Enfim como algo que natildeo nos eacute dado

aprisionar fiacutesica e mentalmente No entanto acreditamos que aprendemos e acreditamos que

podemos fazer com que outras pessoas aprendam connosco ou atraveacutes de noacutes e natildeo hesitamos

muitas vezes em oferecer-nos como instrumento de aprendizagem para os outros Apesar de

ser um termo muito duro no sentido de responsabilidade esta responsabilidade acaba por estar

ou ficar diluiacuteda na confusatildeo entre o aprender e o fazer entre o aprender e o ensinar entre o

aprender e o saber porque confundimos ou fundimos as duas perspectivas antecipando

precisamente o acto do segundo que eacute dirigido ou orientado para o aprendiz Enquanto

mecanismo que conduz agrave aquisiccedilatildeo do saber a aprendizagem ldquoopotildee-se ao ensinamento ou ao

ensino cujo objectivo eacute de dispensar conhecimentos e saberesrdquo Mas esta oposiccedilatildeo natildeo eacute de

ruptura porque natildeo pode haver aprendizagem senatildeo por intermeacutedio do ensino ou de quem

ensina

O aprender-se bem eacute reflectido sobretudo a partir da acccedilatildeo enquanto resultado e resposta do

aprender natildeo obstante enquanto fenoacutemeno o aprender eacute um acto de natureza invisiacutevel e

quase que inapreensiacutevel e intocaacutevel A sua visibilidade soacute eacute passiacutevel para o proacuteprio sujeito

isto eacute para o aprendiz ou no aprendiz Dificilmente eu como promotor ou enquanto promotor

de aprendizagem posso dizer com exactidatildeo o momento da captaccedilatildeo do sujeito do elemento

aprendido posso supor atraveacutes de perguntas que faccedilo ou que tenho que responder dele mas

apenas eacute uma suposiccedilatildeo Eacute pois esta complexidade que vai tambeacutem fazer com que o acto de

aprender seja acima de tudo um acto divino um momento ou uma instacircncia do natildeo humano

Soacute aquele que diviniza-se chega a aprender consegue aprender e supera com isso a primeira

instacircncia do humano E divinizar-se significaria ter um autocontrolo sobre os impulsos do

saber os impulsos desenfreados do desejo de aprender e de assumir-se como o promotor de

aprendizagem Mas este processo soacute eacute possiacutevel com um povo ou com gente que agrave partida natildeo

rejeita preliminarmente a filosofia soacute eacute possiacutevel com gente que natildeo eacute dirigida e que natildeo eacute

paciente dos meacutedicos do povo como diria Nietzsche O aprender filosoacutefico apenas acontece

com e para gente satilde os ldquoenfermos que se contactam com a filosofia ficam ainda mais

enfermosrdquo porque de certa forma a filosofia soacute pode salvar e curar quem jaacute estaacute curado

quem reuacutene requisitos para a cura E foi assim que os gregos conseguiram fazer da filosofia a

sua proacutepria casa o seu mundo o seu lugar apesar de a filosofia vir de outros lugares virou a

casa dos gregos tornou-se ou transformou-se no elemento da definiccedilatildeo essencialmente grego

Os gregos souberam pegar naquilo que os outros povos abandonaram e fizeram dele o mais

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alto elemento do saber precisamente porque souberam utilizar laquoa arte de aprender

produtivamenteraquo utilizando para este efeito os seus saacutebios Contrariamente aos outros povos

que laquotecircm santos os gregos tecircm saacutebiosraquo diz Nietzsche e satildeo estes saacutebios que vatildeo fazer com

que a filosofia tenha um sentido profundo e original para o grego justificando assim a sua

aposta a sua protecccedilatildeo e a utilidade da sua futilidade

Apesar dos gregos terem podido trazer a filosofia das outras paradas orientais como diz

Nietzsche natildeo tiveram nenhuma moda que lhes pudesse ajudar ou facilitar as coisas Tiveram

que inventar a sua proacutepria imaginaccedilatildeo tiveram que filosofar com laquouma puberdade madura

onde brotava a fogosa alegria de uma vitoriosa e valente idade viril1raquo Em outras palavras

tiveram que superar a idade da infacircncia humana a infacircncia social e tiveram que se fazer

responsaacuteveis Esta eacute tambeacutem uma das condiccedilotildees de aprendizagem ou do aprender fazer-se

responsaacutevel emancipar-se e dar conta de si e dos outros laquopois quanto mais fazemos sobre as

coisas mais pensamos sobre elas ou mais desenvolvemos pensamentos sobre elasraquo O nosso

aprender estaacute relacionado com um espaccedilo concreto com um lugar com uma referecircncia com

um encontro-chegada-regresso No fundo o nosso aprender estaacute relacionado com uma histoacuteria

concreta ou com uma meta-histoacuteria estaacute relacionado com um padratildeo que nos vai dizer que as

condiccedilotildees para aprender exigem abc A tarefa de aprender natildeo eacute compatiacutevel com o tempo

apressado com o tempo que se assimila ao material O aprender eacute como ler um livro que estaacute

destinado a

[hellip] leitores tranquilos a homens que ainda natildeo foram arrastados pela vertiginosa pressa

da nossa agitada era e que ainda natildeo sentem o prazer idolatra quando olham para baixo das

sua rodas [hellip] quer dizer Haacute poucos homens Estes ainda natildeo estatildeo habituados a

estabelecer o valor de cada coisa segundo a poupanccedila ou os gastos do tempo estes laquoainda

tecircm temporaquo ainda lhes eacute permitido sem culpar-se de nada seleccionar e reunir as melhores

horas da jornada e os seus momentos mais fecundos e vigorosos para reflectir sobre o

futuro da nossa educaccedilatildeo estes podem ter a certeza que chegaram agrave noite de uma forma

proveitosa e digna a saber na meditation generis futuri (meditaccedilatildeo sobre o geacutenero futuro)

Um homem assim ainda natildeo se esqueceu de pensar enquanto lecirc ainda compreende o

segredo de ler entre linhas mais ainda eacute de uma natureza tatildeo prodigiosa que reflecte sobre

o lido talvez muito tempo depois de ter deixado o livro E sem duacutevidas natildeo para escrever

uma resenha ou outro livro mas simplesmente para reflectir2

O aprender seria portanto um viver sem pressa um estar sem pressa um existir sem pressa

Um ser no desconhecimento Mas sabemos que isso natildeo eacute possiacutevel Natildeo eacute possiacutevel saber sem

1Cf Friedrich Nietzsche Obras completas Vol 1 Filosofiacutea en la Eacutepoca Traacutegica de los Griegos Trad e introduc

Joan B et alt Tecnos Madrid 2011 p 574 2 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 549

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ser conotado natildeo eacute possiacutevel saber sem ser procurado natildeo eacute possiacutevel saber sem falar do que se

sabe natildeo eacute possiacutevel saber sem comunicar o sabido Mas dizemos que natildeo eacute possiacutevel e na

verdade eacute possiacutevel porque natildeo estamos a falar da mesma coisa saber natildeo eacute aprender Satildeo

duas coisas completamente distintas mas apesar de tudo uma coisa tecircm em comum a fuga da

fanfarronice e o desejo desenfreado de confrontaccedilatildeo A atestaccedilatildeo do aprendido a examinaccedilatildeo

do sabido Tecircm em comum aquilo que falta ao homem moderno o excesso de si a auto-

referecircncia desmedida O aprender conduz-nos ao desejo de estar tatildeo bem formados a tal ponto

de natildeo pensarmos mais em noacutes mesmos ou na nossa formaccedilatildeo e ateacute ao ponto de desprezarmos

a nossa proacutepria formaccedilatildeo Contrariamente ao homem moderno diz Nietzsche haacute que evitar

fazer de noacutes mesmos uma espeacutecie de homo mesura precisamente porque natildeo somos criteacuterio

seguro de nada natildeo somos criteacuterio seguro do absoluto Aqui o aprender deixa de ser um

criteacuterio e passa a ser uma meta e a meta aqui eacute que aquele que estaacute aprender se entregue

completamente com laquoa maacutexima confianccedila agrave tutela do autor de quem apenas pode falar a partir

da sua proacutepria ignoracircncia e da consciecircncia da ignoracircnciaraquo O aprendiz eacute aquele de quem

Nietzsche faz este tremendo apelo porque eacute nele que ele acredita

[hellip] Deixai-vos encontrar voacutes os isolados em cuja existecircncia acredito Voacutes

os altruiacutestas voacutes que padeceis em voacutes mesmos as dores e as perversotildees do

espiacuterito (hellip) Voacutes os contemplativos cujo olhar natildeo palpa com pressurosa

suspeita o externo das coisas mas sim sabe encontrar a entrada ao nuacutecleo da

essecircncia Eu vos convoco apenas para esta vez natildeo vos escondais nas

cavernas do vosso retiro e da vossa desconfianccedila Sejam quando menos

leitores deste livro para mais em frente com os vossos feitos acabar com ele

e deixa-lo no esquecimento Compreendeis que este livro estaacute destinado a ser

o vosso pronuacutencio quando voacutes mesmos com as vossas armas vos apresenteis

na palestra [hellip]3

Ao seu modo Nietzsche apresenta aqui a figura do aprendiz o docente o estudante e todos os

inquietos de espiacuterito como aqueles que satildeo isolados que satildeo altruiacutestas e que padecem das

dores da perversatildeo do espiacuterito O acto de aprender eacute incompatiacutevel com o tremendo de

confusatildeo eacute incompatiacutevel com o egoiacutesmo e com o egocentrismo e eacute incompatiacutevel com o

regradamente certo O aprender exige ruptura porque supotildee adaptaccedilatildeo a uma nova era a uma

nova realidade exige encontrar o outro dentro e fora de mim e exige um prestar atenccedilatildeo a

mim mesmo que natildeo seja necessariamente um narcisismo O aprender exige que sejamos uns

3 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 550

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contemplativos sem pressa de conhecer e de chegar sem pressa de afirmar ou de concluir

apenas se espera que sejamos contemplativos que admiram para melhor conhecer e trazer a

utilidade profunda mas sombria que estaacute aprisionada nas cavernas das nossas pressas O

aprender exige que a nossa contemplaccedilatildeo nos conduza ao encontro da essecircncia daquilo que

deve ser objecto do aprender Por isso cada vez que noacutes que estamos no eterno caminho de

aprender nos confrontamos com um livro com uma obra temos a possibilidade de sair dos

nossos retiros contraditoacuterios das nossas cavernas e das nossas desconfianccedilas Temos a

possibilidade de dar a conhecer a nossa opiniatildeo eacute o nosso pronuacutencio na palestra que pode

naturalmente chocar com os dois modelos do aprender propostos pela cultura educativa

moderna a saber

Por um lado a educaccedilatildeo como o espaccedilo da proposta do aprender deve ser extensiacutevel a todo o

territoacuterio por outro o laquoimpulso de reduccedilatildeo e debilitamento do mesmoraquo Desde muito cedo

quando a educaccedilatildeo comeccedilou a ser vista como um elo importante o homem apesar de alguns

constrangimentos sempre soube que seria de muito mais valia que ela fosse extensiacutevel para

todo o territoacuterio independentemente das questotildees poliacuteticas culturais econoacutemicas e religiosas

Natildeo obstante a sua extensatildeo sempre dependeraacute da vontade do Estado da disponibilidade do

Estado enfim da autorizaccedilatildeo do Estado Os gregos que fazem parte dos povos que pensaram

a educaccedilatildeo depois dos egiacutepcios e dos feniacutecios assumiram a inseparabilidade destes dois

momentos a educaccedilatildeo que deve chegar a todo o territoacuterio e a educaccedilatildeo que para ser educaccedilatildeo

tem que ser controlada pelo Estado A educaccedilatildeo deve ser controlada pelo Estado mas natildeo

necessariamente executada pelo Estado Em A Poliacutetica Aristoacuteteles foi muito bem claro em

dizer que a tarefa de educaccedilatildeo se bem eacute da comunidade natildeo obstante compete em primeiro

lugar ao Estado e soacute na impossibilidade deste de cobrir todas as partes eacute que o particular

assume tambeacutem ele a tarefa de educar Educar e por conseguinte o aprender desde este

ponto de vista nasce com um problema eacute um problema natildeo apenas no sentido de delegaccedilatildeo

de autorizaccedilatildeo mas tambeacutem no sentido da proacutepria autodestruiccedilatildeo Quem aprende destroacutei-se e

autodestroacutei-se na medida em que vai pondo de lado ou vai equacionando os fundamentos do

conhecimento anterior agrave sua formaccedilatildeo agrave sua educaccedilatildeo Como diz Fullat citado por Carlos

Francisco de Sousa Reis ldquoO acto educador especificamente humano eacute no seu nuacutecleo e fonte

entitativa confrontaccedilatildeo de duas consciecircncias confrontaccedilatildeo constitutivamente violenta4rdquo Para

Carlos Francisco Fullat procura aqui justificar a partir dos modelos de habilidades emperia a

forma como a educaccedilatildeo pode apresentar-se como acto educativo violento ou simplesmente

4Cf Carlos Francisco de Sousa Reis Educaccedilatildeo e cultura mediaacutetica Anaacutelise de implicaccedilotildees deseducativas

Acircncora editora Lisboa 2014 p 45

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como condiccedilatildeo da violecircncia Fullat segundo o nosso autor para encontrar os fundamentos da

educaccedilatildeo como condiccedilatildeo de violecircncia analisa inicialmente o surgimento ontoloacutegico da

civilizaccedilatildeo a partir de trecircs perspectivas a perpectiva do animal faber a perspectiva do animal

symbolicum e a perspectiva do animal sociale A partir destas trecircs perspectivas ele conclui

que a violecircncia eacute constitutiva de todos os actos educativos O ponto de partida da educaccedilatildeo eacute

visto portanto para Fullat desde uma perspectiva negativa desde uma antropologia negativa e

desde uma possibilidade eacutetica negativa Natildeo pode haver uma educaccedilatildeo que natildeo seja sobretudo

uma acccedilatildeo que arraste a negatividade consigo mesma Isto eacute uma acccedilatildeo que procura desfazer-

se do estado da ignoracircncia anterior O estado ou acccedilatildeo educativa eacute uma acccedilatildeo de

ldquodeplacementrdquo para um novo siacutetio um novo mundo uma nova aventura

As leituras ou melhor os textos utilizados por Fullat como exemplos patenteiam

naturalmente esta negatividade na relaccedilatildeo educativa Eacute o caso da visatildeo hobbesiana freudiana

e de Sartre das relaccedilotildees humanas que satildeo muitas vezes relaccedilotildees de poder da negatividade

isto eacute onde a manutenccedilatildeo do poder implica a perda do outro ou do espaccedilo do outro Nestes

autores destacam-se duas perspectivas inconciliaacuteveis ldquoo egoiacutesmo de ter e o sadismo de

dominarrdquo A educaccedilatildeo eacute vista como uma necessidade desenfreada de ter e ter sempre e cada

vez mais ao mesmo tempo que este desejo incontrolado eacute tambeacutem alimentado com a outra

necessidade de dominar e controlar tudo a todo custo Estas duas febres como lhe chama

Fullat resultam de uma eacutetica hedoniacutestica onde no campo hobbesiano o prazer eacute sinoacutenimo da

dominaccedilatildeo ldquoToda a eacutetica de Hobbes depende do seu pressuposto fundamental a inclinaccedilatildeo

geral da Humanidade para um desejo perpeacutetuo e sem descanso de adquirir poder e mais poder

desejo esse que soacute termina com a morte O ser humano eacute egoiacutesta (hellip) e a fim de poder estar

preparado para alcanccedilar o que deseja tem de procurar aumentar sempre cada vez mais o seu

poder5rdquo Natildeo poderia ter havido civilizaccedilatildeo se natildeo houvesse uma agressividade natural diria

Fullat de Francisco de Sousa O que noacutes consideramos como civilizaccedilatildeo teria sido aquilo que

pensadores como Hobbes ou Rousseau teriam visto como um princiacutepio do pacto natildeo pacto o

pacto simulado no caso de Rousseau A civilizaccedilatildeo nasce a partir da distorccedilatildeo de uma

realidade anterior e para permanecer deve tambeacutem continuar a distorcer esta mesma realidade

para poder construir um poder de dominaccedilatildeo e do egoiacutesmo Neste acircmbito a educaccedilatildeo aparece

como o aparelho protector do Estado manipulador e violento que utiliza as ideologias como a

praccedila da fecundaccedilatildeo das suas manipulaccedilotildees E porque o homem procura sobretudo ser feliz

diz Aristoacuteteles entatildeo muitas vezes natildeo escolhe os meios para ser feliz isto eacute natildeo estaacute

5 Cf Marques 2000 120 Apud Carlos Francisco de Sousa 2014 46

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disposto a abdicar de alguns meios que podem ser uacuteteis para a sua felicidade Eacute o caso da

felicidade pelo trabalho diraacute Francisco de Sousa mas o trabalho exerce uma forccedila contraacuteria

sobre a natureza e eacute o caso da educaccedilatildeo onde no educar

ldquoO homem exige a educaccedilatildeo mas esta implica a violecircncia da programaccedilatildeo

geneacutetica e da programaccedilatildeo social Educar eacute uma luta de consciecircncias em que

o educador sempre investe sobre o educando desde a cultura que se alimenta

da repressatildeo social imposta a Eros (o prazer) e Thanatos (a agressividade)6rdquo

Se bem podemos ver as teorias pessimistas como um exagero da negaccedilatildeo humana no sentido

do encontro pleno ainda assim nesta possiacutevel negaccedilatildeo do encontro pleno entre os humanos

nasce a possibilidade da vida do outro isto eacute o mesmo ldquosujeito que pode trazer a morte do

outro tambeacutem traz a sua vidardquo no embate do encontro entre os diferentes haacute sempre uma

possibilidade da nova vida de um novo existir e a educaccedilatildeo eacute precisamente tudo isso o

encontro dos diferentes que tem como fim ajudar a criar uma nova vida fazer nascer uma

nova existecircncia uma nova oportunidade Porque segundo autores como Fullat diz Francisco

de Sousa natildeo se pode falar de educaccedilatildeo laacute onde natildeo haacute consciecircncia Apenas haacute educaccedilatildeo

porque haacute consciecircncia porque existe consciecircncia porque haacute dois encontros e porque apesar

do embate entre os dois nenhuma delas deixa perder a outra natildeo eacute um encontro ou um

embate para desgarrar o outro antes pelo contraacuterio este embate eacute feito para estabelecer o

outro no outro sem fazer desaparecer a alteridade Mas isso soacute eacute possiacutevel justamente porque

no lugar da violecircncia que poderia ter conduzido a uma ldquorobotizaccedilatildeordquo foi introduzido o factor

de cuidado diz Carlos Francisco de Sousa Eacute portanto o cuidado que vai fazer com que haja

um encontro entre as duas consciecircncias Como diz Hegel de Morin (2005 105 Apud Carlos

Francisco de Sousa 2014 49) ldquoa consciecircncia de si soacute atinge a sua satisfaccedilatildeo numa outra

consciecircncia de sirdquo Dito de outra forma em palavras de Fullat de Carlos Francisco de Sousa

ldquosoacute depois da descoberta do eu pelo enfrentamento do tu se daacute a verdadeira relaccedilatildeo

educativardquo Portanto natildeo pode haver educaccedilatildeo na ausecircncia do outro natildeo pode haver

educaccedilatildeo na ausecircncia do interlocutor e do intermediaacuterio e natildeo pode haver educaccedilatildeo na

ausecircncia de uma situaccedilatildeo educativa

A fase educativa eacute acompanhada pelo decliacutenio paulatino de amestramento porque supotildee a

chegada da consciecircncia supotildee a responsabilidade pela capacidade de escolher e de decidir

supotildee a autenticidade do SIM e do NAtildeO supotildee uma certa comunicaccedilatildeo de intimidade no

6 Cf Francisco de Sousa cit

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dizer de Jaspers de Carlos Francisco de Sousa O sim e o natildeo do educando jaacute tem um patamar

um pouco mais alto que o sim e o natildeo daquele que estaacute na fase de amestramento A pugna jaacute

tem um caraacutecter mais real a dor eacute mais audiacutevel porque eacute vivida e sentida por aquele que tem

capacidade fiacutesica de desforrar violecircncia sobre o seu mestre sobre o seu guia ou sobre aquele

que lhe dirige Eacute diferente da dor da infacircncia que eacute vivida por e pela compaixatildeo do outro no

outro Os pais e os parentes proacuteximos podem responder pela dor da crianccedila enferma levando-a

ao meacutedico ou ao especialista Sozinha natildeo poderia fazecirc-lo eacute por isso que dizemos que a dor

da infacircncia eacute uma dor de solidariedade compassiva isto eacute precisa de um terceiro para ser

actualizada ou minimizada A do adulto tambeacutem pode precisar mas com muito menos

coerccedilatildeo que a da crianccedila ou a do adulto-crianccedila Esta simbologia tambeacutem pode ser aplicada agrave

relaccedilatildeo do educador e do educando que estatildeo quase sempre inicialmente em perspectivas

diferentes em dizibilidades diferentes talvez por isso autores como Fullat falam do caraacutecter

agoacutenico da educaccedilatildeo ou da educabilidade Assumem que natildeo eacute possiacutevel educar sem existecircncia

de um processo agoacutenico porque haacute encontro de dois tipos de saberes que podem ser

completamente diferentes sobre o mesmo saber ou sobre o mesmo tema O saber daquele que

ensina e o saber sobre o saber daquele que vai aprender ou que estaacute para aprender satildeo coisas

completamente diferentes passando ou acontecendo no mesmo espaccedilo A aprendizagem da

educabilidade exige sempre uma proposta e um tempo de adaptaccedilatildeo retroactivo para garantir a

apropriaccedilatildeo do processo da aprendizagem isto eacute para garantir o processo da refinaccedilatildeo do

conhecimento em outras palavras para atingir a compreensatildeo Esta etapa da compreensatildeo eacute

feita de uma transiccedilatildeo a outra isto eacute passamos de uma ldquocivilizaccedilatildeo de resposta a uma

civilizaccedilatildeo de perguntasrdquo porque o tempo de respostas definitivas morreu

O aprender com profundidade exige que natildeo nos contentemos apenas com as pequenas

resoluccedilotildees como diz Andreacute Giordan mas que consigamos apoderar-nos dos enunciados para

debatecirc-los e com eles transformar a relaccedilatildeo do saber atraveacutes de argumentos e contra-

argumentos Quem aprende eacute obrigado a ter argumentos insiste Giordan Quem aprende lanccedila

duras inquisiccedilotildees sobre o processo eacute um constante inquieto

laquoDe que estamos exactamente a falar O que queremos mostrar Estou

convicto de que o que estou a dizer eacute verdade eis porquecircraquo Ele descobre o

que eacute uma demostraccedilatildeo os argumentos que eacute necessaacuterio accionar para

convencer a importacircncia do raciociacutenio e o sentido preciso das palavras No

fim do ensino secundaacuterio aqueles que aprendem nem sempre tecircm

consciecircncia que uma hipoacutetese na matemaacutetica (onde ela eacute um dogma que natildeo

podemos transgredir) natildeo tem o mesmo estatuto que no resto das ciecircncias

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onde ela natildeo eacute senatildeo uma explicaccedilatildeo entre outras explicaccedilatildeo que adoptamos

e adaptamos durante o tempo em que procuramos meios para a corroborar ou

informar Controlar a polissemia de um tal vocabulaacuterio evita muitas

confusotildees7

Quem aprende predispotildee-se a ser bravado e podado predispotildee-se a ser limitado ao mesmo

tempo que rompe a proacutepria limitaccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo da teacutecnica e de habilidades

predispotildee-se a demostrar que apesar das limitaccedilotildees ainda assim pode criar pode inventar e

pode inovar saindo precisamente do seu campo de conforto Qualquer investigaccedilatildeo mesmo

sendo apenas inicial tem como fim tirar-nos do nosso campo do conforto tem que como

objectivo tirar-nos da nossa aldeia e conduzir-nos para a cidade onde corremos o risco de nos

perder implica actualizar o nosso preconceito em relaccedilatildeo a algo implica questionar as

evidecircncias laquoQuanto mais aquele que aprende reflecte sobre o tratamento de uma tarefa mais

ele referencia e repara nos erros nos limites e nos disfuncionamentos Ele torna-se

rapidamente capaz de analisar os acontecimentos em curso e explicitar a estrateacutegia utilizada e

a sua pertinecircncia Comeccedila a emergir uma eficaacutecia oacuteptima8raquo A compreensatildeo e a preensatildeo do

conhecimento natildeo nos deixa indiferentes faz de noacutes outro laquooutroraquo outra realidade que apesar

da existecircncia autoacutenoma assume que soacute pode existir se tiver possibilidade de se comparar com

as outras e se puder ser referenciada Eacute por isso que o nosso modelo de aprender tem que

acompanhar se possiacutevel o enquadramento das concepccedilotildees e tem que actualizar os conceitos

a sua marginalidade e o seu centrismo Pois haacute que ter em conta que ningueacutem aprende sem

antes fazer um trabalho profundo sobre as suas proacuteprias concepccedilotildees (diz Andreacute Giordan) e

sobre as concepccedilotildees dos outros onde ele se apresenta como porta-voz ou como mediador Eacute

por isso que em algumas situaccedilotildees vemos que eacute muito complicado ser porta-voz ou mediador

educativo porque vamos tentar transmitir algo que estaacute fora da nossa dizibilidade cultural

fora do nosso quadro referencial fora do nosso imaginaacuterio cultural Natildeo posso explicar o

rigor do Inverno se natildeo tenho experiencia do Inverno rigoroso porque natildeo disponho dos

dados fortemente caracteriacutesticos do Inverno

A minha explicaccedilatildeo deve superar a mera imagem informativa ou elucidativa da realidade A

minha informaccedilatildeo deve ser a mais real possiacutevel A imagem natildeo eacute a minha realidade eacute a

realidade daquela realidade eacute a realidade da fotografia tirada por mim ou por algueacutem Aqui a

fotografia tem mais ou menos a mesma funccedilatildeo que o vocabulaacuterio que estaacute como a porta de

entrada para a compreensatildeo oral pode ajudar ou pode complicar a compreensatildeo atraveacutes de

7 Cf Andreacute Giordan Aprender Editora Horizontes Pedagoacutegicos Lisboa 2007 p 162

8 Cf Idem

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uma falsa intermediaccedilatildeo de essecircncia da acccedilatildeo cultural A palavra vai ter um peso muito

importante nesta transiccedilatildeo porque pode permitir que cheguemos ou que fiquemos pelo

caminho pode manipular duplamente os conceitos A palavra usada na transmissatildeo deve ser

suficientemente aberta para permitir ao aluno viver a sua liberdade na hora da escolha deve

sentir-se familiarizado com o tema que quer escolher ou que quer trabalhar A obtusidade da

palavra pode tambeacutem ser um factor muito importante natildeo apenas na apreensatildeo dos conteuacutedos

mas tambeacutem na proacutepria escolha dos conteuacutedos por afinidade por gosto por paixatildeo ou ateacute por

curiosidade Quer o docente e quer discente tecircm que saber que este processo natildeo cabe num

frasco de linearidade Haacute muacuteltiplas facetas de ensinar e muacuteltiplas facetas de aprender Mas

entre ambas haacute uma faceta que eacute transversal que eacute desejaacutevel que seja transversal eacute a faceta

do ensinar honesto ou com a honestidade a de aprender honesto ou com a honestidade a de

que cada um tem que ser aquilo que eacute para dar e receber

Esta honestidade eacute muito importante para ajudar a fazer com que quer o educador quer o

educando caminhem para um espaccedilo da educaccedilatildeo liberal ldquoA educaccedilatildeo liberal eacute uma

educaccedilatildeo na cultura e para cultura9rdquo diz Leo Strauss o ldquoproduto terminado de uma educaccedilatildeo

liberal eacute um ser humano cultivadordquo insiste Strauss Uma educaccedilatildeo na cultura e para cultura

que nos conduza agrave formaccedilatildeo de um ser humano cultivado soacute pode ser feita inicialmente com

um fundamento muito forte da honestidade do cuidado e de autocuidado Strauss vai buscar a

explicaccedilatildeo do termo cultura a partir da sua origem latina (cultura) que se refere em primeiro

lugar agrave agricultura diz ele e no seu sentido derivado e actual (insiste ele) quer dizer ou

refere-se ao cultivo da mente Ora insiste o nosso autor assim como a terra precisa de

lavradores a mente precisa de mestres mas estes mestres soacute podem ser mestres ou

reconhecidos como mestres porque para aleacutem da sua periacutecia satildeo acima de tudo honestos

iacutentegros rectos e raros Eacute por isso que eacute mais faacutecil encontrar agricultores do que os mestres

diz Strauss sobretudo os mestres que natildeo satildeo disciacutepulos isto eacute os livros os grandes livros

No acircmbito da educaccedilatildeo liberal o estudante natildeo pode portanto estar separado dos livros dos

grandes livros e porque natildeo pode estar separado dos livros ele vai adonar-se deles e vai criar

condiccedilotildees para poder ajudar os outros estudantes menos experimentados remata Strauss

Tudo isso eacute um processo de honestidade Dedicar-se a estudar com profundidade as grandes

obras os grandes livros que muitas vezes dizem coisas completamente desconcertantes com a

sua eacutepoca o seu espaccedilo ou o seu meio cultural poliacutetico ou religioso Eacute por isso que a

educaccedilatildeo liberal natildeo pode ser entendida como um simples doutrinamento10 Eu natildeo posso

9 Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Katz editores Buenos Aires 2007 p 13

10 Cf Cit p 14

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pretender ou achar que estou a educar simplesmente porque estou a ideologizar as pessoas as

crianccedilas os jovens etc vou educar se crio cultura e se transformo as pessoas em cultura e na

cultura verdadeiramente adquirida com a honestidade

Strauss abre a possibilidade para que o termo cultura tambeacutem seja discutida porque cada

regiatildeo de planeta tem a sua proacutepria cultura Noacutes temos a nossa cultura enquanto africanos e

dentro do africano tambeacutem haacute vaacuterias culturas e subculturas (mesmo sabendo que um

socioacutelogo apressado emitiria imediatamente a sua reclamaccedilatildeo sobre subculturas11) O ideal na

educaccedilatildeo liberal eacute que a cultura natildeo seja uma pequena janela que natildeo seja apenas um

singulare tantum diz Strauss mas que seja e que procure ser utilizada no plural que aceite e

assuma o sentido relativo que lhe permite ser discutida Com a excepccedilatildeo dos loucos todos

somos seres de cultura insiste Strauss apesar da maacute compreensatildeo e da maacute interpretaccedilatildeo que

isso causa agraves vezes Natildeo obstante as maacutes interpretaccedilotildees e as maacutes compreensotildees fazem parte

do preccedilo que uma educaccedilatildeo liberal tem que pagar e tem que correr A educaccedilatildeo democraacutetica eacute

um preccedilo caro no acircmbito da educaccedilatildeo liberal natildeo apenas para o acircmbito acadeacutemico mas

sobretudo para o acircmbito poliacutetico onde o poliacutetico tem que justificar e merecer o voto dos

eleitores No nosso caso concreto o caso africano e de maneira particular a Aacutefrica lusoacutefona a

democracia natildeo se fez muito sentir natildeo estaacute a ser muito acompanhada pela educaccedilatildeo A

proacutepria expressatildeo democracia eacute vista e usada com ambiguidade Mas voltaremos a esta

anaacutelise num outro momento

A Democracia e Educaccedilatildeo

O termo democracia deve ser dos termos ou das expressotildees mais utilizadas a niacutevel poliacutetico e

fora do campo poliacutetico Eacute tambeacutem provavelmente dos termos poliacutetico-sociais mais ingratos

mais incompreensiacuteveis cujo uso eacute muitas vezes inadequado O saacutebio fala de democracia o

especialista tambeacutem mas natildeo eacute por isso que quem natildeo sabe da democracia deixa de falar dela

e isso faz com que ela seja um campo de todos e de ningueacutem Um campo do saacutebio do

especialista e do analfabeto

E eacute sobretudo com este uacuteltimo que vamos trabalhar e falar na democracia moderna Os paiacuteses

lusoacutefonos como muitos paiacuteses de Aacutefrica foram apanhados numa encruzilhada forccedilada da

virada do mundo Do mundo econoacutemico do mundo poliacutetico que tem que obedecer ao mundo

econoacutemico e tal como acontece nas regras e jogos de poderes tiveram que aceitar e entrar

para um jogo e uma regra que natildeo lhes era de todo favoraacutevel Tinham que dar espaccedilo real aos

11

Cf Cit p 14 laquoEacute todo o padratildeo comum de conduta proacutepria de um grupo humanoraquo

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partidos que estavam na oposiccedilatildeo e natildeo era possiacutevel fazecirc-lo realisticamente porque natildeo se

deixa de ser um Partido-Estado de um dia para outro e tinham que lutar contra a pobreza e

contra o analfabetismo as duas inimigas principais da democracia moderna e natildeo havia

garantia de que pudessem fazecirc-los nos termos que a democracia pensada pelos outros

propunha

Portanto a leitura que se deve fazer destes 25 anos da democracia nestes paiacuteses natildeo seria

naturalmente uma leitura triunfalista mas antes pelo contraacuterio uma leitura analiacutetica

Perguntar-se se o que chamamos democracia desde o iniacutecio foi verdadeiramente democracia

A leitura triunfalista eacute uma leitura de auto-regozijo de auto-suficiecircncia e de triunfalismo

nacionalista que faz uma espeacutecie de apagatildeo naquilo que eacute ou sobre aquilo que eacute a memoacuteria do

difiacutecil que roccedila ao fracasso e se esquece que a democracia eacute um regime que eacute feito para

triunfar perdendo ou fracassando Natildeo se pode esperar outra coisa da democracia senatildeo o

triunfo porque aparentemente eacute um regime onde todo o mundo tem a possibilidade e a

oportunidade de decidir de decidir sobre si mesmo e de decidir com o uso da influecircncia sobre

os outros E eacute precisamente na eventualidade de que esta influecircncia sobre os outros venha a

concretizar-se que fez com que os grandes teoacutericos do poder na antiguidade tivessem medo

da democracia laquoO que eacute que seria daquele regime onde o povo eacute quem mandaraquo

Perguntavam eles O que eacute que seria dos ricos da elite dos intelectuais da induacutestria etc Uma

seacuterie de questotildees do acircmbito de interesse particular se punha para chamar a atenccedilatildeo dos

particulares para natildeo aderir a algo que lhes podia fazer mal e fazer mal aos seus negoacutecios Eacute

por isso que a democracia natildeo eacute um poder do povo mas um poder de elite que eacute criado dentro

do povo sem que para isso o povo se decirc conta Os criacuteticos como Platatildeo sempre olharam para

esta elite que vem do povo como algo que sempre seraacute mal preparada para assumir com

distinccedilatildeo algo que eacute muito importante para o destino do paiacutes por isso nunca apoiaraacute um

regime democraacutetico Mas a democracia que eacute um regime triunfalista eacute uma democracia

falaciosa porque natildeo se pode esperar um triunfo na maioria ou da maioria uma vez que a

verdadeira maioria natildeo negocia natildeo dialoga apenas remete para o ponto de partida para a

regra do jogo inicial ainda que esta regra do jogo seja escrita e feita por ela de forma

maliciosa Eacute por isso que quando se fala da vitoacuteria da democracia no sentido da maioria

democraacutetica temos que olhar para esta maioria como aquela que mesmo sendo a maioria

deixou de secirc-la voluntariamente para se revestir do risco de ter que dar explicaccedilotildees de ter que

justificar-se de ter que sujeitar-se a ouvir quem perdeu quem o povo natildeo quer natildeo escolheu

e natildeo conta com ele de forma expliacutecita

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O triunfo da democracia maioritaacuteria natildeo eacute um triunfo numeacuterico mas sim um triunfo da

gestatildeo das emoccedilotildees e dos egos do poder e da poliacutetica daqueles que o povo indicou para

fracassar e aqueles que indicou para o sucesso um certo sucesso de insucesso porque tudo eacute

aprazo e eacute o proacuteprio povo que em primeiro plano natildeo respeita e nunca respeitou o prazo

Exige as contas antes do fim do prazo que ele estipulou e natildeo aceita justificaccedilotildees que natildeo

satisfaccedilam a sua proacutepria demanda os outros se transformam para ele em indiviacuteduos e ele em

Estado que tem que fazer com que a lei seja cumprida Uma tentativa de saiacuteda para esta

realidade para esta situaccedilatildeo tem que passar necessariamente pela Educaccedilatildeo eacute por isso que

alguns pensadores da democracia como eacute o caso de Gianfraco Pasquino defendem que a luta

da democracia moderna eacute uma luta que consiste em satisfazer a educaccedilatildeo e eliminar a

pobreza Natildeo se pode falar de uma democracia triunfalista quando se tem medo de olhar para

a memoacuteria que apresenta um nuacutemero insustentaacutevel do analfabetismo e de pobreza O triunfo

da democracia moderna eacute um triunfo que passa pela lucidez e um sono tranquilo de barriga

cheia natildeo da elite mas daqueles que sem ser elite sentem que algueacutem cumpriu com um

direito deles o direito de natildeo passar fome e de natildeo morrer analfabeto E esta expectativa

corresponde com a democracia moderna em alguns momentos porque eacute uma expectativa que

soacute pode ser realizada pela virtude por um regime virtuoso Em algum momento acreditamos

ou se diz que a democracia eacute um regime que depende da virtude diz Strauss Um regime onde

todos ou a maioria dos homens satildeo saacutebios uma sociedade onde todos os adultos satildeo saacutebios e

virtuosos uma sociedade aristocraacutetica uma democracia aristocraacutetica No fundo um grande

mal-entendido Aparentemente eacute o que nos teraacute acontecido em alguns momentos quando

recebemos a democracia Olhamos para ela como o estado de realizaccedilatildeo perfeita de todos e

para todos Olhamos para ela quase como que uma espeacutecie de governo dos deuses Com

efeito Aristoacuteteles tinha razatildeo quando alertou que a natureza humana natildeo permite que

olhemos para nenhum governo como lugar de possiacutevel perfeiccedilatildeo como lugar seguro porque eacute

a gestatildeo humana que vai fazer com que um lugar um governo ou um Estado seja tido como

seguro ou natildeo A gestatildeo humana das coisas eacute volaacutetil

Quando Aristoacuteteles e outros teoacutericos pensaram no indiviacuteduo viram nas instituiccedilotildees condiccedilatildeo

indispensaacutevel para responder aos anseios deste mesmo indiviacuteduo eacute por isso que criaram

maneiras formas instacircncias e institutos para permitir uma salvaguarda real do indiviacuteduo A

cidade natildeo eacute um espaccedilo natural do indiviacuteduo diz Aristoacuteteles porque implica regras

completamente diferentes das regras individuais das regras da arbitrariedade das regras da

autonomia ilimitada e das regras da natildeo obediecircncia A cidade surge portanto para dar corpo a

todo este mosaico de regras de normas de paixatildeo mas com ordem e comando unificado num

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basanos num basileus que soacute eacute independente porque obedece agraves leis porque cumpre as leis

Este propoacutesito escapou-nos enquanto africanos que festejaram a chegada da democracia e

enquanto africanos que ensinam e dirigem o (s) paiacutes (es) Olhamos para democracia tal como

olhaacutevamos para a independecircncia sempre com total ausecircncia de prestaccedilatildeo de contas e sempre

com a expectativa irreal da igualdade Mas a realidade eacute um fenoacutemeno que se justifica por si

mesmo e eacute nesta perspectiva que a Ciecircncia Poliacutetica se debate diz Strauss entre tentar

encontrar a democracia na sua geacutenese e a democracia tal como a realidade se lhe apresenta A

nossa luta eacute perceber a democracia tal como a realidade a apresenta naturalmente fazendo

uma leitura histoacuterica daquilo que ela foi de como surgiu mas sobretudo ter em conta que ela

tem uma aplicaccedilatildeo e uma aplicabilidade epocal Cada eacutepoca cultiva a sua proacutepria democracia

diz a sua proacutepria democracia e interpreta a sua proacutepria democracia A sua epocalidade renova-

se diariamente constroacutei-se na sua proacutepria construccedilatildeo-autodestruiccedilatildeo em nome da proacutepria

democracia e da correspondecircncia epocal

Somos da opiniatildeo de que Aacutefrica deve criar um estilo proacuteprio para a sua democracia Deve

criar a sua proacutepria democracia que se enraiacuteza nas suas culturas que tem em conta a sua

proacutepria particularidade e multiplicidade que tem em conta o papel das autoridades

tradicionais que muitas vezes sentem-se completamente perdidas no acircmbito do

enquadramento democraacutetico deve ter em conta o papel fulcral da mulher de todas as esferas

em Aacutefrica

No nosso contexto sabemos que ldquoa mulher africana eacute a porta de todas as entradas e a saiacuteda

de nenhuma saiacuteda natildeo autorizada A mulher africana eacute alegria de um continente com as suas

vaacuterias naccedilotildees e a sua uacutenica raccedila ela eacute o fracasso da poliacutetica e do poder quando se faz machista

e eacute a vitoacuteria da poliacutetica e do poder quando se faz humana quando se torna ouvinte e se

capitaliza como espaccedilo de confianccedila e de reconhecimento de todos Natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel

sem estes atributos da mulher natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel sem uma poliacutetica que escuta a mulher e

que permita que a sua opiniatildeo natildeo seja apenas um mero disfarce do politicamente correcto e

do eticamente aceitaacutevel A Aacutefrica possiacutevel eacute a Aacutefrica madrugadora como a preocupaccedilatildeo da

mulher para com o seu lar os seus filhosas o seu marido e toda a famiacutelia alargada A Aacutefrica

possiacutevel eacute a Aacutefrica da ternura e do pragmatismo encarnado pela mulher atraveacutes dos diversos

cuidados que presta ao seu lar e agrave comunidade no seu dia-a-dia Natildeo poderemos amar

verdadeiramente Aacutefrica se continuarmos a desprezar as suas mulheres e suas crianccedilas se a

opiniatildeo da mulher continuar a ser uma espeacutecie de favor que a comunidade lhe faz porque natildeo

quer contar com ela em termos objectivos porque lhe pintou com preconceitos de

instabilidade de inseguranccedila e de fragilidade Porque olha para ela como o problema de todos

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os problemas o mal de todos os males e portanto aquela com quem natildeo se pode nem se deve

contar na primeira hora das tomadas das decisotildees Eacute a invenccedilatildeo dos preconceitos e da

prostituiccedilatildeo ideoloacutegica que depois acaba por ser direccionada agrave mulher atraveacutes dos

mecanismos do ldquopoder positivo natildeo legisladordquo o direito criado ou assumido a partir dos actos

de todos os dias

Se tivermos em conta que em Aacutefrica as mulheres satildeo mais de metade da populaccedilatildeo do

continente e a niacutevel global as mulheres de todo o mundo satildeo a metade de toda a populaccedilatildeo

mundial entatildeo poderemos com maior propriedade dar valor agrave figura da mulher natildeo soacute para o

nosso continente mas a niacutevel global Sabemos que de cada vez que a mulher ganha um

direito conquista um direito os seus ganhos e as suas conquistas cimentam a estabilidade

local e regional para a paz e para o desenvolvimento geopoliacutetico porque a mulher no seu

exerciacutecio de responsabilidade eacute muito mais persuasiva e honra com brilho o seu compromisso

Sabemos graccedilas agrave histoacuteria etnograacutefica e histoacuteria dos acontecimentos que muitas das

reivindicaccedilotildees das mulheres africanas antecederam uma boa parte das reivindicaccedilotildees

femininas no Ocidente moderno e contemporacircneo A descoberta do continente africano pelos

europeus tambeacutem conheceu a resistecircncia feminina ao lado dos homens africanos e isto

antecede a luta feminista e a luta a auto-afirmaccedilatildeo do geacutenero no Ocidente O fracasso da

Aacutefrica reside na ldquoahistorizaccedilatildeordquo do papel das suas mulheres reside na negaccedilatildeo da histoacuteria

positiva das suas mulheres reside no facto de encurtar as epopeias femininas das suas

heroiacutenas Paiacuteses como Ruanda demostram isso todos os dias Ruanda poacutes genociacutedio teve 56

das mulheres nos seus respectivos governos e todos noacutes temos notiacutecias e conhecimento da

solidez da economia e da poliacutetica de Ruanda

Temos consciecircncia de que apesar do brilho do bem-fazer e do saber-fazer da mulher africana

ainda assim haacute muitos obstaacuteculos que ela tem que superar entre eles o proacuteprio preconceito

machista Mas mesmo sabendo do preconceito machista cremos que o preconceito maior

com o qual ela se debate eacute o preconceito cultural e religioso para uma boa parte de Aacutefrica que

tem a ver com a tradiccedilatildeo negativa Estamos por exemplo a pensar na questatildeo da mutilaccedilatildeo

genital nos casamentos forccedilados e de conveniecircncia clacircnica o traacutefico das crianccedilas do sexo

feminino e o preconceito sobre a mulher que padece de viacuterus de VIH Estes males e

preconceitos satildeo mais prejudiciais agrave condiccedilatildeo feminina da mulher africana do que qualquer

mal que possa abater sobre ela Natildeo haacute um mal pior que o mal do preconceito e natildeo haacute cultura

mais enferma que a cultura preconceituosa

Aacutefrica soacute pode resgatar a sua cultura se lutar contra os seus preconceitos negativos elevando a

condiccedilatildeo da mulher e criando-lhe instrumentos e condiccedilotildees para lutar contra o mal que a

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cultura e tradiccedilatildeo criaram para ela e contra ela muitas vezes sem pedir a sua opiniatildeo O

horizonte possiacutevel para Aacutefrica eacute aquele de destruiccedilatildeo positiva dos preconceitos culturais

prejudiciais para as suas mulheres e crianccedilas Haacute que possibilitar que os dogmas culturais

intelectuais e religiosos sejam questionados para o bem da salvaguarda da proacutepria cultura da

proacutepria religiosidade e da proacutepria intelectualidade A poliacutetica e os poliacuteticos que tomarem isso

como uma iniciativa singular salvaratildeo todo o continente africano12

rdquo

A democracia que pensa a sua proacutepria realidade natildeo pode natildeo ter em conta estas necessidades

e particularidades Eacute por isso que o novo enfoque democraacutetico em Aacutefrica e nos paiacuteses

lusoacutefonos em particular deveria incluir na escolaridade preacute-universitaacuteria a disciplina da

EDUCACcedilAtildeO PARA A DEMOCRACIA assim como pensar a possibilidade de cadeiras

como ldquoLITERATURA E INSTRUCcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeOrdquo tambeacutem no preacute-

universitaacuterio Uma educaccedilatildeo para a democracia e uma literatura e instruccedilatildeo para a

democracia evitariam que caiacutessemos naquilo que Strauss chama ou designa por ldquofalta de

espiacuterito puacuteblico13

rdquo nas democracias modernas isto eacute a criaccedilatildeo de cidadatildeos que soacute se

interessam em ler as paacuteginas desportivas dos jornais e as paacuteginas das pequenas histoacuterias e

mais nada Pensar num ensino da democracia que possa ser cimentado com apoio das nossas

tradiccedilotildees orais ajudaria natildeo soacute a ter a qualidade viva dos nossos debates democraacuteticos como

tambeacutem a fundar uma democracia de raiacutezes africanas que bebem das outras culturas mas que

tambeacutem podem reivindicar a sua originalidade poliacutetica Os diversos tipos de ONDJANGO

que existem nas culturas africanas podem ser exploradas desde o ponto de vista democraacutetico

ondjango como espaccedilo de concertaccedilatildeo de ideias como espaccedilo de recepccedilatildeo do ensinamento

dos mais velhos se aproximaria ao conceito grego de aacutegora Uma educaccedilatildeo para a democracia

em Aacutefrica deveria ter em conta tambeacutem os nossos proveacuterbios adaacutegios e aforismos com uma

acentuada moralidade onde podemos encontrar a profundidade do ser africano do espiacuterito

africano e da sua consciecircncia moral e eacutetica Neles encontramos uma insondaacutevel e inesgotaacutevel

sabedoria praacutetica transversal a todo o continente O que em Angola se designa como

ondjango na Guineacute-Bissau aparece com o nome de Djembereacutem e em algumas circunstacircncias

com o nome de Bantaba de djumbai Ambos satildeo espaccedilos de confraternizaccedilatildeo de caraacutecter

educativo desde o ponto de vista da recepccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo da cultura e do pensamento

tradicional Quer a expressatildeo djembereacutem quer a expressatildeo bantaba designam um espaccedilo

circular de modo geral coberto de capim ou chapa de zinco podendo ser usados pelas pessoas

12

Cf Este trecho faz parte de um texto escrito a 31 de Julho de 2017 para um discurso ldquoencomendadordquo para o

dia internacional da mulher africana 13

Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Ed Katz Buenos Aires 2007 p 17

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de todas as idades mas em circunstacircncias diferentes Eacute um espaccedilo de reuniotildees e de encontro

de caraacutecter familiar da aldeia ou do grupo onde muitas vezes saem as decisotildees que dizem

respeito agrave comunidade eacute um espaccedilo legislativo da lei natildeo escrita da comunidade A palavra

djumbai significa divertir-se brincar daiacute que se bem o bantabaacute tem este caraacutecter seacuterio das

tomadas de decisotildees natildeo obstante esta seriedade eacute fundada na proximidade e na

familiaridade comunidade o que faz com que o poder natildeo seja algo estranho algo longiacutenquo e

tambeacutem faz com que o ensinamento e a transmissatildeo natildeo sejam vistos com a desmesura da

grandiosidade Contrariamente aos gregos e aos povos da Mesopotacircmia o lugar onde se

ensina e onde se toma as decisotildees eacute frequentado por todos pelas mulheres e crianccedilas pelos

doentes e saudaacuteveis

Conforme vimos o ondjango nos remete para a realidade da casa (NUNES

1991 159) Mas de que casa se trata Trata-se da casa de conversa de

reuniatildeo de hospedagem de partilha de bensrefeiccedilatildeoserviccedilos de

educaccedilatildeoiniciaccedilatildeo sociocultural de entretenimento eou de fazer justiccedila

Antes de tudo se trata de uma casa ponto de partida e ponto de confluecircncia

de uma casa com as condiccedilotildees de se poder sentar reunir junto de alguns

mais-velhos trata-se de um lugar de encontro14

Esta aproximaccedilatildeo de ondjango com a comunicaccedilatildeo e gestatildeo da casa permite-nos criar aqui

uma relaccedilatildeo comparativa com oikos nomoi xenofontino-aristoteacutelico Isto eacute podemos

reivindicar para o ondjango africano as mesmas capacidades os mesmos papeacuteis ou funccedilotildees

institucionais que tinha o oikos a partir da sua visatildeo da ldquofamiacutelia da propriedade da famiacutelia e

da casardquo Tal como vemos neste texto de Nunes citado por Martinho Kavaya este ondjango eacute

pluridisciplinar baseado em vaacuterias meacutetricas sociais o que de certa forma tambeacutem corresponde

com aquilo que podemos encontrar na concepccedilatildeo da palavra grega oikos A educaccedilatildeo do

ondjango do djembereacutem ou do djumbai satildeo portadoras do espaccedilo familiar da propriedade da

famiacutelia e da reflexatildeo sobre a casa sobre as coisas da casa e isso permite fazer com que o que

se discute neste espaccedilo seja efectivamente aquilo que importa agrave cidade aquilo que importaraacute agrave

cidade um dia E o que eacute pode importar profundamente agrave cidade Naturalmente as pessoas a

sua gente os homens e mulheres crianccedilas e velhos animais e plantas No fundo tudo que diz

respeito ao homem e ao seu envolvimento social e espiritual e eacute isso que o ondjango africano

14

Cf Martinho Kavaya Freire e o Ondjango podem dialogar Reflexotildees sobre o diaacutelogo de Freire com o

ondjango africano Angolano GT Educaccedilatildeo Popular n06 p 2 consultado em 30 de Outubro de 2017

httpwwwanpedorgbrsitesdefaultfilesgt06-2805-intpdf

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pretende passar atraveacutes dos seus diferentes status e fases do mais novo ao mais velho e do

mais velho ao mais novo

Toda a vida parte do ondjango e laacute encontra seu aacutepice Aiacute segundo a

pertinecircncia do vivenciado o ohango (conversadiaacutelogo) tomava vaacuterios

significados ldquoondjangordquo enquanto ldquoulongardquo (relato da vida desde o encontro

anterior) ldquoelongisordquo (ensinamento e aprendizado) ldquoekutardquo (partilha de bens

alimentares) ldquoekongelordquo (reuniatildeo de caraacuteter deliberativo)

ldquoekangaokusombaokusombisardquo (reuniatildeo para fazer justiccedila e sentenciar para

punir ou absolver o arguumlido) ldquookupapalardquo (encontro de entretenimento festas

e danccedilas culturais e tradicionais conforme a situaccedilatildeo vivida no momento

morte caccedila casamento iniciaccedilatildeo sociocultural e comunitaacuteria acolhimento

de uma visita etc) ldquoondjulukardquo (encontro para organizar um mutiratildeo

comunitaacuterio a favor de algum da comunidade em situaccedilatildeo de doenccedila

problema socioeconocircmico intervenccedilatildeo de ajuda na sua lavoura etc)

(KAVAYA 2006 p147) Afinal o ondjango eacute o habitat comunal e vital

onde se desenham as relaccedilotildees de conviacutevio geo-histoacuterico econocircmico

sociocultural poliacutetico etc em vista o bem comunitaacuterio15

Educar para a conservaccedilatildeo destes valores eacute tambeacutem educar para a democracia e eacute educar para

a manutenccedilatildeo da cultura e dos preconceitos positivos A democracia em todo o sentido e em

toda a sua histoacuteria sempre conteve um elemento educativo muito forte e quase indissociaacutevel

de si mesma eacute o diaacutelogo para gerar a cultura e a cultura para gerar diaacutelogo Natildeo pode haver

uma verdadeira democracia que dispense este binoacutemio O erro de pensadores como Platatildeo em

relaccedilatildeo agrave sua recusa agrave democracia reside no facto de desprezarem excessivamente qualquer

tipo de possibilidade para educaccedilatildeo viaacutevel do homem democraacutetico reside no facto de natildeo

acreditarem que a democracia pode educar um poloi e fazer dele um aristoacuteis agrave sua maneira

ou ainda este erro pode residir no facto de que estes pensadores natildeo tiveram em conta que o

poloi apenas pode querer ser simplesmente e eternamente um poloi mesmo sendo democrata

O erro consistiu em pensar que os que podem e devem governar a cidade deviam deixar de ser

das suas respectivas camadas e passar a ser aristocratas Eacute um erro que ainda vemos hoje

15

Cf Ibid p 3

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EDUCACcedilAtildeO CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO

UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS

ABEL JOSEacute DA SILVA a

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS b

adasilva00gmailcom

ireneinakulomoisesgmailcom

Resumo

A presente comunicaccedilatildeo faz uma caracterizaccedilatildeo do Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo

Universitaacuterio com ecircnfase nos seus desafios e perspectivas Analisa este processo a partir da

interpretaccedilatildeo sistecircmica que decorre dos pressupostos legais da Educaccedilatildeo e Ensino em Angola

Como meacutetodo usa a revisatildeo bibliograacutefica e a interpretaccedilatildeo e fundamenta a caracterizaccedilatildeo do

referido processo como variaacutevel baacutesica para a anaacutelise da qualidade do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola idealizado com base nos princiacutepios da legalidade da integridade da

laicidade da universalidade da democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da

intervenccedilatildeo do Estado da qualidade de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais

ciacutevicos e patrioacuteticos Tem como objectivo reflectir sobre os aspectos que o caracterizam e que

interferem na sua qualidade Apresenta a missatildeo do processo integrada ao Sistema em que

todos os agentes educativos participam da sua funcionalidade

Palavas-Chave Processo Ensino Aprendizagem Sistema

Abstract

This scientific paper characterizes the Non-University Teaching and Learning Process with an

emphasis on its challenges and perspectives It analyzes this process from the systemic

interpretation that arises from the legal presuppositions of Education and Teaching in Angola

As method uses the literature review and the interpretation and founded the characterization

of this process as basic variable for the analysis of the quality of the system of Education and

Teaching in Angola Idealized on the basis of the principles of legality integrity secularity

universality democracy gratuitousness obligation compulsion State intervention quality of

services education and promotion of moral civic and patriotic values It aims to reflect on the

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aspects that characterize and that interfere in its quality Has the mission of the process

integrated into the System in which all educational agents participate in its functionality

Key-words Process Teaching Learning System

Introduccedilatildeo

O Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo Universitaacuterio (PEANU) eacute uma importante variaacutevel

para a anaacutelise do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino em Angola (SEEA) sistema perspectivado

com base nos ldquoprinciacutepios da legalidade da integridade da laicidade da universalidade da

democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da intervenccedilatildeo do Estado da qualidade

de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticosrdquo (Lei no 1716

art 5ordm)1

A caracterizaccedilatildeo do PEANU pressupotildee assumir um posicionamento holiacutestico que analise o

mesmo como um processo natildeo isolado do todo porque o SEEA eacute estruturalmente unitaacuterio e a

sua realizaccedilatildeo na situaccedilatildeo especiacutefica da anaacutelise tem influecircncia no funcionamento da totalidade

(princiacutepio da integridade art 7ordm e art 17ordm)

Os desafios e perspectivas como outra dimensatildeo importante derivada do processo de

parametrizaccedilatildeo do assunto ndash objecto de anaacutelise justificam-se a partir da consideraccedilatildeo dos

princiacutepios da universalidade democraticidade gratuitidade obrigatoriedade intervenccedilatildeo do

Estado qualidade de serviccedilos e da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais pois que se a

Lei tipifica o que idealmente eacute o correcto a necessidade de confrontar com a realidade agrave luz

da pesquisa bibliograacutefica eacute inadiaacutevel para o alinhamento do agir educativo com os princiacutepios

legais

A partir destes princiacutepios infere-se que a Educaccedilatildeo e o Ensino satildeo natildeo apenas um direito mas

tambeacutem um dever que se deve realizar com a qualidade requerida para que a construccedilatildeo de

uma nova sociedade assente na democracia esclarecida seja possiacutevel Para isso agrave Escola

atraveacutes do Processo de Ensino e Aprendizagem (PEA) em todos os niacuteveis de ensino e

especialmente nos natildeo universitaacuterios impende a tarefa de formar personalidades capazes de

influenciar com o seu saber e suas qualidades o curso da histoacuteria concreta do seu contexto

Deste modo o Processo tem de ser significativo2 Para que o processo seja significativo eacute

1 Lei de Bases do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino que estabelece os princiacutepios e bases do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola de 7 de Outubro de 2016 Esta Lei revoga a Lei 1301 de 31 de Dezembro de 2001 2 O PEANU eacute significativo quando assegure o cumprimento da sua finalidade tal como se institui no art 25ordm da

Lei 1716 referente aos Objectivos Gerais do Subsistema do Ensino Geral Desta significatividade resulta em

consequecircncia a eficaacutecia do Sistema

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necessaacuterio caracterizaacute-lo com a finalidade de que se conheccedilam natildeo soacute os seus pontos fortes

mas tambeacutem os fracos aspecto que se aborda seguidamente

Por isso o objectivo deste trabalho consiste em reflectir sobre os aspectos do SEEA que o

caracterizam e que interferem na qualidade do PEANU

1 Estrutura do Seea Ponto de partida para a caracterizaccedilatildeo do Peanu

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento ldquoad intrardquo da

realidade educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento (Cfr

Silva 2016) Por isso a anaacutelise estrutural do SEEA baseada nas proposiccedilotildees da Lei 1716 e

fundamentada pela revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura criacutetico-contextual eacute uma

tarefa basilar para esta caracterizaccedilatildeo

A caracterizaccedilatildeo do Sistema Educativo numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional de

acordo com Ngaba ( 2012) e Liberato (2014) permite concluir que existem avanccedilos e

retrocessos no processo educativo angolano que em termos de poliacutetica educativa

condicionaram a sua evoluccedilatildeo positiva bem como a sua afirmaccedilatildeo no cenaacuterio internacional e

ateacute mesmo regional3

A partir desta ideia geral sobre o estado do SEEA que de modo especial se realiza por meio

do PEANU eacute possiacutevel compreender que estruturalmente estaacute bem concebido se se analisam

todos os factores intencionais de entrada e saiacuteda de um niacutevel de ensino para outro Entretanto

o aspecto funcional real fica aqueacutem do desejado se se avaliam com visatildeo criacutetico-acadeacutemica

os resultados do processo e os discursos oficiais que asseguram a Poliacutetica do Sistema

Educativo

Contrariamente agrave 1ordf Repuacuteblica (Cfr Ngaba 2012) que natildeo se fez reger por um documento

base tanto a 2ordf como a 3ordf Repuacuteblicas de Angola tecircm como fundamento a Lei de Bases do

SEEA que estabelece a criaccedilatildeo de condiccedilotildees mais adequadas para a aplicaccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas e dos programas nacionais com o objectivo de continuar a assegurar o

3 Este momento criacutetico do SEEA eacute tambeacutem hoje reconhecido oficialmente pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo do Paiacutes

na voz da sua titular no encerramento da Semana Nacional sobre Educaccedilatildeo em Angola realizada em Luanda Por

isso para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo actual do Sistema Educativo e do PEANU especificamente eacute criteacuterio dos

autores deste trabalho que os problemas fracturantes que colocam em causa a qualidade do Sistema natildeo podem

ser analisados unilateralmente sob pena de se incorrer num reducionismo indevido pois estatildeo em causa

muacuteltiplas variaacuteveis que chocam com diversos princiacutepios e disposiccedilotildees legais em que assenta o Sistema

infraestruturas precaacuterias insuficiecircncia dos materiais e meios didaacutecticos factos que se agravam ainda mais com a

falta de preparaccedilatildeo adequada dos professores de tal modo que possam responder aos desafios do Sistema

idealizados pela Reforma Educativa Essa visatildeo geral estrutural e conjuntural pode reflectir-se e explicar-se

melhor por meio do seguinte exemplo em relaccedilatildeo agrave indisciplina na aula espaccedilo privilegiado em que se

desenvolve o PEA Estrela (1983) citada por Lopes (2005) identificou um conjunto de variaacuteveis que vatildeo desde o

proacuteprio aluno passando pelo professor pela instituiccedilatildeo escolar ateacute agrave proacutepria sociedade Estes satildeo dados

suficientes para pensar na qualidade educativa como multideterminada

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desenvolvimento humano com base numa educaccedilatildeo e aprendizagem ao longo da vida para

todos os indiviacuteduos que permita assegurar o aumento dos niacuteveis de qualidade de ensino

Considerando a anaacutelise da estrutura do Sistema estabelecido pela Lei 1716 conclui-se que as

principais alteraccedilotildees agrave antiga Lei relacionam-se entre outras com a gratuitidade e

obrigatoriedade do ensino que passa a compreender as classes da Iniciaccedilatildeo do Ensino

Primaacuterio e do Primeiro Ciclo do Ensino Secundaacuterio bem como a nomenclatura das

instituiccedilotildees

Nesta vertente assume-se que o Subsistema de Ensino Geral eacute o fundamento do SEEA (Lei

no 1716 art 24ordm) que visa de acordo com o artigo em referecircncia assegurar uma formaccedilatildeo

integral harmoniosa e soacutelida necessaacuteria para uma boa inserccedilatildeo no mercado de trabalho e na

sociedade bem como para o acesso aos niacuteveis de ensino subsequentes

Como se pode apreciar existe uma relaccedilatildeo de determinaccedilatildeo entre o processo de ensino e

aprendizagem que se realiza no Subsistema do Ensino Geral e o trabalho bem como com a

Sociedade e com os niacuteveis de ensino posteriores o que significa o reconhecimento da

importacircncia deste niacutevel que deve permitir a aquisiccedilatildeo de ferramentas fundamentais para a

compreensatildeo da vida e do mundo Entre os seus objectivos de acordo com Ngaba (2012 p

158) constam os do desenvolvimento ldquodos conhecimentos e as capacidades que favoreccedilam

uma auto-formaccedilatildeo educar para a cidadaniardquo A educaccedilatildeo vista a partir da oacuteptica deste niacutevel

de ensino eacute um factor de integraccedilatildeo social

Por isso o questionamento da qualidade do PEANU eacute no fundo o questionamento da

qualidade do Sistema em si uma vez que estudando Poliacuteticas Educativas em Angola (1975-

2005) o autor antes referenciado e alinhado com Liberato afirma

ldquoEm termos gerais fica a ideia de estarmos perante um processo evolutivo que em periacuteodos

diferentes se foi deparando com os mesmos problemas e optando pelas mesmas soluccedilotildeesrdquo

No entanto de acordo com o mesmo autor ldquoquase quatro deacutecadas depois das primeiras

mudanccedilas ldquosignificativasrdquo no sector da educaccedilatildeo deacutecadas essas caraterizadas por sucessivos

estudos e mudanccedilas o paiacutes (hellip) carece de soluccedilotildees radicais que possam corrigir de uma vez

por todas os factores relacionados com o baixo coeficiente do sistema angolanordquo (Ngaba

2012 p 173)

De acordo com a ideia anterior a questatildeo da qualidade de ensino em Angola natildeo deve ser

vista como uma questatildeo da responsabilidade exclusiva de um ou de outro niacutevel de ensino

mas como uma questatildeo transversal do SEEA considerando entre outros princiacutepios gerais o

da integralidade estatuiacutedo no artigo 7o da Lei 1716 Por isso a anaacutelise desta questatildeo implica

um posicionamento multifactorial

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Com base nessa posiccedilatildeo o Sistema possui potencialidades capazes de proporcionar um PEA

motivador que permita a construccedilatildeo das aprendizagens dos alunos e que transforme o saber

em saber fazer e em saber ser na base de uma visatildeo axioloacutegica pois atendendo agrave

complexidade da acccedilatildeo educativa a UNESCO no Relatoacuterio DELORS (2003 p 11) sustenta

que para concretizar a sua meta a educaccedilatildeo deve organizar-se em quatro tipos fundamentais

de aprendizagens que ao longo da vida do indiviacuteduo seratildeo os pilares do conhecimento

Aprender a conhecer isto eacute adquirir os instrumentos para a compeensatildeo

aprender a fazer de modo a ser capaz de agir criativamente no proacuteprio

ambiente aprender a viver juntos de modo a participar e a colaborar com os

outros em todas as actividades humanas aprender a ser isto eacute um progresso

essencial que deriva dos trecircs precedentes

Para tornar este sonho real eacute necessaacuterio que o processo seja significativo e em si mesmo

motivador formando os professores de acordo com as necessidades da realidade objectiva

Trata-se de prover os recursos necessaacuterios a um processo que desafie os limites da situaccedilatildeo

actual pois se o professor eacute indispensaacutevel natildeo eacute menos verdade que os recursos educativos

tambeacutem o sejam (Lei 1716 art 97ordm)4

Tendo em conta os pressupostos legais da Repuacuteblica de Angola (Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e

Lei 1716) e os pilares da educaccedilatildeo propostos pela UNESCO considera-se que o ideal

educativo estaacute devidamente delineado Contudo eacute necessaacuterio que de acordo com Nanni

(2005 p81) citado por Fernando (2010 p 17) no ldquoacircmbito educativo o fim uacuteltimo ndash o

horizonte para o qual deve tender toda a acccedilatildeo educativa ndash natildeo deve fazer com que os fins

intermeacutedios ndash que o tornam possiacutevel e factiacutevel ndash sejam esquecidosrdquo Daiacute a relaccedilatildeo entre fins

meios e procedimentos educativos

A distinccedilatildeo entre fins uacuteltimos da educaccedilatildeo meios e procedimentos educativos eacute fundamental

porque de acordo com Fernando (2010 p 18)

Impele agrave procura e a determinar os recursos o tempo as modalidades e as estrateacutegias para a

realizaccedilatildeo do objectivo educativo que se pretende e permite de certo modo natildeo esquecer que

se natildeo se fizer a diferenccedila entre ideal e real entre fim uacuteltimo e limite da acccedilatildeo humana entre o

horizonte e o limite concreto das coisas e da existecircncia entre o itineraacuterio projectado e a

complexidade do percurso e da vida das pessoas corre-se o risco de se ser desumano e de cair

4 No artigo 97ordm a Lei 1716 define recursos educativos como os meios que contribuem para o desenvolvimento

do SEEA tais como a) Guias e programas pedagoacutegicos b) Manuais escolares C) Meios teacutecnicos e

tecnoloacutegicos de ensino d) Bibliotecas e) Equipamentos f) Laboratoacuterios g) Oficinas h) Instalaccedilotildees e

material desportivo e cultural i) Campos de ensaios treinamento e experimentaccedilatildeo j) Auditoacuterios e salas

especializadas

Paacutegina 67 de 74

no perfeccionismo ou de se desencorajar cansar e por fim de se sentir insatisfeito com aquilo

que se faz

Em consequecircncia nos nossos dias a questatildeo do discurso pedagoacutegico sobre a ldquofinalidaderdquo da

educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU natildeo eacute faacutecil porque a educaccedilatildeo eacute caracterizada hoje por

certa crise pela necessidade de inovaccedilatildeo e pelo pluralismo de ideias de valor e de cultura do

momento histoacuterico actual (Cfr Fernando 2010 Ngaba 2012 Liberato 2014)

Na continuidade da anaacutelise sobre a finalidade da educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU os

autores concordam com Fernando (2010 p 19) ao distinguir dois tipos de tendecircncias

educativas

1 A tendecircncia redutora que ldquoprocura ver a aprendizagem em funccedilatildeo das necessidades da

economia que com as suas solicitaccedilotildees convida a rever os conteuacutedos do ensino e sua

organizaccedilatildeo Esta eacute a linha ou corrente mais seguida nos nossos diasrdquo

2 A tendecircncia aberta que ldquoprocura integrar no conceito de aprendizagem outros elementos

significativos mais ligados agraves dimensotildees psicoloacutegicas sociais e culturais das experiecircncias do

indiviacuteduo enquanto protagonista da aprendizagemrdquo

Para os autores embora a primeira tendecircncia seja a mais seguida actualmente a segunda

parece melhor corresponder agrave dignidade do homem responsaacutevel porque de acordo com a Lei

1716 (art 15ordm) o SEEA deve promover natildeo soacute o cultivo da intelectualidade mas tambeacutem

dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticos

Assim a primeira reduz a finalidade da escola agrave instruccedilatildeo e a segunda supera esta visatildeo

sustentando que a finalidade primaacuteria da actividade pedagoacutegica escolar eacute a de educar sem

contudo deixar de parte a sua funccedilatildeo instrutiva Neste sentido a finalidade da educaccedilatildeo como

instituiccedilatildeo social deve coincidir com a finalidade da escola enquanto instituiccedilatildeo formal e

socialmente mandatada para educar isto eacute para possibilitar o desenvolvimento permanente da

qualidade da pessoa humana com dignidade e integridade

2 Desafios e Perspectivas da Educaccedilatildeo

Nas paacuteginas anteriores ficou clara a ideia de que os resultados qualitativos do SEEA

fundamentalmente relacionados com o PEANU satildeo e devem ser processo-produto de um

funcionamento integral do Sistema Por isso o maior desafio da educaccedilatildeo em Angola hoje eacute o

de vencer a contradiccedilatildeo existente em que satildeo atribuiacutedas culpas isoladas ou ao aluno que natildeo

estuda ou ao professor que natildeo estaacute preparado e natildeo motiva ou agraves mateacuterias que natildeo satildeo

atractivas e adaptadas agrave realidade profissional e do contexto de vida dos alunos ou aos pais

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que natildeo acompanham suficientemente os filhos ou ainda ao proacuteprio Sistema Educativo de

maneira geral

De acordo com a ideia anterior e tendo em conta a revisatildeo bibliograacutefica realizada5 os autores

consideram que os desafios para a melhoria das falhas devem ser enfrentados de forma

sistecircmica porque cada uma das variaacuteveis antes mencionadas eacute importante para o

funcionamento normal ou natildeo do PEA natildeo apenas no niacutevel referenciado mas em todos os

niacuteveis em atenccedilatildeo aos princiacutepios de integridade do Sistema e da obrigatoriedade e qualidade

dos serviccedilos educativos Isto pressupotildee uma poliacutetica educativa ajustada agrave realidade que

incentive a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores e garanta os meios materiais indispensaacuteveis

ao processo

Trata-se de construir uma verdadeira comunidade educativa em que todos os agentes

educativos como a famiacutelia a escola e a comunidade na sua dimensatildeo mais alargada

participem Por isso eacute necessaacuterio repensar a educaccedilatildeo para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de

um paiacutes novo como afirmara Joseacute Eduardo dos Santos (2008) nos seguintes termos ldquoum

novo paiacutes estaacute a nascer e com ele haacute-de florescer tambeacutem um cidadatildeo novordquo Quando

Considerando a perspectiva temporal como resposta os autores acreditam que isso se

realizaraacute agrave medida que a educaccedilatildeo se assuma antes de tudo como uma condiccedilatildeo de verdadeira

cidadania e natildeo de mera transmissatildeo de receitas importadas do exterior e enxertadas no nosso

contexto quando todos os agentes educativos tiverem presente que o educar eacute na verdade

um verbo ldquoque exige uma acccedilatildeo com atitude transformadorardquo (Pereira e Silva 2008 p 24)

Eacute neste sentido que Joseacute Eduardo dos Santos na sua alocuccedilatildeo agrave Naccedilatildeo referia-se ao papel dos

pais dos professores e de todos os actores sociais como verdadeiros agentes educativos da

juventude Trata-se do desafio de construir uma verdadeira sociedade educativa

Na construccedilatildeo dessa sociedade educativa a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores para o SEEA

e sobretudo para o PEANU deve ser entendida como uma consequecircncia de uma formaccedilatildeo

inicial que seja adequada agraves necessidades reais da sociedade para a qual se educa Isso implica

que os professores devem ser formados com base nos desafios da nova Repuacuteblica (Ngaba

2012)

5 Em Ofiacuteco de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Perrenoud (1995) denuncia uma dupla evidecircncia por um

lado haacute alunos que natildeo aprendem e por outro professores que natildeo formam porque ambos se contentam em

exercer manualmente os oacutecios do ofiacutecio enquanto a cabeccedila estaacute ausente Na mesma linha Grilo (2002) entende

que na ldquoNa sociedade do conhecimento hoje aprende-se e ensina-se em circunstacircncias e contextos muito

diversos embora por vezes se ensine mas natildeo se aprenda como ocorre por exemplo em algumas das escolas

Mas partindo do princiacutepio de que quando se ensina haacute sempre algueacutem que aprende o ensino (hellip) eacute um

mecanismo muito importante e uma peccedila fundamental desta sociedaderdquo (p 121)

Paacutegina 69 de 74

A formaccedilatildeo inicial que serve de base para a formaccedilatildeo contiacutenua de professores de acordo com

a Lei 1716 eacute assegurada pelo Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores que estaacute estruturado

em Ensino Secundaacuterio Pedagoacutegico e Ensino Superior Pedagoacutegico O primeiro constitui o

ldquoprocesso atraveacutes do qual os indiviacuteduos adquirem e desenvolvem conhecimentos haacutebitos

habilidades capacidades e atitudes que os capacite para o exerciacutecio da profissatildeo docente na

Educaccedilatildeo Preacute-escolar no Ensino Primaacuterio e no I Ciclo do Ensino Secundaacuterio Regular de

adultos e na Educaccedilatildeo Especial e mediante criteacuterios o acesso ao Ensino Superior

Pedagoacutegicordquo (Art 46)

Por outro lado e de acordo com a mesma Lei um dos fundamentos do SEEA o ldquoEnsino

Superior Pedagoacutegico eacute um conjunto de processos desenvolvidos em Instituiccedilotildees de Ensino

Superior vocacionados agrave formaccedilatildeo de professores e demais agentes de educaccedilatildeo habilitando-

os para o exerciacutecio da actividade docente e de apoio agrave docecircncia em todos os niacuteveis e

subsistemas de ensinordquo (Art 49)

Em correspondecircncia com os estes dois artigos da Lei 1716 compreende-se a relaccedilatildeo

intriacutenseca entre o Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores e os diferentes niacuteveis de ensino do

SEEA

A educaccedilatildeo em Angola vista na oacuteptica dos seus fundamentos legais constitui-se assim numa

ldquoforma de poder porque a educabilidade eacute um poder-ser humano mediado pela educaccedilatildeo

como poder sobre o ser humano que decide sobre o dever-ser humano Eacute um poder ser

porque o ser humano eacute um ser biologicamente aberto agrave criaccedilatildeo de uma segunda naturezardquo

(Monteiro 2004 p 12)

De acordo com o autor referenciado com antecedecircncia todas as formas de poder do ser

humano sobre o outro suscitam a questatildeo da sua legitimidade Esta questatildeo eacute no fundo a do

fundamento e controlo do poder que o professor exerce atraveacutes dos conteuacutedos e formas da

comunicaccedilatildeo que realiza ante o aluno Assim sendo

A ldquolegitimidade pedagoacutegica eacute de natureza social porque ser profissional da

educaccedilatildeo implica um mandato da sociedade atraveacutes do Estado que regula o

exerciacutecio da funccedilatildeo Eacute tambeacutem de natureza individual na medida em que a

competecircncia pessoal tem um efeito de auto-legitimaccedilatildeo junto dos educandos

Mas tem de ser problematizada com mais radicalidade porque a educaccedilatildeo eacute

afinal uma forma de poder do homem sobre o homemrdquo (Monteiro 2004 p

12)

Daiacute que se a educaccedilatildeo eacute uma forma de poder eacute necessaacuterio que se exerccedila tal poder na justa

medida tendo como princiacutepio e limite a Lei que estabelece entre outros aspectos importantes

natildeo soacute a formaccedilatildeo inicial mas tambeacutem a contiacutenua dos professores para que respondam agraves

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necessidades da sociedade angolana

Portanto a anaacutelise da qualidade da educaccedilatildeo como um fenoacutemeno multideterminado que

possibilita caracterizar o Sistema justifica que a formaccedilatildeo contiacutenua de professores variaacutevel

importante para esta caracterizaccedilatildeo natildeo deve ser vista como um simples adereccedilo mas sim

como parte importante de uma cultura institucionalmente legal onde a articulaccedilatildeo entre as

instituiccedilotildees de Ensino Superior (pedagoacutegicas ou natildeo) e as do ensino geral seja

dialecticamente um facto

CONCLUSAtildeO

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento da realidade

educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento que tem como

fundamento a interpretaccedilatildeo da Lei e a revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura

criacutetico-contextual

A revisatildeo bibliograacutefica assente numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional permite

concluir que existem avanccedilos e retrocessos no processo educativo angolano que em termos

de poliacutetica educativa condicionaram sua evoluccedilatildeo positiva bem como sua afirmaccedilatildeo no

cenaacuterio internacional e ateacute mesmo regional

Esta constataccedilatildeo impotildee desafios a vencer na perspectiva da construccedilatildeo de uma sociedade

educativa em que cada agente participe reconhecendo a necessidade contiacutenua da formaccedilatildeo

dos professores para o PEANU como fundamento do SEEA

Referecircncias Bibliograacuteficas

Delors J etal (2006) EDUCACcedilAtildeO Um tesouro a descobrir Relatoacuterio para a UNESCO da Comissatildeo

Internacional sobre Educaccedilatildeo para o seacuteculo XXI 10ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez Editora

Eliana Alves Leite Pereira e Eloi Lopes da Silva (2008) Educaccedilatildeo Eacutetica e Cidadania A contribuiccedilatildeo da actual

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FULLAT O (2000) Filosofia da Educaccedilatildeo Madrid Editorial Sintesis Educacioacuten

FREIRE P (sd) Educaccedilatildeo como Praacutetica da Liberdade 5ordf ediccedilatildeo Lisboa Dinalivro Lda

GOTZENS C (2003) A Disciplina Escolar Prevenccedilatildeo e intervenccedilatildeo nos problemas de comportamento 2ordf

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Grilo M (2002) Desafios da Educaccedilatildeo - Ideiasb para uma poliacutetica educativa no seacuteculo XXI Lisboa Oficina

do Livro

Liberato E (2014) Avanccedilos e retrocessos da educaccedilatildeo em Angola Revista Brasileira de Educaccedilatildeo 1003

Lopes C d (2005) Caracterizar a Acccedilatildeo Educativa para ensinar a partir do Aluno SC Ediccedilotildees Cosmos

Morin E (2002) Os Sete Saberes Para a Educaccedilatildeo do Futuro Trad de Ana Paula de Viveiros Lisboa

Instituto Piaget

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Ngaba A V (2012) Poliacuteticas Educativas em Angola - Entre o global e o local o sistema educatuivo mundial

Mbanza-Kongo SEDIECA

Ngula A (2003) A escolarizaccedilatildeo em Aacutefrica Das grandes ilusotildees agrave pedagogia do projecto Roma Edizioni

Vivere i

Perrenoud P (1995) Ofiacutecio de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Porto Porto Editora

Perrenoud P (2002) A Escola e a aprendizagem da democracia Porto Asa

Silva A J (2016) La superacioacuten psicopedagoacutegica de los docentes de unversidad `Joseacute Eduardo dos Santosacute de

la Repuacuteblica de Angola Tesis doctoral La Habana Universidade de Ciencias Pedagoacutegicas `Enrique Joseacute

Varonaacute

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Paacutegina 73 de 74

1 Os artigos podem ser escritos em portuguecircs inglecircs espanhol e francecircs

2 Tecircm que ser ineacuteditos e natildeo mais de 20 paacuteginas notas de peacute de paacuteginas incluiacutedas

3 As resenhas submetidas natildeo devem superar 6 paacuteginas

4 O envio de artigo deveraacute ser acompanhado por um abstract no idioma original do artigo e

em inglecircs e no miacutenimo com trecircs palavras-chave

5 O formato das letras eacute Times New Roman 12 justificado e com 15 de espaccedilo

6 Os textos devem ser enviados em formato Word Perfect ou em Word para o PC

7 Os artigos enviados devem ser assinados pelos autores que tambeacutem deveratildeo indicar os

seus graus acadeacutemicos e filiaccedilatildeo institucional

8 A redacccedilatildeo da revista reserva o direito de publicar ou natildeo

9 Haveraacute sempre um comiteacute externo para avaliaccedilatildeo dos artigos

10 Os tiacutetulos dos artigos devem estar na liacutengua original e em caso de necessidade em inglecircs

11 As referecircncias bibliograacuteficas e notas de peacute de paacuteginas devem ser numeradas As

referecircncias bibliograacuteficas devem ser completas na primeira cita utilizando a norma

claacutessica para as Ciecircncias Sociais e Humanas e Vancouver ou AMA para as Ciecircncias de

Sauacutede

12 Aceitam-se os projectos de investigaccedilatildeo que natildeo superam 8 paacuteginas

LIVROS ELECTROacuteNICOS

As citas devem comeccedilar com o primeiro e uacuteltimo nome do (s) autor (es) tiacutetulo do livro

electroacutenico (em itaacutelico) editor data de publicaccedilatildeo nuacutemero da paacutegina citada Endereccedilo Web

(Disponiacutevel a data da consulta)

PROCESSO DE AVALIACcedilAtildeO E DE SELECcedilAtildeO DOS ARTIGOS

1 Os artigos devem ser enviados para o e-mail da revista ou do Director nos prazos

indicados

2 A Direcccedilatildeo acusaraacute a recepccedilatildeo do trabalho sem necessariamente manter contacto com o

autor antes da decisatildeo final de publicar ou natildeo

3 Os autores dos artigos satildeo responsaacuteveis pela sua revisatildeo ortograacutefica e gramatical

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Page 2: Página 1 de 74 - Início | ISPSN · 2019. 5. 3. · Página 5 de 74 que traz um começo, que “cria um começo” e que reinventa um começo a partir da dor e da cura. A cidade

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Nordm13 ndash JULHO 2018|ISSN 2304-0688

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CONSELHO DE REDACCcedilAtildeO

Director Inaacutecio Valentim (ISPSN) Angola

Secretaacuteria de Redaccedilatildeo Faacutetima Sousa Rodrigues (ISPSN) Angola

Editor ISPSN ndash Instituto Superior Politeacutecnico Sol Nascente

Arranjos Teacutecnicos Ivan dos Reis Andrade (ISPSN) Angola

Hermeacutenia Capita (ISPSN) Angola

CONSELHO CIENTIacuteFICO

Adelino Sanjombe (ISPSN) Angola

Adriano Catiavala (ISPSN) Angola

Agemir Bavaresco (PUCRS) Brasil

Antoacutenio Goacutemez Ramos (UC3M) Espanha

Antoacutenio Matos Ferreira (CHER-UCP) Portugal

Antoacutenio Mendes Sambalundo (UJES) Angola

Antoacutenio Paquissi (ISCED-ISPSN) Angola

Beatriz Cecilia Loacutepez Bossi (UCM) Espanha

David Boio (ISPSN) Angola

Diane Lamoureux (LAVAL) Canada

Dulce Inakulo de Sousa (ISPSN) Angola

Eduardo Vera Cruz (UL) Portugal

Fabriacutecio Pontini (PUCRS) Angola

Feliciana A Salica Hossi (ISPSN) Angola

Feacutelix Duque (UAM) Espanha

Fernando Rampeacuterez (UCM) Espanha

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Heacutelder Chipindo (UJESISPCaaacutela) Angola

Hugo Bento de Sousa (Meacutedico) Portugal

Inaacutecio Valentim (ISPSN-CFCUL) Angola

Irene Inakulo Moiseacutes (ISCED-ISPSN) Angola

Ivone Moreira (IEP - UCP) Portugal

Joseacute Pedro Serra (FLUL) Portugal

Joseacute Saragoccedila (Universidade de Eacutevora) Portugal

Joseacute Zeferino (ISPSN) Angola

Lucas Nhamba (UJES) Angola

Manuel Simatildeo (UAN) Angola

Marcelino Chipa (IFTS-ISPSN) Angola

Miguel Morgado (IEP - UCP) Portugal

Olga Maria Pombo Martins (UL - CFCUL) Portugal

Pedro Cassiano (ISPSN) Angola

Renata Karina Reis (USP) Brasil

Simatildeo Esperanccedila (UJES) Angola

Tadeu Weber (PUCRS) Brasil

Tarciacutesio Memoacuteria Eculica (ISPSN) Angola

CONSELHO DE ASSESSORES

Manuel Martins (ISPSNG) Angola

Antoacutenio Miranda (Politoacutelogo) Cabo Verde

Pablo Goacutemez Manzano (UValparaiacuteso-UC3M) Chile

Jorge Manuel Beniacutetez (UNA-UAM) Paraguai

Lola Blasco Mena (UC3M) Espanha

Miguel Aacutengel Corteacutes Rodrigueacutez (Salamanca) Espanha

Nuno Melin (UL CFCUL) Portugal

Pamela Colombo (CSIC) Espanha

Raimundo Tavares (Advogado) ndash Cabo Verde

Vicente Muntildeoz-Reja (UAM) Espanha

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EDITORIAL

AS LEIS DA PERIFERIA E A CIDADE FILOSOacuteFICA

Nos uacuteltimos tempos temos vivido um surto gritante de inseguranccedila na cidade A preocupaccedilatildeo

com a questatildeo da seguranccedila ultrapassou aquela de encontrar um emprego aliaacutes razatildeo mais

do que suficiente porque soacute os vivos podem trabalhar soacute aqueles que estatildeo em boas

condiccedilotildees fiacutesicas podem trabalhar A periferia criou novas leis e eacute na base destas leis que todo

o mundo vive a lei do medo a lei do estar-sem-estar enfim a lei do aprisionamento na

liberdade Parece que a periferia tomou conta da cidade porque provavelmente poucas

vezes ela foi escutada sem o entardecer do verniz O infractor eacute visto como perifeacuterico e como

delinquente e esquecemos que a proacutepria cidade pode ser perifeacuterica a partir do momento que

natildeo responde agraves expectativas da cidade Nenhum cidadatildeo espera do poliacutetico (salvo aquele

que eacute tremendamente ingeacutenuo) a honestidade a integridade ou honradez porque tambeacutem

ele sabe que natildeo tem todas estas qualidades aliaacutes natildeo tem e parece que natildeo lhes

preocupam tanto desde que os seus problemas sejam resolvidos E eacute isso que ele espera do

poliacutetico Espera que este resolva os seus problemas e a inseguranccedila eacute um destes problemas

que ele espera que o poliacutetico resolva A natildeo resoluccedilatildeo do problema tambeacutem conduz agrave cidade

na linguagem perifeacuterica naquilo que natildeo eacute o centro natildeo estaacute no centro e natildeo faz o centro

natildeo eacute tatildeo importante quanto o centro Nunca nos perguntamos se os verdadeiros

delinquentes satildeo aquelas pessoas que violam as leis da cidade de modo expliacutecito porque

invadem as nossas casas porque apropriam-se dos nossos bens dentro e fora de casa

Provavelmente natildeo sejam os verdadeiros delinquentes Porque os piores delinquentes podem

ser aqueles que natildeo tecircm a consciecircncia traacutegica natildeo tecircm consciecircncia infeliz como diz Spinoza

Dormem mas dormem porque natildeo pensam nos outros porque natildeo se revecircem nos outros e

porque criaram uma legitimidade proacutepria para a sua forma de violecircncia e nisto se parecem

com os proponentes da violecircncia perifeacuterica De modo que soacute o genealogista pode salvar a

cidade das suas duas violecircncias a violecircncia daqueles que estatildeo estampados como violentos e

a violecircncia daqueles que dormem apesar de serem tremendamente violentos O genealogista

eacute o filoacutesofo diz o Nietzsche de Foucault e de Deleuze mas natildeo aquele filoacutesofo que aceita que

todo o mundo olhe para ele como aquele que reflecte nas coisas ou que medita nas coisas

como se as outras aacutereas do saber natildeo reflectissem natildeo meditassem O genealogista eacute aquele

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que traz um comeccedilo que ldquocria um comeccedilordquo e que reinventa um comeccedilo a partir da dor e da

cura A cidade deve ser filosoacutefica natildeo para fazer aquilo que jaacute foi feito aquilo que jaacute foi criado

O genealogista natildeo pode aceitar os conceitos que servem apenas para ordquo limpar e fazer

brilharrdquo numa falsa luminosidade O genealogista deve dar a cidade o entendimento do

entristecimento O genealogista enquanto educador natildeo traz apenas a reflexatildeo e a

contemplaccedilatildeo traz sobretudo para a cidade o entristecimento porque vem para dizer aos

outros aquilo que eles natildeo querem ouvir vem para dizer aquilo que mais ningueacutem diria Eacute por

isso que a resposta filosoacutefica deve ser dura contrariamente agraves outras aacutereas do saber porque eacute

uma resposta que consiste no entristecimento A filosofia como educaccedilatildeo encara um

entristecimento mas um entristecimento alegre porque conduz agrave libertaccedilatildeo Ela oferece-nos

a possibilidade de perguntarmo-nos o que somos o que fazemos e se a nossa resposta for

honesta connosco mesmo poderemos fazer um bom trabalho para a cidade O genealogista eacute

um incomodador soacute pode incomodar e soacute deve incomodar para a libertaccedilatildeo tem que

proporcionar aos outros um comportamento de Lisias de Fedro Ter vergonha do que se

pensa saber

Por uacuteltimo dizer que esta 13ordf ediccedilatildeo conteacutem alguns artigos publicados na revista OPINIAtildeO

FILOSOacuteFICA da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUCRS) traz as mais

variadas reflexotildees no acircmbito acadeacutemico-cientiacutefico

A este respeito o Professor Flaviano Kambalu reflecte sobre o conceito de pessoa a sua

complexidade e a sua relaccedilatildeo com a unidade africana Tenta encontrar os princiacutepios e os

fundamentos metafiacutesicos que podem sustentar a possibilidade da uniatildeo

O Dr Nlando Faustino reactualiza ao histoacuterico pensador das independecircncias (agrave sua maneira)

Frantz Fanon Atraveacutes da obra ldquoOs condenados da terrardquo de Fanon faz uma leitura

desconstrutivista da colonizaccedilatildeo vista como uma oportunidade para a civilizaccedilatildeo Recusa com

Fanon a ideia de que a ldquocolonizaccedilatildeo igual a civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo e

defende precisamente a ideia da despersonalizaccedilatildeo imanente do processo colonializador

Por sua vez Inaacutecio Valentim lanccedila a interrogaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo e o processo educativo

liberal em Aacutefrica Discute a ideia da possibilidade de educar e com quem ser educado

Os Doutores Abel da Silva e Irene Moiseacutes Inaacuteculo pensam a educaccedilatildeo desde a perspectiva natildeo

universitaacuteria a partir do cunho da lei Procuram compreender e destacar a negatividade de

uma intervenccedilatildeo excessiva dos elementos natildeo autorizados no processo educativo

Inaacutecio Valentim

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IacuteNDICE

EDITORIAL 4

ARTIGOS 7

FILOSOFIA

O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA 8

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU

HISTOacuteRIA

A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA A PARTIR DE FRANTZ FANON 20

NLANDU MATONDO FAUSTINO

PEDAGOGIA

laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO LIBERAL EM AacuteFRICA 44

INAacuteCIO VALENTIM

EDUCACcedilAtildeO

CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS 62

ABEL JOSEacute DA SILVA

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS

NORMAS DE PUBLICACcedilAtildeO 72

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FILOSOFIA O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU a

Resumo

A vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante A Aacutefrica eacute um complexo e heterogeacuteneo mosaico

de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees cujo fundamento metafiacutesico de origem

representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica O fundamento metafiacutesico de origem

eacute importante porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do

que o que os separa Nisto o diaacutelogo eacute necessaacuterio para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente

se vatildeo intensificando na actualidade O diaacutelogo conducente agrave unidade natildeo obriga mas se

move no respeito da liberdade da pessoa e da soberania de cada Estado Enfim trata-se de um

diaacutelogo sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Palavras-chave Pessoa humana Aacutefrica Fundamento Metafiacutesico Fundamento Metafiacutesico e

Diaacutelogo

Abstract

The vocation to unity is a natural feature of the human because it is essentially free relational

and dialoguing Africa is a complex and heterogeneous mosaic of peoples languages races

cultures ethnic groups and religions whose metaphysical foundation of origin represents an

indivisible unity in historical reality The metaphysical basis of origin is important because in

all fields everything that unites human beings is stronger than what divides them In this

dialogue is necessary to overcome the historical prejudices and disagreements the divisions

intolerances and fundamentalisms that unfortunately are intensifying at the present time The

a Doutor em Filosofia Religioso Saletino e Decano da Faculdade de Direito da Universidade Katiavala Bwila

Benguela ndash Angola

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dialog leading to the unit doesnrsquot oblige but moves in respect of freedom of the person and

of the sovereignty of each State At last it is a sincere dialog and fruitful that acknowledging

all the legitimate diversity promotes respect harmony and collaboration

Keywords The Human Person Africa Metaphysical foundation Metaphysical foundation

and Dialogue

Premissa

No actual contexto de crescente e incisiva globalizaccedilatildeo eacute difiacutecil subtrair-se ao dever ou agrave

necessidade de prestar conta de si mesmos Neste clima cultural tambeacutem a unidade africana eacute

chamada a justificar-se ou seja a justificar o seu direito de continuar a ser Agrave primeira vista

poderia parecer que a sua justificaccedilatildeo natildeo seja hoje um problema visto que eacute cada vez mais

difuso o uso do termo unidade e da expressatildeo uniatildeo africana Mas urge reflectir nesta unidade

agrave luz da filosofia para lhe compreender o seu verdadeiro significado

Aprendemos com Nicola Abbagnano que laquonada do que eacute humano eacute estranho agrave filosofia [hellip]

aliaacutes esta eacute o mesmo homem que se interroga a si mesmo e procura as razotildees e o fundamento

do seu serraquo1 Esta eacute a filosofia na sua adesatildeo agrave existecircncia humana e ao mesmo tempo na sua

amplitude em relaccedilatildeo aos problemas do homem Natildeo de um homem que vive no Uacuterano mas

do homem concreto que na sua vida experimenta acircnsias e insuficiecircncias alegrias e

esperanccedilas tristezas e anguacutestias2 Portanto todas as coisas satildeo susceptiacuteveis de reflexatildeo

filosoacutefica inclusive a proacutepria unidade africana exige filosofar

De facto filosofar eacute examinar a realidade e isso de um modo ou de outro todos fazemos

constantemente Ao se tentar resolver os problemas globais sociais ou pessoais eacute impossiacutevel

se abster da racionalidade Entretanto haacute uma gama de situaccedilotildees onde a razatildeo natildeo pode

avanccedilar por falta ou excesso de dados o que impossibilita decisotildees objectivas Entra em cena

entatildeo a parte subjectiva humana mais especificamente a Intuiccedilatildeo como meio de direccionar

nosso foco de entendimento e apontar caminhos a serem trilhados pela racionalidade

Soacute que actualmente a filosofia passa por uma perda de identidade Existe uma verdadeira

inflaccedilatildeo do termo filosofia e como toda a inflaccedilatildeo eacute sintoma de queda de valores de crise

difusa e profunda Hoje o termo filosofia indica muitas vezes coisas difiacuteceis proacuteprias do

hiperuracircnio e natildeo o homem que natildeo aceitando passivamente as informaccedilotildees fornecidas pela

experiecircncia imediata desenvolve uma postura de questionamento proacuteprio sobre a realidade

interroga-se a si mesmo e metodoloacutegica e ordenadamente procura as razotildees e o fundamento

1 N ABBAGNANO Storia della filosofia I UTET Torino 1963 p XVII

2 Cf CONCIacuteLIO VATICANO II Gaudium et Spes n 1

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do seu ser buscando como faziam os gregos um instrumento fundamental e o uacutenico

racionalmente possiacutevel para a soluccedilatildeo dos problemas da vida

A confusatildeo com relaccedilatildeo agrave filosofia e a desinformaccedilatildeo geral que permeia mesmo o meio

acadeacutemico chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimeacutericas no sentido de se

eliminar a Filosofia Entretanto ciecircncia alguma pode se ocupar da macro realidade O

empirismo natildeo pode ser aplicado agrave civilizaccedilatildeo humana agrave mente ao total Quem estabelece a

comunicaccedilatildeo entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia Cremos ser

este o quadro em que se deve inserir a reflexatildeo sobre a unidade africana que aqui fazemos

partindo da metafiacutesica do termo pessoa

Tal reflexatildeo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vatildeo

desafiando a unidade do continente africano Haacute uma verdade hoje admitida por quase todos

e ateacute pelos mais preconceituosos arqueoacutelogos de que a humanidade e a civilizaccedilatildeo

desenvolveram-se na noite dos tempos no berccedilo deste continente gigantesco chamado Aacutefrica3

Temos consciecircncia de que a Aacutefrica eacute um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas Embora esta imensidatildeo nos aconselhe a natildeo fazer

generalizaccedilotildees na avaliaccedilatildeo dos problemas natildeo nos impede de buscar e propor soluccedilotildees aos

problemas inerentes agrave falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito

de pessoa

1 Breve excursus histoacuterico-filosoacutefico do conceito de pessoa

11 A densidade semacircntico-etimoloacutegica do termo pessoa

A densidade semacircntica do termo pessoa formou-se no tempo graccedilas ao contributo cultural de

muitos filotildees de reflexatildeo O conceito de pessoa tem pois um percurso rico quanto complexo

De recordar que na antiguidade greco-romana natildeo se encontra bem claro o conceito de pessoa

Todavia seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias

Etimologicamente e segundo algumas pesquisas atentas os primeiros indiacutecios do termo

pessoa encontram-se no acircmbito da cultura etrusca De facto o termo phersu utilizado nos

ritos em honra de Phersepona e que significaria maacutescara4 passou a significar o indiviacuteduo

3 Cf Carlos SERRANO ndash Mauriacutecio WALDMAN Memoacuteria drsquoAacutefrica A temaacutetica africana em sala de aula

Cortez Editora Satildeo Paulo 20082 p 75 Cf Tambeacutem Luigi TRANFO Africa La transizione Tra sfruttamento e

indifferenza EMI Bologna 1995 p 269 Pedro F MIGUEL Aacutefrica Uma visatildeo global Viverein Roma 2013

p 11 4 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique in

laquoRevue des sciences religieusesraquo XXII (1948) 277-299 A MILANO Persona in teologia Dehoniane Napoli

1984 pp 16-71

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mascarado a personagem que o actor representa no drama ou seja o indiviacuteduo humano

moral e social5

Nesta senda do indiviacuteduo mascarado Edith Stein observa que visto que nas comeacutedias e nas

trageacutedias se representavam personagens famosos o nome pessoa foi imposto para significar

sujeitos que tinham um papel na sociedade por isso alguns definem a pessoa como laquouma

hipoacutestase marcada por uma qualificada conexatildeo com a sua dignidaderaquo 6

Natildeo encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Boeacutecio que liga pessoa ao

verbo personare aludindo agrave amplificaccedilatildeo da voz de quem fala por detraacutes da maacutescara Assim

pessoa eacute segundo Boeacutecio laquodecta est volvatur sonusraquo 7 Tambeacutem natildeo eacute correcto afirmar que

pessoa seja a contracccedilatildeo de per se una como quereria a proposta de Alano di Lilla8

12 O percurso evolutivo do conceito de pessoa

Com Ciacutecero e Seacuteneca a evoluccedilatildeo do conceito de pessoa deu passos importantes sem

contudo chegar agrave definiccedilatildeo hodierna

Do segundo seacuteculo em diante o conceito de pessoa entra no uso corrente na onda do esforccedilo

de clarificaccedilatildeo exigida pelas controveacutersias teoloacutegicas sobre o dogma trinitaacuterio Poreacutem foi

com Boeacutecio que o conceito de pessoa adquire o actual conteuacutedo teoacuterico E isto no contexto da

clarificaccedilatildeo conceitual sobre as questotildees teoreacuteticas que emergiam da doutrina sobre a

Trindade

Segundo Boeacutecio laquopersona est rationalis naturae individua substantiaraquo (pessoa eacute substacircncia

individual de natureza racional) 9 Boeacutecio elabora esta definiccedilatildeo servindo-se do patrimoacutenio

filosoacutefico grego e latino De facto ele sistematiza os conceitos latinos de persona natura e

substantia estabelecendo uma equivalecircncia com os vocaacutebulos gregos πρόσωπον ούσία

ύπόστασις que na oscilaccedilatildeo terminoloacutegica do tempo eram usados de maneira equiacutevoca e

confusa

Com Boeacutecio a natura toma definitivamente o lugar de ούσία entendida como essecircncia e

substantia passa a traduzir o grego ύπόστασις10

Satildeo poucos os filoacutesofos que no medievo natildeo

5 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique op

cit pp 298-299 6 Edith STEIN Essere finito e essere eterno Per una elevavazione al senso dellrsquoessere Cittagrave Nuova Roma

1988 p 380 7 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1344

8 Cf Enrico BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico in AAVV Persona e

personalismo Aspetti filosofici e teologici Fondazione Lanza Padova 1992 p 43 9 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1343

10 Cf Claudio MICAELLI ldquoNaturardquo e ldquoPersonardquo nel ldquoContra Eutychen et Nestoriumrdquo di Boezio Osservazioni

su alcuni problemi filosofici e linguistici in Luca OBERTELLO (a cura di) Atti del Congresso Internazionale di

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tinham encontrado a definiccedilatildeo de Boeacutecio satisfatoacuteria porque essa interpretava a realidade que

se tentava definir precisando-lhe o significado

Esta definiccedilatildeo pessoa eacute substacircncia individual de natureza racional que durante o medievo

faz cultura e caracteriza a tradiccedilatildeo teoloacutegica latina surge sob o impulso das disputas contra os

nestorianos os quais sustentavam que em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em

uniatildeo permanente e moral e contra os monofisistas que sustentavam a existecircncia em Cristo de

uma soacute natureza a divina11

Na definiccedilatildeo de Boeacutecio o termo pessoa tem um sentido mais especiacutefico e refere-se agrave estrutura

fundamental e metafiacutesica do indiviacuteduo ou seja agrave substacircncia individual dotada de uma

natureza racional Quer dizer nem todos os seres naturais satildeo pessoas mas apenas aqueles

substanciais

Por isso a pessoa eacute substacircncia individual Eacute individual porque tem caracteriacutesticas que a

distinguem dos outros indiviacuteduos da mesma espeacutecie caracteriacutesticas que natildeo satildeo definiacuteveis

nem comunicaacuteveis aos outros Eacute substacircncia porque eacute existente em si por si e em nenhum

outro Dizer substacircncia individual significa portanto dizer que a pessoa natildeo tem necessidade

para existir de aderir a um outro ser e conteacutem no seu quid alguma coisa de

incomunicabilidade que divide com nenhum outro12

A pessoa eacute igualmente de natureza racional O seu conhecer natildeo eacute impresso na mateacuteria nem eacute

limitado por essa Dizer natureza racional significa por isso que a pessoa natildeo soacute exerce as

actividades conexas agrave natureza mas tem a capacidade de desenvolvecirc-las capacidade possuiacuteda

por natureza ou seja com o nascimento13

A pessoa eacute pois o gau mais elevado de ser

substancial porque essa eacute consciente do seu ser substacircncia individual

Toda a pessoa eacute portanto antes de mais um indiviacuteduo Mas ao mesmo tempo muito mais que

indiviacuteduo porque natildeo eacute uma personagem mas uma substacircncia individual que possui em si

uma certa dignidade em razatildeo da sua racionalidade Por isso natildeo basta afirmar que a pessoa eacute

Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott 1980) Herder Roma 1981 p 336 11

Fruto destas disputas eacute a obra de Boeacutecio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium

cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestoacuterio De recordar poreacutem que desde

os primeiros seacuteculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importacircncia ndashcom Tertuliano os Padres

Capadoacutecios S Agostinho e S Joatildeo Damasceno ndash nos interrogativos teoreacuteticos que emergiam da Revelaccedilatildeo e nas

controveacutersias teoloacutegicas acerca do dogma trinitaacuterio Tais controveacutersias se concluiacuteram com a foacutermula das trecircs

pessoas ou hipoacutestases na uacutenica substacircncia ούσία ou natureza divina Os Padres da Igreja separando de maneira

definitiva o conceito de πρόσωπον da referencia agrave personagem

traacutegica ou coacutemica deram focirclego a um aprofundamento do

conceito de pessoa tambeacutem na reflexatildeo filosoacutefica (cf Gregorio DI NISSA La grande catechesi CIttagrave Nuova

Roma 1982 p 51 Gregorio NAZIANZENO I cinque discorsi teologici CIttagrave Nuova Roma 1986 p 175)

12 Cf San Tommaso DrsquoAQUINO Questiones disputatae De potentia q 9 a 2 ID Summa Theologiae I q

29 a 13

Cf E BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico op cit p 48

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algo de individual e nem mesmo que eacute uma substacircncia ou uma natureza para defini-la do

ponto de vista metafiacutesico

Visto que a individualidade eacute acidente isto eacute pertence agravequilo que existe como perfeiccedilatildeo e eacute

caracteriacutestica de um sujeito e enquanto a substacircncia e a natureza indicam o que eacute proacuteprio da

espeacutecie ocorre a substacircncia individual de uma natureza racional para que exista pessoa

Ocorre portanto que se refira a uma substacircncia individualizada de um ser racional para que

exista pessoa do ponto de vista metafiacutesico Somente um ser racional pode corresponder agrave

dignidade de pessoa porque pessoa eacute enfim um ser em si que natildeo pode ser substituiacutedo por

um outro e que eacute capaz de operaccedilotildees proacuteprias e racionais

Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da foacutermula de Boeacutecio Satildeo

Tomaacutes elabora a sua definiccedilatildeo de pessoa como laquosubsistens in rationali naturaraquo 14

Com a foacutermula subsistens in rationali natura Satildeo Tomaacutes evidencia natildeo soacute o aspecto comum ndash

pressuposto universalmente aceite da pessoa ndash assim como expresso pela substacircncia

individual da definiccedilatildeo de Boeacutecio mas evidencia sobretudo aquele individual isto eacute o

existente considerado na acepccedilatildeo mais proacutepria ou seja o seu ser uacutenico e irrepetiacutevel De facto

na definiccedilatildeo de Boeacutecio a substacircncia individual parece ser concebida como individualidade A

individualidade poreacutem eacute determinaccedilatildeo da coisa e natildeo ainda do quem eacute uma conotaccedilatildeo

natural da pessoa e natildeo da mesma pessoa

Satildeo Tomaacutes condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o

que de mais nobre e perfeito haacute no universo e por isso afirma laquopersona significat id quod est

perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturaraquo 15

Pessoa eacute a natureza racional que existe num indiviacuteduo concreto Por isso somente aquilo que

eacute subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa E eacute o subsistir de maneira

individual na natureza racional que confere a dignidade agrave pessoa ou seja laquoquia magnae

dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur

personaraquo 16

De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana natildeo eacute a abstracta razatildeo ndash como parece

indicar a natureza racional da definiccedilatildeo de Boeacutecio ndash mas a racionalidade possuiacuteda por um

subsistente ou seja de um ser concreto E este em virtude de um actus essendi proacuteprio que

confere actualidade agrave substacircncia e agraves suas determinaccedilotildees Tudo isto que a pessoa sabe quer e

faz brota do proacuteprio acto em virtude do qual eacute aquilo que eacute

14

Cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 29 a 3 c 15

Ibidem 16

Ibidem

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Da elaboraccedilatildeo de Satildeo Tomaacutes compreende-se essencialmente o caraacutecter racional da pessoa

racional enquanto capaz de ser consciente do proacuteprio ser17

A pessoa eacute todo o indiviacuteduo de

natureza racional livre atravessado por tradiccedilotildees e culturas responsaacutevel relacional

inteligente volitivo dialogante e por isso fundamento de unidade entre indiviacuteduos e povos

2 Do conceito da pessoa agrave construccedilatildeo da unidade africana

Antes da conquista das independecircncias os colonos procuravam inflamar as diferenccedilas

fechando as coloacutenias em si mesmas num clima de reserva ciumenta de distacircncia e quase de

desconfianccedila Com as independecircncias os encontros entre paiacuteses antigamente colonizados se

multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaboraccedilatildeo E com a criaccedilatildeo da

Organizaccedilatildeo da Unidade Africana (OUA) que veio desempenhar o papel extremamente

precioso de lugar de encontros de oacutergatildeo de diaacutelogo e de troca de experiecircncias entre Chefes de

Estado e de Governo africanos o esforccedilo para a unidade se exprimiu de modo mais visiacutevel

Contudo a vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante E enquanto essencialmente relacionais e

dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e

que os distinguem das outras espeacutecies de seres Todos os homens tecircm as mesmas tendecircncias e

exigecircncias fundamentais quanto ao aneacutelito da unidade Todo o homem eacute chamado agrave comunhatildeo

e estaacute aberto agrave comunicaccedilatildeo e ao diaacutelogo

O homem eacute capaz pois de intercacircmbio de dar-se aos outros e deles receber porque a sua

natureza o abre agrave comunhatildeo agrave comunicaccedilatildeo e agrave unidade A sua natureza relacional e

dialogante natildeo eacute apenas uma necessidade mas eacute sobretudo um dom que o ambiente que o

impede de continuar fechado e isolado no egoiacutesmo e aberto aos conflitos De facto o homem

eacute aquilo que eacute pela sua inconfundiacutevel individualidade mas tambeacutem pelo seu ser aberto ao

outro e agraves realidades extriacutensecas por causa da sua sociabilidade A sociabilidade eacute pois uma

expressatildeo da sua humanidade e a unidade uma sua actuaccedilatildeo

Por isso a unidade africana pressupotildee a uniatildeo consciente entre africanos e o comum e

orgacircnico esforccedilo para conseguir o bem humano integral A unidade africana na base da

descoberta da comum humanidade articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para

com todos e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros

17

Muitas vezes o termo racional eacute confuso com o termo intelectual Na verdade intelecto e razatildeo diferem O

intelectual eacute um conhecimento simples e imediato enquanto o racional passa de um conhecimento simples para

um mais complexo (cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 59 a 1)

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povos do continente para alcanccedilar o bem comum18

Enfim a unidade encontra a sua raiz na essecircncia metafiacutesica da pessoa humana e exprime por

conseguinte a estrutura ontoloacutegica dos africanos e diz respeito agrave proacutepria possibilidade da sua

realizaccedilatildeo Por isso as divisotildees e os conflitos lupescos natildeo fazem parte da normalidade

africana

Portanto apesar de Aacutefrica ser um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas o continente africano explica-se como unidade na

diversidade E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos eacute garantida

metafisicamente pela origem pelo facto mesmo de sermos africanos ndash do Cabo ao Cairo de

Dar es-Salaam a Dakar ndash mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas

O fundamento metafiacutesico de origem representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica

uma forccedila inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as

diversidades presentes nos Estados africanos a incomunicabilidade geograacutefica a hipocrisia

as tensotildees e os desejos separatistas e conduzir a um compromisso claro entre os africanos

respeitando as suas diversidades e os seus interesses reciacuteprocos empenhando num projecto

comum para uma Aacutefrica mais humana e mais social em que reinem sempre o respeito muacutetuo

o reconhecimento e a protecccedilatildeo dos direitos humanos fundamentais e se faccedila valer o lado

melhor dos africanos os valores basilares da paz da justiccedila da liberdade da toleracircncia da

participaccedilatildeo e da solidariedade Este fundamento metafiacutesico de origem eacute importante

porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do que o que os

separa

Contudo a unidade africana deve ser construiacuteda e aprofundada de forma dinacircmica e

incessante porque os pressupostos da uniatildeo representados pelos factores geograacuteficos pela

multiplicidade das tradiccedilotildees regionais nacionais culturais e religiosas pelos interesses

econoacutemicos trocas econoacutemicas paciacuteficas e seguras pela heranccedila e tradiccedilotildees socioculturais

africanas mais autecircnticas em si natildeo bastam para criar a uniatildeo poliacutetica Eacute necessaacuterio voltarmos

agrave metafiacutesica da unidade e reelaborar juntos a histoacuteria da Aacutefrica que aleacutem das muito boas

experiecircncias de unidade eacute ainda caracterizada nalguns casos por desentendimentos lutas

fratricidas entre etnias e ateacute por conflitos beacutelicos

Com razatildeo Kwame Nkrumah apelava na sua obra A Aacutefrica deve unir-se agrave unidade natildeo

tanto para indicar a necessidade ou condiccedilatildeo de estar unidos mas sobretudo o acto de se unir

18

Cf L F KAMBALU A democracia personalista Os fundamentos onto-antropoloacutegicos da poliacutetica agrave luz de

Pietro Pavan Paulinas Lisboa 2012 pp 51-64

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porque os pressupostos geograacuteficos e econoacutemicos por si soacute natildeo bastam para criar a uniatildeo

Ocorrem instituiccedilotildees vinculativas bem como vontade e consciecircncia de pertenccedila a um mesmo

continente chamado Aacutefrica A consciecircncia deve preceder agrave formaccedilatildeo poliacutetica da unidade

africana que natildeo se poderaacute alcanccedilar de forma duradoira sem valores comuns Outrossim

ocorre recordar que a unidade eacute em si um bem somente quando eacute ordenada quando responde

agrave razatildeo objectiva da verdade da justiccedila e do bem O mesmo eacute dizer que a unidade eacute um bem

que vale tanto quanto respeita o que haacute de valor nas partes que a compotildeem

A unidade perde valor quando se realiza de modo maciccedilo esmagador absoluto destruidor e

totalitaacuterio abolindo o espaccedilo que permite o diaacutelogo destruindo desta forma a esfera em que os

homens agem tomam decisotildees comuns e operam colaborando Por isso sem liberdade nem

diaacutelogo a unidade africana seria impossiacutevel porque a Aacutefrica natildeo seria mais o espaccedilo onde cada

indiviacuteduo aos outros as proacuteprias capacidades em vista do bem comum segundo princiacutepios de

igualdade substancial Neste sentido a Aacutefrica seria um conjunto de indiviacuteduos e por

conseguinte um conjunto de Estados sem laccedilos entre si Cada um veria o outro natildeo como um

semelhante com quem eacute chamado a relacionar-se e tomar iniciativas mas um inimigo de

quem se defender

Enfim para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma

poliacutetica que envolva todas as pessoas e forccedilas a todos os niacuteveis na busca do bem comum ou

seja na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem agraves exigecircncias

intriacutensecas e imutaacuteveis da natureza humana Trata-se pois de condiccedilotildees econoacutemicas

juriacutedicas morais e religiosas que tornam possiacutevel e favorecem o conseguimento pleno e faacutecil

do desenvolvimento integral das pessoas

As exigecircncias histoacutericas e os significados de unidade satildeo sempre mutaacuteveis Mudam conforme

se entenda o que leva os homens a unirem-se a niacutevel ontoloacutegico e histoacuterico ou seja

consoante a efectiva existecircncia daquele princiacutepio originaacuterio em cada homem e povo ou

consoante o plano social poliacutetico religioso e cultural em que se actua a unidade De facto

natildeo poucas vezes os proacuteprios acontecimentos histoacutericos e as proacuteprias diferenccedilas exigem que

se redefinam os instrumentos poliacuteticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova

filosofia de relaccedilotildees entre povos e Estados que vatildeo aleacutem do que no passado natildeo foi possiacutevel

Tais diferenccedilas podem provir de uma profunda oposiccedilatildeo e de uma divergecircncia quanto ao fim

As diferenccedilas podem provir tambeacutem de uma dupla visatildeo de um mesmo objectivo Seja qual

for a origem das diferenccedilas a atitude sadia eacute compreender as realidades e promover o diaacutelogo

e ver como as proacuteprias diferenccedilas permitem situar melhor o objecto

Por isso eacute mister que nos diversos acircmbitos questotildees e temas sobre os quais incumbe o risco

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da divisatildeo os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma soacute voz cultivando e

empenhando-se intensa livre e conscientemente ao diaacutelogo

O diaacutelogo eacute fundamental para a vida poliacutetica sobretudo quando exerce a funccedilatildeo da busca da

verdade e do bem No caso da Aacutefrica o diaacutelogo torna-se uma exigecircncia insubstituiacutevel para

superar as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente se vatildeo intensificando

na actualidade O diaacutelogo eacute igualmente fundamental para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos culturais raciais sociais e religiosos e promover e concretizar a

unidade a justiccedila e a paz natildeo soacute por causa do pluralismo eacutetnico cultural racial social e

religioso do continente mas sobretudo por causa do seu pluralismo poliacutetico pois atraveacutes do

diaacutelogo cada indiviacuteduo ou povo enriquece o proacuteprio ponto de vista e converge para as noccedilotildees

de verdade e de bem humano e se empenha a potenciaacute-las corresponsavelmente para a

unidade

O diaacutelogo eacute tambeacutem essencial para a unidade poliacutetica social e econoacutemica e o

desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos pois tal como os povos tambeacutem

os Estados tecircm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si proacuteprios e no encontro

com os outros se realizarem plenamente Por isso o isolamento seria um impedimento

insuperaacutevel para a unidade e a realizaccedilatildeo do proacuteprio continente africano

Tal diaacutelogo deve basear-se em valores princiacutepios e normas aceites e deve ser assegurado por

um sistema constitucional e de direito pela promoccedilatildeo da justiccedila da paz e da liberdade para o

continente africano pela experiecircncia da verdade e pela busca constante de compreensatildeo dos

fundamentos que tecircm plasmado a Uniatildeo Africana

O diaacutelogo natildeo se processa sem dificuldades e eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes da discussatildeo e

argumentaccedilatildeo eacute reconheciacutevel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a

dignidade pessoa humana e eacute possiacutevel a diversos niacuteveis no plano da experiecircncia quotidiana

para as questotildees sociais comunitaacuterias familiares eacuteticas e ecoloacutegicas no plano do encontro

das culturas para o respeito e o melhor conhecimento reciacuteproco no plano desportivo para o

cultivo do sentimento de pertenccedila a um todo continental no plano poliacutetico para questotildees que

dizem respeito agrave seguranccedila econoacutemica cultural e juriacutedica no plano militar para questotildees que

dizem respeito agrave garantia da seguranccedila e integridade territorial bem como agrave erradicaccedilatildeo de

conflitos em Aacutefrica

Trata-se de um diaacutelogo gradual e sempre pronto a recomeccedilar Um diaacutelogo que natildeo obriga mas

se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado trata-se de um

diaacutelogo que natildeo eacute apenas instrumental nem nasce de taacutecticas ou de interesses mas um diaacutelogo

sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

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concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Enfim trata-se de uma actividade que apresenta motivaccedilotildees exigecircncias e dignidade proacutepria e

implica um muacutetuo esforccedilo de compreensatildeo por parte dos interlocutores que se compreendem

verdadeiramente quando descobrem aleacutem dos laccedilos que os unem e os integram uns aos outros

e dos valores a eles comuns as razotildees ideais em que cada um deles se inspira para realizaacute-los

Outrossim tal diaacutelogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente beneacuteficos como o

aumento da maturidade dos africanos ndash numa penetraccedilatildeo mais autecircntica da complexa

realidade do mundo hodierno em que a Aacutefrica se move ndash a resoluccedilatildeo dos problemas a

superaccedilatildeo dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de

todas as naccedilotildees bem como pela seguranccedila e bem-estar do continente africano

Tudo isso levanta muitos e difiacuteceis problemas de ordem econoacutemica social e poliacutetica Poreacutem

estaacute de facto que diante das diferenccedilas e dos antagonismos que o continente africano vive

actualmente soacute a consciecircncia da comum humanidade e o diaacutelogo franco luacutecido e proveitoso

pode permitir construir um caminho de toleracircncia e aceitaccedilatildeo muacutetuas para a realizaccedilatildeo de uma

convivecircncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da

pessoa humana da mobilidade interna da integraccedilatildeo soacutecio-econoacutemica do continente e do

florescimento de um mercado interno Isto faraacute tambeacutem com que os africanos natildeo sejam

meros fornecedores de mateacuterias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos

estrangeiros mas produtores e consumidores de produtos do seu proacuteprio continente

Um diaacutelogo natildeo inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade mas um diaacutelogo

franco na base da consciecircncia de pessoas humanas e do respeito reciacuteproco De facto sem

diaacutelogo franco natildeo haacute progresso porquanto o progresso eacute liberdade e somente a verdade que

pode exprimir-se nos torna livres

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HISTOacuteRIA A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO

SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA

A PARTIR DE FRANTZ FANON

NLANDU MATONDO FAUSTINO a

Resumo

O presente trabalho procurou desconstruir a partir das teses de Frantz Fanon sobretudo

aquelas formuladas nos ldquoCondenados da Terrardquo a ideia de uma suposta missatildeo civilizadora

subjacente na intenccedilatildeo colonizadora consubstanciada na equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual a

civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo Partindo de uma indagaccedilatildeo da validade criticaacutevel

da equaccedilatildeo em epiacutegrafe cruzou os factos agraves doutrinas que versam sobre o fenoacutemeno da

colonizaccedilatildeo de Aacutefrica e chegou a depreender com uma certa objectividade de que a

colonizaccedilatildeo em Aacutefrica tal ficou visto por Fanon foi mais um movimento de

despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeo dos africanos em geral e dos negros em particular do que

um projecto de humanizaccedilatildeo e de emancipaccedilatildeo dos indiacutegenas de Aacutefrica negra Ficou portanto

evidente ao longo deste trabalho de que a colonizaccedilatildeo foi uma violecircncia que extraiu a sua

originalidade na substantivaccedilatildeo do colonizado Uma violecircncia que natildeo soacute presidiu ao arranjo

do mundo colonial como tambeacutem ritmou e alimentou a destruiccedilatildeo antropoloacutegica e ontoloacutegica

do negro-africano incluindo todas as suas formas sociais arrasou completamente os seus

sistemas de referecircncias econoacutemicas os seus modos ldquoessendi et operandirdquo e decretou a crise

soacutecio-cultural dos povos negros de Aacutefrica

Palavras-chaves colonizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo violecircncia despersonalizaccedilatildeo descolonizaccedilatildeo

emancipaccedilatildeo

Abstract

The present study sought to deconstruct from the theses of Frantz Fanon especially those

formulated in The Wretched of the Earthrdquo the idea of a supposed civilizing mission

underlying the colonizing intention embodied in the equation colonization equal to

civilization and paganism equal to savageryrdquo Crossed the facts to the doctrines that focus on

a Doutorando em Filosofia na Universidade de Eacutevora Mestre em Ciecircncias da Educaccedilatildeo pela mesma

Universidade Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catoacutelica de

Angola

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the phenomenon of colonisation of Africa this was seen by Fanon was more a movement of

depersonalization of Africans in general and the negroes in particular than a draft of

humanization and emancipation of the peoples of black Africa Therefore became evident

throughout this work that the colonization was a violence that drew its originality of the

colonized

A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world as well as

marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African including all

its social forms wiped out completely their systems of economic references their modes

essendi et operandi and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa

Key words colonization civilization violence depersonalization decolonisation

emancipation

Introduccedilatildeo

A reflexatildeo em torno dos desafios da descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica continua actual e actuante em

qualquer discurso intelectual ou poliacutetico sobre o estado da naccedilatildeo de muitos Estados africanos

passados que satildeo aproximadamente seis deacutecadas desde que muitos deles se tornaram

independentes Esta actualidade pode todavia natildeo parecer evidente quando o enfoque do

discurso for a colonizaccedilatildeo De facto pode parecer anacroacutenico e mesmo sintomaacutetico falar da

colonizaccedilatildeo para tentar justificar a qualquer preccedilo o subdesenvolvimento e a instabilidade

sociopoliacutetica na actualidade de muitos Estados africanos independentes Bom ou malgrado

essa sensaccedilatildeo de anacronismo que sugere uma espeacutecie de eacutepokeacute em torno do fenoacutemeno

colonial perde a sua legitimidade na medida em que a pertinecircncia do discurso sobre a

descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica torna ldquoipsis verbirdquo procedente o discurso sobre a colonizaccedilatildeo Ou

seja toda a fala em torno da descolonizaccedilatildeo sugere de uma ou de outra forma uma incursatildeo

sobre a colonizaccedilatildeo Vamos ao longo deste trabalho procurar descortinar o conceito de

colonizaccedilatildeo na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do

trampolim que pode sugerir agrave nossa cogitaccedilatildeo sobre a descolonizaccedilatildeo Para o efeito

propomos a seguinte estrutura 1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a

partir da analiacutetica de Fanon 2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo

igual a civilizaccedilatildeo 3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel

deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo 4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos a uma possiacutevel

verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida 5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de

Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco 6 Desconstruindo o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista

erguida na recusa do humano enquanto diferente 7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta do

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mundo colonial uma antiacutetese agrave pretensatildeo de uma suposta missatildeo emancipadora dos

africanos subjacente na intenccedilatildeo colonizadora

1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a partir da sua analiacutetica

em Fanon

Natildeo eacute possiacutevel falar da descolonizaccedilatildeo em Fanon sem falar da colonizaccedilatildeo enquanto

referecircncia inofuscaacutevel e movimento historicizante que confere corpo e sentido mateacuteria e

forma a qualquer anaacutelise criacutetica do projecto de descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica Esta eacute de resto a

loacutegica que suporta o argumento de Fanon que passamos a transcrever

a descolonizaccedilatildeo [hellip] eacute um processo histoacuterico [hellip] natildeo pode ser

compreendida natildeo encontra a sua inteligibilidade natildeo se torna transparente

para si mesma senatildeo na exacta medida em que se faz discerniacutevel o

movimento historicizante que lhe daacute forma e conteuacutedo ndash a opressatildeo colonial

(Fanon 1968 p 26 ou Fanon 2002 p 452)

Desde esta perspectiva a anaacutelise sobre a colonizaccedilatildeo ganha uma particular relevacircncia na

medida em que se nos apresenta natildeo soacute como fundamento a partir do qual se pode erguer

qualquer avaliaccedilatildeo sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleoloacutegico da luta

dos africanos rumo agrave sua efectiva emancipaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo no universalismo humano

mas tambeacutem como pretexto para (re) pensar o caminho de superaccedilatildeo das novas formas de

colonizaccedilatildeo que grassam ainda Aacutefrica e que em si constituem um verdadeiro impasse para

uma descolonizaccedilatildeo efectiva do continente africano Importa desde jaacute sublinhar que esta

reflexatildeo de tipo histoacuterico natildeo encontra o seu real significado na descriccedilatildeo dos factos que ela

encerra nem na narraccedilatildeo histoacuterica que a constitui O seu real alcance reside na sua capacidade

de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a

descolonizaccedilatildeo vislumbrado pelos africanos passados que satildeo cinquenta e sete anos apoacutes a

morte de Fanon

Tem-se com efeito e natildeo poucas vezes associado a colonizaccedilatildeo de Aacutefrica a um projecto

civilizador ou modernizador que teraacute sido frustrado ou interrompido por uma espeacutecie de

ambiccedilatildeo irracional dos africanos admitindo-se deste modo a hipoacutetese segundo a qual a

colonizaccedilatildeo teraacute sido um ldquoprojecto interrompidordquo de civilizaccedilatildeo (modernizaccedilatildeo) da Aacutefrica e

dos africanos De recordar que o ldquodiscurso sobre o colonialismordquo de Aimeacute Ceacutesaire resulta

precisamente da necessidade de dissertar sobre uma possiacutevel analogia entre a ldquocolonizaccedilatildeo e

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a civilizaccedilatildeordquo Provocaccedilatildeo ou natildeo mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer

sobre o binocircmio colonizaccedilatildeo-civilizaccedilatildeo pelo Franco-Senegalecircs Alioune Diop fundador e

Director da Revista ldquoPreacutesence Africainerdquo em Paris 1950 insinua a existecircncia de tendecircncias

que aproximavam a colonizaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo Esta provocaccedilatildeo tal como nos parece ser natildeo

deixa de ser no plano metodoloacutegico um bom ponto de partida para uma discussatildeo mais

objectiva e criacutetica da concepccedilatildeo fanoniana do colonialismo porquanto nos permite lanccedilar a

discussatildeo levantando uma seacuterie de perguntas tais como 1 Eacute possiacutevel sustentar por via de

argumentaccedilatildeo uma provaacutevel analogia entre os dois conceitos em anaacutelise a saber colonizaccedilatildeo

e civilizaccedilatildeo 2 Teraacute havido realmente um plano colonial de civilizar ou modernizar a

Aacutefrica em proveito dos africanos 3 Era sensato legitimar a opressatildeo colonial a partir dos

progressos alcanccedilados nas coloacutenias de Aacutefrica durante a administraccedilatildeo colonial Dito de outro

modo Seraacute que os niacuteveis de desenvolvimento conseguidos em vaacuterios domiacutenios social

administrativo tecnoloacutegico e poliacutetico sob o regime colonial conferiam efectivamente a

merecida dignidade a Aacutefrica e aos africanos 4 Teraacute a Aacutefrica realmente recusado o

desenvolvimento como diria Axel Kabu ao engajar-se na luta pela descolonizaccedilatildeo 5 E hoje

em plena era poacutes-colonial poderatildeo os africanos afirmar com realismo franqueza e

frontalidade que os ideais que nortearam o projecto da descolonizaccedilatildeo foram alcanccedilados 6

Teraacute alguma razatildeo de ser o postulado segundo o qual o projecto de descolonizaccedilatildeo teraacute sido

abortado na sua menor idade admitindo-se deste modo um possiacutevel equiacutevoco entre os

liacutederes e os intelectuais africanos que teratildeo confundido as independecircncias (enquanto meio)

com a descolonizaccedilatildeo (enquanto fim da longa marcha usando a expressatildeo de Reneacute Dumont

rumo a um continente mais humano mais livre mais autoacutenomo mais justo e mais proacutespero)

Ao longo desta reflexatildeo tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas

perguntas tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon

2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeo

Qual teraacute sido o verdadeiro retrato do colonialismo um processo de civilizaccedilatildeo dos

chamados indiacutegenas ou um ldquomovimento de despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeordquo dos povos

africanos Eacute evidente que para Fanon esta questatildeo nem sequer merece ser colocada De

facto o jovem martinicano eacute bastante incisivo e objectivo na sua anaacutelise Para ele a

colonizaccedilatildeo eacute antes de mais uma ldquoviolecircnciardquo conceito que de resto daacute tiacutetulo ao Iordm capiacutetulo

do Les Damneacutes de la Terre (Fanon 1968 p23 ou 2002 p448) Na sua oacuteptica a violecircncia foi

precisamente o elemento estrateacutegico e estruturante da loacutegica colonial Trata-se de uma

violecircncia que extrai sua originalidade na substantificaccedilatildeo do colonizado que a proacutepria

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situaccedilatildeo colonial segrega e alimenta Aliaacutes o encontro entre o colonizador e o colonizado diz

Fanon teve sempre o retrato de violecircncia e nunca foi expressatildeo de uma vontade civilizadora

ou humanizadora Pode se ler em Fanon que a colonizaccedilatildeo eacute a categorizaccedilatildeo de um encontro

que

se desenrolou sob o signo da violecircncia e sua coabitaccedilatildeo ndash ou melhor

a exploraccedilatildeo do colonizado pelo colono ndash foi levada a cabo com

grande reforccedilo de baionetas e canhotildees [hellip] A violecircncia [hellip] presidiu

ao arranjo do mundo colonial [hellip] ritmou incansavelmente a

destruiccedilatildeo das formas sociais indiacutegenas [hellip] arrasou completamente

os sistemas de referecircncias da economia os modos da aparecircncia e do

vestuaacuterio do colonizado (Fanon 1968 pp 26 e 30)

Eacute possiacutevel aproximar em boa verdade uma situaccedilatildeo de uma clara alienaccedilatildeo antropoloacutegica

fazendo feacute agrave descriccedilatildeo de Fanon a um projecto de civilizaccedilatildeo sem cair em sofismas que

desemboquem numa contradiccedilatildeo De notar que este mesmo entendimento de Fanon eacute

corroborado pelo seu antigo mestre Aimeacute Ceacutesaire que parafraseamos nos seguintes termos a

colonizaccedilatildeo enquanto violecircncia no sentido mais bruto da palavra eacute uma autecircntica antiacutetese da

civilizaccedilatildeo ela por natureza desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado A

colonizaccedilatildeo legitima o ilegiacutetimo e normaliza o anormal pode-se matar agrave vontade na

Indochina torturar em Madagaacutescar prender na Aacutefrica negra seviciar nas Antilhashellip (cfr

Ceacutesaire 1978 pp 7 e 14) Natildeo eacute preciso muita hermenecircutica para apreender nos dizeres de

Sartre de que a violecircncia constitui o ldquomodus operandirdquo proacuteprio do sistema colonial que nem

as suas geniais trapaccedilas conseguem disfarccedilar A peculiaridade do agir colonial distancia a

colonizaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo E para deixar tudo a nu Sartre faz a seguinte inconfidecircncia

ldquonossos soldados no ultramar rechaccedilam o universalismo metropolitano

aplicam ao geacutenero humano o numerus clausus uma vez que ningueacutem pode

sem crime espoliar seu semelhante escravizaacute-lo ou mataacute-lo eles datildeo por

assente que o colonizado natildeo eacute o semelhante do homem Nossa tropa de

choque recebeu a missatildeo de transformar essa certeza abstrata em realidade a

ordem eacute rebaixar os habitantes do territoacuterio anexado ao niacutevel do macaco

superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [hellip] nada

deve ser poupado para liquidar as suas tradiccedilotildees para substituir a liacutengua deles

pela nossa para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossahelliprdquo (Sartre Les

Damneacutes 1961 p 9)

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Esta violecircncia que parte do plano simboacutelico conceitual atingiu o seu ponto auge com

desterramento dos indiacutegenas feitos estrangeiros na sua proacutepria terra como foi o caso do

coacutedigo civil imposto aos argelinos visando regular o direito agrave propriedade e agrave heranccedila com a

uacutenica finalidade de desterrar os autoacutectones tirando-lhes o que de mais precioso tinha ndash a sua

proacutepria terra De realccedilar que o referido coacutedigo tinha aprovado a titularidade comum de terras

entre a classe-meacutedia francesa e a sociedade tribal como estrateacutegia de expropriaccedilatildeo de terras

aos autoacutectones atraveacutes de poliacuteticas especulativas (cfr Sartre 1967 p39)

Desde este ponto de vista pode-se aferir que os ldquomodus essendi et operandirdquo do colonialismo

configuravam em certa medida aquilo que Sartre chamou de ldquoimoralidade narcisistardquo da

ambiccedilatildeo ocidental da qual emerge o impulso que modifica inevitavelmente qualquer

indiviacuteduo que adere agrave dinacircmica colonial dando-lhe boa consciecircncia e boas razotildees de ver no

outro (natildeo branco) um simples animal Esta constataccedilatildeo sartriana valida sem qualquer

sombra de duacutevida a convicccedilatildeo de Ceacutesaire para quem o colonialismo eacute brutalidade

intimidaccedilatildeo crueldade sadismo choque violaccedilatildeo roubo desprezo culturas obrigatoacuterias

desconfianccedila massas aviltadas ausecircncia de contacto humano relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de

submissatildeo que transformam o negro colonizado em criado ajudante comitre e instrumento de

produccedilatildeo (cfr Ceacutesaire 1978 p25) A partir destes pressupostos torna-se de facto forccediloso

concluir que natildeo existe tal como defende Fanon qualquer sustentabilidade quer

argumentacional quer factual para a validaccedilatildeo da equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeordquo

pois os factos atestam que colonizaccedilatildeo eacute o oposto de civilizaccedilatildeo Mas uma deacutemarche

etimoloacutegica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano teoacuterico

conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem

3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo

Para fundamentar com maior objectividade o alcance da deduccedilatildeo decorrente da narrativa de

Fanon em relaccedilatildeo a conjecturada correlaccedilatildeo entre os dois conceitos em anaacutelise pareceu-nos

mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos no sentido de os tornar mais

inteligiacuteveis para daiacute depreender o seu justo significado e consequentemente confirmar ou

infirmar a suposta correlaccedilatildeo entre ambas Conveacutem no entanto sublinhar que o caraacutecter

polisseacutemico dos conceitos em epiacutegrafe natildeo nos permite ignorar o facto de que natildeo eacute tatildeo faacutecil

quer do ponto de vista conceitual quer do ponto de vista factual traccedilar a linha de

convergecircncia ou de divergecircncia entre eles pois o proacuteprio caraacutecter multidisciplinar que o

conceito de civilizaccedilatildeo envolve hoje confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta

qualquer entendimento homogeacuteneo linear e conclusivo Acresce-se a este dado o facto de

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que nos dias que correm o conceito de civilizaccedilatildeo eacute reivindicado como objeto de estudo da

antropologia da ciecircncia da cultura do direito da histoacuteria da filosofia poliacutetica da sociologia

poliacutetica da religiatildeo etc proporcionando-lhe um enquadramento episteacutemico bastante

complexo que recusa qualquer unicidade semacircntica No entanto um recuo estrateacutegico e

metodoloacutegico ao seacuteculo das luzes onde o significado do termo ldquocivilizaccedilatildeordquo emergiu da

proacutepria raiz etimoloacutegica do conceito ldquocivilisrdquo ldquocivisrdquo cujo entendimento remetia agrave acccedilatildeo

de tornar civil ou urbano pode permitir uma espeacutecie de unidade de sentido a partir do qual se

pode fundamentar a possiacutevel analogia conceitual destes dois termos

A Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura natildeo foge muito desta percepccedilatildeo quando define a

colonizaccedilatildeo como um fenoacutemeno sociopoliacutetico baseado na dependecircncia de um grupo humano

ou de um territoacuterio a um outro que exerce nele influecircncias demograacuteficas econoacutemicas

culturais sociais ou poliacuteticas Entendimento agrave luz do qual alguns teoacutericos nos seacuteculos XIX e

XX basearam a sua definiccedilatildeo de colonizaccedilatildeo como atividade pela qual um povo de cultura

superior ocupa e organiza por conta proacutepria um territoacuterio habitado por povos de cultura

inferior estendendo a sua soberania desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas

segundo o princiacutepio da civilizaccedilatildeo Observa-se aqui a missatildeo civilizadora subjacente ao

conceito da colonizaccedilatildeo enquanto fenoacutemeno sociopoliacutetico cuja meta eacute levar as coloacutenias ao

desenvolvimento cultural social econoacutemico e cientiacutefico ou seja agrave modernizaccedilatildeo do territoacuterio

ocupado Este eacute de resto o significado que decorre do entendimento filoloacutegico do conceito de

colonizaccedilatildeo cuja estrutura originaacuteria se funda em torno de dois pressupostos basilares

nomeadamente o cultivo da terra isto eacute o desenvolvimento econoacutemico e o cultivo dos

homens ou seja a promoccedilatildeo sociocultural e econoacutemica das populaccedilotildees consideradas na

posiccedilatildeo receptiva (cfr Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura nordm5 p996ss)

De salientar que o conceito de civilizaccedilatildeo emergiu e muito provavelmente antes de qualquer

outro paiacutes no contexto sociocultural francecircs e fazia referecircncia essencialmente a trecircs

dimensotildees que vale a pena enumerar a primeira era referente ao primado da vida em

comunidade sobre a vida solitaacuteria a segunda fazia alusatildeo ao primado da vida na cidade sobre

a vida no campo a uacuteltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o

selvagem isto eacute o homem moderno distinguido pela ciecircncia e pela teacutecnica sobre o baacuterbaro

(cfr Enciclopeacutedia LB da Cultura nordm5) Neste contexto teoacuterico-conceitual civilizar era de

facto sinoacutenimo de trabalhar na integraccedilatildeo dos indiacutegenas na comunidade metropolitana na

modernizaccedilatildeo da vida do campo isto eacute levando as condiccedilotildees da cidade ao campo (energia

eleacutectrica aacutegua potaacutevel educaccedilatildeo escolar assistecircncia meacutedica e medicamentosahellip) e na policcedilatildeo

do baacuterbaro pela chamada ldquoculturardquo cientiacutefica e tecnoloacutegica

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Este parece ser o entendimento mais viaacutevel para o exame a que nos propusemos da

correlaccedilatildeo destes dois vocaacutebulos O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e

sustentabilidade episteacutemica no Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea editorial

Verbo acresce ainda mais o nosso interesse por esta perspectiva (cfr 2001 p833) Segundo

o Dicionaacuterio ora referenciado a ldquocivilizaccedilatildeordquo eacute a acccedilatildeo ou o resultado de transmitir

conhecimentos comportamentos e teacutecnicas consideradas desejaacuteveis numa sociedade moderna

Por conseguinte civilizar eacute dar caracteriacutesticas proacuteprias de sociedades teacutecnicas cientiacutefica e

economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas ou ainda dar haacutebitos e ajudar a

desenvolver comportamentos desejaacuteveis numa sociedade desenvolvida Conclui-se pois que

do ponto de vista conceitual ou definicional existem razotildees para fundamentar a presumiacutevel

correlaccedilatildeo entre os conceitos de ldquocolonizaccedilatildeo e civilizaccedilatildeordquo Mas a natildeo homogeneidade de

compreensatildeo na interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo destes conceitos agrave partida polisseacutemicos e

multidisciplinares e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descriccedilotildees fanonianas

obrigam-nos a dar um passo a mais espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e

continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo

4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos agrave uma possiacutevel verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de

partida

Se eacute possiacutevel aferir do ponto de vista definicional uma certa correlaccedilatildeo analoacutegica entre os

conceitos que fundam a nossa equaccedilatildeo de partida tal como ficou patenteado no ponto

anterior do ponto de vista doutrinal e factual esta correlaccedilatildeo carece de uma anaacutelise

minuciosa que permita apurar se a propensatildeo civilizadora inerente ao conceito de colonizaccedilatildeo

pelo menos no plano teoacuterico-conceitual conseguiu vincar como aspecto norteador da acccedilatildeo

colonial ou teraacute por alguma razatildeo ficado ofuscada durante o processo colonial Impotildee-se-

nos a este niacutevel retomar o ponto de vista de Fanon para quem a colonizaccedilatildeo eacute antes de

mais uma violecircncia que se consubstancia na animalizaccedilatildeo e na aniquilaccedilatildeo dos (negros)

colonizados Para sustentar o seu argumento Fanon comeccedila por relembrar a atitude do colono

que em vaacuterias circunstacircncias fez recurso a ldquouma linguagem zooloacutegica usando expressotildees

como ldquo[hellip] hordas fedor buliacutecio [hellip] e quando os quisesse descrever com mais exatidatildeo

[hellip] recorria constantemente ao bestiaacuteriordquo para designar os negros (Fanon 1968 p 31 ou

2002 p 456) Esta animalizaccedilatildeo do colonizado eacute para Fanon a expressatildeo mais eloquente de

uma violecircncia absoluta que desenraiacuteza o aviltado de sua humanidade E para reforccedilar a sua

criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista o colono via-se na necessidade de

encontrar novos atributos que pudessem explicitar da melhor maneira possiacutevel a real

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dimensatildeo semacircntica subjacente nos conceitos de ldquoindiacutegena e selvagemrdquo que em si jaacute natildeo

eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de

Aacutefrica entre outros

demografia galopante massas histeacutericas rostos de onde fugiu qualquer traccedilo

de humanidade corpos obesos que natildeo se assemelham mais a nada corte sem

cabeccedila nem cauda crianccedilas que datildeo a impressatildeo de natildeo pertencerem a

ningueacutem preguiccedila estendida ao sol ritmo vegetalhellip (Fanon 1968 p 32 ou

Fanon 2002 p457)

A validade histoacuterica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento Eacute sensato

falar de um projecto de civilizaccedilatildeo de animais sem converter a proacutepria racionalidade

civilizadora numa irracionalidade animal Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade

animal de uma civilizaccedilatildeo cuja racionalidade eacute o epicentro da sua acccedilatildeo muitos preferiram

considerar as afirmaccedilotildees de Fanon de irresponsaacuteveis e repletas de inverdades qualificando o

proacuteprio Fanon de agitador e instigador da violecircncia ante a sua incisiva caracterizaccedilatildeo do

sistema colonial Dentre outros podemos citar Alain Finkierkraut cujo pensamento mais do

que uma antiacutetese agraves teses de Fanon eacute uma tentativa de demonstraccedilatildeo da derrota do projecto da

descolonizaccedilatildeo Piegraverre Bourdieu de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que

pesam sobre Fanon eacute paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010 p 109)

como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus Simone de

Beauvoir Germaine Tillion Jasques Amrouche e outros que como Fanon e Sartre tiveram a

ousadia de denunciar cada um agrave sua maneira a violecircncia inerente ao sistema colonial

forjando novas noccedilotildees de identidade poliacutetica que continuam a influenciar o debate poliacutetico na

actualidade

No seu ldquomarxismo encontra Bourdieurdquo Burawoy procura mostrar que apesar da enorme

distacircncia que separa o quadro teoacuterico-reflexivo de Bourdieu e Fanon nomeadamente ldquoo

marxismo terceiro-mundista de um lado e a teoria da modernizaccedilatildeo de outro ladordquo o

pensamento destes dois autores apresenta inuacutemeras similitudes sobretudo entre o Fanon do

Le Damneacutes de la terre de 1961 e o Bourdieu de Sociologie de lrsquoAlgerie de 1958 Embora

natildeo seja objecto deste debate julgamos oportuno e procedente mencionar a tiacutetulo de

exemplo algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violecircncia como uma das

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave natureza proacutepria do sistema colonial e nos termos muito

semelhantes aqueles que aparecem nas paacuteginas 26 e 30 do Le Damneacutes de la terre de Fanon

(cfr 1968) ao afirmar

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o sistema colonial enquanto tal natildeo poderaacute ser destruiacutedo senatildeo atraveacutes de

um questionamento radical Todas as mutaccedilotildees satildeo submetidas agrave lei de tudo

ou nada Este facto estaacute na consciecircncia pelo menos de forma confusa quer

entre os membros da sociedade dominante quer entre os membros da

sociedade dominada [hellip] Mas eacute preciso admitir que o primeiro e uacutenico

questionamento radical do sistema eacute aquele que o proacuteprio sistema engendrou

isto eacute a revoluccedilatildeo contra os princiacutepios que o fundaram [hellip] A situaccedilatildeo

colonial criou o despreziacutevel e ao mesmo tempo o desprezo mas criou

tambeacutem a revolta contra o desprezo Assim cresce cada vez mais a tensatildeo

que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu 1958 pp 28 e 129)

Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu numa clara aproximaccedilatildeo da

colonizaccedilatildeo agrave violecircncia De facto a violecircncia simboacutelica e real eacute depreendida em muitos

cenaacuterios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial

Vaacuterios satildeo os etnoacutelogos e ideoacutelogos que nas entrelinhas do seu pensamento conferem uma

certa razatildeo a um tal pressuposto Alfred de Vigny por exemplo faz jus a esta violecircncia

simboacutelica ao afirmar sem rodeios que o mundo natildeo europeu eacute um mundo animal mundo dos

baacuterbaros mundo da morte e consequentemente uma ameaccedila ao mundo europeu Partindo

deste postulado deduz-se que para De Vigny a colonizaccedilatildeo era um processo compulsivo de

civilizaccedilatildeo isto eacute uma opccedilatildeo para a vida e tal como diz ldquose se prefere a vida agrave morte tem de

se preferir a civilizaccedilatildeo agrave barbaridaderdquo que natildeo eacute apenas um reino animal e de morte mas

tambeacutem uma ameaccedila agrave civilizaccedilatildeo Em virtude disto conclui De Vigny ldquonenhum povo tem o

direito de permanecer baacuterbaro ao lado das naccedilotildees civilizadasrdquo Depreende-se daqui que a

uacutenica loacutegica vaacutelida eacute a disjuntiva ldquoto be or not to berdquo como diria Shakespeare ldquothat is the

questionrdquo (cfr De Vigny 2003 p87)

Esta apreciaccedilatildeo lacoacutenica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que como De

Vigny tambeacutem considera a colonizaccedilatildeo como uma obra civilizadora uma espeacutecie de direito e

dever das sociedades evoluiacutedas Folliet baseia o seu argumento nas caracteriacutesticas

heterogeacuteneas das sociedades isto eacute nos desniacuteveis existentes entre as sociedades colonizadas e

colonizadoras quer nos planos econoacutemico administrativo cultural social e poliacutetico quer nos

planos cientiacutefico e tecnoloacutegico Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizaccedilatildeo

seria possivelmente o processo de supressatildeo destes desniacuteveis sociais com o auxiacutelio das

sociedades mais desenvolvidas Pelo que a manutenccedilatildeo destes desniacuteveis como forma

hegemoacutenica de controlo ou de manutenccedilatildeo de superioridade foge do acircmbito da colonizaccedilatildeo

para desembocar no campo de acccedilatildeo do colonialismo (cfr Folliet 1932 p 75) Eacute caso para

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dizer que o entendimento teoacuterico de Folliet apresenta uma diferenccedila niacutetida entre a colonizaccedilatildeo

que seria para o autor o sinoacutenimo de civilizaccedilatildeo e o colonialismo que pode ser visto como

processo de exploraccedilatildeo e subjugaccedilatildeo das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades

desenvolvidas

Mas eacute preciso dizer que se do ponto de vista conceitual Folliet deu um tamanho salto

qualitativo propiciador de uma possiacutevel coabitaccedilatildeo paciacutefica entre o colono e o colonizador

aludindo agrave missatildeo civilizadora da colonizaccedilatildeo do ponto de vista praacutetico o discurso follietiano

deu lugar a muitas ambiguidades sobretudo quando o proacuteprio autor considera a colonizaccedilatildeo

como forma mais viaacutevel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em

territoacuterios subdesenvolvidos e valorizaacute-los para o bem-comum da humanidade sem definir as

regras nem as modalidades ou os viacutenculos contractuais para tal Com efeito Folliet considera

um dado assente que ldquoas naccedilotildees economicamente mais evoluiacutedas tecircm o direito de explorar as

riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagensrdquo (Folliet 1932 pp 101 e 268) E

para natildeo camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violecircncia Folliet

defende a necessidade da manutenccedilatildeo das desigualdades entre o colonizador e o colonizado

numa clara opccedilatildeo pelo colonialismo em detrimento da colonizaccedilatildeo contrariando a sua proacutepria

doutrina com o seguinte posicionamento

a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores de modo que o sujeito

colonizado natildeo passe numa vontade de vinganccedila a esquecer a sua

heteronomia absoluta eacute portanto uacutetil e necessaacuterio que as mais vastas

propriedades as mais ricas induacutestrias os mais frutuosos comeacutercios pertenccedilam

aos representantes da raccedila superior (Folliet 1932 p228)

Uma possiacutevel deduccedilatildeo leva-nos por um lado a aferir a inadequaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida

com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analiacuteticos da questatildeo em

estudo e a considerar por outro lado a emergecircncia da categoria de dominaccedilatildeo como outro

elemento caracteriacutestico da estrateacutegia colonial na relaccedilatildeo colonizadocolonizador Este

princiacutepio que eacute em si mesmo o elemento estruturante da tensatildeo e ao mesmo tempo

provocador da dialeacutectica do senhor e do escravo permite-nos um salto para o exame da

possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a Aacutefrica em proveito dos

africanos

5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco

Eacute possiacutevel compatibilizar o instinto de dominaccedilatildeo com a vontade de promover ou de

emancipar Guillaume Sureacutena num movimento contraacuterio ao nosso itineraacuterio apresenta um

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discurso capaz de relanccedilar a discussatildeo No seu artigo intitulado ldquoPsycanalyse et

anticolonialismerdquo Sureacutena lamenta o desperdiacutecio de uma oportunidade que teria resultado num

possiacutevel encontro inter-civilizacional frutiacutefero e que no entanto teraacute sido frustrado pela

vontade dominadora do instinto colonial Os textos surenianos insinuam que do ponto de

vista praacutetico a civilizaccedilatildeo europeia nunca teve qualquer plano de promover nem de

reconhecer as outras civilizaccedilotildees como parceiras importantes para um crescimento conjunto

A sua ambiccedilatildeo foi sempre de conhecer para dominar e subjugar como ficou explicitado nesta

passagem

este encontro de civilizaccedilotildees tatildeo diferentes poderia ter sido o momento de um

intercacircmbio fecundo e de um enriquecimento muacutetuo como lamentou o

antropoacutelogo francecircs Claude Levi-Strauss Mas para a metafiacutesica europeia

desde a Greacutecia antiga o saber foi sempre o equivalente de ldquomaitriserrdquo isto eacute

de dominar As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados

sob os conceitos com partiacuteculas latinas e gregas Os locais geograacuteficos

receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridiacuteculos por

falta de qualquer relaccedilatildeo com os espiacuteritos que os habitavam outrora (Sureacutena

1943 p 4)

Diga-se pois de passagem que foi assim na Greacutecia antiga foi assim ateacute ao seacuteculo XX e

nada justifica que natildeo continue assim nos dias que hatildeo-de vir Mas a questatildeo eacute qual o destino

que o instinto dominador das naccedilotildees pode proporcionar agrave espeacutecie humana Conveacutem recordar

que num passado mais recente da histoacuteria da Europa a colonizaccedilatildeo assumiu o caraacutecter de

dominaccedilatildeo dos povos e dos seus recursos naturais Os europeus sempre mostraram-se mais

interessados com uma partenogeacutenese profunda dos africanos para os submeter mais

facilmente e natildeo para os civilizar De facto desde o iniacutecio do seacuteculo XVII com as grandes

navegaccedilotildees e os descobrimentos das ameacutericas o interesse em explorar e conquistar novas

terras ganhou um enorme vigor na Europa e com ele emergiu tambeacutem a chamada

colonizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de povoamento A primeira forma de colonizaccedilatildeo foi o momento

no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as coloacutenias tinham uma

utilidade meramente lucrativa junto da metroacutepole A segunda acontecia de maneira

espontacircnea mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econoacutemica

com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem aiacute acorria

Muitos estudos mostram que no continente africano este tipo de colonizaccedilatildeo foi sempre

acompanhado de desterramento de zonas araacuteveis ou de pastagem dos autoacutectones bem como

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da supressatildeo dos eventuais direitos que detinham1 Embora referindo-se a um contexto muito

mais preteacuterito ao de Fanon Ceacutesaire Sartre e outros Iva Cabral traz ao de cima a ideia de

dominaccedilatildeo e de exploraccedilatildeo como elementos catalisadores do interesse europeu em Aacutefrica

ajudando assim na desconstruccedilatildeo da hipoacutetese de um possiacutevel plano colonial para o

desenvolvimento de Aacutefrica e dos africanos De facto Iva Cabral afirma que a experiecircncia

ultramarina se resumia na conquista das praccedilas do Norte de Aacutefrica e na fixaccedilatildeo de guarniccedilotildees

e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territoacuterios tropicais de

Aacutefrica natildeo pelo desejo de levar a civilizaccedilatildeo agraves terras longiacutenquas de Aacutefrica mas por causa

dos inuacutemeros privileacutegios econoacutemicos e sociais que tinham os quais incluiacuteam em alguns

casos a sociedade escravocrata de produccedilatildeo no Atlacircntico (cfr 2015 p25)

Este suporte histoacuterico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra

um reforccedilo na posiccedilatildeo de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa

anaacutelise sobre as categorias de dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo como sustentaacuteculos da acccedilatildeo

colonizadora quando num tom autocriacutetico apontando o dedo aos seus irmatildeos europeus

pinta sem complexo nem contemplaccedilotildees o verdadeiro retrato da Europa colonial permitindo

a apreensatildeo da razatildeo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opressatildeo contra os

autoacutectones em territoacuterios colonizados sobretudo em Aacutefrica nestes termos

sabeis muito bem que somos exploradores Sabeis que nos apoderamos do

ouro e dos metais e posteriormente do petroacuteleo dos continentes novos e que

os trouxemos para as velhas metroacutepoles Com excelentes resultados palaacutecios

catedrais capitais industriais [hellip] A Europa empanturrada de riquezas

concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes entre noacutes

lucramos com a exploraccedilatildeo colonial (Fanon 1968 p 17)

Se tomamos a seacuterio as diversas constataccedilotildees dos autores supra mencionados torna-se

insustentaacutevel a hipoacutetese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos

africanos e da Aacutefrica num contexto de exploraccedilatildeo no seu sentido mais radical e mais bruto do

termo isto eacute uma exploraccedilatildeo natildeo soacute de recursos naturais dos territoacuterios colonizados mas

tambeacutem do seu proacuteprio capital humano Num tal contexto aproximar a colonizaccedilatildeo da

civilizaccedilatildeo eacute admitir agrave partida uma ambiguidade semacircntica na compreensatildeo destes dois

conceitos Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade Ceacutesaire diz que a colonizaccedilatildeo natildeo

deve ser confundida com uma empresa filantroacutepica nem com uma nobre vontade de recuar as

fronteiras da ignoracircncia da doenccedila da tirania e ateacute mesmo da propagaccedilatildeo de Deus e muito

1 Cfr httpsptwikipediaogwikicolonizaccedilatildeo Enciclopeacutedia livre 15022017

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menos com uma poliacutetica de extensatildeo dos direitos do povo colonizado como pretendeu o

pedantismo cristatildeo que concebeu o referido equiacutevoco ao enunciar uma equaccedilatildeo eacutetica e

religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria tornando-se assim responsaacutevel pelas consequecircncias

abominaacuteveis decorrentes dos actos coloniais cujas viacutetimas seriam os iacutendios os amarelos e os

negros (cfr Ceacutesaire 1978 pp14-15)

Pode se depreender dos textos de Ceacutesaire que a colonizaccedilatildeo eacute a manifestaccedilatildeo sem precedente

da ganacircncia do aventureiro e do pirata do comerciante e do armador do pesquisador de ouro

e do mercado do apetite e da forccedila tendo por detraacutes a sombra maleacutefica projetada de uma

forma de civilizaccedilatildeo que a dado momento da sua histoacuteria se viu obrigada internamente a

alargar agrave escala mundial a concorrecircncia das suas economias Se natildeo como se pode perceber

que a Franccedila em particular e a Europa em geral conseguissem progressivamente tal como

alude Dino Constantini transformar os princiacutepios democraacuteticos e humanistas tatildeo-reclamados

naquela circunscriccedilatildeo do globo em instrumentos de justificaccedilatildeo de dominaccedilatildeo com regulares

violaccedilotildees nas coloacutenias dando lugar a uma degeneraccedilatildeo sem precedente de uma suposta

ldquomissatildeo civilizadorardquo da Europa em Aacutefrica (cfr Constatini 2008 pp 33 e 53) Para pocircr a nu

o paradoxo de uma civilizaccedilatildeo dita humanista mas na praacutetica contestadora da proacutepria

humanidade no ldquodiferenterdquo Constatini evoca o coacutedigo civil de 1791 que coloca as coloacutenias

fora do direito comum institucionalizando uma cisatildeo social juridicamente fundamentada

entre as populaccedilotildees brancas e negras legitimando ao mesmo tempo a violecircncia primeiro no

plano simboacutelico e posteriormente no plano concreto numa clara declaraccedilatildeo de recusa de

reconhecimento e de integraccedilatildeo dos negros na vida da metroacutepole Eacute preciso dizer que esta

fragmentaccedilatildeo social legitimada pelo coacutedigo civil supra citado serviu de base para a

consagraccedilatildeo de uma nova compreensatildeo do conceito da ldquohumanidaderdquo que reduziria os

direitos humanos a direitos de cidadania reservando-os apenas aos europeus

Eacute o paradoxo no caso da Franccedila de uma Repuacuteblica que nunca deixou de contestar contra a

violecircncia de que tinha sido viacutetima em 1871 cegamente transformada numa autecircntica maacutequina

de violecircncia contra outros humanos sem qualquer fundamento legiacutetimo (cfr Constatini 2008

p 286) Eacute a contradiccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo ocidental defensora de direitos humanos mas que

natildeo hesita de reduzir os outros humanos agrave categoria de sub-humanos eacute a estrateacutegia de um

imaginaacuterio ideoloacutegico que no plano psicoloacutegico confere legitimidade a todas as barbaacuteries dos

colonizadores sobre os colonizados eacute a ironia de uma civilizaccedilatildeo cuja linha de demarcaccedilatildeo

com a barbaridade natildeo eacute expliacutecita Nem mesmo a dignidade humana universal e abstracta

apregoada pelos moralistas desta civilizaccedilatildeo como um dos valores mais sublimes entre os

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humanos em especial pela religiatildeo cristatilde mais consagrada ao serviccedilo do imperialismo do

que de Deus na oacuteptica de Ceacutesaire conseguiu dissimular a violecircncia contra o colonizado

6 Desmistificando o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista erguida na recusa do

ldquodiferenterdquo

Parece ter ficado evidente que a colonizaccedilatildeo se identificou mais com uma dinacircmica de

exploraccedilatildeo dos povos colonizados do que com um projecto de integraccedilatildeo dos indiacutegenas na

metroacutepole Iva Cabral ajuda-nos mais uma vez a perceber como a loacutegica do lucro presidiu a

todas as estrateacutegias e legislaccedilotildees coloniais Numa perspectiva simplesmente histoacuterica a autora

apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos

enunciados de Fanon que concedem sentido e substacircncia a este trabalho Com efeito Iva

Cabral afirma que as decisotildees poliacuteticas do regime colonial criavam condiccedilotildees para que os

filhos da meacutedia e baixa nobreza portuguesa neste particular mercadores e aventureiros

vislumbrassem no territoacuterio receacutem-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto

mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as

mercadorias daiacute advindas poderiam trazer (cfr Cabral 2015 p27)

Eacute loacutegico conjecturar que num tal jogo de lucro faacutecil que natildeo podia natildeo contar com os

recursos naturais e com o capital humano africanos como meios ideais para minimizar os

custos e maximizar os lucros a preocupaccedilatildeo pela integraccedilatildeo dos africanos no clube dos

evoluiacutedos e emancipados seria uma espeacutecie de atentado ao espiacuterito de negoacutecio Este postulado

encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da

recusa do ldquooutrordquo o diferente feito uma ameaccedila para o ldquonoacutesrdquo ideologicamente construiacutedo e

consagrado como o uacutenico paradigma possiacutevel de humanidade na seguinte declaraccedilatildeo

havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se

recusaram no seacuteculo de Colombo em reconhecer seus semelhantes homens

degradados que povoavam o novo mundo [hellip] Era impossiacutevel fixar um

instante do olhar no selvagem sem ler o anaacutetema escrito natildeo digo somente na

sua alma mas ateacute na forma exterior do seu corpo (De Maistre Joseph Apud

Ceacutesaire 1978 p 33)

Esta declaraccedilatildeo deixa transparecer uma inferecircncia loacutegica quase irrefutaacutevel de que o referido

anaacutetema dos indiacutegenas soacute natildeo se consumou ao extermiacutenio na perspectiva do colono por

razotildees de iacutendole puramente utilitarista como se depreende nesta passagem do jaacute citado autor

nesta transcriccedilatildeo de Ceacutesaire

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sob o ponto de vista de selecccedilatildeo consideraria deploraacutevel o desenvolvimento

numeacuterico [hellip] dos elementos amarelos e negros que seriam de eliminaccedilatildeo

difiacutecil Se todavia a sociedade futura se organizar numa base dualista com

uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raccedila inferior confiada agrave

mais grosseira matildeo-de-obra eacute possiacutevel que este uacuteltimo papel incumba aos

elementos amarelos e negros Neste caso aliaacutes natildeo seria um embaraccedilo mas

uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre Joseph Apud Ceacutesaire

1978 p 33)

Fica desvendado nestes dizeres do De Maistre o retrato do narcismo nihilista de muitos

artistas da europa colonial consubstanciado na ideia e na pretensatildeo de uma raccedila superior que

se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contaacutegio Eacute o drama de uma Europa

feita refeacutem pelo seu proacuteprio mito de pureza civilizacional uniracial um mito enganoso

pretensioso e pernicioso que potildee em causa a aspiraccedilatildeo de uma poliacutetica enquanto exigecircncia de

construccedilatildeo de uma comunidade humana na qual a consciecircncia da diversidade dos humanos e a

necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condiccedilatildeo ldquosine qua nonrdquo da

prosperidade e da sobrevivecircncia da proacutepria espeacutecie humana Lamentavelmente este

entendimento da poliacutetica como espaccedilo intermediaacuterio onde se joga a liberdade e interacccedilatildeo dos

humanos enquanto seres iguais e autoacutenomos eacute constantemente posto em causa como diz

Martha Nussbaum pelos apologistas deste mito que em todas as sociedades alimentam uma

falsa convicccedilatildeo de pureza etnocecircntrica ou ldquoclassececircntricardquo geradora de violecircncia contra os

excluiacutedos (cfr Nussbaum 2010 p 48) comprometendo a possibilidade de fazer da poliacutetica o

lugar por excelecircncia da profundidade humana

Para compreender as mais profundas motivaccedilotildees que levam os indiviacuteduos a um tal instinto

nihilista Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi que examina a possiacutevel

conexatildeo existente entre os domiacutenios psicoloacutegico e poliacutetico Com efeito Gandhi concluiacutera que

os desejos gananciosos o instinto de agressatildeo e a ansiedade narcisista satildeo empecilhos para a

edificaccedilatildeo de uma verdadeira civilizaccedilatildeo humana Pelo que a luta poliacutetica pela construccedilatildeo de

uma civilizaccedilatildeo humana assente nos pilares da liberdade empatia e igualdade deve ser

precedida de uma luta contra o medo do outro a ganacircncia e o instinto de agressatildeo narcisista

intriacutensecos em cada indiviacuteduo (cfr Nussbaum 2010 pp 48-50) E se partimos da hipoacutetese de

que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multidotildees ao oacutedio ao genociacutedio e agrave

instrumentalizaccedilatildeo dos ldquooutrosrdquo tidos como da raccedila inferior ou sub-humana ocorre mais em

contextos de pouca capacidade criacutetica ou de uma intelectualidade materialista ou

ldquoventriacuteloquerdquo usando a expressatildeo de Fabien Eboussi Boulaga isto eacute de uma intelectualidade

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corrupta desprovida de princiacutepios eacuteticos e humanistas forccediloso eacute concluir que por mais que a

Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizaccedilatildeo dos africanos natildeo teria condiccedilotildees

efectivas de o fazer ante a sua ganacircncia e arrogacircncia eurocentristas encorajadas por uma

jactacircncia ostensiva feito veneno instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do

lucro cuja solidificaccedilatildeo se daacute com o asselvajamento dos africanos em geral e dos negros em

particular

Eacute precisamente este instinto egoiacutesta e materialista que transparece na maneira como Ernest

Renan concebe o colonialismo Para ele o colonialismo eacute uma necessidade poliacutetica de

primeira ordem eacute a conquista de um paiacutes de raccedila inferior pela raccedila superior que se instala na

coloacutenia atraveacutes de um governo Trata-se na perspectiva deste autor de algo de extrema

normalidade que nada tem de chocante A colonizaccedilatildeo soacute se torna chocante se e somente se

as conquistas forem entre raccedilas iguais Assim se por um lado estas conquistas devem ser

desencorajadas e censuradas entre raccedilas iguais elas devem ser encorajadas entre as raccedilas

desiguais porque a regeneraccedilatildeo ou degeneraccedilatildeo de raccedilas inferiores pelas raccedilas superiores

deve estar na ordem providencial da humanidade ldquoRegere imperio populosrdquo eis a nossa

vocaccedilatildeo A natureza criou uma raccedila de trabalhadores industriais ndash eacute a raccedila chinesa uma de

jornaleiros agriacutecolas ndash eacute a raccedila negra [hellip] uma raccedila de senhores e de soldados eacute raccedila

europeiardquo Nesta oacuteptica a reduccedilatildeo desta nobre raccedila agrave classe trabalhadora em condiccedilotildees

degradantes como as dos negros e dos chineses gera revolta (cfr Renan 1967 pp 69-70) O

mais perplexo em tudo isso eacute que Renan numa enorme ousadia intelectual natildeo se tenha

inibido do seu instinto de superioridade racial ao defender de forma paradoxal numa obra

intitulada ldquoLa Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la Francerdquo a seguinte convicccedilatildeo

noacutes esperamos natildeo a igualdade mas sim a dominaccedilatildeo O paiacutes de raccedila

estrangeira deveraacute voltar a ser um paiacutes de servos de jornaleiros agriacutecolas ou

de trabalhadores industriais Natildeo se trata de suprimir as desigualdades entre

os homens mas de as ampliar e as converter em lei (Renan 1967 p69-70)

Uma visatildeo demasiado materialista e narcisista que mereceu num tom iroacutenico a criacutetica de

Ceacutesaire que qualifica o colono muito distinto muito humanista e muito cristatildeo do seacuteculo XX

como uma autecircntica encarnaccedilatildeo de Hitler Eacute o retrato do colono que traz em si segundo

Ceacutesaire ldquoum Hitler que se ignora que vive nele e que eacute o seu demoacutenio e se o vitupera eacute por

falta de loacutegica ou pelo instinto de afinidade racial pois os factos atestam que o que muitos

deles natildeo perdoam a Hitler natildeo eacute o crime em si nem tatildeo-pouco o crime contra a humanidade

mas o crime contra o homem branco a humilhaccedilatildeo do homem brancordquo Assim natildeo restam

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duacutevidas de que do ponto de vista do seu desenvolvimento socio-histoacuterico a colonizaccedilatildeo eacute

uma suprema barbaacuterie um nazismo pouco expressivo por ser aplicado aos negros e aos aacuterabes

de Aacutefrica Mas na sua essecircncia um tal narcisismo constitui a negaccedilatildeo mais eloquente do

humanismo universal e formal reivindicado por Fanon e ao mesmo tempo uma clara

renuacutencia dos ideais filosoacuteficos morais e cristatildeos de uma civilizaccedilatildeo decaiacuteda (cfr Ceacutesaire

1978 pp 18-19)

Estaacute assim denunciada a patologia de uma civilizaccedilatildeo que fundou a sua filosofia de acccedilatildeo na

estigmatizaccedilatildeo do ldquodiferenterdquo e na fragmentaccedilatildeo do mundo em puro e impuro Eacute a construccedilatildeo

patoloacutegica usando a expressatildeo da Nussbaum de um ldquonoacutesrdquo que se julga imaculado e de um

ldquoelesrdquo preconceitualmente denotado vil perigoso e contagioso Esta denunciada patologia

obriga-nos a retomar algumas das questotildees supra referenciadas tais como eacute possiacutevel pensar a

missatildeo civilizadora da Europa colonial num contexto de clara recusa da alteridade ou de

reconhecimento do africano como sujeito autoacutenomo dotado de razatildeo e de humanidade

Como compreender uma missatildeo civilizadora assente numa loacutegica social do segundo excluiacutedo

isto eacute numa loacutegica social fracturante e nihilista Seraacute que Aacutefrica ao engajar-se na luta pela

descolonizaccedilatildeo teraacute efectivamente recusado o projecto de desenvolvimento que configurava

a missatildeo civilizadora da potecircncia colonial Vamos no proacuteximo ponto tentar encontrar alguns

elementos de resposta a estes questionamentos em certa medida jaacute respondidos

7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta uma antiacutetese agrave pretensatildeo colonial da emancipaccedilatildeo

da Aacutefrica dos africanos

A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta da sociedade ou seja a bipolarizaccedilatildeo social assente no

princiacutepio da desigualdade entre as cidades dos homens isto eacute dos europeus e os bairros

indiacutegenas ou dos selvagens categorias sociais criadas pelo proacuteprio colono contradiz agrave

partida qualquer pretensatildeo colonial de reconhecimento e integraccedilatildeo da Aacutefrica e dos africanos

no universalismo humano (cfr Fanon 1968 p 27 ou 2002 p 453) Aliaacutes a estrutura social

montada pelo colono determinava ldquoa priorirdquo que as relaccedilotildees entre os habitantes dos dois

mundos fossem de exploradores e explorados dominadores e dominados opressores e

oprimidos superiores e inferiores homens e sub-homens Conveacutem no entanto sublinhar que

toda a violecircncia colonial tinha como grande propoacutesito a criaccedilatildeo de um ambiente de medo e

inibiccedilatildeo do colonizado no intuito de facilitar a dinamizaccedilatildeo da exploraccedilatildeo e a pilhagem de

recursos naturais num contexto inovador de mercantilismo que muito precisava do concurso

forccedilado dos proacuteprios indiacutegenas Para dar conta do dinamismo interno de uma tal

compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta Fanon escreve

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em sua zona o colono potildee em marcha o movimento de dominaccedilatildeo de

exploraccedilatildeo e de pilhagem Na outra zona a coisa colonizada oprimida e

espoliada alimenta como pode esse movimento [hellip] as mateacuterias-primas vatildeo

e vecircm legitimando a presenccedila do colono Enquanto o acocorado mais morto

do que vivo o colonizado se eterniza num sonho [hellip] o colono faz histoacuteria

Sua vida eacute uma epopeia uma odisseia (Fanon 1968 p 38 ou 2002 p 463)

Como se pode depreender mais uma vez este maniqueiacutesmo eacute em si mesmo uma antiacutetese de

qualquer projecto civilizador natildeo soacute pelo facto de se constituir num factor provocador de

desprezo e ignomiacutenia dos colonizados mas tambeacutem e sobretudo por ser um factor

desestabilizador suscitador de oacutedio e de violecircncia entre os habitantes das duas zonas Cocircnscio

desta tensatildeo latente e subjacente a esta configuraccedilatildeo geopoliacutetica opressiva o colono interpocircs

como deduz Fanon uma estrutura fronteiriccedila forte e intimidatoacuteria capaz de assegurar a

atmosfera de submissatildeo e de inibiccedilatildeo dos explorados tal como se pode ler

o mundo colonizado eacute um mundo cindido em dois A linha divisoacuteria a

fronteira eacute indicada pelos quarteis e delegacias de poliacutecia Nas coloacutenias o

interlocutor legal e institucional do colonizado o porta-voz do colono e do

regime de opressatildeo eacute o gendarme ou o soldado Nas sociedades capitalistas o

ensino religioso ou leigo a formaccedilatildeo de reflexos morais [hellip] criam em torno

do explorado uma atmosfera de submissatildeo e inibiccedilatildeo que torna

consideravelmente mais leve a tarefa das forccedilas da ordem [hellip] O

intermediaacuterio do poder utiliza uma linguagem de pura violecircncia [hellip] natildeo

torna mais leve a opressatildeo natildeo dissimula a dominaccedilatildeo Exibe-as manifesta-

as com a boa consciecircncia das forccedilas da ordem [hellip] leva a violecircncia agrave casa e

ao ceacuterebro do colonizado (Fanon 1968 p 28 ou Fanon 2002 pp 453-454)

Este e outros cenaacuterios permitem situar a originalidade do instinto colonial no princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica e social e no de desigualdade econoacutemica entre duas espeacutecies a

branca e a negra ou aacuterabe pois a patologia narcisista de superioridade racial estruturou no

imaginaacuterio individual e colectivo do colonizador a convicccedilatildeo de que ser branco significa ser

superior e consequentemente rico e ser negro ou aacuterabe africano eacute o oposto disto (cfr Fanon

1968 p 29 ou Fanon 2002 p 455) Este maniqueiacutesmo que toma balanccedilo no plano simboacutelico

no qual o branco remete agrave noccedilatildeo do bem do belo e do bom e o negro o seu oposto

desembarca no plano concreto com reflexos inofuscaacuteveis na configuraccedilatildeo geograacutefica da

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estrutura social montada pelo regime colonial A cidade do colono eacute uma cidade vida

enquanto no bairro do colonizado se sobrevive milagrosamente a cidade do colono eacute segura

mas no bairro indiacutegena a inseguranccedila eacute o proacuteprio cartatildeo-de-visita a cidade do colono eacute uma

cidade soacutelida toda de pedra e ferro iluminada asfaltada as ruas limpas lisas sem buracos

mas o bairro indiacutegena eacute o oposto disso Na cidade do colono os habitantes estatildeo

permanentemente saciados e repletos de boas coisas Em contrapartida o bairro indiacutegena ou

negro eacute um lugar mal-afamado e povoado eacute o bairro de homens mal-afamados aiacute nasce-se

natildeo importa como nem onde e morre-se natildeo importa a onde nem de quecirc Eacute um mundo sem

intervalos ou seja os homens estatildeo uns sobre os outros eacute o mundo dos famintos dos

analfabetos e dos doentes e indigentes (cfr Fanon 1968 p 28-29 ou Fanon 2002 pp 453-

454)

O mundo colonial diz Fanon forjou um povo sem alma e sem referecircncia originaacuterias O

colono criou categorias sub-humanas para destruir a autoestima dos negros e dos aacuterabes de

Aacutefrica Fez deles uma espeacutecie de quintessecircncia do mal considerando-os como seres

impermeaacuteveis agrave moral e agrave eacutetica com ausecircncia e negaccedilatildeo de valores mal absoluto elementos

corrosivos que destroem tudo o que se aproxima deles elementos deformadores que

desfiguram tudo o que se refere agrave esteacutetica ou agrave moral depositaacuterios de forccedilas cegas (cfr

Fanon 1968 p 31 ou Fanon 2002 p 456) Esta convicccedilatildeo levou M Meyer a afirmar em

plena Assembleia Nacional Francesa que

[hellip] natildeo era necessaacuterio prostituir a Repuacuteblica fazendo penetrar nela o povo

argelino Os valores com efeito se tornam irreversivelmente envenenados e

pervertidos desde que entram em contacto com a populaccedilatildeo colonizada Os

costumes do colonizado suas tradiccedilotildees [hellip] sobretudo seus mitos satildeo a

proacutepria marca desta indigecircncia desta depravaccedilatildeo constitucional (Fanon

1968 p31 ou Fanon 2002 p 456)

Este discurso forjado no seu espaccedilo existencial levou Ceacutesaire (1978 p17) agrave conclusatildeo de que

a Europa colonial se esmerou antes de mais em descivilizar primeiro o proacuteprio colonizador

embrutececirc-lo degradaacute-lo despertaacute-lo para os instintos ocultos para a cobiccedila para a violecircncia

para o oacutedio racial e para o relativismo moral e posteriormente descivilizar o colonizado

Todo este quadro legitima sobremaneira o anseio dos africanos pela liberdade e pelo

reconhecimento da sua dignidade Para desmascarar o argumento segundo o qual o

engajamento dos africanos na luta pela descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica teraacute sido uma espeacutecie de

recusa do desenvolvimento do Continente africano pelos africanos Ceacutesaire passa em revista

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e em jeito de balanccedilo o vasto fresco dos horrores da dominaccedilatildeo colonial em particular a

francesa em Aacutefrica deixando claro que nenhum desenvolvimento vale mais do que a

dignidade humana e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos povos Apoiando

o seu raciociacutenio nos factos Com efeito Ceacutesaire afirma que a equaccedilatildeo mais ajustada agrave

realidade vivida eacute colonizaccedilatildeo igual coisificaccedilatildeo e natildeo desenvolvimento porque no fim de

contas o fiel da balanccedila pende mais para prejuiacutezos do que para ganhos tal como consta do

longo extrato que extraiacutemos do texto de Ceacutesaire

falam-me de progressos de realizaccedilotildees de doenccedilas curadas de niacuteveis de vida

elevados acima de si proacuteprios eu falo de sociedades esvaziadas de si

proacuteprias de culturas espezinhadas de instituiccedilotildees minadas de terras

confiscadas de religiotildees assassinadas de magnificecircncias artiacutesticas

aniquiladas de extraordinaacuterias possibilidades suprimidas Lanccedilam-me agrave cara

factos estatiacutesticas quilometragens de estradas de canais de caminhos-de-

ferro mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano falo

dos que no momento em que escrevo cavam agrave matildeo o porto de Abidjan falo

de milhotildees de homens arrancados aos seus deuses agrave sua terra aos seus

haacutebitos agrave sua vida agrave danccedila agrave sabedoria falo de milhotildees de homens a quem

inculcaram sabiamente o medo o complexo de inferioridade o tremor a

genuflexatildeo o desespero o servilismo Laccedilam-me em cheio aos olhos

toneladas de algodatildeo ou cacau exportado hectares de oliveiras ou de vinha

plantadas mas eu falo de economias naturais de economias harmoniosas e

viaacuteveis de economias adaptadas agrave condiccedilatildeo do homem indiacutegena

desorganizadas de culturas de subsistecircncias destruiacutedas de subalimentaccedilatildeo

instalada de desenvolvimento agriacutecola orientada unicamente para benefiacutecio

das metroacutepoles de rapinas de produtos de rapinas de mateacuterias-primas

Ufanam-se de abusos suprimidos eu tambeacutem falo de abusos mas para dizer

que aos antigos ndash muito reais ndash sobrepuseram outros muito detestaacuteveis

Falam-me de tiranos locais trazidos agrave razatildeo poreacutem constato que regra geral

eles fazem muito boa parelha com os novos e que destes aos antigos e vice-

versa se estabeleceu em detrimento dos povos um circuito de bons serviccedilos

e cumplicidade Falam-me de civilizaccedilatildeo eu falo de proletarizaccedilatildeo e de

mistificaccedilatildeo [hellip] Cada dia que passa cada negaccedilatildeo de justiccedila cada carga

policial cada reclamaccedilatildeo operaacuteria afogada em sangue cada escacircndalo

abafado cada expediccedilatildeo punitiva cada poliacutecia e cada miliciano fazem-nos

sentir o preccedilo das nossas velhas sociedadesrdquo (Ceacutesaire 1978 pp25-26)

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Disso decorre que a essecircncia do colonialismo tal como realccedilou Maacuterio Pinto de Andrade

reside em dois aspectos no ldquoregime de exploraccedilatildeo desenfreada de imensas massas humanas

que encontra a sua legitimidade e sustentabilidade na violecircnciardquo e na ldquoforma moderna de

pilhagemrdquo (cfr Ceacutesaire Aimeacute 1978 p7) Assim se os niacuteveis cientiacuteficos tecnoloacutegicos e

organizacionais ostentados pela Europa colonial lhe conferem a todos os tiacutetulos um estatuto

de uma civilizaccedilatildeo o mesmo jaacute natildeo se daacute do ponto de vista da sua relaccedilatildeo com as coloacutenias

Por esta razatildeo Ceacutesaire chamou-lhe de civilizaccedilatildeo decadente enferma e moacuterbida por se ter

revelado incapaz de resolver os grandes problemas que criou nomeadamente o do

proletariado e o colonial Ouccedilamos Ceacutesaire a respeito

ldquouma civilizaccedilatildeo que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu

funcionamento suscita eacute uma civilizaccedilatildeo decadente Uma civilizaccedilatildeo que

prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais eacute uma civilizaccedilatildeo

enferma Uma civilizaccedilatildeo que trapaceia com os seus princiacutepios eacute uma

civilizaccedilatildeo moacuterbidardquo (Ceacutesaire 1978 p13)

Teratildeo Fanon Ceacutesaire Sartre e outros exagerado na sua criacutetica do colonialismo

Possivelmente sim Contudo a larga unanimidade existente sobre o assunto permite-nos

atribuir uma certa objectividade e verdade histoacuterica a muitos dos enunciados que nos satildeo

dados a apreciar Reneacute Grousset (1954 p 76) quase duas deacutecadas antes de Ceacutesaire

analisando o percurso evolutivo das civilizaccedilotildees constatava que nenhuma civilizaccedilatildeo

apareceu logo no iniacutecio tatildeo promissora e tatildeo ameaccedilada como a civilizaccedilatildeo ocidental A sua

ameaccedila em seu entender natildeo vem apenas da espada nuclear vem tambeacutem e sobretudo do

egoiacutesmo e do materialismo que inspiram os povos que a comandam Estaacute portanto evidente

que o regime colonial europeu foi essencialmente uma conquista assente em fins de

exploraccedilatildeo dos indiacutegenas Esta ideia ceacutesairiana de uma Europa exploradora no sentido

accedilambarcador do termo aparece tambeacutem no ldquoLe geacutenociderdquo no qual Jean-Paul Sartre eacute

perentoacuterio em afirmar que a colonizaccedilatildeo natildeo eacute uma mera conquista como foi a anexaccedilatildeo de

Alsace-Lorraine pela Alemanha na sua verdadeira natureza a colonizaccedilatildeo eacute um acto de

genociacutedio cultural Numa ldquodeacutemarcherdquo fenomenoloacutegica Sartre mostra que a colonizaccedilatildeo natildeo

acontece sem a liquidaccedilatildeo sistemaacutetica de todas as caracteriacutesticas particulares de sociedades

nativas e simultaneamente sem a recusa da sua integraccedilatildeo massiva na metroacutepole e sem a

negaccedilatildeo do seu acesso agraves vantagens da metroacutepole

Concordamos assim com Sartre que a colonizaccedilatildeo eacute um sistema de negoacutecio que requer

inevitavelmente a existecircncia de um sub-proletariado nacional forccedilado a trabalhar por

miseraacuteveis salaacuterios Vale dizer que no sistema colonial a coloacutenia teve uma funccedilatildeo

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instrumental ou seja foi usada para vender as suas mateacuterias-primas e seus produtos agriacutecolas

a um preccedilo irrisoacuterio agrave metroacutepole Em retorno a metroacutepole vendeu os bens manufaturados agraves

coloacutenias a preccedilo do mercado Este negoacutecio que contou com a comparticipaccedilatildeo da burguesia

nacional condenou os africanos a viverem num submundo de miseacuteria como negros fantasmas

continuamente recordados da sua condiccedilatildeo de sub-humanos (cfr Sartre 1967 p39)

Estaacute visto que a colonizaccedilatildeo partindo da efiacutegie aqui apresentada eacute um projecto oposto aos

ideais civilizacionais tal como alude Ceacutesaire ao desmistificar a tentativa de atribuir ao

processo de colonizaccedilatildeo uma intenccedilatildeo civilizadora A maldiccedilatildeo mais comum nesta mateacuteria eacute

deixarmo-nos iludir de boa-feacute por uma hipoacutetese colectiva e haacutebil em enunciar mal os

problemas para melhor justificar as soluccedilotildees que se lhes aplicam conferindo facilmente

legitimidade a um conjunto de praacuteticas abominaacuteveis atribuindo-lhes a categoria de um mal

necessaacuterio com vista a um fim nobre ndash a civilizaccedilatildeo dos selvagens (Ceacutesaire 1978 p14)

Conclusatildeo

A reflexatildeo feita nas paacuteginas anteriores permitiu-nos deduzir a existecircncia de uma possiacutevel

analogia entre a colonizaccedilatildeo e a civilizaccedilatildeo do ponto de vista teoacuterico conceitual Mas do

ponto de vista praacutetico tudo natildeo passou de uma simples ilusatildeo Uma ilusatildeo cimentada pela

foacutermula do pedantismo cristatildeo que procurou atribuir uma presumiacutevel missatildeo civilizadora ao

fenoacutemeno de colonizaccedilatildeo ao estabelecer a equaccedilatildeo cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria A anaacutelise mostrou que do ponto de vista doutrinal e factual

uma tal equaccedilatildeo eacute insustentaacutevel porquanto a colonizaccedilatildeo se assumiu mais como violecircncia

contra os povos colonizados e exploraccedilatildeo dos seus recursos naturais e da sua forccedila de trabalho

e nunca como projecto colonial de emancipaccedilatildeo dos povos colonizados Esta conclusatildeo pode

ter sido previsiacutevel mas como foi referido no princiacutepio deste trabalho esta anaacutelise sobre o

colonialismo encontra a sua utilidade neste texto na medida em que se nos apresenta como

movimento historicizante que constitui a mateacuteria e a forma que nos permitem vislumbrar o

horizonte teleoloacutegico da descolonizaccedilatildeo enquanto proposta de emergecircncia do novo nova

realidade novos seres e novo continente uma espeacutecie de antiacutetese do mundo colonial

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Obras do autor

1 FANON Frantz Frantz Fanon Ouevres Paris Eacuteditions La Deacutecouverte 2011

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2 ----------------------- Les damneacutes de la terre Paris Eacuteditions la Deacutecouverte (Preacuteface de Jean-Paul Sartre) 1961

3 ----------------------- Os condenados da terra Rio de Janeiro ndash Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Traduccedilatildeo de Joseacute

L de Melo 1968

Outras obras

1 BOURDIEU Pierre Sociologie de lrsquoAlgerie Paris PUF 1958

2 BURAWOY Michael Marxismo encontra Bourdieu Campinas Editora Unicamp 2010

3 CABRAL Iva A Primeira Elite Colonial Atlacircntica Dos ldquohomens honrados broncosrdquo de Santiago agrave

ldquonobreza da terrardquo Finais do seacutec XV ndash iniacutecio do seacutec XVII Cabo Verde Pedro Cardoso Livraria 2015

4 CEacuteSAIRE Aimeacute Discurso sobre a colonizaccedilatildeo Lisboa Livraria Saacute da Costa Editora 1978

5 CONSTATINI Dino Mission civilisatrice le role de lrsquohistoire colonial dans la construction de lrsquoidentiteacute

politique franccedilaise Paris Eacuteditions de la Deacutecouverte 2008

6 DE VIGNY Alfred ldquoCritique des anedotes historiques sur Alger de Jean-Toussaint de Merlerdquo In Bancel

Nicolas Blanchard Pascal Verges Franccediloise La Republique colonial Paris Albin Michel Coll Pluriel 2003

7 FOLLIET Joseph Le droit de colonisation Eacutetude de morale sociale et international Lyon GNeveu 1932

8 GIRARD Reneacute La Violence et le Sacreacute Paris Grasset reacuteeacute Pluriel 1972

9 GROUSSET Reneacute Lrsquohomme et son histoire Paris Plon 1954

10 NUSSBAUM C Martha Not For Profit Why Democracy Needs The Humanities Oxford Princeton

University Press 2010

11 RENAN Ernest La Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la France Paris Union Geacuteneacuterale drsquoEacuteditions 1967

12 SARTRE Jean-Paul ldquoLe Genociderdquo In Les Temps modernes nordm259 Gallimard Decembre 1967

13 SEMELIN Jacques Purifier et Deacutetruir Usages politiques de massacres et geacutenocides Paris Seuil 2005

14 SENGHOR Leopold Sedar (1964) On African Socialism London Pall Mall Press 1964

Artigos e Dicionaacuterios

1 BOURDIEU Pierre (1987) Le Sens Commum Chose dites In Fildwork in philosophy Paris Les Eacuteditions de

Minuit

2 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea Academia das Ciecircncias de Lisboa Editorial Verbo 2001

3 Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura Editorial Verbo Lisboa nordm5

4 OLUacuteFEacuteMI Taacuteiwo (2004) ldquoPost-Independence African Political Philosophyrdquo In Kwasi Wiredu A

Companion to African Philosophy Cornwall MPG Books Ltd Bodmim 2004 pp 243-260

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PEDAGOGIA laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO

LIBERAL EM AacuteFRICA

INAacuteCIO VALENTIM a

inaciovalentim82gmailcom

Resumo

Nada eacute tatildeo enobrecedor como ensinar e aprender A nobreza reside na consciecircncia estaacute no

encontro com o outro estaacute na disponibilidade que eacute criada para si e para o outro e estaacute

sobretudo no comprometimento que se tem consigo mesmo e com o outro O outro como o

rosto como memoacuteria e como um ldquooutro eurdquo Isto eacute o que ensinar e aprender nos oferece e nos

sugere Ter a noccedilatildeo de que todo o acto de ensinar eacute essencialmente um processo de aprender

de aprendizagem e de dar a possibilidade de interrogar-se sobre o aprendido e sobre

aprendizagem O objectivo deste artigo eacute de reflectir sobre a hermenecircutica do aprender o que

chamamos aprender e como acontece

Palavras-chave aprender comprometimento inacessibilidade responsabilidade fazer e

ensinar

Abstract

Nothing is so ennobling as teaching and learning The nobility lies in its consciousness is in

the encounter with the other it is in the availability that is created for itself and to the other

and itrsquos mainly in the compromise that it has with oneself and with the other The other as the

face as memory and as other selfrdquo This is what teaching and learning offers and suggests to

us Have the notion that the whole act of teaching is essentially a process of learning learning

and giving the possibility to question them about the learned and about learning The aim of

this article is to reflect on the hermeneutics of learning what we learn and how it happens

Keywords learning commitment inaccessibility responsibility doing and teaching

a Doutor em Filosofia pela Universidade Carlos III de Madrid Professor e Investigador Titular Director Geral do

Instituto Superior Politeacutecnico Sol Nascente Huambo - Angola wwwispsnorg

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O termo laquoaprenderraquo oferece agrave primeira vista com uma leitura muito atenta uma ideia muito

escorregadia apresenta algo de inacessibilidade algo que nos passa entre os dedos como

aacutegua como liacutequido como vento como espiacuterito Enfim como algo que natildeo nos eacute dado

aprisionar fiacutesica e mentalmente No entanto acreditamos que aprendemos e acreditamos que

podemos fazer com que outras pessoas aprendam connosco ou atraveacutes de noacutes e natildeo hesitamos

muitas vezes em oferecer-nos como instrumento de aprendizagem para os outros Apesar de

ser um termo muito duro no sentido de responsabilidade esta responsabilidade acaba por estar

ou ficar diluiacuteda na confusatildeo entre o aprender e o fazer entre o aprender e o ensinar entre o

aprender e o saber porque confundimos ou fundimos as duas perspectivas antecipando

precisamente o acto do segundo que eacute dirigido ou orientado para o aprendiz Enquanto

mecanismo que conduz agrave aquisiccedilatildeo do saber a aprendizagem ldquoopotildee-se ao ensinamento ou ao

ensino cujo objectivo eacute de dispensar conhecimentos e saberesrdquo Mas esta oposiccedilatildeo natildeo eacute de

ruptura porque natildeo pode haver aprendizagem senatildeo por intermeacutedio do ensino ou de quem

ensina

O aprender-se bem eacute reflectido sobretudo a partir da acccedilatildeo enquanto resultado e resposta do

aprender natildeo obstante enquanto fenoacutemeno o aprender eacute um acto de natureza invisiacutevel e

quase que inapreensiacutevel e intocaacutevel A sua visibilidade soacute eacute passiacutevel para o proacuteprio sujeito

isto eacute para o aprendiz ou no aprendiz Dificilmente eu como promotor ou enquanto promotor

de aprendizagem posso dizer com exactidatildeo o momento da captaccedilatildeo do sujeito do elemento

aprendido posso supor atraveacutes de perguntas que faccedilo ou que tenho que responder dele mas

apenas eacute uma suposiccedilatildeo Eacute pois esta complexidade que vai tambeacutem fazer com que o acto de

aprender seja acima de tudo um acto divino um momento ou uma instacircncia do natildeo humano

Soacute aquele que diviniza-se chega a aprender consegue aprender e supera com isso a primeira

instacircncia do humano E divinizar-se significaria ter um autocontrolo sobre os impulsos do

saber os impulsos desenfreados do desejo de aprender e de assumir-se como o promotor de

aprendizagem Mas este processo soacute eacute possiacutevel com um povo ou com gente que agrave partida natildeo

rejeita preliminarmente a filosofia soacute eacute possiacutevel com gente que natildeo eacute dirigida e que natildeo eacute

paciente dos meacutedicos do povo como diria Nietzsche O aprender filosoacutefico apenas acontece

com e para gente satilde os ldquoenfermos que se contactam com a filosofia ficam ainda mais

enfermosrdquo porque de certa forma a filosofia soacute pode salvar e curar quem jaacute estaacute curado

quem reuacutene requisitos para a cura E foi assim que os gregos conseguiram fazer da filosofia a

sua proacutepria casa o seu mundo o seu lugar apesar de a filosofia vir de outros lugares virou a

casa dos gregos tornou-se ou transformou-se no elemento da definiccedilatildeo essencialmente grego

Os gregos souberam pegar naquilo que os outros povos abandonaram e fizeram dele o mais

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alto elemento do saber precisamente porque souberam utilizar laquoa arte de aprender

produtivamenteraquo utilizando para este efeito os seus saacutebios Contrariamente aos outros povos

que laquotecircm santos os gregos tecircm saacutebiosraquo diz Nietzsche e satildeo estes saacutebios que vatildeo fazer com

que a filosofia tenha um sentido profundo e original para o grego justificando assim a sua

aposta a sua protecccedilatildeo e a utilidade da sua futilidade

Apesar dos gregos terem podido trazer a filosofia das outras paradas orientais como diz

Nietzsche natildeo tiveram nenhuma moda que lhes pudesse ajudar ou facilitar as coisas Tiveram

que inventar a sua proacutepria imaginaccedilatildeo tiveram que filosofar com laquouma puberdade madura

onde brotava a fogosa alegria de uma vitoriosa e valente idade viril1raquo Em outras palavras

tiveram que superar a idade da infacircncia humana a infacircncia social e tiveram que se fazer

responsaacuteveis Esta eacute tambeacutem uma das condiccedilotildees de aprendizagem ou do aprender fazer-se

responsaacutevel emancipar-se e dar conta de si e dos outros laquopois quanto mais fazemos sobre as

coisas mais pensamos sobre elas ou mais desenvolvemos pensamentos sobre elasraquo O nosso

aprender estaacute relacionado com um espaccedilo concreto com um lugar com uma referecircncia com

um encontro-chegada-regresso No fundo o nosso aprender estaacute relacionado com uma histoacuteria

concreta ou com uma meta-histoacuteria estaacute relacionado com um padratildeo que nos vai dizer que as

condiccedilotildees para aprender exigem abc A tarefa de aprender natildeo eacute compatiacutevel com o tempo

apressado com o tempo que se assimila ao material O aprender eacute como ler um livro que estaacute

destinado a

[hellip] leitores tranquilos a homens que ainda natildeo foram arrastados pela vertiginosa pressa

da nossa agitada era e que ainda natildeo sentem o prazer idolatra quando olham para baixo das

sua rodas [hellip] quer dizer Haacute poucos homens Estes ainda natildeo estatildeo habituados a

estabelecer o valor de cada coisa segundo a poupanccedila ou os gastos do tempo estes laquoainda

tecircm temporaquo ainda lhes eacute permitido sem culpar-se de nada seleccionar e reunir as melhores

horas da jornada e os seus momentos mais fecundos e vigorosos para reflectir sobre o

futuro da nossa educaccedilatildeo estes podem ter a certeza que chegaram agrave noite de uma forma

proveitosa e digna a saber na meditation generis futuri (meditaccedilatildeo sobre o geacutenero futuro)

Um homem assim ainda natildeo se esqueceu de pensar enquanto lecirc ainda compreende o

segredo de ler entre linhas mais ainda eacute de uma natureza tatildeo prodigiosa que reflecte sobre

o lido talvez muito tempo depois de ter deixado o livro E sem duacutevidas natildeo para escrever

uma resenha ou outro livro mas simplesmente para reflectir2

O aprender seria portanto um viver sem pressa um estar sem pressa um existir sem pressa

Um ser no desconhecimento Mas sabemos que isso natildeo eacute possiacutevel Natildeo eacute possiacutevel saber sem

1Cf Friedrich Nietzsche Obras completas Vol 1 Filosofiacutea en la Eacutepoca Traacutegica de los Griegos Trad e introduc

Joan B et alt Tecnos Madrid 2011 p 574 2 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 549

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ser conotado natildeo eacute possiacutevel saber sem ser procurado natildeo eacute possiacutevel saber sem falar do que se

sabe natildeo eacute possiacutevel saber sem comunicar o sabido Mas dizemos que natildeo eacute possiacutevel e na

verdade eacute possiacutevel porque natildeo estamos a falar da mesma coisa saber natildeo eacute aprender Satildeo

duas coisas completamente distintas mas apesar de tudo uma coisa tecircm em comum a fuga da

fanfarronice e o desejo desenfreado de confrontaccedilatildeo A atestaccedilatildeo do aprendido a examinaccedilatildeo

do sabido Tecircm em comum aquilo que falta ao homem moderno o excesso de si a auto-

referecircncia desmedida O aprender conduz-nos ao desejo de estar tatildeo bem formados a tal ponto

de natildeo pensarmos mais em noacutes mesmos ou na nossa formaccedilatildeo e ateacute ao ponto de desprezarmos

a nossa proacutepria formaccedilatildeo Contrariamente ao homem moderno diz Nietzsche haacute que evitar

fazer de noacutes mesmos uma espeacutecie de homo mesura precisamente porque natildeo somos criteacuterio

seguro de nada natildeo somos criteacuterio seguro do absoluto Aqui o aprender deixa de ser um

criteacuterio e passa a ser uma meta e a meta aqui eacute que aquele que estaacute aprender se entregue

completamente com laquoa maacutexima confianccedila agrave tutela do autor de quem apenas pode falar a partir

da sua proacutepria ignoracircncia e da consciecircncia da ignoracircnciaraquo O aprendiz eacute aquele de quem

Nietzsche faz este tremendo apelo porque eacute nele que ele acredita

[hellip] Deixai-vos encontrar voacutes os isolados em cuja existecircncia acredito Voacutes

os altruiacutestas voacutes que padeceis em voacutes mesmos as dores e as perversotildees do

espiacuterito (hellip) Voacutes os contemplativos cujo olhar natildeo palpa com pressurosa

suspeita o externo das coisas mas sim sabe encontrar a entrada ao nuacutecleo da

essecircncia Eu vos convoco apenas para esta vez natildeo vos escondais nas

cavernas do vosso retiro e da vossa desconfianccedila Sejam quando menos

leitores deste livro para mais em frente com os vossos feitos acabar com ele

e deixa-lo no esquecimento Compreendeis que este livro estaacute destinado a ser

o vosso pronuacutencio quando voacutes mesmos com as vossas armas vos apresenteis

na palestra [hellip]3

Ao seu modo Nietzsche apresenta aqui a figura do aprendiz o docente o estudante e todos os

inquietos de espiacuterito como aqueles que satildeo isolados que satildeo altruiacutestas e que padecem das

dores da perversatildeo do espiacuterito O acto de aprender eacute incompatiacutevel com o tremendo de

confusatildeo eacute incompatiacutevel com o egoiacutesmo e com o egocentrismo e eacute incompatiacutevel com o

regradamente certo O aprender exige ruptura porque supotildee adaptaccedilatildeo a uma nova era a uma

nova realidade exige encontrar o outro dentro e fora de mim e exige um prestar atenccedilatildeo a

mim mesmo que natildeo seja necessariamente um narcisismo O aprender exige que sejamos uns

3 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 550

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contemplativos sem pressa de conhecer e de chegar sem pressa de afirmar ou de concluir

apenas se espera que sejamos contemplativos que admiram para melhor conhecer e trazer a

utilidade profunda mas sombria que estaacute aprisionada nas cavernas das nossas pressas O

aprender exige que a nossa contemplaccedilatildeo nos conduza ao encontro da essecircncia daquilo que

deve ser objecto do aprender Por isso cada vez que noacutes que estamos no eterno caminho de

aprender nos confrontamos com um livro com uma obra temos a possibilidade de sair dos

nossos retiros contraditoacuterios das nossas cavernas e das nossas desconfianccedilas Temos a

possibilidade de dar a conhecer a nossa opiniatildeo eacute o nosso pronuacutencio na palestra que pode

naturalmente chocar com os dois modelos do aprender propostos pela cultura educativa

moderna a saber

Por um lado a educaccedilatildeo como o espaccedilo da proposta do aprender deve ser extensiacutevel a todo o

territoacuterio por outro o laquoimpulso de reduccedilatildeo e debilitamento do mesmoraquo Desde muito cedo

quando a educaccedilatildeo comeccedilou a ser vista como um elo importante o homem apesar de alguns

constrangimentos sempre soube que seria de muito mais valia que ela fosse extensiacutevel para

todo o territoacuterio independentemente das questotildees poliacuteticas culturais econoacutemicas e religiosas

Natildeo obstante a sua extensatildeo sempre dependeraacute da vontade do Estado da disponibilidade do

Estado enfim da autorizaccedilatildeo do Estado Os gregos que fazem parte dos povos que pensaram

a educaccedilatildeo depois dos egiacutepcios e dos feniacutecios assumiram a inseparabilidade destes dois

momentos a educaccedilatildeo que deve chegar a todo o territoacuterio e a educaccedilatildeo que para ser educaccedilatildeo

tem que ser controlada pelo Estado A educaccedilatildeo deve ser controlada pelo Estado mas natildeo

necessariamente executada pelo Estado Em A Poliacutetica Aristoacuteteles foi muito bem claro em

dizer que a tarefa de educaccedilatildeo se bem eacute da comunidade natildeo obstante compete em primeiro

lugar ao Estado e soacute na impossibilidade deste de cobrir todas as partes eacute que o particular

assume tambeacutem ele a tarefa de educar Educar e por conseguinte o aprender desde este

ponto de vista nasce com um problema eacute um problema natildeo apenas no sentido de delegaccedilatildeo

de autorizaccedilatildeo mas tambeacutem no sentido da proacutepria autodestruiccedilatildeo Quem aprende destroacutei-se e

autodestroacutei-se na medida em que vai pondo de lado ou vai equacionando os fundamentos do

conhecimento anterior agrave sua formaccedilatildeo agrave sua educaccedilatildeo Como diz Fullat citado por Carlos

Francisco de Sousa Reis ldquoO acto educador especificamente humano eacute no seu nuacutecleo e fonte

entitativa confrontaccedilatildeo de duas consciecircncias confrontaccedilatildeo constitutivamente violenta4rdquo Para

Carlos Francisco Fullat procura aqui justificar a partir dos modelos de habilidades emperia a

forma como a educaccedilatildeo pode apresentar-se como acto educativo violento ou simplesmente

4Cf Carlos Francisco de Sousa Reis Educaccedilatildeo e cultura mediaacutetica Anaacutelise de implicaccedilotildees deseducativas

Acircncora editora Lisboa 2014 p 45

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como condiccedilatildeo da violecircncia Fullat segundo o nosso autor para encontrar os fundamentos da

educaccedilatildeo como condiccedilatildeo de violecircncia analisa inicialmente o surgimento ontoloacutegico da

civilizaccedilatildeo a partir de trecircs perspectivas a perpectiva do animal faber a perspectiva do animal

symbolicum e a perspectiva do animal sociale A partir destas trecircs perspectivas ele conclui

que a violecircncia eacute constitutiva de todos os actos educativos O ponto de partida da educaccedilatildeo eacute

visto portanto para Fullat desde uma perspectiva negativa desde uma antropologia negativa e

desde uma possibilidade eacutetica negativa Natildeo pode haver uma educaccedilatildeo que natildeo seja sobretudo

uma acccedilatildeo que arraste a negatividade consigo mesma Isto eacute uma acccedilatildeo que procura desfazer-

se do estado da ignoracircncia anterior O estado ou acccedilatildeo educativa eacute uma acccedilatildeo de

ldquodeplacementrdquo para um novo siacutetio um novo mundo uma nova aventura

As leituras ou melhor os textos utilizados por Fullat como exemplos patenteiam

naturalmente esta negatividade na relaccedilatildeo educativa Eacute o caso da visatildeo hobbesiana freudiana

e de Sartre das relaccedilotildees humanas que satildeo muitas vezes relaccedilotildees de poder da negatividade

isto eacute onde a manutenccedilatildeo do poder implica a perda do outro ou do espaccedilo do outro Nestes

autores destacam-se duas perspectivas inconciliaacuteveis ldquoo egoiacutesmo de ter e o sadismo de

dominarrdquo A educaccedilatildeo eacute vista como uma necessidade desenfreada de ter e ter sempre e cada

vez mais ao mesmo tempo que este desejo incontrolado eacute tambeacutem alimentado com a outra

necessidade de dominar e controlar tudo a todo custo Estas duas febres como lhe chama

Fullat resultam de uma eacutetica hedoniacutestica onde no campo hobbesiano o prazer eacute sinoacutenimo da

dominaccedilatildeo ldquoToda a eacutetica de Hobbes depende do seu pressuposto fundamental a inclinaccedilatildeo

geral da Humanidade para um desejo perpeacutetuo e sem descanso de adquirir poder e mais poder

desejo esse que soacute termina com a morte O ser humano eacute egoiacutesta (hellip) e a fim de poder estar

preparado para alcanccedilar o que deseja tem de procurar aumentar sempre cada vez mais o seu

poder5rdquo Natildeo poderia ter havido civilizaccedilatildeo se natildeo houvesse uma agressividade natural diria

Fullat de Francisco de Sousa O que noacutes consideramos como civilizaccedilatildeo teria sido aquilo que

pensadores como Hobbes ou Rousseau teriam visto como um princiacutepio do pacto natildeo pacto o

pacto simulado no caso de Rousseau A civilizaccedilatildeo nasce a partir da distorccedilatildeo de uma

realidade anterior e para permanecer deve tambeacutem continuar a distorcer esta mesma realidade

para poder construir um poder de dominaccedilatildeo e do egoiacutesmo Neste acircmbito a educaccedilatildeo aparece

como o aparelho protector do Estado manipulador e violento que utiliza as ideologias como a

praccedila da fecundaccedilatildeo das suas manipulaccedilotildees E porque o homem procura sobretudo ser feliz

diz Aristoacuteteles entatildeo muitas vezes natildeo escolhe os meios para ser feliz isto eacute natildeo estaacute

5 Cf Marques 2000 120 Apud Carlos Francisco de Sousa 2014 46

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disposto a abdicar de alguns meios que podem ser uacuteteis para a sua felicidade Eacute o caso da

felicidade pelo trabalho diraacute Francisco de Sousa mas o trabalho exerce uma forccedila contraacuteria

sobre a natureza e eacute o caso da educaccedilatildeo onde no educar

ldquoO homem exige a educaccedilatildeo mas esta implica a violecircncia da programaccedilatildeo

geneacutetica e da programaccedilatildeo social Educar eacute uma luta de consciecircncias em que

o educador sempre investe sobre o educando desde a cultura que se alimenta

da repressatildeo social imposta a Eros (o prazer) e Thanatos (a agressividade)6rdquo

Se bem podemos ver as teorias pessimistas como um exagero da negaccedilatildeo humana no sentido

do encontro pleno ainda assim nesta possiacutevel negaccedilatildeo do encontro pleno entre os humanos

nasce a possibilidade da vida do outro isto eacute o mesmo ldquosujeito que pode trazer a morte do

outro tambeacutem traz a sua vidardquo no embate do encontro entre os diferentes haacute sempre uma

possibilidade da nova vida de um novo existir e a educaccedilatildeo eacute precisamente tudo isso o

encontro dos diferentes que tem como fim ajudar a criar uma nova vida fazer nascer uma

nova existecircncia uma nova oportunidade Porque segundo autores como Fullat diz Francisco

de Sousa natildeo se pode falar de educaccedilatildeo laacute onde natildeo haacute consciecircncia Apenas haacute educaccedilatildeo

porque haacute consciecircncia porque existe consciecircncia porque haacute dois encontros e porque apesar

do embate entre os dois nenhuma delas deixa perder a outra natildeo eacute um encontro ou um

embate para desgarrar o outro antes pelo contraacuterio este embate eacute feito para estabelecer o

outro no outro sem fazer desaparecer a alteridade Mas isso soacute eacute possiacutevel justamente porque

no lugar da violecircncia que poderia ter conduzido a uma ldquorobotizaccedilatildeordquo foi introduzido o factor

de cuidado diz Carlos Francisco de Sousa Eacute portanto o cuidado que vai fazer com que haja

um encontro entre as duas consciecircncias Como diz Hegel de Morin (2005 105 Apud Carlos

Francisco de Sousa 2014 49) ldquoa consciecircncia de si soacute atinge a sua satisfaccedilatildeo numa outra

consciecircncia de sirdquo Dito de outra forma em palavras de Fullat de Carlos Francisco de Sousa

ldquosoacute depois da descoberta do eu pelo enfrentamento do tu se daacute a verdadeira relaccedilatildeo

educativardquo Portanto natildeo pode haver educaccedilatildeo na ausecircncia do outro natildeo pode haver

educaccedilatildeo na ausecircncia do interlocutor e do intermediaacuterio e natildeo pode haver educaccedilatildeo na

ausecircncia de uma situaccedilatildeo educativa

A fase educativa eacute acompanhada pelo decliacutenio paulatino de amestramento porque supotildee a

chegada da consciecircncia supotildee a responsabilidade pela capacidade de escolher e de decidir

supotildee a autenticidade do SIM e do NAtildeO supotildee uma certa comunicaccedilatildeo de intimidade no

6 Cf Francisco de Sousa cit

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dizer de Jaspers de Carlos Francisco de Sousa O sim e o natildeo do educando jaacute tem um patamar

um pouco mais alto que o sim e o natildeo daquele que estaacute na fase de amestramento A pugna jaacute

tem um caraacutecter mais real a dor eacute mais audiacutevel porque eacute vivida e sentida por aquele que tem

capacidade fiacutesica de desforrar violecircncia sobre o seu mestre sobre o seu guia ou sobre aquele

que lhe dirige Eacute diferente da dor da infacircncia que eacute vivida por e pela compaixatildeo do outro no

outro Os pais e os parentes proacuteximos podem responder pela dor da crianccedila enferma levando-a

ao meacutedico ou ao especialista Sozinha natildeo poderia fazecirc-lo eacute por isso que dizemos que a dor

da infacircncia eacute uma dor de solidariedade compassiva isto eacute precisa de um terceiro para ser

actualizada ou minimizada A do adulto tambeacutem pode precisar mas com muito menos

coerccedilatildeo que a da crianccedila ou a do adulto-crianccedila Esta simbologia tambeacutem pode ser aplicada agrave

relaccedilatildeo do educador e do educando que estatildeo quase sempre inicialmente em perspectivas

diferentes em dizibilidades diferentes talvez por isso autores como Fullat falam do caraacutecter

agoacutenico da educaccedilatildeo ou da educabilidade Assumem que natildeo eacute possiacutevel educar sem existecircncia

de um processo agoacutenico porque haacute encontro de dois tipos de saberes que podem ser

completamente diferentes sobre o mesmo saber ou sobre o mesmo tema O saber daquele que

ensina e o saber sobre o saber daquele que vai aprender ou que estaacute para aprender satildeo coisas

completamente diferentes passando ou acontecendo no mesmo espaccedilo A aprendizagem da

educabilidade exige sempre uma proposta e um tempo de adaptaccedilatildeo retroactivo para garantir a

apropriaccedilatildeo do processo da aprendizagem isto eacute para garantir o processo da refinaccedilatildeo do

conhecimento em outras palavras para atingir a compreensatildeo Esta etapa da compreensatildeo eacute

feita de uma transiccedilatildeo a outra isto eacute passamos de uma ldquocivilizaccedilatildeo de resposta a uma

civilizaccedilatildeo de perguntasrdquo porque o tempo de respostas definitivas morreu

O aprender com profundidade exige que natildeo nos contentemos apenas com as pequenas

resoluccedilotildees como diz Andreacute Giordan mas que consigamos apoderar-nos dos enunciados para

debatecirc-los e com eles transformar a relaccedilatildeo do saber atraveacutes de argumentos e contra-

argumentos Quem aprende eacute obrigado a ter argumentos insiste Giordan Quem aprende lanccedila

duras inquisiccedilotildees sobre o processo eacute um constante inquieto

laquoDe que estamos exactamente a falar O que queremos mostrar Estou

convicto de que o que estou a dizer eacute verdade eis porquecircraquo Ele descobre o

que eacute uma demostraccedilatildeo os argumentos que eacute necessaacuterio accionar para

convencer a importacircncia do raciociacutenio e o sentido preciso das palavras No

fim do ensino secundaacuterio aqueles que aprendem nem sempre tecircm

consciecircncia que uma hipoacutetese na matemaacutetica (onde ela eacute um dogma que natildeo

podemos transgredir) natildeo tem o mesmo estatuto que no resto das ciecircncias

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onde ela natildeo eacute senatildeo uma explicaccedilatildeo entre outras explicaccedilatildeo que adoptamos

e adaptamos durante o tempo em que procuramos meios para a corroborar ou

informar Controlar a polissemia de um tal vocabulaacuterio evita muitas

confusotildees7

Quem aprende predispotildee-se a ser bravado e podado predispotildee-se a ser limitado ao mesmo

tempo que rompe a proacutepria limitaccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo da teacutecnica e de habilidades

predispotildee-se a demostrar que apesar das limitaccedilotildees ainda assim pode criar pode inventar e

pode inovar saindo precisamente do seu campo de conforto Qualquer investigaccedilatildeo mesmo

sendo apenas inicial tem como fim tirar-nos do nosso campo do conforto tem que como

objectivo tirar-nos da nossa aldeia e conduzir-nos para a cidade onde corremos o risco de nos

perder implica actualizar o nosso preconceito em relaccedilatildeo a algo implica questionar as

evidecircncias laquoQuanto mais aquele que aprende reflecte sobre o tratamento de uma tarefa mais

ele referencia e repara nos erros nos limites e nos disfuncionamentos Ele torna-se

rapidamente capaz de analisar os acontecimentos em curso e explicitar a estrateacutegia utilizada e

a sua pertinecircncia Comeccedila a emergir uma eficaacutecia oacuteptima8raquo A compreensatildeo e a preensatildeo do

conhecimento natildeo nos deixa indiferentes faz de noacutes outro laquooutroraquo outra realidade que apesar

da existecircncia autoacutenoma assume que soacute pode existir se tiver possibilidade de se comparar com

as outras e se puder ser referenciada Eacute por isso que o nosso modelo de aprender tem que

acompanhar se possiacutevel o enquadramento das concepccedilotildees e tem que actualizar os conceitos

a sua marginalidade e o seu centrismo Pois haacute que ter em conta que ningueacutem aprende sem

antes fazer um trabalho profundo sobre as suas proacuteprias concepccedilotildees (diz Andreacute Giordan) e

sobre as concepccedilotildees dos outros onde ele se apresenta como porta-voz ou como mediador Eacute

por isso que em algumas situaccedilotildees vemos que eacute muito complicado ser porta-voz ou mediador

educativo porque vamos tentar transmitir algo que estaacute fora da nossa dizibilidade cultural

fora do nosso quadro referencial fora do nosso imaginaacuterio cultural Natildeo posso explicar o

rigor do Inverno se natildeo tenho experiencia do Inverno rigoroso porque natildeo disponho dos

dados fortemente caracteriacutesticos do Inverno

A minha explicaccedilatildeo deve superar a mera imagem informativa ou elucidativa da realidade A

minha informaccedilatildeo deve ser a mais real possiacutevel A imagem natildeo eacute a minha realidade eacute a

realidade daquela realidade eacute a realidade da fotografia tirada por mim ou por algueacutem Aqui a

fotografia tem mais ou menos a mesma funccedilatildeo que o vocabulaacuterio que estaacute como a porta de

entrada para a compreensatildeo oral pode ajudar ou pode complicar a compreensatildeo atraveacutes de

7 Cf Andreacute Giordan Aprender Editora Horizontes Pedagoacutegicos Lisboa 2007 p 162

8 Cf Idem

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uma falsa intermediaccedilatildeo de essecircncia da acccedilatildeo cultural A palavra vai ter um peso muito

importante nesta transiccedilatildeo porque pode permitir que cheguemos ou que fiquemos pelo

caminho pode manipular duplamente os conceitos A palavra usada na transmissatildeo deve ser

suficientemente aberta para permitir ao aluno viver a sua liberdade na hora da escolha deve

sentir-se familiarizado com o tema que quer escolher ou que quer trabalhar A obtusidade da

palavra pode tambeacutem ser um factor muito importante natildeo apenas na apreensatildeo dos conteuacutedos

mas tambeacutem na proacutepria escolha dos conteuacutedos por afinidade por gosto por paixatildeo ou ateacute por

curiosidade Quer o docente e quer discente tecircm que saber que este processo natildeo cabe num

frasco de linearidade Haacute muacuteltiplas facetas de ensinar e muacuteltiplas facetas de aprender Mas

entre ambas haacute uma faceta que eacute transversal que eacute desejaacutevel que seja transversal eacute a faceta

do ensinar honesto ou com a honestidade a de aprender honesto ou com a honestidade a de

que cada um tem que ser aquilo que eacute para dar e receber

Esta honestidade eacute muito importante para ajudar a fazer com que quer o educador quer o

educando caminhem para um espaccedilo da educaccedilatildeo liberal ldquoA educaccedilatildeo liberal eacute uma

educaccedilatildeo na cultura e para cultura9rdquo diz Leo Strauss o ldquoproduto terminado de uma educaccedilatildeo

liberal eacute um ser humano cultivadordquo insiste Strauss Uma educaccedilatildeo na cultura e para cultura

que nos conduza agrave formaccedilatildeo de um ser humano cultivado soacute pode ser feita inicialmente com

um fundamento muito forte da honestidade do cuidado e de autocuidado Strauss vai buscar a

explicaccedilatildeo do termo cultura a partir da sua origem latina (cultura) que se refere em primeiro

lugar agrave agricultura diz ele e no seu sentido derivado e actual (insiste ele) quer dizer ou

refere-se ao cultivo da mente Ora insiste o nosso autor assim como a terra precisa de

lavradores a mente precisa de mestres mas estes mestres soacute podem ser mestres ou

reconhecidos como mestres porque para aleacutem da sua periacutecia satildeo acima de tudo honestos

iacutentegros rectos e raros Eacute por isso que eacute mais faacutecil encontrar agricultores do que os mestres

diz Strauss sobretudo os mestres que natildeo satildeo disciacutepulos isto eacute os livros os grandes livros

No acircmbito da educaccedilatildeo liberal o estudante natildeo pode portanto estar separado dos livros dos

grandes livros e porque natildeo pode estar separado dos livros ele vai adonar-se deles e vai criar

condiccedilotildees para poder ajudar os outros estudantes menos experimentados remata Strauss

Tudo isso eacute um processo de honestidade Dedicar-se a estudar com profundidade as grandes

obras os grandes livros que muitas vezes dizem coisas completamente desconcertantes com a

sua eacutepoca o seu espaccedilo ou o seu meio cultural poliacutetico ou religioso Eacute por isso que a

educaccedilatildeo liberal natildeo pode ser entendida como um simples doutrinamento10 Eu natildeo posso

9 Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Katz editores Buenos Aires 2007 p 13

10 Cf Cit p 14

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pretender ou achar que estou a educar simplesmente porque estou a ideologizar as pessoas as

crianccedilas os jovens etc vou educar se crio cultura e se transformo as pessoas em cultura e na

cultura verdadeiramente adquirida com a honestidade

Strauss abre a possibilidade para que o termo cultura tambeacutem seja discutida porque cada

regiatildeo de planeta tem a sua proacutepria cultura Noacutes temos a nossa cultura enquanto africanos e

dentro do africano tambeacutem haacute vaacuterias culturas e subculturas (mesmo sabendo que um

socioacutelogo apressado emitiria imediatamente a sua reclamaccedilatildeo sobre subculturas11) O ideal na

educaccedilatildeo liberal eacute que a cultura natildeo seja uma pequena janela que natildeo seja apenas um

singulare tantum diz Strauss mas que seja e que procure ser utilizada no plural que aceite e

assuma o sentido relativo que lhe permite ser discutida Com a excepccedilatildeo dos loucos todos

somos seres de cultura insiste Strauss apesar da maacute compreensatildeo e da maacute interpretaccedilatildeo que

isso causa agraves vezes Natildeo obstante as maacutes interpretaccedilotildees e as maacutes compreensotildees fazem parte

do preccedilo que uma educaccedilatildeo liberal tem que pagar e tem que correr A educaccedilatildeo democraacutetica eacute

um preccedilo caro no acircmbito da educaccedilatildeo liberal natildeo apenas para o acircmbito acadeacutemico mas

sobretudo para o acircmbito poliacutetico onde o poliacutetico tem que justificar e merecer o voto dos

eleitores No nosso caso concreto o caso africano e de maneira particular a Aacutefrica lusoacutefona a

democracia natildeo se fez muito sentir natildeo estaacute a ser muito acompanhada pela educaccedilatildeo A

proacutepria expressatildeo democracia eacute vista e usada com ambiguidade Mas voltaremos a esta

anaacutelise num outro momento

A Democracia e Educaccedilatildeo

O termo democracia deve ser dos termos ou das expressotildees mais utilizadas a niacutevel poliacutetico e

fora do campo poliacutetico Eacute tambeacutem provavelmente dos termos poliacutetico-sociais mais ingratos

mais incompreensiacuteveis cujo uso eacute muitas vezes inadequado O saacutebio fala de democracia o

especialista tambeacutem mas natildeo eacute por isso que quem natildeo sabe da democracia deixa de falar dela

e isso faz com que ela seja um campo de todos e de ningueacutem Um campo do saacutebio do

especialista e do analfabeto

E eacute sobretudo com este uacuteltimo que vamos trabalhar e falar na democracia moderna Os paiacuteses

lusoacutefonos como muitos paiacuteses de Aacutefrica foram apanhados numa encruzilhada forccedilada da

virada do mundo Do mundo econoacutemico do mundo poliacutetico que tem que obedecer ao mundo

econoacutemico e tal como acontece nas regras e jogos de poderes tiveram que aceitar e entrar

para um jogo e uma regra que natildeo lhes era de todo favoraacutevel Tinham que dar espaccedilo real aos

11

Cf Cit p 14 laquoEacute todo o padratildeo comum de conduta proacutepria de um grupo humanoraquo

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partidos que estavam na oposiccedilatildeo e natildeo era possiacutevel fazecirc-lo realisticamente porque natildeo se

deixa de ser um Partido-Estado de um dia para outro e tinham que lutar contra a pobreza e

contra o analfabetismo as duas inimigas principais da democracia moderna e natildeo havia

garantia de que pudessem fazecirc-los nos termos que a democracia pensada pelos outros

propunha

Portanto a leitura que se deve fazer destes 25 anos da democracia nestes paiacuteses natildeo seria

naturalmente uma leitura triunfalista mas antes pelo contraacuterio uma leitura analiacutetica

Perguntar-se se o que chamamos democracia desde o iniacutecio foi verdadeiramente democracia

A leitura triunfalista eacute uma leitura de auto-regozijo de auto-suficiecircncia e de triunfalismo

nacionalista que faz uma espeacutecie de apagatildeo naquilo que eacute ou sobre aquilo que eacute a memoacuteria do

difiacutecil que roccedila ao fracasso e se esquece que a democracia eacute um regime que eacute feito para

triunfar perdendo ou fracassando Natildeo se pode esperar outra coisa da democracia senatildeo o

triunfo porque aparentemente eacute um regime onde todo o mundo tem a possibilidade e a

oportunidade de decidir de decidir sobre si mesmo e de decidir com o uso da influecircncia sobre

os outros E eacute precisamente na eventualidade de que esta influecircncia sobre os outros venha a

concretizar-se que fez com que os grandes teoacutericos do poder na antiguidade tivessem medo

da democracia laquoO que eacute que seria daquele regime onde o povo eacute quem mandaraquo

Perguntavam eles O que eacute que seria dos ricos da elite dos intelectuais da induacutestria etc Uma

seacuterie de questotildees do acircmbito de interesse particular se punha para chamar a atenccedilatildeo dos

particulares para natildeo aderir a algo que lhes podia fazer mal e fazer mal aos seus negoacutecios Eacute

por isso que a democracia natildeo eacute um poder do povo mas um poder de elite que eacute criado dentro

do povo sem que para isso o povo se decirc conta Os criacuteticos como Platatildeo sempre olharam para

esta elite que vem do povo como algo que sempre seraacute mal preparada para assumir com

distinccedilatildeo algo que eacute muito importante para o destino do paiacutes por isso nunca apoiaraacute um

regime democraacutetico Mas a democracia que eacute um regime triunfalista eacute uma democracia

falaciosa porque natildeo se pode esperar um triunfo na maioria ou da maioria uma vez que a

verdadeira maioria natildeo negocia natildeo dialoga apenas remete para o ponto de partida para a

regra do jogo inicial ainda que esta regra do jogo seja escrita e feita por ela de forma

maliciosa Eacute por isso que quando se fala da vitoacuteria da democracia no sentido da maioria

democraacutetica temos que olhar para esta maioria como aquela que mesmo sendo a maioria

deixou de secirc-la voluntariamente para se revestir do risco de ter que dar explicaccedilotildees de ter que

justificar-se de ter que sujeitar-se a ouvir quem perdeu quem o povo natildeo quer natildeo escolheu

e natildeo conta com ele de forma expliacutecita

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O triunfo da democracia maioritaacuteria natildeo eacute um triunfo numeacuterico mas sim um triunfo da

gestatildeo das emoccedilotildees e dos egos do poder e da poliacutetica daqueles que o povo indicou para

fracassar e aqueles que indicou para o sucesso um certo sucesso de insucesso porque tudo eacute

aprazo e eacute o proacuteprio povo que em primeiro plano natildeo respeita e nunca respeitou o prazo

Exige as contas antes do fim do prazo que ele estipulou e natildeo aceita justificaccedilotildees que natildeo

satisfaccedilam a sua proacutepria demanda os outros se transformam para ele em indiviacuteduos e ele em

Estado que tem que fazer com que a lei seja cumprida Uma tentativa de saiacuteda para esta

realidade para esta situaccedilatildeo tem que passar necessariamente pela Educaccedilatildeo eacute por isso que

alguns pensadores da democracia como eacute o caso de Gianfraco Pasquino defendem que a luta

da democracia moderna eacute uma luta que consiste em satisfazer a educaccedilatildeo e eliminar a

pobreza Natildeo se pode falar de uma democracia triunfalista quando se tem medo de olhar para

a memoacuteria que apresenta um nuacutemero insustentaacutevel do analfabetismo e de pobreza O triunfo

da democracia moderna eacute um triunfo que passa pela lucidez e um sono tranquilo de barriga

cheia natildeo da elite mas daqueles que sem ser elite sentem que algueacutem cumpriu com um

direito deles o direito de natildeo passar fome e de natildeo morrer analfabeto E esta expectativa

corresponde com a democracia moderna em alguns momentos porque eacute uma expectativa que

soacute pode ser realizada pela virtude por um regime virtuoso Em algum momento acreditamos

ou se diz que a democracia eacute um regime que depende da virtude diz Strauss Um regime onde

todos ou a maioria dos homens satildeo saacutebios uma sociedade onde todos os adultos satildeo saacutebios e

virtuosos uma sociedade aristocraacutetica uma democracia aristocraacutetica No fundo um grande

mal-entendido Aparentemente eacute o que nos teraacute acontecido em alguns momentos quando

recebemos a democracia Olhamos para ela como o estado de realizaccedilatildeo perfeita de todos e

para todos Olhamos para ela quase como que uma espeacutecie de governo dos deuses Com

efeito Aristoacuteteles tinha razatildeo quando alertou que a natureza humana natildeo permite que

olhemos para nenhum governo como lugar de possiacutevel perfeiccedilatildeo como lugar seguro porque eacute

a gestatildeo humana que vai fazer com que um lugar um governo ou um Estado seja tido como

seguro ou natildeo A gestatildeo humana das coisas eacute volaacutetil

Quando Aristoacuteteles e outros teoacutericos pensaram no indiviacuteduo viram nas instituiccedilotildees condiccedilatildeo

indispensaacutevel para responder aos anseios deste mesmo indiviacuteduo eacute por isso que criaram

maneiras formas instacircncias e institutos para permitir uma salvaguarda real do indiviacuteduo A

cidade natildeo eacute um espaccedilo natural do indiviacuteduo diz Aristoacuteteles porque implica regras

completamente diferentes das regras individuais das regras da arbitrariedade das regras da

autonomia ilimitada e das regras da natildeo obediecircncia A cidade surge portanto para dar corpo a

todo este mosaico de regras de normas de paixatildeo mas com ordem e comando unificado num

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basanos num basileus que soacute eacute independente porque obedece agraves leis porque cumpre as leis

Este propoacutesito escapou-nos enquanto africanos que festejaram a chegada da democracia e

enquanto africanos que ensinam e dirigem o (s) paiacutes (es) Olhamos para democracia tal como

olhaacutevamos para a independecircncia sempre com total ausecircncia de prestaccedilatildeo de contas e sempre

com a expectativa irreal da igualdade Mas a realidade eacute um fenoacutemeno que se justifica por si

mesmo e eacute nesta perspectiva que a Ciecircncia Poliacutetica se debate diz Strauss entre tentar

encontrar a democracia na sua geacutenese e a democracia tal como a realidade se lhe apresenta A

nossa luta eacute perceber a democracia tal como a realidade a apresenta naturalmente fazendo

uma leitura histoacuterica daquilo que ela foi de como surgiu mas sobretudo ter em conta que ela

tem uma aplicaccedilatildeo e uma aplicabilidade epocal Cada eacutepoca cultiva a sua proacutepria democracia

diz a sua proacutepria democracia e interpreta a sua proacutepria democracia A sua epocalidade renova-

se diariamente constroacutei-se na sua proacutepria construccedilatildeo-autodestruiccedilatildeo em nome da proacutepria

democracia e da correspondecircncia epocal

Somos da opiniatildeo de que Aacutefrica deve criar um estilo proacuteprio para a sua democracia Deve

criar a sua proacutepria democracia que se enraiacuteza nas suas culturas que tem em conta a sua

proacutepria particularidade e multiplicidade que tem em conta o papel das autoridades

tradicionais que muitas vezes sentem-se completamente perdidas no acircmbito do

enquadramento democraacutetico deve ter em conta o papel fulcral da mulher de todas as esferas

em Aacutefrica

No nosso contexto sabemos que ldquoa mulher africana eacute a porta de todas as entradas e a saiacuteda

de nenhuma saiacuteda natildeo autorizada A mulher africana eacute alegria de um continente com as suas

vaacuterias naccedilotildees e a sua uacutenica raccedila ela eacute o fracasso da poliacutetica e do poder quando se faz machista

e eacute a vitoacuteria da poliacutetica e do poder quando se faz humana quando se torna ouvinte e se

capitaliza como espaccedilo de confianccedila e de reconhecimento de todos Natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel

sem estes atributos da mulher natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel sem uma poliacutetica que escuta a mulher e

que permita que a sua opiniatildeo natildeo seja apenas um mero disfarce do politicamente correcto e

do eticamente aceitaacutevel A Aacutefrica possiacutevel eacute a Aacutefrica madrugadora como a preocupaccedilatildeo da

mulher para com o seu lar os seus filhosas o seu marido e toda a famiacutelia alargada A Aacutefrica

possiacutevel eacute a Aacutefrica da ternura e do pragmatismo encarnado pela mulher atraveacutes dos diversos

cuidados que presta ao seu lar e agrave comunidade no seu dia-a-dia Natildeo poderemos amar

verdadeiramente Aacutefrica se continuarmos a desprezar as suas mulheres e suas crianccedilas se a

opiniatildeo da mulher continuar a ser uma espeacutecie de favor que a comunidade lhe faz porque natildeo

quer contar com ela em termos objectivos porque lhe pintou com preconceitos de

instabilidade de inseguranccedila e de fragilidade Porque olha para ela como o problema de todos

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os problemas o mal de todos os males e portanto aquela com quem natildeo se pode nem se deve

contar na primeira hora das tomadas das decisotildees Eacute a invenccedilatildeo dos preconceitos e da

prostituiccedilatildeo ideoloacutegica que depois acaba por ser direccionada agrave mulher atraveacutes dos

mecanismos do ldquopoder positivo natildeo legisladordquo o direito criado ou assumido a partir dos actos

de todos os dias

Se tivermos em conta que em Aacutefrica as mulheres satildeo mais de metade da populaccedilatildeo do

continente e a niacutevel global as mulheres de todo o mundo satildeo a metade de toda a populaccedilatildeo

mundial entatildeo poderemos com maior propriedade dar valor agrave figura da mulher natildeo soacute para o

nosso continente mas a niacutevel global Sabemos que de cada vez que a mulher ganha um

direito conquista um direito os seus ganhos e as suas conquistas cimentam a estabilidade

local e regional para a paz e para o desenvolvimento geopoliacutetico porque a mulher no seu

exerciacutecio de responsabilidade eacute muito mais persuasiva e honra com brilho o seu compromisso

Sabemos graccedilas agrave histoacuteria etnograacutefica e histoacuteria dos acontecimentos que muitas das

reivindicaccedilotildees das mulheres africanas antecederam uma boa parte das reivindicaccedilotildees

femininas no Ocidente moderno e contemporacircneo A descoberta do continente africano pelos

europeus tambeacutem conheceu a resistecircncia feminina ao lado dos homens africanos e isto

antecede a luta feminista e a luta a auto-afirmaccedilatildeo do geacutenero no Ocidente O fracasso da

Aacutefrica reside na ldquoahistorizaccedilatildeordquo do papel das suas mulheres reside na negaccedilatildeo da histoacuteria

positiva das suas mulheres reside no facto de encurtar as epopeias femininas das suas

heroiacutenas Paiacuteses como Ruanda demostram isso todos os dias Ruanda poacutes genociacutedio teve 56

das mulheres nos seus respectivos governos e todos noacutes temos notiacutecias e conhecimento da

solidez da economia e da poliacutetica de Ruanda

Temos consciecircncia de que apesar do brilho do bem-fazer e do saber-fazer da mulher africana

ainda assim haacute muitos obstaacuteculos que ela tem que superar entre eles o proacuteprio preconceito

machista Mas mesmo sabendo do preconceito machista cremos que o preconceito maior

com o qual ela se debate eacute o preconceito cultural e religioso para uma boa parte de Aacutefrica que

tem a ver com a tradiccedilatildeo negativa Estamos por exemplo a pensar na questatildeo da mutilaccedilatildeo

genital nos casamentos forccedilados e de conveniecircncia clacircnica o traacutefico das crianccedilas do sexo

feminino e o preconceito sobre a mulher que padece de viacuterus de VIH Estes males e

preconceitos satildeo mais prejudiciais agrave condiccedilatildeo feminina da mulher africana do que qualquer

mal que possa abater sobre ela Natildeo haacute um mal pior que o mal do preconceito e natildeo haacute cultura

mais enferma que a cultura preconceituosa

Aacutefrica soacute pode resgatar a sua cultura se lutar contra os seus preconceitos negativos elevando a

condiccedilatildeo da mulher e criando-lhe instrumentos e condiccedilotildees para lutar contra o mal que a

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cultura e tradiccedilatildeo criaram para ela e contra ela muitas vezes sem pedir a sua opiniatildeo O

horizonte possiacutevel para Aacutefrica eacute aquele de destruiccedilatildeo positiva dos preconceitos culturais

prejudiciais para as suas mulheres e crianccedilas Haacute que possibilitar que os dogmas culturais

intelectuais e religiosos sejam questionados para o bem da salvaguarda da proacutepria cultura da

proacutepria religiosidade e da proacutepria intelectualidade A poliacutetica e os poliacuteticos que tomarem isso

como uma iniciativa singular salvaratildeo todo o continente africano12

rdquo

A democracia que pensa a sua proacutepria realidade natildeo pode natildeo ter em conta estas necessidades

e particularidades Eacute por isso que o novo enfoque democraacutetico em Aacutefrica e nos paiacuteses

lusoacutefonos em particular deveria incluir na escolaridade preacute-universitaacuteria a disciplina da

EDUCACcedilAtildeO PARA A DEMOCRACIA assim como pensar a possibilidade de cadeiras

como ldquoLITERATURA E INSTRUCcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeOrdquo tambeacutem no preacute-

universitaacuterio Uma educaccedilatildeo para a democracia e uma literatura e instruccedilatildeo para a

democracia evitariam que caiacutessemos naquilo que Strauss chama ou designa por ldquofalta de

espiacuterito puacuteblico13

rdquo nas democracias modernas isto eacute a criaccedilatildeo de cidadatildeos que soacute se

interessam em ler as paacuteginas desportivas dos jornais e as paacuteginas das pequenas histoacuterias e

mais nada Pensar num ensino da democracia que possa ser cimentado com apoio das nossas

tradiccedilotildees orais ajudaria natildeo soacute a ter a qualidade viva dos nossos debates democraacuteticos como

tambeacutem a fundar uma democracia de raiacutezes africanas que bebem das outras culturas mas que

tambeacutem podem reivindicar a sua originalidade poliacutetica Os diversos tipos de ONDJANGO

que existem nas culturas africanas podem ser exploradas desde o ponto de vista democraacutetico

ondjango como espaccedilo de concertaccedilatildeo de ideias como espaccedilo de recepccedilatildeo do ensinamento

dos mais velhos se aproximaria ao conceito grego de aacutegora Uma educaccedilatildeo para a democracia

em Aacutefrica deveria ter em conta tambeacutem os nossos proveacuterbios adaacutegios e aforismos com uma

acentuada moralidade onde podemos encontrar a profundidade do ser africano do espiacuterito

africano e da sua consciecircncia moral e eacutetica Neles encontramos uma insondaacutevel e inesgotaacutevel

sabedoria praacutetica transversal a todo o continente O que em Angola se designa como

ondjango na Guineacute-Bissau aparece com o nome de Djembereacutem e em algumas circunstacircncias

com o nome de Bantaba de djumbai Ambos satildeo espaccedilos de confraternizaccedilatildeo de caraacutecter

educativo desde o ponto de vista da recepccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo da cultura e do pensamento

tradicional Quer a expressatildeo djembereacutem quer a expressatildeo bantaba designam um espaccedilo

circular de modo geral coberto de capim ou chapa de zinco podendo ser usados pelas pessoas

12

Cf Este trecho faz parte de um texto escrito a 31 de Julho de 2017 para um discurso ldquoencomendadordquo para o

dia internacional da mulher africana 13

Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Ed Katz Buenos Aires 2007 p 17

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de todas as idades mas em circunstacircncias diferentes Eacute um espaccedilo de reuniotildees e de encontro

de caraacutecter familiar da aldeia ou do grupo onde muitas vezes saem as decisotildees que dizem

respeito agrave comunidade eacute um espaccedilo legislativo da lei natildeo escrita da comunidade A palavra

djumbai significa divertir-se brincar daiacute que se bem o bantabaacute tem este caraacutecter seacuterio das

tomadas de decisotildees natildeo obstante esta seriedade eacute fundada na proximidade e na

familiaridade comunidade o que faz com que o poder natildeo seja algo estranho algo longiacutenquo e

tambeacutem faz com que o ensinamento e a transmissatildeo natildeo sejam vistos com a desmesura da

grandiosidade Contrariamente aos gregos e aos povos da Mesopotacircmia o lugar onde se

ensina e onde se toma as decisotildees eacute frequentado por todos pelas mulheres e crianccedilas pelos

doentes e saudaacuteveis

Conforme vimos o ondjango nos remete para a realidade da casa (NUNES

1991 159) Mas de que casa se trata Trata-se da casa de conversa de

reuniatildeo de hospedagem de partilha de bensrefeiccedilatildeoserviccedilos de

educaccedilatildeoiniciaccedilatildeo sociocultural de entretenimento eou de fazer justiccedila

Antes de tudo se trata de uma casa ponto de partida e ponto de confluecircncia

de uma casa com as condiccedilotildees de se poder sentar reunir junto de alguns

mais-velhos trata-se de um lugar de encontro14

Esta aproximaccedilatildeo de ondjango com a comunicaccedilatildeo e gestatildeo da casa permite-nos criar aqui

uma relaccedilatildeo comparativa com oikos nomoi xenofontino-aristoteacutelico Isto eacute podemos

reivindicar para o ondjango africano as mesmas capacidades os mesmos papeacuteis ou funccedilotildees

institucionais que tinha o oikos a partir da sua visatildeo da ldquofamiacutelia da propriedade da famiacutelia e

da casardquo Tal como vemos neste texto de Nunes citado por Martinho Kavaya este ondjango eacute

pluridisciplinar baseado em vaacuterias meacutetricas sociais o que de certa forma tambeacutem corresponde

com aquilo que podemos encontrar na concepccedilatildeo da palavra grega oikos A educaccedilatildeo do

ondjango do djembereacutem ou do djumbai satildeo portadoras do espaccedilo familiar da propriedade da

famiacutelia e da reflexatildeo sobre a casa sobre as coisas da casa e isso permite fazer com que o que

se discute neste espaccedilo seja efectivamente aquilo que importa agrave cidade aquilo que importaraacute agrave

cidade um dia E o que eacute pode importar profundamente agrave cidade Naturalmente as pessoas a

sua gente os homens e mulheres crianccedilas e velhos animais e plantas No fundo tudo que diz

respeito ao homem e ao seu envolvimento social e espiritual e eacute isso que o ondjango africano

14

Cf Martinho Kavaya Freire e o Ondjango podem dialogar Reflexotildees sobre o diaacutelogo de Freire com o

ondjango africano Angolano GT Educaccedilatildeo Popular n06 p 2 consultado em 30 de Outubro de 2017

httpwwwanpedorgbrsitesdefaultfilesgt06-2805-intpdf

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pretende passar atraveacutes dos seus diferentes status e fases do mais novo ao mais velho e do

mais velho ao mais novo

Toda a vida parte do ondjango e laacute encontra seu aacutepice Aiacute segundo a

pertinecircncia do vivenciado o ohango (conversadiaacutelogo) tomava vaacuterios

significados ldquoondjangordquo enquanto ldquoulongardquo (relato da vida desde o encontro

anterior) ldquoelongisordquo (ensinamento e aprendizado) ldquoekutardquo (partilha de bens

alimentares) ldquoekongelordquo (reuniatildeo de caraacuteter deliberativo)

ldquoekangaokusombaokusombisardquo (reuniatildeo para fazer justiccedila e sentenciar para

punir ou absolver o arguumlido) ldquookupapalardquo (encontro de entretenimento festas

e danccedilas culturais e tradicionais conforme a situaccedilatildeo vivida no momento

morte caccedila casamento iniciaccedilatildeo sociocultural e comunitaacuteria acolhimento

de uma visita etc) ldquoondjulukardquo (encontro para organizar um mutiratildeo

comunitaacuterio a favor de algum da comunidade em situaccedilatildeo de doenccedila

problema socioeconocircmico intervenccedilatildeo de ajuda na sua lavoura etc)

(KAVAYA 2006 p147) Afinal o ondjango eacute o habitat comunal e vital

onde se desenham as relaccedilotildees de conviacutevio geo-histoacuterico econocircmico

sociocultural poliacutetico etc em vista o bem comunitaacuterio15

Educar para a conservaccedilatildeo destes valores eacute tambeacutem educar para a democracia e eacute educar para

a manutenccedilatildeo da cultura e dos preconceitos positivos A democracia em todo o sentido e em

toda a sua histoacuteria sempre conteve um elemento educativo muito forte e quase indissociaacutevel

de si mesma eacute o diaacutelogo para gerar a cultura e a cultura para gerar diaacutelogo Natildeo pode haver

uma verdadeira democracia que dispense este binoacutemio O erro de pensadores como Platatildeo em

relaccedilatildeo agrave sua recusa agrave democracia reside no facto de desprezarem excessivamente qualquer

tipo de possibilidade para educaccedilatildeo viaacutevel do homem democraacutetico reside no facto de natildeo

acreditarem que a democracia pode educar um poloi e fazer dele um aristoacuteis agrave sua maneira

ou ainda este erro pode residir no facto de que estes pensadores natildeo tiveram em conta que o

poloi apenas pode querer ser simplesmente e eternamente um poloi mesmo sendo democrata

O erro consistiu em pensar que os que podem e devem governar a cidade deviam deixar de ser

das suas respectivas camadas e passar a ser aristocratas Eacute um erro que ainda vemos hoje

15

Cf Ibid p 3

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EDUCACcedilAtildeO CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO

UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS

ABEL JOSEacute DA SILVA a

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS b

adasilva00gmailcom

ireneinakulomoisesgmailcom

Resumo

A presente comunicaccedilatildeo faz uma caracterizaccedilatildeo do Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo

Universitaacuterio com ecircnfase nos seus desafios e perspectivas Analisa este processo a partir da

interpretaccedilatildeo sistecircmica que decorre dos pressupostos legais da Educaccedilatildeo e Ensino em Angola

Como meacutetodo usa a revisatildeo bibliograacutefica e a interpretaccedilatildeo e fundamenta a caracterizaccedilatildeo do

referido processo como variaacutevel baacutesica para a anaacutelise da qualidade do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola idealizado com base nos princiacutepios da legalidade da integridade da

laicidade da universalidade da democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da

intervenccedilatildeo do Estado da qualidade de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais

ciacutevicos e patrioacuteticos Tem como objectivo reflectir sobre os aspectos que o caracterizam e que

interferem na sua qualidade Apresenta a missatildeo do processo integrada ao Sistema em que

todos os agentes educativos participam da sua funcionalidade

Palavas-Chave Processo Ensino Aprendizagem Sistema

Abstract

This scientific paper characterizes the Non-University Teaching and Learning Process with an

emphasis on its challenges and perspectives It analyzes this process from the systemic

interpretation that arises from the legal presuppositions of Education and Teaching in Angola

As method uses the literature review and the interpretation and founded the characterization

of this process as basic variable for the analysis of the quality of the system of Education and

Teaching in Angola Idealized on the basis of the principles of legality integrity secularity

universality democracy gratuitousness obligation compulsion State intervention quality of

services education and promotion of moral civic and patriotic values It aims to reflect on the

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aspects that characterize and that interfere in its quality Has the mission of the process

integrated into the System in which all educational agents participate in its functionality

Key-words Process Teaching Learning System

Introduccedilatildeo

O Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo Universitaacuterio (PEANU) eacute uma importante variaacutevel

para a anaacutelise do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino em Angola (SEEA) sistema perspectivado

com base nos ldquoprinciacutepios da legalidade da integridade da laicidade da universalidade da

democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da intervenccedilatildeo do Estado da qualidade

de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticosrdquo (Lei no 1716

art 5ordm)1

A caracterizaccedilatildeo do PEANU pressupotildee assumir um posicionamento holiacutestico que analise o

mesmo como um processo natildeo isolado do todo porque o SEEA eacute estruturalmente unitaacuterio e a

sua realizaccedilatildeo na situaccedilatildeo especiacutefica da anaacutelise tem influecircncia no funcionamento da totalidade

(princiacutepio da integridade art 7ordm e art 17ordm)

Os desafios e perspectivas como outra dimensatildeo importante derivada do processo de

parametrizaccedilatildeo do assunto ndash objecto de anaacutelise justificam-se a partir da consideraccedilatildeo dos

princiacutepios da universalidade democraticidade gratuitidade obrigatoriedade intervenccedilatildeo do

Estado qualidade de serviccedilos e da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais pois que se a

Lei tipifica o que idealmente eacute o correcto a necessidade de confrontar com a realidade agrave luz

da pesquisa bibliograacutefica eacute inadiaacutevel para o alinhamento do agir educativo com os princiacutepios

legais

A partir destes princiacutepios infere-se que a Educaccedilatildeo e o Ensino satildeo natildeo apenas um direito mas

tambeacutem um dever que se deve realizar com a qualidade requerida para que a construccedilatildeo de

uma nova sociedade assente na democracia esclarecida seja possiacutevel Para isso agrave Escola

atraveacutes do Processo de Ensino e Aprendizagem (PEA) em todos os niacuteveis de ensino e

especialmente nos natildeo universitaacuterios impende a tarefa de formar personalidades capazes de

influenciar com o seu saber e suas qualidades o curso da histoacuteria concreta do seu contexto

Deste modo o Processo tem de ser significativo2 Para que o processo seja significativo eacute

1 Lei de Bases do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino que estabelece os princiacutepios e bases do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola de 7 de Outubro de 2016 Esta Lei revoga a Lei 1301 de 31 de Dezembro de 2001 2 O PEANU eacute significativo quando assegure o cumprimento da sua finalidade tal como se institui no art 25ordm da

Lei 1716 referente aos Objectivos Gerais do Subsistema do Ensino Geral Desta significatividade resulta em

consequecircncia a eficaacutecia do Sistema

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necessaacuterio caracterizaacute-lo com a finalidade de que se conheccedilam natildeo soacute os seus pontos fortes

mas tambeacutem os fracos aspecto que se aborda seguidamente

Por isso o objectivo deste trabalho consiste em reflectir sobre os aspectos do SEEA que o

caracterizam e que interferem na qualidade do PEANU

1 Estrutura do Seea Ponto de partida para a caracterizaccedilatildeo do Peanu

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento ldquoad intrardquo da

realidade educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento (Cfr

Silva 2016) Por isso a anaacutelise estrutural do SEEA baseada nas proposiccedilotildees da Lei 1716 e

fundamentada pela revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura criacutetico-contextual eacute uma

tarefa basilar para esta caracterizaccedilatildeo

A caracterizaccedilatildeo do Sistema Educativo numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional de

acordo com Ngaba ( 2012) e Liberato (2014) permite concluir que existem avanccedilos e

retrocessos no processo educativo angolano que em termos de poliacutetica educativa

condicionaram a sua evoluccedilatildeo positiva bem como a sua afirmaccedilatildeo no cenaacuterio internacional e

ateacute mesmo regional3

A partir desta ideia geral sobre o estado do SEEA que de modo especial se realiza por meio

do PEANU eacute possiacutevel compreender que estruturalmente estaacute bem concebido se se analisam

todos os factores intencionais de entrada e saiacuteda de um niacutevel de ensino para outro Entretanto

o aspecto funcional real fica aqueacutem do desejado se se avaliam com visatildeo criacutetico-acadeacutemica

os resultados do processo e os discursos oficiais que asseguram a Poliacutetica do Sistema

Educativo

Contrariamente agrave 1ordf Repuacuteblica (Cfr Ngaba 2012) que natildeo se fez reger por um documento

base tanto a 2ordf como a 3ordf Repuacuteblicas de Angola tecircm como fundamento a Lei de Bases do

SEEA que estabelece a criaccedilatildeo de condiccedilotildees mais adequadas para a aplicaccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas e dos programas nacionais com o objectivo de continuar a assegurar o

3 Este momento criacutetico do SEEA eacute tambeacutem hoje reconhecido oficialmente pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo do Paiacutes

na voz da sua titular no encerramento da Semana Nacional sobre Educaccedilatildeo em Angola realizada em Luanda Por

isso para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo actual do Sistema Educativo e do PEANU especificamente eacute criteacuterio dos

autores deste trabalho que os problemas fracturantes que colocam em causa a qualidade do Sistema natildeo podem

ser analisados unilateralmente sob pena de se incorrer num reducionismo indevido pois estatildeo em causa

muacuteltiplas variaacuteveis que chocam com diversos princiacutepios e disposiccedilotildees legais em que assenta o Sistema

infraestruturas precaacuterias insuficiecircncia dos materiais e meios didaacutecticos factos que se agravam ainda mais com a

falta de preparaccedilatildeo adequada dos professores de tal modo que possam responder aos desafios do Sistema

idealizados pela Reforma Educativa Essa visatildeo geral estrutural e conjuntural pode reflectir-se e explicar-se

melhor por meio do seguinte exemplo em relaccedilatildeo agrave indisciplina na aula espaccedilo privilegiado em que se

desenvolve o PEA Estrela (1983) citada por Lopes (2005) identificou um conjunto de variaacuteveis que vatildeo desde o

proacuteprio aluno passando pelo professor pela instituiccedilatildeo escolar ateacute agrave proacutepria sociedade Estes satildeo dados

suficientes para pensar na qualidade educativa como multideterminada

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desenvolvimento humano com base numa educaccedilatildeo e aprendizagem ao longo da vida para

todos os indiviacuteduos que permita assegurar o aumento dos niacuteveis de qualidade de ensino

Considerando a anaacutelise da estrutura do Sistema estabelecido pela Lei 1716 conclui-se que as

principais alteraccedilotildees agrave antiga Lei relacionam-se entre outras com a gratuitidade e

obrigatoriedade do ensino que passa a compreender as classes da Iniciaccedilatildeo do Ensino

Primaacuterio e do Primeiro Ciclo do Ensino Secundaacuterio bem como a nomenclatura das

instituiccedilotildees

Nesta vertente assume-se que o Subsistema de Ensino Geral eacute o fundamento do SEEA (Lei

no 1716 art 24ordm) que visa de acordo com o artigo em referecircncia assegurar uma formaccedilatildeo

integral harmoniosa e soacutelida necessaacuteria para uma boa inserccedilatildeo no mercado de trabalho e na

sociedade bem como para o acesso aos niacuteveis de ensino subsequentes

Como se pode apreciar existe uma relaccedilatildeo de determinaccedilatildeo entre o processo de ensino e

aprendizagem que se realiza no Subsistema do Ensino Geral e o trabalho bem como com a

Sociedade e com os niacuteveis de ensino posteriores o que significa o reconhecimento da

importacircncia deste niacutevel que deve permitir a aquisiccedilatildeo de ferramentas fundamentais para a

compreensatildeo da vida e do mundo Entre os seus objectivos de acordo com Ngaba (2012 p

158) constam os do desenvolvimento ldquodos conhecimentos e as capacidades que favoreccedilam

uma auto-formaccedilatildeo educar para a cidadaniardquo A educaccedilatildeo vista a partir da oacuteptica deste niacutevel

de ensino eacute um factor de integraccedilatildeo social

Por isso o questionamento da qualidade do PEANU eacute no fundo o questionamento da

qualidade do Sistema em si uma vez que estudando Poliacuteticas Educativas em Angola (1975-

2005) o autor antes referenciado e alinhado com Liberato afirma

ldquoEm termos gerais fica a ideia de estarmos perante um processo evolutivo que em periacuteodos

diferentes se foi deparando com os mesmos problemas e optando pelas mesmas soluccedilotildeesrdquo

No entanto de acordo com o mesmo autor ldquoquase quatro deacutecadas depois das primeiras

mudanccedilas ldquosignificativasrdquo no sector da educaccedilatildeo deacutecadas essas caraterizadas por sucessivos

estudos e mudanccedilas o paiacutes (hellip) carece de soluccedilotildees radicais que possam corrigir de uma vez

por todas os factores relacionados com o baixo coeficiente do sistema angolanordquo (Ngaba

2012 p 173)

De acordo com a ideia anterior a questatildeo da qualidade de ensino em Angola natildeo deve ser

vista como uma questatildeo da responsabilidade exclusiva de um ou de outro niacutevel de ensino

mas como uma questatildeo transversal do SEEA considerando entre outros princiacutepios gerais o

da integralidade estatuiacutedo no artigo 7o da Lei 1716 Por isso a anaacutelise desta questatildeo implica

um posicionamento multifactorial

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Com base nessa posiccedilatildeo o Sistema possui potencialidades capazes de proporcionar um PEA

motivador que permita a construccedilatildeo das aprendizagens dos alunos e que transforme o saber

em saber fazer e em saber ser na base de uma visatildeo axioloacutegica pois atendendo agrave

complexidade da acccedilatildeo educativa a UNESCO no Relatoacuterio DELORS (2003 p 11) sustenta

que para concretizar a sua meta a educaccedilatildeo deve organizar-se em quatro tipos fundamentais

de aprendizagens que ao longo da vida do indiviacuteduo seratildeo os pilares do conhecimento

Aprender a conhecer isto eacute adquirir os instrumentos para a compeensatildeo

aprender a fazer de modo a ser capaz de agir criativamente no proacuteprio

ambiente aprender a viver juntos de modo a participar e a colaborar com os

outros em todas as actividades humanas aprender a ser isto eacute um progresso

essencial que deriva dos trecircs precedentes

Para tornar este sonho real eacute necessaacuterio que o processo seja significativo e em si mesmo

motivador formando os professores de acordo com as necessidades da realidade objectiva

Trata-se de prover os recursos necessaacuterios a um processo que desafie os limites da situaccedilatildeo

actual pois se o professor eacute indispensaacutevel natildeo eacute menos verdade que os recursos educativos

tambeacutem o sejam (Lei 1716 art 97ordm)4

Tendo em conta os pressupostos legais da Repuacuteblica de Angola (Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e

Lei 1716) e os pilares da educaccedilatildeo propostos pela UNESCO considera-se que o ideal

educativo estaacute devidamente delineado Contudo eacute necessaacuterio que de acordo com Nanni

(2005 p81) citado por Fernando (2010 p 17) no ldquoacircmbito educativo o fim uacuteltimo ndash o

horizonte para o qual deve tender toda a acccedilatildeo educativa ndash natildeo deve fazer com que os fins

intermeacutedios ndash que o tornam possiacutevel e factiacutevel ndash sejam esquecidosrdquo Daiacute a relaccedilatildeo entre fins

meios e procedimentos educativos

A distinccedilatildeo entre fins uacuteltimos da educaccedilatildeo meios e procedimentos educativos eacute fundamental

porque de acordo com Fernando (2010 p 18)

Impele agrave procura e a determinar os recursos o tempo as modalidades e as estrateacutegias para a

realizaccedilatildeo do objectivo educativo que se pretende e permite de certo modo natildeo esquecer que

se natildeo se fizer a diferenccedila entre ideal e real entre fim uacuteltimo e limite da acccedilatildeo humana entre o

horizonte e o limite concreto das coisas e da existecircncia entre o itineraacuterio projectado e a

complexidade do percurso e da vida das pessoas corre-se o risco de se ser desumano e de cair

4 No artigo 97ordm a Lei 1716 define recursos educativos como os meios que contribuem para o desenvolvimento

do SEEA tais como a) Guias e programas pedagoacutegicos b) Manuais escolares C) Meios teacutecnicos e

tecnoloacutegicos de ensino d) Bibliotecas e) Equipamentos f) Laboratoacuterios g) Oficinas h) Instalaccedilotildees e

material desportivo e cultural i) Campos de ensaios treinamento e experimentaccedilatildeo j) Auditoacuterios e salas

especializadas

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no perfeccionismo ou de se desencorajar cansar e por fim de se sentir insatisfeito com aquilo

que se faz

Em consequecircncia nos nossos dias a questatildeo do discurso pedagoacutegico sobre a ldquofinalidaderdquo da

educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU natildeo eacute faacutecil porque a educaccedilatildeo eacute caracterizada hoje por

certa crise pela necessidade de inovaccedilatildeo e pelo pluralismo de ideias de valor e de cultura do

momento histoacuterico actual (Cfr Fernando 2010 Ngaba 2012 Liberato 2014)

Na continuidade da anaacutelise sobre a finalidade da educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU os

autores concordam com Fernando (2010 p 19) ao distinguir dois tipos de tendecircncias

educativas

1 A tendecircncia redutora que ldquoprocura ver a aprendizagem em funccedilatildeo das necessidades da

economia que com as suas solicitaccedilotildees convida a rever os conteuacutedos do ensino e sua

organizaccedilatildeo Esta eacute a linha ou corrente mais seguida nos nossos diasrdquo

2 A tendecircncia aberta que ldquoprocura integrar no conceito de aprendizagem outros elementos

significativos mais ligados agraves dimensotildees psicoloacutegicas sociais e culturais das experiecircncias do

indiviacuteduo enquanto protagonista da aprendizagemrdquo

Para os autores embora a primeira tendecircncia seja a mais seguida actualmente a segunda

parece melhor corresponder agrave dignidade do homem responsaacutevel porque de acordo com a Lei

1716 (art 15ordm) o SEEA deve promover natildeo soacute o cultivo da intelectualidade mas tambeacutem

dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticos

Assim a primeira reduz a finalidade da escola agrave instruccedilatildeo e a segunda supera esta visatildeo

sustentando que a finalidade primaacuteria da actividade pedagoacutegica escolar eacute a de educar sem

contudo deixar de parte a sua funccedilatildeo instrutiva Neste sentido a finalidade da educaccedilatildeo como

instituiccedilatildeo social deve coincidir com a finalidade da escola enquanto instituiccedilatildeo formal e

socialmente mandatada para educar isto eacute para possibilitar o desenvolvimento permanente da

qualidade da pessoa humana com dignidade e integridade

2 Desafios e Perspectivas da Educaccedilatildeo

Nas paacuteginas anteriores ficou clara a ideia de que os resultados qualitativos do SEEA

fundamentalmente relacionados com o PEANU satildeo e devem ser processo-produto de um

funcionamento integral do Sistema Por isso o maior desafio da educaccedilatildeo em Angola hoje eacute o

de vencer a contradiccedilatildeo existente em que satildeo atribuiacutedas culpas isoladas ou ao aluno que natildeo

estuda ou ao professor que natildeo estaacute preparado e natildeo motiva ou agraves mateacuterias que natildeo satildeo

atractivas e adaptadas agrave realidade profissional e do contexto de vida dos alunos ou aos pais

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que natildeo acompanham suficientemente os filhos ou ainda ao proacuteprio Sistema Educativo de

maneira geral

De acordo com a ideia anterior e tendo em conta a revisatildeo bibliograacutefica realizada5 os autores

consideram que os desafios para a melhoria das falhas devem ser enfrentados de forma

sistecircmica porque cada uma das variaacuteveis antes mencionadas eacute importante para o

funcionamento normal ou natildeo do PEA natildeo apenas no niacutevel referenciado mas em todos os

niacuteveis em atenccedilatildeo aos princiacutepios de integridade do Sistema e da obrigatoriedade e qualidade

dos serviccedilos educativos Isto pressupotildee uma poliacutetica educativa ajustada agrave realidade que

incentive a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores e garanta os meios materiais indispensaacuteveis

ao processo

Trata-se de construir uma verdadeira comunidade educativa em que todos os agentes

educativos como a famiacutelia a escola e a comunidade na sua dimensatildeo mais alargada

participem Por isso eacute necessaacuterio repensar a educaccedilatildeo para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de

um paiacutes novo como afirmara Joseacute Eduardo dos Santos (2008) nos seguintes termos ldquoum

novo paiacutes estaacute a nascer e com ele haacute-de florescer tambeacutem um cidadatildeo novordquo Quando

Considerando a perspectiva temporal como resposta os autores acreditam que isso se

realizaraacute agrave medida que a educaccedilatildeo se assuma antes de tudo como uma condiccedilatildeo de verdadeira

cidadania e natildeo de mera transmissatildeo de receitas importadas do exterior e enxertadas no nosso

contexto quando todos os agentes educativos tiverem presente que o educar eacute na verdade

um verbo ldquoque exige uma acccedilatildeo com atitude transformadorardquo (Pereira e Silva 2008 p 24)

Eacute neste sentido que Joseacute Eduardo dos Santos na sua alocuccedilatildeo agrave Naccedilatildeo referia-se ao papel dos

pais dos professores e de todos os actores sociais como verdadeiros agentes educativos da

juventude Trata-se do desafio de construir uma verdadeira sociedade educativa

Na construccedilatildeo dessa sociedade educativa a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores para o SEEA

e sobretudo para o PEANU deve ser entendida como uma consequecircncia de uma formaccedilatildeo

inicial que seja adequada agraves necessidades reais da sociedade para a qual se educa Isso implica

que os professores devem ser formados com base nos desafios da nova Repuacuteblica (Ngaba

2012)

5 Em Ofiacuteco de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Perrenoud (1995) denuncia uma dupla evidecircncia por um

lado haacute alunos que natildeo aprendem e por outro professores que natildeo formam porque ambos se contentam em

exercer manualmente os oacutecios do ofiacutecio enquanto a cabeccedila estaacute ausente Na mesma linha Grilo (2002) entende

que na ldquoNa sociedade do conhecimento hoje aprende-se e ensina-se em circunstacircncias e contextos muito

diversos embora por vezes se ensine mas natildeo se aprenda como ocorre por exemplo em algumas das escolas

Mas partindo do princiacutepio de que quando se ensina haacute sempre algueacutem que aprende o ensino (hellip) eacute um

mecanismo muito importante e uma peccedila fundamental desta sociedaderdquo (p 121)

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A formaccedilatildeo inicial que serve de base para a formaccedilatildeo contiacutenua de professores de acordo com

a Lei 1716 eacute assegurada pelo Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores que estaacute estruturado

em Ensino Secundaacuterio Pedagoacutegico e Ensino Superior Pedagoacutegico O primeiro constitui o

ldquoprocesso atraveacutes do qual os indiviacuteduos adquirem e desenvolvem conhecimentos haacutebitos

habilidades capacidades e atitudes que os capacite para o exerciacutecio da profissatildeo docente na

Educaccedilatildeo Preacute-escolar no Ensino Primaacuterio e no I Ciclo do Ensino Secundaacuterio Regular de

adultos e na Educaccedilatildeo Especial e mediante criteacuterios o acesso ao Ensino Superior

Pedagoacutegicordquo (Art 46)

Por outro lado e de acordo com a mesma Lei um dos fundamentos do SEEA o ldquoEnsino

Superior Pedagoacutegico eacute um conjunto de processos desenvolvidos em Instituiccedilotildees de Ensino

Superior vocacionados agrave formaccedilatildeo de professores e demais agentes de educaccedilatildeo habilitando-

os para o exerciacutecio da actividade docente e de apoio agrave docecircncia em todos os niacuteveis e

subsistemas de ensinordquo (Art 49)

Em correspondecircncia com os estes dois artigos da Lei 1716 compreende-se a relaccedilatildeo

intriacutenseca entre o Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores e os diferentes niacuteveis de ensino do

SEEA

A educaccedilatildeo em Angola vista na oacuteptica dos seus fundamentos legais constitui-se assim numa

ldquoforma de poder porque a educabilidade eacute um poder-ser humano mediado pela educaccedilatildeo

como poder sobre o ser humano que decide sobre o dever-ser humano Eacute um poder ser

porque o ser humano eacute um ser biologicamente aberto agrave criaccedilatildeo de uma segunda naturezardquo

(Monteiro 2004 p 12)

De acordo com o autor referenciado com antecedecircncia todas as formas de poder do ser

humano sobre o outro suscitam a questatildeo da sua legitimidade Esta questatildeo eacute no fundo a do

fundamento e controlo do poder que o professor exerce atraveacutes dos conteuacutedos e formas da

comunicaccedilatildeo que realiza ante o aluno Assim sendo

A ldquolegitimidade pedagoacutegica eacute de natureza social porque ser profissional da

educaccedilatildeo implica um mandato da sociedade atraveacutes do Estado que regula o

exerciacutecio da funccedilatildeo Eacute tambeacutem de natureza individual na medida em que a

competecircncia pessoal tem um efeito de auto-legitimaccedilatildeo junto dos educandos

Mas tem de ser problematizada com mais radicalidade porque a educaccedilatildeo eacute

afinal uma forma de poder do homem sobre o homemrdquo (Monteiro 2004 p

12)

Daiacute que se a educaccedilatildeo eacute uma forma de poder eacute necessaacuterio que se exerccedila tal poder na justa

medida tendo como princiacutepio e limite a Lei que estabelece entre outros aspectos importantes

natildeo soacute a formaccedilatildeo inicial mas tambeacutem a contiacutenua dos professores para que respondam agraves

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necessidades da sociedade angolana

Portanto a anaacutelise da qualidade da educaccedilatildeo como um fenoacutemeno multideterminado que

possibilita caracterizar o Sistema justifica que a formaccedilatildeo contiacutenua de professores variaacutevel

importante para esta caracterizaccedilatildeo natildeo deve ser vista como um simples adereccedilo mas sim

como parte importante de uma cultura institucionalmente legal onde a articulaccedilatildeo entre as

instituiccedilotildees de Ensino Superior (pedagoacutegicas ou natildeo) e as do ensino geral seja

dialecticamente um facto

CONCLUSAtildeO

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento da realidade

educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento que tem como

fundamento a interpretaccedilatildeo da Lei e a revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura

criacutetico-contextual

A revisatildeo bibliograacutefica assente numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional permite

concluir que existem avanccedilos e retrocessos no processo educativo angolano que em termos

de poliacutetica educativa condicionaram sua evoluccedilatildeo positiva bem como sua afirmaccedilatildeo no

cenaacuterio internacional e ateacute mesmo regional

Esta constataccedilatildeo impotildee desafios a vencer na perspectiva da construccedilatildeo de uma sociedade

educativa em que cada agente participe reconhecendo a necessidade contiacutenua da formaccedilatildeo

dos professores para o PEANU como fundamento do SEEA

Referecircncias Bibliograacuteficas

Delors J etal (2006) EDUCACcedilAtildeO Um tesouro a descobrir Relatoacuterio para a UNESCO da Comissatildeo

Internacional sobre Educaccedilatildeo para o seacuteculo XXI 10ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez Editora

Eliana Alves Leite Pereira e Eloi Lopes da Silva (2008) Educaccedilatildeo Eacutetica e Cidadania A contribuiccedilatildeo da actual

instituiccedilatildeo escolar sc sce

FULLAT O (2000) Filosofia da Educaccedilatildeo Madrid Editorial Sintesis Educacioacuten

FREIRE P (sd) Educaccedilatildeo como Praacutetica da Liberdade 5ordf ediccedilatildeo Lisboa Dinalivro Lda

GOTZENS C (2003) A Disciplina Escolar Prevenccedilatildeo e intervenccedilatildeo nos problemas de comportamento 2ordf

ediccedilatildeo Trad de Faacutetima Murad Satildeo Paulo Artmedd Editora

Grilo M (2002) Desafios da Educaccedilatildeo - Ideiasb para uma poliacutetica educativa no seacuteculo XXI Lisboa Oficina

do Livro

Liberato E (2014) Avanccedilos e retrocessos da educaccedilatildeo em Angola Revista Brasileira de Educaccedilatildeo 1003

Lopes C d (2005) Caracterizar a Acccedilatildeo Educativa para ensinar a partir do Aluno SC Ediccedilotildees Cosmos

Morin E (2002) Os Sete Saberes Para a Educaccedilatildeo do Futuro Trad de Ana Paula de Viveiros Lisboa

Instituto Piaget

Paacutegina 71 de 74

Ngaba A V (2012) Poliacuteticas Educativas em Angola - Entre o global e o local o sistema educatuivo mundial

Mbanza-Kongo SEDIECA

Ngula A (2003) A escolarizaccedilatildeo em Aacutefrica Das grandes ilusotildees agrave pedagogia do projecto Roma Edizioni

Vivere i

Perrenoud P (1995) Ofiacutecio de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Porto Porto Editora

Perrenoud P (2002) A Escola e a aprendizagem da democracia Porto Asa

Silva A J (2016) La superacioacuten psicopedagoacutegica de los docentes de unversidad `Joseacute Eduardo dos Santosacute de

la Repuacuteblica de Angola Tesis doctoral La Habana Universidade de Ciencias Pedagoacutegicas `Enrique Joseacute

Varonaacute

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Paacutegina 73 de 74

1 Os artigos podem ser escritos em portuguecircs inglecircs espanhol e francecircs

2 Tecircm que ser ineacuteditos e natildeo mais de 20 paacuteginas notas de peacute de paacuteginas incluiacutedas

3 As resenhas submetidas natildeo devem superar 6 paacuteginas

4 O envio de artigo deveraacute ser acompanhado por um abstract no idioma original do artigo e

em inglecircs e no miacutenimo com trecircs palavras-chave

5 O formato das letras eacute Times New Roman 12 justificado e com 15 de espaccedilo

6 Os textos devem ser enviados em formato Word Perfect ou em Word para o PC

7 Os artigos enviados devem ser assinados pelos autores que tambeacutem deveratildeo indicar os

seus graus acadeacutemicos e filiaccedilatildeo institucional

8 A redacccedilatildeo da revista reserva o direito de publicar ou natildeo

9 Haveraacute sempre um comiteacute externo para avaliaccedilatildeo dos artigos

10 Os tiacutetulos dos artigos devem estar na liacutengua original e em caso de necessidade em inglecircs

11 As referecircncias bibliograacuteficas e notas de peacute de paacuteginas devem ser numeradas As

referecircncias bibliograacuteficas devem ser completas na primeira cita utilizando a norma

claacutessica para as Ciecircncias Sociais e Humanas e Vancouver ou AMA para as Ciecircncias de

Sauacutede

12 Aceitam-se os projectos de investigaccedilatildeo que natildeo superam 8 paacuteginas

LIVROS ELECTROacuteNICOS

As citas devem comeccedilar com o primeiro e uacuteltimo nome do (s) autor (es) tiacutetulo do livro

electroacutenico (em itaacutelico) editor data de publicaccedilatildeo nuacutemero da paacutegina citada Endereccedilo Web

(Disponiacutevel a data da consulta)

PROCESSO DE AVALIACcedilAtildeO E DE SELECcedilAtildeO DOS ARTIGOS

1 Os artigos devem ser enviados para o e-mail da revista ou do Director nos prazos

indicados

2 A Direcccedilatildeo acusaraacute a recepccedilatildeo do trabalho sem necessariamente manter contacto com o

autor antes da decisatildeo final de publicar ou natildeo

3 Os autores dos artigos satildeo responsaacuteveis pela sua revisatildeo ortograacutefica e gramatical

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Page 3: Página 1 de 74 - Início | ISPSN · 2019. 5. 3. · Página 5 de 74 que traz um começo, que “cria um começo” e que reinventa um começo a partir da dor e da cura. A cidade

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Heacutelder Chipindo (UJESISPCaaacutela) Angola

Hugo Bento de Sousa (Meacutedico) Portugal

Inaacutecio Valentim (ISPSN-CFCUL) Angola

Irene Inakulo Moiseacutes (ISCED-ISPSN) Angola

Ivone Moreira (IEP - UCP) Portugal

Joseacute Pedro Serra (FLUL) Portugal

Joseacute Saragoccedila (Universidade de Eacutevora) Portugal

Joseacute Zeferino (ISPSN) Angola

Lucas Nhamba (UJES) Angola

Manuel Simatildeo (UAN) Angola

Marcelino Chipa (IFTS-ISPSN) Angola

Miguel Morgado (IEP - UCP) Portugal

Olga Maria Pombo Martins (UL - CFCUL) Portugal

Pedro Cassiano (ISPSN) Angola

Renata Karina Reis (USP) Brasil

Simatildeo Esperanccedila (UJES) Angola

Tadeu Weber (PUCRS) Brasil

Tarciacutesio Memoacuteria Eculica (ISPSN) Angola

CONSELHO DE ASSESSORES

Manuel Martins (ISPSNG) Angola

Antoacutenio Miranda (Politoacutelogo) Cabo Verde

Pablo Goacutemez Manzano (UValparaiacuteso-UC3M) Chile

Jorge Manuel Beniacutetez (UNA-UAM) Paraguai

Lola Blasco Mena (UC3M) Espanha

Miguel Aacutengel Corteacutes Rodrigueacutez (Salamanca) Espanha

Nuno Melin (UL CFCUL) Portugal

Pamela Colombo (CSIC) Espanha

Raimundo Tavares (Advogado) ndash Cabo Verde

Vicente Muntildeoz-Reja (UAM) Espanha

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EDITORIAL

AS LEIS DA PERIFERIA E A CIDADE FILOSOacuteFICA

Nos uacuteltimos tempos temos vivido um surto gritante de inseguranccedila na cidade A preocupaccedilatildeo

com a questatildeo da seguranccedila ultrapassou aquela de encontrar um emprego aliaacutes razatildeo mais

do que suficiente porque soacute os vivos podem trabalhar soacute aqueles que estatildeo em boas

condiccedilotildees fiacutesicas podem trabalhar A periferia criou novas leis e eacute na base destas leis que todo

o mundo vive a lei do medo a lei do estar-sem-estar enfim a lei do aprisionamento na

liberdade Parece que a periferia tomou conta da cidade porque provavelmente poucas

vezes ela foi escutada sem o entardecer do verniz O infractor eacute visto como perifeacuterico e como

delinquente e esquecemos que a proacutepria cidade pode ser perifeacuterica a partir do momento que

natildeo responde agraves expectativas da cidade Nenhum cidadatildeo espera do poliacutetico (salvo aquele

que eacute tremendamente ingeacutenuo) a honestidade a integridade ou honradez porque tambeacutem

ele sabe que natildeo tem todas estas qualidades aliaacutes natildeo tem e parece que natildeo lhes

preocupam tanto desde que os seus problemas sejam resolvidos E eacute isso que ele espera do

poliacutetico Espera que este resolva os seus problemas e a inseguranccedila eacute um destes problemas

que ele espera que o poliacutetico resolva A natildeo resoluccedilatildeo do problema tambeacutem conduz agrave cidade

na linguagem perifeacuterica naquilo que natildeo eacute o centro natildeo estaacute no centro e natildeo faz o centro

natildeo eacute tatildeo importante quanto o centro Nunca nos perguntamos se os verdadeiros

delinquentes satildeo aquelas pessoas que violam as leis da cidade de modo expliacutecito porque

invadem as nossas casas porque apropriam-se dos nossos bens dentro e fora de casa

Provavelmente natildeo sejam os verdadeiros delinquentes Porque os piores delinquentes podem

ser aqueles que natildeo tecircm a consciecircncia traacutegica natildeo tecircm consciecircncia infeliz como diz Spinoza

Dormem mas dormem porque natildeo pensam nos outros porque natildeo se revecircem nos outros e

porque criaram uma legitimidade proacutepria para a sua forma de violecircncia e nisto se parecem

com os proponentes da violecircncia perifeacuterica De modo que soacute o genealogista pode salvar a

cidade das suas duas violecircncias a violecircncia daqueles que estatildeo estampados como violentos e

a violecircncia daqueles que dormem apesar de serem tremendamente violentos O genealogista

eacute o filoacutesofo diz o Nietzsche de Foucault e de Deleuze mas natildeo aquele filoacutesofo que aceita que

todo o mundo olhe para ele como aquele que reflecte nas coisas ou que medita nas coisas

como se as outras aacutereas do saber natildeo reflectissem natildeo meditassem O genealogista eacute aquele

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que traz um comeccedilo que ldquocria um comeccedilordquo e que reinventa um comeccedilo a partir da dor e da

cura A cidade deve ser filosoacutefica natildeo para fazer aquilo que jaacute foi feito aquilo que jaacute foi criado

O genealogista natildeo pode aceitar os conceitos que servem apenas para ordquo limpar e fazer

brilharrdquo numa falsa luminosidade O genealogista deve dar a cidade o entendimento do

entristecimento O genealogista enquanto educador natildeo traz apenas a reflexatildeo e a

contemplaccedilatildeo traz sobretudo para a cidade o entristecimento porque vem para dizer aos

outros aquilo que eles natildeo querem ouvir vem para dizer aquilo que mais ningueacutem diria Eacute por

isso que a resposta filosoacutefica deve ser dura contrariamente agraves outras aacutereas do saber porque eacute

uma resposta que consiste no entristecimento A filosofia como educaccedilatildeo encara um

entristecimento mas um entristecimento alegre porque conduz agrave libertaccedilatildeo Ela oferece-nos

a possibilidade de perguntarmo-nos o que somos o que fazemos e se a nossa resposta for

honesta connosco mesmo poderemos fazer um bom trabalho para a cidade O genealogista eacute

um incomodador soacute pode incomodar e soacute deve incomodar para a libertaccedilatildeo tem que

proporcionar aos outros um comportamento de Lisias de Fedro Ter vergonha do que se

pensa saber

Por uacuteltimo dizer que esta 13ordf ediccedilatildeo conteacutem alguns artigos publicados na revista OPINIAtildeO

FILOSOacuteFICA da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUCRS) traz as mais

variadas reflexotildees no acircmbito acadeacutemico-cientiacutefico

A este respeito o Professor Flaviano Kambalu reflecte sobre o conceito de pessoa a sua

complexidade e a sua relaccedilatildeo com a unidade africana Tenta encontrar os princiacutepios e os

fundamentos metafiacutesicos que podem sustentar a possibilidade da uniatildeo

O Dr Nlando Faustino reactualiza ao histoacuterico pensador das independecircncias (agrave sua maneira)

Frantz Fanon Atraveacutes da obra ldquoOs condenados da terrardquo de Fanon faz uma leitura

desconstrutivista da colonizaccedilatildeo vista como uma oportunidade para a civilizaccedilatildeo Recusa com

Fanon a ideia de que a ldquocolonizaccedilatildeo igual a civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo e

defende precisamente a ideia da despersonalizaccedilatildeo imanente do processo colonializador

Por sua vez Inaacutecio Valentim lanccedila a interrogaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo e o processo educativo

liberal em Aacutefrica Discute a ideia da possibilidade de educar e com quem ser educado

Os Doutores Abel da Silva e Irene Moiseacutes Inaacuteculo pensam a educaccedilatildeo desde a perspectiva natildeo

universitaacuteria a partir do cunho da lei Procuram compreender e destacar a negatividade de

uma intervenccedilatildeo excessiva dos elementos natildeo autorizados no processo educativo

Inaacutecio Valentim

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IacuteNDICE

EDITORIAL 4

ARTIGOS 7

FILOSOFIA

O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA 8

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU

HISTOacuteRIA

A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA A PARTIR DE FRANTZ FANON 20

NLANDU MATONDO FAUSTINO

PEDAGOGIA

laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO LIBERAL EM AacuteFRICA 44

INAacuteCIO VALENTIM

EDUCACcedilAtildeO

CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS 62

ABEL JOSEacute DA SILVA

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS

NORMAS DE PUBLICACcedilAtildeO 72

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FILOSOFIA O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU a

Resumo

A vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante A Aacutefrica eacute um complexo e heterogeacuteneo mosaico

de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees cujo fundamento metafiacutesico de origem

representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica O fundamento metafiacutesico de origem

eacute importante porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do

que o que os separa Nisto o diaacutelogo eacute necessaacuterio para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente

se vatildeo intensificando na actualidade O diaacutelogo conducente agrave unidade natildeo obriga mas se

move no respeito da liberdade da pessoa e da soberania de cada Estado Enfim trata-se de um

diaacutelogo sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Palavras-chave Pessoa humana Aacutefrica Fundamento Metafiacutesico Fundamento Metafiacutesico e

Diaacutelogo

Abstract

The vocation to unity is a natural feature of the human because it is essentially free relational

and dialoguing Africa is a complex and heterogeneous mosaic of peoples languages races

cultures ethnic groups and religions whose metaphysical foundation of origin represents an

indivisible unity in historical reality The metaphysical basis of origin is important because in

all fields everything that unites human beings is stronger than what divides them In this

dialogue is necessary to overcome the historical prejudices and disagreements the divisions

intolerances and fundamentalisms that unfortunately are intensifying at the present time The

a Doutor em Filosofia Religioso Saletino e Decano da Faculdade de Direito da Universidade Katiavala Bwila

Benguela ndash Angola

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dialog leading to the unit doesnrsquot oblige but moves in respect of freedom of the person and

of the sovereignty of each State At last it is a sincere dialog and fruitful that acknowledging

all the legitimate diversity promotes respect harmony and collaboration

Keywords The Human Person Africa Metaphysical foundation Metaphysical foundation

and Dialogue

Premissa

No actual contexto de crescente e incisiva globalizaccedilatildeo eacute difiacutecil subtrair-se ao dever ou agrave

necessidade de prestar conta de si mesmos Neste clima cultural tambeacutem a unidade africana eacute

chamada a justificar-se ou seja a justificar o seu direito de continuar a ser Agrave primeira vista

poderia parecer que a sua justificaccedilatildeo natildeo seja hoje um problema visto que eacute cada vez mais

difuso o uso do termo unidade e da expressatildeo uniatildeo africana Mas urge reflectir nesta unidade

agrave luz da filosofia para lhe compreender o seu verdadeiro significado

Aprendemos com Nicola Abbagnano que laquonada do que eacute humano eacute estranho agrave filosofia [hellip]

aliaacutes esta eacute o mesmo homem que se interroga a si mesmo e procura as razotildees e o fundamento

do seu serraquo1 Esta eacute a filosofia na sua adesatildeo agrave existecircncia humana e ao mesmo tempo na sua

amplitude em relaccedilatildeo aos problemas do homem Natildeo de um homem que vive no Uacuterano mas

do homem concreto que na sua vida experimenta acircnsias e insuficiecircncias alegrias e

esperanccedilas tristezas e anguacutestias2 Portanto todas as coisas satildeo susceptiacuteveis de reflexatildeo

filosoacutefica inclusive a proacutepria unidade africana exige filosofar

De facto filosofar eacute examinar a realidade e isso de um modo ou de outro todos fazemos

constantemente Ao se tentar resolver os problemas globais sociais ou pessoais eacute impossiacutevel

se abster da racionalidade Entretanto haacute uma gama de situaccedilotildees onde a razatildeo natildeo pode

avanccedilar por falta ou excesso de dados o que impossibilita decisotildees objectivas Entra em cena

entatildeo a parte subjectiva humana mais especificamente a Intuiccedilatildeo como meio de direccionar

nosso foco de entendimento e apontar caminhos a serem trilhados pela racionalidade

Soacute que actualmente a filosofia passa por uma perda de identidade Existe uma verdadeira

inflaccedilatildeo do termo filosofia e como toda a inflaccedilatildeo eacute sintoma de queda de valores de crise

difusa e profunda Hoje o termo filosofia indica muitas vezes coisas difiacuteceis proacuteprias do

hiperuracircnio e natildeo o homem que natildeo aceitando passivamente as informaccedilotildees fornecidas pela

experiecircncia imediata desenvolve uma postura de questionamento proacuteprio sobre a realidade

interroga-se a si mesmo e metodoloacutegica e ordenadamente procura as razotildees e o fundamento

1 N ABBAGNANO Storia della filosofia I UTET Torino 1963 p XVII

2 Cf CONCIacuteLIO VATICANO II Gaudium et Spes n 1

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do seu ser buscando como faziam os gregos um instrumento fundamental e o uacutenico

racionalmente possiacutevel para a soluccedilatildeo dos problemas da vida

A confusatildeo com relaccedilatildeo agrave filosofia e a desinformaccedilatildeo geral que permeia mesmo o meio

acadeacutemico chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimeacutericas no sentido de se

eliminar a Filosofia Entretanto ciecircncia alguma pode se ocupar da macro realidade O

empirismo natildeo pode ser aplicado agrave civilizaccedilatildeo humana agrave mente ao total Quem estabelece a

comunicaccedilatildeo entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia Cremos ser

este o quadro em que se deve inserir a reflexatildeo sobre a unidade africana que aqui fazemos

partindo da metafiacutesica do termo pessoa

Tal reflexatildeo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vatildeo

desafiando a unidade do continente africano Haacute uma verdade hoje admitida por quase todos

e ateacute pelos mais preconceituosos arqueoacutelogos de que a humanidade e a civilizaccedilatildeo

desenvolveram-se na noite dos tempos no berccedilo deste continente gigantesco chamado Aacutefrica3

Temos consciecircncia de que a Aacutefrica eacute um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas Embora esta imensidatildeo nos aconselhe a natildeo fazer

generalizaccedilotildees na avaliaccedilatildeo dos problemas natildeo nos impede de buscar e propor soluccedilotildees aos

problemas inerentes agrave falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito

de pessoa

1 Breve excursus histoacuterico-filosoacutefico do conceito de pessoa

11 A densidade semacircntico-etimoloacutegica do termo pessoa

A densidade semacircntica do termo pessoa formou-se no tempo graccedilas ao contributo cultural de

muitos filotildees de reflexatildeo O conceito de pessoa tem pois um percurso rico quanto complexo

De recordar que na antiguidade greco-romana natildeo se encontra bem claro o conceito de pessoa

Todavia seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias

Etimologicamente e segundo algumas pesquisas atentas os primeiros indiacutecios do termo

pessoa encontram-se no acircmbito da cultura etrusca De facto o termo phersu utilizado nos

ritos em honra de Phersepona e que significaria maacutescara4 passou a significar o indiviacuteduo

3 Cf Carlos SERRANO ndash Mauriacutecio WALDMAN Memoacuteria drsquoAacutefrica A temaacutetica africana em sala de aula

Cortez Editora Satildeo Paulo 20082 p 75 Cf Tambeacutem Luigi TRANFO Africa La transizione Tra sfruttamento e

indifferenza EMI Bologna 1995 p 269 Pedro F MIGUEL Aacutefrica Uma visatildeo global Viverein Roma 2013

p 11 4 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique in

laquoRevue des sciences religieusesraquo XXII (1948) 277-299 A MILANO Persona in teologia Dehoniane Napoli

1984 pp 16-71

Paacutegina 11 de 74

mascarado a personagem que o actor representa no drama ou seja o indiviacuteduo humano

moral e social5

Nesta senda do indiviacuteduo mascarado Edith Stein observa que visto que nas comeacutedias e nas

trageacutedias se representavam personagens famosos o nome pessoa foi imposto para significar

sujeitos que tinham um papel na sociedade por isso alguns definem a pessoa como laquouma

hipoacutestase marcada por uma qualificada conexatildeo com a sua dignidaderaquo 6

Natildeo encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Boeacutecio que liga pessoa ao

verbo personare aludindo agrave amplificaccedilatildeo da voz de quem fala por detraacutes da maacutescara Assim

pessoa eacute segundo Boeacutecio laquodecta est volvatur sonusraquo 7 Tambeacutem natildeo eacute correcto afirmar que

pessoa seja a contracccedilatildeo de per se una como quereria a proposta de Alano di Lilla8

12 O percurso evolutivo do conceito de pessoa

Com Ciacutecero e Seacuteneca a evoluccedilatildeo do conceito de pessoa deu passos importantes sem

contudo chegar agrave definiccedilatildeo hodierna

Do segundo seacuteculo em diante o conceito de pessoa entra no uso corrente na onda do esforccedilo

de clarificaccedilatildeo exigida pelas controveacutersias teoloacutegicas sobre o dogma trinitaacuterio Poreacutem foi

com Boeacutecio que o conceito de pessoa adquire o actual conteuacutedo teoacuterico E isto no contexto da

clarificaccedilatildeo conceitual sobre as questotildees teoreacuteticas que emergiam da doutrina sobre a

Trindade

Segundo Boeacutecio laquopersona est rationalis naturae individua substantiaraquo (pessoa eacute substacircncia

individual de natureza racional) 9 Boeacutecio elabora esta definiccedilatildeo servindo-se do patrimoacutenio

filosoacutefico grego e latino De facto ele sistematiza os conceitos latinos de persona natura e

substantia estabelecendo uma equivalecircncia com os vocaacutebulos gregos πρόσωπον ούσία

ύπόστασις que na oscilaccedilatildeo terminoloacutegica do tempo eram usados de maneira equiacutevoca e

confusa

Com Boeacutecio a natura toma definitivamente o lugar de ούσία entendida como essecircncia e

substantia passa a traduzir o grego ύπόστασις10

Satildeo poucos os filoacutesofos que no medievo natildeo

5 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique op

cit pp 298-299 6 Edith STEIN Essere finito e essere eterno Per una elevavazione al senso dellrsquoessere Cittagrave Nuova Roma

1988 p 380 7 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1344

8 Cf Enrico BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico in AAVV Persona e

personalismo Aspetti filosofici e teologici Fondazione Lanza Padova 1992 p 43 9 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1343

10 Cf Claudio MICAELLI ldquoNaturardquo e ldquoPersonardquo nel ldquoContra Eutychen et Nestoriumrdquo di Boezio Osservazioni

su alcuni problemi filosofici e linguistici in Luca OBERTELLO (a cura di) Atti del Congresso Internazionale di

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tinham encontrado a definiccedilatildeo de Boeacutecio satisfatoacuteria porque essa interpretava a realidade que

se tentava definir precisando-lhe o significado

Esta definiccedilatildeo pessoa eacute substacircncia individual de natureza racional que durante o medievo

faz cultura e caracteriza a tradiccedilatildeo teoloacutegica latina surge sob o impulso das disputas contra os

nestorianos os quais sustentavam que em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em

uniatildeo permanente e moral e contra os monofisistas que sustentavam a existecircncia em Cristo de

uma soacute natureza a divina11

Na definiccedilatildeo de Boeacutecio o termo pessoa tem um sentido mais especiacutefico e refere-se agrave estrutura

fundamental e metafiacutesica do indiviacuteduo ou seja agrave substacircncia individual dotada de uma

natureza racional Quer dizer nem todos os seres naturais satildeo pessoas mas apenas aqueles

substanciais

Por isso a pessoa eacute substacircncia individual Eacute individual porque tem caracteriacutesticas que a

distinguem dos outros indiviacuteduos da mesma espeacutecie caracteriacutesticas que natildeo satildeo definiacuteveis

nem comunicaacuteveis aos outros Eacute substacircncia porque eacute existente em si por si e em nenhum

outro Dizer substacircncia individual significa portanto dizer que a pessoa natildeo tem necessidade

para existir de aderir a um outro ser e conteacutem no seu quid alguma coisa de

incomunicabilidade que divide com nenhum outro12

A pessoa eacute igualmente de natureza racional O seu conhecer natildeo eacute impresso na mateacuteria nem eacute

limitado por essa Dizer natureza racional significa por isso que a pessoa natildeo soacute exerce as

actividades conexas agrave natureza mas tem a capacidade de desenvolvecirc-las capacidade possuiacuteda

por natureza ou seja com o nascimento13

A pessoa eacute pois o gau mais elevado de ser

substancial porque essa eacute consciente do seu ser substacircncia individual

Toda a pessoa eacute portanto antes de mais um indiviacuteduo Mas ao mesmo tempo muito mais que

indiviacuteduo porque natildeo eacute uma personagem mas uma substacircncia individual que possui em si

uma certa dignidade em razatildeo da sua racionalidade Por isso natildeo basta afirmar que a pessoa eacute

Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott 1980) Herder Roma 1981 p 336 11

Fruto destas disputas eacute a obra de Boeacutecio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium

cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestoacuterio De recordar poreacutem que desde

os primeiros seacuteculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importacircncia ndashcom Tertuliano os Padres

Capadoacutecios S Agostinho e S Joatildeo Damasceno ndash nos interrogativos teoreacuteticos que emergiam da Revelaccedilatildeo e nas

controveacutersias teoloacutegicas acerca do dogma trinitaacuterio Tais controveacutersias se concluiacuteram com a foacutermula das trecircs

pessoas ou hipoacutestases na uacutenica substacircncia ούσία ou natureza divina Os Padres da Igreja separando de maneira

definitiva o conceito de πρόσωπον da referencia agrave personagem

traacutegica ou coacutemica deram focirclego a um aprofundamento do

conceito de pessoa tambeacutem na reflexatildeo filosoacutefica (cf Gregorio DI NISSA La grande catechesi CIttagrave Nuova

Roma 1982 p 51 Gregorio NAZIANZENO I cinque discorsi teologici CIttagrave Nuova Roma 1986 p 175)

12 Cf San Tommaso DrsquoAQUINO Questiones disputatae De potentia q 9 a 2 ID Summa Theologiae I q

29 a 13

Cf E BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico op cit p 48

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algo de individual e nem mesmo que eacute uma substacircncia ou uma natureza para defini-la do

ponto de vista metafiacutesico

Visto que a individualidade eacute acidente isto eacute pertence agravequilo que existe como perfeiccedilatildeo e eacute

caracteriacutestica de um sujeito e enquanto a substacircncia e a natureza indicam o que eacute proacuteprio da

espeacutecie ocorre a substacircncia individual de uma natureza racional para que exista pessoa

Ocorre portanto que se refira a uma substacircncia individualizada de um ser racional para que

exista pessoa do ponto de vista metafiacutesico Somente um ser racional pode corresponder agrave

dignidade de pessoa porque pessoa eacute enfim um ser em si que natildeo pode ser substituiacutedo por

um outro e que eacute capaz de operaccedilotildees proacuteprias e racionais

Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da foacutermula de Boeacutecio Satildeo

Tomaacutes elabora a sua definiccedilatildeo de pessoa como laquosubsistens in rationali naturaraquo 14

Com a foacutermula subsistens in rationali natura Satildeo Tomaacutes evidencia natildeo soacute o aspecto comum ndash

pressuposto universalmente aceite da pessoa ndash assim como expresso pela substacircncia

individual da definiccedilatildeo de Boeacutecio mas evidencia sobretudo aquele individual isto eacute o

existente considerado na acepccedilatildeo mais proacutepria ou seja o seu ser uacutenico e irrepetiacutevel De facto

na definiccedilatildeo de Boeacutecio a substacircncia individual parece ser concebida como individualidade A

individualidade poreacutem eacute determinaccedilatildeo da coisa e natildeo ainda do quem eacute uma conotaccedilatildeo

natural da pessoa e natildeo da mesma pessoa

Satildeo Tomaacutes condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o

que de mais nobre e perfeito haacute no universo e por isso afirma laquopersona significat id quod est

perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturaraquo 15

Pessoa eacute a natureza racional que existe num indiviacuteduo concreto Por isso somente aquilo que

eacute subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa E eacute o subsistir de maneira

individual na natureza racional que confere a dignidade agrave pessoa ou seja laquoquia magnae

dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur

personaraquo 16

De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana natildeo eacute a abstracta razatildeo ndash como parece

indicar a natureza racional da definiccedilatildeo de Boeacutecio ndash mas a racionalidade possuiacuteda por um

subsistente ou seja de um ser concreto E este em virtude de um actus essendi proacuteprio que

confere actualidade agrave substacircncia e agraves suas determinaccedilotildees Tudo isto que a pessoa sabe quer e

faz brota do proacuteprio acto em virtude do qual eacute aquilo que eacute

14

Cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 29 a 3 c 15

Ibidem 16

Ibidem

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Da elaboraccedilatildeo de Satildeo Tomaacutes compreende-se essencialmente o caraacutecter racional da pessoa

racional enquanto capaz de ser consciente do proacuteprio ser17

A pessoa eacute todo o indiviacuteduo de

natureza racional livre atravessado por tradiccedilotildees e culturas responsaacutevel relacional

inteligente volitivo dialogante e por isso fundamento de unidade entre indiviacuteduos e povos

2 Do conceito da pessoa agrave construccedilatildeo da unidade africana

Antes da conquista das independecircncias os colonos procuravam inflamar as diferenccedilas

fechando as coloacutenias em si mesmas num clima de reserva ciumenta de distacircncia e quase de

desconfianccedila Com as independecircncias os encontros entre paiacuteses antigamente colonizados se

multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaboraccedilatildeo E com a criaccedilatildeo da

Organizaccedilatildeo da Unidade Africana (OUA) que veio desempenhar o papel extremamente

precioso de lugar de encontros de oacutergatildeo de diaacutelogo e de troca de experiecircncias entre Chefes de

Estado e de Governo africanos o esforccedilo para a unidade se exprimiu de modo mais visiacutevel

Contudo a vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante E enquanto essencialmente relacionais e

dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e

que os distinguem das outras espeacutecies de seres Todos os homens tecircm as mesmas tendecircncias e

exigecircncias fundamentais quanto ao aneacutelito da unidade Todo o homem eacute chamado agrave comunhatildeo

e estaacute aberto agrave comunicaccedilatildeo e ao diaacutelogo

O homem eacute capaz pois de intercacircmbio de dar-se aos outros e deles receber porque a sua

natureza o abre agrave comunhatildeo agrave comunicaccedilatildeo e agrave unidade A sua natureza relacional e

dialogante natildeo eacute apenas uma necessidade mas eacute sobretudo um dom que o ambiente que o

impede de continuar fechado e isolado no egoiacutesmo e aberto aos conflitos De facto o homem

eacute aquilo que eacute pela sua inconfundiacutevel individualidade mas tambeacutem pelo seu ser aberto ao

outro e agraves realidades extriacutensecas por causa da sua sociabilidade A sociabilidade eacute pois uma

expressatildeo da sua humanidade e a unidade uma sua actuaccedilatildeo

Por isso a unidade africana pressupotildee a uniatildeo consciente entre africanos e o comum e

orgacircnico esforccedilo para conseguir o bem humano integral A unidade africana na base da

descoberta da comum humanidade articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para

com todos e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros

17

Muitas vezes o termo racional eacute confuso com o termo intelectual Na verdade intelecto e razatildeo diferem O

intelectual eacute um conhecimento simples e imediato enquanto o racional passa de um conhecimento simples para

um mais complexo (cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 59 a 1)

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povos do continente para alcanccedilar o bem comum18

Enfim a unidade encontra a sua raiz na essecircncia metafiacutesica da pessoa humana e exprime por

conseguinte a estrutura ontoloacutegica dos africanos e diz respeito agrave proacutepria possibilidade da sua

realizaccedilatildeo Por isso as divisotildees e os conflitos lupescos natildeo fazem parte da normalidade

africana

Portanto apesar de Aacutefrica ser um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas o continente africano explica-se como unidade na

diversidade E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos eacute garantida

metafisicamente pela origem pelo facto mesmo de sermos africanos ndash do Cabo ao Cairo de

Dar es-Salaam a Dakar ndash mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas

O fundamento metafiacutesico de origem representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica

uma forccedila inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as

diversidades presentes nos Estados africanos a incomunicabilidade geograacutefica a hipocrisia

as tensotildees e os desejos separatistas e conduzir a um compromisso claro entre os africanos

respeitando as suas diversidades e os seus interesses reciacuteprocos empenhando num projecto

comum para uma Aacutefrica mais humana e mais social em que reinem sempre o respeito muacutetuo

o reconhecimento e a protecccedilatildeo dos direitos humanos fundamentais e se faccedila valer o lado

melhor dos africanos os valores basilares da paz da justiccedila da liberdade da toleracircncia da

participaccedilatildeo e da solidariedade Este fundamento metafiacutesico de origem eacute importante

porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do que o que os

separa

Contudo a unidade africana deve ser construiacuteda e aprofundada de forma dinacircmica e

incessante porque os pressupostos da uniatildeo representados pelos factores geograacuteficos pela

multiplicidade das tradiccedilotildees regionais nacionais culturais e religiosas pelos interesses

econoacutemicos trocas econoacutemicas paciacuteficas e seguras pela heranccedila e tradiccedilotildees socioculturais

africanas mais autecircnticas em si natildeo bastam para criar a uniatildeo poliacutetica Eacute necessaacuterio voltarmos

agrave metafiacutesica da unidade e reelaborar juntos a histoacuteria da Aacutefrica que aleacutem das muito boas

experiecircncias de unidade eacute ainda caracterizada nalguns casos por desentendimentos lutas

fratricidas entre etnias e ateacute por conflitos beacutelicos

Com razatildeo Kwame Nkrumah apelava na sua obra A Aacutefrica deve unir-se agrave unidade natildeo

tanto para indicar a necessidade ou condiccedilatildeo de estar unidos mas sobretudo o acto de se unir

18

Cf L F KAMBALU A democracia personalista Os fundamentos onto-antropoloacutegicos da poliacutetica agrave luz de

Pietro Pavan Paulinas Lisboa 2012 pp 51-64

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porque os pressupostos geograacuteficos e econoacutemicos por si soacute natildeo bastam para criar a uniatildeo

Ocorrem instituiccedilotildees vinculativas bem como vontade e consciecircncia de pertenccedila a um mesmo

continente chamado Aacutefrica A consciecircncia deve preceder agrave formaccedilatildeo poliacutetica da unidade

africana que natildeo se poderaacute alcanccedilar de forma duradoira sem valores comuns Outrossim

ocorre recordar que a unidade eacute em si um bem somente quando eacute ordenada quando responde

agrave razatildeo objectiva da verdade da justiccedila e do bem O mesmo eacute dizer que a unidade eacute um bem

que vale tanto quanto respeita o que haacute de valor nas partes que a compotildeem

A unidade perde valor quando se realiza de modo maciccedilo esmagador absoluto destruidor e

totalitaacuterio abolindo o espaccedilo que permite o diaacutelogo destruindo desta forma a esfera em que os

homens agem tomam decisotildees comuns e operam colaborando Por isso sem liberdade nem

diaacutelogo a unidade africana seria impossiacutevel porque a Aacutefrica natildeo seria mais o espaccedilo onde cada

indiviacuteduo aos outros as proacuteprias capacidades em vista do bem comum segundo princiacutepios de

igualdade substancial Neste sentido a Aacutefrica seria um conjunto de indiviacuteduos e por

conseguinte um conjunto de Estados sem laccedilos entre si Cada um veria o outro natildeo como um

semelhante com quem eacute chamado a relacionar-se e tomar iniciativas mas um inimigo de

quem se defender

Enfim para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma

poliacutetica que envolva todas as pessoas e forccedilas a todos os niacuteveis na busca do bem comum ou

seja na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem agraves exigecircncias

intriacutensecas e imutaacuteveis da natureza humana Trata-se pois de condiccedilotildees econoacutemicas

juriacutedicas morais e religiosas que tornam possiacutevel e favorecem o conseguimento pleno e faacutecil

do desenvolvimento integral das pessoas

As exigecircncias histoacutericas e os significados de unidade satildeo sempre mutaacuteveis Mudam conforme

se entenda o que leva os homens a unirem-se a niacutevel ontoloacutegico e histoacuterico ou seja

consoante a efectiva existecircncia daquele princiacutepio originaacuterio em cada homem e povo ou

consoante o plano social poliacutetico religioso e cultural em que se actua a unidade De facto

natildeo poucas vezes os proacuteprios acontecimentos histoacutericos e as proacuteprias diferenccedilas exigem que

se redefinam os instrumentos poliacuteticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova

filosofia de relaccedilotildees entre povos e Estados que vatildeo aleacutem do que no passado natildeo foi possiacutevel

Tais diferenccedilas podem provir de uma profunda oposiccedilatildeo e de uma divergecircncia quanto ao fim

As diferenccedilas podem provir tambeacutem de uma dupla visatildeo de um mesmo objectivo Seja qual

for a origem das diferenccedilas a atitude sadia eacute compreender as realidades e promover o diaacutelogo

e ver como as proacuteprias diferenccedilas permitem situar melhor o objecto

Por isso eacute mister que nos diversos acircmbitos questotildees e temas sobre os quais incumbe o risco

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da divisatildeo os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma soacute voz cultivando e

empenhando-se intensa livre e conscientemente ao diaacutelogo

O diaacutelogo eacute fundamental para a vida poliacutetica sobretudo quando exerce a funccedilatildeo da busca da

verdade e do bem No caso da Aacutefrica o diaacutelogo torna-se uma exigecircncia insubstituiacutevel para

superar as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente se vatildeo intensificando

na actualidade O diaacutelogo eacute igualmente fundamental para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos culturais raciais sociais e religiosos e promover e concretizar a

unidade a justiccedila e a paz natildeo soacute por causa do pluralismo eacutetnico cultural racial social e

religioso do continente mas sobretudo por causa do seu pluralismo poliacutetico pois atraveacutes do

diaacutelogo cada indiviacuteduo ou povo enriquece o proacuteprio ponto de vista e converge para as noccedilotildees

de verdade e de bem humano e se empenha a potenciaacute-las corresponsavelmente para a

unidade

O diaacutelogo eacute tambeacutem essencial para a unidade poliacutetica social e econoacutemica e o

desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos pois tal como os povos tambeacutem

os Estados tecircm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si proacuteprios e no encontro

com os outros se realizarem plenamente Por isso o isolamento seria um impedimento

insuperaacutevel para a unidade e a realizaccedilatildeo do proacuteprio continente africano

Tal diaacutelogo deve basear-se em valores princiacutepios e normas aceites e deve ser assegurado por

um sistema constitucional e de direito pela promoccedilatildeo da justiccedila da paz e da liberdade para o

continente africano pela experiecircncia da verdade e pela busca constante de compreensatildeo dos

fundamentos que tecircm plasmado a Uniatildeo Africana

O diaacutelogo natildeo se processa sem dificuldades e eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes da discussatildeo e

argumentaccedilatildeo eacute reconheciacutevel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a

dignidade pessoa humana e eacute possiacutevel a diversos niacuteveis no plano da experiecircncia quotidiana

para as questotildees sociais comunitaacuterias familiares eacuteticas e ecoloacutegicas no plano do encontro

das culturas para o respeito e o melhor conhecimento reciacuteproco no plano desportivo para o

cultivo do sentimento de pertenccedila a um todo continental no plano poliacutetico para questotildees que

dizem respeito agrave seguranccedila econoacutemica cultural e juriacutedica no plano militar para questotildees que

dizem respeito agrave garantia da seguranccedila e integridade territorial bem como agrave erradicaccedilatildeo de

conflitos em Aacutefrica

Trata-se de um diaacutelogo gradual e sempre pronto a recomeccedilar Um diaacutelogo que natildeo obriga mas

se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado trata-se de um

diaacutelogo que natildeo eacute apenas instrumental nem nasce de taacutecticas ou de interesses mas um diaacutelogo

sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

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concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Enfim trata-se de uma actividade que apresenta motivaccedilotildees exigecircncias e dignidade proacutepria e

implica um muacutetuo esforccedilo de compreensatildeo por parte dos interlocutores que se compreendem

verdadeiramente quando descobrem aleacutem dos laccedilos que os unem e os integram uns aos outros

e dos valores a eles comuns as razotildees ideais em que cada um deles se inspira para realizaacute-los

Outrossim tal diaacutelogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente beneacuteficos como o

aumento da maturidade dos africanos ndash numa penetraccedilatildeo mais autecircntica da complexa

realidade do mundo hodierno em que a Aacutefrica se move ndash a resoluccedilatildeo dos problemas a

superaccedilatildeo dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de

todas as naccedilotildees bem como pela seguranccedila e bem-estar do continente africano

Tudo isso levanta muitos e difiacuteceis problemas de ordem econoacutemica social e poliacutetica Poreacutem

estaacute de facto que diante das diferenccedilas e dos antagonismos que o continente africano vive

actualmente soacute a consciecircncia da comum humanidade e o diaacutelogo franco luacutecido e proveitoso

pode permitir construir um caminho de toleracircncia e aceitaccedilatildeo muacutetuas para a realizaccedilatildeo de uma

convivecircncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da

pessoa humana da mobilidade interna da integraccedilatildeo soacutecio-econoacutemica do continente e do

florescimento de um mercado interno Isto faraacute tambeacutem com que os africanos natildeo sejam

meros fornecedores de mateacuterias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos

estrangeiros mas produtores e consumidores de produtos do seu proacuteprio continente

Um diaacutelogo natildeo inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade mas um diaacutelogo

franco na base da consciecircncia de pessoas humanas e do respeito reciacuteproco De facto sem

diaacutelogo franco natildeo haacute progresso porquanto o progresso eacute liberdade e somente a verdade que

pode exprimir-se nos torna livres

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TRANFO Luigi Africa La transizione Tra sfruttamento e indifferenza EMI Bologna 1995

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HISTOacuteRIA A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO

SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA

A PARTIR DE FRANTZ FANON

NLANDU MATONDO FAUSTINO a

Resumo

O presente trabalho procurou desconstruir a partir das teses de Frantz Fanon sobretudo

aquelas formuladas nos ldquoCondenados da Terrardquo a ideia de uma suposta missatildeo civilizadora

subjacente na intenccedilatildeo colonizadora consubstanciada na equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual a

civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo Partindo de uma indagaccedilatildeo da validade criticaacutevel

da equaccedilatildeo em epiacutegrafe cruzou os factos agraves doutrinas que versam sobre o fenoacutemeno da

colonizaccedilatildeo de Aacutefrica e chegou a depreender com uma certa objectividade de que a

colonizaccedilatildeo em Aacutefrica tal ficou visto por Fanon foi mais um movimento de

despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeo dos africanos em geral e dos negros em particular do que

um projecto de humanizaccedilatildeo e de emancipaccedilatildeo dos indiacutegenas de Aacutefrica negra Ficou portanto

evidente ao longo deste trabalho de que a colonizaccedilatildeo foi uma violecircncia que extraiu a sua

originalidade na substantivaccedilatildeo do colonizado Uma violecircncia que natildeo soacute presidiu ao arranjo

do mundo colonial como tambeacutem ritmou e alimentou a destruiccedilatildeo antropoloacutegica e ontoloacutegica

do negro-africano incluindo todas as suas formas sociais arrasou completamente os seus

sistemas de referecircncias econoacutemicas os seus modos ldquoessendi et operandirdquo e decretou a crise

soacutecio-cultural dos povos negros de Aacutefrica

Palavras-chaves colonizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo violecircncia despersonalizaccedilatildeo descolonizaccedilatildeo

emancipaccedilatildeo

Abstract

The present study sought to deconstruct from the theses of Frantz Fanon especially those

formulated in The Wretched of the Earthrdquo the idea of a supposed civilizing mission

underlying the colonizing intention embodied in the equation colonization equal to

civilization and paganism equal to savageryrdquo Crossed the facts to the doctrines that focus on

a Doutorando em Filosofia na Universidade de Eacutevora Mestre em Ciecircncias da Educaccedilatildeo pela mesma

Universidade Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catoacutelica de

Angola

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the phenomenon of colonisation of Africa this was seen by Fanon was more a movement of

depersonalization of Africans in general and the negroes in particular than a draft of

humanization and emancipation of the peoples of black Africa Therefore became evident

throughout this work that the colonization was a violence that drew its originality of the

colonized

A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world as well as

marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African including all

its social forms wiped out completely their systems of economic references their modes

essendi et operandi and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa

Key words colonization civilization violence depersonalization decolonisation

emancipation

Introduccedilatildeo

A reflexatildeo em torno dos desafios da descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica continua actual e actuante em

qualquer discurso intelectual ou poliacutetico sobre o estado da naccedilatildeo de muitos Estados africanos

passados que satildeo aproximadamente seis deacutecadas desde que muitos deles se tornaram

independentes Esta actualidade pode todavia natildeo parecer evidente quando o enfoque do

discurso for a colonizaccedilatildeo De facto pode parecer anacroacutenico e mesmo sintomaacutetico falar da

colonizaccedilatildeo para tentar justificar a qualquer preccedilo o subdesenvolvimento e a instabilidade

sociopoliacutetica na actualidade de muitos Estados africanos independentes Bom ou malgrado

essa sensaccedilatildeo de anacronismo que sugere uma espeacutecie de eacutepokeacute em torno do fenoacutemeno

colonial perde a sua legitimidade na medida em que a pertinecircncia do discurso sobre a

descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica torna ldquoipsis verbirdquo procedente o discurso sobre a colonizaccedilatildeo Ou

seja toda a fala em torno da descolonizaccedilatildeo sugere de uma ou de outra forma uma incursatildeo

sobre a colonizaccedilatildeo Vamos ao longo deste trabalho procurar descortinar o conceito de

colonizaccedilatildeo na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do

trampolim que pode sugerir agrave nossa cogitaccedilatildeo sobre a descolonizaccedilatildeo Para o efeito

propomos a seguinte estrutura 1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a

partir da analiacutetica de Fanon 2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo

igual a civilizaccedilatildeo 3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel

deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo 4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos a uma possiacutevel

verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida 5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de

Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco 6 Desconstruindo o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista

erguida na recusa do humano enquanto diferente 7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta do

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mundo colonial uma antiacutetese agrave pretensatildeo de uma suposta missatildeo emancipadora dos

africanos subjacente na intenccedilatildeo colonizadora

1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a partir da sua analiacutetica

em Fanon

Natildeo eacute possiacutevel falar da descolonizaccedilatildeo em Fanon sem falar da colonizaccedilatildeo enquanto

referecircncia inofuscaacutevel e movimento historicizante que confere corpo e sentido mateacuteria e

forma a qualquer anaacutelise criacutetica do projecto de descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica Esta eacute de resto a

loacutegica que suporta o argumento de Fanon que passamos a transcrever

a descolonizaccedilatildeo [hellip] eacute um processo histoacuterico [hellip] natildeo pode ser

compreendida natildeo encontra a sua inteligibilidade natildeo se torna transparente

para si mesma senatildeo na exacta medida em que se faz discerniacutevel o

movimento historicizante que lhe daacute forma e conteuacutedo ndash a opressatildeo colonial

(Fanon 1968 p 26 ou Fanon 2002 p 452)

Desde esta perspectiva a anaacutelise sobre a colonizaccedilatildeo ganha uma particular relevacircncia na

medida em que se nos apresenta natildeo soacute como fundamento a partir do qual se pode erguer

qualquer avaliaccedilatildeo sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleoloacutegico da luta

dos africanos rumo agrave sua efectiva emancipaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo no universalismo humano

mas tambeacutem como pretexto para (re) pensar o caminho de superaccedilatildeo das novas formas de

colonizaccedilatildeo que grassam ainda Aacutefrica e que em si constituem um verdadeiro impasse para

uma descolonizaccedilatildeo efectiva do continente africano Importa desde jaacute sublinhar que esta

reflexatildeo de tipo histoacuterico natildeo encontra o seu real significado na descriccedilatildeo dos factos que ela

encerra nem na narraccedilatildeo histoacuterica que a constitui O seu real alcance reside na sua capacidade

de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a

descolonizaccedilatildeo vislumbrado pelos africanos passados que satildeo cinquenta e sete anos apoacutes a

morte de Fanon

Tem-se com efeito e natildeo poucas vezes associado a colonizaccedilatildeo de Aacutefrica a um projecto

civilizador ou modernizador que teraacute sido frustrado ou interrompido por uma espeacutecie de

ambiccedilatildeo irracional dos africanos admitindo-se deste modo a hipoacutetese segundo a qual a

colonizaccedilatildeo teraacute sido um ldquoprojecto interrompidordquo de civilizaccedilatildeo (modernizaccedilatildeo) da Aacutefrica e

dos africanos De recordar que o ldquodiscurso sobre o colonialismordquo de Aimeacute Ceacutesaire resulta

precisamente da necessidade de dissertar sobre uma possiacutevel analogia entre a ldquocolonizaccedilatildeo e

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a civilizaccedilatildeordquo Provocaccedilatildeo ou natildeo mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer

sobre o binocircmio colonizaccedilatildeo-civilizaccedilatildeo pelo Franco-Senegalecircs Alioune Diop fundador e

Director da Revista ldquoPreacutesence Africainerdquo em Paris 1950 insinua a existecircncia de tendecircncias

que aproximavam a colonizaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo Esta provocaccedilatildeo tal como nos parece ser natildeo

deixa de ser no plano metodoloacutegico um bom ponto de partida para uma discussatildeo mais

objectiva e criacutetica da concepccedilatildeo fanoniana do colonialismo porquanto nos permite lanccedilar a

discussatildeo levantando uma seacuterie de perguntas tais como 1 Eacute possiacutevel sustentar por via de

argumentaccedilatildeo uma provaacutevel analogia entre os dois conceitos em anaacutelise a saber colonizaccedilatildeo

e civilizaccedilatildeo 2 Teraacute havido realmente um plano colonial de civilizar ou modernizar a

Aacutefrica em proveito dos africanos 3 Era sensato legitimar a opressatildeo colonial a partir dos

progressos alcanccedilados nas coloacutenias de Aacutefrica durante a administraccedilatildeo colonial Dito de outro

modo Seraacute que os niacuteveis de desenvolvimento conseguidos em vaacuterios domiacutenios social

administrativo tecnoloacutegico e poliacutetico sob o regime colonial conferiam efectivamente a

merecida dignidade a Aacutefrica e aos africanos 4 Teraacute a Aacutefrica realmente recusado o

desenvolvimento como diria Axel Kabu ao engajar-se na luta pela descolonizaccedilatildeo 5 E hoje

em plena era poacutes-colonial poderatildeo os africanos afirmar com realismo franqueza e

frontalidade que os ideais que nortearam o projecto da descolonizaccedilatildeo foram alcanccedilados 6

Teraacute alguma razatildeo de ser o postulado segundo o qual o projecto de descolonizaccedilatildeo teraacute sido

abortado na sua menor idade admitindo-se deste modo um possiacutevel equiacutevoco entre os

liacutederes e os intelectuais africanos que teratildeo confundido as independecircncias (enquanto meio)

com a descolonizaccedilatildeo (enquanto fim da longa marcha usando a expressatildeo de Reneacute Dumont

rumo a um continente mais humano mais livre mais autoacutenomo mais justo e mais proacutespero)

Ao longo desta reflexatildeo tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas

perguntas tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon

2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeo

Qual teraacute sido o verdadeiro retrato do colonialismo um processo de civilizaccedilatildeo dos

chamados indiacutegenas ou um ldquomovimento de despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeordquo dos povos

africanos Eacute evidente que para Fanon esta questatildeo nem sequer merece ser colocada De

facto o jovem martinicano eacute bastante incisivo e objectivo na sua anaacutelise Para ele a

colonizaccedilatildeo eacute antes de mais uma ldquoviolecircnciardquo conceito que de resto daacute tiacutetulo ao Iordm capiacutetulo

do Les Damneacutes de la Terre (Fanon 1968 p23 ou 2002 p448) Na sua oacuteptica a violecircncia foi

precisamente o elemento estrateacutegico e estruturante da loacutegica colonial Trata-se de uma

violecircncia que extrai sua originalidade na substantificaccedilatildeo do colonizado que a proacutepria

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situaccedilatildeo colonial segrega e alimenta Aliaacutes o encontro entre o colonizador e o colonizado diz

Fanon teve sempre o retrato de violecircncia e nunca foi expressatildeo de uma vontade civilizadora

ou humanizadora Pode se ler em Fanon que a colonizaccedilatildeo eacute a categorizaccedilatildeo de um encontro

que

se desenrolou sob o signo da violecircncia e sua coabitaccedilatildeo ndash ou melhor

a exploraccedilatildeo do colonizado pelo colono ndash foi levada a cabo com

grande reforccedilo de baionetas e canhotildees [hellip] A violecircncia [hellip] presidiu

ao arranjo do mundo colonial [hellip] ritmou incansavelmente a

destruiccedilatildeo das formas sociais indiacutegenas [hellip] arrasou completamente

os sistemas de referecircncias da economia os modos da aparecircncia e do

vestuaacuterio do colonizado (Fanon 1968 pp 26 e 30)

Eacute possiacutevel aproximar em boa verdade uma situaccedilatildeo de uma clara alienaccedilatildeo antropoloacutegica

fazendo feacute agrave descriccedilatildeo de Fanon a um projecto de civilizaccedilatildeo sem cair em sofismas que

desemboquem numa contradiccedilatildeo De notar que este mesmo entendimento de Fanon eacute

corroborado pelo seu antigo mestre Aimeacute Ceacutesaire que parafraseamos nos seguintes termos a

colonizaccedilatildeo enquanto violecircncia no sentido mais bruto da palavra eacute uma autecircntica antiacutetese da

civilizaccedilatildeo ela por natureza desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado A

colonizaccedilatildeo legitima o ilegiacutetimo e normaliza o anormal pode-se matar agrave vontade na

Indochina torturar em Madagaacutescar prender na Aacutefrica negra seviciar nas Antilhashellip (cfr

Ceacutesaire 1978 pp 7 e 14) Natildeo eacute preciso muita hermenecircutica para apreender nos dizeres de

Sartre de que a violecircncia constitui o ldquomodus operandirdquo proacuteprio do sistema colonial que nem

as suas geniais trapaccedilas conseguem disfarccedilar A peculiaridade do agir colonial distancia a

colonizaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo E para deixar tudo a nu Sartre faz a seguinte inconfidecircncia

ldquonossos soldados no ultramar rechaccedilam o universalismo metropolitano

aplicam ao geacutenero humano o numerus clausus uma vez que ningueacutem pode

sem crime espoliar seu semelhante escravizaacute-lo ou mataacute-lo eles datildeo por

assente que o colonizado natildeo eacute o semelhante do homem Nossa tropa de

choque recebeu a missatildeo de transformar essa certeza abstrata em realidade a

ordem eacute rebaixar os habitantes do territoacuterio anexado ao niacutevel do macaco

superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [hellip] nada

deve ser poupado para liquidar as suas tradiccedilotildees para substituir a liacutengua deles

pela nossa para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossahelliprdquo (Sartre Les

Damneacutes 1961 p 9)

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Esta violecircncia que parte do plano simboacutelico conceitual atingiu o seu ponto auge com

desterramento dos indiacutegenas feitos estrangeiros na sua proacutepria terra como foi o caso do

coacutedigo civil imposto aos argelinos visando regular o direito agrave propriedade e agrave heranccedila com a

uacutenica finalidade de desterrar os autoacutectones tirando-lhes o que de mais precioso tinha ndash a sua

proacutepria terra De realccedilar que o referido coacutedigo tinha aprovado a titularidade comum de terras

entre a classe-meacutedia francesa e a sociedade tribal como estrateacutegia de expropriaccedilatildeo de terras

aos autoacutectones atraveacutes de poliacuteticas especulativas (cfr Sartre 1967 p39)

Desde este ponto de vista pode-se aferir que os ldquomodus essendi et operandirdquo do colonialismo

configuravam em certa medida aquilo que Sartre chamou de ldquoimoralidade narcisistardquo da

ambiccedilatildeo ocidental da qual emerge o impulso que modifica inevitavelmente qualquer

indiviacuteduo que adere agrave dinacircmica colonial dando-lhe boa consciecircncia e boas razotildees de ver no

outro (natildeo branco) um simples animal Esta constataccedilatildeo sartriana valida sem qualquer

sombra de duacutevida a convicccedilatildeo de Ceacutesaire para quem o colonialismo eacute brutalidade

intimidaccedilatildeo crueldade sadismo choque violaccedilatildeo roubo desprezo culturas obrigatoacuterias

desconfianccedila massas aviltadas ausecircncia de contacto humano relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de

submissatildeo que transformam o negro colonizado em criado ajudante comitre e instrumento de

produccedilatildeo (cfr Ceacutesaire 1978 p25) A partir destes pressupostos torna-se de facto forccediloso

concluir que natildeo existe tal como defende Fanon qualquer sustentabilidade quer

argumentacional quer factual para a validaccedilatildeo da equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeordquo

pois os factos atestam que colonizaccedilatildeo eacute o oposto de civilizaccedilatildeo Mas uma deacutemarche

etimoloacutegica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano teoacuterico

conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem

3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo

Para fundamentar com maior objectividade o alcance da deduccedilatildeo decorrente da narrativa de

Fanon em relaccedilatildeo a conjecturada correlaccedilatildeo entre os dois conceitos em anaacutelise pareceu-nos

mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos no sentido de os tornar mais

inteligiacuteveis para daiacute depreender o seu justo significado e consequentemente confirmar ou

infirmar a suposta correlaccedilatildeo entre ambas Conveacutem no entanto sublinhar que o caraacutecter

polisseacutemico dos conceitos em epiacutegrafe natildeo nos permite ignorar o facto de que natildeo eacute tatildeo faacutecil

quer do ponto de vista conceitual quer do ponto de vista factual traccedilar a linha de

convergecircncia ou de divergecircncia entre eles pois o proacuteprio caraacutecter multidisciplinar que o

conceito de civilizaccedilatildeo envolve hoje confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta

qualquer entendimento homogeacuteneo linear e conclusivo Acresce-se a este dado o facto de

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que nos dias que correm o conceito de civilizaccedilatildeo eacute reivindicado como objeto de estudo da

antropologia da ciecircncia da cultura do direito da histoacuteria da filosofia poliacutetica da sociologia

poliacutetica da religiatildeo etc proporcionando-lhe um enquadramento episteacutemico bastante

complexo que recusa qualquer unicidade semacircntica No entanto um recuo estrateacutegico e

metodoloacutegico ao seacuteculo das luzes onde o significado do termo ldquocivilizaccedilatildeordquo emergiu da

proacutepria raiz etimoloacutegica do conceito ldquocivilisrdquo ldquocivisrdquo cujo entendimento remetia agrave acccedilatildeo

de tornar civil ou urbano pode permitir uma espeacutecie de unidade de sentido a partir do qual se

pode fundamentar a possiacutevel analogia conceitual destes dois termos

A Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura natildeo foge muito desta percepccedilatildeo quando define a

colonizaccedilatildeo como um fenoacutemeno sociopoliacutetico baseado na dependecircncia de um grupo humano

ou de um territoacuterio a um outro que exerce nele influecircncias demograacuteficas econoacutemicas

culturais sociais ou poliacuteticas Entendimento agrave luz do qual alguns teoacutericos nos seacuteculos XIX e

XX basearam a sua definiccedilatildeo de colonizaccedilatildeo como atividade pela qual um povo de cultura

superior ocupa e organiza por conta proacutepria um territoacuterio habitado por povos de cultura

inferior estendendo a sua soberania desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas

segundo o princiacutepio da civilizaccedilatildeo Observa-se aqui a missatildeo civilizadora subjacente ao

conceito da colonizaccedilatildeo enquanto fenoacutemeno sociopoliacutetico cuja meta eacute levar as coloacutenias ao

desenvolvimento cultural social econoacutemico e cientiacutefico ou seja agrave modernizaccedilatildeo do territoacuterio

ocupado Este eacute de resto o significado que decorre do entendimento filoloacutegico do conceito de

colonizaccedilatildeo cuja estrutura originaacuteria se funda em torno de dois pressupostos basilares

nomeadamente o cultivo da terra isto eacute o desenvolvimento econoacutemico e o cultivo dos

homens ou seja a promoccedilatildeo sociocultural e econoacutemica das populaccedilotildees consideradas na

posiccedilatildeo receptiva (cfr Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura nordm5 p996ss)

De salientar que o conceito de civilizaccedilatildeo emergiu e muito provavelmente antes de qualquer

outro paiacutes no contexto sociocultural francecircs e fazia referecircncia essencialmente a trecircs

dimensotildees que vale a pena enumerar a primeira era referente ao primado da vida em

comunidade sobre a vida solitaacuteria a segunda fazia alusatildeo ao primado da vida na cidade sobre

a vida no campo a uacuteltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o

selvagem isto eacute o homem moderno distinguido pela ciecircncia e pela teacutecnica sobre o baacuterbaro

(cfr Enciclopeacutedia LB da Cultura nordm5) Neste contexto teoacuterico-conceitual civilizar era de

facto sinoacutenimo de trabalhar na integraccedilatildeo dos indiacutegenas na comunidade metropolitana na

modernizaccedilatildeo da vida do campo isto eacute levando as condiccedilotildees da cidade ao campo (energia

eleacutectrica aacutegua potaacutevel educaccedilatildeo escolar assistecircncia meacutedica e medicamentosahellip) e na policcedilatildeo

do baacuterbaro pela chamada ldquoculturardquo cientiacutefica e tecnoloacutegica

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Este parece ser o entendimento mais viaacutevel para o exame a que nos propusemos da

correlaccedilatildeo destes dois vocaacutebulos O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e

sustentabilidade episteacutemica no Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea editorial

Verbo acresce ainda mais o nosso interesse por esta perspectiva (cfr 2001 p833) Segundo

o Dicionaacuterio ora referenciado a ldquocivilizaccedilatildeordquo eacute a acccedilatildeo ou o resultado de transmitir

conhecimentos comportamentos e teacutecnicas consideradas desejaacuteveis numa sociedade moderna

Por conseguinte civilizar eacute dar caracteriacutesticas proacuteprias de sociedades teacutecnicas cientiacutefica e

economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas ou ainda dar haacutebitos e ajudar a

desenvolver comportamentos desejaacuteveis numa sociedade desenvolvida Conclui-se pois que

do ponto de vista conceitual ou definicional existem razotildees para fundamentar a presumiacutevel

correlaccedilatildeo entre os conceitos de ldquocolonizaccedilatildeo e civilizaccedilatildeordquo Mas a natildeo homogeneidade de

compreensatildeo na interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo destes conceitos agrave partida polisseacutemicos e

multidisciplinares e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descriccedilotildees fanonianas

obrigam-nos a dar um passo a mais espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e

continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo

4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos agrave uma possiacutevel verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de

partida

Se eacute possiacutevel aferir do ponto de vista definicional uma certa correlaccedilatildeo analoacutegica entre os

conceitos que fundam a nossa equaccedilatildeo de partida tal como ficou patenteado no ponto

anterior do ponto de vista doutrinal e factual esta correlaccedilatildeo carece de uma anaacutelise

minuciosa que permita apurar se a propensatildeo civilizadora inerente ao conceito de colonizaccedilatildeo

pelo menos no plano teoacuterico-conceitual conseguiu vincar como aspecto norteador da acccedilatildeo

colonial ou teraacute por alguma razatildeo ficado ofuscada durante o processo colonial Impotildee-se-

nos a este niacutevel retomar o ponto de vista de Fanon para quem a colonizaccedilatildeo eacute antes de

mais uma violecircncia que se consubstancia na animalizaccedilatildeo e na aniquilaccedilatildeo dos (negros)

colonizados Para sustentar o seu argumento Fanon comeccedila por relembrar a atitude do colono

que em vaacuterias circunstacircncias fez recurso a ldquouma linguagem zooloacutegica usando expressotildees

como ldquo[hellip] hordas fedor buliacutecio [hellip] e quando os quisesse descrever com mais exatidatildeo

[hellip] recorria constantemente ao bestiaacuteriordquo para designar os negros (Fanon 1968 p 31 ou

2002 p 456) Esta animalizaccedilatildeo do colonizado eacute para Fanon a expressatildeo mais eloquente de

uma violecircncia absoluta que desenraiacuteza o aviltado de sua humanidade E para reforccedilar a sua

criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista o colono via-se na necessidade de

encontrar novos atributos que pudessem explicitar da melhor maneira possiacutevel a real

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dimensatildeo semacircntica subjacente nos conceitos de ldquoindiacutegena e selvagemrdquo que em si jaacute natildeo

eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de

Aacutefrica entre outros

demografia galopante massas histeacutericas rostos de onde fugiu qualquer traccedilo

de humanidade corpos obesos que natildeo se assemelham mais a nada corte sem

cabeccedila nem cauda crianccedilas que datildeo a impressatildeo de natildeo pertencerem a

ningueacutem preguiccedila estendida ao sol ritmo vegetalhellip (Fanon 1968 p 32 ou

Fanon 2002 p457)

A validade histoacuterica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento Eacute sensato

falar de um projecto de civilizaccedilatildeo de animais sem converter a proacutepria racionalidade

civilizadora numa irracionalidade animal Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade

animal de uma civilizaccedilatildeo cuja racionalidade eacute o epicentro da sua acccedilatildeo muitos preferiram

considerar as afirmaccedilotildees de Fanon de irresponsaacuteveis e repletas de inverdades qualificando o

proacuteprio Fanon de agitador e instigador da violecircncia ante a sua incisiva caracterizaccedilatildeo do

sistema colonial Dentre outros podemos citar Alain Finkierkraut cujo pensamento mais do

que uma antiacutetese agraves teses de Fanon eacute uma tentativa de demonstraccedilatildeo da derrota do projecto da

descolonizaccedilatildeo Piegraverre Bourdieu de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que

pesam sobre Fanon eacute paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010 p 109)

como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus Simone de

Beauvoir Germaine Tillion Jasques Amrouche e outros que como Fanon e Sartre tiveram a

ousadia de denunciar cada um agrave sua maneira a violecircncia inerente ao sistema colonial

forjando novas noccedilotildees de identidade poliacutetica que continuam a influenciar o debate poliacutetico na

actualidade

No seu ldquomarxismo encontra Bourdieurdquo Burawoy procura mostrar que apesar da enorme

distacircncia que separa o quadro teoacuterico-reflexivo de Bourdieu e Fanon nomeadamente ldquoo

marxismo terceiro-mundista de um lado e a teoria da modernizaccedilatildeo de outro ladordquo o

pensamento destes dois autores apresenta inuacutemeras similitudes sobretudo entre o Fanon do

Le Damneacutes de la terre de 1961 e o Bourdieu de Sociologie de lrsquoAlgerie de 1958 Embora

natildeo seja objecto deste debate julgamos oportuno e procedente mencionar a tiacutetulo de

exemplo algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violecircncia como uma das

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave natureza proacutepria do sistema colonial e nos termos muito

semelhantes aqueles que aparecem nas paacuteginas 26 e 30 do Le Damneacutes de la terre de Fanon

(cfr 1968) ao afirmar

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o sistema colonial enquanto tal natildeo poderaacute ser destruiacutedo senatildeo atraveacutes de

um questionamento radical Todas as mutaccedilotildees satildeo submetidas agrave lei de tudo

ou nada Este facto estaacute na consciecircncia pelo menos de forma confusa quer

entre os membros da sociedade dominante quer entre os membros da

sociedade dominada [hellip] Mas eacute preciso admitir que o primeiro e uacutenico

questionamento radical do sistema eacute aquele que o proacuteprio sistema engendrou

isto eacute a revoluccedilatildeo contra os princiacutepios que o fundaram [hellip] A situaccedilatildeo

colonial criou o despreziacutevel e ao mesmo tempo o desprezo mas criou

tambeacutem a revolta contra o desprezo Assim cresce cada vez mais a tensatildeo

que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu 1958 pp 28 e 129)

Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu numa clara aproximaccedilatildeo da

colonizaccedilatildeo agrave violecircncia De facto a violecircncia simboacutelica e real eacute depreendida em muitos

cenaacuterios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial

Vaacuterios satildeo os etnoacutelogos e ideoacutelogos que nas entrelinhas do seu pensamento conferem uma

certa razatildeo a um tal pressuposto Alfred de Vigny por exemplo faz jus a esta violecircncia

simboacutelica ao afirmar sem rodeios que o mundo natildeo europeu eacute um mundo animal mundo dos

baacuterbaros mundo da morte e consequentemente uma ameaccedila ao mundo europeu Partindo

deste postulado deduz-se que para De Vigny a colonizaccedilatildeo era um processo compulsivo de

civilizaccedilatildeo isto eacute uma opccedilatildeo para a vida e tal como diz ldquose se prefere a vida agrave morte tem de

se preferir a civilizaccedilatildeo agrave barbaridaderdquo que natildeo eacute apenas um reino animal e de morte mas

tambeacutem uma ameaccedila agrave civilizaccedilatildeo Em virtude disto conclui De Vigny ldquonenhum povo tem o

direito de permanecer baacuterbaro ao lado das naccedilotildees civilizadasrdquo Depreende-se daqui que a

uacutenica loacutegica vaacutelida eacute a disjuntiva ldquoto be or not to berdquo como diria Shakespeare ldquothat is the

questionrdquo (cfr De Vigny 2003 p87)

Esta apreciaccedilatildeo lacoacutenica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que como De

Vigny tambeacutem considera a colonizaccedilatildeo como uma obra civilizadora uma espeacutecie de direito e

dever das sociedades evoluiacutedas Folliet baseia o seu argumento nas caracteriacutesticas

heterogeacuteneas das sociedades isto eacute nos desniacuteveis existentes entre as sociedades colonizadas e

colonizadoras quer nos planos econoacutemico administrativo cultural social e poliacutetico quer nos

planos cientiacutefico e tecnoloacutegico Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizaccedilatildeo

seria possivelmente o processo de supressatildeo destes desniacuteveis sociais com o auxiacutelio das

sociedades mais desenvolvidas Pelo que a manutenccedilatildeo destes desniacuteveis como forma

hegemoacutenica de controlo ou de manutenccedilatildeo de superioridade foge do acircmbito da colonizaccedilatildeo

para desembocar no campo de acccedilatildeo do colonialismo (cfr Folliet 1932 p 75) Eacute caso para

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dizer que o entendimento teoacuterico de Folliet apresenta uma diferenccedila niacutetida entre a colonizaccedilatildeo

que seria para o autor o sinoacutenimo de civilizaccedilatildeo e o colonialismo que pode ser visto como

processo de exploraccedilatildeo e subjugaccedilatildeo das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades

desenvolvidas

Mas eacute preciso dizer que se do ponto de vista conceitual Folliet deu um tamanho salto

qualitativo propiciador de uma possiacutevel coabitaccedilatildeo paciacutefica entre o colono e o colonizador

aludindo agrave missatildeo civilizadora da colonizaccedilatildeo do ponto de vista praacutetico o discurso follietiano

deu lugar a muitas ambiguidades sobretudo quando o proacuteprio autor considera a colonizaccedilatildeo

como forma mais viaacutevel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em

territoacuterios subdesenvolvidos e valorizaacute-los para o bem-comum da humanidade sem definir as

regras nem as modalidades ou os viacutenculos contractuais para tal Com efeito Folliet considera

um dado assente que ldquoas naccedilotildees economicamente mais evoluiacutedas tecircm o direito de explorar as

riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagensrdquo (Folliet 1932 pp 101 e 268) E

para natildeo camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violecircncia Folliet

defende a necessidade da manutenccedilatildeo das desigualdades entre o colonizador e o colonizado

numa clara opccedilatildeo pelo colonialismo em detrimento da colonizaccedilatildeo contrariando a sua proacutepria

doutrina com o seguinte posicionamento

a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores de modo que o sujeito

colonizado natildeo passe numa vontade de vinganccedila a esquecer a sua

heteronomia absoluta eacute portanto uacutetil e necessaacuterio que as mais vastas

propriedades as mais ricas induacutestrias os mais frutuosos comeacutercios pertenccedilam

aos representantes da raccedila superior (Folliet 1932 p228)

Uma possiacutevel deduccedilatildeo leva-nos por um lado a aferir a inadequaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida

com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analiacuteticos da questatildeo em

estudo e a considerar por outro lado a emergecircncia da categoria de dominaccedilatildeo como outro

elemento caracteriacutestico da estrateacutegia colonial na relaccedilatildeo colonizadocolonizador Este

princiacutepio que eacute em si mesmo o elemento estruturante da tensatildeo e ao mesmo tempo

provocador da dialeacutectica do senhor e do escravo permite-nos um salto para o exame da

possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a Aacutefrica em proveito dos

africanos

5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco

Eacute possiacutevel compatibilizar o instinto de dominaccedilatildeo com a vontade de promover ou de

emancipar Guillaume Sureacutena num movimento contraacuterio ao nosso itineraacuterio apresenta um

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discurso capaz de relanccedilar a discussatildeo No seu artigo intitulado ldquoPsycanalyse et

anticolonialismerdquo Sureacutena lamenta o desperdiacutecio de uma oportunidade que teria resultado num

possiacutevel encontro inter-civilizacional frutiacutefero e que no entanto teraacute sido frustrado pela

vontade dominadora do instinto colonial Os textos surenianos insinuam que do ponto de

vista praacutetico a civilizaccedilatildeo europeia nunca teve qualquer plano de promover nem de

reconhecer as outras civilizaccedilotildees como parceiras importantes para um crescimento conjunto

A sua ambiccedilatildeo foi sempre de conhecer para dominar e subjugar como ficou explicitado nesta

passagem

este encontro de civilizaccedilotildees tatildeo diferentes poderia ter sido o momento de um

intercacircmbio fecundo e de um enriquecimento muacutetuo como lamentou o

antropoacutelogo francecircs Claude Levi-Strauss Mas para a metafiacutesica europeia

desde a Greacutecia antiga o saber foi sempre o equivalente de ldquomaitriserrdquo isto eacute

de dominar As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados

sob os conceitos com partiacuteculas latinas e gregas Os locais geograacuteficos

receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridiacuteculos por

falta de qualquer relaccedilatildeo com os espiacuteritos que os habitavam outrora (Sureacutena

1943 p 4)

Diga-se pois de passagem que foi assim na Greacutecia antiga foi assim ateacute ao seacuteculo XX e

nada justifica que natildeo continue assim nos dias que hatildeo-de vir Mas a questatildeo eacute qual o destino

que o instinto dominador das naccedilotildees pode proporcionar agrave espeacutecie humana Conveacutem recordar

que num passado mais recente da histoacuteria da Europa a colonizaccedilatildeo assumiu o caraacutecter de

dominaccedilatildeo dos povos e dos seus recursos naturais Os europeus sempre mostraram-se mais

interessados com uma partenogeacutenese profunda dos africanos para os submeter mais

facilmente e natildeo para os civilizar De facto desde o iniacutecio do seacuteculo XVII com as grandes

navegaccedilotildees e os descobrimentos das ameacutericas o interesse em explorar e conquistar novas

terras ganhou um enorme vigor na Europa e com ele emergiu tambeacutem a chamada

colonizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de povoamento A primeira forma de colonizaccedilatildeo foi o momento

no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as coloacutenias tinham uma

utilidade meramente lucrativa junto da metroacutepole A segunda acontecia de maneira

espontacircnea mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econoacutemica

com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem aiacute acorria

Muitos estudos mostram que no continente africano este tipo de colonizaccedilatildeo foi sempre

acompanhado de desterramento de zonas araacuteveis ou de pastagem dos autoacutectones bem como

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da supressatildeo dos eventuais direitos que detinham1 Embora referindo-se a um contexto muito

mais preteacuterito ao de Fanon Ceacutesaire Sartre e outros Iva Cabral traz ao de cima a ideia de

dominaccedilatildeo e de exploraccedilatildeo como elementos catalisadores do interesse europeu em Aacutefrica

ajudando assim na desconstruccedilatildeo da hipoacutetese de um possiacutevel plano colonial para o

desenvolvimento de Aacutefrica e dos africanos De facto Iva Cabral afirma que a experiecircncia

ultramarina se resumia na conquista das praccedilas do Norte de Aacutefrica e na fixaccedilatildeo de guarniccedilotildees

e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territoacuterios tropicais de

Aacutefrica natildeo pelo desejo de levar a civilizaccedilatildeo agraves terras longiacutenquas de Aacutefrica mas por causa

dos inuacutemeros privileacutegios econoacutemicos e sociais que tinham os quais incluiacuteam em alguns

casos a sociedade escravocrata de produccedilatildeo no Atlacircntico (cfr 2015 p25)

Este suporte histoacuterico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra

um reforccedilo na posiccedilatildeo de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa

anaacutelise sobre as categorias de dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo como sustentaacuteculos da acccedilatildeo

colonizadora quando num tom autocriacutetico apontando o dedo aos seus irmatildeos europeus

pinta sem complexo nem contemplaccedilotildees o verdadeiro retrato da Europa colonial permitindo

a apreensatildeo da razatildeo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opressatildeo contra os

autoacutectones em territoacuterios colonizados sobretudo em Aacutefrica nestes termos

sabeis muito bem que somos exploradores Sabeis que nos apoderamos do

ouro e dos metais e posteriormente do petroacuteleo dos continentes novos e que

os trouxemos para as velhas metroacutepoles Com excelentes resultados palaacutecios

catedrais capitais industriais [hellip] A Europa empanturrada de riquezas

concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes entre noacutes

lucramos com a exploraccedilatildeo colonial (Fanon 1968 p 17)

Se tomamos a seacuterio as diversas constataccedilotildees dos autores supra mencionados torna-se

insustentaacutevel a hipoacutetese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos

africanos e da Aacutefrica num contexto de exploraccedilatildeo no seu sentido mais radical e mais bruto do

termo isto eacute uma exploraccedilatildeo natildeo soacute de recursos naturais dos territoacuterios colonizados mas

tambeacutem do seu proacuteprio capital humano Num tal contexto aproximar a colonizaccedilatildeo da

civilizaccedilatildeo eacute admitir agrave partida uma ambiguidade semacircntica na compreensatildeo destes dois

conceitos Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade Ceacutesaire diz que a colonizaccedilatildeo natildeo

deve ser confundida com uma empresa filantroacutepica nem com uma nobre vontade de recuar as

fronteiras da ignoracircncia da doenccedila da tirania e ateacute mesmo da propagaccedilatildeo de Deus e muito

1 Cfr httpsptwikipediaogwikicolonizaccedilatildeo Enciclopeacutedia livre 15022017

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menos com uma poliacutetica de extensatildeo dos direitos do povo colonizado como pretendeu o

pedantismo cristatildeo que concebeu o referido equiacutevoco ao enunciar uma equaccedilatildeo eacutetica e

religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria tornando-se assim responsaacutevel pelas consequecircncias

abominaacuteveis decorrentes dos actos coloniais cujas viacutetimas seriam os iacutendios os amarelos e os

negros (cfr Ceacutesaire 1978 pp14-15)

Pode se depreender dos textos de Ceacutesaire que a colonizaccedilatildeo eacute a manifestaccedilatildeo sem precedente

da ganacircncia do aventureiro e do pirata do comerciante e do armador do pesquisador de ouro

e do mercado do apetite e da forccedila tendo por detraacutes a sombra maleacutefica projetada de uma

forma de civilizaccedilatildeo que a dado momento da sua histoacuteria se viu obrigada internamente a

alargar agrave escala mundial a concorrecircncia das suas economias Se natildeo como se pode perceber

que a Franccedila em particular e a Europa em geral conseguissem progressivamente tal como

alude Dino Constantini transformar os princiacutepios democraacuteticos e humanistas tatildeo-reclamados

naquela circunscriccedilatildeo do globo em instrumentos de justificaccedilatildeo de dominaccedilatildeo com regulares

violaccedilotildees nas coloacutenias dando lugar a uma degeneraccedilatildeo sem precedente de uma suposta

ldquomissatildeo civilizadorardquo da Europa em Aacutefrica (cfr Constatini 2008 pp 33 e 53) Para pocircr a nu

o paradoxo de uma civilizaccedilatildeo dita humanista mas na praacutetica contestadora da proacutepria

humanidade no ldquodiferenterdquo Constatini evoca o coacutedigo civil de 1791 que coloca as coloacutenias

fora do direito comum institucionalizando uma cisatildeo social juridicamente fundamentada

entre as populaccedilotildees brancas e negras legitimando ao mesmo tempo a violecircncia primeiro no

plano simboacutelico e posteriormente no plano concreto numa clara declaraccedilatildeo de recusa de

reconhecimento e de integraccedilatildeo dos negros na vida da metroacutepole Eacute preciso dizer que esta

fragmentaccedilatildeo social legitimada pelo coacutedigo civil supra citado serviu de base para a

consagraccedilatildeo de uma nova compreensatildeo do conceito da ldquohumanidaderdquo que reduziria os

direitos humanos a direitos de cidadania reservando-os apenas aos europeus

Eacute o paradoxo no caso da Franccedila de uma Repuacuteblica que nunca deixou de contestar contra a

violecircncia de que tinha sido viacutetima em 1871 cegamente transformada numa autecircntica maacutequina

de violecircncia contra outros humanos sem qualquer fundamento legiacutetimo (cfr Constatini 2008

p 286) Eacute a contradiccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo ocidental defensora de direitos humanos mas que

natildeo hesita de reduzir os outros humanos agrave categoria de sub-humanos eacute a estrateacutegia de um

imaginaacuterio ideoloacutegico que no plano psicoloacutegico confere legitimidade a todas as barbaacuteries dos

colonizadores sobre os colonizados eacute a ironia de uma civilizaccedilatildeo cuja linha de demarcaccedilatildeo

com a barbaridade natildeo eacute expliacutecita Nem mesmo a dignidade humana universal e abstracta

apregoada pelos moralistas desta civilizaccedilatildeo como um dos valores mais sublimes entre os

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humanos em especial pela religiatildeo cristatilde mais consagrada ao serviccedilo do imperialismo do

que de Deus na oacuteptica de Ceacutesaire conseguiu dissimular a violecircncia contra o colonizado

6 Desmistificando o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista erguida na recusa do

ldquodiferenterdquo

Parece ter ficado evidente que a colonizaccedilatildeo se identificou mais com uma dinacircmica de

exploraccedilatildeo dos povos colonizados do que com um projecto de integraccedilatildeo dos indiacutegenas na

metroacutepole Iva Cabral ajuda-nos mais uma vez a perceber como a loacutegica do lucro presidiu a

todas as estrateacutegias e legislaccedilotildees coloniais Numa perspectiva simplesmente histoacuterica a autora

apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos

enunciados de Fanon que concedem sentido e substacircncia a este trabalho Com efeito Iva

Cabral afirma que as decisotildees poliacuteticas do regime colonial criavam condiccedilotildees para que os

filhos da meacutedia e baixa nobreza portuguesa neste particular mercadores e aventureiros

vislumbrassem no territoacuterio receacutem-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto

mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as

mercadorias daiacute advindas poderiam trazer (cfr Cabral 2015 p27)

Eacute loacutegico conjecturar que num tal jogo de lucro faacutecil que natildeo podia natildeo contar com os

recursos naturais e com o capital humano africanos como meios ideais para minimizar os

custos e maximizar os lucros a preocupaccedilatildeo pela integraccedilatildeo dos africanos no clube dos

evoluiacutedos e emancipados seria uma espeacutecie de atentado ao espiacuterito de negoacutecio Este postulado

encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da

recusa do ldquooutrordquo o diferente feito uma ameaccedila para o ldquonoacutesrdquo ideologicamente construiacutedo e

consagrado como o uacutenico paradigma possiacutevel de humanidade na seguinte declaraccedilatildeo

havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se

recusaram no seacuteculo de Colombo em reconhecer seus semelhantes homens

degradados que povoavam o novo mundo [hellip] Era impossiacutevel fixar um

instante do olhar no selvagem sem ler o anaacutetema escrito natildeo digo somente na

sua alma mas ateacute na forma exterior do seu corpo (De Maistre Joseph Apud

Ceacutesaire 1978 p 33)

Esta declaraccedilatildeo deixa transparecer uma inferecircncia loacutegica quase irrefutaacutevel de que o referido

anaacutetema dos indiacutegenas soacute natildeo se consumou ao extermiacutenio na perspectiva do colono por

razotildees de iacutendole puramente utilitarista como se depreende nesta passagem do jaacute citado autor

nesta transcriccedilatildeo de Ceacutesaire

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sob o ponto de vista de selecccedilatildeo consideraria deploraacutevel o desenvolvimento

numeacuterico [hellip] dos elementos amarelos e negros que seriam de eliminaccedilatildeo

difiacutecil Se todavia a sociedade futura se organizar numa base dualista com

uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raccedila inferior confiada agrave

mais grosseira matildeo-de-obra eacute possiacutevel que este uacuteltimo papel incumba aos

elementos amarelos e negros Neste caso aliaacutes natildeo seria um embaraccedilo mas

uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre Joseph Apud Ceacutesaire

1978 p 33)

Fica desvendado nestes dizeres do De Maistre o retrato do narcismo nihilista de muitos

artistas da europa colonial consubstanciado na ideia e na pretensatildeo de uma raccedila superior que

se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contaacutegio Eacute o drama de uma Europa

feita refeacutem pelo seu proacuteprio mito de pureza civilizacional uniracial um mito enganoso

pretensioso e pernicioso que potildee em causa a aspiraccedilatildeo de uma poliacutetica enquanto exigecircncia de

construccedilatildeo de uma comunidade humana na qual a consciecircncia da diversidade dos humanos e a

necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condiccedilatildeo ldquosine qua nonrdquo da

prosperidade e da sobrevivecircncia da proacutepria espeacutecie humana Lamentavelmente este

entendimento da poliacutetica como espaccedilo intermediaacuterio onde se joga a liberdade e interacccedilatildeo dos

humanos enquanto seres iguais e autoacutenomos eacute constantemente posto em causa como diz

Martha Nussbaum pelos apologistas deste mito que em todas as sociedades alimentam uma

falsa convicccedilatildeo de pureza etnocecircntrica ou ldquoclassececircntricardquo geradora de violecircncia contra os

excluiacutedos (cfr Nussbaum 2010 p 48) comprometendo a possibilidade de fazer da poliacutetica o

lugar por excelecircncia da profundidade humana

Para compreender as mais profundas motivaccedilotildees que levam os indiviacuteduos a um tal instinto

nihilista Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi que examina a possiacutevel

conexatildeo existente entre os domiacutenios psicoloacutegico e poliacutetico Com efeito Gandhi concluiacutera que

os desejos gananciosos o instinto de agressatildeo e a ansiedade narcisista satildeo empecilhos para a

edificaccedilatildeo de uma verdadeira civilizaccedilatildeo humana Pelo que a luta poliacutetica pela construccedilatildeo de

uma civilizaccedilatildeo humana assente nos pilares da liberdade empatia e igualdade deve ser

precedida de uma luta contra o medo do outro a ganacircncia e o instinto de agressatildeo narcisista

intriacutensecos em cada indiviacuteduo (cfr Nussbaum 2010 pp 48-50) E se partimos da hipoacutetese de

que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multidotildees ao oacutedio ao genociacutedio e agrave

instrumentalizaccedilatildeo dos ldquooutrosrdquo tidos como da raccedila inferior ou sub-humana ocorre mais em

contextos de pouca capacidade criacutetica ou de uma intelectualidade materialista ou

ldquoventriacuteloquerdquo usando a expressatildeo de Fabien Eboussi Boulaga isto eacute de uma intelectualidade

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corrupta desprovida de princiacutepios eacuteticos e humanistas forccediloso eacute concluir que por mais que a

Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizaccedilatildeo dos africanos natildeo teria condiccedilotildees

efectivas de o fazer ante a sua ganacircncia e arrogacircncia eurocentristas encorajadas por uma

jactacircncia ostensiva feito veneno instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do

lucro cuja solidificaccedilatildeo se daacute com o asselvajamento dos africanos em geral e dos negros em

particular

Eacute precisamente este instinto egoiacutesta e materialista que transparece na maneira como Ernest

Renan concebe o colonialismo Para ele o colonialismo eacute uma necessidade poliacutetica de

primeira ordem eacute a conquista de um paiacutes de raccedila inferior pela raccedila superior que se instala na

coloacutenia atraveacutes de um governo Trata-se na perspectiva deste autor de algo de extrema

normalidade que nada tem de chocante A colonizaccedilatildeo soacute se torna chocante se e somente se

as conquistas forem entre raccedilas iguais Assim se por um lado estas conquistas devem ser

desencorajadas e censuradas entre raccedilas iguais elas devem ser encorajadas entre as raccedilas

desiguais porque a regeneraccedilatildeo ou degeneraccedilatildeo de raccedilas inferiores pelas raccedilas superiores

deve estar na ordem providencial da humanidade ldquoRegere imperio populosrdquo eis a nossa

vocaccedilatildeo A natureza criou uma raccedila de trabalhadores industriais ndash eacute a raccedila chinesa uma de

jornaleiros agriacutecolas ndash eacute a raccedila negra [hellip] uma raccedila de senhores e de soldados eacute raccedila

europeiardquo Nesta oacuteptica a reduccedilatildeo desta nobre raccedila agrave classe trabalhadora em condiccedilotildees

degradantes como as dos negros e dos chineses gera revolta (cfr Renan 1967 pp 69-70) O

mais perplexo em tudo isso eacute que Renan numa enorme ousadia intelectual natildeo se tenha

inibido do seu instinto de superioridade racial ao defender de forma paradoxal numa obra

intitulada ldquoLa Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la Francerdquo a seguinte convicccedilatildeo

noacutes esperamos natildeo a igualdade mas sim a dominaccedilatildeo O paiacutes de raccedila

estrangeira deveraacute voltar a ser um paiacutes de servos de jornaleiros agriacutecolas ou

de trabalhadores industriais Natildeo se trata de suprimir as desigualdades entre

os homens mas de as ampliar e as converter em lei (Renan 1967 p69-70)

Uma visatildeo demasiado materialista e narcisista que mereceu num tom iroacutenico a criacutetica de

Ceacutesaire que qualifica o colono muito distinto muito humanista e muito cristatildeo do seacuteculo XX

como uma autecircntica encarnaccedilatildeo de Hitler Eacute o retrato do colono que traz em si segundo

Ceacutesaire ldquoum Hitler que se ignora que vive nele e que eacute o seu demoacutenio e se o vitupera eacute por

falta de loacutegica ou pelo instinto de afinidade racial pois os factos atestam que o que muitos

deles natildeo perdoam a Hitler natildeo eacute o crime em si nem tatildeo-pouco o crime contra a humanidade

mas o crime contra o homem branco a humilhaccedilatildeo do homem brancordquo Assim natildeo restam

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duacutevidas de que do ponto de vista do seu desenvolvimento socio-histoacuterico a colonizaccedilatildeo eacute

uma suprema barbaacuterie um nazismo pouco expressivo por ser aplicado aos negros e aos aacuterabes

de Aacutefrica Mas na sua essecircncia um tal narcisismo constitui a negaccedilatildeo mais eloquente do

humanismo universal e formal reivindicado por Fanon e ao mesmo tempo uma clara

renuacutencia dos ideais filosoacuteficos morais e cristatildeos de uma civilizaccedilatildeo decaiacuteda (cfr Ceacutesaire

1978 pp 18-19)

Estaacute assim denunciada a patologia de uma civilizaccedilatildeo que fundou a sua filosofia de acccedilatildeo na

estigmatizaccedilatildeo do ldquodiferenterdquo e na fragmentaccedilatildeo do mundo em puro e impuro Eacute a construccedilatildeo

patoloacutegica usando a expressatildeo da Nussbaum de um ldquonoacutesrdquo que se julga imaculado e de um

ldquoelesrdquo preconceitualmente denotado vil perigoso e contagioso Esta denunciada patologia

obriga-nos a retomar algumas das questotildees supra referenciadas tais como eacute possiacutevel pensar a

missatildeo civilizadora da Europa colonial num contexto de clara recusa da alteridade ou de

reconhecimento do africano como sujeito autoacutenomo dotado de razatildeo e de humanidade

Como compreender uma missatildeo civilizadora assente numa loacutegica social do segundo excluiacutedo

isto eacute numa loacutegica social fracturante e nihilista Seraacute que Aacutefrica ao engajar-se na luta pela

descolonizaccedilatildeo teraacute efectivamente recusado o projecto de desenvolvimento que configurava

a missatildeo civilizadora da potecircncia colonial Vamos no proacuteximo ponto tentar encontrar alguns

elementos de resposta a estes questionamentos em certa medida jaacute respondidos

7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta uma antiacutetese agrave pretensatildeo colonial da emancipaccedilatildeo

da Aacutefrica dos africanos

A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta da sociedade ou seja a bipolarizaccedilatildeo social assente no

princiacutepio da desigualdade entre as cidades dos homens isto eacute dos europeus e os bairros

indiacutegenas ou dos selvagens categorias sociais criadas pelo proacuteprio colono contradiz agrave

partida qualquer pretensatildeo colonial de reconhecimento e integraccedilatildeo da Aacutefrica e dos africanos

no universalismo humano (cfr Fanon 1968 p 27 ou 2002 p 453) Aliaacutes a estrutura social

montada pelo colono determinava ldquoa priorirdquo que as relaccedilotildees entre os habitantes dos dois

mundos fossem de exploradores e explorados dominadores e dominados opressores e

oprimidos superiores e inferiores homens e sub-homens Conveacutem no entanto sublinhar que

toda a violecircncia colonial tinha como grande propoacutesito a criaccedilatildeo de um ambiente de medo e

inibiccedilatildeo do colonizado no intuito de facilitar a dinamizaccedilatildeo da exploraccedilatildeo e a pilhagem de

recursos naturais num contexto inovador de mercantilismo que muito precisava do concurso

forccedilado dos proacuteprios indiacutegenas Para dar conta do dinamismo interno de uma tal

compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta Fanon escreve

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em sua zona o colono potildee em marcha o movimento de dominaccedilatildeo de

exploraccedilatildeo e de pilhagem Na outra zona a coisa colonizada oprimida e

espoliada alimenta como pode esse movimento [hellip] as mateacuterias-primas vatildeo

e vecircm legitimando a presenccedila do colono Enquanto o acocorado mais morto

do que vivo o colonizado se eterniza num sonho [hellip] o colono faz histoacuteria

Sua vida eacute uma epopeia uma odisseia (Fanon 1968 p 38 ou 2002 p 463)

Como se pode depreender mais uma vez este maniqueiacutesmo eacute em si mesmo uma antiacutetese de

qualquer projecto civilizador natildeo soacute pelo facto de se constituir num factor provocador de

desprezo e ignomiacutenia dos colonizados mas tambeacutem e sobretudo por ser um factor

desestabilizador suscitador de oacutedio e de violecircncia entre os habitantes das duas zonas Cocircnscio

desta tensatildeo latente e subjacente a esta configuraccedilatildeo geopoliacutetica opressiva o colono interpocircs

como deduz Fanon uma estrutura fronteiriccedila forte e intimidatoacuteria capaz de assegurar a

atmosfera de submissatildeo e de inibiccedilatildeo dos explorados tal como se pode ler

o mundo colonizado eacute um mundo cindido em dois A linha divisoacuteria a

fronteira eacute indicada pelos quarteis e delegacias de poliacutecia Nas coloacutenias o

interlocutor legal e institucional do colonizado o porta-voz do colono e do

regime de opressatildeo eacute o gendarme ou o soldado Nas sociedades capitalistas o

ensino religioso ou leigo a formaccedilatildeo de reflexos morais [hellip] criam em torno

do explorado uma atmosfera de submissatildeo e inibiccedilatildeo que torna

consideravelmente mais leve a tarefa das forccedilas da ordem [hellip] O

intermediaacuterio do poder utiliza uma linguagem de pura violecircncia [hellip] natildeo

torna mais leve a opressatildeo natildeo dissimula a dominaccedilatildeo Exibe-as manifesta-

as com a boa consciecircncia das forccedilas da ordem [hellip] leva a violecircncia agrave casa e

ao ceacuterebro do colonizado (Fanon 1968 p 28 ou Fanon 2002 pp 453-454)

Este e outros cenaacuterios permitem situar a originalidade do instinto colonial no princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica e social e no de desigualdade econoacutemica entre duas espeacutecies a

branca e a negra ou aacuterabe pois a patologia narcisista de superioridade racial estruturou no

imaginaacuterio individual e colectivo do colonizador a convicccedilatildeo de que ser branco significa ser

superior e consequentemente rico e ser negro ou aacuterabe africano eacute o oposto disto (cfr Fanon

1968 p 29 ou Fanon 2002 p 455) Este maniqueiacutesmo que toma balanccedilo no plano simboacutelico

no qual o branco remete agrave noccedilatildeo do bem do belo e do bom e o negro o seu oposto

desembarca no plano concreto com reflexos inofuscaacuteveis na configuraccedilatildeo geograacutefica da

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estrutura social montada pelo regime colonial A cidade do colono eacute uma cidade vida

enquanto no bairro do colonizado se sobrevive milagrosamente a cidade do colono eacute segura

mas no bairro indiacutegena a inseguranccedila eacute o proacuteprio cartatildeo-de-visita a cidade do colono eacute uma

cidade soacutelida toda de pedra e ferro iluminada asfaltada as ruas limpas lisas sem buracos

mas o bairro indiacutegena eacute o oposto disso Na cidade do colono os habitantes estatildeo

permanentemente saciados e repletos de boas coisas Em contrapartida o bairro indiacutegena ou

negro eacute um lugar mal-afamado e povoado eacute o bairro de homens mal-afamados aiacute nasce-se

natildeo importa como nem onde e morre-se natildeo importa a onde nem de quecirc Eacute um mundo sem

intervalos ou seja os homens estatildeo uns sobre os outros eacute o mundo dos famintos dos

analfabetos e dos doentes e indigentes (cfr Fanon 1968 p 28-29 ou Fanon 2002 pp 453-

454)

O mundo colonial diz Fanon forjou um povo sem alma e sem referecircncia originaacuterias O

colono criou categorias sub-humanas para destruir a autoestima dos negros e dos aacuterabes de

Aacutefrica Fez deles uma espeacutecie de quintessecircncia do mal considerando-os como seres

impermeaacuteveis agrave moral e agrave eacutetica com ausecircncia e negaccedilatildeo de valores mal absoluto elementos

corrosivos que destroem tudo o que se aproxima deles elementos deformadores que

desfiguram tudo o que se refere agrave esteacutetica ou agrave moral depositaacuterios de forccedilas cegas (cfr

Fanon 1968 p 31 ou Fanon 2002 p 456) Esta convicccedilatildeo levou M Meyer a afirmar em

plena Assembleia Nacional Francesa que

[hellip] natildeo era necessaacuterio prostituir a Repuacuteblica fazendo penetrar nela o povo

argelino Os valores com efeito se tornam irreversivelmente envenenados e

pervertidos desde que entram em contacto com a populaccedilatildeo colonizada Os

costumes do colonizado suas tradiccedilotildees [hellip] sobretudo seus mitos satildeo a

proacutepria marca desta indigecircncia desta depravaccedilatildeo constitucional (Fanon

1968 p31 ou Fanon 2002 p 456)

Este discurso forjado no seu espaccedilo existencial levou Ceacutesaire (1978 p17) agrave conclusatildeo de que

a Europa colonial se esmerou antes de mais em descivilizar primeiro o proacuteprio colonizador

embrutececirc-lo degradaacute-lo despertaacute-lo para os instintos ocultos para a cobiccedila para a violecircncia

para o oacutedio racial e para o relativismo moral e posteriormente descivilizar o colonizado

Todo este quadro legitima sobremaneira o anseio dos africanos pela liberdade e pelo

reconhecimento da sua dignidade Para desmascarar o argumento segundo o qual o

engajamento dos africanos na luta pela descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica teraacute sido uma espeacutecie de

recusa do desenvolvimento do Continente africano pelos africanos Ceacutesaire passa em revista

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e em jeito de balanccedilo o vasto fresco dos horrores da dominaccedilatildeo colonial em particular a

francesa em Aacutefrica deixando claro que nenhum desenvolvimento vale mais do que a

dignidade humana e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos povos Apoiando

o seu raciociacutenio nos factos Com efeito Ceacutesaire afirma que a equaccedilatildeo mais ajustada agrave

realidade vivida eacute colonizaccedilatildeo igual coisificaccedilatildeo e natildeo desenvolvimento porque no fim de

contas o fiel da balanccedila pende mais para prejuiacutezos do que para ganhos tal como consta do

longo extrato que extraiacutemos do texto de Ceacutesaire

falam-me de progressos de realizaccedilotildees de doenccedilas curadas de niacuteveis de vida

elevados acima de si proacuteprios eu falo de sociedades esvaziadas de si

proacuteprias de culturas espezinhadas de instituiccedilotildees minadas de terras

confiscadas de religiotildees assassinadas de magnificecircncias artiacutesticas

aniquiladas de extraordinaacuterias possibilidades suprimidas Lanccedilam-me agrave cara

factos estatiacutesticas quilometragens de estradas de canais de caminhos-de-

ferro mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano falo

dos que no momento em que escrevo cavam agrave matildeo o porto de Abidjan falo

de milhotildees de homens arrancados aos seus deuses agrave sua terra aos seus

haacutebitos agrave sua vida agrave danccedila agrave sabedoria falo de milhotildees de homens a quem

inculcaram sabiamente o medo o complexo de inferioridade o tremor a

genuflexatildeo o desespero o servilismo Laccedilam-me em cheio aos olhos

toneladas de algodatildeo ou cacau exportado hectares de oliveiras ou de vinha

plantadas mas eu falo de economias naturais de economias harmoniosas e

viaacuteveis de economias adaptadas agrave condiccedilatildeo do homem indiacutegena

desorganizadas de culturas de subsistecircncias destruiacutedas de subalimentaccedilatildeo

instalada de desenvolvimento agriacutecola orientada unicamente para benefiacutecio

das metroacutepoles de rapinas de produtos de rapinas de mateacuterias-primas

Ufanam-se de abusos suprimidos eu tambeacutem falo de abusos mas para dizer

que aos antigos ndash muito reais ndash sobrepuseram outros muito detestaacuteveis

Falam-me de tiranos locais trazidos agrave razatildeo poreacutem constato que regra geral

eles fazem muito boa parelha com os novos e que destes aos antigos e vice-

versa se estabeleceu em detrimento dos povos um circuito de bons serviccedilos

e cumplicidade Falam-me de civilizaccedilatildeo eu falo de proletarizaccedilatildeo e de

mistificaccedilatildeo [hellip] Cada dia que passa cada negaccedilatildeo de justiccedila cada carga

policial cada reclamaccedilatildeo operaacuteria afogada em sangue cada escacircndalo

abafado cada expediccedilatildeo punitiva cada poliacutecia e cada miliciano fazem-nos

sentir o preccedilo das nossas velhas sociedadesrdquo (Ceacutesaire 1978 pp25-26)

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Disso decorre que a essecircncia do colonialismo tal como realccedilou Maacuterio Pinto de Andrade

reside em dois aspectos no ldquoregime de exploraccedilatildeo desenfreada de imensas massas humanas

que encontra a sua legitimidade e sustentabilidade na violecircnciardquo e na ldquoforma moderna de

pilhagemrdquo (cfr Ceacutesaire Aimeacute 1978 p7) Assim se os niacuteveis cientiacuteficos tecnoloacutegicos e

organizacionais ostentados pela Europa colonial lhe conferem a todos os tiacutetulos um estatuto

de uma civilizaccedilatildeo o mesmo jaacute natildeo se daacute do ponto de vista da sua relaccedilatildeo com as coloacutenias

Por esta razatildeo Ceacutesaire chamou-lhe de civilizaccedilatildeo decadente enferma e moacuterbida por se ter

revelado incapaz de resolver os grandes problemas que criou nomeadamente o do

proletariado e o colonial Ouccedilamos Ceacutesaire a respeito

ldquouma civilizaccedilatildeo que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu

funcionamento suscita eacute uma civilizaccedilatildeo decadente Uma civilizaccedilatildeo que

prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais eacute uma civilizaccedilatildeo

enferma Uma civilizaccedilatildeo que trapaceia com os seus princiacutepios eacute uma

civilizaccedilatildeo moacuterbidardquo (Ceacutesaire 1978 p13)

Teratildeo Fanon Ceacutesaire Sartre e outros exagerado na sua criacutetica do colonialismo

Possivelmente sim Contudo a larga unanimidade existente sobre o assunto permite-nos

atribuir uma certa objectividade e verdade histoacuterica a muitos dos enunciados que nos satildeo

dados a apreciar Reneacute Grousset (1954 p 76) quase duas deacutecadas antes de Ceacutesaire

analisando o percurso evolutivo das civilizaccedilotildees constatava que nenhuma civilizaccedilatildeo

apareceu logo no iniacutecio tatildeo promissora e tatildeo ameaccedilada como a civilizaccedilatildeo ocidental A sua

ameaccedila em seu entender natildeo vem apenas da espada nuclear vem tambeacutem e sobretudo do

egoiacutesmo e do materialismo que inspiram os povos que a comandam Estaacute portanto evidente

que o regime colonial europeu foi essencialmente uma conquista assente em fins de

exploraccedilatildeo dos indiacutegenas Esta ideia ceacutesairiana de uma Europa exploradora no sentido

accedilambarcador do termo aparece tambeacutem no ldquoLe geacutenociderdquo no qual Jean-Paul Sartre eacute

perentoacuterio em afirmar que a colonizaccedilatildeo natildeo eacute uma mera conquista como foi a anexaccedilatildeo de

Alsace-Lorraine pela Alemanha na sua verdadeira natureza a colonizaccedilatildeo eacute um acto de

genociacutedio cultural Numa ldquodeacutemarcherdquo fenomenoloacutegica Sartre mostra que a colonizaccedilatildeo natildeo

acontece sem a liquidaccedilatildeo sistemaacutetica de todas as caracteriacutesticas particulares de sociedades

nativas e simultaneamente sem a recusa da sua integraccedilatildeo massiva na metroacutepole e sem a

negaccedilatildeo do seu acesso agraves vantagens da metroacutepole

Concordamos assim com Sartre que a colonizaccedilatildeo eacute um sistema de negoacutecio que requer

inevitavelmente a existecircncia de um sub-proletariado nacional forccedilado a trabalhar por

miseraacuteveis salaacuterios Vale dizer que no sistema colonial a coloacutenia teve uma funccedilatildeo

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instrumental ou seja foi usada para vender as suas mateacuterias-primas e seus produtos agriacutecolas

a um preccedilo irrisoacuterio agrave metroacutepole Em retorno a metroacutepole vendeu os bens manufaturados agraves

coloacutenias a preccedilo do mercado Este negoacutecio que contou com a comparticipaccedilatildeo da burguesia

nacional condenou os africanos a viverem num submundo de miseacuteria como negros fantasmas

continuamente recordados da sua condiccedilatildeo de sub-humanos (cfr Sartre 1967 p39)

Estaacute visto que a colonizaccedilatildeo partindo da efiacutegie aqui apresentada eacute um projecto oposto aos

ideais civilizacionais tal como alude Ceacutesaire ao desmistificar a tentativa de atribuir ao

processo de colonizaccedilatildeo uma intenccedilatildeo civilizadora A maldiccedilatildeo mais comum nesta mateacuteria eacute

deixarmo-nos iludir de boa-feacute por uma hipoacutetese colectiva e haacutebil em enunciar mal os

problemas para melhor justificar as soluccedilotildees que se lhes aplicam conferindo facilmente

legitimidade a um conjunto de praacuteticas abominaacuteveis atribuindo-lhes a categoria de um mal

necessaacuterio com vista a um fim nobre ndash a civilizaccedilatildeo dos selvagens (Ceacutesaire 1978 p14)

Conclusatildeo

A reflexatildeo feita nas paacuteginas anteriores permitiu-nos deduzir a existecircncia de uma possiacutevel

analogia entre a colonizaccedilatildeo e a civilizaccedilatildeo do ponto de vista teoacuterico conceitual Mas do

ponto de vista praacutetico tudo natildeo passou de uma simples ilusatildeo Uma ilusatildeo cimentada pela

foacutermula do pedantismo cristatildeo que procurou atribuir uma presumiacutevel missatildeo civilizadora ao

fenoacutemeno de colonizaccedilatildeo ao estabelecer a equaccedilatildeo cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria A anaacutelise mostrou que do ponto de vista doutrinal e factual

uma tal equaccedilatildeo eacute insustentaacutevel porquanto a colonizaccedilatildeo se assumiu mais como violecircncia

contra os povos colonizados e exploraccedilatildeo dos seus recursos naturais e da sua forccedila de trabalho

e nunca como projecto colonial de emancipaccedilatildeo dos povos colonizados Esta conclusatildeo pode

ter sido previsiacutevel mas como foi referido no princiacutepio deste trabalho esta anaacutelise sobre o

colonialismo encontra a sua utilidade neste texto na medida em que se nos apresenta como

movimento historicizante que constitui a mateacuteria e a forma que nos permitem vislumbrar o

horizonte teleoloacutegico da descolonizaccedilatildeo enquanto proposta de emergecircncia do novo nova

realidade novos seres e novo continente uma espeacutecie de antiacutetese do mundo colonial

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Obras do autor

1 FANON Frantz Frantz Fanon Ouevres Paris Eacuteditions La Deacutecouverte 2011

Paacutegina 43 de 74

2 ----------------------- Les damneacutes de la terre Paris Eacuteditions la Deacutecouverte (Preacuteface de Jean-Paul Sartre) 1961

3 ----------------------- Os condenados da terra Rio de Janeiro ndash Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Traduccedilatildeo de Joseacute

L de Melo 1968

Outras obras

1 BOURDIEU Pierre Sociologie de lrsquoAlgerie Paris PUF 1958

2 BURAWOY Michael Marxismo encontra Bourdieu Campinas Editora Unicamp 2010

3 CABRAL Iva A Primeira Elite Colonial Atlacircntica Dos ldquohomens honrados broncosrdquo de Santiago agrave

ldquonobreza da terrardquo Finais do seacutec XV ndash iniacutecio do seacutec XVII Cabo Verde Pedro Cardoso Livraria 2015

4 CEacuteSAIRE Aimeacute Discurso sobre a colonizaccedilatildeo Lisboa Livraria Saacute da Costa Editora 1978

5 CONSTATINI Dino Mission civilisatrice le role de lrsquohistoire colonial dans la construction de lrsquoidentiteacute

politique franccedilaise Paris Eacuteditions de la Deacutecouverte 2008

6 DE VIGNY Alfred ldquoCritique des anedotes historiques sur Alger de Jean-Toussaint de Merlerdquo In Bancel

Nicolas Blanchard Pascal Verges Franccediloise La Republique colonial Paris Albin Michel Coll Pluriel 2003

7 FOLLIET Joseph Le droit de colonisation Eacutetude de morale sociale et international Lyon GNeveu 1932

8 GIRARD Reneacute La Violence et le Sacreacute Paris Grasset reacuteeacute Pluriel 1972

9 GROUSSET Reneacute Lrsquohomme et son histoire Paris Plon 1954

10 NUSSBAUM C Martha Not For Profit Why Democracy Needs The Humanities Oxford Princeton

University Press 2010

11 RENAN Ernest La Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la France Paris Union Geacuteneacuterale drsquoEacuteditions 1967

12 SARTRE Jean-Paul ldquoLe Genociderdquo In Les Temps modernes nordm259 Gallimard Decembre 1967

13 SEMELIN Jacques Purifier et Deacutetruir Usages politiques de massacres et geacutenocides Paris Seuil 2005

14 SENGHOR Leopold Sedar (1964) On African Socialism London Pall Mall Press 1964

Artigos e Dicionaacuterios

1 BOURDIEU Pierre (1987) Le Sens Commum Chose dites In Fildwork in philosophy Paris Les Eacuteditions de

Minuit

2 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea Academia das Ciecircncias de Lisboa Editorial Verbo 2001

3 Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura Editorial Verbo Lisboa nordm5

4 OLUacuteFEacuteMI Taacuteiwo (2004) ldquoPost-Independence African Political Philosophyrdquo In Kwasi Wiredu A

Companion to African Philosophy Cornwall MPG Books Ltd Bodmim 2004 pp 243-260

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PEDAGOGIA laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO

LIBERAL EM AacuteFRICA

INAacuteCIO VALENTIM a

inaciovalentim82gmailcom

Resumo

Nada eacute tatildeo enobrecedor como ensinar e aprender A nobreza reside na consciecircncia estaacute no

encontro com o outro estaacute na disponibilidade que eacute criada para si e para o outro e estaacute

sobretudo no comprometimento que se tem consigo mesmo e com o outro O outro como o

rosto como memoacuteria e como um ldquooutro eurdquo Isto eacute o que ensinar e aprender nos oferece e nos

sugere Ter a noccedilatildeo de que todo o acto de ensinar eacute essencialmente um processo de aprender

de aprendizagem e de dar a possibilidade de interrogar-se sobre o aprendido e sobre

aprendizagem O objectivo deste artigo eacute de reflectir sobre a hermenecircutica do aprender o que

chamamos aprender e como acontece

Palavras-chave aprender comprometimento inacessibilidade responsabilidade fazer e

ensinar

Abstract

Nothing is so ennobling as teaching and learning The nobility lies in its consciousness is in

the encounter with the other it is in the availability that is created for itself and to the other

and itrsquos mainly in the compromise that it has with oneself and with the other The other as the

face as memory and as other selfrdquo This is what teaching and learning offers and suggests to

us Have the notion that the whole act of teaching is essentially a process of learning learning

and giving the possibility to question them about the learned and about learning The aim of

this article is to reflect on the hermeneutics of learning what we learn and how it happens

Keywords learning commitment inaccessibility responsibility doing and teaching

a Doutor em Filosofia pela Universidade Carlos III de Madrid Professor e Investigador Titular Director Geral do

Instituto Superior Politeacutecnico Sol Nascente Huambo - Angola wwwispsnorg

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O termo laquoaprenderraquo oferece agrave primeira vista com uma leitura muito atenta uma ideia muito

escorregadia apresenta algo de inacessibilidade algo que nos passa entre os dedos como

aacutegua como liacutequido como vento como espiacuterito Enfim como algo que natildeo nos eacute dado

aprisionar fiacutesica e mentalmente No entanto acreditamos que aprendemos e acreditamos que

podemos fazer com que outras pessoas aprendam connosco ou atraveacutes de noacutes e natildeo hesitamos

muitas vezes em oferecer-nos como instrumento de aprendizagem para os outros Apesar de

ser um termo muito duro no sentido de responsabilidade esta responsabilidade acaba por estar

ou ficar diluiacuteda na confusatildeo entre o aprender e o fazer entre o aprender e o ensinar entre o

aprender e o saber porque confundimos ou fundimos as duas perspectivas antecipando

precisamente o acto do segundo que eacute dirigido ou orientado para o aprendiz Enquanto

mecanismo que conduz agrave aquisiccedilatildeo do saber a aprendizagem ldquoopotildee-se ao ensinamento ou ao

ensino cujo objectivo eacute de dispensar conhecimentos e saberesrdquo Mas esta oposiccedilatildeo natildeo eacute de

ruptura porque natildeo pode haver aprendizagem senatildeo por intermeacutedio do ensino ou de quem

ensina

O aprender-se bem eacute reflectido sobretudo a partir da acccedilatildeo enquanto resultado e resposta do

aprender natildeo obstante enquanto fenoacutemeno o aprender eacute um acto de natureza invisiacutevel e

quase que inapreensiacutevel e intocaacutevel A sua visibilidade soacute eacute passiacutevel para o proacuteprio sujeito

isto eacute para o aprendiz ou no aprendiz Dificilmente eu como promotor ou enquanto promotor

de aprendizagem posso dizer com exactidatildeo o momento da captaccedilatildeo do sujeito do elemento

aprendido posso supor atraveacutes de perguntas que faccedilo ou que tenho que responder dele mas

apenas eacute uma suposiccedilatildeo Eacute pois esta complexidade que vai tambeacutem fazer com que o acto de

aprender seja acima de tudo um acto divino um momento ou uma instacircncia do natildeo humano

Soacute aquele que diviniza-se chega a aprender consegue aprender e supera com isso a primeira

instacircncia do humano E divinizar-se significaria ter um autocontrolo sobre os impulsos do

saber os impulsos desenfreados do desejo de aprender e de assumir-se como o promotor de

aprendizagem Mas este processo soacute eacute possiacutevel com um povo ou com gente que agrave partida natildeo

rejeita preliminarmente a filosofia soacute eacute possiacutevel com gente que natildeo eacute dirigida e que natildeo eacute

paciente dos meacutedicos do povo como diria Nietzsche O aprender filosoacutefico apenas acontece

com e para gente satilde os ldquoenfermos que se contactam com a filosofia ficam ainda mais

enfermosrdquo porque de certa forma a filosofia soacute pode salvar e curar quem jaacute estaacute curado

quem reuacutene requisitos para a cura E foi assim que os gregos conseguiram fazer da filosofia a

sua proacutepria casa o seu mundo o seu lugar apesar de a filosofia vir de outros lugares virou a

casa dos gregos tornou-se ou transformou-se no elemento da definiccedilatildeo essencialmente grego

Os gregos souberam pegar naquilo que os outros povos abandonaram e fizeram dele o mais

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alto elemento do saber precisamente porque souberam utilizar laquoa arte de aprender

produtivamenteraquo utilizando para este efeito os seus saacutebios Contrariamente aos outros povos

que laquotecircm santos os gregos tecircm saacutebiosraquo diz Nietzsche e satildeo estes saacutebios que vatildeo fazer com

que a filosofia tenha um sentido profundo e original para o grego justificando assim a sua

aposta a sua protecccedilatildeo e a utilidade da sua futilidade

Apesar dos gregos terem podido trazer a filosofia das outras paradas orientais como diz

Nietzsche natildeo tiveram nenhuma moda que lhes pudesse ajudar ou facilitar as coisas Tiveram

que inventar a sua proacutepria imaginaccedilatildeo tiveram que filosofar com laquouma puberdade madura

onde brotava a fogosa alegria de uma vitoriosa e valente idade viril1raquo Em outras palavras

tiveram que superar a idade da infacircncia humana a infacircncia social e tiveram que se fazer

responsaacuteveis Esta eacute tambeacutem uma das condiccedilotildees de aprendizagem ou do aprender fazer-se

responsaacutevel emancipar-se e dar conta de si e dos outros laquopois quanto mais fazemos sobre as

coisas mais pensamos sobre elas ou mais desenvolvemos pensamentos sobre elasraquo O nosso

aprender estaacute relacionado com um espaccedilo concreto com um lugar com uma referecircncia com

um encontro-chegada-regresso No fundo o nosso aprender estaacute relacionado com uma histoacuteria

concreta ou com uma meta-histoacuteria estaacute relacionado com um padratildeo que nos vai dizer que as

condiccedilotildees para aprender exigem abc A tarefa de aprender natildeo eacute compatiacutevel com o tempo

apressado com o tempo que se assimila ao material O aprender eacute como ler um livro que estaacute

destinado a

[hellip] leitores tranquilos a homens que ainda natildeo foram arrastados pela vertiginosa pressa

da nossa agitada era e que ainda natildeo sentem o prazer idolatra quando olham para baixo das

sua rodas [hellip] quer dizer Haacute poucos homens Estes ainda natildeo estatildeo habituados a

estabelecer o valor de cada coisa segundo a poupanccedila ou os gastos do tempo estes laquoainda

tecircm temporaquo ainda lhes eacute permitido sem culpar-se de nada seleccionar e reunir as melhores

horas da jornada e os seus momentos mais fecundos e vigorosos para reflectir sobre o

futuro da nossa educaccedilatildeo estes podem ter a certeza que chegaram agrave noite de uma forma

proveitosa e digna a saber na meditation generis futuri (meditaccedilatildeo sobre o geacutenero futuro)

Um homem assim ainda natildeo se esqueceu de pensar enquanto lecirc ainda compreende o

segredo de ler entre linhas mais ainda eacute de uma natureza tatildeo prodigiosa que reflecte sobre

o lido talvez muito tempo depois de ter deixado o livro E sem duacutevidas natildeo para escrever

uma resenha ou outro livro mas simplesmente para reflectir2

O aprender seria portanto um viver sem pressa um estar sem pressa um existir sem pressa

Um ser no desconhecimento Mas sabemos que isso natildeo eacute possiacutevel Natildeo eacute possiacutevel saber sem

1Cf Friedrich Nietzsche Obras completas Vol 1 Filosofiacutea en la Eacutepoca Traacutegica de los Griegos Trad e introduc

Joan B et alt Tecnos Madrid 2011 p 574 2 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 549

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ser conotado natildeo eacute possiacutevel saber sem ser procurado natildeo eacute possiacutevel saber sem falar do que se

sabe natildeo eacute possiacutevel saber sem comunicar o sabido Mas dizemos que natildeo eacute possiacutevel e na

verdade eacute possiacutevel porque natildeo estamos a falar da mesma coisa saber natildeo eacute aprender Satildeo

duas coisas completamente distintas mas apesar de tudo uma coisa tecircm em comum a fuga da

fanfarronice e o desejo desenfreado de confrontaccedilatildeo A atestaccedilatildeo do aprendido a examinaccedilatildeo

do sabido Tecircm em comum aquilo que falta ao homem moderno o excesso de si a auto-

referecircncia desmedida O aprender conduz-nos ao desejo de estar tatildeo bem formados a tal ponto

de natildeo pensarmos mais em noacutes mesmos ou na nossa formaccedilatildeo e ateacute ao ponto de desprezarmos

a nossa proacutepria formaccedilatildeo Contrariamente ao homem moderno diz Nietzsche haacute que evitar

fazer de noacutes mesmos uma espeacutecie de homo mesura precisamente porque natildeo somos criteacuterio

seguro de nada natildeo somos criteacuterio seguro do absoluto Aqui o aprender deixa de ser um

criteacuterio e passa a ser uma meta e a meta aqui eacute que aquele que estaacute aprender se entregue

completamente com laquoa maacutexima confianccedila agrave tutela do autor de quem apenas pode falar a partir

da sua proacutepria ignoracircncia e da consciecircncia da ignoracircnciaraquo O aprendiz eacute aquele de quem

Nietzsche faz este tremendo apelo porque eacute nele que ele acredita

[hellip] Deixai-vos encontrar voacutes os isolados em cuja existecircncia acredito Voacutes

os altruiacutestas voacutes que padeceis em voacutes mesmos as dores e as perversotildees do

espiacuterito (hellip) Voacutes os contemplativos cujo olhar natildeo palpa com pressurosa

suspeita o externo das coisas mas sim sabe encontrar a entrada ao nuacutecleo da

essecircncia Eu vos convoco apenas para esta vez natildeo vos escondais nas

cavernas do vosso retiro e da vossa desconfianccedila Sejam quando menos

leitores deste livro para mais em frente com os vossos feitos acabar com ele

e deixa-lo no esquecimento Compreendeis que este livro estaacute destinado a ser

o vosso pronuacutencio quando voacutes mesmos com as vossas armas vos apresenteis

na palestra [hellip]3

Ao seu modo Nietzsche apresenta aqui a figura do aprendiz o docente o estudante e todos os

inquietos de espiacuterito como aqueles que satildeo isolados que satildeo altruiacutestas e que padecem das

dores da perversatildeo do espiacuterito O acto de aprender eacute incompatiacutevel com o tremendo de

confusatildeo eacute incompatiacutevel com o egoiacutesmo e com o egocentrismo e eacute incompatiacutevel com o

regradamente certo O aprender exige ruptura porque supotildee adaptaccedilatildeo a uma nova era a uma

nova realidade exige encontrar o outro dentro e fora de mim e exige um prestar atenccedilatildeo a

mim mesmo que natildeo seja necessariamente um narcisismo O aprender exige que sejamos uns

3 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 550

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contemplativos sem pressa de conhecer e de chegar sem pressa de afirmar ou de concluir

apenas se espera que sejamos contemplativos que admiram para melhor conhecer e trazer a

utilidade profunda mas sombria que estaacute aprisionada nas cavernas das nossas pressas O

aprender exige que a nossa contemplaccedilatildeo nos conduza ao encontro da essecircncia daquilo que

deve ser objecto do aprender Por isso cada vez que noacutes que estamos no eterno caminho de

aprender nos confrontamos com um livro com uma obra temos a possibilidade de sair dos

nossos retiros contraditoacuterios das nossas cavernas e das nossas desconfianccedilas Temos a

possibilidade de dar a conhecer a nossa opiniatildeo eacute o nosso pronuacutencio na palestra que pode

naturalmente chocar com os dois modelos do aprender propostos pela cultura educativa

moderna a saber

Por um lado a educaccedilatildeo como o espaccedilo da proposta do aprender deve ser extensiacutevel a todo o

territoacuterio por outro o laquoimpulso de reduccedilatildeo e debilitamento do mesmoraquo Desde muito cedo

quando a educaccedilatildeo comeccedilou a ser vista como um elo importante o homem apesar de alguns

constrangimentos sempre soube que seria de muito mais valia que ela fosse extensiacutevel para

todo o territoacuterio independentemente das questotildees poliacuteticas culturais econoacutemicas e religiosas

Natildeo obstante a sua extensatildeo sempre dependeraacute da vontade do Estado da disponibilidade do

Estado enfim da autorizaccedilatildeo do Estado Os gregos que fazem parte dos povos que pensaram

a educaccedilatildeo depois dos egiacutepcios e dos feniacutecios assumiram a inseparabilidade destes dois

momentos a educaccedilatildeo que deve chegar a todo o territoacuterio e a educaccedilatildeo que para ser educaccedilatildeo

tem que ser controlada pelo Estado A educaccedilatildeo deve ser controlada pelo Estado mas natildeo

necessariamente executada pelo Estado Em A Poliacutetica Aristoacuteteles foi muito bem claro em

dizer que a tarefa de educaccedilatildeo se bem eacute da comunidade natildeo obstante compete em primeiro

lugar ao Estado e soacute na impossibilidade deste de cobrir todas as partes eacute que o particular

assume tambeacutem ele a tarefa de educar Educar e por conseguinte o aprender desde este

ponto de vista nasce com um problema eacute um problema natildeo apenas no sentido de delegaccedilatildeo

de autorizaccedilatildeo mas tambeacutem no sentido da proacutepria autodestruiccedilatildeo Quem aprende destroacutei-se e

autodestroacutei-se na medida em que vai pondo de lado ou vai equacionando os fundamentos do

conhecimento anterior agrave sua formaccedilatildeo agrave sua educaccedilatildeo Como diz Fullat citado por Carlos

Francisco de Sousa Reis ldquoO acto educador especificamente humano eacute no seu nuacutecleo e fonte

entitativa confrontaccedilatildeo de duas consciecircncias confrontaccedilatildeo constitutivamente violenta4rdquo Para

Carlos Francisco Fullat procura aqui justificar a partir dos modelos de habilidades emperia a

forma como a educaccedilatildeo pode apresentar-se como acto educativo violento ou simplesmente

4Cf Carlos Francisco de Sousa Reis Educaccedilatildeo e cultura mediaacutetica Anaacutelise de implicaccedilotildees deseducativas

Acircncora editora Lisboa 2014 p 45

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como condiccedilatildeo da violecircncia Fullat segundo o nosso autor para encontrar os fundamentos da

educaccedilatildeo como condiccedilatildeo de violecircncia analisa inicialmente o surgimento ontoloacutegico da

civilizaccedilatildeo a partir de trecircs perspectivas a perpectiva do animal faber a perspectiva do animal

symbolicum e a perspectiva do animal sociale A partir destas trecircs perspectivas ele conclui

que a violecircncia eacute constitutiva de todos os actos educativos O ponto de partida da educaccedilatildeo eacute

visto portanto para Fullat desde uma perspectiva negativa desde uma antropologia negativa e

desde uma possibilidade eacutetica negativa Natildeo pode haver uma educaccedilatildeo que natildeo seja sobretudo

uma acccedilatildeo que arraste a negatividade consigo mesma Isto eacute uma acccedilatildeo que procura desfazer-

se do estado da ignoracircncia anterior O estado ou acccedilatildeo educativa eacute uma acccedilatildeo de

ldquodeplacementrdquo para um novo siacutetio um novo mundo uma nova aventura

As leituras ou melhor os textos utilizados por Fullat como exemplos patenteiam

naturalmente esta negatividade na relaccedilatildeo educativa Eacute o caso da visatildeo hobbesiana freudiana

e de Sartre das relaccedilotildees humanas que satildeo muitas vezes relaccedilotildees de poder da negatividade

isto eacute onde a manutenccedilatildeo do poder implica a perda do outro ou do espaccedilo do outro Nestes

autores destacam-se duas perspectivas inconciliaacuteveis ldquoo egoiacutesmo de ter e o sadismo de

dominarrdquo A educaccedilatildeo eacute vista como uma necessidade desenfreada de ter e ter sempre e cada

vez mais ao mesmo tempo que este desejo incontrolado eacute tambeacutem alimentado com a outra

necessidade de dominar e controlar tudo a todo custo Estas duas febres como lhe chama

Fullat resultam de uma eacutetica hedoniacutestica onde no campo hobbesiano o prazer eacute sinoacutenimo da

dominaccedilatildeo ldquoToda a eacutetica de Hobbes depende do seu pressuposto fundamental a inclinaccedilatildeo

geral da Humanidade para um desejo perpeacutetuo e sem descanso de adquirir poder e mais poder

desejo esse que soacute termina com a morte O ser humano eacute egoiacutesta (hellip) e a fim de poder estar

preparado para alcanccedilar o que deseja tem de procurar aumentar sempre cada vez mais o seu

poder5rdquo Natildeo poderia ter havido civilizaccedilatildeo se natildeo houvesse uma agressividade natural diria

Fullat de Francisco de Sousa O que noacutes consideramos como civilizaccedilatildeo teria sido aquilo que

pensadores como Hobbes ou Rousseau teriam visto como um princiacutepio do pacto natildeo pacto o

pacto simulado no caso de Rousseau A civilizaccedilatildeo nasce a partir da distorccedilatildeo de uma

realidade anterior e para permanecer deve tambeacutem continuar a distorcer esta mesma realidade

para poder construir um poder de dominaccedilatildeo e do egoiacutesmo Neste acircmbito a educaccedilatildeo aparece

como o aparelho protector do Estado manipulador e violento que utiliza as ideologias como a

praccedila da fecundaccedilatildeo das suas manipulaccedilotildees E porque o homem procura sobretudo ser feliz

diz Aristoacuteteles entatildeo muitas vezes natildeo escolhe os meios para ser feliz isto eacute natildeo estaacute

5 Cf Marques 2000 120 Apud Carlos Francisco de Sousa 2014 46

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disposto a abdicar de alguns meios que podem ser uacuteteis para a sua felicidade Eacute o caso da

felicidade pelo trabalho diraacute Francisco de Sousa mas o trabalho exerce uma forccedila contraacuteria

sobre a natureza e eacute o caso da educaccedilatildeo onde no educar

ldquoO homem exige a educaccedilatildeo mas esta implica a violecircncia da programaccedilatildeo

geneacutetica e da programaccedilatildeo social Educar eacute uma luta de consciecircncias em que

o educador sempre investe sobre o educando desde a cultura que se alimenta

da repressatildeo social imposta a Eros (o prazer) e Thanatos (a agressividade)6rdquo

Se bem podemos ver as teorias pessimistas como um exagero da negaccedilatildeo humana no sentido

do encontro pleno ainda assim nesta possiacutevel negaccedilatildeo do encontro pleno entre os humanos

nasce a possibilidade da vida do outro isto eacute o mesmo ldquosujeito que pode trazer a morte do

outro tambeacutem traz a sua vidardquo no embate do encontro entre os diferentes haacute sempre uma

possibilidade da nova vida de um novo existir e a educaccedilatildeo eacute precisamente tudo isso o

encontro dos diferentes que tem como fim ajudar a criar uma nova vida fazer nascer uma

nova existecircncia uma nova oportunidade Porque segundo autores como Fullat diz Francisco

de Sousa natildeo se pode falar de educaccedilatildeo laacute onde natildeo haacute consciecircncia Apenas haacute educaccedilatildeo

porque haacute consciecircncia porque existe consciecircncia porque haacute dois encontros e porque apesar

do embate entre os dois nenhuma delas deixa perder a outra natildeo eacute um encontro ou um

embate para desgarrar o outro antes pelo contraacuterio este embate eacute feito para estabelecer o

outro no outro sem fazer desaparecer a alteridade Mas isso soacute eacute possiacutevel justamente porque

no lugar da violecircncia que poderia ter conduzido a uma ldquorobotizaccedilatildeordquo foi introduzido o factor

de cuidado diz Carlos Francisco de Sousa Eacute portanto o cuidado que vai fazer com que haja

um encontro entre as duas consciecircncias Como diz Hegel de Morin (2005 105 Apud Carlos

Francisco de Sousa 2014 49) ldquoa consciecircncia de si soacute atinge a sua satisfaccedilatildeo numa outra

consciecircncia de sirdquo Dito de outra forma em palavras de Fullat de Carlos Francisco de Sousa

ldquosoacute depois da descoberta do eu pelo enfrentamento do tu se daacute a verdadeira relaccedilatildeo

educativardquo Portanto natildeo pode haver educaccedilatildeo na ausecircncia do outro natildeo pode haver

educaccedilatildeo na ausecircncia do interlocutor e do intermediaacuterio e natildeo pode haver educaccedilatildeo na

ausecircncia de uma situaccedilatildeo educativa

A fase educativa eacute acompanhada pelo decliacutenio paulatino de amestramento porque supotildee a

chegada da consciecircncia supotildee a responsabilidade pela capacidade de escolher e de decidir

supotildee a autenticidade do SIM e do NAtildeO supotildee uma certa comunicaccedilatildeo de intimidade no

6 Cf Francisco de Sousa cit

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dizer de Jaspers de Carlos Francisco de Sousa O sim e o natildeo do educando jaacute tem um patamar

um pouco mais alto que o sim e o natildeo daquele que estaacute na fase de amestramento A pugna jaacute

tem um caraacutecter mais real a dor eacute mais audiacutevel porque eacute vivida e sentida por aquele que tem

capacidade fiacutesica de desforrar violecircncia sobre o seu mestre sobre o seu guia ou sobre aquele

que lhe dirige Eacute diferente da dor da infacircncia que eacute vivida por e pela compaixatildeo do outro no

outro Os pais e os parentes proacuteximos podem responder pela dor da crianccedila enferma levando-a

ao meacutedico ou ao especialista Sozinha natildeo poderia fazecirc-lo eacute por isso que dizemos que a dor

da infacircncia eacute uma dor de solidariedade compassiva isto eacute precisa de um terceiro para ser

actualizada ou minimizada A do adulto tambeacutem pode precisar mas com muito menos

coerccedilatildeo que a da crianccedila ou a do adulto-crianccedila Esta simbologia tambeacutem pode ser aplicada agrave

relaccedilatildeo do educador e do educando que estatildeo quase sempre inicialmente em perspectivas

diferentes em dizibilidades diferentes talvez por isso autores como Fullat falam do caraacutecter

agoacutenico da educaccedilatildeo ou da educabilidade Assumem que natildeo eacute possiacutevel educar sem existecircncia

de um processo agoacutenico porque haacute encontro de dois tipos de saberes que podem ser

completamente diferentes sobre o mesmo saber ou sobre o mesmo tema O saber daquele que

ensina e o saber sobre o saber daquele que vai aprender ou que estaacute para aprender satildeo coisas

completamente diferentes passando ou acontecendo no mesmo espaccedilo A aprendizagem da

educabilidade exige sempre uma proposta e um tempo de adaptaccedilatildeo retroactivo para garantir a

apropriaccedilatildeo do processo da aprendizagem isto eacute para garantir o processo da refinaccedilatildeo do

conhecimento em outras palavras para atingir a compreensatildeo Esta etapa da compreensatildeo eacute

feita de uma transiccedilatildeo a outra isto eacute passamos de uma ldquocivilizaccedilatildeo de resposta a uma

civilizaccedilatildeo de perguntasrdquo porque o tempo de respostas definitivas morreu

O aprender com profundidade exige que natildeo nos contentemos apenas com as pequenas

resoluccedilotildees como diz Andreacute Giordan mas que consigamos apoderar-nos dos enunciados para

debatecirc-los e com eles transformar a relaccedilatildeo do saber atraveacutes de argumentos e contra-

argumentos Quem aprende eacute obrigado a ter argumentos insiste Giordan Quem aprende lanccedila

duras inquisiccedilotildees sobre o processo eacute um constante inquieto

laquoDe que estamos exactamente a falar O que queremos mostrar Estou

convicto de que o que estou a dizer eacute verdade eis porquecircraquo Ele descobre o

que eacute uma demostraccedilatildeo os argumentos que eacute necessaacuterio accionar para

convencer a importacircncia do raciociacutenio e o sentido preciso das palavras No

fim do ensino secundaacuterio aqueles que aprendem nem sempre tecircm

consciecircncia que uma hipoacutetese na matemaacutetica (onde ela eacute um dogma que natildeo

podemos transgredir) natildeo tem o mesmo estatuto que no resto das ciecircncias

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onde ela natildeo eacute senatildeo uma explicaccedilatildeo entre outras explicaccedilatildeo que adoptamos

e adaptamos durante o tempo em que procuramos meios para a corroborar ou

informar Controlar a polissemia de um tal vocabulaacuterio evita muitas

confusotildees7

Quem aprende predispotildee-se a ser bravado e podado predispotildee-se a ser limitado ao mesmo

tempo que rompe a proacutepria limitaccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo da teacutecnica e de habilidades

predispotildee-se a demostrar que apesar das limitaccedilotildees ainda assim pode criar pode inventar e

pode inovar saindo precisamente do seu campo de conforto Qualquer investigaccedilatildeo mesmo

sendo apenas inicial tem como fim tirar-nos do nosso campo do conforto tem que como

objectivo tirar-nos da nossa aldeia e conduzir-nos para a cidade onde corremos o risco de nos

perder implica actualizar o nosso preconceito em relaccedilatildeo a algo implica questionar as

evidecircncias laquoQuanto mais aquele que aprende reflecte sobre o tratamento de uma tarefa mais

ele referencia e repara nos erros nos limites e nos disfuncionamentos Ele torna-se

rapidamente capaz de analisar os acontecimentos em curso e explicitar a estrateacutegia utilizada e

a sua pertinecircncia Comeccedila a emergir uma eficaacutecia oacuteptima8raquo A compreensatildeo e a preensatildeo do

conhecimento natildeo nos deixa indiferentes faz de noacutes outro laquooutroraquo outra realidade que apesar

da existecircncia autoacutenoma assume que soacute pode existir se tiver possibilidade de se comparar com

as outras e se puder ser referenciada Eacute por isso que o nosso modelo de aprender tem que

acompanhar se possiacutevel o enquadramento das concepccedilotildees e tem que actualizar os conceitos

a sua marginalidade e o seu centrismo Pois haacute que ter em conta que ningueacutem aprende sem

antes fazer um trabalho profundo sobre as suas proacuteprias concepccedilotildees (diz Andreacute Giordan) e

sobre as concepccedilotildees dos outros onde ele se apresenta como porta-voz ou como mediador Eacute

por isso que em algumas situaccedilotildees vemos que eacute muito complicado ser porta-voz ou mediador

educativo porque vamos tentar transmitir algo que estaacute fora da nossa dizibilidade cultural

fora do nosso quadro referencial fora do nosso imaginaacuterio cultural Natildeo posso explicar o

rigor do Inverno se natildeo tenho experiencia do Inverno rigoroso porque natildeo disponho dos

dados fortemente caracteriacutesticos do Inverno

A minha explicaccedilatildeo deve superar a mera imagem informativa ou elucidativa da realidade A

minha informaccedilatildeo deve ser a mais real possiacutevel A imagem natildeo eacute a minha realidade eacute a

realidade daquela realidade eacute a realidade da fotografia tirada por mim ou por algueacutem Aqui a

fotografia tem mais ou menos a mesma funccedilatildeo que o vocabulaacuterio que estaacute como a porta de

entrada para a compreensatildeo oral pode ajudar ou pode complicar a compreensatildeo atraveacutes de

7 Cf Andreacute Giordan Aprender Editora Horizontes Pedagoacutegicos Lisboa 2007 p 162

8 Cf Idem

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uma falsa intermediaccedilatildeo de essecircncia da acccedilatildeo cultural A palavra vai ter um peso muito

importante nesta transiccedilatildeo porque pode permitir que cheguemos ou que fiquemos pelo

caminho pode manipular duplamente os conceitos A palavra usada na transmissatildeo deve ser

suficientemente aberta para permitir ao aluno viver a sua liberdade na hora da escolha deve

sentir-se familiarizado com o tema que quer escolher ou que quer trabalhar A obtusidade da

palavra pode tambeacutem ser um factor muito importante natildeo apenas na apreensatildeo dos conteuacutedos

mas tambeacutem na proacutepria escolha dos conteuacutedos por afinidade por gosto por paixatildeo ou ateacute por

curiosidade Quer o docente e quer discente tecircm que saber que este processo natildeo cabe num

frasco de linearidade Haacute muacuteltiplas facetas de ensinar e muacuteltiplas facetas de aprender Mas

entre ambas haacute uma faceta que eacute transversal que eacute desejaacutevel que seja transversal eacute a faceta

do ensinar honesto ou com a honestidade a de aprender honesto ou com a honestidade a de

que cada um tem que ser aquilo que eacute para dar e receber

Esta honestidade eacute muito importante para ajudar a fazer com que quer o educador quer o

educando caminhem para um espaccedilo da educaccedilatildeo liberal ldquoA educaccedilatildeo liberal eacute uma

educaccedilatildeo na cultura e para cultura9rdquo diz Leo Strauss o ldquoproduto terminado de uma educaccedilatildeo

liberal eacute um ser humano cultivadordquo insiste Strauss Uma educaccedilatildeo na cultura e para cultura

que nos conduza agrave formaccedilatildeo de um ser humano cultivado soacute pode ser feita inicialmente com

um fundamento muito forte da honestidade do cuidado e de autocuidado Strauss vai buscar a

explicaccedilatildeo do termo cultura a partir da sua origem latina (cultura) que se refere em primeiro

lugar agrave agricultura diz ele e no seu sentido derivado e actual (insiste ele) quer dizer ou

refere-se ao cultivo da mente Ora insiste o nosso autor assim como a terra precisa de

lavradores a mente precisa de mestres mas estes mestres soacute podem ser mestres ou

reconhecidos como mestres porque para aleacutem da sua periacutecia satildeo acima de tudo honestos

iacutentegros rectos e raros Eacute por isso que eacute mais faacutecil encontrar agricultores do que os mestres

diz Strauss sobretudo os mestres que natildeo satildeo disciacutepulos isto eacute os livros os grandes livros

No acircmbito da educaccedilatildeo liberal o estudante natildeo pode portanto estar separado dos livros dos

grandes livros e porque natildeo pode estar separado dos livros ele vai adonar-se deles e vai criar

condiccedilotildees para poder ajudar os outros estudantes menos experimentados remata Strauss

Tudo isso eacute um processo de honestidade Dedicar-se a estudar com profundidade as grandes

obras os grandes livros que muitas vezes dizem coisas completamente desconcertantes com a

sua eacutepoca o seu espaccedilo ou o seu meio cultural poliacutetico ou religioso Eacute por isso que a

educaccedilatildeo liberal natildeo pode ser entendida como um simples doutrinamento10 Eu natildeo posso

9 Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Katz editores Buenos Aires 2007 p 13

10 Cf Cit p 14

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pretender ou achar que estou a educar simplesmente porque estou a ideologizar as pessoas as

crianccedilas os jovens etc vou educar se crio cultura e se transformo as pessoas em cultura e na

cultura verdadeiramente adquirida com a honestidade

Strauss abre a possibilidade para que o termo cultura tambeacutem seja discutida porque cada

regiatildeo de planeta tem a sua proacutepria cultura Noacutes temos a nossa cultura enquanto africanos e

dentro do africano tambeacutem haacute vaacuterias culturas e subculturas (mesmo sabendo que um

socioacutelogo apressado emitiria imediatamente a sua reclamaccedilatildeo sobre subculturas11) O ideal na

educaccedilatildeo liberal eacute que a cultura natildeo seja uma pequena janela que natildeo seja apenas um

singulare tantum diz Strauss mas que seja e que procure ser utilizada no plural que aceite e

assuma o sentido relativo que lhe permite ser discutida Com a excepccedilatildeo dos loucos todos

somos seres de cultura insiste Strauss apesar da maacute compreensatildeo e da maacute interpretaccedilatildeo que

isso causa agraves vezes Natildeo obstante as maacutes interpretaccedilotildees e as maacutes compreensotildees fazem parte

do preccedilo que uma educaccedilatildeo liberal tem que pagar e tem que correr A educaccedilatildeo democraacutetica eacute

um preccedilo caro no acircmbito da educaccedilatildeo liberal natildeo apenas para o acircmbito acadeacutemico mas

sobretudo para o acircmbito poliacutetico onde o poliacutetico tem que justificar e merecer o voto dos

eleitores No nosso caso concreto o caso africano e de maneira particular a Aacutefrica lusoacutefona a

democracia natildeo se fez muito sentir natildeo estaacute a ser muito acompanhada pela educaccedilatildeo A

proacutepria expressatildeo democracia eacute vista e usada com ambiguidade Mas voltaremos a esta

anaacutelise num outro momento

A Democracia e Educaccedilatildeo

O termo democracia deve ser dos termos ou das expressotildees mais utilizadas a niacutevel poliacutetico e

fora do campo poliacutetico Eacute tambeacutem provavelmente dos termos poliacutetico-sociais mais ingratos

mais incompreensiacuteveis cujo uso eacute muitas vezes inadequado O saacutebio fala de democracia o

especialista tambeacutem mas natildeo eacute por isso que quem natildeo sabe da democracia deixa de falar dela

e isso faz com que ela seja um campo de todos e de ningueacutem Um campo do saacutebio do

especialista e do analfabeto

E eacute sobretudo com este uacuteltimo que vamos trabalhar e falar na democracia moderna Os paiacuteses

lusoacutefonos como muitos paiacuteses de Aacutefrica foram apanhados numa encruzilhada forccedilada da

virada do mundo Do mundo econoacutemico do mundo poliacutetico que tem que obedecer ao mundo

econoacutemico e tal como acontece nas regras e jogos de poderes tiveram que aceitar e entrar

para um jogo e uma regra que natildeo lhes era de todo favoraacutevel Tinham que dar espaccedilo real aos

11

Cf Cit p 14 laquoEacute todo o padratildeo comum de conduta proacutepria de um grupo humanoraquo

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partidos que estavam na oposiccedilatildeo e natildeo era possiacutevel fazecirc-lo realisticamente porque natildeo se

deixa de ser um Partido-Estado de um dia para outro e tinham que lutar contra a pobreza e

contra o analfabetismo as duas inimigas principais da democracia moderna e natildeo havia

garantia de que pudessem fazecirc-los nos termos que a democracia pensada pelos outros

propunha

Portanto a leitura que se deve fazer destes 25 anos da democracia nestes paiacuteses natildeo seria

naturalmente uma leitura triunfalista mas antes pelo contraacuterio uma leitura analiacutetica

Perguntar-se se o que chamamos democracia desde o iniacutecio foi verdadeiramente democracia

A leitura triunfalista eacute uma leitura de auto-regozijo de auto-suficiecircncia e de triunfalismo

nacionalista que faz uma espeacutecie de apagatildeo naquilo que eacute ou sobre aquilo que eacute a memoacuteria do

difiacutecil que roccedila ao fracasso e se esquece que a democracia eacute um regime que eacute feito para

triunfar perdendo ou fracassando Natildeo se pode esperar outra coisa da democracia senatildeo o

triunfo porque aparentemente eacute um regime onde todo o mundo tem a possibilidade e a

oportunidade de decidir de decidir sobre si mesmo e de decidir com o uso da influecircncia sobre

os outros E eacute precisamente na eventualidade de que esta influecircncia sobre os outros venha a

concretizar-se que fez com que os grandes teoacutericos do poder na antiguidade tivessem medo

da democracia laquoO que eacute que seria daquele regime onde o povo eacute quem mandaraquo

Perguntavam eles O que eacute que seria dos ricos da elite dos intelectuais da induacutestria etc Uma

seacuterie de questotildees do acircmbito de interesse particular se punha para chamar a atenccedilatildeo dos

particulares para natildeo aderir a algo que lhes podia fazer mal e fazer mal aos seus negoacutecios Eacute

por isso que a democracia natildeo eacute um poder do povo mas um poder de elite que eacute criado dentro

do povo sem que para isso o povo se decirc conta Os criacuteticos como Platatildeo sempre olharam para

esta elite que vem do povo como algo que sempre seraacute mal preparada para assumir com

distinccedilatildeo algo que eacute muito importante para o destino do paiacutes por isso nunca apoiaraacute um

regime democraacutetico Mas a democracia que eacute um regime triunfalista eacute uma democracia

falaciosa porque natildeo se pode esperar um triunfo na maioria ou da maioria uma vez que a

verdadeira maioria natildeo negocia natildeo dialoga apenas remete para o ponto de partida para a

regra do jogo inicial ainda que esta regra do jogo seja escrita e feita por ela de forma

maliciosa Eacute por isso que quando se fala da vitoacuteria da democracia no sentido da maioria

democraacutetica temos que olhar para esta maioria como aquela que mesmo sendo a maioria

deixou de secirc-la voluntariamente para se revestir do risco de ter que dar explicaccedilotildees de ter que

justificar-se de ter que sujeitar-se a ouvir quem perdeu quem o povo natildeo quer natildeo escolheu

e natildeo conta com ele de forma expliacutecita

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O triunfo da democracia maioritaacuteria natildeo eacute um triunfo numeacuterico mas sim um triunfo da

gestatildeo das emoccedilotildees e dos egos do poder e da poliacutetica daqueles que o povo indicou para

fracassar e aqueles que indicou para o sucesso um certo sucesso de insucesso porque tudo eacute

aprazo e eacute o proacuteprio povo que em primeiro plano natildeo respeita e nunca respeitou o prazo

Exige as contas antes do fim do prazo que ele estipulou e natildeo aceita justificaccedilotildees que natildeo

satisfaccedilam a sua proacutepria demanda os outros se transformam para ele em indiviacuteduos e ele em

Estado que tem que fazer com que a lei seja cumprida Uma tentativa de saiacuteda para esta

realidade para esta situaccedilatildeo tem que passar necessariamente pela Educaccedilatildeo eacute por isso que

alguns pensadores da democracia como eacute o caso de Gianfraco Pasquino defendem que a luta

da democracia moderna eacute uma luta que consiste em satisfazer a educaccedilatildeo e eliminar a

pobreza Natildeo se pode falar de uma democracia triunfalista quando se tem medo de olhar para

a memoacuteria que apresenta um nuacutemero insustentaacutevel do analfabetismo e de pobreza O triunfo

da democracia moderna eacute um triunfo que passa pela lucidez e um sono tranquilo de barriga

cheia natildeo da elite mas daqueles que sem ser elite sentem que algueacutem cumpriu com um

direito deles o direito de natildeo passar fome e de natildeo morrer analfabeto E esta expectativa

corresponde com a democracia moderna em alguns momentos porque eacute uma expectativa que

soacute pode ser realizada pela virtude por um regime virtuoso Em algum momento acreditamos

ou se diz que a democracia eacute um regime que depende da virtude diz Strauss Um regime onde

todos ou a maioria dos homens satildeo saacutebios uma sociedade onde todos os adultos satildeo saacutebios e

virtuosos uma sociedade aristocraacutetica uma democracia aristocraacutetica No fundo um grande

mal-entendido Aparentemente eacute o que nos teraacute acontecido em alguns momentos quando

recebemos a democracia Olhamos para ela como o estado de realizaccedilatildeo perfeita de todos e

para todos Olhamos para ela quase como que uma espeacutecie de governo dos deuses Com

efeito Aristoacuteteles tinha razatildeo quando alertou que a natureza humana natildeo permite que

olhemos para nenhum governo como lugar de possiacutevel perfeiccedilatildeo como lugar seguro porque eacute

a gestatildeo humana que vai fazer com que um lugar um governo ou um Estado seja tido como

seguro ou natildeo A gestatildeo humana das coisas eacute volaacutetil

Quando Aristoacuteteles e outros teoacutericos pensaram no indiviacuteduo viram nas instituiccedilotildees condiccedilatildeo

indispensaacutevel para responder aos anseios deste mesmo indiviacuteduo eacute por isso que criaram

maneiras formas instacircncias e institutos para permitir uma salvaguarda real do indiviacuteduo A

cidade natildeo eacute um espaccedilo natural do indiviacuteduo diz Aristoacuteteles porque implica regras

completamente diferentes das regras individuais das regras da arbitrariedade das regras da

autonomia ilimitada e das regras da natildeo obediecircncia A cidade surge portanto para dar corpo a

todo este mosaico de regras de normas de paixatildeo mas com ordem e comando unificado num

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basanos num basileus que soacute eacute independente porque obedece agraves leis porque cumpre as leis

Este propoacutesito escapou-nos enquanto africanos que festejaram a chegada da democracia e

enquanto africanos que ensinam e dirigem o (s) paiacutes (es) Olhamos para democracia tal como

olhaacutevamos para a independecircncia sempre com total ausecircncia de prestaccedilatildeo de contas e sempre

com a expectativa irreal da igualdade Mas a realidade eacute um fenoacutemeno que se justifica por si

mesmo e eacute nesta perspectiva que a Ciecircncia Poliacutetica se debate diz Strauss entre tentar

encontrar a democracia na sua geacutenese e a democracia tal como a realidade se lhe apresenta A

nossa luta eacute perceber a democracia tal como a realidade a apresenta naturalmente fazendo

uma leitura histoacuterica daquilo que ela foi de como surgiu mas sobretudo ter em conta que ela

tem uma aplicaccedilatildeo e uma aplicabilidade epocal Cada eacutepoca cultiva a sua proacutepria democracia

diz a sua proacutepria democracia e interpreta a sua proacutepria democracia A sua epocalidade renova-

se diariamente constroacutei-se na sua proacutepria construccedilatildeo-autodestruiccedilatildeo em nome da proacutepria

democracia e da correspondecircncia epocal

Somos da opiniatildeo de que Aacutefrica deve criar um estilo proacuteprio para a sua democracia Deve

criar a sua proacutepria democracia que se enraiacuteza nas suas culturas que tem em conta a sua

proacutepria particularidade e multiplicidade que tem em conta o papel das autoridades

tradicionais que muitas vezes sentem-se completamente perdidas no acircmbito do

enquadramento democraacutetico deve ter em conta o papel fulcral da mulher de todas as esferas

em Aacutefrica

No nosso contexto sabemos que ldquoa mulher africana eacute a porta de todas as entradas e a saiacuteda

de nenhuma saiacuteda natildeo autorizada A mulher africana eacute alegria de um continente com as suas

vaacuterias naccedilotildees e a sua uacutenica raccedila ela eacute o fracasso da poliacutetica e do poder quando se faz machista

e eacute a vitoacuteria da poliacutetica e do poder quando se faz humana quando se torna ouvinte e se

capitaliza como espaccedilo de confianccedila e de reconhecimento de todos Natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel

sem estes atributos da mulher natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel sem uma poliacutetica que escuta a mulher e

que permita que a sua opiniatildeo natildeo seja apenas um mero disfarce do politicamente correcto e

do eticamente aceitaacutevel A Aacutefrica possiacutevel eacute a Aacutefrica madrugadora como a preocupaccedilatildeo da

mulher para com o seu lar os seus filhosas o seu marido e toda a famiacutelia alargada A Aacutefrica

possiacutevel eacute a Aacutefrica da ternura e do pragmatismo encarnado pela mulher atraveacutes dos diversos

cuidados que presta ao seu lar e agrave comunidade no seu dia-a-dia Natildeo poderemos amar

verdadeiramente Aacutefrica se continuarmos a desprezar as suas mulheres e suas crianccedilas se a

opiniatildeo da mulher continuar a ser uma espeacutecie de favor que a comunidade lhe faz porque natildeo

quer contar com ela em termos objectivos porque lhe pintou com preconceitos de

instabilidade de inseguranccedila e de fragilidade Porque olha para ela como o problema de todos

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os problemas o mal de todos os males e portanto aquela com quem natildeo se pode nem se deve

contar na primeira hora das tomadas das decisotildees Eacute a invenccedilatildeo dos preconceitos e da

prostituiccedilatildeo ideoloacutegica que depois acaba por ser direccionada agrave mulher atraveacutes dos

mecanismos do ldquopoder positivo natildeo legisladordquo o direito criado ou assumido a partir dos actos

de todos os dias

Se tivermos em conta que em Aacutefrica as mulheres satildeo mais de metade da populaccedilatildeo do

continente e a niacutevel global as mulheres de todo o mundo satildeo a metade de toda a populaccedilatildeo

mundial entatildeo poderemos com maior propriedade dar valor agrave figura da mulher natildeo soacute para o

nosso continente mas a niacutevel global Sabemos que de cada vez que a mulher ganha um

direito conquista um direito os seus ganhos e as suas conquistas cimentam a estabilidade

local e regional para a paz e para o desenvolvimento geopoliacutetico porque a mulher no seu

exerciacutecio de responsabilidade eacute muito mais persuasiva e honra com brilho o seu compromisso

Sabemos graccedilas agrave histoacuteria etnograacutefica e histoacuteria dos acontecimentos que muitas das

reivindicaccedilotildees das mulheres africanas antecederam uma boa parte das reivindicaccedilotildees

femininas no Ocidente moderno e contemporacircneo A descoberta do continente africano pelos

europeus tambeacutem conheceu a resistecircncia feminina ao lado dos homens africanos e isto

antecede a luta feminista e a luta a auto-afirmaccedilatildeo do geacutenero no Ocidente O fracasso da

Aacutefrica reside na ldquoahistorizaccedilatildeordquo do papel das suas mulheres reside na negaccedilatildeo da histoacuteria

positiva das suas mulheres reside no facto de encurtar as epopeias femininas das suas

heroiacutenas Paiacuteses como Ruanda demostram isso todos os dias Ruanda poacutes genociacutedio teve 56

das mulheres nos seus respectivos governos e todos noacutes temos notiacutecias e conhecimento da

solidez da economia e da poliacutetica de Ruanda

Temos consciecircncia de que apesar do brilho do bem-fazer e do saber-fazer da mulher africana

ainda assim haacute muitos obstaacuteculos que ela tem que superar entre eles o proacuteprio preconceito

machista Mas mesmo sabendo do preconceito machista cremos que o preconceito maior

com o qual ela se debate eacute o preconceito cultural e religioso para uma boa parte de Aacutefrica que

tem a ver com a tradiccedilatildeo negativa Estamos por exemplo a pensar na questatildeo da mutilaccedilatildeo

genital nos casamentos forccedilados e de conveniecircncia clacircnica o traacutefico das crianccedilas do sexo

feminino e o preconceito sobre a mulher que padece de viacuterus de VIH Estes males e

preconceitos satildeo mais prejudiciais agrave condiccedilatildeo feminina da mulher africana do que qualquer

mal que possa abater sobre ela Natildeo haacute um mal pior que o mal do preconceito e natildeo haacute cultura

mais enferma que a cultura preconceituosa

Aacutefrica soacute pode resgatar a sua cultura se lutar contra os seus preconceitos negativos elevando a

condiccedilatildeo da mulher e criando-lhe instrumentos e condiccedilotildees para lutar contra o mal que a

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cultura e tradiccedilatildeo criaram para ela e contra ela muitas vezes sem pedir a sua opiniatildeo O

horizonte possiacutevel para Aacutefrica eacute aquele de destruiccedilatildeo positiva dos preconceitos culturais

prejudiciais para as suas mulheres e crianccedilas Haacute que possibilitar que os dogmas culturais

intelectuais e religiosos sejam questionados para o bem da salvaguarda da proacutepria cultura da

proacutepria religiosidade e da proacutepria intelectualidade A poliacutetica e os poliacuteticos que tomarem isso

como uma iniciativa singular salvaratildeo todo o continente africano12

rdquo

A democracia que pensa a sua proacutepria realidade natildeo pode natildeo ter em conta estas necessidades

e particularidades Eacute por isso que o novo enfoque democraacutetico em Aacutefrica e nos paiacuteses

lusoacutefonos em particular deveria incluir na escolaridade preacute-universitaacuteria a disciplina da

EDUCACcedilAtildeO PARA A DEMOCRACIA assim como pensar a possibilidade de cadeiras

como ldquoLITERATURA E INSTRUCcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeOrdquo tambeacutem no preacute-

universitaacuterio Uma educaccedilatildeo para a democracia e uma literatura e instruccedilatildeo para a

democracia evitariam que caiacutessemos naquilo que Strauss chama ou designa por ldquofalta de

espiacuterito puacuteblico13

rdquo nas democracias modernas isto eacute a criaccedilatildeo de cidadatildeos que soacute se

interessam em ler as paacuteginas desportivas dos jornais e as paacuteginas das pequenas histoacuterias e

mais nada Pensar num ensino da democracia que possa ser cimentado com apoio das nossas

tradiccedilotildees orais ajudaria natildeo soacute a ter a qualidade viva dos nossos debates democraacuteticos como

tambeacutem a fundar uma democracia de raiacutezes africanas que bebem das outras culturas mas que

tambeacutem podem reivindicar a sua originalidade poliacutetica Os diversos tipos de ONDJANGO

que existem nas culturas africanas podem ser exploradas desde o ponto de vista democraacutetico

ondjango como espaccedilo de concertaccedilatildeo de ideias como espaccedilo de recepccedilatildeo do ensinamento

dos mais velhos se aproximaria ao conceito grego de aacutegora Uma educaccedilatildeo para a democracia

em Aacutefrica deveria ter em conta tambeacutem os nossos proveacuterbios adaacutegios e aforismos com uma

acentuada moralidade onde podemos encontrar a profundidade do ser africano do espiacuterito

africano e da sua consciecircncia moral e eacutetica Neles encontramos uma insondaacutevel e inesgotaacutevel

sabedoria praacutetica transversal a todo o continente O que em Angola se designa como

ondjango na Guineacute-Bissau aparece com o nome de Djembereacutem e em algumas circunstacircncias

com o nome de Bantaba de djumbai Ambos satildeo espaccedilos de confraternizaccedilatildeo de caraacutecter

educativo desde o ponto de vista da recepccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo da cultura e do pensamento

tradicional Quer a expressatildeo djembereacutem quer a expressatildeo bantaba designam um espaccedilo

circular de modo geral coberto de capim ou chapa de zinco podendo ser usados pelas pessoas

12

Cf Este trecho faz parte de um texto escrito a 31 de Julho de 2017 para um discurso ldquoencomendadordquo para o

dia internacional da mulher africana 13

Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Ed Katz Buenos Aires 2007 p 17

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de todas as idades mas em circunstacircncias diferentes Eacute um espaccedilo de reuniotildees e de encontro

de caraacutecter familiar da aldeia ou do grupo onde muitas vezes saem as decisotildees que dizem

respeito agrave comunidade eacute um espaccedilo legislativo da lei natildeo escrita da comunidade A palavra

djumbai significa divertir-se brincar daiacute que se bem o bantabaacute tem este caraacutecter seacuterio das

tomadas de decisotildees natildeo obstante esta seriedade eacute fundada na proximidade e na

familiaridade comunidade o que faz com que o poder natildeo seja algo estranho algo longiacutenquo e

tambeacutem faz com que o ensinamento e a transmissatildeo natildeo sejam vistos com a desmesura da

grandiosidade Contrariamente aos gregos e aos povos da Mesopotacircmia o lugar onde se

ensina e onde se toma as decisotildees eacute frequentado por todos pelas mulheres e crianccedilas pelos

doentes e saudaacuteveis

Conforme vimos o ondjango nos remete para a realidade da casa (NUNES

1991 159) Mas de que casa se trata Trata-se da casa de conversa de

reuniatildeo de hospedagem de partilha de bensrefeiccedilatildeoserviccedilos de

educaccedilatildeoiniciaccedilatildeo sociocultural de entretenimento eou de fazer justiccedila

Antes de tudo se trata de uma casa ponto de partida e ponto de confluecircncia

de uma casa com as condiccedilotildees de se poder sentar reunir junto de alguns

mais-velhos trata-se de um lugar de encontro14

Esta aproximaccedilatildeo de ondjango com a comunicaccedilatildeo e gestatildeo da casa permite-nos criar aqui

uma relaccedilatildeo comparativa com oikos nomoi xenofontino-aristoteacutelico Isto eacute podemos

reivindicar para o ondjango africano as mesmas capacidades os mesmos papeacuteis ou funccedilotildees

institucionais que tinha o oikos a partir da sua visatildeo da ldquofamiacutelia da propriedade da famiacutelia e

da casardquo Tal como vemos neste texto de Nunes citado por Martinho Kavaya este ondjango eacute

pluridisciplinar baseado em vaacuterias meacutetricas sociais o que de certa forma tambeacutem corresponde

com aquilo que podemos encontrar na concepccedilatildeo da palavra grega oikos A educaccedilatildeo do

ondjango do djembereacutem ou do djumbai satildeo portadoras do espaccedilo familiar da propriedade da

famiacutelia e da reflexatildeo sobre a casa sobre as coisas da casa e isso permite fazer com que o que

se discute neste espaccedilo seja efectivamente aquilo que importa agrave cidade aquilo que importaraacute agrave

cidade um dia E o que eacute pode importar profundamente agrave cidade Naturalmente as pessoas a

sua gente os homens e mulheres crianccedilas e velhos animais e plantas No fundo tudo que diz

respeito ao homem e ao seu envolvimento social e espiritual e eacute isso que o ondjango africano

14

Cf Martinho Kavaya Freire e o Ondjango podem dialogar Reflexotildees sobre o diaacutelogo de Freire com o

ondjango africano Angolano GT Educaccedilatildeo Popular n06 p 2 consultado em 30 de Outubro de 2017

httpwwwanpedorgbrsitesdefaultfilesgt06-2805-intpdf

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pretende passar atraveacutes dos seus diferentes status e fases do mais novo ao mais velho e do

mais velho ao mais novo

Toda a vida parte do ondjango e laacute encontra seu aacutepice Aiacute segundo a

pertinecircncia do vivenciado o ohango (conversadiaacutelogo) tomava vaacuterios

significados ldquoondjangordquo enquanto ldquoulongardquo (relato da vida desde o encontro

anterior) ldquoelongisordquo (ensinamento e aprendizado) ldquoekutardquo (partilha de bens

alimentares) ldquoekongelordquo (reuniatildeo de caraacuteter deliberativo)

ldquoekangaokusombaokusombisardquo (reuniatildeo para fazer justiccedila e sentenciar para

punir ou absolver o arguumlido) ldquookupapalardquo (encontro de entretenimento festas

e danccedilas culturais e tradicionais conforme a situaccedilatildeo vivida no momento

morte caccedila casamento iniciaccedilatildeo sociocultural e comunitaacuteria acolhimento

de uma visita etc) ldquoondjulukardquo (encontro para organizar um mutiratildeo

comunitaacuterio a favor de algum da comunidade em situaccedilatildeo de doenccedila

problema socioeconocircmico intervenccedilatildeo de ajuda na sua lavoura etc)

(KAVAYA 2006 p147) Afinal o ondjango eacute o habitat comunal e vital

onde se desenham as relaccedilotildees de conviacutevio geo-histoacuterico econocircmico

sociocultural poliacutetico etc em vista o bem comunitaacuterio15

Educar para a conservaccedilatildeo destes valores eacute tambeacutem educar para a democracia e eacute educar para

a manutenccedilatildeo da cultura e dos preconceitos positivos A democracia em todo o sentido e em

toda a sua histoacuteria sempre conteve um elemento educativo muito forte e quase indissociaacutevel

de si mesma eacute o diaacutelogo para gerar a cultura e a cultura para gerar diaacutelogo Natildeo pode haver

uma verdadeira democracia que dispense este binoacutemio O erro de pensadores como Platatildeo em

relaccedilatildeo agrave sua recusa agrave democracia reside no facto de desprezarem excessivamente qualquer

tipo de possibilidade para educaccedilatildeo viaacutevel do homem democraacutetico reside no facto de natildeo

acreditarem que a democracia pode educar um poloi e fazer dele um aristoacuteis agrave sua maneira

ou ainda este erro pode residir no facto de que estes pensadores natildeo tiveram em conta que o

poloi apenas pode querer ser simplesmente e eternamente um poloi mesmo sendo democrata

O erro consistiu em pensar que os que podem e devem governar a cidade deviam deixar de ser

das suas respectivas camadas e passar a ser aristocratas Eacute um erro que ainda vemos hoje

15

Cf Ibid p 3

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EDUCACcedilAtildeO CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO

UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS

ABEL JOSEacute DA SILVA a

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS b

adasilva00gmailcom

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Resumo

A presente comunicaccedilatildeo faz uma caracterizaccedilatildeo do Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo

Universitaacuterio com ecircnfase nos seus desafios e perspectivas Analisa este processo a partir da

interpretaccedilatildeo sistecircmica que decorre dos pressupostos legais da Educaccedilatildeo e Ensino em Angola

Como meacutetodo usa a revisatildeo bibliograacutefica e a interpretaccedilatildeo e fundamenta a caracterizaccedilatildeo do

referido processo como variaacutevel baacutesica para a anaacutelise da qualidade do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola idealizado com base nos princiacutepios da legalidade da integridade da

laicidade da universalidade da democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da

intervenccedilatildeo do Estado da qualidade de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais

ciacutevicos e patrioacuteticos Tem como objectivo reflectir sobre os aspectos que o caracterizam e que

interferem na sua qualidade Apresenta a missatildeo do processo integrada ao Sistema em que

todos os agentes educativos participam da sua funcionalidade

Palavas-Chave Processo Ensino Aprendizagem Sistema

Abstract

This scientific paper characterizes the Non-University Teaching and Learning Process with an

emphasis on its challenges and perspectives It analyzes this process from the systemic

interpretation that arises from the legal presuppositions of Education and Teaching in Angola

As method uses the literature review and the interpretation and founded the characterization

of this process as basic variable for the analysis of the quality of the system of Education and

Teaching in Angola Idealized on the basis of the principles of legality integrity secularity

universality democracy gratuitousness obligation compulsion State intervention quality of

services education and promotion of moral civic and patriotic values It aims to reflect on the

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aspects that characterize and that interfere in its quality Has the mission of the process

integrated into the System in which all educational agents participate in its functionality

Key-words Process Teaching Learning System

Introduccedilatildeo

O Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo Universitaacuterio (PEANU) eacute uma importante variaacutevel

para a anaacutelise do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino em Angola (SEEA) sistema perspectivado

com base nos ldquoprinciacutepios da legalidade da integridade da laicidade da universalidade da

democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da intervenccedilatildeo do Estado da qualidade

de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticosrdquo (Lei no 1716

art 5ordm)1

A caracterizaccedilatildeo do PEANU pressupotildee assumir um posicionamento holiacutestico que analise o

mesmo como um processo natildeo isolado do todo porque o SEEA eacute estruturalmente unitaacuterio e a

sua realizaccedilatildeo na situaccedilatildeo especiacutefica da anaacutelise tem influecircncia no funcionamento da totalidade

(princiacutepio da integridade art 7ordm e art 17ordm)

Os desafios e perspectivas como outra dimensatildeo importante derivada do processo de

parametrizaccedilatildeo do assunto ndash objecto de anaacutelise justificam-se a partir da consideraccedilatildeo dos

princiacutepios da universalidade democraticidade gratuitidade obrigatoriedade intervenccedilatildeo do

Estado qualidade de serviccedilos e da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais pois que se a

Lei tipifica o que idealmente eacute o correcto a necessidade de confrontar com a realidade agrave luz

da pesquisa bibliograacutefica eacute inadiaacutevel para o alinhamento do agir educativo com os princiacutepios

legais

A partir destes princiacutepios infere-se que a Educaccedilatildeo e o Ensino satildeo natildeo apenas um direito mas

tambeacutem um dever que se deve realizar com a qualidade requerida para que a construccedilatildeo de

uma nova sociedade assente na democracia esclarecida seja possiacutevel Para isso agrave Escola

atraveacutes do Processo de Ensino e Aprendizagem (PEA) em todos os niacuteveis de ensino e

especialmente nos natildeo universitaacuterios impende a tarefa de formar personalidades capazes de

influenciar com o seu saber e suas qualidades o curso da histoacuteria concreta do seu contexto

Deste modo o Processo tem de ser significativo2 Para que o processo seja significativo eacute

1 Lei de Bases do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino que estabelece os princiacutepios e bases do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola de 7 de Outubro de 2016 Esta Lei revoga a Lei 1301 de 31 de Dezembro de 2001 2 O PEANU eacute significativo quando assegure o cumprimento da sua finalidade tal como se institui no art 25ordm da

Lei 1716 referente aos Objectivos Gerais do Subsistema do Ensino Geral Desta significatividade resulta em

consequecircncia a eficaacutecia do Sistema

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necessaacuterio caracterizaacute-lo com a finalidade de que se conheccedilam natildeo soacute os seus pontos fortes

mas tambeacutem os fracos aspecto que se aborda seguidamente

Por isso o objectivo deste trabalho consiste em reflectir sobre os aspectos do SEEA que o

caracterizam e que interferem na qualidade do PEANU

1 Estrutura do Seea Ponto de partida para a caracterizaccedilatildeo do Peanu

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento ldquoad intrardquo da

realidade educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento (Cfr

Silva 2016) Por isso a anaacutelise estrutural do SEEA baseada nas proposiccedilotildees da Lei 1716 e

fundamentada pela revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura criacutetico-contextual eacute uma

tarefa basilar para esta caracterizaccedilatildeo

A caracterizaccedilatildeo do Sistema Educativo numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional de

acordo com Ngaba ( 2012) e Liberato (2014) permite concluir que existem avanccedilos e

retrocessos no processo educativo angolano que em termos de poliacutetica educativa

condicionaram a sua evoluccedilatildeo positiva bem como a sua afirmaccedilatildeo no cenaacuterio internacional e

ateacute mesmo regional3

A partir desta ideia geral sobre o estado do SEEA que de modo especial se realiza por meio

do PEANU eacute possiacutevel compreender que estruturalmente estaacute bem concebido se se analisam

todos os factores intencionais de entrada e saiacuteda de um niacutevel de ensino para outro Entretanto

o aspecto funcional real fica aqueacutem do desejado se se avaliam com visatildeo criacutetico-acadeacutemica

os resultados do processo e os discursos oficiais que asseguram a Poliacutetica do Sistema

Educativo

Contrariamente agrave 1ordf Repuacuteblica (Cfr Ngaba 2012) que natildeo se fez reger por um documento

base tanto a 2ordf como a 3ordf Repuacuteblicas de Angola tecircm como fundamento a Lei de Bases do

SEEA que estabelece a criaccedilatildeo de condiccedilotildees mais adequadas para a aplicaccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas e dos programas nacionais com o objectivo de continuar a assegurar o

3 Este momento criacutetico do SEEA eacute tambeacutem hoje reconhecido oficialmente pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo do Paiacutes

na voz da sua titular no encerramento da Semana Nacional sobre Educaccedilatildeo em Angola realizada em Luanda Por

isso para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo actual do Sistema Educativo e do PEANU especificamente eacute criteacuterio dos

autores deste trabalho que os problemas fracturantes que colocam em causa a qualidade do Sistema natildeo podem

ser analisados unilateralmente sob pena de se incorrer num reducionismo indevido pois estatildeo em causa

muacuteltiplas variaacuteveis que chocam com diversos princiacutepios e disposiccedilotildees legais em que assenta o Sistema

infraestruturas precaacuterias insuficiecircncia dos materiais e meios didaacutecticos factos que se agravam ainda mais com a

falta de preparaccedilatildeo adequada dos professores de tal modo que possam responder aos desafios do Sistema

idealizados pela Reforma Educativa Essa visatildeo geral estrutural e conjuntural pode reflectir-se e explicar-se

melhor por meio do seguinte exemplo em relaccedilatildeo agrave indisciplina na aula espaccedilo privilegiado em que se

desenvolve o PEA Estrela (1983) citada por Lopes (2005) identificou um conjunto de variaacuteveis que vatildeo desde o

proacuteprio aluno passando pelo professor pela instituiccedilatildeo escolar ateacute agrave proacutepria sociedade Estes satildeo dados

suficientes para pensar na qualidade educativa como multideterminada

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desenvolvimento humano com base numa educaccedilatildeo e aprendizagem ao longo da vida para

todos os indiviacuteduos que permita assegurar o aumento dos niacuteveis de qualidade de ensino

Considerando a anaacutelise da estrutura do Sistema estabelecido pela Lei 1716 conclui-se que as

principais alteraccedilotildees agrave antiga Lei relacionam-se entre outras com a gratuitidade e

obrigatoriedade do ensino que passa a compreender as classes da Iniciaccedilatildeo do Ensino

Primaacuterio e do Primeiro Ciclo do Ensino Secundaacuterio bem como a nomenclatura das

instituiccedilotildees

Nesta vertente assume-se que o Subsistema de Ensino Geral eacute o fundamento do SEEA (Lei

no 1716 art 24ordm) que visa de acordo com o artigo em referecircncia assegurar uma formaccedilatildeo

integral harmoniosa e soacutelida necessaacuteria para uma boa inserccedilatildeo no mercado de trabalho e na

sociedade bem como para o acesso aos niacuteveis de ensino subsequentes

Como se pode apreciar existe uma relaccedilatildeo de determinaccedilatildeo entre o processo de ensino e

aprendizagem que se realiza no Subsistema do Ensino Geral e o trabalho bem como com a

Sociedade e com os niacuteveis de ensino posteriores o que significa o reconhecimento da

importacircncia deste niacutevel que deve permitir a aquisiccedilatildeo de ferramentas fundamentais para a

compreensatildeo da vida e do mundo Entre os seus objectivos de acordo com Ngaba (2012 p

158) constam os do desenvolvimento ldquodos conhecimentos e as capacidades que favoreccedilam

uma auto-formaccedilatildeo educar para a cidadaniardquo A educaccedilatildeo vista a partir da oacuteptica deste niacutevel

de ensino eacute um factor de integraccedilatildeo social

Por isso o questionamento da qualidade do PEANU eacute no fundo o questionamento da

qualidade do Sistema em si uma vez que estudando Poliacuteticas Educativas em Angola (1975-

2005) o autor antes referenciado e alinhado com Liberato afirma

ldquoEm termos gerais fica a ideia de estarmos perante um processo evolutivo que em periacuteodos

diferentes se foi deparando com os mesmos problemas e optando pelas mesmas soluccedilotildeesrdquo

No entanto de acordo com o mesmo autor ldquoquase quatro deacutecadas depois das primeiras

mudanccedilas ldquosignificativasrdquo no sector da educaccedilatildeo deacutecadas essas caraterizadas por sucessivos

estudos e mudanccedilas o paiacutes (hellip) carece de soluccedilotildees radicais que possam corrigir de uma vez

por todas os factores relacionados com o baixo coeficiente do sistema angolanordquo (Ngaba

2012 p 173)

De acordo com a ideia anterior a questatildeo da qualidade de ensino em Angola natildeo deve ser

vista como uma questatildeo da responsabilidade exclusiva de um ou de outro niacutevel de ensino

mas como uma questatildeo transversal do SEEA considerando entre outros princiacutepios gerais o

da integralidade estatuiacutedo no artigo 7o da Lei 1716 Por isso a anaacutelise desta questatildeo implica

um posicionamento multifactorial

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Com base nessa posiccedilatildeo o Sistema possui potencialidades capazes de proporcionar um PEA

motivador que permita a construccedilatildeo das aprendizagens dos alunos e que transforme o saber

em saber fazer e em saber ser na base de uma visatildeo axioloacutegica pois atendendo agrave

complexidade da acccedilatildeo educativa a UNESCO no Relatoacuterio DELORS (2003 p 11) sustenta

que para concretizar a sua meta a educaccedilatildeo deve organizar-se em quatro tipos fundamentais

de aprendizagens que ao longo da vida do indiviacuteduo seratildeo os pilares do conhecimento

Aprender a conhecer isto eacute adquirir os instrumentos para a compeensatildeo

aprender a fazer de modo a ser capaz de agir criativamente no proacuteprio

ambiente aprender a viver juntos de modo a participar e a colaborar com os

outros em todas as actividades humanas aprender a ser isto eacute um progresso

essencial que deriva dos trecircs precedentes

Para tornar este sonho real eacute necessaacuterio que o processo seja significativo e em si mesmo

motivador formando os professores de acordo com as necessidades da realidade objectiva

Trata-se de prover os recursos necessaacuterios a um processo que desafie os limites da situaccedilatildeo

actual pois se o professor eacute indispensaacutevel natildeo eacute menos verdade que os recursos educativos

tambeacutem o sejam (Lei 1716 art 97ordm)4

Tendo em conta os pressupostos legais da Repuacuteblica de Angola (Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e

Lei 1716) e os pilares da educaccedilatildeo propostos pela UNESCO considera-se que o ideal

educativo estaacute devidamente delineado Contudo eacute necessaacuterio que de acordo com Nanni

(2005 p81) citado por Fernando (2010 p 17) no ldquoacircmbito educativo o fim uacuteltimo ndash o

horizonte para o qual deve tender toda a acccedilatildeo educativa ndash natildeo deve fazer com que os fins

intermeacutedios ndash que o tornam possiacutevel e factiacutevel ndash sejam esquecidosrdquo Daiacute a relaccedilatildeo entre fins

meios e procedimentos educativos

A distinccedilatildeo entre fins uacuteltimos da educaccedilatildeo meios e procedimentos educativos eacute fundamental

porque de acordo com Fernando (2010 p 18)

Impele agrave procura e a determinar os recursos o tempo as modalidades e as estrateacutegias para a

realizaccedilatildeo do objectivo educativo que se pretende e permite de certo modo natildeo esquecer que

se natildeo se fizer a diferenccedila entre ideal e real entre fim uacuteltimo e limite da acccedilatildeo humana entre o

horizonte e o limite concreto das coisas e da existecircncia entre o itineraacuterio projectado e a

complexidade do percurso e da vida das pessoas corre-se o risco de se ser desumano e de cair

4 No artigo 97ordm a Lei 1716 define recursos educativos como os meios que contribuem para o desenvolvimento

do SEEA tais como a) Guias e programas pedagoacutegicos b) Manuais escolares C) Meios teacutecnicos e

tecnoloacutegicos de ensino d) Bibliotecas e) Equipamentos f) Laboratoacuterios g) Oficinas h) Instalaccedilotildees e

material desportivo e cultural i) Campos de ensaios treinamento e experimentaccedilatildeo j) Auditoacuterios e salas

especializadas

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no perfeccionismo ou de se desencorajar cansar e por fim de se sentir insatisfeito com aquilo

que se faz

Em consequecircncia nos nossos dias a questatildeo do discurso pedagoacutegico sobre a ldquofinalidaderdquo da

educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU natildeo eacute faacutecil porque a educaccedilatildeo eacute caracterizada hoje por

certa crise pela necessidade de inovaccedilatildeo e pelo pluralismo de ideias de valor e de cultura do

momento histoacuterico actual (Cfr Fernando 2010 Ngaba 2012 Liberato 2014)

Na continuidade da anaacutelise sobre a finalidade da educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU os

autores concordam com Fernando (2010 p 19) ao distinguir dois tipos de tendecircncias

educativas

1 A tendecircncia redutora que ldquoprocura ver a aprendizagem em funccedilatildeo das necessidades da

economia que com as suas solicitaccedilotildees convida a rever os conteuacutedos do ensino e sua

organizaccedilatildeo Esta eacute a linha ou corrente mais seguida nos nossos diasrdquo

2 A tendecircncia aberta que ldquoprocura integrar no conceito de aprendizagem outros elementos

significativos mais ligados agraves dimensotildees psicoloacutegicas sociais e culturais das experiecircncias do

indiviacuteduo enquanto protagonista da aprendizagemrdquo

Para os autores embora a primeira tendecircncia seja a mais seguida actualmente a segunda

parece melhor corresponder agrave dignidade do homem responsaacutevel porque de acordo com a Lei

1716 (art 15ordm) o SEEA deve promover natildeo soacute o cultivo da intelectualidade mas tambeacutem

dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticos

Assim a primeira reduz a finalidade da escola agrave instruccedilatildeo e a segunda supera esta visatildeo

sustentando que a finalidade primaacuteria da actividade pedagoacutegica escolar eacute a de educar sem

contudo deixar de parte a sua funccedilatildeo instrutiva Neste sentido a finalidade da educaccedilatildeo como

instituiccedilatildeo social deve coincidir com a finalidade da escola enquanto instituiccedilatildeo formal e

socialmente mandatada para educar isto eacute para possibilitar o desenvolvimento permanente da

qualidade da pessoa humana com dignidade e integridade

2 Desafios e Perspectivas da Educaccedilatildeo

Nas paacuteginas anteriores ficou clara a ideia de que os resultados qualitativos do SEEA

fundamentalmente relacionados com o PEANU satildeo e devem ser processo-produto de um

funcionamento integral do Sistema Por isso o maior desafio da educaccedilatildeo em Angola hoje eacute o

de vencer a contradiccedilatildeo existente em que satildeo atribuiacutedas culpas isoladas ou ao aluno que natildeo

estuda ou ao professor que natildeo estaacute preparado e natildeo motiva ou agraves mateacuterias que natildeo satildeo

atractivas e adaptadas agrave realidade profissional e do contexto de vida dos alunos ou aos pais

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que natildeo acompanham suficientemente os filhos ou ainda ao proacuteprio Sistema Educativo de

maneira geral

De acordo com a ideia anterior e tendo em conta a revisatildeo bibliograacutefica realizada5 os autores

consideram que os desafios para a melhoria das falhas devem ser enfrentados de forma

sistecircmica porque cada uma das variaacuteveis antes mencionadas eacute importante para o

funcionamento normal ou natildeo do PEA natildeo apenas no niacutevel referenciado mas em todos os

niacuteveis em atenccedilatildeo aos princiacutepios de integridade do Sistema e da obrigatoriedade e qualidade

dos serviccedilos educativos Isto pressupotildee uma poliacutetica educativa ajustada agrave realidade que

incentive a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores e garanta os meios materiais indispensaacuteveis

ao processo

Trata-se de construir uma verdadeira comunidade educativa em que todos os agentes

educativos como a famiacutelia a escola e a comunidade na sua dimensatildeo mais alargada

participem Por isso eacute necessaacuterio repensar a educaccedilatildeo para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de

um paiacutes novo como afirmara Joseacute Eduardo dos Santos (2008) nos seguintes termos ldquoum

novo paiacutes estaacute a nascer e com ele haacute-de florescer tambeacutem um cidadatildeo novordquo Quando

Considerando a perspectiva temporal como resposta os autores acreditam que isso se

realizaraacute agrave medida que a educaccedilatildeo se assuma antes de tudo como uma condiccedilatildeo de verdadeira

cidadania e natildeo de mera transmissatildeo de receitas importadas do exterior e enxertadas no nosso

contexto quando todos os agentes educativos tiverem presente que o educar eacute na verdade

um verbo ldquoque exige uma acccedilatildeo com atitude transformadorardquo (Pereira e Silva 2008 p 24)

Eacute neste sentido que Joseacute Eduardo dos Santos na sua alocuccedilatildeo agrave Naccedilatildeo referia-se ao papel dos

pais dos professores e de todos os actores sociais como verdadeiros agentes educativos da

juventude Trata-se do desafio de construir uma verdadeira sociedade educativa

Na construccedilatildeo dessa sociedade educativa a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores para o SEEA

e sobretudo para o PEANU deve ser entendida como uma consequecircncia de uma formaccedilatildeo

inicial que seja adequada agraves necessidades reais da sociedade para a qual se educa Isso implica

que os professores devem ser formados com base nos desafios da nova Repuacuteblica (Ngaba

2012)

5 Em Ofiacuteco de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Perrenoud (1995) denuncia uma dupla evidecircncia por um

lado haacute alunos que natildeo aprendem e por outro professores que natildeo formam porque ambos se contentam em

exercer manualmente os oacutecios do ofiacutecio enquanto a cabeccedila estaacute ausente Na mesma linha Grilo (2002) entende

que na ldquoNa sociedade do conhecimento hoje aprende-se e ensina-se em circunstacircncias e contextos muito

diversos embora por vezes se ensine mas natildeo se aprenda como ocorre por exemplo em algumas das escolas

Mas partindo do princiacutepio de que quando se ensina haacute sempre algueacutem que aprende o ensino (hellip) eacute um

mecanismo muito importante e uma peccedila fundamental desta sociedaderdquo (p 121)

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A formaccedilatildeo inicial que serve de base para a formaccedilatildeo contiacutenua de professores de acordo com

a Lei 1716 eacute assegurada pelo Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores que estaacute estruturado

em Ensino Secundaacuterio Pedagoacutegico e Ensino Superior Pedagoacutegico O primeiro constitui o

ldquoprocesso atraveacutes do qual os indiviacuteduos adquirem e desenvolvem conhecimentos haacutebitos

habilidades capacidades e atitudes que os capacite para o exerciacutecio da profissatildeo docente na

Educaccedilatildeo Preacute-escolar no Ensino Primaacuterio e no I Ciclo do Ensino Secundaacuterio Regular de

adultos e na Educaccedilatildeo Especial e mediante criteacuterios o acesso ao Ensino Superior

Pedagoacutegicordquo (Art 46)

Por outro lado e de acordo com a mesma Lei um dos fundamentos do SEEA o ldquoEnsino

Superior Pedagoacutegico eacute um conjunto de processos desenvolvidos em Instituiccedilotildees de Ensino

Superior vocacionados agrave formaccedilatildeo de professores e demais agentes de educaccedilatildeo habilitando-

os para o exerciacutecio da actividade docente e de apoio agrave docecircncia em todos os niacuteveis e

subsistemas de ensinordquo (Art 49)

Em correspondecircncia com os estes dois artigos da Lei 1716 compreende-se a relaccedilatildeo

intriacutenseca entre o Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores e os diferentes niacuteveis de ensino do

SEEA

A educaccedilatildeo em Angola vista na oacuteptica dos seus fundamentos legais constitui-se assim numa

ldquoforma de poder porque a educabilidade eacute um poder-ser humano mediado pela educaccedilatildeo

como poder sobre o ser humano que decide sobre o dever-ser humano Eacute um poder ser

porque o ser humano eacute um ser biologicamente aberto agrave criaccedilatildeo de uma segunda naturezardquo

(Monteiro 2004 p 12)

De acordo com o autor referenciado com antecedecircncia todas as formas de poder do ser

humano sobre o outro suscitam a questatildeo da sua legitimidade Esta questatildeo eacute no fundo a do

fundamento e controlo do poder que o professor exerce atraveacutes dos conteuacutedos e formas da

comunicaccedilatildeo que realiza ante o aluno Assim sendo

A ldquolegitimidade pedagoacutegica eacute de natureza social porque ser profissional da

educaccedilatildeo implica um mandato da sociedade atraveacutes do Estado que regula o

exerciacutecio da funccedilatildeo Eacute tambeacutem de natureza individual na medida em que a

competecircncia pessoal tem um efeito de auto-legitimaccedilatildeo junto dos educandos

Mas tem de ser problematizada com mais radicalidade porque a educaccedilatildeo eacute

afinal uma forma de poder do homem sobre o homemrdquo (Monteiro 2004 p

12)

Daiacute que se a educaccedilatildeo eacute uma forma de poder eacute necessaacuterio que se exerccedila tal poder na justa

medida tendo como princiacutepio e limite a Lei que estabelece entre outros aspectos importantes

natildeo soacute a formaccedilatildeo inicial mas tambeacutem a contiacutenua dos professores para que respondam agraves

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necessidades da sociedade angolana

Portanto a anaacutelise da qualidade da educaccedilatildeo como um fenoacutemeno multideterminado que

possibilita caracterizar o Sistema justifica que a formaccedilatildeo contiacutenua de professores variaacutevel

importante para esta caracterizaccedilatildeo natildeo deve ser vista como um simples adereccedilo mas sim

como parte importante de uma cultura institucionalmente legal onde a articulaccedilatildeo entre as

instituiccedilotildees de Ensino Superior (pedagoacutegicas ou natildeo) e as do ensino geral seja

dialecticamente um facto

CONCLUSAtildeO

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento da realidade

educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento que tem como

fundamento a interpretaccedilatildeo da Lei e a revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura

criacutetico-contextual

A revisatildeo bibliograacutefica assente numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional permite

concluir que existem avanccedilos e retrocessos no processo educativo angolano que em termos

de poliacutetica educativa condicionaram sua evoluccedilatildeo positiva bem como sua afirmaccedilatildeo no

cenaacuterio internacional e ateacute mesmo regional

Esta constataccedilatildeo impotildee desafios a vencer na perspectiva da construccedilatildeo de uma sociedade

educativa em que cada agente participe reconhecendo a necessidade contiacutenua da formaccedilatildeo

dos professores para o PEANU como fundamento do SEEA

Referecircncias Bibliograacuteficas

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la Repuacuteblica de Angola Tesis doctoral La Habana Universidade de Ciencias Pedagoacutegicas `Enrique Joseacute

Varonaacute

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1 Os artigos podem ser escritos em portuguecircs inglecircs espanhol e francecircs

2 Tecircm que ser ineacuteditos e natildeo mais de 20 paacuteginas notas de peacute de paacuteginas incluiacutedas

3 As resenhas submetidas natildeo devem superar 6 paacuteginas

4 O envio de artigo deveraacute ser acompanhado por um abstract no idioma original do artigo e

em inglecircs e no miacutenimo com trecircs palavras-chave

5 O formato das letras eacute Times New Roman 12 justificado e com 15 de espaccedilo

6 Os textos devem ser enviados em formato Word Perfect ou em Word para o PC

7 Os artigos enviados devem ser assinados pelos autores que tambeacutem deveratildeo indicar os

seus graus acadeacutemicos e filiaccedilatildeo institucional

8 A redacccedilatildeo da revista reserva o direito de publicar ou natildeo

9 Haveraacute sempre um comiteacute externo para avaliaccedilatildeo dos artigos

10 Os tiacutetulos dos artigos devem estar na liacutengua original e em caso de necessidade em inglecircs

11 As referecircncias bibliograacuteficas e notas de peacute de paacuteginas devem ser numeradas As

referecircncias bibliograacuteficas devem ser completas na primeira cita utilizando a norma

claacutessica para as Ciecircncias Sociais e Humanas e Vancouver ou AMA para as Ciecircncias de

Sauacutede

12 Aceitam-se os projectos de investigaccedilatildeo que natildeo superam 8 paacuteginas

LIVROS ELECTROacuteNICOS

As citas devem comeccedilar com o primeiro e uacuteltimo nome do (s) autor (es) tiacutetulo do livro

electroacutenico (em itaacutelico) editor data de publicaccedilatildeo nuacutemero da paacutegina citada Endereccedilo Web

(Disponiacutevel a data da consulta)

PROCESSO DE AVALIACcedilAtildeO E DE SELECcedilAtildeO DOS ARTIGOS

1 Os artigos devem ser enviados para o e-mail da revista ou do Director nos prazos

indicados

2 A Direcccedilatildeo acusaraacute a recepccedilatildeo do trabalho sem necessariamente manter contacto com o

autor antes da decisatildeo final de publicar ou natildeo

3 Os autores dos artigos satildeo responsaacuteveis pela sua revisatildeo ortograacutefica e gramatical

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Page 4: Página 1 de 74 - Início | ISPSN · 2019. 5. 3. · Página 5 de 74 que traz um começo, que “cria um começo” e que reinventa um começo a partir da dor e da cura. A cidade

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EDITORIAL

AS LEIS DA PERIFERIA E A CIDADE FILOSOacuteFICA

Nos uacuteltimos tempos temos vivido um surto gritante de inseguranccedila na cidade A preocupaccedilatildeo

com a questatildeo da seguranccedila ultrapassou aquela de encontrar um emprego aliaacutes razatildeo mais

do que suficiente porque soacute os vivos podem trabalhar soacute aqueles que estatildeo em boas

condiccedilotildees fiacutesicas podem trabalhar A periferia criou novas leis e eacute na base destas leis que todo

o mundo vive a lei do medo a lei do estar-sem-estar enfim a lei do aprisionamento na

liberdade Parece que a periferia tomou conta da cidade porque provavelmente poucas

vezes ela foi escutada sem o entardecer do verniz O infractor eacute visto como perifeacuterico e como

delinquente e esquecemos que a proacutepria cidade pode ser perifeacuterica a partir do momento que

natildeo responde agraves expectativas da cidade Nenhum cidadatildeo espera do poliacutetico (salvo aquele

que eacute tremendamente ingeacutenuo) a honestidade a integridade ou honradez porque tambeacutem

ele sabe que natildeo tem todas estas qualidades aliaacutes natildeo tem e parece que natildeo lhes

preocupam tanto desde que os seus problemas sejam resolvidos E eacute isso que ele espera do

poliacutetico Espera que este resolva os seus problemas e a inseguranccedila eacute um destes problemas

que ele espera que o poliacutetico resolva A natildeo resoluccedilatildeo do problema tambeacutem conduz agrave cidade

na linguagem perifeacuterica naquilo que natildeo eacute o centro natildeo estaacute no centro e natildeo faz o centro

natildeo eacute tatildeo importante quanto o centro Nunca nos perguntamos se os verdadeiros

delinquentes satildeo aquelas pessoas que violam as leis da cidade de modo expliacutecito porque

invadem as nossas casas porque apropriam-se dos nossos bens dentro e fora de casa

Provavelmente natildeo sejam os verdadeiros delinquentes Porque os piores delinquentes podem

ser aqueles que natildeo tecircm a consciecircncia traacutegica natildeo tecircm consciecircncia infeliz como diz Spinoza

Dormem mas dormem porque natildeo pensam nos outros porque natildeo se revecircem nos outros e

porque criaram uma legitimidade proacutepria para a sua forma de violecircncia e nisto se parecem

com os proponentes da violecircncia perifeacuterica De modo que soacute o genealogista pode salvar a

cidade das suas duas violecircncias a violecircncia daqueles que estatildeo estampados como violentos e

a violecircncia daqueles que dormem apesar de serem tremendamente violentos O genealogista

eacute o filoacutesofo diz o Nietzsche de Foucault e de Deleuze mas natildeo aquele filoacutesofo que aceita que

todo o mundo olhe para ele como aquele que reflecte nas coisas ou que medita nas coisas

como se as outras aacutereas do saber natildeo reflectissem natildeo meditassem O genealogista eacute aquele

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que traz um comeccedilo que ldquocria um comeccedilordquo e que reinventa um comeccedilo a partir da dor e da

cura A cidade deve ser filosoacutefica natildeo para fazer aquilo que jaacute foi feito aquilo que jaacute foi criado

O genealogista natildeo pode aceitar os conceitos que servem apenas para ordquo limpar e fazer

brilharrdquo numa falsa luminosidade O genealogista deve dar a cidade o entendimento do

entristecimento O genealogista enquanto educador natildeo traz apenas a reflexatildeo e a

contemplaccedilatildeo traz sobretudo para a cidade o entristecimento porque vem para dizer aos

outros aquilo que eles natildeo querem ouvir vem para dizer aquilo que mais ningueacutem diria Eacute por

isso que a resposta filosoacutefica deve ser dura contrariamente agraves outras aacutereas do saber porque eacute

uma resposta que consiste no entristecimento A filosofia como educaccedilatildeo encara um

entristecimento mas um entristecimento alegre porque conduz agrave libertaccedilatildeo Ela oferece-nos

a possibilidade de perguntarmo-nos o que somos o que fazemos e se a nossa resposta for

honesta connosco mesmo poderemos fazer um bom trabalho para a cidade O genealogista eacute

um incomodador soacute pode incomodar e soacute deve incomodar para a libertaccedilatildeo tem que

proporcionar aos outros um comportamento de Lisias de Fedro Ter vergonha do que se

pensa saber

Por uacuteltimo dizer que esta 13ordf ediccedilatildeo conteacutem alguns artigos publicados na revista OPINIAtildeO

FILOSOacuteFICA da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUCRS) traz as mais

variadas reflexotildees no acircmbito acadeacutemico-cientiacutefico

A este respeito o Professor Flaviano Kambalu reflecte sobre o conceito de pessoa a sua

complexidade e a sua relaccedilatildeo com a unidade africana Tenta encontrar os princiacutepios e os

fundamentos metafiacutesicos que podem sustentar a possibilidade da uniatildeo

O Dr Nlando Faustino reactualiza ao histoacuterico pensador das independecircncias (agrave sua maneira)

Frantz Fanon Atraveacutes da obra ldquoOs condenados da terrardquo de Fanon faz uma leitura

desconstrutivista da colonizaccedilatildeo vista como uma oportunidade para a civilizaccedilatildeo Recusa com

Fanon a ideia de que a ldquocolonizaccedilatildeo igual a civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo e

defende precisamente a ideia da despersonalizaccedilatildeo imanente do processo colonializador

Por sua vez Inaacutecio Valentim lanccedila a interrogaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo e o processo educativo

liberal em Aacutefrica Discute a ideia da possibilidade de educar e com quem ser educado

Os Doutores Abel da Silva e Irene Moiseacutes Inaacuteculo pensam a educaccedilatildeo desde a perspectiva natildeo

universitaacuteria a partir do cunho da lei Procuram compreender e destacar a negatividade de

uma intervenccedilatildeo excessiva dos elementos natildeo autorizados no processo educativo

Inaacutecio Valentim

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IacuteNDICE

EDITORIAL 4

ARTIGOS 7

FILOSOFIA

O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA 8

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU

HISTOacuteRIA

A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA A PARTIR DE FRANTZ FANON 20

NLANDU MATONDO FAUSTINO

PEDAGOGIA

laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO LIBERAL EM AacuteFRICA 44

INAacuteCIO VALENTIM

EDUCACcedilAtildeO

CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS 62

ABEL JOSEacute DA SILVA

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS

NORMAS DE PUBLICACcedilAtildeO 72

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FILOSOFIA O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU a

Resumo

A vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante A Aacutefrica eacute um complexo e heterogeacuteneo mosaico

de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees cujo fundamento metafiacutesico de origem

representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica O fundamento metafiacutesico de origem

eacute importante porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do

que o que os separa Nisto o diaacutelogo eacute necessaacuterio para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente

se vatildeo intensificando na actualidade O diaacutelogo conducente agrave unidade natildeo obriga mas se

move no respeito da liberdade da pessoa e da soberania de cada Estado Enfim trata-se de um

diaacutelogo sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Palavras-chave Pessoa humana Aacutefrica Fundamento Metafiacutesico Fundamento Metafiacutesico e

Diaacutelogo

Abstract

The vocation to unity is a natural feature of the human because it is essentially free relational

and dialoguing Africa is a complex and heterogeneous mosaic of peoples languages races

cultures ethnic groups and religions whose metaphysical foundation of origin represents an

indivisible unity in historical reality The metaphysical basis of origin is important because in

all fields everything that unites human beings is stronger than what divides them In this

dialogue is necessary to overcome the historical prejudices and disagreements the divisions

intolerances and fundamentalisms that unfortunately are intensifying at the present time The

a Doutor em Filosofia Religioso Saletino e Decano da Faculdade de Direito da Universidade Katiavala Bwila

Benguela ndash Angola

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dialog leading to the unit doesnrsquot oblige but moves in respect of freedom of the person and

of the sovereignty of each State At last it is a sincere dialog and fruitful that acknowledging

all the legitimate diversity promotes respect harmony and collaboration

Keywords The Human Person Africa Metaphysical foundation Metaphysical foundation

and Dialogue

Premissa

No actual contexto de crescente e incisiva globalizaccedilatildeo eacute difiacutecil subtrair-se ao dever ou agrave

necessidade de prestar conta de si mesmos Neste clima cultural tambeacutem a unidade africana eacute

chamada a justificar-se ou seja a justificar o seu direito de continuar a ser Agrave primeira vista

poderia parecer que a sua justificaccedilatildeo natildeo seja hoje um problema visto que eacute cada vez mais

difuso o uso do termo unidade e da expressatildeo uniatildeo africana Mas urge reflectir nesta unidade

agrave luz da filosofia para lhe compreender o seu verdadeiro significado

Aprendemos com Nicola Abbagnano que laquonada do que eacute humano eacute estranho agrave filosofia [hellip]

aliaacutes esta eacute o mesmo homem que se interroga a si mesmo e procura as razotildees e o fundamento

do seu serraquo1 Esta eacute a filosofia na sua adesatildeo agrave existecircncia humana e ao mesmo tempo na sua

amplitude em relaccedilatildeo aos problemas do homem Natildeo de um homem que vive no Uacuterano mas

do homem concreto que na sua vida experimenta acircnsias e insuficiecircncias alegrias e

esperanccedilas tristezas e anguacutestias2 Portanto todas as coisas satildeo susceptiacuteveis de reflexatildeo

filosoacutefica inclusive a proacutepria unidade africana exige filosofar

De facto filosofar eacute examinar a realidade e isso de um modo ou de outro todos fazemos

constantemente Ao se tentar resolver os problemas globais sociais ou pessoais eacute impossiacutevel

se abster da racionalidade Entretanto haacute uma gama de situaccedilotildees onde a razatildeo natildeo pode

avanccedilar por falta ou excesso de dados o que impossibilita decisotildees objectivas Entra em cena

entatildeo a parte subjectiva humana mais especificamente a Intuiccedilatildeo como meio de direccionar

nosso foco de entendimento e apontar caminhos a serem trilhados pela racionalidade

Soacute que actualmente a filosofia passa por uma perda de identidade Existe uma verdadeira

inflaccedilatildeo do termo filosofia e como toda a inflaccedilatildeo eacute sintoma de queda de valores de crise

difusa e profunda Hoje o termo filosofia indica muitas vezes coisas difiacuteceis proacuteprias do

hiperuracircnio e natildeo o homem que natildeo aceitando passivamente as informaccedilotildees fornecidas pela

experiecircncia imediata desenvolve uma postura de questionamento proacuteprio sobre a realidade

interroga-se a si mesmo e metodoloacutegica e ordenadamente procura as razotildees e o fundamento

1 N ABBAGNANO Storia della filosofia I UTET Torino 1963 p XVII

2 Cf CONCIacuteLIO VATICANO II Gaudium et Spes n 1

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do seu ser buscando como faziam os gregos um instrumento fundamental e o uacutenico

racionalmente possiacutevel para a soluccedilatildeo dos problemas da vida

A confusatildeo com relaccedilatildeo agrave filosofia e a desinformaccedilatildeo geral que permeia mesmo o meio

acadeacutemico chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimeacutericas no sentido de se

eliminar a Filosofia Entretanto ciecircncia alguma pode se ocupar da macro realidade O

empirismo natildeo pode ser aplicado agrave civilizaccedilatildeo humana agrave mente ao total Quem estabelece a

comunicaccedilatildeo entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia Cremos ser

este o quadro em que se deve inserir a reflexatildeo sobre a unidade africana que aqui fazemos

partindo da metafiacutesica do termo pessoa

Tal reflexatildeo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vatildeo

desafiando a unidade do continente africano Haacute uma verdade hoje admitida por quase todos

e ateacute pelos mais preconceituosos arqueoacutelogos de que a humanidade e a civilizaccedilatildeo

desenvolveram-se na noite dos tempos no berccedilo deste continente gigantesco chamado Aacutefrica3

Temos consciecircncia de que a Aacutefrica eacute um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas Embora esta imensidatildeo nos aconselhe a natildeo fazer

generalizaccedilotildees na avaliaccedilatildeo dos problemas natildeo nos impede de buscar e propor soluccedilotildees aos

problemas inerentes agrave falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito

de pessoa

1 Breve excursus histoacuterico-filosoacutefico do conceito de pessoa

11 A densidade semacircntico-etimoloacutegica do termo pessoa

A densidade semacircntica do termo pessoa formou-se no tempo graccedilas ao contributo cultural de

muitos filotildees de reflexatildeo O conceito de pessoa tem pois um percurso rico quanto complexo

De recordar que na antiguidade greco-romana natildeo se encontra bem claro o conceito de pessoa

Todavia seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias

Etimologicamente e segundo algumas pesquisas atentas os primeiros indiacutecios do termo

pessoa encontram-se no acircmbito da cultura etrusca De facto o termo phersu utilizado nos

ritos em honra de Phersepona e que significaria maacutescara4 passou a significar o indiviacuteduo

3 Cf Carlos SERRANO ndash Mauriacutecio WALDMAN Memoacuteria drsquoAacutefrica A temaacutetica africana em sala de aula

Cortez Editora Satildeo Paulo 20082 p 75 Cf Tambeacutem Luigi TRANFO Africa La transizione Tra sfruttamento e

indifferenza EMI Bologna 1995 p 269 Pedro F MIGUEL Aacutefrica Uma visatildeo global Viverein Roma 2013

p 11 4 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique in

laquoRevue des sciences religieusesraquo XXII (1948) 277-299 A MILANO Persona in teologia Dehoniane Napoli

1984 pp 16-71

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mascarado a personagem que o actor representa no drama ou seja o indiviacuteduo humano

moral e social5

Nesta senda do indiviacuteduo mascarado Edith Stein observa que visto que nas comeacutedias e nas

trageacutedias se representavam personagens famosos o nome pessoa foi imposto para significar

sujeitos que tinham um papel na sociedade por isso alguns definem a pessoa como laquouma

hipoacutestase marcada por uma qualificada conexatildeo com a sua dignidaderaquo 6

Natildeo encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Boeacutecio que liga pessoa ao

verbo personare aludindo agrave amplificaccedilatildeo da voz de quem fala por detraacutes da maacutescara Assim

pessoa eacute segundo Boeacutecio laquodecta est volvatur sonusraquo 7 Tambeacutem natildeo eacute correcto afirmar que

pessoa seja a contracccedilatildeo de per se una como quereria a proposta de Alano di Lilla8

12 O percurso evolutivo do conceito de pessoa

Com Ciacutecero e Seacuteneca a evoluccedilatildeo do conceito de pessoa deu passos importantes sem

contudo chegar agrave definiccedilatildeo hodierna

Do segundo seacuteculo em diante o conceito de pessoa entra no uso corrente na onda do esforccedilo

de clarificaccedilatildeo exigida pelas controveacutersias teoloacutegicas sobre o dogma trinitaacuterio Poreacutem foi

com Boeacutecio que o conceito de pessoa adquire o actual conteuacutedo teoacuterico E isto no contexto da

clarificaccedilatildeo conceitual sobre as questotildees teoreacuteticas que emergiam da doutrina sobre a

Trindade

Segundo Boeacutecio laquopersona est rationalis naturae individua substantiaraquo (pessoa eacute substacircncia

individual de natureza racional) 9 Boeacutecio elabora esta definiccedilatildeo servindo-se do patrimoacutenio

filosoacutefico grego e latino De facto ele sistematiza os conceitos latinos de persona natura e

substantia estabelecendo uma equivalecircncia com os vocaacutebulos gregos πρόσωπον ούσία

ύπόστασις que na oscilaccedilatildeo terminoloacutegica do tempo eram usados de maneira equiacutevoca e

confusa

Com Boeacutecio a natura toma definitivamente o lugar de ούσία entendida como essecircncia e

substantia passa a traduzir o grego ύπόστασις10

Satildeo poucos os filoacutesofos que no medievo natildeo

5 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique op

cit pp 298-299 6 Edith STEIN Essere finito e essere eterno Per una elevavazione al senso dellrsquoessere Cittagrave Nuova Roma

1988 p 380 7 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1344

8 Cf Enrico BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico in AAVV Persona e

personalismo Aspetti filosofici e teologici Fondazione Lanza Padova 1992 p 43 9 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1343

10 Cf Claudio MICAELLI ldquoNaturardquo e ldquoPersonardquo nel ldquoContra Eutychen et Nestoriumrdquo di Boezio Osservazioni

su alcuni problemi filosofici e linguistici in Luca OBERTELLO (a cura di) Atti del Congresso Internazionale di

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tinham encontrado a definiccedilatildeo de Boeacutecio satisfatoacuteria porque essa interpretava a realidade que

se tentava definir precisando-lhe o significado

Esta definiccedilatildeo pessoa eacute substacircncia individual de natureza racional que durante o medievo

faz cultura e caracteriza a tradiccedilatildeo teoloacutegica latina surge sob o impulso das disputas contra os

nestorianos os quais sustentavam que em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em

uniatildeo permanente e moral e contra os monofisistas que sustentavam a existecircncia em Cristo de

uma soacute natureza a divina11

Na definiccedilatildeo de Boeacutecio o termo pessoa tem um sentido mais especiacutefico e refere-se agrave estrutura

fundamental e metafiacutesica do indiviacuteduo ou seja agrave substacircncia individual dotada de uma

natureza racional Quer dizer nem todos os seres naturais satildeo pessoas mas apenas aqueles

substanciais

Por isso a pessoa eacute substacircncia individual Eacute individual porque tem caracteriacutesticas que a

distinguem dos outros indiviacuteduos da mesma espeacutecie caracteriacutesticas que natildeo satildeo definiacuteveis

nem comunicaacuteveis aos outros Eacute substacircncia porque eacute existente em si por si e em nenhum

outro Dizer substacircncia individual significa portanto dizer que a pessoa natildeo tem necessidade

para existir de aderir a um outro ser e conteacutem no seu quid alguma coisa de

incomunicabilidade que divide com nenhum outro12

A pessoa eacute igualmente de natureza racional O seu conhecer natildeo eacute impresso na mateacuteria nem eacute

limitado por essa Dizer natureza racional significa por isso que a pessoa natildeo soacute exerce as

actividades conexas agrave natureza mas tem a capacidade de desenvolvecirc-las capacidade possuiacuteda

por natureza ou seja com o nascimento13

A pessoa eacute pois o gau mais elevado de ser

substancial porque essa eacute consciente do seu ser substacircncia individual

Toda a pessoa eacute portanto antes de mais um indiviacuteduo Mas ao mesmo tempo muito mais que

indiviacuteduo porque natildeo eacute uma personagem mas uma substacircncia individual que possui em si

uma certa dignidade em razatildeo da sua racionalidade Por isso natildeo basta afirmar que a pessoa eacute

Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott 1980) Herder Roma 1981 p 336 11

Fruto destas disputas eacute a obra de Boeacutecio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium

cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestoacuterio De recordar poreacutem que desde

os primeiros seacuteculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importacircncia ndashcom Tertuliano os Padres

Capadoacutecios S Agostinho e S Joatildeo Damasceno ndash nos interrogativos teoreacuteticos que emergiam da Revelaccedilatildeo e nas

controveacutersias teoloacutegicas acerca do dogma trinitaacuterio Tais controveacutersias se concluiacuteram com a foacutermula das trecircs

pessoas ou hipoacutestases na uacutenica substacircncia ούσία ou natureza divina Os Padres da Igreja separando de maneira

definitiva o conceito de πρόσωπον da referencia agrave personagem

traacutegica ou coacutemica deram focirclego a um aprofundamento do

conceito de pessoa tambeacutem na reflexatildeo filosoacutefica (cf Gregorio DI NISSA La grande catechesi CIttagrave Nuova

Roma 1982 p 51 Gregorio NAZIANZENO I cinque discorsi teologici CIttagrave Nuova Roma 1986 p 175)

12 Cf San Tommaso DrsquoAQUINO Questiones disputatae De potentia q 9 a 2 ID Summa Theologiae I q

29 a 13

Cf E BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico op cit p 48

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algo de individual e nem mesmo que eacute uma substacircncia ou uma natureza para defini-la do

ponto de vista metafiacutesico

Visto que a individualidade eacute acidente isto eacute pertence agravequilo que existe como perfeiccedilatildeo e eacute

caracteriacutestica de um sujeito e enquanto a substacircncia e a natureza indicam o que eacute proacuteprio da

espeacutecie ocorre a substacircncia individual de uma natureza racional para que exista pessoa

Ocorre portanto que se refira a uma substacircncia individualizada de um ser racional para que

exista pessoa do ponto de vista metafiacutesico Somente um ser racional pode corresponder agrave

dignidade de pessoa porque pessoa eacute enfim um ser em si que natildeo pode ser substituiacutedo por

um outro e que eacute capaz de operaccedilotildees proacuteprias e racionais

Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da foacutermula de Boeacutecio Satildeo

Tomaacutes elabora a sua definiccedilatildeo de pessoa como laquosubsistens in rationali naturaraquo 14

Com a foacutermula subsistens in rationali natura Satildeo Tomaacutes evidencia natildeo soacute o aspecto comum ndash

pressuposto universalmente aceite da pessoa ndash assim como expresso pela substacircncia

individual da definiccedilatildeo de Boeacutecio mas evidencia sobretudo aquele individual isto eacute o

existente considerado na acepccedilatildeo mais proacutepria ou seja o seu ser uacutenico e irrepetiacutevel De facto

na definiccedilatildeo de Boeacutecio a substacircncia individual parece ser concebida como individualidade A

individualidade poreacutem eacute determinaccedilatildeo da coisa e natildeo ainda do quem eacute uma conotaccedilatildeo

natural da pessoa e natildeo da mesma pessoa

Satildeo Tomaacutes condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o

que de mais nobre e perfeito haacute no universo e por isso afirma laquopersona significat id quod est

perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturaraquo 15

Pessoa eacute a natureza racional que existe num indiviacuteduo concreto Por isso somente aquilo que

eacute subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa E eacute o subsistir de maneira

individual na natureza racional que confere a dignidade agrave pessoa ou seja laquoquia magnae

dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur

personaraquo 16

De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana natildeo eacute a abstracta razatildeo ndash como parece

indicar a natureza racional da definiccedilatildeo de Boeacutecio ndash mas a racionalidade possuiacuteda por um

subsistente ou seja de um ser concreto E este em virtude de um actus essendi proacuteprio que

confere actualidade agrave substacircncia e agraves suas determinaccedilotildees Tudo isto que a pessoa sabe quer e

faz brota do proacuteprio acto em virtude do qual eacute aquilo que eacute

14

Cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 29 a 3 c 15

Ibidem 16

Ibidem

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Da elaboraccedilatildeo de Satildeo Tomaacutes compreende-se essencialmente o caraacutecter racional da pessoa

racional enquanto capaz de ser consciente do proacuteprio ser17

A pessoa eacute todo o indiviacuteduo de

natureza racional livre atravessado por tradiccedilotildees e culturas responsaacutevel relacional

inteligente volitivo dialogante e por isso fundamento de unidade entre indiviacuteduos e povos

2 Do conceito da pessoa agrave construccedilatildeo da unidade africana

Antes da conquista das independecircncias os colonos procuravam inflamar as diferenccedilas

fechando as coloacutenias em si mesmas num clima de reserva ciumenta de distacircncia e quase de

desconfianccedila Com as independecircncias os encontros entre paiacuteses antigamente colonizados se

multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaboraccedilatildeo E com a criaccedilatildeo da

Organizaccedilatildeo da Unidade Africana (OUA) que veio desempenhar o papel extremamente

precioso de lugar de encontros de oacutergatildeo de diaacutelogo e de troca de experiecircncias entre Chefes de

Estado e de Governo africanos o esforccedilo para a unidade se exprimiu de modo mais visiacutevel

Contudo a vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante E enquanto essencialmente relacionais e

dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e

que os distinguem das outras espeacutecies de seres Todos os homens tecircm as mesmas tendecircncias e

exigecircncias fundamentais quanto ao aneacutelito da unidade Todo o homem eacute chamado agrave comunhatildeo

e estaacute aberto agrave comunicaccedilatildeo e ao diaacutelogo

O homem eacute capaz pois de intercacircmbio de dar-se aos outros e deles receber porque a sua

natureza o abre agrave comunhatildeo agrave comunicaccedilatildeo e agrave unidade A sua natureza relacional e

dialogante natildeo eacute apenas uma necessidade mas eacute sobretudo um dom que o ambiente que o

impede de continuar fechado e isolado no egoiacutesmo e aberto aos conflitos De facto o homem

eacute aquilo que eacute pela sua inconfundiacutevel individualidade mas tambeacutem pelo seu ser aberto ao

outro e agraves realidades extriacutensecas por causa da sua sociabilidade A sociabilidade eacute pois uma

expressatildeo da sua humanidade e a unidade uma sua actuaccedilatildeo

Por isso a unidade africana pressupotildee a uniatildeo consciente entre africanos e o comum e

orgacircnico esforccedilo para conseguir o bem humano integral A unidade africana na base da

descoberta da comum humanidade articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para

com todos e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros

17

Muitas vezes o termo racional eacute confuso com o termo intelectual Na verdade intelecto e razatildeo diferem O

intelectual eacute um conhecimento simples e imediato enquanto o racional passa de um conhecimento simples para

um mais complexo (cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 59 a 1)

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povos do continente para alcanccedilar o bem comum18

Enfim a unidade encontra a sua raiz na essecircncia metafiacutesica da pessoa humana e exprime por

conseguinte a estrutura ontoloacutegica dos africanos e diz respeito agrave proacutepria possibilidade da sua

realizaccedilatildeo Por isso as divisotildees e os conflitos lupescos natildeo fazem parte da normalidade

africana

Portanto apesar de Aacutefrica ser um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas o continente africano explica-se como unidade na

diversidade E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos eacute garantida

metafisicamente pela origem pelo facto mesmo de sermos africanos ndash do Cabo ao Cairo de

Dar es-Salaam a Dakar ndash mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas

O fundamento metafiacutesico de origem representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica

uma forccedila inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as

diversidades presentes nos Estados africanos a incomunicabilidade geograacutefica a hipocrisia

as tensotildees e os desejos separatistas e conduzir a um compromisso claro entre os africanos

respeitando as suas diversidades e os seus interesses reciacuteprocos empenhando num projecto

comum para uma Aacutefrica mais humana e mais social em que reinem sempre o respeito muacutetuo

o reconhecimento e a protecccedilatildeo dos direitos humanos fundamentais e se faccedila valer o lado

melhor dos africanos os valores basilares da paz da justiccedila da liberdade da toleracircncia da

participaccedilatildeo e da solidariedade Este fundamento metafiacutesico de origem eacute importante

porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do que o que os

separa

Contudo a unidade africana deve ser construiacuteda e aprofundada de forma dinacircmica e

incessante porque os pressupostos da uniatildeo representados pelos factores geograacuteficos pela

multiplicidade das tradiccedilotildees regionais nacionais culturais e religiosas pelos interesses

econoacutemicos trocas econoacutemicas paciacuteficas e seguras pela heranccedila e tradiccedilotildees socioculturais

africanas mais autecircnticas em si natildeo bastam para criar a uniatildeo poliacutetica Eacute necessaacuterio voltarmos

agrave metafiacutesica da unidade e reelaborar juntos a histoacuteria da Aacutefrica que aleacutem das muito boas

experiecircncias de unidade eacute ainda caracterizada nalguns casos por desentendimentos lutas

fratricidas entre etnias e ateacute por conflitos beacutelicos

Com razatildeo Kwame Nkrumah apelava na sua obra A Aacutefrica deve unir-se agrave unidade natildeo

tanto para indicar a necessidade ou condiccedilatildeo de estar unidos mas sobretudo o acto de se unir

18

Cf L F KAMBALU A democracia personalista Os fundamentos onto-antropoloacutegicos da poliacutetica agrave luz de

Pietro Pavan Paulinas Lisboa 2012 pp 51-64

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porque os pressupostos geograacuteficos e econoacutemicos por si soacute natildeo bastam para criar a uniatildeo

Ocorrem instituiccedilotildees vinculativas bem como vontade e consciecircncia de pertenccedila a um mesmo

continente chamado Aacutefrica A consciecircncia deve preceder agrave formaccedilatildeo poliacutetica da unidade

africana que natildeo se poderaacute alcanccedilar de forma duradoira sem valores comuns Outrossim

ocorre recordar que a unidade eacute em si um bem somente quando eacute ordenada quando responde

agrave razatildeo objectiva da verdade da justiccedila e do bem O mesmo eacute dizer que a unidade eacute um bem

que vale tanto quanto respeita o que haacute de valor nas partes que a compotildeem

A unidade perde valor quando se realiza de modo maciccedilo esmagador absoluto destruidor e

totalitaacuterio abolindo o espaccedilo que permite o diaacutelogo destruindo desta forma a esfera em que os

homens agem tomam decisotildees comuns e operam colaborando Por isso sem liberdade nem

diaacutelogo a unidade africana seria impossiacutevel porque a Aacutefrica natildeo seria mais o espaccedilo onde cada

indiviacuteduo aos outros as proacuteprias capacidades em vista do bem comum segundo princiacutepios de

igualdade substancial Neste sentido a Aacutefrica seria um conjunto de indiviacuteduos e por

conseguinte um conjunto de Estados sem laccedilos entre si Cada um veria o outro natildeo como um

semelhante com quem eacute chamado a relacionar-se e tomar iniciativas mas um inimigo de

quem se defender

Enfim para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma

poliacutetica que envolva todas as pessoas e forccedilas a todos os niacuteveis na busca do bem comum ou

seja na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem agraves exigecircncias

intriacutensecas e imutaacuteveis da natureza humana Trata-se pois de condiccedilotildees econoacutemicas

juriacutedicas morais e religiosas que tornam possiacutevel e favorecem o conseguimento pleno e faacutecil

do desenvolvimento integral das pessoas

As exigecircncias histoacutericas e os significados de unidade satildeo sempre mutaacuteveis Mudam conforme

se entenda o que leva os homens a unirem-se a niacutevel ontoloacutegico e histoacuterico ou seja

consoante a efectiva existecircncia daquele princiacutepio originaacuterio em cada homem e povo ou

consoante o plano social poliacutetico religioso e cultural em que se actua a unidade De facto

natildeo poucas vezes os proacuteprios acontecimentos histoacutericos e as proacuteprias diferenccedilas exigem que

se redefinam os instrumentos poliacuteticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova

filosofia de relaccedilotildees entre povos e Estados que vatildeo aleacutem do que no passado natildeo foi possiacutevel

Tais diferenccedilas podem provir de uma profunda oposiccedilatildeo e de uma divergecircncia quanto ao fim

As diferenccedilas podem provir tambeacutem de uma dupla visatildeo de um mesmo objectivo Seja qual

for a origem das diferenccedilas a atitude sadia eacute compreender as realidades e promover o diaacutelogo

e ver como as proacuteprias diferenccedilas permitem situar melhor o objecto

Por isso eacute mister que nos diversos acircmbitos questotildees e temas sobre os quais incumbe o risco

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da divisatildeo os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma soacute voz cultivando e

empenhando-se intensa livre e conscientemente ao diaacutelogo

O diaacutelogo eacute fundamental para a vida poliacutetica sobretudo quando exerce a funccedilatildeo da busca da

verdade e do bem No caso da Aacutefrica o diaacutelogo torna-se uma exigecircncia insubstituiacutevel para

superar as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente se vatildeo intensificando

na actualidade O diaacutelogo eacute igualmente fundamental para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos culturais raciais sociais e religiosos e promover e concretizar a

unidade a justiccedila e a paz natildeo soacute por causa do pluralismo eacutetnico cultural racial social e

religioso do continente mas sobretudo por causa do seu pluralismo poliacutetico pois atraveacutes do

diaacutelogo cada indiviacuteduo ou povo enriquece o proacuteprio ponto de vista e converge para as noccedilotildees

de verdade e de bem humano e se empenha a potenciaacute-las corresponsavelmente para a

unidade

O diaacutelogo eacute tambeacutem essencial para a unidade poliacutetica social e econoacutemica e o

desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos pois tal como os povos tambeacutem

os Estados tecircm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si proacuteprios e no encontro

com os outros se realizarem plenamente Por isso o isolamento seria um impedimento

insuperaacutevel para a unidade e a realizaccedilatildeo do proacuteprio continente africano

Tal diaacutelogo deve basear-se em valores princiacutepios e normas aceites e deve ser assegurado por

um sistema constitucional e de direito pela promoccedilatildeo da justiccedila da paz e da liberdade para o

continente africano pela experiecircncia da verdade e pela busca constante de compreensatildeo dos

fundamentos que tecircm plasmado a Uniatildeo Africana

O diaacutelogo natildeo se processa sem dificuldades e eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes da discussatildeo e

argumentaccedilatildeo eacute reconheciacutevel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a

dignidade pessoa humana e eacute possiacutevel a diversos niacuteveis no plano da experiecircncia quotidiana

para as questotildees sociais comunitaacuterias familiares eacuteticas e ecoloacutegicas no plano do encontro

das culturas para o respeito e o melhor conhecimento reciacuteproco no plano desportivo para o

cultivo do sentimento de pertenccedila a um todo continental no plano poliacutetico para questotildees que

dizem respeito agrave seguranccedila econoacutemica cultural e juriacutedica no plano militar para questotildees que

dizem respeito agrave garantia da seguranccedila e integridade territorial bem como agrave erradicaccedilatildeo de

conflitos em Aacutefrica

Trata-se de um diaacutelogo gradual e sempre pronto a recomeccedilar Um diaacutelogo que natildeo obriga mas

se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado trata-se de um

diaacutelogo que natildeo eacute apenas instrumental nem nasce de taacutecticas ou de interesses mas um diaacutelogo

sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

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concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Enfim trata-se de uma actividade que apresenta motivaccedilotildees exigecircncias e dignidade proacutepria e

implica um muacutetuo esforccedilo de compreensatildeo por parte dos interlocutores que se compreendem

verdadeiramente quando descobrem aleacutem dos laccedilos que os unem e os integram uns aos outros

e dos valores a eles comuns as razotildees ideais em que cada um deles se inspira para realizaacute-los

Outrossim tal diaacutelogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente beneacuteficos como o

aumento da maturidade dos africanos ndash numa penetraccedilatildeo mais autecircntica da complexa

realidade do mundo hodierno em que a Aacutefrica se move ndash a resoluccedilatildeo dos problemas a

superaccedilatildeo dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de

todas as naccedilotildees bem como pela seguranccedila e bem-estar do continente africano

Tudo isso levanta muitos e difiacuteceis problemas de ordem econoacutemica social e poliacutetica Poreacutem

estaacute de facto que diante das diferenccedilas e dos antagonismos que o continente africano vive

actualmente soacute a consciecircncia da comum humanidade e o diaacutelogo franco luacutecido e proveitoso

pode permitir construir um caminho de toleracircncia e aceitaccedilatildeo muacutetuas para a realizaccedilatildeo de uma

convivecircncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da

pessoa humana da mobilidade interna da integraccedilatildeo soacutecio-econoacutemica do continente e do

florescimento de um mercado interno Isto faraacute tambeacutem com que os africanos natildeo sejam

meros fornecedores de mateacuterias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos

estrangeiros mas produtores e consumidores de produtos do seu proacuteprio continente

Um diaacutelogo natildeo inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade mas um diaacutelogo

franco na base da consciecircncia de pessoas humanas e do respeito reciacuteproco De facto sem

diaacutelogo franco natildeo haacute progresso porquanto o progresso eacute liberdade e somente a verdade que

pode exprimir-se nos torna livres

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HISTOacuteRIA A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO

SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA

A PARTIR DE FRANTZ FANON

NLANDU MATONDO FAUSTINO a

Resumo

O presente trabalho procurou desconstruir a partir das teses de Frantz Fanon sobretudo

aquelas formuladas nos ldquoCondenados da Terrardquo a ideia de uma suposta missatildeo civilizadora

subjacente na intenccedilatildeo colonizadora consubstanciada na equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual a

civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo Partindo de uma indagaccedilatildeo da validade criticaacutevel

da equaccedilatildeo em epiacutegrafe cruzou os factos agraves doutrinas que versam sobre o fenoacutemeno da

colonizaccedilatildeo de Aacutefrica e chegou a depreender com uma certa objectividade de que a

colonizaccedilatildeo em Aacutefrica tal ficou visto por Fanon foi mais um movimento de

despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeo dos africanos em geral e dos negros em particular do que

um projecto de humanizaccedilatildeo e de emancipaccedilatildeo dos indiacutegenas de Aacutefrica negra Ficou portanto

evidente ao longo deste trabalho de que a colonizaccedilatildeo foi uma violecircncia que extraiu a sua

originalidade na substantivaccedilatildeo do colonizado Uma violecircncia que natildeo soacute presidiu ao arranjo

do mundo colonial como tambeacutem ritmou e alimentou a destruiccedilatildeo antropoloacutegica e ontoloacutegica

do negro-africano incluindo todas as suas formas sociais arrasou completamente os seus

sistemas de referecircncias econoacutemicas os seus modos ldquoessendi et operandirdquo e decretou a crise

soacutecio-cultural dos povos negros de Aacutefrica

Palavras-chaves colonizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo violecircncia despersonalizaccedilatildeo descolonizaccedilatildeo

emancipaccedilatildeo

Abstract

The present study sought to deconstruct from the theses of Frantz Fanon especially those

formulated in The Wretched of the Earthrdquo the idea of a supposed civilizing mission

underlying the colonizing intention embodied in the equation colonization equal to

civilization and paganism equal to savageryrdquo Crossed the facts to the doctrines that focus on

a Doutorando em Filosofia na Universidade de Eacutevora Mestre em Ciecircncias da Educaccedilatildeo pela mesma

Universidade Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catoacutelica de

Angola

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the phenomenon of colonisation of Africa this was seen by Fanon was more a movement of

depersonalization of Africans in general and the negroes in particular than a draft of

humanization and emancipation of the peoples of black Africa Therefore became evident

throughout this work that the colonization was a violence that drew its originality of the

colonized

A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world as well as

marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African including all

its social forms wiped out completely their systems of economic references their modes

essendi et operandi and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa

Key words colonization civilization violence depersonalization decolonisation

emancipation

Introduccedilatildeo

A reflexatildeo em torno dos desafios da descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica continua actual e actuante em

qualquer discurso intelectual ou poliacutetico sobre o estado da naccedilatildeo de muitos Estados africanos

passados que satildeo aproximadamente seis deacutecadas desde que muitos deles se tornaram

independentes Esta actualidade pode todavia natildeo parecer evidente quando o enfoque do

discurso for a colonizaccedilatildeo De facto pode parecer anacroacutenico e mesmo sintomaacutetico falar da

colonizaccedilatildeo para tentar justificar a qualquer preccedilo o subdesenvolvimento e a instabilidade

sociopoliacutetica na actualidade de muitos Estados africanos independentes Bom ou malgrado

essa sensaccedilatildeo de anacronismo que sugere uma espeacutecie de eacutepokeacute em torno do fenoacutemeno

colonial perde a sua legitimidade na medida em que a pertinecircncia do discurso sobre a

descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica torna ldquoipsis verbirdquo procedente o discurso sobre a colonizaccedilatildeo Ou

seja toda a fala em torno da descolonizaccedilatildeo sugere de uma ou de outra forma uma incursatildeo

sobre a colonizaccedilatildeo Vamos ao longo deste trabalho procurar descortinar o conceito de

colonizaccedilatildeo na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do

trampolim que pode sugerir agrave nossa cogitaccedilatildeo sobre a descolonizaccedilatildeo Para o efeito

propomos a seguinte estrutura 1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a

partir da analiacutetica de Fanon 2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo

igual a civilizaccedilatildeo 3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel

deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo 4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos a uma possiacutevel

verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida 5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de

Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco 6 Desconstruindo o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista

erguida na recusa do humano enquanto diferente 7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta do

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mundo colonial uma antiacutetese agrave pretensatildeo de uma suposta missatildeo emancipadora dos

africanos subjacente na intenccedilatildeo colonizadora

1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a partir da sua analiacutetica

em Fanon

Natildeo eacute possiacutevel falar da descolonizaccedilatildeo em Fanon sem falar da colonizaccedilatildeo enquanto

referecircncia inofuscaacutevel e movimento historicizante que confere corpo e sentido mateacuteria e

forma a qualquer anaacutelise criacutetica do projecto de descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica Esta eacute de resto a

loacutegica que suporta o argumento de Fanon que passamos a transcrever

a descolonizaccedilatildeo [hellip] eacute um processo histoacuterico [hellip] natildeo pode ser

compreendida natildeo encontra a sua inteligibilidade natildeo se torna transparente

para si mesma senatildeo na exacta medida em que se faz discerniacutevel o

movimento historicizante que lhe daacute forma e conteuacutedo ndash a opressatildeo colonial

(Fanon 1968 p 26 ou Fanon 2002 p 452)

Desde esta perspectiva a anaacutelise sobre a colonizaccedilatildeo ganha uma particular relevacircncia na

medida em que se nos apresenta natildeo soacute como fundamento a partir do qual se pode erguer

qualquer avaliaccedilatildeo sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleoloacutegico da luta

dos africanos rumo agrave sua efectiva emancipaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo no universalismo humano

mas tambeacutem como pretexto para (re) pensar o caminho de superaccedilatildeo das novas formas de

colonizaccedilatildeo que grassam ainda Aacutefrica e que em si constituem um verdadeiro impasse para

uma descolonizaccedilatildeo efectiva do continente africano Importa desde jaacute sublinhar que esta

reflexatildeo de tipo histoacuterico natildeo encontra o seu real significado na descriccedilatildeo dos factos que ela

encerra nem na narraccedilatildeo histoacuterica que a constitui O seu real alcance reside na sua capacidade

de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a

descolonizaccedilatildeo vislumbrado pelos africanos passados que satildeo cinquenta e sete anos apoacutes a

morte de Fanon

Tem-se com efeito e natildeo poucas vezes associado a colonizaccedilatildeo de Aacutefrica a um projecto

civilizador ou modernizador que teraacute sido frustrado ou interrompido por uma espeacutecie de

ambiccedilatildeo irracional dos africanos admitindo-se deste modo a hipoacutetese segundo a qual a

colonizaccedilatildeo teraacute sido um ldquoprojecto interrompidordquo de civilizaccedilatildeo (modernizaccedilatildeo) da Aacutefrica e

dos africanos De recordar que o ldquodiscurso sobre o colonialismordquo de Aimeacute Ceacutesaire resulta

precisamente da necessidade de dissertar sobre uma possiacutevel analogia entre a ldquocolonizaccedilatildeo e

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a civilizaccedilatildeordquo Provocaccedilatildeo ou natildeo mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer

sobre o binocircmio colonizaccedilatildeo-civilizaccedilatildeo pelo Franco-Senegalecircs Alioune Diop fundador e

Director da Revista ldquoPreacutesence Africainerdquo em Paris 1950 insinua a existecircncia de tendecircncias

que aproximavam a colonizaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo Esta provocaccedilatildeo tal como nos parece ser natildeo

deixa de ser no plano metodoloacutegico um bom ponto de partida para uma discussatildeo mais

objectiva e criacutetica da concepccedilatildeo fanoniana do colonialismo porquanto nos permite lanccedilar a

discussatildeo levantando uma seacuterie de perguntas tais como 1 Eacute possiacutevel sustentar por via de

argumentaccedilatildeo uma provaacutevel analogia entre os dois conceitos em anaacutelise a saber colonizaccedilatildeo

e civilizaccedilatildeo 2 Teraacute havido realmente um plano colonial de civilizar ou modernizar a

Aacutefrica em proveito dos africanos 3 Era sensato legitimar a opressatildeo colonial a partir dos

progressos alcanccedilados nas coloacutenias de Aacutefrica durante a administraccedilatildeo colonial Dito de outro

modo Seraacute que os niacuteveis de desenvolvimento conseguidos em vaacuterios domiacutenios social

administrativo tecnoloacutegico e poliacutetico sob o regime colonial conferiam efectivamente a

merecida dignidade a Aacutefrica e aos africanos 4 Teraacute a Aacutefrica realmente recusado o

desenvolvimento como diria Axel Kabu ao engajar-se na luta pela descolonizaccedilatildeo 5 E hoje

em plena era poacutes-colonial poderatildeo os africanos afirmar com realismo franqueza e

frontalidade que os ideais que nortearam o projecto da descolonizaccedilatildeo foram alcanccedilados 6

Teraacute alguma razatildeo de ser o postulado segundo o qual o projecto de descolonizaccedilatildeo teraacute sido

abortado na sua menor idade admitindo-se deste modo um possiacutevel equiacutevoco entre os

liacutederes e os intelectuais africanos que teratildeo confundido as independecircncias (enquanto meio)

com a descolonizaccedilatildeo (enquanto fim da longa marcha usando a expressatildeo de Reneacute Dumont

rumo a um continente mais humano mais livre mais autoacutenomo mais justo e mais proacutespero)

Ao longo desta reflexatildeo tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas

perguntas tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon

2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeo

Qual teraacute sido o verdadeiro retrato do colonialismo um processo de civilizaccedilatildeo dos

chamados indiacutegenas ou um ldquomovimento de despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeordquo dos povos

africanos Eacute evidente que para Fanon esta questatildeo nem sequer merece ser colocada De

facto o jovem martinicano eacute bastante incisivo e objectivo na sua anaacutelise Para ele a

colonizaccedilatildeo eacute antes de mais uma ldquoviolecircnciardquo conceito que de resto daacute tiacutetulo ao Iordm capiacutetulo

do Les Damneacutes de la Terre (Fanon 1968 p23 ou 2002 p448) Na sua oacuteptica a violecircncia foi

precisamente o elemento estrateacutegico e estruturante da loacutegica colonial Trata-se de uma

violecircncia que extrai sua originalidade na substantificaccedilatildeo do colonizado que a proacutepria

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situaccedilatildeo colonial segrega e alimenta Aliaacutes o encontro entre o colonizador e o colonizado diz

Fanon teve sempre o retrato de violecircncia e nunca foi expressatildeo de uma vontade civilizadora

ou humanizadora Pode se ler em Fanon que a colonizaccedilatildeo eacute a categorizaccedilatildeo de um encontro

que

se desenrolou sob o signo da violecircncia e sua coabitaccedilatildeo ndash ou melhor

a exploraccedilatildeo do colonizado pelo colono ndash foi levada a cabo com

grande reforccedilo de baionetas e canhotildees [hellip] A violecircncia [hellip] presidiu

ao arranjo do mundo colonial [hellip] ritmou incansavelmente a

destruiccedilatildeo das formas sociais indiacutegenas [hellip] arrasou completamente

os sistemas de referecircncias da economia os modos da aparecircncia e do

vestuaacuterio do colonizado (Fanon 1968 pp 26 e 30)

Eacute possiacutevel aproximar em boa verdade uma situaccedilatildeo de uma clara alienaccedilatildeo antropoloacutegica

fazendo feacute agrave descriccedilatildeo de Fanon a um projecto de civilizaccedilatildeo sem cair em sofismas que

desemboquem numa contradiccedilatildeo De notar que este mesmo entendimento de Fanon eacute

corroborado pelo seu antigo mestre Aimeacute Ceacutesaire que parafraseamos nos seguintes termos a

colonizaccedilatildeo enquanto violecircncia no sentido mais bruto da palavra eacute uma autecircntica antiacutetese da

civilizaccedilatildeo ela por natureza desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado A

colonizaccedilatildeo legitima o ilegiacutetimo e normaliza o anormal pode-se matar agrave vontade na

Indochina torturar em Madagaacutescar prender na Aacutefrica negra seviciar nas Antilhashellip (cfr

Ceacutesaire 1978 pp 7 e 14) Natildeo eacute preciso muita hermenecircutica para apreender nos dizeres de

Sartre de que a violecircncia constitui o ldquomodus operandirdquo proacuteprio do sistema colonial que nem

as suas geniais trapaccedilas conseguem disfarccedilar A peculiaridade do agir colonial distancia a

colonizaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo E para deixar tudo a nu Sartre faz a seguinte inconfidecircncia

ldquonossos soldados no ultramar rechaccedilam o universalismo metropolitano

aplicam ao geacutenero humano o numerus clausus uma vez que ningueacutem pode

sem crime espoliar seu semelhante escravizaacute-lo ou mataacute-lo eles datildeo por

assente que o colonizado natildeo eacute o semelhante do homem Nossa tropa de

choque recebeu a missatildeo de transformar essa certeza abstrata em realidade a

ordem eacute rebaixar os habitantes do territoacuterio anexado ao niacutevel do macaco

superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [hellip] nada

deve ser poupado para liquidar as suas tradiccedilotildees para substituir a liacutengua deles

pela nossa para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossahelliprdquo (Sartre Les

Damneacutes 1961 p 9)

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Esta violecircncia que parte do plano simboacutelico conceitual atingiu o seu ponto auge com

desterramento dos indiacutegenas feitos estrangeiros na sua proacutepria terra como foi o caso do

coacutedigo civil imposto aos argelinos visando regular o direito agrave propriedade e agrave heranccedila com a

uacutenica finalidade de desterrar os autoacutectones tirando-lhes o que de mais precioso tinha ndash a sua

proacutepria terra De realccedilar que o referido coacutedigo tinha aprovado a titularidade comum de terras

entre a classe-meacutedia francesa e a sociedade tribal como estrateacutegia de expropriaccedilatildeo de terras

aos autoacutectones atraveacutes de poliacuteticas especulativas (cfr Sartre 1967 p39)

Desde este ponto de vista pode-se aferir que os ldquomodus essendi et operandirdquo do colonialismo

configuravam em certa medida aquilo que Sartre chamou de ldquoimoralidade narcisistardquo da

ambiccedilatildeo ocidental da qual emerge o impulso que modifica inevitavelmente qualquer

indiviacuteduo que adere agrave dinacircmica colonial dando-lhe boa consciecircncia e boas razotildees de ver no

outro (natildeo branco) um simples animal Esta constataccedilatildeo sartriana valida sem qualquer

sombra de duacutevida a convicccedilatildeo de Ceacutesaire para quem o colonialismo eacute brutalidade

intimidaccedilatildeo crueldade sadismo choque violaccedilatildeo roubo desprezo culturas obrigatoacuterias

desconfianccedila massas aviltadas ausecircncia de contacto humano relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de

submissatildeo que transformam o negro colonizado em criado ajudante comitre e instrumento de

produccedilatildeo (cfr Ceacutesaire 1978 p25) A partir destes pressupostos torna-se de facto forccediloso

concluir que natildeo existe tal como defende Fanon qualquer sustentabilidade quer

argumentacional quer factual para a validaccedilatildeo da equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeordquo

pois os factos atestam que colonizaccedilatildeo eacute o oposto de civilizaccedilatildeo Mas uma deacutemarche

etimoloacutegica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano teoacuterico

conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem

3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo

Para fundamentar com maior objectividade o alcance da deduccedilatildeo decorrente da narrativa de

Fanon em relaccedilatildeo a conjecturada correlaccedilatildeo entre os dois conceitos em anaacutelise pareceu-nos

mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos no sentido de os tornar mais

inteligiacuteveis para daiacute depreender o seu justo significado e consequentemente confirmar ou

infirmar a suposta correlaccedilatildeo entre ambas Conveacutem no entanto sublinhar que o caraacutecter

polisseacutemico dos conceitos em epiacutegrafe natildeo nos permite ignorar o facto de que natildeo eacute tatildeo faacutecil

quer do ponto de vista conceitual quer do ponto de vista factual traccedilar a linha de

convergecircncia ou de divergecircncia entre eles pois o proacuteprio caraacutecter multidisciplinar que o

conceito de civilizaccedilatildeo envolve hoje confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta

qualquer entendimento homogeacuteneo linear e conclusivo Acresce-se a este dado o facto de

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que nos dias que correm o conceito de civilizaccedilatildeo eacute reivindicado como objeto de estudo da

antropologia da ciecircncia da cultura do direito da histoacuteria da filosofia poliacutetica da sociologia

poliacutetica da religiatildeo etc proporcionando-lhe um enquadramento episteacutemico bastante

complexo que recusa qualquer unicidade semacircntica No entanto um recuo estrateacutegico e

metodoloacutegico ao seacuteculo das luzes onde o significado do termo ldquocivilizaccedilatildeordquo emergiu da

proacutepria raiz etimoloacutegica do conceito ldquocivilisrdquo ldquocivisrdquo cujo entendimento remetia agrave acccedilatildeo

de tornar civil ou urbano pode permitir uma espeacutecie de unidade de sentido a partir do qual se

pode fundamentar a possiacutevel analogia conceitual destes dois termos

A Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura natildeo foge muito desta percepccedilatildeo quando define a

colonizaccedilatildeo como um fenoacutemeno sociopoliacutetico baseado na dependecircncia de um grupo humano

ou de um territoacuterio a um outro que exerce nele influecircncias demograacuteficas econoacutemicas

culturais sociais ou poliacuteticas Entendimento agrave luz do qual alguns teoacutericos nos seacuteculos XIX e

XX basearam a sua definiccedilatildeo de colonizaccedilatildeo como atividade pela qual um povo de cultura

superior ocupa e organiza por conta proacutepria um territoacuterio habitado por povos de cultura

inferior estendendo a sua soberania desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas

segundo o princiacutepio da civilizaccedilatildeo Observa-se aqui a missatildeo civilizadora subjacente ao

conceito da colonizaccedilatildeo enquanto fenoacutemeno sociopoliacutetico cuja meta eacute levar as coloacutenias ao

desenvolvimento cultural social econoacutemico e cientiacutefico ou seja agrave modernizaccedilatildeo do territoacuterio

ocupado Este eacute de resto o significado que decorre do entendimento filoloacutegico do conceito de

colonizaccedilatildeo cuja estrutura originaacuteria se funda em torno de dois pressupostos basilares

nomeadamente o cultivo da terra isto eacute o desenvolvimento econoacutemico e o cultivo dos

homens ou seja a promoccedilatildeo sociocultural e econoacutemica das populaccedilotildees consideradas na

posiccedilatildeo receptiva (cfr Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura nordm5 p996ss)

De salientar que o conceito de civilizaccedilatildeo emergiu e muito provavelmente antes de qualquer

outro paiacutes no contexto sociocultural francecircs e fazia referecircncia essencialmente a trecircs

dimensotildees que vale a pena enumerar a primeira era referente ao primado da vida em

comunidade sobre a vida solitaacuteria a segunda fazia alusatildeo ao primado da vida na cidade sobre

a vida no campo a uacuteltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o

selvagem isto eacute o homem moderno distinguido pela ciecircncia e pela teacutecnica sobre o baacuterbaro

(cfr Enciclopeacutedia LB da Cultura nordm5) Neste contexto teoacuterico-conceitual civilizar era de

facto sinoacutenimo de trabalhar na integraccedilatildeo dos indiacutegenas na comunidade metropolitana na

modernizaccedilatildeo da vida do campo isto eacute levando as condiccedilotildees da cidade ao campo (energia

eleacutectrica aacutegua potaacutevel educaccedilatildeo escolar assistecircncia meacutedica e medicamentosahellip) e na policcedilatildeo

do baacuterbaro pela chamada ldquoculturardquo cientiacutefica e tecnoloacutegica

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Este parece ser o entendimento mais viaacutevel para o exame a que nos propusemos da

correlaccedilatildeo destes dois vocaacutebulos O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e

sustentabilidade episteacutemica no Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea editorial

Verbo acresce ainda mais o nosso interesse por esta perspectiva (cfr 2001 p833) Segundo

o Dicionaacuterio ora referenciado a ldquocivilizaccedilatildeordquo eacute a acccedilatildeo ou o resultado de transmitir

conhecimentos comportamentos e teacutecnicas consideradas desejaacuteveis numa sociedade moderna

Por conseguinte civilizar eacute dar caracteriacutesticas proacuteprias de sociedades teacutecnicas cientiacutefica e

economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas ou ainda dar haacutebitos e ajudar a

desenvolver comportamentos desejaacuteveis numa sociedade desenvolvida Conclui-se pois que

do ponto de vista conceitual ou definicional existem razotildees para fundamentar a presumiacutevel

correlaccedilatildeo entre os conceitos de ldquocolonizaccedilatildeo e civilizaccedilatildeordquo Mas a natildeo homogeneidade de

compreensatildeo na interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo destes conceitos agrave partida polisseacutemicos e

multidisciplinares e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descriccedilotildees fanonianas

obrigam-nos a dar um passo a mais espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e

continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo

4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos agrave uma possiacutevel verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de

partida

Se eacute possiacutevel aferir do ponto de vista definicional uma certa correlaccedilatildeo analoacutegica entre os

conceitos que fundam a nossa equaccedilatildeo de partida tal como ficou patenteado no ponto

anterior do ponto de vista doutrinal e factual esta correlaccedilatildeo carece de uma anaacutelise

minuciosa que permita apurar se a propensatildeo civilizadora inerente ao conceito de colonizaccedilatildeo

pelo menos no plano teoacuterico-conceitual conseguiu vincar como aspecto norteador da acccedilatildeo

colonial ou teraacute por alguma razatildeo ficado ofuscada durante o processo colonial Impotildee-se-

nos a este niacutevel retomar o ponto de vista de Fanon para quem a colonizaccedilatildeo eacute antes de

mais uma violecircncia que se consubstancia na animalizaccedilatildeo e na aniquilaccedilatildeo dos (negros)

colonizados Para sustentar o seu argumento Fanon comeccedila por relembrar a atitude do colono

que em vaacuterias circunstacircncias fez recurso a ldquouma linguagem zooloacutegica usando expressotildees

como ldquo[hellip] hordas fedor buliacutecio [hellip] e quando os quisesse descrever com mais exatidatildeo

[hellip] recorria constantemente ao bestiaacuteriordquo para designar os negros (Fanon 1968 p 31 ou

2002 p 456) Esta animalizaccedilatildeo do colonizado eacute para Fanon a expressatildeo mais eloquente de

uma violecircncia absoluta que desenraiacuteza o aviltado de sua humanidade E para reforccedilar a sua

criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista o colono via-se na necessidade de

encontrar novos atributos que pudessem explicitar da melhor maneira possiacutevel a real

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dimensatildeo semacircntica subjacente nos conceitos de ldquoindiacutegena e selvagemrdquo que em si jaacute natildeo

eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de

Aacutefrica entre outros

demografia galopante massas histeacutericas rostos de onde fugiu qualquer traccedilo

de humanidade corpos obesos que natildeo se assemelham mais a nada corte sem

cabeccedila nem cauda crianccedilas que datildeo a impressatildeo de natildeo pertencerem a

ningueacutem preguiccedila estendida ao sol ritmo vegetalhellip (Fanon 1968 p 32 ou

Fanon 2002 p457)

A validade histoacuterica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento Eacute sensato

falar de um projecto de civilizaccedilatildeo de animais sem converter a proacutepria racionalidade

civilizadora numa irracionalidade animal Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade

animal de uma civilizaccedilatildeo cuja racionalidade eacute o epicentro da sua acccedilatildeo muitos preferiram

considerar as afirmaccedilotildees de Fanon de irresponsaacuteveis e repletas de inverdades qualificando o

proacuteprio Fanon de agitador e instigador da violecircncia ante a sua incisiva caracterizaccedilatildeo do

sistema colonial Dentre outros podemos citar Alain Finkierkraut cujo pensamento mais do

que uma antiacutetese agraves teses de Fanon eacute uma tentativa de demonstraccedilatildeo da derrota do projecto da

descolonizaccedilatildeo Piegraverre Bourdieu de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que

pesam sobre Fanon eacute paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010 p 109)

como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus Simone de

Beauvoir Germaine Tillion Jasques Amrouche e outros que como Fanon e Sartre tiveram a

ousadia de denunciar cada um agrave sua maneira a violecircncia inerente ao sistema colonial

forjando novas noccedilotildees de identidade poliacutetica que continuam a influenciar o debate poliacutetico na

actualidade

No seu ldquomarxismo encontra Bourdieurdquo Burawoy procura mostrar que apesar da enorme

distacircncia que separa o quadro teoacuterico-reflexivo de Bourdieu e Fanon nomeadamente ldquoo

marxismo terceiro-mundista de um lado e a teoria da modernizaccedilatildeo de outro ladordquo o

pensamento destes dois autores apresenta inuacutemeras similitudes sobretudo entre o Fanon do

Le Damneacutes de la terre de 1961 e o Bourdieu de Sociologie de lrsquoAlgerie de 1958 Embora

natildeo seja objecto deste debate julgamos oportuno e procedente mencionar a tiacutetulo de

exemplo algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violecircncia como uma das

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave natureza proacutepria do sistema colonial e nos termos muito

semelhantes aqueles que aparecem nas paacuteginas 26 e 30 do Le Damneacutes de la terre de Fanon

(cfr 1968) ao afirmar

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o sistema colonial enquanto tal natildeo poderaacute ser destruiacutedo senatildeo atraveacutes de

um questionamento radical Todas as mutaccedilotildees satildeo submetidas agrave lei de tudo

ou nada Este facto estaacute na consciecircncia pelo menos de forma confusa quer

entre os membros da sociedade dominante quer entre os membros da

sociedade dominada [hellip] Mas eacute preciso admitir que o primeiro e uacutenico

questionamento radical do sistema eacute aquele que o proacuteprio sistema engendrou

isto eacute a revoluccedilatildeo contra os princiacutepios que o fundaram [hellip] A situaccedilatildeo

colonial criou o despreziacutevel e ao mesmo tempo o desprezo mas criou

tambeacutem a revolta contra o desprezo Assim cresce cada vez mais a tensatildeo

que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu 1958 pp 28 e 129)

Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu numa clara aproximaccedilatildeo da

colonizaccedilatildeo agrave violecircncia De facto a violecircncia simboacutelica e real eacute depreendida em muitos

cenaacuterios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial

Vaacuterios satildeo os etnoacutelogos e ideoacutelogos que nas entrelinhas do seu pensamento conferem uma

certa razatildeo a um tal pressuposto Alfred de Vigny por exemplo faz jus a esta violecircncia

simboacutelica ao afirmar sem rodeios que o mundo natildeo europeu eacute um mundo animal mundo dos

baacuterbaros mundo da morte e consequentemente uma ameaccedila ao mundo europeu Partindo

deste postulado deduz-se que para De Vigny a colonizaccedilatildeo era um processo compulsivo de

civilizaccedilatildeo isto eacute uma opccedilatildeo para a vida e tal como diz ldquose se prefere a vida agrave morte tem de

se preferir a civilizaccedilatildeo agrave barbaridaderdquo que natildeo eacute apenas um reino animal e de morte mas

tambeacutem uma ameaccedila agrave civilizaccedilatildeo Em virtude disto conclui De Vigny ldquonenhum povo tem o

direito de permanecer baacuterbaro ao lado das naccedilotildees civilizadasrdquo Depreende-se daqui que a

uacutenica loacutegica vaacutelida eacute a disjuntiva ldquoto be or not to berdquo como diria Shakespeare ldquothat is the

questionrdquo (cfr De Vigny 2003 p87)

Esta apreciaccedilatildeo lacoacutenica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que como De

Vigny tambeacutem considera a colonizaccedilatildeo como uma obra civilizadora uma espeacutecie de direito e

dever das sociedades evoluiacutedas Folliet baseia o seu argumento nas caracteriacutesticas

heterogeacuteneas das sociedades isto eacute nos desniacuteveis existentes entre as sociedades colonizadas e

colonizadoras quer nos planos econoacutemico administrativo cultural social e poliacutetico quer nos

planos cientiacutefico e tecnoloacutegico Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizaccedilatildeo

seria possivelmente o processo de supressatildeo destes desniacuteveis sociais com o auxiacutelio das

sociedades mais desenvolvidas Pelo que a manutenccedilatildeo destes desniacuteveis como forma

hegemoacutenica de controlo ou de manutenccedilatildeo de superioridade foge do acircmbito da colonizaccedilatildeo

para desembocar no campo de acccedilatildeo do colonialismo (cfr Folliet 1932 p 75) Eacute caso para

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dizer que o entendimento teoacuterico de Folliet apresenta uma diferenccedila niacutetida entre a colonizaccedilatildeo

que seria para o autor o sinoacutenimo de civilizaccedilatildeo e o colonialismo que pode ser visto como

processo de exploraccedilatildeo e subjugaccedilatildeo das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades

desenvolvidas

Mas eacute preciso dizer que se do ponto de vista conceitual Folliet deu um tamanho salto

qualitativo propiciador de uma possiacutevel coabitaccedilatildeo paciacutefica entre o colono e o colonizador

aludindo agrave missatildeo civilizadora da colonizaccedilatildeo do ponto de vista praacutetico o discurso follietiano

deu lugar a muitas ambiguidades sobretudo quando o proacuteprio autor considera a colonizaccedilatildeo

como forma mais viaacutevel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em

territoacuterios subdesenvolvidos e valorizaacute-los para o bem-comum da humanidade sem definir as

regras nem as modalidades ou os viacutenculos contractuais para tal Com efeito Folliet considera

um dado assente que ldquoas naccedilotildees economicamente mais evoluiacutedas tecircm o direito de explorar as

riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagensrdquo (Folliet 1932 pp 101 e 268) E

para natildeo camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violecircncia Folliet

defende a necessidade da manutenccedilatildeo das desigualdades entre o colonizador e o colonizado

numa clara opccedilatildeo pelo colonialismo em detrimento da colonizaccedilatildeo contrariando a sua proacutepria

doutrina com o seguinte posicionamento

a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores de modo que o sujeito

colonizado natildeo passe numa vontade de vinganccedila a esquecer a sua

heteronomia absoluta eacute portanto uacutetil e necessaacuterio que as mais vastas

propriedades as mais ricas induacutestrias os mais frutuosos comeacutercios pertenccedilam

aos representantes da raccedila superior (Folliet 1932 p228)

Uma possiacutevel deduccedilatildeo leva-nos por um lado a aferir a inadequaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida

com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analiacuteticos da questatildeo em

estudo e a considerar por outro lado a emergecircncia da categoria de dominaccedilatildeo como outro

elemento caracteriacutestico da estrateacutegia colonial na relaccedilatildeo colonizadocolonizador Este

princiacutepio que eacute em si mesmo o elemento estruturante da tensatildeo e ao mesmo tempo

provocador da dialeacutectica do senhor e do escravo permite-nos um salto para o exame da

possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a Aacutefrica em proveito dos

africanos

5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco

Eacute possiacutevel compatibilizar o instinto de dominaccedilatildeo com a vontade de promover ou de

emancipar Guillaume Sureacutena num movimento contraacuterio ao nosso itineraacuterio apresenta um

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discurso capaz de relanccedilar a discussatildeo No seu artigo intitulado ldquoPsycanalyse et

anticolonialismerdquo Sureacutena lamenta o desperdiacutecio de uma oportunidade que teria resultado num

possiacutevel encontro inter-civilizacional frutiacutefero e que no entanto teraacute sido frustrado pela

vontade dominadora do instinto colonial Os textos surenianos insinuam que do ponto de

vista praacutetico a civilizaccedilatildeo europeia nunca teve qualquer plano de promover nem de

reconhecer as outras civilizaccedilotildees como parceiras importantes para um crescimento conjunto

A sua ambiccedilatildeo foi sempre de conhecer para dominar e subjugar como ficou explicitado nesta

passagem

este encontro de civilizaccedilotildees tatildeo diferentes poderia ter sido o momento de um

intercacircmbio fecundo e de um enriquecimento muacutetuo como lamentou o

antropoacutelogo francecircs Claude Levi-Strauss Mas para a metafiacutesica europeia

desde a Greacutecia antiga o saber foi sempre o equivalente de ldquomaitriserrdquo isto eacute

de dominar As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados

sob os conceitos com partiacuteculas latinas e gregas Os locais geograacuteficos

receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridiacuteculos por

falta de qualquer relaccedilatildeo com os espiacuteritos que os habitavam outrora (Sureacutena

1943 p 4)

Diga-se pois de passagem que foi assim na Greacutecia antiga foi assim ateacute ao seacuteculo XX e

nada justifica que natildeo continue assim nos dias que hatildeo-de vir Mas a questatildeo eacute qual o destino

que o instinto dominador das naccedilotildees pode proporcionar agrave espeacutecie humana Conveacutem recordar

que num passado mais recente da histoacuteria da Europa a colonizaccedilatildeo assumiu o caraacutecter de

dominaccedilatildeo dos povos e dos seus recursos naturais Os europeus sempre mostraram-se mais

interessados com uma partenogeacutenese profunda dos africanos para os submeter mais

facilmente e natildeo para os civilizar De facto desde o iniacutecio do seacuteculo XVII com as grandes

navegaccedilotildees e os descobrimentos das ameacutericas o interesse em explorar e conquistar novas

terras ganhou um enorme vigor na Europa e com ele emergiu tambeacutem a chamada

colonizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de povoamento A primeira forma de colonizaccedilatildeo foi o momento

no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as coloacutenias tinham uma

utilidade meramente lucrativa junto da metroacutepole A segunda acontecia de maneira

espontacircnea mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econoacutemica

com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem aiacute acorria

Muitos estudos mostram que no continente africano este tipo de colonizaccedilatildeo foi sempre

acompanhado de desterramento de zonas araacuteveis ou de pastagem dos autoacutectones bem como

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da supressatildeo dos eventuais direitos que detinham1 Embora referindo-se a um contexto muito

mais preteacuterito ao de Fanon Ceacutesaire Sartre e outros Iva Cabral traz ao de cima a ideia de

dominaccedilatildeo e de exploraccedilatildeo como elementos catalisadores do interesse europeu em Aacutefrica

ajudando assim na desconstruccedilatildeo da hipoacutetese de um possiacutevel plano colonial para o

desenvolvimento de Aacutefrica e dos africanos De facto Iva Cabral afirma que a experiecircncia

ultramarina se resumia na conquista das praccedilas do Norte de Aacutefrica e na fixaccedilatildeo de guarniccedilotildees

e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territoacuterios tropicais de

Aacutefrica natildeo pelo desejo de levar a civilizaccedilatildeo agraves terras longiacutenquas de Aacutefrica mas por causa

dos inuacutemeros privileacutegios econoacutemicos e sociais que tinham os quais incluiacuteam em alguns

casos a sociedade escravocrata de produccedilatildeo no Atlacircntico (cfr 2015 p25)

Este suporte histoacuterico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra

um reforccedilo na posiccedilatildeo de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa

anaacutelise sobre as categorias de dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo como sustentaacuteculos da acccedilatildeo

colonizadora quando num tom autocriacutetico apontando o dedo aos seus irmatildeos europeus

pinta sem complexo nem contemplaccedilotildees o verdadeiro retrato da Europa colonial permitindo

a apreensatildeo da razatildeo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opressatildeo contra os

autoacutectones em territoacuterios colonizados sobretudo em Aacutefrica nestes termos

sabeis muito bem que somos exploradores Sabeis que nos apoderamos do

ouro e dos metais e posteriormente do petroacuteleo dos continentes novos e que

os trouxemos para as velhas metroacutepoles Com excelentes resultados palaacutecios

catedrais capitais industriais [hellip] A Europa empanturrada de riquezas

concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes entre noacutes

lucramos com a exploraccedilatildeo colonial (Fanon 1968 p 17)

Se tomamos a seacuterio as diversas constataccedilotildees dos autores supra mencionados torna-se

insustentaacutevel a hipoacutetese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos

africanos e da Aacutefrica num contexto de exploraccedilatildeo no seu sentido mais radical e mais bruto do

termo isto eacute uma exploraccedilatildeo natildeo soacute de recursos naturais dos territoacuterios colonizados mas

tambeacutem do seu proacuteprio capital humano Num tal contexto aproximar a colonizaccedilatildeo da

civilizaccedilatildeo eacute admitir agrave partida uma ambiguidade semacircntica na compreensatildeo destes dois

conceitos Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade Ceacutesaire diz que a colonizaccedilatildeo natildeo

deve ser confundida com uma empresa filantroacutepica nem com uma nobre vontade de recuar as

fronteiras da ignoracircncia da doenccedila da tirania e ateacute mesmo da propagaccedilatildeo de Deus e muito

1 Cfr httpsptwikipediaogwikicolonizaccedilatildeo Enciclopeacutedia livre 15022017

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menos com uma poliacutetica de extensatildeo dos direitos do povo colonizado como pretendeu o

pedantismo cristatildeo que concebeu o referido equiacutevoco ao enunciar uma equaccedilatildeo eacutetica e

religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria tornando-se assim responsaacutevel pelas consequecircncias

abominaacuteveis decorrentes dos actos coloniais cujas viacutetimas seriam os iacutendios os amarelos e os

negros (cfr Ceacutesaire 1978 pp14-15)

Pode se depreender dos textos de Ceacutesaire que a colonizaccedilatildeo eacute a manifestaccedilatildeo sem precedente

da ganacircncia do aventureiro e do pirata do comerciante e do armador do pesquisador de ouro

e do mercado do apetite e da forccedila tendo por detraacutes a sombra maleacutefica projetada de uma

forma de civilizaccedilatildeo que a dado momento da sua histoacuteria se viu obrigada internamente a

alargar agrave escala mundial a concorrecircncia das suas economias Se natildeo como se pode perceber

que a Franccedila em particular e a Europa em geral conseguissem progressivamente tal como

alude Dino Constantini transformar os princiacutepios democraacuteticos e humanistas tatildeo-reclamados

naquela circunscriccedilatildeo do globo em instrumentos de justificaccedilatildeo de dominaccedilatildeo com regulares

violaccedilotildees nas coloacutenias dando lugar a uma degeneraccedilatildeo sem precedente de uma suposta

ldquomissatildeo civilizadorardquo da Europa em Aacutefrica (cfr Constatini 2008 pp 33 e 53) Para pocircr a nu

o paradoxo de uma civilizaccedilatildeo dita humanista mas na praacutetica contestadora da proacutepria

humanidade no ldquodiferenterdquo Constatini evoca o coacutedigo civil de 1791 que coloca as coloacutenias

fora do direito comum institucionalizando uma cisatildeo social juridicamente fundamentada

entre as populaccedilotildees brancas e negras legitimando ao mesmo tempo a violecircncia primeiro no

plano simboacutelico e posteriormente no plano concreto numa clara declaraccedilatildeo de recusa de

reconhecimento e de integraccedilatildeo dos negros na vida da metroacutepole Eacute preciso dizer que esta

fragmentaccedilatildeo social legitimada pelo coacutedigo civil supra citado serviu de base para a

consagraccedilatildeo de uma nova compreensatildeo do conceito da ldquohumanidaderdquo que reduziria os

direitos humanos a direitos de cidadania reservando-os apenas aos europeus

Eacute o paradoxo no caso da Franccedila de uma Repuacuteblica que nunca deixou de contestar contra a

violecircncia de que tinha sido viacutetima em 1871 cegamente transformada numa autecircntica maacutequina

de violecircncia contra outros humanos sem qualquer fundamento legiacutetimo (cfr Constatini 2008

p 286) Eacute a contradiccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo ocidental defensora de direitos humanos mas que

natildeo hesita de reduzir os outros humanos agrave categoria de sub-humanos eacute a estrateacutegia de um

imaginaacuterio ideoloacutegico que no plano psicoloacutegico confere legitimidade a todas as barbaacuteries dos

colonizadores sobre os colonizados eacute a ironia de uma civilizaccedilatildeo cuja linha de demarcaccedilatildeo

com a barbaridade natildeo eacute expliacutecita Nem mesmo a dignidade humana universal e abstracta

apregoada pelos moralistas desta civilizaccedilatildeo como um dos valores mais sublimes entre os

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humanos em especial pela religiatildeo cristatilde mais consagrada ao serviccedilo do imperialismo do

que de Deus na oacuteptica de Ceacutesaire conseguiu dissimular a violecircncia contra o colonizado

6 Desmistificando o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista erguida na recusa do

ldquodiferenterdquo

Parece ter ficado evidente que a colonizaccedilatildeo se identificou mais com uma dinacircmica de

exploraccedilatildeo dos povos colonizados do que com um projecto de integraccedilatildeo dos indiacutegenas na

metroacutepole Iva Cabral ajuda-nos mais uma vez a perceber como a loacutegica do lucro presidiu a

todas as estrateacutegias e legislaccedilotildees coloniais Numa perspectiva simplesmente histoacuterica a autora

apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos

enunciados de Fanon que concedem sentido e substacircncia a este trabalho Com efeito Iva

Cabral afirma que as decisotildees poliacuteticas do regime colonial criavam condiccedilotildees para que os

filhos da meacutedia e baixa nobreza portuguesa neste particular mercadores e aventureiros

vislumbrassem no territoacuterio receacutem-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto

mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as

mercadorias daiacute advindas poderiam trazer (cfr Cabral 2015 p27)

Eacute loacutegico conjecturar que num tal jogo de lucro faacutecil que natildeo podia natildeo contar com os

recursos naturais e com o capital humano africanos como meios ideais para minimizar os

custos e maximizar os lucros a preocupaccedilatildeo pela integraccedilatildeo dos africanos no clube dos

evoluiacutedos e emancipados seria uma espeacutecie de atentado ao espiacuterito de negoacutecio Este postulado

encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da

recusa do ldquooutrordquo o diferente feito uma ameaccedila para o ldquonoacutesrdquo ideologicamente construiacutedo e

consagrado como o uacutenico paradigma possiacutevel de humanidade na seguinte declaraccedilatildeo

havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se

recusaram no seacuteculo de Colombo em reconhecer seus semelhantes homens

degradados que povoavam o novo mundo [hellip] Era impossiacutevel fixar um

instante do olhar no selvagem sem ler o anaacutetema escrito natildeo digo somente na

sua alma mas ateacute na forma exterior do seu corpo (De Maistre Joseph Apud

Ceacutesaire 1978 p 33)

Esta declaraccedilatildeo deixa transparecer uma inferecircncia loacutegica quase irrefutaacutevel de que o referido

anaacutetema dos indiacutegenas soacute natildeo se consumou ao extermiacutenio na perspectiva do colono por

razotildees de iacutendole puramente utilitarista como se depreende nesta passagem do jaacute citado autor

nesta transcriccedilatildeo de Ceacutesaire

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sob o ponto de vista de selecccedilatildeo consideraria deploraacutevel o desenvolvimento

numeacuterico [hellip] dos elementos amarelos e negros que seriam de eliminaccedilatildeo

difiacutecil Se todavia a sociedade futura se organizar numa base dualista com

uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raccedila inferior confiada agrave

mais grosseira matildeo-de-obra eacute possiacutevel que este uacuteltimo papel incumba aos

elementos amarelos e negros Neste caso aliaacutes natildeo seria um embaraccedilo mas

uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre Joseph Apud Ceacutesaire

1978 p 33)

Fica desvendado nestes dizeres do De Maistre o retrato do narcismo nihilista de muitos

artistas da europa colonial consubstanciado na ideia e na pretensatildeo de uma raccedila superior que

se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contaacutegio Eacute o drama de uma Europa

feita refeacutem pelo seu proacuteprio mito de pureza civilizacional uniracial um mito enganoso

pretensioso e pernicioso que potildee em causa a aspiraccedilatildeo de uma poliacutetica enquanto exigecircncia de

construccedilatildeo de uma comunidade humana na qual a consciecircncia da diversidade dos humanos e a

necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condiccedilatildeo ldquosine qua nonrdquo da

prosperidade e da sobrevivecircncia da proacutepria espeacutecie humana Lamentavelmente este

entendimento da poliacutetica como espaccedilo intermediaacuterio onde se joga a liberdade e interacccedilatildeo dos

humanos enquanto seres iguais e autoacutenomos eacute constantemente posto em causa como diz

Martha Nussbaum pelos apologistas deste mito que em todas as sociedades alimentam uma

falsa convicccedilatildeo de pureza etnocecircntrica ou ldquoclassececircntricardquo geradora de violecircncia contra os

excluiacutedos (cfr Nussbaum 2010 p 48) comprometendo a possibilidade de fazer da poliacutetica o

lugar por excelecircncia da profundidade humana

Para compreender as mais profundas motivaccedilotildees que levam os indiviacuteduos a um tal instinto

nihilista Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi que examina a possiacutevel

conexatildeo existente entre os domiacutenios psicoloacutegico e poliacutetico Com efeito Gandhi concluiacutera que

os desejos gananciosos o instinto de agressatildeo e a ansiedade narcisista satildeo empecilhos para a

edificaccedilatildeo de uma verdadeira civilizaccedilatildeo humana Pelo que a luta poliacutetica pela construccedilatildeo de

uma civilizaccedilatildeo humana assente nos pilares da liberdade empatia e igualdade deve ser

precedida de uma luta contra o medo do outro a ganacircncia e o instinto de agressatildeo narcisista

intriacutensecos em cada indiviacuteduo (cfr Nussbaum 2010 pp 48-50) E se partimos da hipoacutetese de

que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multidotildees ao oacutedio ao genociacutedio e agrave

instrumentalizaccedilatildeo dos ldquooutrosrdquo tidos como da raccedila inferior ou sub-humana ocorre mais em

contextos de pouca capacidade criacutetica ou de uma intelectualidade materialista ou

ldquoventriacuteloquerdquo usando a expressatildeo de Fabien Eboussi Boulaga isto eacute de uma intelectualidade

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corrupta desprovida de princiacutepios eacuteticos e humanistas forccediloso eacute concluir que por mais que a

Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizaccedilatildeo dos africanos natildeo teria condiccedilotildees

efectivas de o fazer ante a sua ganacircncia e arrogacircncia eurocentristas encorajadas por uma

jactacircncia ostensiva feito veneno instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do

lucro cuja solidificaccedilatildeo se daacute com o asselvajamento dos africanos em geral e dos negros em

particular

Eacute precisamente este instinto egoiacutesta e materialista que transparece na maneira como Ernest

Renan concebe o colonialismo Para ele o colonialismo eacute uma necessidade poliacutetica de

primeira ordem eacute a conquista de um paiacutes de raccedila inferior pela raccedila superior que se instala na

coloacutenia atraveacutes de um governo Trata-se na perspectiva deste autor de algo de extrema

normalidade que nada tem de chocante A colonizaccedilatildeo soacute se torna chocante se e somente se

as conquistas forem entre raccedilas iguais Assim se por um lado estas conquistas devem ser

desencorajadas e censuradas entre raccedilas iguais elas devem ser encorajadas entre as raccedilas

desiguais porque a regeneraccedilatildeo ou degeneraccedilatildeo de raccedilas inferiores pelas raccedilas superiores

deve estar na ordem providencial da humanidade ldquoRegere imperio populosrdquo eis a nossa

vocaccedilatildeo A natureza criou uma raccedila de trabalhadores industriais ndash eacute a raccedila chinesa uma de

jornaleiros agriacutecolas ndash eacute a raccedila negra [hellip] uma raccedila de senhores e de soldados eacute raccedila

europeiardquo Nesta oacuteptica a reduccedilatildeo desta nobre raccedila agrave classe trabalhadora em condiccedilotildees

degradantes como as dos negros e dos chineses gera revolta (cfr Renan 1967 pp 69-70) O

mais perplexo em tudo isso eacute que Renan numa enorme ousadia intelectual natildeo se tenha

inibido do seu instinto de superioridade racial ao defender de forma paradoxal numa obra

intitulada ldquoLa Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la Francerdquo a seguinte convicccedilatildeo

noacutes esperamos natildeo a igualdade mas sim a dominaccedilatildeo O paiacutes de raccedila

estrangeira deveraacute voltar a ser um paiacutes de servos de jornaleiros agriacutecolas ou

de trabalhadores industriais Natildeo se trata de suprimir as desigualdades entre

os homens mas de as ampliar e as converter em lei (Renan 1967 p69-70)

Uma visatildeo demasiado materialista e narcisista que mereceu num tom iroacutenico a criacutetica de

Ceacutesaire que qualifica o colono muito distinto muito humanista e muito cristatildeo do seacuteculo XX

como uma autecircntica encarnaccedilatildeo de Hitler Eacute o retrato do colono que traz em si segundo

Ceacutesaire ldquoum Hitler que se ignora que vive nele e que eacute o seu demoacutenio e se o vitupera eacute por

falta de loacutegica ou pelo instinto de afinidade racial pois os factos atestam que o que muitos

deles natildeo perdoam a Hitler natildeo eacute o crime em si nem tatildeo-pouco o crime contra a humanidade

mas o crime contra o homem branco a humilhaccedilatildeo do homem brancordquo Assim natildeo restam

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duacutevidas de que do ponto de vista do seu desenvolvimento socio-histoacuterico a colonizaccedilatildeo eacute

uma suprema barbaacuterie um nazismo pouco expressivo por ser aplicado aos negros e aos aacuterabes

de Aacutefrica Mas na sua essecircncia um tal narcisismo constitui a negaccedilatildeo mais eloquente do

humanismo universal e formal reivindicado por Fanon e ao mesmo tempo uma clara

renuacutencia dos ideais filosoacuteficos morais e cristatildeos de uma civilizaccedilatildeo decaiacuteda (cfr Ceacutesaire

1978 pp 18-19)

Estaacute assim denunciada a patologia de uma civilizaccedilatildeo que fundou a sua filosofia de acccedilatildeo na

estigmatizaccedilatildeo do ldquodiferenterdquo e na fragmentaccedilatildeo do mundo em puro e impuro Eacute a construccedilatildeo

patoloacutegica usando a expressatildeo da Nussbaum de um ldquonoacutesrdquo que se julga imaculado e de um

ldquoelesrdquo preconceitualmente denotado vil perigoso e contagioso Esta denunciada patologia

obriga-nos a retomar algumas das questotildees supra referenciadas tais como eacute possiacutevel pensar a

missatildeo civilizadora da Europa colonial num contexto de clara recusa da alteridade ou de

reconhecimento do africano como sujeito autoacutenomo dotado de razatildeo e de humanidade

Como compreender uma missatildeo civilizadora assente numa loacutegica social do segundo excluiacutedo

isto eacute numa loacutegica social fracturante e nihilista Seraacute que Aacutefrica ao engajar-se na luta pela

descolonizaccedilatildeo teraacute efectivamente recusado o projecto de desenvolvimento que configurava

a missatildeo civilizadora da potecircncia colonial Vamos no proacuteximo ponto tentar encontrar alguns

elementos de resposta a estes questionamentos em certa medida jaacute respondidos

7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta uma antiacutetese agrave pretensatildeo colonial da emancipaccedilatildeo

da Aacutefrica dos africanos

A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta da sociedade ou seja a bipolarizaccedilatildeo social assente no

princiacutepio da desigualdade entre as cidades dos homens isto eacute dos europeus e os bairros

indiacutegenas ou dos selvagens categorias sociais criadas pelo proacuteprio colono contradiz agrave

partida qualquer pretensatildeo colonial de reconhecimento e integraccedilatildeo da Aacutefrica e dos africanos

no universalismo humano (cfr Fanon 1968 p 27 ou 2002 p 453) Aliaacutes a estrutura social

montada pelo colono determinava ldquoa priorirdquo que as relaccedilotildees entre os habitantes dos dois

mundos fossem de exploradores e explorados dominadores e dominados opressores e

oprimidos superiores e inferiores homens e sub-homens Conveacutem no entanto sublinhar que

toda a violecircncia colonial tinha como grande propoacutesito a criaccedilatildeo de um ambiente de medo e

inibiccedilatildeo do colonizado no intuito de facilitar a dinamizaccedilatildeo da exploraccedilatildeo e a pilhagem de

recursos naturais num contexto inovador de mercantilismo que muito precisava do concurso

forccedilado dos proacuteprios indiacutegenas Para dar conta do dinamismo interno de uma tal

compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta Fanon escreve

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em sua zona o colono potildee em marcha o movimento de dominaccedilatildeo de

exploraccedilatildeo e de pilhagem Na outra zona a coisa colonizada oprimida e

espoliada alimenta como pode esse movimento [hellip] as mateacuterias-primas vatildeo

e vecircm legitimando a presenccedila do colono Enquanto o acocorado mais morto

do que vivo o colonizado se eterniza num sonho [hellip] o colono faz histoacuteria

Sua vida eacute uma epopeia uma odisseia (Fanon 1968 p 38 ou 2002 p 463)

Como se pode depreender mais uma vez este maniqueiacutesmo eacute em si mesmo uma antiacutetese de

qualquer projecto civilizador natildeo soacute pelo facto de se constituir num factor provocador de

desprezo e ignomiacutenia dos colonizados mas tambeacutem e sobretudo por ser um factor

desestabilizador suscitador de oacutedio e de violecircncia entre os habitantes das duas zonas Cocircnscio

desta tensatildeo latente e subjacente a esta configuraccedilatildeo geopoliacutetica opressiva o colono interpocircs

como deduz Fanon uma estrutura fronteiriccedila forte e intimidatoacuteria capaz de assegurar a

atmosfera de submissatildeo e de inibiccedilatildeo dos explorados tal como se pode ler

o mundo colonizado eacute um mundo cindido em dois A linha divisoacuteria a

fronteira eacute indicada pelos quarteis e delegacias de poliacutecia Nas coloacutenias o

interlocutor legal e institucional do colonizado o porta-voz do colono e do

regime de opressatildeo eacute o gendarme ou o soldado Nas sociedades capitalistas o

ensino religioso ou leigo a formaccedilatildeo de reflexos morais [hellip] criam em torno

do explorado uma atmosfera de submissatildeo e inibiccedilatildeo que torna

consideravelmente mais leve a tarefa das forccedilas da ordem [hellip] O

intermediaacuterio do poder utiliza uma linguagem de pura violecircncia [hellip] natildeo

torna mais leve a opressatildeo natildeo dissimula a dominaccedilatildeo Exibe-as manifesta-

as com a boa consciecircncia das forccedilas da ordem [hellip] leva a violecircncia agrave casa e

ao ceacuterebro do colonizado (Fanon 1968 p 28 ou Fanon 2002 pp 453-454)

Este e outros cenaacuterios permitem situar a originalidade do instinto colonial no princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica e social e no de desigualdade econoacutemica entre duas espeacutecies a

branca e a negra ou aacuterabe pois a patologia narcisista de superioridade racial estruturou no

imaginaacuterio individual e colectivo do colonizador a convicccedilatildeo de que ser branco significa ser

superior e consequentemente rico e ser negro ou aacuterabe africano eacute o oposto disto (cfr Fanon

1968 p 29 ou Fanon 2002 p 455) Este maniqueiacutesmo que toma balanccedilo no plano simboacutelico

no qual o branco remete agrave noccedilatildeo do bem do belo e do bom e o negro o seu oposto

desembarca no plano concreto com reflexos inofuscaacuteveis na configuraccedilatildeo geograacutefica da

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estrutura social montada pelo regime colonial A cidade do colono eacute uma cidade vida

enquanto no bairro do colonizado se sobrevive milagrosamente a cidade do colono eacute segura

mas no bairro indiacutegena a inseguranccedila eacute o proacuteprio cartatildeo-de-visita a cidade do colono eacute uma

cidade soacutelida toda de pedra e ferro iluminada asfaltada as ruas limpas lisas sem buracos

mas o bairro indiacutegena eacute o oposto disso Na cidade do colono os habitantes estatildeo

permanentemente saciados e repletos de boas coisas Em contrapartida o bairro indiacutegena ou

negro eacute um lugar mal-afamado e povoado eacute o bairro de homens mal-afamados aiacute nasce-se

natildeo importa como nem onde e morre-se natildeo importa a onde nem de quecirc Eacute um mundo sem

intervalos ou seja os homens estatildeo uns sobre os outros eacute o mundo dos famintos dos

analfabetos e dos doentes e indigentes (cfr Fanon 1968 p 28-29 ou Fanon 2002 pp 453-

454)

O mundo colonial diz Fanon forjou um povo sem alma e sem referecircncia originaacuterias O

colono criou categorias sub-humanas para destruir a autoestima dos negros e dos aacuterabes de

Aacutefrica Fez deles uma espeacutecie de quintessecircncia do mal considerando-os como seres

impermeaacuteveis agrave moral e agrave eacutetica com ausecircncia e negaccedilatildeo de valores mal absoluto elementos

corrosivos que destroem tudo o que se aproxima deles elementos deformadores que

desfiguram tudo o que se refere agrave esteacutetica ou agrave moral depositaacuterios de forccedilas cegas (cfr

Fanon 1968 p 31 ou Fanon 2002 p 456) Esta convicccedilatildeo levou M Meyer a afirmar em

plena Assembleia Nacional Francesa que

[hellip] natildeo era necessaacuterio prostituir a Repuacuteblica fazendo penetrar nela o povo

argelino Os valores com efeito se tornam irreversivelmente envenenados e

pervertidos desde que entram em contacto com a populaccedilatildeo colonizada Os

costumes do colonizado suas tradiccedilotildees [hellip] sobretudo seus mitos satildeo a

proacutepria marca desta indigecircncia desta depravaccedilatildeo constitucional (Fanon

1968 p31 ou Fanon 2002 p 456)

Este discurso forjado no seu espaccedilo existencial levou Ceacutesaire (1978 p17) agrave conclusatildeo de que

a Europa colonial se esmerou antes de mais em descivilizar primeiro o proacuteprio colonizador

embrutececirc-lo degradaacute-lo despertaacute-lo para os instintos ocultos para a cobiccedila para a violecircncia

para o oacutedio racial e para o relativismo moral e posteriormente descivilizar o colonizado

Todo este quadro legitima sobremaneira o anseio dos africanos pela liberdade e pelo

reconhecimento da sua dignidade Para desmascarar o argumento segundo o qual o

engajamento dos africanos na luta pela descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica teraacute sido uma espeacutecie de

recusa do desenvolvimento do Continente africano pelos africanos Ceacutesaire passa em revista

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e em jeito de balanccedilo o vasto fresco dos horrores da dominaccedilatildeo colonial em particular a

francesa em Aacutefrica deixando claro que nenhum desenvolvimento vale mais do que a

dignidade humana e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos povos Apoiando

o seu raciociacutenio nos factos Com efeito Ceacutesaire afirma que a equaccedilatildeo mais ajustada agrave

realidade vivida eacute colonizaccedilatildeo igual coisificaccedilatildeo e natildeo desenvolvimento porque no fim de

contas o fiel da balanccedila pende mais para prejuiacutezos do que para ganhos tal como consta do

longo extrato que extraiacutemos do texto de Ceacutesaire

falam-me de progressos de realizaccedilotildees de doenccedilas curadas de niacuteveis de vida

elevados acima de si proacuteprios eu falo de sociedades esvaziadas de si

proacuteprias de culturas espezinhadas de instituiccedilotildees minadas de terras

confiscadas de religiotildees assassinadas de magnificecircncias artiacutesticas

aniquiladas de extraordinaacuterias possibilidades suprimidas Lanccedilam-me agrave cara

factos estatiacutesticas quilometragens de estradas de canais de caminhos-de-

ferro mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano falo

dos que no momento em que escrevo cavam agrave matildeo o porto de Abidjan falo

de milhotildees de homens arrancados aos seus deuses agrave sua terra aos seus

haacutebitos agrave sua vida agrave danccedila agrave sabedoria falo de milhotildees de homens a quem

inculcaram sabiamente o medo o complexo de inferioridade o tremor a

genuflexatildeo o desespero o servilismo Laccedilam-me em cheio aos olhos

toneladas de algodatildeo ou cacau exportado hectares de oliveiras ou de vinha

plantadas mas eu falo de economias naturais de economias harmoniosas e

viaacuteveis de economias adaptadas agrave condiccedilatildeo do homem indiacutegena

desorganizadas de culturas de subsistecircncias destruiacutedas de subalimentaccedilatildeo

instalada de desenvolvimento agriacutecola orientada unicamente para benefiacutecio

das metroacutepoles de rapinas de produtos de rapinas de mateacuterias-primas

Ufanam-se de abusos suprimidos eu tambeacutem falo de abusos mas para dizer

que aos antigos ndash muito reais ndash sobrepuseram outros muito detestaacuteveis

Falam-me de tiranos locais trazidos agrave razatildeo poreacutem constato que regra geral

eles fazem muito boa parelha com os novos e que destes aos antigos e vice-

versa se estabeleceu em detrimento dos povos um circuito de bons serviccedilos

e cumplicidade Falam-me de civilizaccedilatildeo eu falo de proletarizaccedilatildeo e de

mistificaccedilatildeo [hellip] Cada dia que passa cada negaccedilatildeo de justiccedila cada carga

policial cada reclamaccedilatildeo operaacuteria afogada em sangue cada escacircndalo

abafado cada expediccedilatildeo punitiva cada poliacutecia e cada miliciano fazem-nos

sentir o preccedilo das nossas velhas sociedadesrdquo (Ceacutesaire 1978 pp25-26)

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Disso decorre que a essecircncia do colonialismo tal como realccedilou Maacuterio Pinto de Andrade

reside em dois aspectos no ldquoregime de exploraccedilatildeo desenfreada de imensas massas humanas

que encontra a sua legitimidade e sustentabilidade na violecircnciardquo e na ldquoforma moderna de

pilhagemrdquo (cfr Ceacutesaire Aimeacute 1978 p7) Assim se os niacuteveis cientiacuteficos tecnoloacutegicos e

organizacionais ostentados pela Europa colonial lhe conferem a todos os tiacutetulos um estatuto

de uma civilizaccedilatildeo o mesmo jaacute natildeo se daacute do ponto de vista da sua relaccedilatildeo com as coloacutenias

Por esta razatildeo Ceacutesaire chamou-lhe de civilizaccedilatildeo decadente enferma e moacuterbida por se ter

revelado incapaz de resolver os grandes problemas que criou nomeadamente o do

proletariado e o colonial Ouccedilamos Ceacutesaire a respeito

ldquouma civilizaccedilatildeo que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu

funcionamento suscita eacute uma civilizaccedilatildeo decadente Uma civilizaccedilatildeo que

prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais eacute uma civilizaccedilatildeo

enferma Uma civilizaccedilatildeo que trapaceia com os seus princiacutepios eacute uma

civilizaccedilatildeo moacuterbidardquo (Ceacutesaire 1978 p13)

Teratildeo Fanon Ceacutesaire Sartre e outros exagerado na sua criacutetica do colonialismo

Possivelmente sim Contudo a larga unanimidade existente sobre o assunto permite-nos

atribuir uma certa objectividade e verdade histoacuterica a muitos dos enunciados que nos satildeo

dados a apreciar Reneacute Grousset (1954 p 76) quase duas deacutecadas antes de Ceacutesaire

analisando o percurso evolutivo das civilizaccedilotildees constatava que nenhuma civilizaccedilatildeo

apareceu logo no iniacutecio tatildeo promissora e tatildeo ameaccedilada como a civilizaccedilatildeo ocidental A sua

ameaccedila em seu entender natildeo vem apenas da espada nuclear vem tambeacutem e sobretudo do

egoiacutesmo e do materialismo que inspiram os povos que a comandam Estaacute portanto evidente

que o regime colonial europeu foi essencialmente uma conquista assente em fins de

exploraccedilatildeo dos indiacutegenas Esta ideia ceacutesairiana de uma Europa exploradora no sentido

accedilambarcador do termo aparece tambeacutem no ldquoLe geacutenociderdquo no qual Jean-Paul Sartre eacute

perentoacuterio em afirmar que a colonizaccedilatildeo natildeo eacute uma mera conquista como foi a anexaccedilatildeo de

Alsace-Lorraine pela Alemanha na sua verdadeira natureza a colonizaccedilatildeo eacute um acto de

genociacutedio cultural Numa ldquodeacutemarcherdquo fenomenoloacutegica Sartre mostra que a colonizaccedilatildeo natildeo

acontece sem a liquidaccedilatildeo sistemaacutetica de todas as caracteriacutesticas particulares de sociedades

nativas e simultaneamente sem a recusa da sua integraccedilatildeo massiva na metroacutepole e sem a

negaccedilatildeo do seu acesso agraves vantagens da metroacutepole

Concordamos assim com Sartre que a colonizaccedilatildeo eacute um sistema de negoacutecio que requer

inevitavelmente a existecircncia de um sub-proletariado nacional forccedilado a trabalhar por

miseraacuteveis salaacuterios Vale dizer que no sistema colonial a coloacutenia teve uma funccedilatildeo

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instrumental ou seja foi usada para vender as suas mateacuterias-primas e seus produtos agriacutecolas

a um preccedilo irrisoacuterio agrave metroacutepole Em retorno a metroacutepole vendeu os bens manufaturados agraves

coloacutenias a preccedilo do mercado Este negoacutecio que contou com a comparticipaccedilatildeo da burguesia

nacional condenou os africanos a viverem num submundo de miseacuteria como negros fantasmas

continuamente recordados da sua condiccedilatildeo de sub-humanos (cfr Sartre 1967 p39)

Estaacute visto que a colonizaccedilatildeo partindo da efiacutegie aqui apresentada eacute um projecto oposto aos

ideais civilizacionais tal como alude Ceacutesaire ao desmistificar a tentativa de atribuir ao

processo de colonizaccedilatildeo uma intenccedilatildeo civilizadora A maldiccedilatildeo mais comum nesta mateacuteria eacute

deixarmo-nos iludir de boa-feacute por uma hipoacutetese colectiva e haacutebil em enunciar mal os

problemas para melhor justificar as soluccedilotildees que se lhes aplicam conferindo facilmente

legitimidade a um conjunto de praacuteticas abominaacuteveis atribuindo-lhes a categoria de um mal

necessaacuterio com vista a um fim nobre ndash a civilizaccedilatildeo dos selvagens (Ceacutesaire 1978 p14)

Conclusatildeo

A reflexatildeo feita nas paacuteginas anteriores permitiu-nos deduzir a existecircncia de uma possiacutevel

analogia entre a colonizaccedilatildeo e a civilizaccedilatildeo do ponto de vista teoacuterico conceitual Mas do

ponto de vista praacutetico tudo natildeo passou de uma simples ilusatildeo Uma ilusatildeo cimentada pela

foacutermula do pedantismo cristatildeo que procurou atribuir uma presumiacutevel missatildeo civilizadora ao

fenoacutemeno de colonizaccedilatildeo ao estabelecer a equaccedilatildeo cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria A anaacutelise mostrou que do ponto de vista doutrinal e factual

uma tal equaccedilatildeo eacute insustentaacutevel porquanto a colonizaccedilatildeo se assumiu mais como violecircncia

contra os povos colonizados e exploraccedilatildeo dos seus recursos naturais e da sua forccedila de trabalho

e nunca como projecto colonial de emancipaccedilatildeo dos povos colonizados Esta conclusatildeo pode

ter sido previsiacutevel mas como foi referido no princiacutepio deste trabalho esta anaacutelise sobre o

colonialismo encontra a sua utilidade neste texto na medida em que se nos apresenta como

movimento historicizante que constitui a mateacuteria e a forma que nos permitem vislumbrar o

horizonte teleoloacutegico da descolonizaccedilatildeo enquanto proposta de emergecircncia do novo nova

realidade novos seres e novo continente uma espeacutecie de antiacutetese do mundo colonial

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Obras do autor

1 FANON Frantz Frantz Fanon Ouevres Paris Eacuteditions La Deacutecouverte 2011

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3 ----------------------- Os condenados da terra Rio de Janeiro ndash Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Traduccedilatildeo de Joseacute

L de Melo 1968

Outras obras

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2 BURAWOY Michael Marxismo encontra Bourdieu Campinas Editora Unicamp 2010

3 CABRAL Iva A Primeira Elite Colonial Atlacircntica Dos ldquohomens honrados broncosrdquo de Santiago agrave

ldquonobreza da terrardquo Finais do seacutec XV ndash iniacutecio do seacutec XVII Cabo Verde Pedro Cardoso Livraria 2015

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politique franccedilaise Paris Eacuteditions de la Deacutecouverte 2008

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Nicolas Blanchard Pascal Verges Franccediloise La Republique colonial Paris Albin Michel Coll Pluriel 2003

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3 Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura Editorial Verbo Lisboa nordm5

4 OLUacuteFEacuteMI Taacuteiwo (2004) ldquoPost-Independence African Political Philosophyrdquo In Kwasi Wiredu A

Companion to African Philosophy Cornwall MPG Books Ltd Bodmim 2004 pp 243-260

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PEDAGOGIA laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO

LIBERAL EM AacuteFRICA

INAacuteCIO VALENTIM a

inaciovalentim82gmailcom

Resumo

Nada eacute tatildeo enobrecedor como ensinar e aprender A nobreza reside na consciecircncia estaacute no

encontro com o outro estaacute na disponibilidade que eacute criada para si e para o outro e estaacute

sobretudo no comprometimento que se tem consigo mesmo e com o outro O outro como o

rosto como memoacuteria e como um ldquooutro eurdquo Isto eacute o que ensinar e aprender nos oferece e nos

sugere Ter a noccedilatildeo de que todo o acto de ensinar eacute essencialmente um processo de aprender

de aprendizagem e de dar a possibilidade de interrogar-se sobre o aprendido e sobre

aprendizagem O objectivo deste artigo eacute de reflectir sobre a hermenecircutica do aprender o que

chamamos aprender e como acontece

Palavras-chave aprender comprometimento inacessibilidade responsabilidade fazer e

ensinar

Abstract

Nothing is so ennobling as teaching and learning The nobility lies in its consciousness is in

the encounter with the other it is in the availability that is created for itself and to the other

and itrsquos mainly in the compromise that it has with oneself and with the other The other as the

face as memory and as other selfrdquo This is what teaching and learning offers and suggests to

us Have the notion that the whole act of teaching is essentially a process of learning learning

and giving the possibility to question them about the learned and about learning The aim of

this article is to reflect on the hermeneutics of learning what we learn and how it happens

Keywords learning commitment inaccessibility responsibility doing and teaching

a Doutor em Filosofia pela Universidade Carlos III de Madrid Professor e Investigador Titular Director Geral do

Instituto Superior Politeacutecnico Sol Nascente Huambo - Angola wwwispsnorg

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O termo laquoaprenderraquo oferece agrave primeira vista com uma leitura muito atenta uma ideia muito

escorregadia apresenta algo de inacessibilidade algo que nos passa entre os dedos como

aacutegua como liacutequido como vento como espiacuterito Enfim como algo que natildeo nos eacute dado

aprisionar fiacutesica e mentalmente No entanto acreditamos que aprendemos e acreditamos que

podemos fazer com que outras pessoas aprendam connosco ou atraveacutes de noacutes e natildeo hesitamos

muitas vezes em oferecer-nos como instrumento de aprendizagem para os outros Apesar de

ser um termo muito duro no sentido de responsabilidade esta responsabilidade acaba por estar

ou ficar diluiacuteda na confusatildeo entre o aprender e o fazer entre o aprender e o ensinar entre o

aprender e o saber porque confundimos ou fundimos as duas perspectivas antecipando

precisamente o acto do segundo que eacute dirigido ou orientado para o aprendiz Enquanto

mecanismo que conduz agrave aquisiccedilatildeo do saber a aprendizagem ldquoopotildee-se ao ensinamento ou ao

ensino cujo objectivo eacute de dispensar conhecimentos e saberesrdquo Mas esta oposiccedilatildeo natildeo eacute de

ruptura porque natildeo pode haver aprendizagem senatildeo por intermeacutedio do ensino ou de quem

ensina

O aprender-se bem eacute reflectido sobretudo a partir da acccedilatildeo enquanto resultado e resposta do

aprender natildeo obstante enquanto fenoacutemeno o aprender eacute um acto de natureza invisiacutevel e

quase que inapreensiacutevel e intocaacutevel A sua visibilidade soacute eacute passiacutevel para o proacuteprio sujeito

isto eacute para o aprendiz ou no aprendiz Dificilmente eu como promotor ou enquanto promotor

de aprendizagem posso dizer com exactidatildeo o momento da captaccedilatildeo do sujeito do elemento

aprendido posso supor atraveacutes de perguntas que faccedilo ou que tenho que responder dele mas

apenas eacute uma suposiccedilatildeo Eacute pois esta complexidade que vai tambeacutem fazer com que o acto de

aprender seja acima de tudo um acto divino um momento ou uma instacircncia do natildeo humano

Soacute aquele que diviniza-se chega a aprender consegue aprender e supera com isso a primeira

instacircncia do humano E divinizar-se significaria ter um autocontrolo sobre os impulsos do

saber os impulsos desenfreados do desejo de aprender e de assumir-se como o promotor de

aprendizagem Mas este processo soacute eacute possiacutevel com um povo ou com gente que agrave partida natildeo

rejeita preliminarmente a filosofia soacute eacute possiacutevel com gente que natildeo eacute dirigida e que natildeo eacute

paciente dos meacutedicos do povo como diria Nietzsche O aprender filosoacutefico apenas acontece

com e para gente satilde os ldquoenfermos que se contactam com a filosofia ficam ainda mais

enfermosrdquo porque de certa forma a filosofia soacute pode salvar e curar quem jaacute estaacute curado

quem reuacutene requisitos para a cura E foi assim que os gregos conseguiram fazer da filosofia a

sua proacutepria casa o seu mundo o seu lugar apesar de a filosofia vir de outros lugares virou a

casa dos gregos tornou-se ou transformou-se no elemento da definiccedilatildeo essencialmente grego

Os gregos souberam pegar naquilo que os outros povos abandonaram e fizeram dele o mais

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alto elemento do saber precisamente porque souberam utilizar laquoa arte de aprender

produtivamenteraquo utilizando para este efeito os seus saacutebios Contrariamente aos outros povos

que laquotecircm santos os gregos tecircm saacutebiosraquo diz Nietzsche e satildeo estes saacutebios que vatildeo fazer com

que a filosofia tenha um sentido profundo e original para o grego justificando assim a sua

aposta a sua protecccedilatildeo e a utilidade da sua futilidade

Apesar dos gregos terem podido trazer a filosofia das outras paradas orientais como diz

Nietzsche natildeo tiveram nenhuma moda que lhes pudesse ajudar ou facilitar as coisas Tiveram

que inventar a sua proacutepria imaginaccedilatildeo tiveram que filosofar com laquouma puberdade madura

onde brotava a fogosa alegria de uma vitoriosa e valente idade viril1raquo Em outras palavras

tiveram que superar a idade da infacircncia humana a infacircncia social e tiveram que se fazer

responsaacuteveis Esta eacute tambeacutem uma das condiccedilotildees de aprendizagem ou do aprender fazer-se

responsaacutevel emancipar-se e dar conta de si e dos outros laquopois quanto mais fazemos sobre as

coisas mais pensamos sobre elas ou mais desenvolvemos pensamentos sobre elasraquo O nosso

aprender estaacute relacionado com um espaccedilo concreto com um lugar com uma referecircncia com

um encontro-chegada-regresso No fundo o nosso aprender estaacute relacionado com uma histoacuteria

concreta ou com uma meta-histoacuteria estaacute relacionado com um padratildeo que nos vai dizer que as

condiccedilotildees para aprender exigem abc A tarefa de aprender natildeo eacute compatiacutevel com o tempo

apressado com o tempo que se assimila ao material O aprender eacute como ler um livro que estaacute

destinado a

[hellip] leitores tranquilos a homens que ainda natildeo foram arrastados pela vertiginosa pressa

da nossa agitada era e que ainda natildeo sentem o prazer idolatra quando olham para baixo das

sua rodas [hellip] quer dizer Haacute poucos homens Estes ainda natildeo estatildeo habituados a

estabelecer o valor de cada coisa segundo a poupanccedila ou os gastos do tempo estes laquoainda

tecircm temporaquo ainda lhes eacute permitido sem culpar-se de nada seleccionar e reunir as melhores

horas da jornada e os seus momentos mais fecundos e vigorosos para reflectir sobre o

futuro da nossa educaccedilatildeo estes podem ter a certeza que chegaram agrave noite de uma forma

proveitosa e digna a saber na meditation generis futuri (meditaccedilatildeo sobre o geacutenero futuro)

Um homem assim ainda natildeo se esqueceu de pensar enquanto lecirc ainda compreende o

segredo de ler entre linhas mais ainda eacute de uma natureza tatildeo prodigiosa que reflecte sobre

o lido talvez muito tempo depois de ter deixado o livro E sem duacutevidas natildeo para escrever

uma resenha ou outro livro mas simplesmente para reflectir2

O aprender seria portanto um viver sem pressa um estar sem pressa um existir sem pressa

Um ser no desconhecimento Mas sabemos que isso natildeo eacute possiacutevel Natildeo eacute possiacutevel saber sem

1Cf Friedrich Nietzsche Obras completas Vol 1 Filosofiacutea en la Eacutepoca Traacutegica de los Griegos Trad e introduc

Joan B et alt Tecnos Madrid 2011 p 574 2 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 549

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ser conotado natildeo eacute possiacutevel saber sem ser procurado natildeo eacute possiacutevel saber sem falar do que se

sabe natildeo eacute possiacutevel saber sem comunicar o sabido Mas dizemos que natildeo eacute possiacutevel e na

verdade eacute possiacutevel porque natildeo estamos a falar da mesma coisa saber natildeo eacute aprender Satildeo

duas coisas completamente distintas mas apesar de tudo uma coisa tecircm em comum a fuga da

fanfarronice e o desejo desenfreado de confrontaccedilatildeo A atestaccedilatildeo do aprendido a examinaccedilatildeo

do sabido Tecircm em comum aquilo que falta ao homem moderno o excesso de si a auto-

referecircncia desmedida O aprender conduz-nos ao desejo de estar tatildeo bem formados a tal ponto

de natildeo pensarmos mais em noacutes mesmos ou na nossa formaccedilatildeo e ateacute ao ponto de desprezarmos

a nossa proacutepria formaccedilatildeo Contrariamente ao homem moderno diz Nietzsche haacute que evitar

fazer de noacutes mesmos uma espeacutecie de homo mesura precisamente porque natildeo somos criteacuterio

seguro de nada natildeo somos criteacuterio seguro do absoluto Aqui o aprender deixa de ser um

criteacuterio e passa a ser uma meta e a meta aqui eacute que aquele que estaacute aprender se entregue

completamente com laquoa maacutexima confianccedila agrave tutela do autor de quem apenas pode falar a partir

da sua proacutepria ignoracircncia e da consciecircncia da ignoracircnciaraquo O aprendiz eacute aquele de quem

Nietzsche faz este tremendo apelo porque eacute nele que ele acredita

[hellip] Deixai-vos encontrar voacutes os isolados em cuja existecircncia acredito Voacutes

os altruiacutestas voacutes que padeceis em voacutes mesmos as dores e as perversotildees do

espiacuterito (hellip) Voacutes os contemplativos cujo olhar natildeo palpa com pressurosa

suspeita o externo das coisas mas sim sabe encontrar a entrada ao nuacutecleo da

essecircncia Eu vos convoco apenas para esta vez natildeo vos escondais nas

cavernas do vosso retiro e da vossa desconfianccedila Sejam quando menos

leitores deste livro para mais em frente com os vossos feitos acabar com ele

e deixa-lo no esquecimento Compreendeis que este livro estaacute destinado a ser

o vosso pronuacutencio quando voacutes mesmos com as vossas armas vos apresenteis

na palestra [hellip]3

Ao seu modo Nietzsche apresenta aqui a figura do aprendiz o docente o estudante e todos os

inquietos de espiacuterito como aqueles que satildeo isolados que satildeo altruiacutestas e que padecem das

dores da perversatildeo do espiacuterito O acto de aprender eacute incompatiacutevel com o tremendo de

confusatildeo eacute incompatiacutevel com o egoiacutesmo e com o egocentrismo e eacute incompatiacutevel com o

regradamente certo O aprender exige ruptura porque supotildee adaptaccedilatildeo a uma nova era a uma

nova realidade exige encontrar o outro dentro e fora de mim e exige um prestar atenccedilatildeo a

mim mesmo que natildeo seja necessariamente um narcisismo O aprender exige que sejamos uns

3 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 550

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contemplativos sem pressa de conhecer e de chegar sem pressa de afirmar ou de concluir

apenas se espera que sejamos contemplativos que admiram para melhor conhecer e trazer a

utilidade profunda mas sombria que estaacute aprisionada nas cavernas das nossas pressas O

aprender exige que a nossa contemplaccedilatildeo nos conduza ao encontro da essecircncia daquilo que

deve ser objecto do aprender Por isso cada vez que noacutes que estamos no eterno caminho de

aprender nos confrontamos com um livro com uma obra temos a possibilidade de sair dos

nossos retiros contraditoacuterios das nossas cavernas e das nossas desconfianccedilas Temos a

possibilidade de dar a conhecer a nossa opiniatildeo eacute o nosso pronuacutencio na palestra que pode

naturalmente chocar com os dois modelos do aprender propostos pela cultura educativa

moderna a saber

Por um lado a educaccedilatildeo como o espaccedilo da proposta do aprender deve ser extensiacutevel a todo o

territoacuterio por outro o laquoimpulso de reduccedilatildeo e debilitamento do mesmoraquo Desde muito cedo

quando a educaccedilatildeo comeccedilou a ser vista como um elo importante o homem apesar de alguns

constrangimentos sempre soube que seria de muito mais valia que ela fosse extensiacutevel para

todo o territoacuterio independentemente das questotildees poliacuteticas culturais econoacutemicas e religiosas

Natildeo obstante a sua extensatildeo sempre dependeraacute da vontade do Estado da disponibilidade do

Estado enfim da autorizaccedilatildeo do Estado Os gregos que fazem parte dos povos que pensaram

a educaccedilatildeo depois dos egiacutepcios e dos feniacutecios assumiram a inseparabilidade destes dois

momentos a educaccedilatildeo que deve chegar a todo o territoacuterio e a educaccedilatildeo que para ser educaccedilatildeo

tem que ser controlada pelo Estado A educaccedilatildeo deve ser controlada pelo Estado mas natildeo

necessariamente executada pelo Estado Em A Poliacutetica Aristoacuteteles foi muito bem claro em

dizer que a tarefa de educaccedilatildeo se bem eacute da comunidade natildeo obstante compete em primeiro

lugar ao Estado e soacute na impossibilidade deste de cobrir todas as partes eacute que o particular

assume tambeacutem ele a tarefa de educar Educar e por conseguinte o aprender desde este

ponto de vista nasce com um problema eacute um problema natildeo apenas no sentido de delegaccedilatildeo

de autorizaccedilatildeo mas tambeacutem no sentido da proacutepria autodestruiccedilatildeo Quem aprende destroacutei-se e

autodestroacutei-se na medida em que vai pondo de lado ou vai equacionando os fundamentos do

conhecimento anterior agrave sua formaccedilatildeo agrave sua educaccedilatildeo Como diz Fullat citado por Carlos

Francisco de Sousa Reis ldquoO acto educador especificamente humano eacute no seu nuacutecleo e fonte

entitativa confrontaccedilatildeo de duas consciecircncias confrontaccedilatildeo constitutivamente violenta4rdquo Para

Carlos Francisco Fullat procura aqui justificar a partir dos modelos de habilidades emperia a

forma como a educaccedilatildeo pode apresentar-se como acto educativo violento ou simplesmente

4Cf Carlos Francisco de Sousa Reis Educaccedilatildeo e cultura mediaacutetica Anaacutelise de implicaccedilotildees deseducativas

Acircncora editora Lisboa 2014 p 45

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como condiccedilatildeo da violecircncia Fullat segundo o nosso autor para encontrar os fundamentos da

educaccedilatildeo como condiccedilatildeo de violecircncia analisa inicialmente o surgimento ontoloacutegico da

civilizaccedilatildeo a partir de trecircs perspectivas a perpectiva do animal faber a perspectiva do animal

symbolicum e a perspectiva do animal sociale A partir destas trecircs perspectivas ele conclui

que a violecircncia eacute constitutiva de todos os actos educativos O ponto de partida da educaccedilatildeo eacute

visto portanto para Fullat desde uma perspectiva negativa desde uma antropologia negativa e

desde uma possibilidade eacutetica negativa Natildeo pode haver uma educaccedilatildeo que natildeo seja sobretudo

uma acccedilatildeo que arraste a negatividade consigo mesma Isto eacute uma acccedilatildeo que procura desfazer-

se do estado da ignoracircncia anterior O estado ou acccedilatildeo educativa eacute uma acccedilatildeo de

ldquodeplacementrdquo para um novo siacutetio um novo mundo uma nova aventura

As leituras ou melhor os textos utilizados por Fullat como exemplos patenteiam

naturalmente esta negatividade na relaccedilatildeo educativa Eacute o caso da visatildeo hobbesiana freudiana

e de Sartre das relaccedilotildees humanas que satildeo muitas vezes relaccedilotildees de poder da negatividade

isto eacute onde a manutenccedilatildeo do poder implica a perda do outro ou do espaccedilo do outro Nestes

autores destacam-se duas perspectivas inconciliaacuteveis ldquoo egoiacutesmo de ter e o sadismo de

dominarrdquo A educaccedilatildeo eacute vista como uma necessidade desenfreada de ter e ter sempre e cada

vez mais ao mesmo tempo que este desejo incontrolado eacute tambeacutem alimentado com a outra

necessidade de dominar e controlar tudo a todo custo Estas duas febres como lhe chama

Fullat resultam de uma eacutetica hedoniacutestica onde no campo hobbesiano o prazer eacute sinoacutenimo da

dominaccedilatildeo ldquoToda a eacutetica de Hobbes depende do seu pressuposto fundamental a inclinaccedilatildeo

geral da Humanidade para um desejo perpeacutetuo e sem descanso de adquirir poder e mais poder

desejo esse que soacute termina com a morte O ser humano eacute egoiacutesta (hellip) e a fim de poder estar

preparado para alcanccedilar o que deseja tem de procurar aumentar sempre cada vez mais o seu

poder5rdquo Natildeo poderia ter havido civilizaccedilatildeo se natildeo houvesse uma agressividade natural diria

Fullat de Francisco de Sousa O que noacutes consideramos como civilizaccedilatildeo teria sido aquilo que

pensadores como Hobbes ou Rousseau teriam visto como um princiacutepio do pacto natildeo pacto o

pacto simulado no caso de Rousseau A civilizaccedilatildeo nasce a partir da distorccedilatildeo de uma

realidade anterior e para permanecer deve tambeacutem continuar a distorcer esta mesma realidade

para poder construir um poder de dominaccedilatildeo e do egoiacutesmo Neste acircmbito a educaccedilatildeo aparece

como o aparelho protector do Estado manipulador e violento que utiliza as ideologias como a

praccedila da fecundaccedilatildeo das suas manipulaccedilotildees E porque o homem procura sobretudo ser feliz

diz Aristoacuteteles entatildeo muitas vezes natildeo escolhe os meios para ser feliz isto eacute natildeo estaacute

5 Cf Marques 2000 120 Apud Carlos Francisco de Sousa 2014 46

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disposto a abdicar de alguns meios que podem ser uacuteteis para a sua felicidade Eacute o caso da

felicidade pelo trabalho diraacute Francisco de Sousa mas o trabalho exerce uma forccedila contraacuteria

sobre a natureza e eacute o caso da educaccedilatildeo onde no educar

ldquoO homem exige a educaccedilatildeo mas esta implica a violecircncia da programaccedilatildeo

geneacutetica e da programaccedilatildeo social Educar eacute uma luta de consciecircncias em que

o educador sempre investe sobre o educando desde a cultura que se alimenta

da repressatildeo social imposta a Eros (o prazer) e Thanatos (a agressividade)6rdquo

Se bem podemos ver as teorias pessimistas como um exagero da negaccedilatildeo humana no sentido

do encontro pleno ainda assim nesta possiacutevel negaccedilatildeo do encontro pleno entre os humanos

nasce a possibilidade da vida do outro isto eacute o mesmo ldquosujeito que pode trazer a morte do

outro tambeacutem traz a sua vidardquo no embate do encontro entre os diferentes haacute sempre uma

possibilidade da nova vida de um novo existir e a educaccedilatildeo eacute precisamente tudo isso o

encontro dos diferentes que tem como fim ajudar a criar uma nova vida fazer nascer uma

nova existecircncia uma nova oportunidade Porque segundo autores como Fullat diz Francisco

de Sousa natildeo se pode falar de educaccedilatildeo laacute onde natildeo haacute consciecircncia Apenas haacute educaccedilatildeo

porque haacute consciecircncia porque existe consciecircncia porque haacute dois encontros e porque apesar

do embate entre os dois nenhuma delas deixa perder a outra natildeo eacute um encontro ou um

embate para desgarrar o outro antes pelo contraacuterio este embate eacute feito para estabelecer o

outro no outro sem fazer desaparecer a alteridade Mas isso soacute eacute possiacutevel justamente porque

no lugar da violecircncia que poderia ter conduzido a uma ldquorobotizaccedilatildeordquo foi introduzido o factor

de cuidado diz Carlos Francisco de Sousa Eacute portanto o cuidado que vai fazer com que haja

um encontro entre as duas consciecircncias Como diz Hegel de Morin (2005 105 Apud Carlos

Francisco de Sousa 2014 49) ldquoa consciecircncia de si soacute atinge a sua satisfaccedilatildeo numa outra

consciecircncia de sirdquo Dito de outra forma em palavras de Fullat de Carlos Francisco de Sousa

ldquosoacute depois da descoberta do eu pelo enfrentamento do tu se daacute a verdadeira relaccedilatildeo

educativardquo Portanto natildeo pode haver educaccedilatildeo na ausecircncia do outro natildeo pode haver

educaccedilatildeo na ausecircncia do interlocutor e do intermediaacuterio e natildeo pode haver educaccedilatildeo na

ausecircncia de uma situaccedilatildeo educativa

A fase educativa eacute acompanhada pelo decliacutenio paulatino de amestramento porque supotildee a

chegada da consciecircncia supotildee a responsabilidade pela capacidade de escolher e de decidir

supotildee a autenticidade do SIM e do NAtildeO supotildee uma certa comunicaccedilatildeo de intimidade no

6 Cf Francisco de Sousa cit

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dizer de Jaspers de Carlos Francisco de Sousa O sim e o natildeo do educando jaacute tem um patamar

um pouco mais alto que o sim e o natildeo daquele que estaacute na fase de amestramento A pugna jaacute

tem um caraacutecter mais real a dor eacute mais audiacutevel porque eacute vivida e sentida por aquele que tem

capacidade fiacutesica de desforrar violecircncia sobre o seu mestre sobre o seu guia ou sobre aquele

que lhe dirige Eacute diferente da dor da infacircncia que eacute vivida por e pela compaixatildeo do outro no

outro Os pais e os parentes proacuteximos podem responder pela dor da crianccedila enferma levando-a

ao meacutedico ou ao especialista Sozinha natildeo poderia fazecirc-lo eacute por isso que dizemos que a dor

da infacircncia eacute uma dor de solidariedade compassiva isto eacute precisa de um terceiro para ser

actualizada ou minimizada A do adulto tambeacutem pode precisar mas com muito menos

coerccedilatildeo que a da crianccedila ou a do adulto-crianccedila Esta simbologia tambeacutem pode ser aplicada agrave

relaccedilatildeo do educador e do educando que estatildeo quase sempre inicialmente em perspectivas

diferentes em dizibilidades diferentes talvez por isso autores como Fullat falam do caraacutecter

agoacutenico da educaccedilatildeo ou da educabilidade Assumem que natildeo eacute possiacutevel educar sem existecircncia

de um processo agoacutenico porque haacute encontro de dois tipos de saberes que podem ser

completamente diferentes sobre o mesmo saber ou sobre o mesmo tema O saber daquele que

ensina e o saber sobre o saber daquele que vai aprender ou que estaacute para aprender satildeo coisas

completamente diferentes passando ou acontecendo no mesmo espaccedilo A aprendizagem da

educabilidade exige sempre uma proposta e um tempo de adaptaccedilatildeo retroactivo para garantir a

apropriaccedilatildeo do processo da aprendizagem isto eacute para garantir o processo da refinaccedilatildeo do

conhecimento em outras palavras para atingir a compreensatildeo Esta etapa da compreensatildeo eacute

feita de uma transiccedilatildeo a outra isto eacute passamos de uma ldquocivilizaccedilatildeo de resposta a uma

civilizaccedilatildeo de perguntasrdquo porque o tempo de respostas definitivas morreu

O aprender com profundidade exige que natildeo nos contentemos apenas com as pequenas

resoluccedilotildees como diz Andreacute Giordan mas que consigamos apoderar-nos dos enunciados para

debatecirc-los e com eles transformar a relaccedilatildeo do saber atraveacutes de argumentos e contra-

argumentos Quem aprende eacute obrigado a ter argumentos insiste Giordan Quem aprende lanccedila

duras inquisiccedilotildees sobre o processo eacute um constante inquieto

laquoDe que estamos exactamente a falar O que queremos mostrar Estou

convicto de que o que estou a dizer eacute verdade eis porquecircraquo Ele descobre o

que eacute uma demostraccedilatildeo os argumentos que eacute necessaacuterio accionar para

convencer a importacircncia do raciociacutenio e o sentido preciso das palavras No

fim do ensino secundaacuterio aqueles que aprendem nem sempre tecircm

consciecircncia que uma hipoacutetese na matemaacutetica (onde ela eacute um dogma que natildeo

podemos transgredir) natildeo tem o mesmo estatuto que no resto das ciecircncias

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onde ela natildeo eacute senatildeo uma explicaccedilatildeo entre outras explicaccedilatildeo que adoptamos

e adaptamos durante o tempo em que procuramos meios para a corroborar ou

informar Controlar a polissemia de um tal vocabulaacuterio evita muitas

confusotildees7

Quem aprende predispotildee-se a ser bravado e podado predispotildee-se a ser limitado ao mesmo

tempo que rompe a proacutepria limitaccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo da teacutecnica e de habilidades

predispotildee-se a demostrar que apesar das limitaccedilotildees ainda assim pode criar pode inventar e

pode inovar saindo precisamente do seu campo de conforto Qualquer investigaccedilatildeo mesmo

sendo apenas inicial tem como fim tirar-nos do nosso campo do conforto tem que como

objectivo tirar-nos da nossa aldeia e conduzir-nos para a cidade onde corremos o risco de nos

perder implica actualizar o nosso preconceito em relaccedilatildeo a algo implica questionar as

evidecircncias laquoQuanto mais aquele que aprende reflecte sobre o tratamento de uma tarefa mais

ele referencia e repara nos erros nos limites e nos disfuncionamentos Ele torna-se

rapidamente capaz de analisar os acontecimentos em curso e explicitar a estrateacutegia utilizada e

a sua pertinecircncia Comeccedila a emergir uma eficaacutecia oacuteptima8raquo A compreensatildeo e a preensatildeo do

conhecimento natildeo nos deixa indiferentes faz de noacutes outro laquooutroraquo outra realidade que apesar

da existecircncia autoacutenoma assume que soacute pode existir se tiver possibilidade de se comparar com

as outras e se puder ser referenciada Eacute por isso que o nosso modelo de aprender tem que

acompanhar se possiacutevel o enquadramento das concepccedilotildees e tem que actualizar os conceitos

a sua marginalidade e o seu centrismo Pois haacute que ter em conta que ningueacutem aprende sem

antes fazer um trabalho profundo sobre as suas proacuteprias concepccedilotildees (diz Andreacute Giordan) e

sobre as concepccedilotildees dos outros onde ele se apresenta como porta-voz ou como mediador Eacute

por isso que em algumas situaccedilotildees vemos que eacute muito complicado ser porta-voz ou mediador

educativo porque vamos tentar transmitir algo que estaacute fora da nossa dizibilidade cultural

fora do nosso quadro referencial fora do nosso imaginaacuterio cultural Natildeo posso explicar o

rigor do Inverno se natildeo tenho experiencia do Inverno rigoroso porque natildeo disponho dos

dados fortemente caracteriacutesticos do Inverno

A minha explicaccedilatildeo deve superar a mera imagem informativa ou elucidativa da realidade A

minha informaccedilatildeo deve ser a mais real possiacutevel A imagem natildeo eacute a minha realidade eacute a

realidade daquela realidade eacute a realidade da fotografia tirada por mim ou por algueacutem Aqui a

fotografia tem mais ou menos a mesma funccedilatildeo que o vocabulaacuterio que estaacute como a porta de

entrada para a compreensatildeo oral pode ajudar ou pode complicar a compreensatildeo atraveacutes de

7 Cf Andreacute Giordan Aprender Editora Horizontes Pedagoacutegicos Lisboa 2007 p 162

8 Cf Idem

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uma falsa intermediaccedilatildeo de essecircncia da acccedilatildeo cultural A palavra vai ter um peso muito

importante nesta transiccedilatildeo porque pode permitir que cheguemos ou que fiquemos pelo

caminho pode manipular duplamente os conceitos A palavra usada na transmissatildeo deve ser

suficientemente aberta para permitir ao aluno viver a sua liberdade na hora da escolha deve

sentir-se familiarizado com o tema que quer escolher ou que quer trabalhar A obtusidade da

palavra pode tambeacutem ser um factor muito importante natildeo apenas na apreensatildeo dos conteuacutedos

mas tambeacutem na proacutepria escolha dos conteuacutedos por afinidade por gosto por paixatildeo ou ateacute por

curiosidade Quer o docente e quer discente tecircm que saber que este processo natildeo cabe num

frasco de linearidade Haacute muacuteltiplas facetas de ensinar e muacuteltiplas facetas de aprender Mas

entre ambas haacute uma faceta que eacute transversal que eacute desejaacutevel que seja transversal eacute a faceta

do ensinar honesto ou com a honestidade a de aprender honesto ou com a honestidade a de

que cada um tem que ser aquilo que eacute para dar e receber

Esta honestidade eacute muito importante para ajudar a fazer com que quer o educador quer o

educando caminhem para um espaccedilo da educaccedilatildeo liberal ldquoA educaccedilatildeo liberal eacute uma

educaccedilatildeo na cultura e para cultura9rdquo diz Leo Strauss o ldquoproduto terminado de uma educaccedilatildeo

liberal eacute um ser humano cultivadordquo insiste Strauss Uma educaccedilatildeo na cultura e para cultura

que nos conduza agrave formaccedilatildeo de um ser humano cultivado soacute pode ser feita inicialmente com

um fundamento muito forte da honestidade do cuidado e de autocuidado Strauss vai buscar a

explicaccedilatildeo do termo cultura a partir da sua origem latina (cultura) que se refere em primeiro

lugar agrave agricultura diz ele e no seu sentido derivado e actual (insiste ele) quer dizer ou

refere-se ao cultivo da mente Ora insiste o nosso autor assim como a terra precisa de

lavradores a mente precisa de mestres mas estes mestres soacute podem ser mestres ou

reconhecidos como mestres porque para aleacutem da sua periacutecia satildeo acima de tudo honestos

iacutentegros rectos e raros Eacute por isso que eacute mais faacutecil encontrar agricultores do que os mestres

diz Strauss sobretudo os mestres que natildeo satildeo disciacutepulos isto eacute os livros os grandes livros

No acircmbito da educaccedilatildeo liberal o estudante natildeo pode portanto estar separado dos livros dos

grandes livros e porque natildeo pode estar separado dos livros ele vai adonar-se deles e vai criar

condiccedilotildees para poder ajudar os outros estudantes menos experimentados remata Strauss

Tudo isso eacute um processo de honestidade Dedicar-se a estudar com profundidade as grandes

obras os grandes livros que muitas vezes dizem coisas completamente desconcertantes com a

sua eacutepoca o seu espaccedilo ou o seu meio cultural poliacutetico ou religioso Eacute por isso que a

educaccedilatildeo liberal natildeo pode ser entendida como um simples doutrinamento10 Eu natildeo posso

9 Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Katz editores Buenos Aires 2007 p 13

10 Cf Cit p 14

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pretender ou achar que estou a educar simplesmente porque estou a ideologizar as pessoas as

crianccedilas os jovens etc vou educar se crio cultura e se transformo as pessoas em cultura e na

cultura verdadeiramente adquirida com a honestidade

Strauss abre a possibilidade para que o termo cultura tambeacutem seja discutida porque cada

regiatildeo de planeta tem a sua proacutepria cultura Noacutes temos a nossa cultura enquanto africanos e

dentro do africano tambeacutem haacute vaacuterias culturas e subculturas (mesmo sabendo que um

socioacutelogo apressado emitiria imediatamente a sua reclamaccedilatildeo sobre subculturas11) O ideal na

educaccedilatildeo liberal eacute que a cultura natildeo seja uma pequena janela que natildeo seja apenas um

singulare tantum diz Strauss mas que seja e que procure ser utilizada no plural que aceite e

assuma o sentido relativo que lhe permite ser discutida Com a excepccedilatildeo dos loucos todos

somos seres de cultura insiste Strauss apesar da maacute compreensatildeo e da maacute interpretaccedilatildeo que

isso causa agraves vezes Natildeo obstante as maacutes interpretaccedilotildees e as maacutes compreensotildees fazem parte

do preccedilo que uma educaccedilatildeo liberal tem que pagar e tem que correr A educaccedilatildeo democraacutetica eacute

um preccedilo caro no acircmbito da educaccedilatildeo liberal natildeo apenas para o acircmbito acadeacutemico mas

sobretudo para o acircmbito poliacutetico onde o poliacutetico tem que justificar e merecer o voto dos

eleitores No nosso caso concreto o caso africano e de maneira particular a Aacutefrica lusoacutefona a

democracia natildeo se fez muito sentir natildeo estaacute a ser muito acompanhada pela educaccedilatildeo A

proacutepria expressatildeo democracia eacute vista e usada com ambiguidade Mas voltaremos a esta

anaacutelise num outro momento

A Democracia e Educaccedilatildeo

O termo democracia deve ser dos termos ou das expressotildees mais utilizadas a niacutevel poliacutetico e

fora do campo poliacutetico Eacute tambeacutem provavelmente dos termos poliacutetico-sociais mais ingratos

mais incompreensiacuteveis cujo uso eacute muitas vezes inadequado O saacutebio fala de democracia o

especialista tambeacutem mas natildeo eacute por isso que quem natildeo sabe da democracia deixa de falar dela

e isso faz com que ela seja um campo de todos e de ningueacutem Um campo do saacutebio do

especialista e do analfabeto

E eacute sobretudo com este uacuteltimo que vamos trabalhar e falar na democracia moderna Os paiacuteses

lusoacutefonos como muitos paiacuteses de Aacutefrica foram apanhados numa encruzilhada forccedilada da

virada do mundo Do mundo econoacutemico do mundo poliacutetico que tem que obedecer ao mundo

econoacutemico e tal como acontece nas regras e jogos de poderes tiveram que aceitar e entrar

para um jogo e uma regra que natildeo lhes era de todo favoraacutevel Tinham que dar espaccedilo real aos

11

Cf Cit p 14 laquoEacute todo o padratildeo comum de conduta proacutepria de um grupo humanoraquo

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partidos que estavam na oposiccedilatildeo e natildeo era possiacutevel fazecirc-lo realisticamente porque natildeo se

deixa de ser um Partido-Estado de um dia para outro e tinham que lutar contra a pobreza e

contra o analfabetismo as duas inimigas principais da democracia moderna e natildeo havia

garantia de que pudessem fazecirc-los nos termos que a democracia pensada pelos outros

propunha

Portanto a leitura que se deve fazer destes 25 anos da democracia nestes paiacuteses natildeo seria

naturalmente uma leitura triunfalista mas antes pelo contraacuterio uma leitura analiacutetica

Perguntar-se se o que chamamos democracia desde o iniacutecio foi verdadeiramente democracia

A leitura triunfalista eacute uma leitura de auto-regozijo de auto-suficiecircncia e de triunfalismo

nacionalista que faz uma espeacutecie de apagatildeo naquilo que eacute ou sobre aquilo que eacute a memoacuteria do

difiacutecil que roccedila ao fracasso e se esquece que a democracia eacute um regime que eacute feito para

triunfar perdendo ou fracassando Natildeo se pode esperar outra coisa da democracia senatildeo o

triunfo porque aparentemente eacute um regime onde todo o mundo tem a possibilidade e a

oportunidade de decidir de decidir sobre si mesmo e de decidir com o uso da influecircncia sobre

os outros E eacute precisamente na eventualidade de que esta influecircncia sobre os outros venha a

concretizar-se que fez com que os grandes teoacutericos do poder na antiguidade tivessem medo

da democracia laquoO que eacute que seria daquele regime onde o povo eacute quem mandaraquo

Perguntavam eles O que eacute que seria dos ricos da elite dos intelectuais da induacutestria etc Uma

seacuterie de questotildees do acircmbito de interesse particular se punha para chamar a atenccedilatildeo dos

particulares para natildeo aderir a algo que lhes podia fazer mal e fazer mal aos seus negoacutecios Eacute

por isso que a democracia natildeo eacute um poder do povo mas um poder de elite que eacute criado dentro

do povo sem que para isso o povo se decirc conta Os criacuteticos como Platatildeo sempre olharam para

esta elite que vem do povo como algo que sempre seraacute mal preparada para assumir com

distinccedilatildeo algo que eacute muito importante para o destino do paiacutes por isso nunca apoiaraacute um

regime democraacutetico Mas a democracia que eacute um regime triunfalista eacute uma democracia

falaciosa porque natildeo se pode esperar um triunfo na maioria ou da maioria uma vez que a

verdadeira maioria natildeo negocia natildeo dialoga apenas remete para o ponto de partida para a

regra do jogo inicial ainda que esta regra do jogo seja escrita e feita por ela de forma

maliciosa Eacute por isso que quando se fala da vitoacuteria da democracia no sentido da maioria

democraacutetica temos que olhar para esta maioria como aquela que mesmo sendo a maioria

deixou de secirc-la voluntariamente para se revestir do risco de ter que dar explicaccedilotildees de ter que

justificar-se de ter que sujeitar-se a ouvir quem perdeu quem o povo natildeo quer natildeo escolheu

e natildeo conta com ele de forma expliacutecita

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O triunfo da democracia maioritaacuteria natildeo eacute um triunfo numeacuterico mas sim um triunfo da

gestatildeo das emoccedilotildees e dos egos do poder e da poliacutetica daqueles que o povo indicou para

fracassar e aqueles que indicou para o sucesso um certo sucesso de insucesso porque tudo eacute

aprazo e eacute o proacuteprio povo que em primeiro plano natildeo respeita e nunca respeitou o prazo

Exige as contas antes do fim do prazo que ele estipulou e natildeo aceita justificaccedilotildees que natildeo

satisfaccedilam a sua proacutepria demanda os outros se transformam para ele em indiviacuteduos e ele em

Estado que tem que fazer com que a lei seja cumprida Uma tentativa de saiacuteda para esta

realidade para esta situaccedilatildeo tem que passar necessariamente pela Educaccedilatildeo eacute por isso que

alguns pensadores da democracia como eacute o caso de Gianfraco Pasquino defendem que a luta

da democracia moderna eacute uma luta que consiste em satisfazer a educaccedilatildeo e eliminar a

pobreza Natildeo se pode falar de uma democracia triunfalista quando se tem medo de olhar para

a memoacuteria que apresenta um nuacutemero insustentaacutevel do analfabetismo e de pobreza O triunfo

da democracia moderna eacute um triunfo que passa pela lucidez e um sono tranquilo de barriga

cheia natildeo da elite mas daqueles que sem ser elite sentem que algueacutem cumpriu com um

direito deles o direito de natildeo passar fome e de natildeo morrer analfabeto E esta expectativa

corresponde com a democracia moderna em alguns momentos porque eacute uma expectativa que

soacute pode ser realizada pela virtude por um regime virtuoso Em algum momento acreditamos

ou se diz que a democracia eacute um regime que depende da virtude diz Strauss Um regime onde

todos ou a maioria dos homens satildeo saacutebios uma sociedade onde todos os adultos satildeo saacutebios e

virtuosos uma sociedade aristocraacutetica uma democracia aristocraacutetica No fundo um grande

mal-entendido Aparentemente eacute o que nos teraacute acontecido em alguns momentos quando

recebemos a democracia Olhamos para ela como o estado de realizaccedilatildeo perfeita de todos e

para todos Olhamos para ela quase como que uma espeacutecie de governo dos deuses Com

efeito Aristoacuteteles tinha razatildeo quando alertou que a natureza humana natildeo permite que

olhemos para nenhum governo como lugar de possiacutevel perfeiccedilatildeo como lugar seguro porque eacute

a gestatildeo humana que vai fazer com que um lugar um governo ou um Estado seja tido como

seguro ou natildeo A gestatildeo humana das coisas eacute volaacutetil

Quando Aristoacuteteles e outros teoacutericos pensaram no indiviacuteduo viram nas instituiccedilotildees condiccedilatildeo

indispensaacutevel para responder aos anseios deste mesmo indiviacuteduo eacute por isso que criaram

maneiras formas instacircncias e institutos para permitir uma salvaguarda real do indiviacuteduo A

cidade natildeo eacute um espaccedilo natural do indiviacuteduo diz Aristoacuteteles porque implica regras

completamente diferentes das regras individuais das regras da arbitrariedade das regras da

autonomia ilimitada e das regras da natildeo obediecircncia A cidade surge portanto para dar corpo a

todo este mosaico de regras de normas de paixatildeo mas com ordem e comando unificado num

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basanos num basileus que soacute eacute independente porque obedece agraves leis porque cumpre as leis

Este propoacutesito escapou-nos enquanto africanos que festejaram a chegada da democracia e

enquanto africanos que ensinam e dirigem o (s) paiacutes (es) Olhamos para democracia tal como

olhaacutevamos para a independecircncia sempre com total ausecircncia de prestaccedilatildeo de contas e sempre

com a expectativa irreal da igualdade Mas a realidade eacute um fenoacutemeno que se justifica por si

mesmo e eacute nesta perspectiva que a Ciecircncia Poliacutetica se debate diz Strauss entre tentar

encontrar a democracia na sua geacutenese e a democracia tal como a realidade se lhe apresenta A

nossa luta eacute perceber a democracia tal como a realidade a apresenta naturalmente fazendo

uma leitura histoacuterica daquilo que ela foi de como surgiu mas sobretudo ter em conta que ela

tem uma aplicaccedilatildeo e uma aplicabilidade epocal Cada eacutepoca cultiva a sua proacutepria democracia

diz a sua proacutepria democracia e interpreta a sua proacutepria democracia A sua epocalidade renova-

se diariamente constroacutei-se na sua proacutepria construccedilatildeo-autodestruiccedilatildeo em nome da proacutepria

democracia e da correspondecircncia epocal

Somos da opiniatildeo de que Aacutefrica deve criar um estilo proacuteprio para a sua democracia Deve

criar a sua proacutepria democracia que se enraiacuteza nas suas culturas que tem em conta a sua

proacutepria particularidade e multiplicidade que tem em conta o papel das autoridades

tradicionais que muitas vezes sentem-se completamente perdidas no acircmbito do

enquadramento democraacutetico deve ter em conta o papel fulcral da mulher de todas as esferas

em Aacutefrica

No nosso contexto sabemos que ldquoa mulher africana eacute a porta de todas as entradas e a saiacuteda

de nenhuma saiacuteda natildeo autorizada A mulher africana eacute alegria de um continente com as suas

vaacuterias naccedilotildees e a sua uacutenica raccedila ela eacute o fracasso da poliacutetica e do poder quando se faz machista

e eacute a vitoacuteria da poliacutetica e do poder quando se faz humana quando se torna ouvinte e se

capitaliza como espaccedilo de confianccedila e de reconhecimento de todos Natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel

sem estes atributos da mulher natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel sem uma poliacutetica que escuta a mulher e

que permita que a sua opiniatildeo natildeo seja apenas um mero disfarce do politicamente correcto e

do eticamente aceitaacutevel A Aacutefrica possiacutevel eacute a Aacutefrica madrugadora como a preocupaccedilatildeo da

mulher para com o seu lar os seus filhosas o seu marido e toda a famiacutelia alargada A Aacutefrica

possiacutevel eacute a Aacutefrica da ternura e do pragmatismo encarnado pela mulher atraveacutes dos diversos

cuidados que presta ao seu lar e agrave comunidade no seu dia-a-dia Natildeo poderemos amar

verdadeiramente Aacutefrica se continuarmos a desprezar as suas mulheres e suas crianccedilas se a

opiniatildeo da mulher continuar a ser uma espeacutecie de favor que a comunidade lhe faz porque natildeo

quer contar com ela em termos objectivos porque lhe pintou com preconceitos de

instabilidade de inseguranccedila e de fragilidade Porque olha para ela como o problema de todos

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os problemas o mal de todos os males e portanto aquela com quem natildeo se pode nem se deve

contar na primeira hora das tomadas das decisotildees Eacute a invenccedilatildeo dos preconceitos e da

prostituiccedilatildeo ideoloacutegica que depois acaba por ser direccionada agrave mulher atraveacutes dos

mecanismos do ldquopoder positivo natildeo legisladordquo o direito criado ou assumido a partir dos actos

de todos os dias

Se tivermos em conta que em Aacutefrica as mulheres satildeo mais de metade da populaccedilatildeo do

continente e a niacutevel global as mulheres de todo o mundo satildeo a metade de toda a populaccedilatildeo

mundial entatildeo poderemos com maior propriedade dar valor agrave figura da mulher natildeo soacute para o

nosso continente mas a niacutevel global Sabemos que de cada vez que a mulher ganha um

direito conquista um direito os seus ganhos e as suas conquistas cimentam a estabilidade

local e regional para a paz e para o desenvolvimento geopoliacutetico porque a mulher no seu

exerciacutecio de responsabilidade eacute muito mais persuasiva e honra com brilho o seu compromisso

Sabemos graccedilas agrave histoacuteria etnograacutefica e histoacuteria dos acontecimentos que muitas das

reivindicaccedilotildees das mulheres africanas antecederam uma boa parte das reivindicaccedilotildees

femininas no Ocidente moderno e contemporacircneo A descoberta do continente africano pelos

europeus tambeacutem conheceu a resistecircncia feminina ao lado dos homens africanos e isto

antecede a luta feminista e a luta a auto-afirmaccedilatildeo do geacutenero no Ocidente O fracasso da

Aacutefrica reside na ldquoahistorizaccedilatildeordquo do papel das suas mulheres reside na negaccedilatildeo da histoacuteria

positiva das suas mulheres reside no facto de encurtar as epopeias femininas das suas

heroiacutenas Paiacuteses como Ruanda demostram isso todos os dias Ruanda poacutes genociacutedio teve 56

das mulheres nos seus respectivos governos e todos noacutes temos notiacutecias e conhecimento da

solidez da economia e da poliacutetica de Ruanda

Temos consciecircncia de que apesar do brilho do bem-fazer e do saber-fazer da mulher africana

ainda assim haacute muitos obstaacuteculos que ela tem que superar entre eles o proacuteprio preconceito

machista Mas mesmo sabendo do preconceito machista cremos que o preconceito maior

com o qual ela se debate eacute o preconceito cultural e religioso para uma boa parte de Aacutefrica que

tem a ver com a tradiccedilatildeo negativa Estamos por exemplo a pensar na questatildeo da mutilaccedilatildeo

genital nos casamentos forccedilados e de conveniecircncia clacircnica o traacutefico das crianccedilas do sexo

feminino e o preconceito sobre a mulher que padece de viacuterus de VIH Estes males e

preconceitos satildeo mais prejudiciais agrave condiccedilatildeo feminina da mulher africana do que qualquer

mal que possa abater sobre ela Natildeo haacute um mal pior que o mal do preconceito e natildeo haacute cultura

mais enferma que a cultura preconceituosa

Aacutefrica soacute pode resgatar a sua cultura se lutar contra os seus preconceitos negativos elevando a

condiccedilatildeo da mulher e criando-lhe instrumentos e condiccedilotildees para lutar contra o mal que a

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cultura e tradiccedilatildeo criaram para ela e contra ela muitas vezes sem pedir a sua opiniatildeo O

horizonte possiacutevel para Aacutefrica eacute aquele de destruiccedilatildeo positiva dos preconceitos culturais

prejudiciais para as suas mulheres e crianccedilas Haacute que possibilitar que os dogmas culturais

intelectuais e religiosos sejam questionados para o bem da salvaguarda da proacutepria cultura da

proacutepria religiosidade e da proacutepria intelectualidade A poliacutetica e os poliacuteticos que tomarem isso

como uma iniciativa singular salvaratildeo todo o continente africano12

rdquo

A democracia que pensa a sua proacutepria realidade natildeo pode natildeo ter em conta estas necessidades

e particularidades Eacute por isso que o novo enfoque democraacutetico em Aacutefrica e nos paiacuteses

lusoacutefonos em particular deveria incluir na escolaridade preacute-universitaacuteria a disciplina da

EDUCACcedilAtildeO PARA A DEMOCRACIA assim como pensar a possibilidade de cadeiras

como ldquoLITERATURA E INSTRUCcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeOrdquo tambeacutem no preacute-

universitaacuterio Uma educaccedilatildeo para a democracia e uma literatura e instruccedilatildeo para a

democracia evitariam que caiacutessemos naquilo que Strauss chama ou designa por ldquofalta de

espiacuterito puacuteblico13

rdquo nas democracias modernas isto eacute a criaccedilatildeo de cidadatildeos que soacute se

interessam em ler as paacuteginas desportivas dos jornais e as paacuteginas das pequenas histoacuterias e

mais nada Pensar num ensino da democracia que possa ser cimentado com apoio das nossas

tradiccedilotildees orais ajudaria natildeo soacute a ter a qualidade viva dos nossos debates democraacuteticos como

tambeacutem a fundar uma democracia de raiacutezes africanas que bebem das outras culturas mas que

tambeacutem podem reivindicar a sua originalidade poliacutetica Os diversos tipos de ONDJANGO

que existem nas culturas africanas podem ser exploradas desde o ponto de vista democraacutetico

ondjango como espaccedilo de concertaccedilatildeo de ideias como espaccedilo de recepccedilatildeo do ensinamento

dos mais velhos se aproximaria ao conceito grego de aacutegora Uma educaccedilatildeo para a democracia

em Aacutefrica deveria ter em conta tambeacutem os nossos proveacuterbios adaacutegios e aforismos com uma

acentuada moralidade onde podemos encontrar a profundidade do ser africano do espiacuterito

africano e da sua consciecircncia moral e eacutetica Neles encontramos uma insondaacutevel e inesgotaacutevel

sabedoria praacutetica transversal a todo o continente O que em Angola se designa como

ondjango na Guineacute-Bissau aparece com o nome de Djembereacutem e em algumas circunstacircncias

com o nome de Bantaba de djumbai Ambos satildeo espaccedilos de confraternizaccedilatildeo de caraacutecter

educativo desde o ponto de vista da recepccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo da cultura e do pensamento

tradicional Quer a expressatildeo djembereacutem quer a expressatildeo bantaba designam um espaccedilo

circular de modo geral coberto de capim ou chapa de zinco podendo ser usados pelas pessoas

12

Cf Este trecho faz parte de um texto escrito a 31 de Julho de 2017 para um discurso ldquoencomendadordquo para o

dia internacional da mulher africana 13

Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Ed Katz Buenos Aires 2007 p 17

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de todas as idades mas em circunstacircncias diferentes Eacute um espaccedilo de reuniotildees e de encontro

de caraacutecter familiar da aldeia ou do grupo onde muitas vezes saem as decisotildees que dizem

respeito agrave comunidade eacute um espaccedilo legislativo da lei natildeo escrita da comunidade A palavra

djumbai significa divertir-se brincar daiacute que se bem o bantabaacute tem este caraacutecter seacuterio das

tomadas de decisotildees natildeo obstante esta seriedade eacute fundada na proximidade e na

familiaridade comunidade o que faz com que o poder natildeo seja algo estranho algo longiacutenquo e

tambeacutem faz com que o ensinamento e a transmissatildeo natildeo sejam vistos com a desmesura da

grandiosidade Contrariamente aos gregos e aos povos da Mesopotacircmia o lugar onde se

ensina e onde se toma as decisotildees eacute frequentado por todos pelas mulheres e crianccedilas pelos

doentes e saudaacuteveis

Conforme vimos o ondjango nos remete para a realidade da casa (NUNES

1991 159) Mas de que casa se trata Trata-se da casa de conversa de

reuniatildeo de hospedagem de partilha de bensrefeiccedilatildeoserviccedilos de

educaccedilatildeoiniciaccedilatildeo sociocultural de entretenimento eou de fazer justiccedila

Antes de tudo se trata de uma casa ponto de partida e ponto de confluecircncia

de uma casa com as condiccedilotildees de se poder sentar reunir junto de alguns

mais-velhos trata-se de um lugar de encontro14

Esta aproximaccedilatildeo de ondjango com a comunicaccedilatildeo e gestatildeo da casa permite-nos criar aqui

uma relaccedilatildeo comparativa com oikos nomoi xenofontino-aristoteacutelico Isto eacute podemos

reivindicar para o ondjango africano as mesmas capacidades os mesmos papeacuteis ou funccedilotildees

institucionais que tinha o oikos a partir da sua visatildeo da ldquofamiacutelia da propriedade da famiacutelia e

da casardquo Tal como vemos neste texto de Nunes citado por Martinho Kavaya este ondjango eacute

pluridisciplinar baseado em vaacuterias meacutetricas sociais o que de certa forma tambeacutem corresponde

com aquilo que podemos encontrar na concepccedilatildeo da palavra grega oikos A educaccedilatildeo do

ondjango do djembereacutem ou do djumbai satildeo portadoras do espaccedilo familiar da propriedade da

famiacutelia e da reflexatildeo sobre a casa sobre as coisas da casa e isso permite fazer com que o que

se discute neste espaccedilo seja efectivamente aquilo que importa agrave cidade aquilo que importaraacute agrave

cidade um dia E o que eacute pode importar profundamente agrave cidade Naturalmente as pessoas a

sua gente os homens e mulheres crianccedilas e velhos animais e plantas No fundo tudo que diz

respeito ao homem e ao seu envolvimento social e espiritual e eacute isso que o ondjango africano

14

Cf Martinho Kavaya Freire e o Ondjango podem dialogar Reflexotildees sobre o diaacutelogo de Freire com o

ondjango africano Angolano GT Educaccedilatildeo Popular n06 p 2 consultado em 30 de Outubro de 2017

httpwwwanpedorgbrsitesdefaultfilesgt06-2805-intpdf

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pretende passar atraveacutes dos seus diferentes status e fases do mais novo ao mais velho e do

mais velho ao mais novo

Toda a vida parte do ondjango e laacute encontra seu aacutepice Aiacute segundo a

pertinecircncia do vivenciado o ohango (conversadiaacutelogo) tomava vaacuterios

significados ldquoondjangordquo enquanto ldquoulongardquo (relato da vida desde o encontro

anterior) ldquoelongisordquo (ensinamento e aprendizado) ldquoekutardquo (partilha de bens

alimentares) ldquoekongelordquo (reuniatildeo de caraacuteter deliberativo)

ldquoekangaokusombaokusombisardquo (reuniatildeo para fazer justiccedila e sentenciar para

punir ou absolver o arguumlido) ldquookupapalardquo (encontro de entretenimento festas

e danccedilas culturais e tradicionais conforme a situaccedilatildeo vivida no momento

morte caccedila casamento iniciaccedilatildeo sociocultural e comunitaacuteria acolhimento

de uma visita etc) ldquoondjulukardquo (encontro para organizar um mutiratildeo

comunitaacuterio a favor de algum da comunidade em situaccedilatildeo de doenccedila

problema socioeconocircmico intervenccedilatildeo de ajuda na sua lavoura etc)

(KAVAYA 2006 p147) Afinal o ondjango eacute o habitat comunal e vital

onde se desenham as relaccedilotildees de conviacutevio geo-histoacuterico econocircmico

sociocultural poliacutetico etc em vista o bem comunitaacuterio15

Educar para a conservaccedilatildeo destes valores eacute tambeacutem educar para a democracia e eacute educar para

a manutenccedilatildeo da cultura e dos preconceitos positivos A democracia em todo o sentido e em

toda a sua histoacuteria sempre conteve um elemento educativo muito forte e quase indissociaacutevel

de si mesma eacute o diaacutelogo para gerar a cultura e a cultura para gerar diaacutelogo Natildeo pode haver

uma verdadeira democracia que dispense este binoacutemio O erro de pensadores como Platatildeo em

relaccedilatildeo agrave sua recusa agrave democracia reside no facto de desprezarem excessivamente qualquer

tipo de possibilidade para educaccedilatildeo viaacutevel do homem democraacutetico reside no facto de natildeo

acreditarem que a democracia pode educar um poloi e fazer dele um aristoacuteis agrave sua maneira

ou ainda este erro pode residir no facto de que estes pensadores natildeo tiveram em conta que o

poloi apenas pode querer ser simplesmente e eternamente um poloi mesmo sendo democrata

O erro consistiu em pensar que os que podem e devem governar a cidade deviam deixar de ser

das suas respectivas camadas e passar a ser aristocratas Eacute um erro que ainda vemos hoje

15

Cf Ibid p 3

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EDUCACcedilAtildeO CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO

UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS

ABEL JOSEacute DA SILVA a

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS b

adasilva00gmailcom

ireneinakulomoisesgmailcom

Resumo

A presente comunicaccedilatildeo faz uma caracterizaccedilatildeo do Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo

Universitaacuterio com ecircnfase nos seus desafios e perspectivas Analisa este processo a partir da

interpretaccedilatildeo sistecircmica que decorre dos pressupostos legais da Educaccedilatildeo e Ensino em Angola

Como meacutetodo usa a revisatildeo bibliograacutefica e a interpretaccedilatildeo e fundamenta a caracterizaccedilatildeo do

referido processo como variaacutevel baacutesica para a anaacutelise da qualidade do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola idealizado com base nos princiacutepios da legalidade da integridade da

laicidade da universalidade da democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da

intervenccedilatildeo do Estado da qualidade de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais

ciacutevicos e patrioacuteticos Tem como objectivo reflectir sobre os aspectos que o caracterizam e que

interferem na sua qualidade Apresenta a missatildeo do processo integrada ao Sistema em que

todos os agentes educativos participam da sua funcionalidade

Palavas-Chave Processo Ensino Aprendizagem Sistema

Abstract

This scientific paper characterizes the Non-University Teaching and Learning Process with an

emphasis on its challenges and perspectives It analyzes this process from the systemic

interpretation that arises from the legal presuppositions of Education and Teaching in Angola

As method uses the literature review and the interpretation and founded the characterization

of this process as basic variable for the analysis of the quality of the system of Education and

Teaching in Angola Idealized on the basis of the principles of legality integrity secularity

universality democracy gratuitousness obligation compulsion State intervention quality of

services education and promotion of moral civic and patriotic values It aims to reflect on the

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aspects that characterize and that interfere in its quality Has the mission of the process

integrated into the System in which all educational agents participate in its functionality

Key-words Process Teaching Learning System

Introduccedilatildeo

O Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo Universitaacuterio (PEANU) eacute uma importante variaacutevel

para a anaacutelise do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino em Angola (SEEA) sistema perspectivado

com base nos ldquoprinciacutepios da legalidade da integridade da laicidade da universalidade da

democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da intervenccedilatildeo do Estado da qualidade

de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticosrdquo (Lei no 1716

art 5ordm)1

A caracterizaccedilatildeo do PEANU pressupotildee assumir um posicionamento holiacutestico que analise o

mesmo como um processo natildeo isolado do todo porque o SEEA eacute estruturalmente unitaacuterio e a

sua realizaccedilatildeo na situaccedilatildeo especiacutefica da anaacutelise tem influecircncia no funcionamento da totalidade

(princiacutepio da integridade art 7ordm e art 17ordm)

Os desafios e perspectivas como outra dimensatildeo importante derivada do processo de

parametrizaccedilatildeo do assunto ndash objecto de anaacutelise justificam-se a partir da consideraccedilatildeo dos

princiacutepios da universalidade democraticidade gratuitidade obrigatoriedade intervenccedilatildeo do

Estado qualidade de serviccedilos e da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais pois que se a

Lei tipifica o que idealmente eacute o correcto a necessidade de confrontar com a realidade agrave luz

da pesquisa bibliograacutefica eacute inadiaacutevel para o alinhamento do agir educativo com os princiacutepios

legais

A partir destes princiacutepios infere-se que a Educaccedilatildeo e o Ensino satildeo natildeo apenas um direito mas

tambeacutem um dever que se deve realizar com a qualidade requerida para que a construccedilatildeo de

uma nova sociedade assente na democracia esclarecida seja possiacutevel Para isso agrave Escola

atraveacutes do Processo de Ensino e Aprendizagem (PEA) em todos os niacuteveis de ensino e

especialmente nos natildeo universitaacuterios impende a tarefa de formar personalidades capazes de

influenciar com o seu saber e suas qualidades o curso da histoacuteria concreta do seu contexto

Deste modo o Processo tem de ser significativo2 Para que o processo seja significativo eacute

1 Lei de Bases do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino que estabelece os princiacutepios e bases do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola de 7 de Outubro de 2016 Esta Lei revoga a Lei 1301 de 31 de Dezembro de 2001 2 O PEANU eacute significativo quando assegure o cumprimento da sua finalidade tal como se institui no art 25ordm da

Lei 1716 referente aos Objectivos Gerais do Subsistema do Ensino Geral Desta significatividade resulta em

consequecircncia a eficaacutecia do Sistema

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necessaacuterio caracterizaacute-lo com a finalidade de que se conheccedilam natildeo soacute os seus pontos fortes

mas tambeacutem os fracos aspecto que se aborda seguidamente

Por isso o objectivo deste trabalho consiste em reflectir sobre os aspectos do SEEA que o

caracterizam e que interferem na qualidade do PEANU

1 Estrutura do Seea Ponto de partida para a caracterizaccedilatildeo do Peanu

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento ldquoad intrardquo da

realidade educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento (Cfr

Silva 2016) Por isso a anaacutelise estrutural do SEEA baseada nas proposiccedilotildees da Lei 1716 e

fundamentada pela revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura criacutetico-contextual eacute uma

tarefa basilar para esta caracterizaccedilatildeo

A caracterizaccedilatildeo do Sistema Educativo numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional de

acordo com Ngaba ( 2012) e Liberato (2014) permite concluir que existem avanccedilos e

retrocessos no processo educativo angolano que em termos de poliacutetica educativa

condicionaram a sua evoluccedilatildeo positiva bem como a sua afirmaccedilatildeo no cenaacuterio internacional e

ateacute mesmo regional3

A partir desta ideia geral sobre o estado do SEEA que de modo especial se realiza por meio

do PEANU eacute possiacutevel compreender que estruturalmente estaacute bem concebido se se analisam

todos os factores intencionais de entrada e saiacuteda de um niacutevel de ensino para outro Entretanto

o aspecto funcional real fica aqueacutem do desejado se se avaliam com visatildeo criacutetico-acadeacutemica

os resultados do processo e os discursos oficiais que asseguram a Poliacutetica do Sistema

Educativo

Contrariamente agrave 1ordf Repuacuteblica (Cfr Ngaba 2012) que natildeo se fez reger por um documento

base tanto a 2ordf como a 3ordf Repuacuteblicas de Angola tecircm como fundamento a Lei de Bases do

SEEA que estabelece a criaccedilatildeo de condiccedilotildees mais adequadas para a aplicaccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas e dos programas nacionais com o objectivo de continuar a assegurar o

3 Este momento criacutetico do SEEA eacute tambeacutem hoje reconhecido oficialmente pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo do Paiacutes

na voz da sua titular no encerramento da Semana Nacional sobre Educaccedilatildeo em Angola realizada em Luanda Por

isso para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo actual do Sistema Educativo e do PEANU especificamente eacute criteacuterio dos

autores deste trabalho que os problemas fracturantes que colocam em causa a qualidade do Sistema natildeo podem

ser analisados unilateralmente sob pena de se incorrer num reducionismo indevido pois estatildeo em causa

muacuteltiplas variaacuteveis que chocam com diversos princiacutepios e disposiccedilotildees legais em que assenta o Sistema

infraestruturas precaacuterias insuficiecircncia dos materiais e meios didaacutecticos factos que se agravam ainda mais com a

falta de preparaccedilatildeo adequada dos professores de tal modo que possam responder aos desafios do Sistema

idealizados pela Reforma Educativa Essa visatildeo geral estrutural e conjuntural pode reflectir-se e explicar-se

melhor por meio do seguinte exemplo em relaccedilatildeo agrave indisciplina na aula espaccedilo privilegiado em que se

desenvolve o PEA Estrela (1983) citada por Lopes (2005) identificou um conjunto de variaacuteveis que vatildeo desde o

proacuteprio aluno passando pelo professor pela instituiccedilatildeo escolar ateacute agrave proacutepria sociedade Estes satildeo dados

suficientes para pensar na qualidade educativa como multideterminada

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desenvolvimento humano com base numa educaccedilatildeo e aprendizagem ao longo da vida para

todos os indiviacuteduos que permita assegurar o aumento dos niacuteveis de qualidade de ensino

Considerando a anaacutelise da estrutura do Sistema estabelecido pela Lei 1716 conclui-se que as

principais alteraccedilotildees agrave antiga Lei relacionam-se entre outras com a gratuitidade e

obrigatoriedade do ensino que passa a compreender as classes da Iniciaccedilatildeo do Ensino

Primaacuterio e do Primeiro Ciclo do Ensino Secundaacuterio bem como a nomenclatura das

instituiccedilotildees

Nesta vertente assume-se que o Subsistema de Ensino Geral eacute o fundamento do SEEA (Lei

no 1716 art 24ordm) que visa de acordo com o artigo em referecircncia assegurar uma formaccedilatildeo

integral harmoniosa e soacutelida necessaacuteria para uma boa inserccedilatildeo no mercado de trabalho e na

sociedade bem como para o acesso aos niacuteveis de ensino subsequentes

Como se pode apreciar existe uma relaccedilatildeo de determinaccedilatildeo entre o processo de ensino e

aprendizagem que se realiza no Subsistema do Ensino Geral e o trabalho bem como com a

Sociedade e com os niacuteveis de ensino posteriores o que significa o reconhecimento da

importacircncia deste niacutevel que deve permitir a aquisiccedilatildeo de ferramentas fundamentais para a

compreensatildeo da vida e do mundo Entre os seus objectivos de acordo com Ngaba (2012 p

158) constam os do desenvolvimento ldquodos conhecimentos e as capacidades que favoreccedilam

uma auto-formaccedilatildeo educar para a cidadaniardquo A educaccedilatildeo vista a partir da oacuteptica deste niacutevel

de ensino eacute um factor de integraccedilatildeo social

Por isso o questionamento da qualidade do PEANU eacute no fundo o questionamento da

qualidade do Sistema em si uma vez que estudando Poliacuteticas Educativas em Angola (1975-

2005) o autor antes referenciado e alinhado com Liberato afirma

ldquoEm termos gerais fica a ideia de estarmos perante um processo evolutivo que em periacuteodos

diferentes se foi deparando com os mesmos problemas e optando pelas mesmas soluccedilotildeesrdquo

No entanto de acordo com o mesmo autor ldquoquase quatro deacutecadas depois das primeiras

mudanccedilas ldquosignificativasrdquo no sector da educaccedilatildeo deacutecadas essas caraterizadas por sucessivos

estudos e mudanccedilas o paiacutes (hellip) carece de soluccedilotildees radicais que possam corrigir de uma vez

por todas os factores relacionados com o baixo coeficiente do sistema angolanordquo (Ngaba

2012 p 173)

De acordo com a ideia anterior a questatildeo da qualidade de ensino em Angola natildeo deve ser

vista como uma questatildeo da responsabilidade exclusiva de um ou de outro niacutevel de ensino

mas como uma questatildeo transversal do SEEA considerando entre outros princiacutepios gerais o

da integralidade estatuiacutedo no artigo 7o da Lei 1716 Por isso a anaacutelise desta questatildeo implica

um posicionamento multifactorial

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Com base nessa posiccedilatildeo o Sistema possui potencialidades capazes de proporcionar um PEA

motivador que permita a construccedilatildeo das aprendizagens dos alunos e que transforme o saber

em saber fazer e em saber ser na base de uma visatildeo axioloacutegica pois atendendo agrave

complexidade da acccedilatildeo educativa a UNESCO no Relatoacuterio DELORS (2003 p 11) sustenta

que para concretizar a sua meta a educaccedilatildeo deve organizar-se em quatro tipos fundamentais

de aprendizagens que ao longo da vida do indiviacuteduo seratildeo os pilares do conhecimento

Aprender a conhecer isto eacute adquirir os instrumentos para a compeensatildeo

aprender a fazer de modo a ser capaz de agir criativamente no proacuteprio

ambiente aprender a viver juntos de modo a participar e a colaborar com os

outros em todas as actividades humanas aprender a ser isto eacute um progresso

essencial que deriva dos trecircs precedentes

Para tornar este sonho real eacute necessaacuterio que o processo seja significativo e em si mesmo

motivador formando os professores de acordo com as necessidades da realidade objectiva

Trata-se de prover os recursos necessaacuterios a um processo que desafie os limites da situaccedilatildeo

actual pois se o professor eacute indispensaacutevel natildeo eacute menos verdade que os recursos educativos

tambeacutem o sejam (Lei 1716 art 97ordm)4

Tendo em conta os pressupostos legais da Repuacuteblica de Angola (Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e

Lei 1716) e os pilares da educaccedilatildeo propostos pela UNESCO considera-se que o ideal

educativo estaacute devidamente delineado Contudo eacute necessaacuterio que de acordo com Nanni

(2005 p81) citado por Fernando (2010 p 17) no ldquoacircmbito educativo o fim uacuteltimo ndash o

horizonte para o qual deve tender toda a acccedilatildeo educativa ndash natildeo deve fazer com que os fins

intermeacutedios ndash que o tornam possiacutevel e factiacutevel ndash sejam esquecidosrdquo Daiacute a relaccedilatildeo entre fins

meios e procedimentos educativos

A distinccedilatildeo entre fins uacuteltimos da educaccedilatildeo meios e procedimentos educativos eacute fundamental

porque de acordo com Fernando (2010 p 18)

Impele agrave procura e a determinar os recursos o tempo as modalidades e as estrateacutegias para a

realizaccedilatildeo do objectivo educativo que se pretende e permite de certo modo natildeo esquecer que

se natildeo se fizer a diferenccedila entre ideal e real entre fim uacuteltimo e limite da acccedilatildeo humana entre o

horizonte e o limite concreto das coisas e da existecircncia entre o itineraacuterio projectado e a

complexidade do percurso e da vida das pessoas corre-se o risco de se ser desumano e de cair

4 No artigo 97ordm a Lei 1716 define recursos educativos como os meios que contribuem para o desenvolvimento

do SEEA tais como a) Guias e programas pedagoacutegicos b) Manuais escolares C) Meios teacutecnicos e

tecnoloacutegicos de ensino d) Bibliotecas e) Equipamentos f) Laboratoacuterios g) Oficinas h) Instalaccedilotildees e

material desportivo e cultural i) Campos de ensaios treinamento e experimentaccedilatildeo j) Auditoacuterios e salas

especializadas

Paacutegina 67 de 74

no perfeccionismo ou de se desencorajar cansar e por fim de se sentir insatisfeito com aquilo

que se faz

Em consequecircncia nos nossos dias a questatildeo do discurso pedagoacutegico sobre a ldquofinalidaderdquo da

educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU natildeo eacute faacutecil porque a educaccedilatildeo eacute caracterizada hoje por

certa crise pela necessidade de inovaccedilatildeo e pelo pluralismo de ideias de valor e de cultura do

momento histoacuterico actual (Cfr Fernando 2010 Ngaba 2012 Liberato 2014)

Na continuidade da anaacutelise sobre a finalidade da educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU os

autores concordam com Fernando (2010 p 19) ao distinguir dois tipos de tendecircncias

educativas

1 A tendecircncia redutora que ldquoprocura ver a aprendizagem em funccedilatildeo das necessidades da

economia que com as suas solicitaccedilotildees convida a rever os conteuacutedos do ensino e sua

organizaccedilatildeo Esta eacute a linha ou corrente mais seguida nos nossos diasrdquo

2 A tendecircncia aberta que ldquoprocura integrar no conceito de aprendizagem outros elementos

significativos mais ligados agraves dimensotildees psicoloacutegicas sociais e culturais das experiecircncias do

indiviacuteduo enquanto protagonista da aprendizagemrdquo

Para os autores embora a primeira tendecircncia seja a mais seguida actualmente a segunda

parece melhor corresponder agrave dignidade do homem responsaacutevel porque de acordo com a Lei

1716 (art 15ordm) o SEEA deve promover natildeo soacute o cultivo da intelectualidade mas tambeacutem

dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticos

Assim a primeira reduz a finalidade da escola agrave instruccedilatildeo e a segunda supera esta visatildeo

sustentando que a finalidade primaacuteria da actividade pedagoacutegica escolar eacute a de educar sem

contudo deixar de parte a sua funccedilatildeo instrutiva Neste sentido a finalidade da educaccedilatildeo como

instituiccedilatildeo social deve coincidir com a finalidade da escola enquanto instituiccedilatildeo formal e

socialmente mandatada para educar isto eacute para possibilitar o desenvolvimento permanente da

qualidade da pessoa humana com dignidade e integridade

2 Desafios e Perspectivas da Educaccedilatildeo

Nas paacuteginas anteriores ficou clara a ideia de que os resultados qualitativos do SEEA

fundamentalmente relacionados com o PEANU satildeo e devem ser processo-produto de um

funcionamento integral do Sistema Por isso o maior desafio da educaccedilatildeo em Angola hoje eacute o

de vencer a contradiccedilatildeo existente em que satildeo atribuiacutedas culpas isoladas ou ao aluno que natildeo

estuda ou ao professor que natildeo estaacute preparado e natildeo motiva ou agraves mateacuterias que natildeo satildeo

atractivas e adaptadas agrave realidade profissional e do contexto de vida dos alunos ou aos pais

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que natildeo acompanham suficientemente os filhos ou ainda ao proacuteprio Sistema Educativo de

maneira geral

De acordo com a ideia anterior e tendo em conta a revisatildeo bibliograacutefica realizada5 os autores

consideram que os desafios para a melhoria das falhas devem ser enfrentados de forma

sistecircmica porque cada uma das variaacuteveis antes mencionadas eacute importante para o

funcionamento normal ou natildeo do PEA natildeo apenas no niacutevel referenciado mas em todos os

niacuteveis em atenccedilatildeo aos princiacutepios de integridade do Sistema e da obrigatoriedade e qualidade

dos serviccedilos educativos Isto pressupotildee uma poliacutetica educativa ajustada agrave realidade que

incentive a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores e garanta os meios materiais indispensaacuteveis

ao processo

Trata-se de construir uma verdadeira comunidade educativa em que todos os agentes

educativos como a famiacutelia a escola e a comunidade na sua dimensatildeo mais alargada

participem Por isso eacute necessaacuterio repensar a educaccedilatildeo para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de

um paiacutes novo como afirmara Joseacute Eduardo dos Santos (2008) nos seguintes termos ldquoum

novo paiacutes estaacute a nascer e com ele haacute-de florescer tambeacutem um cidadatildeo novordquo Quando

Considerando a perspectiva temporal como resposta os autores acreditam que isso se

realizaraacute agrave medida que a educaccedilatildeo se assuma antes de tudo como uma condiccedilatildeo de verdadeira

cidadania e natildeo de mera transmissatildeo de receitas importadas do exterior e enxertadas no nosso

contexto quando todos os agentes educativos tiverem presente que o educar eacute na verdade

um verbo ldquoque exige uma acccedilatildeo com atitude transformadorardquo (Pereira e Silva 2008 p 24)

Eacute neste sentido que Joseacute Eduardo dos Santos na sua alocuccedilatildeo agrave Naccedilatildeo referia-se ao papel dos

pais dos professores e de todos os actores sociais como verdadeiros agentes educativos da

juventude Trata-se do desafio de construir uma verdadeira sociedade educativa

Na construccedilatildeo dessa sociedade educativa a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores para o SEEA

e sobretudo para o PEANU deve ser entendida como uma consequecircncia de uma formaccedilatildeo

inicial que seja adequada agraves necessidades reais da sociedade para a qual se educa Isso implica

que os professores devem ser formados com base nos desafios da nova Repuacuteblica (Ngaba

2012)

5 Em Ofiacuteco de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Perrenoud (1995) denuncia uma dupla evidecircncia por um

lado haacute alunos que natildeo aprendem e por outro professores que natildeo formam porque ambos se contentam em

exercer manualmente os oacutecios do ofiacutecio enquanto a cabeccedila estaacute ausente Na mesma linha Grilo (2002) entende

que na ldquoNa sociedade do conhecimento hoje aprende-se e ensina-se em circunstacircncias e contextos muito

diversos embora por vezes se ensine mas natildeo se aprenda como ocorre por exemplo em algumas das escolas

Mas partindo do princiacutepio de que quando se ensina haacute sempre algueacutem que aprende o ensino (hellip) eacute um

mecanismo muito importante e uma peccedila fundamental desta sociedaderdquo (p 121)

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A formaccedilatildeo inicial que serve de base para a formaccedilatildeo contiacutenua de professores de acordo com

a Lei 1716 eacute assegurada pelo Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores que estaacute estruturado

em Ensino Secundaacuterio Pedagoacutegico e Ensino Superior Pedagoacutegico O primeiro constitui o

ldquoprocesso atraveacutes do qual os indiviacuteduos adquirem e desenvolvem conhecimentos haacutebitos

habilidades capacidades e atitudes que os capacite para o exerciacutecio da profissatildeo docente na

Educaccedilatildeo Preacute-escolar no Ensino Primaacuterio e no I Ciclo do Ensino Secundaacuterio Regular de

adultos e na Educaccedilatildeo Especial e mediante criteacuterios o acesso ao Ensino Superior

Pedagoacutegicordquo (Art 46)

Por outro lado e de acordo com a mesma Lei um dos fundamentos do SEEA o ldquoEnsino

Superior Pedagoacutegico eacute um conjunto de processos desenvolvidos em Instituiccedilotildees de Ensino

Superior vocacionados agrave formaccedilatildeo de professores e demais agentes de educaccedilatildeo habilitando-

os para o exerciacutecio da actividade docente e de apoio agrave docecircncia em todos os niacuteveis e

subsistemas de ensinordquo (Art 49)

Em correspondecircncia com os estes dois artigos da Lei 1716 compreende-se a relaccedilatildeo

intriacutenseca entre o Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores e os diferentes niacuteveis de ensino do

SEEA

A educaccedilatildeo em Angola vista na oacuteptica dos seus fundamentos legais constitui-se assim numa

ldquoforma de poder porque a educabilidade eacute um poder-ser humano mediado pela educaccedilatildeo

como poder sobre o ser humano que decide sobre o dever-ser humano Eacute um poder ser

porque o ser humano eacute um ser biologicamente aberto agrave criaccedilatildeo de uma segunda naturezardquo

(Monteiro 2004 p 12)

De acordo com o autor referenciado com antecedecircncia todas as formas de poder do ser

humano sobre o outro suscitam a questatildeo da sua legitimidade Esta questatildeo eacute no fundo a do

fundamento e controlo do poder que o professor exerce atraveacutes dos conteuacutedos e formas da

comunicaccedilatildeo que realiza ante o aluno Assim sendo

A ldquolegitimidade pedagoacutegica eacute de natureza social porque ser profissional da

educaccedilatildeo implica um mandato da sociedade atraveacutes do Estado que regula o

exerciacutecio da funccedilatildeo Eacute tambeacutem de natureza individual na medida em que a

competecircncia pessoal tem um efeito de auto-legitimaccedilatildeo junto dos educandos

Mas tem de ser problematizada com mais radicalidade porque a educaccedilatildeo eacute

afinal uma forma de poder do homem sobre o homemrdquo (Monteiro 2004 p

12)

Daiacute que se a educaccedilatildeo eacute uma forma de poder eacute necessaacuterio que se exerccedila tal poder na justa

medida tendo como princiacutepio e limite a Lei que estabelece entre outros aspectos importantes

natildeo soacute a formaccedilatildeo inicial mas tambeacutem a contiacutenua dos professores para que respondam agraves

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necessidades da sociedade angolana

Portanto a anaacutelise da qualidade da educaccedilatildeo como um fenoacutemeno multideterminado que

possibilita caracterizar o Sistema justifica que a formaccedilatildeo contiacutenua de professores variaacutevel

importante para esta caracterizaccedilatildeo natildeo deve ser vista como um simples adereccedilo mas sim

como parte importante de uma cultura institucionalmente legal onde a articulaccedilatildeo entre as

instituiccedilotildees de Ensino Superior (pedagoacutegicas ou natildeo) e as do ensino geral seja

dialecticamente um facto

CONCLUSAtildeO

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento da realidade

educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento que tem como

fundamento a interpretaccedilatildeo da Lei e a revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura

criacutetico-contextual

A revisatildeo bibliograacutefica assente numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional permite

concluir que existem avanccedilos e retrocessos no processo educativo angolano que em termos

de poliacutetica educativa condicionaram sua evoluccedilatildeo positiva bem como sua afirmaccedilatildeo no

cenaacuterio internacional e ateacute mesmo regional

Esta constataccedilatildeo impotildee desafios a vencer na perspectiva da construccedilatildeo de uma sociedade

educativa em que cada agente participe reconhecendo a necessidade contiacutenua da formaccedilatildeo

dos professores para o PEANU como fundamento do SEEA

Referecircncias Bibliograacuteficas

Delors J etal (2006) EDUCACcedilAtildeO Um tesouro a descobrir Relatoacuterio para a UNESCO da Comissatildeo

Internacional sobre Educaccedilatildeo para o seacuteculo XXI 10ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez Editora

Eliana Alves Leite Pereira e Eloi Lopes da Silva (2008) Educaccedilatildeo Eacutetica e Cidadania A contribuiccedilatildeo da actual

instituiccedilatildeo escolar sc sce

FULLAT O (2000) Filosofia da Educaccedilatildeo Madrid Editorial Sintesis Educacioacuten

FREIRE P (sd) Educaccedilatildeo como Praacutetica da Liberdade 5ordf ediccedilatildeo Lisboa Dinalivro Lda

GOTZENS C (2003) A Disciplina Escolar Prevenccedilatildeo e intervenccedilatildeo nos problemas de comportamento 2ordf

ediccedilatildeo Trad de Faacutetima Murad Satildeo Paulo Artmedd Editora

Grilo M (2002) Desafios da Educaccedilatildeo - Ideiasb para uma poliacutetica educativa no seacuteculo XXI Lisboa Oficina

do Livro

Liberato E (2014) Avanccedilos e retrocessos da educaccedilatildeo em Angola Revista Brasileira de Educaccedilatildeo 1003

Lopes C d (2005) Caracterizar a Acccedilatildeo Educativa para ensinar a partir do Aluno SC Ediccedilotildees Cosmos

Morin E (2002) Os Sete Saberes Para a Educaccedilatildeo do Futuro Trad de Ana Paula de Viveiros Lisboa

Instituto Piaget

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Ngaba A V (2012) Poliacuteticas Educativas em Angola - Entre o global e o local o sistema educatuivo mundial

Mbanza-Kongo SEDIECA

Ngula A (2003) A escolarizaccedilatildeo em Aacutefrica Das grandes ilusotildees agrave pedagogia do projecto Roma Edizioni

Vivere i

Perrenoud P (1995) Ofiacutecio de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Porto Porto Editora

Perrenoud P (2002) A Escola e a aprendizagem da democracia Porto Asa

Silva A J (2016) La superacioacuten psicopedagoacutegica de los docentes de unversidad `Joseacute Eduardo dos Santosacute de

la Repuacuteblica de Angola Tesis doctoral La Habana Universidade de Ciencias Pedagoacutegicas `Enrique Joseacute

Varonaacute

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Paacutegina 73 de 74

1 Os artigos podem ser escritos em portuguecircs inglecircs espanhol e francecircs

2 Tecircm que ser ineacuteditos e natildeo mais de 20 paacuteginas notas de peacute de paacuteginas incluiacutedas

3 As resenhas submetidas natildeo devem superar 6 paacuteginas

4 O envio de artigo deveraacute ser acompanhado por um abstract no idioma original do artigo e

em inglecircs e no miacutenimo com trecircs palavras-chave

5 O formato das letras eacute Times New Roman 12 justificado e com 15 de espaccedilo

6 Os textos devem ser enviados em formato Word Perfect ou em Word para o PC

7 Os artigos enviados devem ser assinados pelos autores que tambeacutem deveratildeo indicar os

seus graus acadeacutemicos e filiaccedilatildeo institucional

8 A redacccedilatildeo da revista reserva o direito de publicar ou natildeo

9 Haveraacute sempre um comiteacute externo para avaliaccedilatildeo dos artigos

10 Os tiacutetulos dos artigos devem estar na liacutengua original e em caso de necessidade em inglecircs

11 As referecircncias bibliograacuteficas e notas de peacute de paacuteginas devem ser numeradas As

referecircncias bibliograacuteficas devem ser completas na primeira cita utilizando a norma

claacutessica para as Ciecircncias Sociais e Humanas e Vancouver ou AMA para as Ciecircncias de

Sauacutede

12 Aceitam-se os projectos de investigaccedilatildeo que natildeo superam 8 paacuteginas

LIVROS ELECTROacuteNICOS

As citas devem comeccedilar com o primeiro e uacuteltimo nome do (s) autor (es) tiacutetulo do livro

electroacutenico (em itaacutelico) editor data de publicaccedilatildeo nuacutemero da paacutegina citada Endereccedilo Web

(Disponiacutevel a data da consulta)

PROCESSO DE AVALIACcedilAtildeO E DE SELECcedilAtildeO DOS ARTIGOS

1 Os artigos devem ser enviados para o e-mail da revista ou do Director nos prazos

indicados

2 A Direcccedilatildeo acusaraacute a recepccedilatildeo do trabalho sem necessariamente manter contacto com o

autor antes da decisatildeo final de publicar ou natildeo

3 Os autores dos artigos satildeo responsaacuteveis pela sua revisatildeo ortograacutefica e gramatical

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Page 5: Página 1 de 74 - Início | ISPSN · 2019. 5. 3. · Página 5 de 74 que traz um começo, que “cria um começo” e que reinventa um começo a partir da dor e da cura. A cidade

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que traz um comeccedilo que ldquocria um comeccedilordquo e que reinventa um comeccedilo a partir da dor e da

cura A cidade deve ser filosoacutefica natildeo para fazer aquilo que jaacute foi feito aquilo que jaacute foi criado

O genealogista natildeo pode aceitar os conceitos que servem apenas para ordquo limpar e fazer

brilharrdquo numa falsa luminosidade O genealogista deve dar a cidade o entendimento do

entristecimento O genealogista enquanto educador natildeo traz apenas a reflexatildeo e a

contemplaccedilatildeo traz sobretudo para a cidade o entristecimento porque vem para dizer aos

outros aquilo que eles natildeo querem ouvir vem para dizer aquilo que mais ningueacutem diria Eacute por

isso que a resposta filosoacutefica deve ser dura contrariamente agraves outras aacutereas do saber porque eacute

uma resposta que consiste no entristecimento A filosofia como educaccedilatildeo encara um

entristecimento mas um entristecimento alegre porque conduz agrave libertaccedilatildeo Ela oferece-nos

a possibilidade de perguntarmo-nos o que somos o que fazemos e se a nossa resposta for

honesta connosco mesmo poderemos fazer um bom trabalho para a cidade O genealogista eacute

um incomodador soacute pode incomodar e soacute deve incomodar para a libertaccedilatildeo tem que

proporcionar aos outros um comportamento de Lisias de Fedro Ter vergonha do que se

pensa saber

Por uacuteltimo dizer que esta 13ordf ediccedilatildeo conteacutem alguns artigos publicados na revista OPINIAtildeO

FILOSOacuteFICA da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Rio Grande do Sul (PUCRS) traz as mais

variadas reflexotildees no acircmbito acadeacutemico-cientiacutefico

A este respeito o Professor Flaviano Kambalu reflecte sobre o conceito de pessoa a sua

complexidade e a sua relaccedilatildeo com a unidade africana Tenta encontrar os princiacutepios e os

fundamentos metafiacutesicos que podem sustentar a possibilidade da uniatildeo

O Dr Nlando Faustino reactualiza ao histoacuterico pensador das independecircncias (agrave sua maneira)

Frantz Fanon Atraveacutes da obra ldquoOs condenados da terrardquo de Fanon faz uma leitura

desconstrutivista da colonizaccedilatildeo vista como uma oportunidade para a civilizaccedilatildeo Recusa com

Fanon a ideia de que a ldquocolonizaccedilatildeo igual a civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo e

defende precisamente a ideia da despersonalizaccedilatildeo imanente do processo colonializador

Por sua vez Inaacutecio Valentim lanccedila a interrogaccedilatildeo sobre a educaccedilatildeo e o processo educativo

liberal em Aacutefrica Discute a ideia da possibilidade de educar e com quem ser educado

Os Doutores Abel da Silva e Irene Moiseacutes Inaacuteculo pensam a educaccedilatildeo desde a perspectiva natildeo

universitaacuteria a partir do cunho da lei Procuram compreender e destacar a negatividade de

uma intervenccedilatildeo excessiva dos elementos natildeo autorizados no processo educativo

Inaacutecio Valentim

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IacuteNDICE

EDITORIAL 4

ARTIGOS 7

FILOSOFIA

O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA 8

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU

HISTOacuteRIA

A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA A PARTIR DE FRANTZ FANON 20

NLANDU MATONDO FAUSTINO

PEDAGOGIA

laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO LIBERAL EM AacuteFRICA 44

INAacuteCIO VALENTIM

EDUCACcedilAtildeO

CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS 62

ABEL JOSEacute DA SILVA

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS

NORMAS DE PUBLICACcedilAtildeO 72

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FILOSOFIA O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU a

Resumo

A vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante A Aacutefrica eacute um complexo e heterogeacuteneo mosaico

de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees cujo fundamento metafiacutesico de origem

representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica O fundamento metafiacutesico de origem

eacute importante porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do

que o que os separa Nisto o diaacutelogo eacute necessaacuterio para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente

se vatildeo intensificando na actualidade O diaacutelogo conducente agrave unidade natildeo obriga mas se

move no respeito da liberdade da pessoa e da soberania de cada Estado Enfim trata-se de um

diaacutelogo sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Palavras-chave Pessoa humana Aacutefrica Fundamento Metafiacutesico Fundamento Metafiacutesico e

Diaacutelogo

Abstract

The vocation to unity is a natural feature of the human because it is essentially free relational

and dialoguing Africa is a complex and heterogeneous mosaic of peoples languages races

cultures ethnic groups and religions whose metaphysical foundation of origin represents an

indivisible unity in historical reality The metaphysical basis of origin is important because in

all fields everything that unites human beings is stronger than what divides them In this

dialogue is necessary to overcome the historical prejudices and disagreements the divisions

intolerances and fundamentalisms that unfortunately are intensifying at the present time The

a Doutor em Filosofia Religioso Saletino e Decano da Faculdade de Direito da Universidade Katiavala Bwila

Benguela ndash Angola

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dialog leading to the unit doesnrsquot oblige but moves in respect of freedom of the person and

of the sovereignty of each State At last it is a sincere dialog and fruitful that acknowledging

all the legitimate diversity promotes respect harmony and collaboration

Keywords The Human Person Africa Metaphysical foundation Metaphysical foundation

and Dialogue

Premissa

No actual contexto de crescente e incisiva globalizaccedilatildeo eacute difiacutecil subtrair-se ao dever ou agrave

necessidade de prestar conta de si mesmos Neste clima cultural tambeacutem a unidade africana eacute

chamada a justificar-se ou seja a justificar o seu direito de continuar a ser Agrave primeira vista

poderia parecer que a sua justificaccedilatildeo natildeo seja hoje um problema visto que eacute cada vez mais

difuso o uso do termo unidade e da expressatildeo uniatildeo africana Mas urge reflectir nesta unidade

agrave luz da filosofia para lhe compreender o seu verdadeiro significado

Aprendemos com Nicola Abbagnano que laquonada do que eacute humano eacute estranho agrave filosofia [hellip]

aliaacutes esta eacute o mesmo homem que se interroga a si mesmo e procura as razotildees e o fundamento

do seu serraquo1 Esta eacute a filosofia na sua adesatildeo agrave existecircncia humana e ao mesmo tempo na sua

amplitude em relaccedilatildeo aos problemas do homem Natildeo de um homem que vive no Uacuterano mas

do homem concreto que na sua vida experimenta acircnsias e insuficiecircncias alegrias e

esperanccedilas tristezas e anguacutestias2 Portanto todas as coisas satildeo susceptiacuteveis de reflexatildeo

filosoacutefica inclusive a proacutepria unidade africana exige filosofar

De facto filosofar eacute examinar a realidade e isso de um modo ou de outro todos fazemos

constantemente Ao se tentar resolver os problemas globais sociais ou pessoais eacute impossiacutevel

se abster da racionalidade Entretanto haacute uma gama de situaccedilotildees onde a razatildeo natildeo pode

avanccedilar por falta ou excesso de dados o que impossibilita decisotildees objectivas Entra em cena

entatildeo a parte subjectiva humana mais especificamente a Intuiccedilatildeo como meio de direccionar

nosso foco de entendimento e apontar caminhos a serem trilhados pela racionalidade

Soacute que actualmente a filosofia passa por uma perda de identidade Existe uma verdadeira

inflaccedilatildeo do termo filosofia e como toda a inflaccedilatildeo eacute sintoma de queda de valores de crise

difusa e profunda Hoje o termo filosofia indica muitas vezes coisas difiacuteceis proacuteprias do

hiperuracircnio e natildeo o homem que natildeo aceitando passivamente as informaccedilotildees fornecidas pela

experiecircncia imediata desenvolve uma postura de questionamento proacuteprio sobre a realidade

interroga-se a si mesmo e metodoloacutegica e ordenadamente procura as razotildees e o fundamento

1 N ABBAGNANO Storia della filosofia I UTET Torino 1963 p XVII

2 Cf CONCIacuteLIO VATICANO II Gaudium et Spes n 1

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do seu ser buscando como faziam os gregos um instrumento fundamental e o uacutenico

racionalmente possiacutevel para a soluccedilatildeo dos problemas da vida

A confusatildeo com relaccedilatildeo agrave filosofia e a desinformaccedilatildeo geral que permeia mesmo o meio

acadeacutemico chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimeacutericas no sentido de se

eliminar a Filosofia Entretanto ciecircncia alguma pode se ocupar da macro realidade O

empirismo natildeo pode ser aplicado agrave civilizaccedilatildeo humana agrave mente ao total Quem estabelece a

comunicaccedilatildeo entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia Cremos ser

este o quadro em que se deve inserir a reflexatildeo sobre a unidade africana que aqui fazemos

partindo da metafiacutesica do termo pessoa

Tal reflexatildeo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vatildeo

desafiando a unidade do continente africano Haacute uma verdade hoje admitida por quase todos

e ateacute pelos mais preconceituosos arqueoacutelogos de que a humanidade e a civilizaccedilatildeo

desenvolveram-se na noite dos tempos no berccedilo deste continente gigantesco chamado Aacutefrica3

Temos consciecircncia de que a Aacutefrica eacute um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas Embora esta imensidatildeo nos aconselhe a natildeo fazer

generalizaccedilotildees na avaliaccedilatildeo dos problemas natildeo nos impede de buscar e propor soluccedilotildees aos

problemas inerentes agrave falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito

de pessoa

1 Breve excursus histoacuterico-filosoacutefico do conceito de pessoa

11 A densidade semacircntico-etimoloacutegica do termo pessoa

A densidade semacircntica do termo pessoa formou-se no tempo graccedilas ao contributo cultural de

muitos filotildees de reflexatildeo O conceito de pessoa tem pois um percurso rico quanto complexo

De recordar que na antiguidade greco-romana natildeo se encontra bem claro o conceito de pessoa

Todavia seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias

Etimologicamente e segundo algumas pesquisas atentas os primeiros indiacutecios do termo

pessoa encontram-se no acircmbito da cultura etrusca De facto o termo phersu utilizado nos

ritos em honra de Phersepona e que significaria maacutescara4 passou a significar o indiviacuteduo

3 Cf Carlos SERRANO ndash Mauriacutecio WALDMAN Memoacuteria drsquoAacutefrica A temaacutetica africana em sala de aula

Cortez Editora Satildeo Paulo 20082 p 75 Cf Tambeacutem Luigi TRANFO Africa La transizione Tra sfruttamento e

indifferenza EMI Bologna 1995 p 269 Pedro F MIGUEL Aacutefrica Uma visatildeo global Viverein Roma 2013

p 11 4 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique in

laquoRevue des sciences religieusesraquo XXII (1948) 277-299 A MILANO Persona in teologia Dehoniane Napoli

1984 pp 16-71

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mascarado a personagem que o actor representa no drama ou seja o indiviacuteduo humano

moral e social5

Nesta senda do indiviacuteduo mascarado Edith Stein observa que visto que nas comeacutedias e nas

trageacutedias se representavam personagens famosos o nome pessoa foi imposto para significar

sujeitos que tinham um papel na sociedade por isso alguns definem a pessoa como laquouma

hipoacutestase marcada por uma qualificada conexatildeo com a sua dignidaderaquo 6

Natildeo encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Boeacutecio que liga pessoa ao

verbo personare aludindo agrave amplificaccedilatildeo da voz de quem fala por detraacutes da maacutescara Assim

pessoa eacute segundo Boeacutecio laquodecta est volvatur sonusraquo 7 Tambeacutem natildeo eacute correcto afirmar que

pessoa seja a contracccedilatildeo de per se una como quereria a proposta de Alano di Lilla8

12 O percurso evolutivo do conceito de pessoa

Com Ciacutecero e Seacuteneca a evoluccedilatildeo do conceito de pessoa deu passos importantes sem

contudo chegar agrave definiccedilatildeo hodierna

Do segundo seacuteculo em diante o conceito de pessoa entra no uso corrente na onda do esforccedilo

de clarificaccedilatildeo exigida pelas controveacutersias teoloacutegicas sobre o dogma trinitaacuterio Poreacutem foi

com Boeacutecio que o conceito de pessoa adquire o actual conteuacutedo teoacuterico E isto no contexto da

clarificaccedilatildeo conceitual sobre as questotildees teoreacuteticas que emergiam da doutrina sobre a

Trindade

Segundo Boeacutecio laquopersona est rationalis naturae individua substantiaraquo (pessoa eacute substacircncia

individual de natureza racional) 9 Boeacutecio elabora esta definiccedilatildeo servindo-se do patrimoacutenio

filosoacutefico grego e latino De facto ele sistematiza os conceitos latinos de persona natura e

substantia estabelecendo uma equivalecircncia com os vocaacutebulos gregos πρόσωπον ούσία

ύπόστασις que na oscilaccedilatildeo terminoloacutegica do tempo eram usados de maneira equiacutevoca e

confusa

Com Boeacutecio a natura toma definitivamente o lugar de ούσία entendida como essecircncia e

substantia passa a traduzir o grego ύπόστασις10

Satildeo poucos os filoacutesofos que no medievo natildeo

5 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique op

cit pp 298-299 6 Edith STEIN Essere finito e essere eterno Per una elevavazione al senso dellrsquoessere Cittagrave Nuova Roma

1988 p 380 7 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1344

8 Cf Enrico BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico in AAVV Persona e

personalismo Aspetti filosofici e teologici Fondazione Lanza Padova 1992 p 43 9 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1343

10 Cf Claudio MICAELLI ldquoNaturardquo e ldquoPersonardquo nel ldquoContra Eutychen et Nestoriumrdquo di Boezio Osservazioni

su alcuni problemi filosofici e linguistici in Luca OBERTELLO (a cura di) Atti del Congresso Internazionale di

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tinham encontrado a definiccedilatildeo de Boeacutecio satisfatoacuteria porque essa interpretava a realidade que

se tentava definir precisando-lhe o significado

Esta definiccedilatildeo pessoa eacute substacircncia individual de natureza racional que durante o medievo

faz cultura e caracteriza a tradiccedilatildeo teoloacutegica latina surge sob o impulso das disputas contra os

nestorianos os quais sustentavam que em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em

uniatildeo permanente e moral e contra os monofisistas que sustentavam a existecircncia em Cristo de

uma soacute natureza a divina11

Na definiccedilatildeo de Boeacutecio o termo pessoa tem um sentido mais especiacutefico e refere-se agrave estrutura

fundamental e metafiacutesica do indiviacuteduo ou seja agrave substacircncia individual dotada de uma

natureza racional Quer dizer nem todos os seres naturais satildeo pessoas mas apenas aqueles

substanciais

Por isso a pessoa eacute substacircncia individual Eacute individual porque tem caracteriacutesticas que a

distinguem dos outros indiviacuteduos da mesma espeacutecie caracteriacutesticas que natildeo satildeo definiacuteveis

nem comunicaacuteveis aos outros Eacute substacircncia porque eacute existente em si por si e em nenhum

outro Dizer substacircncia individual significa portanto dizer que a pessoa natildeo tem necessidade

para existir de aderir a um outro ser e conteacutem no seu quid alguma coisa de

incomunicabilidade que divide com nenhum outro12

A pessoa eacute igualmente de natureza racional O seu conhecer natildeo eacute impresso na mateacuteria nem eacute

limitado por essa Dizer natureza racional significa por isso que a pessoa natildeo soacute exerce as

actividades conexas agrave natureza mas tem a capacidade de desenvolvecirc-las capacidade possuiacuteda

por natureza ou seja com o nascimento13

A pessoa eacute pois o gau mais elevado de ser

substancial porque essa eacute consciente do seu ser substacircncia individual

Toda a pessoa eacute portanto antes de mais um indiviacuteduo Mas ao mesmo tempo muito mais que

indiviacuteduo porque natildeo eacute uma personagem mas uma substacircncia individual que possui em si

uma certa dignidade em razatildeo da sua racionalidade Por isso natildeo basta afirmar que a pessoa eacute

Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott 1980) Herder Roma 1981 p 336 11

Fruto destas disputas eacute a obra de Boeacutecio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium

cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestoacuterio De recordar poreacutem que desde

os primeiros seacuteculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importacircncia ndashcom Tertuliano os Padres

Capadoacutecios S Agostinho e S Joatildeo Damasceno ndash nos interrogativos teoreacuteticos que emergiam da Revelaccedilatildeo e nas

controveacutersias teoloacutegicas acerca do dogma trinitaacuterio Tais controveacutersias se concluiacuteram com a foacutermula das trecircs

pessoas ou hipoacutestases na uacutenica substacircncia ούσία ou natureza divina Os Padres da Igreja separando de maneira

definitiva o conceito de πρόσωπον da referencia agrave personagem

traacutegica ou coacutemica deram focirclego a um aprofundamento do

conceito de pessoa tambeacutem na reflexatildeo filosoacutefica (cf Gregorio DI NISSA La grande catechesi CIttagrave Nuova

Roma 1982 p 51 Gregorio NAZIANZENO I cinque discorsi teologici CIttagrave Nuova Roma 1986 p 175)

12 Cf San Tommaso DrsquoAQUINO Questiones disputatae De potentia q 9 a 2 ID Summa Theologiae I q

29 a 13

Cf E BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico op cit p 48

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algo de individual e nem mesmo que eacute uma substacircncia ou uma natureza para defini-la do

ponto de vista metafiacutesico

Visto que a individualidade eacute acidente isto eacute pertence agravequilo que existe como perfeiccedilatildeo e eacute

caracteriacutestica de um sujeito e enquanto a substacircncia e a natureza indicam o que eacute proacuteprio da

espeacutecie ocorre a substacircncia individual de uma natureza racional para que exista pessoa

Ocorre portanto que se refira a uma substacircncia individualizada de um ser racional para que

exista pessoa do ponto de vista metafiacutesico Somente um ser racional pode corresponder agrave

dignidade de pessoa porque pessoa eacute enfim um ser em si que natildeo pode ser substituiacutedo por

um outro e que eacute capaz de operaccedilotildees proacuteprias e racionais

Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da foacutermula de Boeacutecio Satildeo

Tomaacutes elabora a sua definiccedilatildeo de pessoa como laquosubsistens in rationali naturaraquo 14

Com a foacutermula subsistens in rationali natura Satildeo Tomaacutes evidencia natildeo soacute o aspecto comum ndash

pressuposto universalmente aceite da pessoa ndash assim como expresso pela substacircncia

individual da definiccedilatildeo de Boeacutecio mas evidencia sobretudo aquele individual isto eacute o

existente considerado na acepccedilatildeo mais proacutepria ou seja o seu ser uacutenico e irrepetiacutevel De facto

na definiccedilatildeo de Boeacutecio a substacircncia individual parece ser concebida como individualidade A

individualidade poreacutem eacute determinaccedilatildeo da coisa e natildeo ainda do quem eacute uma conotaccedilatildeo

natural da pessoa e natildeo da mesma pessoa

Satildeo Tomaacutes condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o

que de mais nobre e perfeito haacute no universo e por isso afirma laquopersona significat id quod est

perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturaraquo 15

Pessoa eacute a natureza racional que existe num indiviacuteduo concreto Por isso somente aquilo que

eacute subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa E eacute o subsistir de maneira

individual na natureza racional que confere a dignidade agrave pessoa ou seja laquoquia magnae

dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur

personaraquo 16

De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana natildeo eacute a abstracta razatildeo ndash como parece

indicar a natureza racional da definiccedilatildeo de Boeacutecio ndash mas a racionalidade possuiacuteda por um

subsistente ou seja de um ser concreto E este em virtude de um actus essendi proacuteprio que

confere actualidade agrave substacircncia e agraves suas determinaccedilotildees Tudo isto que a pessoa sabe quer e

faz brota do proacuteprio acto em virtude do qual eacute aquilo que eacute

14

Cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 29 a 3 c 15

Ibidem 16

Ibidem

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Da elaboraccedilatildeo de Satildeo Tomaacutes compreende-se essencialmente o caraacutecter racional da pessoa

racional enquanto capaz de ser consciente do proacuteprio ser17

A pessoa eacute todo o indiviacuteduo de

natureza racional livre atravessado por tradiccedilotildees e culturas responsaacutevel relacional

inteligente volitivo dialogante e por isso fundamento de unidade entre indiviacuteduos e povos

2 Do conceito da pessoa agrave construccedilatildeo da unidade africana

Antes da conquista das independecircncias os colonos procuravam inflamar as diferenccedilas

fechando as coloacutenias em si mesmas num clima de reserva ciumenta de distacircncia e quase de

desconfianccedila Com as independecircncias os encontros entre paiacuteses antigamente colonizados se

multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaboraccedilatildeo E com a criaccedilatildeo da

Organizaccedilatildeo da Unidade Africana (OUA) que veio desempenhar o papel extremamente

precioso de lugar de encontros de oacutergatildeo de diaacutelogo e de troca de experiecircncias entre Chefes de

Estado e de Governo africanos o esforccedilo para a unidade se exprimiu de modo mais visiacutevel

Contudo a vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante E enquanto essencialmente relacionais e

dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e

que os distinguem das outras espeacutecies de seres Todos os homens tecircm as mesmas tendecircncias e

exigecircncias fundamentais quanto ao aneacutelito da unidade Todo o homem eacute chamado agrave comunhatildeo

e estaacute aberto agrave comunicaccedilatildeo e ao diaacutelogo

O homem eacute capaz pois de intercacircmbio de dar-se aos outros e deles receber porque a sua

natureza o abre agrave comunhatildeo agrave comunicaccedilatildeo e agrave unidade A sua natureza relacional e

dialogante natildeo eacute apenas uma necessidade mas eacute sobretudo um dom que o ambiente que o

impede de continuar fechado e isolado no egoiacutesmo e aberto aos conflitos De facto o homem

eacute aquilo que eacute pela sua inconfundiacutevel individualidade mas tambeacutem pelo seu ser aberto ao

outro e agraves realidades extriacutensecas por causa da sua sociabilidade A sociabilidade eacute pois uma

expressatildeo da sua humanidade e a unidade uma sua actuaccedilatildeo

Por isso a unidade africana pressupotildee a uniatildeo consciente entre africanos e o comum e

orgacircnico esforccedilo para conseguir o bem humano integral A unidade africana na base da

descoberta da comum humanidade articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para

com todos e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros

17

Muitas vezes o termo racional eacute confuso com o termo intelectual Na verdade intelecto e razatildeo diferem O

intelectual eacute um conhecimento simples e imediato enquanto o racional passa de um conhecimento simples para

um mais complexo (cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 59 a 1)

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povos do continente para alcanccedilar o bem comum18

Enfim a unidade encontra a sua raiz na essecircncia metafiacutesica da pessoa humana e exprime por

conseguinte a estrutura ontoloacutegica dos africanos e diz respeito agrave proacutepria possibilidade da sua

realizaccedilatildeo Por isso as divisotildees e os conflitos lupescos natildeo fazem parte da normalidade

africana

Portanto apesar de Aacutefrica ser um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas o continente africano explica-se como unidade na

diversidade E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos eacute garantida

metafisicamente pela origem pelo facto mesmo de sermos africanos ndash do Cabo ao Cairo de

Dar es-Salaam a Dakar ndash mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas

O fundamento metafiacutesico de origem representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica

uma forccedila inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as

diversidades presentes nos Estados africanos a incomunicabilidade geograacutefica a hipocrisia

as tensotildees e os desejos separatistas e conduzir a um compromisso claro entre os africanos

respeitando as suas diversidades e os seus interesses reciacuteprocos empenhando num projecto

comum para uma Aacutefrica mais humana e mais social em que reinem sempre o respeito muacutetuo

o reconhecimento e a protecccedilatildeo dos direitos humanos fundamentais e se faccedila valer o lado

melhor dos africanos os valores basilares da paz da justiccedila da liberdade da toleracircncia da

participaccedilatildeo e da solidariedade Este fundamento metafiacutesico de origem eacute importante

porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do que o que os

separa

Contudo a unidade africana deve ser construiacuteda e aprofundada de forma dinacircmica e

incessante porque os pressupostos da uniatildeo representados pelos factores geograacuteficos pela

multiplicidade das tradiccedilotildees regionais nacionais culturais e religiosas pelos interesses

econoacutemicos trocas econoacutemicas paciacuteficas e seguras pela heranccedila e tradiccedilotildees socioculturais

africanas mais autecircnticas em si natildeo bastam para criar a uniatildeo poliacutetica Eacute necessaacuterio voltarmos

agrave metafiacutesica da unidade e reelaborar juntos a histoacuteria da Aacutefrica que aleacutem das muito boas

experiecircncias de unidade eacute ainda caracterizada nalguns casos por desentendimentos lutas

fratricidas entre etnias e ateacute por conflitos beacutelicos

Com razatildeo Kwame Nkrumah apelava na sua obra A Aacutefrica deve unir-se agrave unidade natildeo

tanto para indicar a necessidade ou condiccedilatildeo de estar unidos mas sobretudo o acto de se unir

18

Cf L F KAMBALU A democracia personalista Os fundamentos onto-antropoloacutegicos da poliacutetica agrave luz de

Pietro Pavan Paulinas Lisboa 2012 pp 51-64

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porque os pressupostos geograacuteficos e econoacutemicos por si soacute natildeo bastam para criar a uniatildeo

Ocorrem instituiccedilotildees vinculativas bem como vontade e consciecircncia de pertenccedila a um mesmo

continente chamado Aacutefrica A consciecircncia deve preceder agrave formaccedilatildeo poliacutetica da unidade

africana que natildeo se poderaacute alcanccedilar de forma duradoira sem valores comuns Outrossim

ocorre recordar que a unidade eacute em si um bem somente quando eacute ordenada quando responde

agrave razatildeo objectiva da verdade da justiccedila e do bem O mesmo eacute dizer que a unidade eacute um bem

que vale tanto quanto respeita o que haacute de valor nas partes que a compotildeem

A unidade perde valor quando se realiza de modo maciccedilo esmagador absoluto destruidor e

totalitaacuterio abolindo o espaccedilo que permite o diaacutelogo destruindo desta forma a esfera em que os

homens agem tomam decisotildees comuns e operam colaborando Por isso sem liberdade nem

diaacutelogo a unidade africana seria impossiacutevel porque a Aacutefrica natildeo seria mais o espaccedilo onde cada

indiviacuteduo aos outros as proacuteprias capacidades em vista do bem comum segundo princiacutepios de

igualdade substancial Neste sentido a Aacutefrica seria um conjunto de indiviacuteduos e por

conseguinte um conjunto de Estados sem laccedilos entre si Cada um veria o outro natildeo como um

semelhante com quem eacute chamado a relacionar-se e tomar iniciativas mas um inimigo de

quem se defender

Enfim para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma

poliacutetica que envolva todas as pessoas e forccedilas a todos os niacuteveis na busca do bem comum ou

seja na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem agraves exigecircncias

intriacutensecas e imutaacuteveis da natureza humana Trata-se pois de condiccedilotildees econoacutemicas

juriacutedicas morais e religiosas que tornam possiacutevel e favorecem o conseguimento pleno e faacutecil

do desenvolvimento integral das pessoas

As exigecircncias histoacutericas e os significados de unidade satildeo sempre mutaacuteveis Mudam conforme

se entenda o que leva os homens a unirem-se a niacutevel ontoloacutegico e histoacuterico ou seja

consoante a efectiva existecircncia daquele princiacutepio originaacuterio em cada homem e povo ou

consoante o plano social poliacutetico religioso e cultural em que se actua a unidade De facto

natildeo poucas vezes os proacuteprios acontecimentos histoacutericos e as proacuteprias diferenccedilas exigem que

se redefinam os instrumentos poliacuteticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova

filosofia de relaccedilotildees entre povos e Estados que vatildeo aleacutem do que no passado natildeo foi possiacutevel

Tais diferenccedilas podem provir de uma profunda oposiccedilatildeo e de uma divergecircncia quanto ao fim

As diferenccedilas podem provir tambeacutem de uma dupla visatildeo de um mesmo objectivo Seja qual

for a origem das diferenccedilas a atitude sadia eacute compreender as realidades e promover o diaacutelogo

e ver como as proacuteprias diferenccedilas permitem situar melhor o objecto

Por isso eacute mister que nos diversos acircmbitos questotildees e temas sobre os quais incumbe o risco

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da divisatildeo os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma soacute voz cultivando e

empenhando-se intensa livre e conscientemente ao diaacutelogo

O diaacutelogo eacute fundamental para a vida poliacutetica sobretudo quando exerce a funccedilatildeo da busca da

verdade e do bem No caso da Aacutefrica o diaacutelogo torna-se uma exigecircncia insubstituiacutevel para

superar as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente se vatildeo intensificando

na actualidade O diaacutelogo eacute igualmente fundamental para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos culturais raciais sociais e religiosos e promover e concretizar a

unidade a justiccedila e a paz natildeo soacute por causa do pluralismo eacutetnico cultural racial social e

religioso do continente mas sobretudo por causa do seu pluralismo poliacutetico pois atraveacutes do

diaacutelogo cada indiviacuteduo ou povo enriquece o proacuteprio ponto de vista e converge para as noccedilotildees

de verdade e de bem humano e se empenha a potenciaacute-las corresponsavelmente para a

unidade

O diaacutelogo eacute tambeacutem essencial para a unidade poliacutetica social e econoacutemica e o

desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos pois tal como os povos tambeacutem

os Estados tecircm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si proacuteprios e no encontro

com os outros se realizarem plenamente Por isso o isolamento seria um impedimento

insuperaacutevel para a unidade e a realizaccedilatildeo do proacuteprio continente africano

Tal diaacutelogo deve basear-se em valores princiacutepios e normas aceites e deve ser assegurado por

um sistema constitucional e de direito pela promoccedilatildeo da justiccedila da paz e da liberdade para o

continente africano pela experiecircncia da verdade e pela busca constante de compreensatildeo dos

fundamentos que tecircm plasmado a Uniatildeo Africana

O diaacutelogo natildeo se processa sem dificuldades e eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes da discussatildeo e

argumentaccedilatildeo eacute reconheciacutevel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a

dignidade pessoa humana e eacute possiacutevel a diversos niacuteveis no plano da experiecircncia quotidiana

para as questotildees sociais comunitaacuterias familiares eacuteticas e ecoloacutegicas no plano do encontro

das culturas para o respeito e o melhor conhecimento reciacuteproco no plano desportivo para o

cultivo do sentimento de pertenccedila a um todo continental no plano poliacutetico para questotildees que

dizem respeito agrave seguranccedila econoacutemica cultural e juriacutedica no plano militar para questotildees que

dizem respeito agrave garantia da seguranccedila e integridade territorial bem como agrave erradicaccedilatildeo de

conflitos em Aacutefrica

Trata-se de um diaacutelogo gradual e sempre pronto a recomeccedilar Um diaacutelogo que natildeo obriga mas

se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado trata-se de um

diaacutelogo que natildeo eacute apenas instrumental nem nasce de taacutecticas ou de interesses mas um diaacutelogo

sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

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concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Enfim trata-se de uma actividade que apresenta motivaccedilotildees exigecircncias e dignidade proacutepria e

implica um muacutetuo esforccedilo de compreensatildeo por parte dos interlocutores que se compreendem

verdadeiramente quando descobrem aleacutem dos laccedilos que os unem e os integram uns aos outros

e dos valores a eles comuns as razotildees ideais em que cada um deles se inspira para realizaacute-los

Outrossim tal diaacutelogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente beneacuteficos como o

aumento da maturidade dos africanos ndash numa penetraccedilatildeo mais autecircntica da complexa

realidade do mundo hodierno em que a Aacutefrica se move ndash a resoluccedilatildeo dos problemas a

superaccedilatildeo dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de

todas as naccedilotildees bem como pela seguranccedila e bem-estar do continente africano

Tudo isso levanta muitos e difiacuteceis problemas de ordem econoacutemica social e poliacutetica Poreacutem

estaacute de facto que diante das diferenccedilas e dos antagonismos que o continente africano vive

actualmente soacute a consciecircncia da comum humanidade e o diaacutelogo franco luacutecido e proveitoso

pode permitir construir um caminho de toleracircncia e aceitaccedilatildeo muacutetuas para a realizaccedilatildeo de uma

convivecircncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da

pessoa humana da mobilidade interna da integraccedilatildeo soacutecio-econoacutemica do continente e do

florescimento de um mercado interno Isto faraacute tambeacutem com que os africanos natildeo sejam

meros fornecedores de mateacuterias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos

estrangeiros mas produtores e consumidores de produtos do seu proacuteprio continente

Um diaacutelogo natildeo inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade mas um diaacutelogo

franco na base da consciecircncia de pessoas humanas e do respeito reciacuteproco De facto sem

diaacutelogo franco natildeo haacute progresso porquanto o progresso eacute liberdade e somente a verdade que

pode exprimir-se nos torna livres

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TRANFO Luigi Africa La transizione Tra sfruttamento e indifferenza EMI Bologna 1995

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HISTOacuteRIA A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO

SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA

A PARTIR DE FRANTZ FANON

NLANDU MATONDO FAUSTINO a

Resumo

O presente trabalho procurou desconstruir a partir das teses de Frantz Fanon sobretudo

aquelas formuladas nos ldquoCondenados da Terrardquo a ideia de uma suposta missatildeo civilizadora

subjacente na intenccedilatildeo colonizadora consubstanciada na equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual a

civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo Partindo de uma indagaccedilatildeo da validade criticaacutevel

da equaccedilatildeo em epiacutegrafe cruzou os factos agraves doutrinas que versam sobre o fenoacutemeno da

colonizaccedilatildeo de Aacutefrica e chegou a depreender com uma certa objectividade de que a

colonizaccedilatildeo em Aacutefrica tal ficou visto por Fanon foi mais um movimento de

despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeo dos africanos em geral e dos negros em particular do que

um projecto de humanizaccedilatildeo e de emancipaccedilatildeo dos indiacutegenas de Aacutefrica negra Ficou portanto

evidente ao longo deste trabalho de que a colonizaccedilatildeo foi uma violecircncia que extraiu a sua

originalidade na substantivaccedilatildeo do colonizado Uma violecircncia que natildeo soacute presidiu ao arranjo

do mundo colonial como tambeacutem ritmou e alimentou a destruiccedilatildeo antropoloacutegica e ontoloacutegica

do negro-africano incluindo todas as suas formas sociais arrasou completamente os seus

sistemas de referecircncias econoacutemicas os seus modos ldquoessendi et operandirdquo e decretou a crise

soacutecio-cultural dos povos negros de Aacutefrica

Palavras-chaves colonizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo violecircncia despersonalizaccedilatildeo descolonizaccedilatildeo

emancipaccedilatildeo

Abstract

The present study sought to deconstruct from the theses of Frantz Fanon especially those

formulated in The Wretched of the Earthrdquo the idea of a supposed civilizing mission

underlying the colonizing intention embodied in the equation colonization equal to

civilization and paganism equal to savageryrdquo Crossed the facts to the doctrines that focus on

a Doutorando em Filosofia na Universidade de Eacutevora Mestre em Ciecircncias da Educaccedilatildeo pela mesma

Universidade Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catoacutelica de

Angola

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the phenomenon of colonisation of Africa this was seen by Fanon was more a movement of

depersonalization of Africans in general and the negroes in particular than a draft of

humanization and emancipation of the peoples of black Africa Therefore became evident

throughout this work that the colonization was a violence that drew its originality of the

colonized

A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world as well as

marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African including all

its social forms wiped out completely their systems of economic references their modes

essendi et operandi and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa

Key words colonization civilization violence depersonalization decolonisation

emancipation

Introduccedilatildeo

A reflexatildeo em torno dos desafios da descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica continua actual e actuante em

qualquer discurso intelectual ou poliacutetico sobre o estado da naccedilatildeo de muitos Estados africanos

passados que satildeo aproximadamente seis deacutecadas desde que muitos deles se tornaram

independentes Esta actualidade pode todavia natildeo parecer evidente quando o enfoque do

discurso for a colonizaccedilatildeo De facto pode parecer anacroacutenico e mesmo sintomaacutetico falar da

colonizaccedilatildeo para tentar justificar a qualquer preccedilo o subdesenvolvimento e a instabilidade

sociopoliacutetica na actualidade de muitos Estados africanos independentes Bom ou malgrado

essa sensaccedilatildeo de anacronismo que sugere uma espeacutecie de eacutepokeacute em torno do fenoacutemeno

colonial perde a sua legitimidade na medida em que a pertinecircncia do discurso sobre a

descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica torna ldquoipsis verbirdquo procedente o discurso sobre a colonizaccedilatildeo Ou

seja toda a fala em torno da descolonizaccedilatildeo sugere de uma ou de outra forma uma incursatildeo

sobre a colonizaccedilatildeo Vamos ao longo deste trabalho procurar descortinar o conceito de

colonizaccedilatildeo na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do

trampolim que pode sugerir agrave nossa cogitaccedilatildeo sobre a descolonizaccedilatildeo Para o efeito

propomos a seguinte estrutura 1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a

partir da analiacutetica de Fanon 2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo

igual a civilizaccedilatildeo 3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel

deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo 4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos a uma possiacutevel

verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida 5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de

Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco 6 Desconstruindo o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista

erguida na recusa do humano enquanto diferente 7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta do

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mundo colonial uma antiacutetese agrave pretensatildeo de uma suposta missatildeo emancipadora dos

africanos subjacente na intenccedilatildeo colonizadora

1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a partir da sua analiacutetica

em Fanon

Natildeo eacute possiacutevel falar da descolonizaccedilatildeo em Fanon sem falar da colonizaccedilatildeo enquanto

referecircncia inofuscaacutevel e movimento historicizante que confere corpo e sentido mateacuteria e

forma a qualquer anaacutelise criacutetica do projecto de descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica Esta eacute de resto a

loacutegica que suporta o argumento de Fanon que passamos a transcrever

a descolonizaccedilatildeo [hellip] eacute um processo histoacuterico [hellip] natildeo pode ser

compreendida natildeo encontra a sua inteligibilidade natildeo se torna transparente

para si mesma senatildeo na exacta medida em que se faz discerniacutevel o

movimento historicizante que lhe daacute forma e conteuacutedo ndash a opressatildeo colonial

(Fanon 1968 p 26 ou Fanon 2002 p 452)

Desde esta perspectiva a anaacutelise sobre a colonizaccedilatildeo ganha uma particular relevacircncia na

medida em que se nos apresenta natildeo soacute como fundamento a partir do qual se pode erguer

qualquer avaliaccedilatildeo sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleoloacutegico da luta

dos africanos rumo agrave sua efectiva emancipaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo no universalismo humano

mas tambeacutem como pretexto para (re) pensar o caminho de superaccedilatildeo das novas formas de

colonizaccedilatildeo que grassam ainda Aacutefrica e que em si constituem um verdadeiro impasse para

uma descolonizaccedilatildeo efectiva do continente africano Importa desde jaacute sublinhar que esta

reflexatildeo de tipo histoacuterico natildeo encontra o seu real significado na descriccedilatildeo dos factos que ela

encerra nem na narraccedilatildeo histoacuterica que a constitui O seu real alcance reside na sua capacidade

de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a

descolonizaccedilatildeo vislumbrado pelos africanos passados que satildeo cinquenta e sete anos apoacutes a

morte de Fanon

Tem-se com efeito e natildeo poucas vezes associado a colonizaccedilatildeo de Aacutefrica a um projecto

civilizador ou modernizador que teraacute sido frustrado ou interrompido por uma espeacutecie de

ambiccedilatildeo irracional dos africanos admitindo-se deste modo a hipoacutetese segundo a qual a

colonizaccedilatildeo teraacute sido um ldquoprojecto interrompidordquo de civilizaccedilatildeo (modernizaccedilatildeo) da Aacutefrica e

dos africanos De recordar que o ldquodiscurso sobre o colonialismordquo de Aimeacute Ceacutesaire resulta

precisamente da necessidade de dissertar sobre uma possiacutevel analogia entre a ldquocolonizaccedilatildeo e

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a civilizaccedilatildeordquo Provocaccedilatildeo ou natildeo mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer

sobre o binocircmio colonizaccedilatildeo-civilizaccedilatildeo pelo Franco-Senegalecircs Alioune Diop fundador e

Director da Revista ldquoPreacutesence Africainerdquo em Paris 1950 insinua a existecircncia de tendecircncias

que aproximavam a colonizaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo Esta provocaccedilatildeo tal como nos parece ser natildeo

deixa de ser no plano metodoloacutegico um bom ponto de partida para uma discussatildeo mais

objectiva e criacutetica da concepccedilatildeo fanoniana do colonialismo porquanto nos permite lanccedilar a

discussatildeo levantando uma seacuterie de perguntas tais como 1 Eacute possiacutevel sustentar por via de

argumentaccedilatildeo uma provaacutevel analogia entre os dois conceitos em anaacutelise a saber colonizaccedilatildeo

e civilizaccedilatildeo 2 Teraacute havido realmente um plano colonial de civilizar ou modernizar a

Aacutefrica em proveito dos africanos 3 Era sensato legitimar a opressatildeo colonial a partir dos

progressos alcanccedilados nas coloacutenias de Aacutefrica durante a administraccedilatildeo colonial Dito de outro

modo Seraacute que os niacuteveis de desenvolvimento conseguidos em vaacuterios domiacutenios social

administrativo tecnoloacutegico e poliacutetico sob o regime colonial conferiam efectivamente a

merecida dignidade a Aacutefrica e aos africanos 4 Teraacute a Aacutefrica realmente recusado o

desenvolvimento como diria Axel Kabu ao engajar-se na luta pela descolonizaccedilatildeo 5 E hoje

em plena era poacutes-colonial poderatildeo os africanos afirmar com realismo franqueza e

frontalidade que os ideais que nortearam o projecto da descolonizaccedilatildeo foram alcanccedilados 6

Teraacute alguma razatildeo de ser o postulado segundo o qual o projecto de descolonizaccedilatildeo teraacute sido

abortado na sua menor idade admitindo-se deste modo um possiacutevel equiacutevoco entre os

liacutederes e os intelectuais africanos que teratildeo confundido as independecircncias (enquanto meio)

com a descolonizaccedilatildeo (enquanto fim da longa marcha usando a expressatildeo de Reneacute Dumont

rumo a um continente mais humano mais livre mais autoacutenomo mais justo e mais proacutespero)

Ao longo desta reflexatildeo tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas

perguntas tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon

2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeo

Qual teraacute sido o verdadeiro retrato do colonialismo um processo de civilizaccedilatildeo dos

chamados indiacutegenas ou um ldquomovimento de despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeordquo dos povos

africanos Eacute evidente que para Fanon esta questatildeo nem sequer merece ser colocada De

facto o jovem martinicano eacute bastante incisivo e objectivo na sua anaacutelise Para ele a

colonizaccedilatildeo eacute antes de mais uma ldquoviolecircnciardquo conceito que de resto daacute tiacutetulo ao Iordm capiacutetulo

do Les Damneacutes de la Terre (Fanon 1968 p23 ou 2002 p448) Na sua oacuteptica a violecircncia foi

precisamente o elemento estrateacutegico e estruturante da loacutegica colonial Trata-se de uma

violecircncia que extrai sua originalidade na substantificaccedilatildeo do colonizado que a proacutepria

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situaccedilatildeo colonial segrega e alimenta Aliaacutes o encontro entre o colonizador e o colonizado diz

Fanon teve sempre o retrato de violecircncia e nunca foi expressatildeo de uma vontade civilizadora

ou humanizadora Pode se ler em Fanon que a colonizaccedilatildeo eacute a categorizaccedilatildeo de um encontro

que

se desenrolou sob o signo da violecircncia e sua coabitaccedilatildeo ndash ou melhor

a exploraccedilatildeo do colonizado pelo colono ndash foi levada a cabo com

grande reforccedilo de baionetas e canhotildees [hellip] A violecircncia [hellip] presidiu

ao arranjo do mundo colonial [hellip] ritmou incansavelmente a

destruiccedilatildeo das formas sociais indiacutegenas [hellip] arrasou completamente

os sistemas de referecircncias da economia os modos da aparecircncia e do

vestuaacuterio do colonizado (Fanon 1968 pp 26 e 30)

Eacute possiacutevel aproximar em boa verdade uma situaccedilatildeo de uma clara alienaccedilatildeo antropoloacutegica

fazendo feacute agrave descriccedilatildeo de Fanon a um projecto de civilizaccedilatildeo sem cair em sofismas que

desemboquem numa contradiccedilatildeo De notar que este mesmo entendimento de Fanon eacute

corroborado pelo seu antigo mestre Aimeacute Ceacutesaire que parafraseamos nos seguintes termos a

colonizaccedilatildeo enquanto violecircncia no sentido mais bruto da palavra eacute uma autecircntica antiacutetese da

civilizaccedilatildeo ela por natureza desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado A

colonizaccedilatildeo legitima o ilegiacutetimo e normaliza o anormal pode-se matar agrave vontade na

Indochina torturar em Madagaacutescar prender na Aacutefrica negra seviciar nas Antilhashellip (cfr

Ceacutesaire 1978 pp 7 e 14) Natildeo eacute preciso muita hermenecircutica para apreender nos dizeres de

Sartre de que a violecircncia constitui o ldquomodus operandirdquo proacuteprio do sistema colonial que nem

as suas geniais trapaccedilas conseguem disfarccedilar A peculiaridade do agir colonial distancia a

colonizaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo E para deixar tudo a nu Sartre faz a seguinte inconfidecircncia

ldquonossos soldados no ultramar rechaccedilam o universalismo metropolitano

aplicam ao geacutenero humano o numerus clausus uma vez que ningueacutem pode

sem crime espoliar seu semelhante escravizaacute-lo ou mataacute-lo eles datildeo por

assente que o colonizado natildeo eacute o semelhante do homem Nossa tropa de

choque recebeu a missatildeo de transformar essa certeza abstrata em realidade a

ordem eacute rebaixar os habitantes do territoacuterio anexado ao niacutevel do macaco

superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [hellip] nada

deve ser poupado para liquidar as suas tradiccedilotildees para substituir a liacutengua deles

pela nossa para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossahelliprdquo (Sartre Les

Damneacutes 1961 p 9)

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Esta violecircncia que parte do plano simboacutelico conceitual atingiu o seu ponto auge com

desterramento dos indiacutegenas feitos estrangeiros na sua proacutepria terra como foi o caso do

coacutedigo civil imposto aos argelinos visando regular o direito agrave propriedade e agrave heranccedila com a

uacutenica finalidade de desterrar os autoacutectones tirando-lhes o que de mais precioso tinha ndash a sua

proacutepria terra De realccedilar que o referido coacutedigo tinha aprovado a titularidade comum de terras

entre a classe-meacutedia francesa e a sociedade tribal como estrateacutegia de expropriaccedilatildeo de terras

aos autoacutectones atraveacutes de poliacuteticas especulativas (cfr Sartre 1967 p39)

Desde este ponto de vista pode-se aferir que os ldquomodus essendi et operandirdquo do colonialismo

configuravam em certa medida aquilo que Sartre chamou de ldquoimoralidade narcisistardquo da

ambiccedilatildeo ocidental da qual emerge o impulso que modifica inevitavelmente qualquer

indiviacuteduo que adere agrave dinacircmica colonial dando-lhe boa consciecircncia e boas razotildees de ver no

outro (natildeo branco) um simples animal Esta constataccedilatildeo sartriana valida sem qualquer

sombra de duacutevida a convicccedilatildeo de Ceacutesaire para quem o colonialismo eacute brutalidade

intimidaccedilatildeo crueldade sadismo choque violaccedilatildeo roubo desprezo culturas obrigatoacuterias

desconfianccedila massas aviltadas ausecircncia de contacto humano relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de

submissatildeo que transformam o negro colonizado em criado ajudante comitre e instrumento de

produccedilatildeo (cfr Ceacutesaire 1978 p25) A partir destes pressupostos torna-se de facto forccediloso

concluir que natildeo existe tal como defende Fanon qualquer sustentabilidade quer

argumentacional quer factual para a validaccedilatildeo da equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeordquo

pois os factos atestam que colonizaccedilatildeo eacute o oposto de civilizaccedilatildeo Mas uma deacutemarche

etimoloacutegica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano teoacuterico

conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem

3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo

Para fundamentar com maior objectividade o alcance da deduccedilatildeo decorrente da narrativa de

Fanon em relaccedilatildeo a conjecturada correlaccedilatildeo entre os dois conceitos em anaacutelise pareceu-nos

mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos no sentido de os tornar mais

inteligiacuteveis para daiacute depreender o seu justo significado e consequentemente confirmar ou

infirmar a suposta correlaccedilatildeo entre ambas Conveacutem no entanto sublinhar que o caraacutecter

polisseacutemico dos conceitos em epiacutegrafe natildeo nos permite ignorar o facto de que natildeo eacute tatildeo faacutecil

quer do ponto de vista conceitual quer do ponto de vista factual traccedilar a linha de

convergecircncia ou de divergecircncia entre eles pois o proacuteprio caraacutecter multidisciplinar que o

conceito de civilizaccedilatildeo envolve hoje confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta

qualquer entendimento homogeacuteneo linear e conclusivo Acresce-se a este dado o facto de

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que nos dias que correm o conceito de civilizaccedilatildeo eacute reivindicado como objeto de estudo da

antropologia da ciecircncia da cultura do direito da histoacuteria da filosofia poliacutetica da sociologia

poliacutetica da religiatildeo etc proporcionando-lhe um enquadramento episteacutemico bastante

complexo que recusa qualquer unicidade semacircntica No entanto um recuo estrateacutegico e

metodoloacutegico ao seacuteculo das luzes onde o significado do termo ldquocivilizaccedilatildeordquo emergiu da

proacutepria raiz etimoloacutegica do conceito ldquocivilisrdquo ldquocivisrdquo cujo entendimento remetia agrave acccedilatildeo

de tornar civil ou urbano pode permitir uma espeacutecie de unidade de sentido a partir do qual se

pode fundamentar a possiacutevel analogia conceitual destes dois termos

A Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura natildeo foge muito desta percepccedilatildeo quando define a

colonizaccedilatildeo como um fenoacutemeno sociopoliacutetico baseado na dependecircncia de um grupo humano

ou de um territoacuterio a um outro que exerce nele influecircncias demograacuteficas econoacutemicas

culturais sociais ou poliacuteticas Entendimento agrave luz do qual alguns teoacutericos nos seacuteculos XIX e

XX basearam a sua definiccedilatildeo de colonizaccedilatildeo como atividade pela qual um povo de cultura

superior ocupa e organiza por conta proacutepria um territoacuterio habitado por povos de cultura

inferior estendendo a sua soberania desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas

segundo o princiacutepio da civilizaccedilatildeo Observa-se aqui a missatildeo civilizadora subjacente ao

conceito da colonizaccedilatildeo enquanto fenoacutemeno sociopoliacutetico cuja meta eacute levar as coloacutenias ao

desenvolvimento cultural social econoacutemico e cientiacutefico ou seja agrave modernizaccedilatildeo do territoacuterio

ocupado Este eacute de resto o significado que decorre do entendimento filoloacutegico do conceito de

colonizaccedilatildeo cuja estrutura originaacuteria se funda em torno de dois pressupostos basilares

nomeadamente o cultivo da terra isto eacute o desenvolvimento econoacutemico e o cultivo dos

homens ou seja a promoccedilatildeo sociocultural e econoacutemica das populaccedilotildees consideradas na

posiccedilatildeo receptiva (cfr Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura nordm5 p996ss)

De salientar que o conceito de civilizaccedilatildeo emergiu e muito provavelmente antes de qualquer

outro paiacutes no contexto sociocultural francecircs e fazia referecircncia essencialmente a trecircs

dimensotildees que vale a pena enumerar a primeira era referente ao primado da vida em

comunidade sobre a vida solitaacuteria a segunda fazia alusatildeo ao primado da vida na cidade sobre

a vida no campo a uacuteltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o

selvagem isto eacute o homem moderno distinguido pela ciecircncia e pela teacutecnica sobre o baacuterbaro

(cfr Enciclopeacutedia LB da Cultura nordm5) Neste contexto teoacuterico-conceitual civilizar era de

facto sinoacutenimo de trabalhar na integraccedilatildeo dos indiacutegenas na comunidade metropolitana na

modernizaccedilatildeo da vida do campo isto eacute levando as condiccedilotildees da cidade ao campo (energia

eleacutectrica aacutegua potaacutevel educaccedilatildeo escolar assistecircncia meacutedica e medicamentosahellip) e na policcedilatildeo

do baacuterbaro pela chamada ldquoculturardquo cientiacutefica e tecnoloacutegica

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Este parece ser o entendimento mais viaacutevel para o exame a que nos propusemos da

correlaccedilatildeo destes dois vocaacutebulos O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e

sustentabilidade episteacutemica no Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea editorial

Verbo acresce ainda mais o nosso interesse por esta perspectiva (cfr 2001 p833) Segundo

o Dicionaacuterio ora referenciado a ldquocivilizaccedilatildeordquo eacute a acccedilatildeo ou o resultado de transmitir

conhecimentos comportamentos e teacutecnicas consideradas desejaacuteveis numa sociedade moderna

Por conseguinte civilizar eacute dar caracteriacutesticas proacuteprias de sociedades teacutecnicas cientiacutefica e

economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas ou ainda dar haacutebitos e ajudar a

desenvolver comportamentos desejaacuteveis numa sociedade desenvolvida Conclui-se pois que

do ponto de vista conceitual ou definicional existem razotildees para fundamentar a presumiacutevel

correlaccedilatildeo entre os conceitos de ldquocolonizaccedilatildeo e civilizaccedilatildeordquo Mas a natildeo homogeneidade de

compreensatildeo na interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo destes conceitos agrave partida polisseacutemicos e

multidisciplinares e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descriccedilotildees fanonianas

obrigam-nos a dar um passo a mais espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e

continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo

4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos agrave uma possiacutevel verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de

partida

Se eacute possiacutevel aferir do ponto de vista definicional uma certa correlaccedilatildeo analoacutegica entre os

conceitos que fundam a nossa equaccedilatildeo de partida tal como ficou patenteado no ponto

anterior do ponto de vista doutrinal e factual esta correlaccedilatildeo carece de uma anaacutelise

minuciosa que permita apurar se a propensatildeo civilizadora inerente ao conceito de colonizaccedilatildeo

pelo menos no plano teoacuterico-conceitual conseguiu vincar como aspecto norteador da acccedilatildeo

colonial ou teraacute por alguma razatildeo ficado ofuscada durante o processo colonial Impotildee-se-

nos a este niacutevel retomar o ponto de vista de Fanon para quem a colonizaccedilatildeo eacute antes de

mais uma violecircncia que se consubstancia na animalizaccedilatildeo e na aniquilaccedilatildeo dos (negros)

colonizados Para sustentar o seu argumento Fanon comeccedila por relembrar a atitude do colono

que em vaacuterias circunstacircncias fez recurso a ldquouma linguagem zooloacutegica usando expressotildees

como ldquo[hellip] hordas fedor buliacutecio [hellip] e quando os quisesse descrever com mais exatidatildeo

[hellip] recorria constantemente ao bestiaacuteriordquo para designar os negros (Fanon 1968 p 31 ou

2002 p 456) Esta animalizaccedilatildeo do colonizado eacute para Fanon a expressatildeo mais eloquente de

uma violecircncia absoluta que desenraiacuteza o aviltado de sua humanidade E para reforccedilar a sua

criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista o colono via-se na necessidade de

encontrar novos atributos que pudessem explicitar da melhor maneira possiacutevel a real

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dimensatildeo semacircntica subjacente nos conceitos de ldquoindiacutegena e selvagemrdquo que em si jaacute natildeo

eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de

Aacutefrica entre outros

demografia galopante massas histeacutericas rostos de onde fugiu qualquer traccedilo

de humanidade corpos obesos que natildeo se assemelham mais a nada corte sem

cabeccedila nem cauda crianccedilas que datildeo a impressatildeo de natildeo pertencerem a

ningueacutem preguiccedila estendida ao sol ritmo vegetalhellip (Fanon 1968 p 32 ou

Fanon 2002 p457)

A validade histoacuterica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento Eacute sensato

falar de um projecto de civilizaccedilatildeo de animais sem converter a proacutepria racionalidade

civilizadora numa irracionalidade animal Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade

animal de uma civilizaccedilatildeo cuja racionalidade eacute o epicentro da sua acccedilatildeo muitos preferiram

considerar as afirmaccedilotildees de Fanon de irresponsaacuteveis e repletas de inverdades qualificando o

proacuteprio Fanon de agitador e instigador da violecircncia ante a sua incisiva caracterizaccedilatildeo do

sistema colonial Dentre outros podemos citar Alain Finkierkraut cujo pensamento mais do

que uma antiacutetese agraves teses de Fanon eacute uma tentativa de demonstraccedilatildeo da derrota do projecto da

descolonizaccedilatildeo Piegraverre Bourdieu de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que

pesam sobre Fanon eacute paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010 p 109)

como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus Simone de

Beauvoir Germaine Tillion Jasques Amrouche e outros que como Fanon e Sartre tiveram a

ousadia de denunciar cada um agrave sua maneira a violecircncia inerente ao sistema colonial

forjando novas noccedilotildees de identidade poliacutetica que continuam a influenciar o debate poliacutetico na

actualidade

No seu ldquomarxismo encontra Bourdieurdquo Burawoy procura mostrar que apesar da enorme

distacircncia que separa o quadro teoacuterico-reflexivo de Bourdieu e Fanon nomeadamente ldquoo

marxismo terceiro-mundista de um lado e a teoria da modernizaccedilatildeo de outro ladordquo o

pensamento destes dois autores apresenta inuacutemeras similitudes sobretudo entre o Fanon do

Le Damneacutes de la terre de 1961 e o Bourdieu de Sociologie de lrsquoAlgerie de 1958 Embora

natildeo seja objecto deste debate julgamos oportuno e procedente mencionar a tiacutetulo de

exemplo algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violecircncia como uma das

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave natureza proacutepria do sistema colonial e nos termos muito

semelhantes aqueles que aparecem nas paacuteginas 26 e 30 do Le Damneacutes de la terre de Fanon

(cfr 1968) ao afirmar

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o sistema colonial enquanto tal natildeo poderaacute ser destruiacutedo senatildeo atraveacutes de

um questionamento radical Todas as mutaccedilotildees satildeo submetidas agrave lei de tudo

ou nada Este facto estaacute na consciecircncia pelo menos de forma confusa quer

entre os membros da sociedade dominante quer entre os membros da

sociedade dominada [hellip] Mas eacute preciso admitir que o primeiro e uacutenico

questionamento radical do sistema eacute aquele que o proacuteprio sistema engendrou

isto eacute a revoluccedilatildeo contra os princiacutepios que o fundaram [hellip] A situaccedilatildeo

colonial criou o despreziacutevel e ao mesmo tempo o desprezo mas criou

tambeacutem a revolta contra o desprezo Assim cresce cada vez mais a tensatildeo

que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu 1958 pp 28 e 129)

Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu numa clara aproximaccedilatildeo da

colonizaccedilatildeo agrave violecircncia De facto a violecircncia simboacutelica e real eacute depreendida em muitos

cenaacuterios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial

Vaacuterios satildeo os etnoacutelogos e ideoacutelogos que nas entrelinhas do seu pensamento conferem uma

certa razatildeo a um tal pressuposto Alfred de Vigny por exemplo faz jus a esta violecircncia

simboacutelica ao afirmar sem rodeios que o mundo natildeo europeu eacute um mundo animal mundo dos

baacuterbaros mundo da morte e consequentemente uma ameaccedila ao mundo europeu Partindo

deste postulado deduz-se que para De Vigny a colonizaccedilatildeo era um processo compulsivo de

civilizaccedilatildeo isto eacute uma opccedilatildeo para a vida e tal como diz ldquose se prefere a vida agrave morte tem de

se preferir a civilizaccedilatildeo agrave barbaridaderdquo que natildeo eacute apenas um reino animal e de morte mas

tambeacutem uma ameaccedila agrave civilizaccedilatildeo Em virtude disto conclui De Vigny ldquonenhum povo tem o

direito de permanecer baacuterbaro ao lado das naccedilotildees civilizadasrdquo Depreende-se daqui que a

uacutenica loacutegica vaacutelida eacute a disjuntiva ldquoto be or not to berdquo como diria Shakespeare ldquothat is the

questionrdquo (cfr De Vigny 2003 p87)

Esta apreciaccedilatildeo lacoacutenica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que como De

Vigny tambeacutem considera a colonizaccedilatildeo como uma obra civilizadora uma espeacutecie de direito e

dever das sociedades evoluiacutedas Folliet baseia o seu argumento nas caracteriacutesticas

heterogeacuteneas das sociedades isto eacute nos desniacuteveis existentes entre as sociedades colonizadas e

colonizadoras quer nos planos econoacutemico administrativo cultural social e poliacutetico quer nos

planos cientiacutefico e tecnoloacutegico Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizaccedilatildeo

seria possivelmente o processo de supressatildeo destes desniacuteveis sociais com o auxiacutelio das

sociedades mais desenvolvidas Pelo que a manutenccedilatildeo destes desniacuteveis como forma

hegemoacutenica de controlo ou de manutenccedilatildeo de superioridade foge do acircmbito da colonizaccedilatildeo

para desembocar no campo de acccedilatildeo do colonialismo (cfr Folliet 1932 p 75) Eacute caso para

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dizer que o entendimento teoacuterico de Folliet apresenta uma diferenccedila niacutetida entre a colonizaccedilatildeo

que seria para o autor o sinoacutenimo de civilizaccedilatildeo e o colonialismo que pode ser visto como

processo de exploraccedilatildeo e subjugaccedilatildeo das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades

desenvolvidas

Mas eacute preciso dizer que se do ponto de vista conceitual Folliet deu um tamanho salto

qualitativo propiciador de uma possiacutevel coabitaccedilatildeo paciacutefica entre o colono e o colonizador

aludindo agrave missatildeo civilizadora da colonizaccedilatildeo do ponto de vista praacutetico o discurso follietiano

deu lugar a muitas ambiguidades sobretudo quando o proacuteprio autor considera a colonizaccedilatildeo

como forma mais viaacutevel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em

territoacuterios subdesenvolvidos e valorizaacute-los para o bem-comum da humanidade sem definir as

regras nem as modalidades ou os viacutenculos contractuais para tal Com efeito Folliet considera

um dado assente que ldquoas naccedilotildees economicamente mais evoluiacutedas tecircm o direito de explorar as

riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagensrdquo (Folliet 1932 pp 101 e 268) E

para natildeo camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violecircncia Folliet

defende a necessidade da manutenccedilatildeo das desigualdades entre o colonizador e o colonizado

numa clara opccedilatildeo pelo colonialismo em detrimento da colonizaccedilatildeo contrariando a sua proacutepria

doutrina com o seguinte posicionamento

a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores de modo que o sujeito

colonizado natildeo passe numa vontade de vinganccedila a esquecer a sua

heteronomia absoluta eacute portanto uacutetil e necessaacuterio que as mais vastas

propriedades as mais ricas induacutestrias os mais frutuosos comeacutercios pertenccedilam

aos representantes da raccedila superior (Folliet 1932 p228)

Uma possiacutevel deduccedilatildeo leva-nos por um lado a aferir a inadequaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida

com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analiacuteticos da questatildeo em

estudo e a considerar por outro lado a emergecircncia da categoria de dominaccedilatildeo como outro

elemento caracteriacutestico da estrateacutegia colonial na relaccedilatildeo colonizadocolonizador Este

princiacutepio que eacute em si mesmo o elemento estruturante da tensatildeo e ao mesmo tempo

provocador da dialeacutectica do senhor e do escravo permite-nos um salto para o exame da

possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a Aacutefrica em proveito dos

africanos

5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco

Eacute possiacutevel compatibilizar o instinto de dominaccedilatildeo com a vontade de promover ou de

emancipar Guillaume Sureacutena num movimento contraacuterio ao nosso itineraacuterio apresenta um

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discurso capaz de relanccedilar a discussatildeo No seu artigo intitulado ldquoPsycanalyse et

anticolonialismerdquo Sureacutena lamenta o desperdiacutecio de uma oportunidade que teria resultado num

possiacutevel encontro inter-civilizacional frutiacutefero e que no entanto teraacute sido frustrado pela

vontade dominadora do instinto colonial Os textos surenianos insinuam que do ponto de

vista praacutetico a civilizaccedilatildeo europeia nunca teve qualquer plano de promover nem de

reconhecer as outras civilizaccedilotildees como parceiras importantes para um crescimento conjunto

A sua ambiccedilatildeo foi sempre de conhecer para dominar e subjugar como ficou explicitado nesta

passagem

este encontro de civilizaccedilotildees tatildeo diferentes poderia ter sido o momento de um

intercacircmbio fecundo e de um enriquecimento muacutetuo como lamentou o

antropoacutelogo francecircs Claude Levi-Strauss Mas para a metafiacutesica europeia

desde a Greacutecia antiga o saber foi sempre o equivalente de ldquomaitriserrdquo isto eacute

de dominar As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados

sob os conceitos com partiacuteculas latinas e gregas Os locais geograacuteficos

receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridiacuteculos por

falta de qualquer relaccedilatildeo com os espiacuteritos que os habitavam outrora (Sureacutena

1943 p 4)

Diga-se pois de passagem que foi assim na Greacutecia antiga foi assim ateacute ao seacuteculo XX e

nada justifica que natildeo continue assim nos dias que hatildeo-de vir Mas a questatildeo eacute qual o destino

que o instinto dominador das naccedilotildees pode proporcionar agrave espeacutecie humana Conveacutem recordar

que num passado mais recente da histoacuteria da Europa a colonizaccedilatildeo assumiu o caraacutecter de

dominaccedilatildeo dos povos e dos seus recursos naturais Os europeus sempre mostraram-se mais

interessados com uma partenogeacutenese profunda dos africanos para os submeter mais

facilmente e natildeo para os civilizar De facto desde o iniacutecio do seacuteculo XVII com as grandes

navegaccedilotildees e os descobrimentos das ameacutericas o interesse em explorar e conquistar novas

terras ganhou um enorme vigor na Europa e com ele emergiu tambeacutem a chamada

colonizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de povoamento A primeira forma de colonizaccedilatildeo foi o momento

no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as coloacutenias tinham uma

utilidade meramente lucrativa junto da metroacutepole A segunda acontecia de maneira

espontacircnea mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econoacutemica

com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem aiacute acorria

Muitos estudos mostram que no continente africano este tipo de colonizaccedilatildeo foi sempre

acompanhado de desterramento de zonas araacuteveis ou de pastagem dos autoacutectones bem como

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da supressatildeo dos eventuais direitos que detinham1 Embora referindo-se a um contexto muito

mais preteacuterito ao de Fanon Ceacutesaire Sartre e outros Iva Cabral traz ao de cima a ideia de

dominaccedilatildeo e de exploraccedilatildeo como elementos catalisadores do interesse europeu em Aacutefrica

ajudando assim na desconstruccedilatildeo da hipoacutetese de um possiacutevel plano colonial para o

desenvolvimento de Aacutefrica e dos africanos De facto Iva Cabral afirma que a experiecircncia

ultramarina se resumia na conquista das praccedilas do Norte de Aacutefrica e na fixaccedilatildeo de guarniccedilotildees

e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territoacuterios tropicais de

Aacutefrica natildeo pelo desejo de levar a civilizaccedilatildeo agraves terras longiacutenquas de Aacutefrica mas por causa

dos inuacutemeros privileacutegios econoacutemicos e sociais que tinham os quais incluiacuteam em alguns

casos a sociedade escravocrata de produccedilatildeo no Atlacircntico (cfr 2015 p25)

Este suporte histoacuterico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra

um reforccedilo na posiccedilatildeo de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa

anaacutelise sobre as categorias de dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo como sustentaacuteculos da acccedilatildeo

colonizadora quando num tom autocriacutetico apontando o dedo aos seus irmatildeos europeus

pinta sem complexo nem contemplaccedilotildees o verdadeiro retrato da Europa colonial permitindo

a apreensatildeo da razatildeo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opressatildeo contra os

autoacutectones em territoacuterios colonizados sobretudo em Aacutefrica nestes termos

sabeis muito bem que somos exploradores Sabeis que nos apoderamos do

ouro e dos metais e posteriormente do petroacuteleo dos continentes novos e que

os trouxemos para as velhas metroacutepoles Com excelentes resultados palaacutecios

catedrais capitais industriais [hellip] A Europa empanturrada de riquezas

concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes entre noacutes

lucramos com a exploraccedilatildeo colonial (Fanon 1968 p 17)

Se tomamos a seacuterio as diversas constataccedilotildees dos autores supra mencionados torna-se

insustentaacutevel a hipoacutetese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos

africanos e da Aacutefrica num contexto de exploraccedilatildeo no seu sentido mais radical e mais bruto do

termo isto eacute uma exploraccedilatildeo natildeo soacute de recursos naturais dos territoacuterios colonizados mas

tambeacutem do seu proacuteprio capital humano Num tal contexto aproximar a colonizaccedilatildeo da

civilizaccedilatildeo eacute admitir agrave partida uma ambiguidade semacircntica na compreensatildeo destes dois

conceitos Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade Ceacutesaire diz que a colonizaccedilatildeo natildeo

deve ser confundida com uma empresa filantroacutepica nem com uma nobre vontade de recuar as

fronteiras da ignoracircncia da doenccedila da tirania e ateacute mesmo da propagaccedilatildeo de Deus e muito

1 Cfr httpsptwikipediaogwikicolonizaccedilatildeo Enciclopeacutedia livre 15022017

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menos com uma poliacutetica de extensatildeo dos direitos do povo colonizado como pretendeu o

pedantismo cristatildeo que concebeu o referido equiacutevoco ao enunciar uma equaccedilatildeo eacutetica e

religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria tornando-se assim responsaacutevel pelas consequecircncias

abominaacuteveis decorrentes dos actos coloniais cujas viacutetimas seriam os iacutendios os amarelos e os

negros (cfr Ceacutesaire 1978 pp14-15)

Pode se depreender dos textos de Ceacutesaire que a colonizaccedilatildeo eacute a manifestaccedilatildeo sem precedente

da ganacircncia do aventureiro e do pirata do comerciante e do armador do pesquisador de ouro

e do mercado do apetite e da forccedila tendo por detraacutes a sombra maleacutefica projetada de uma

forma de civilizaccedilatildeo que a dado momento da sua histoacuteria se viu obrigada internamente a

alargar agrave escala mundial a concorrecircncia das suas economias Se natildeo como se pode perceber

que a Franccedila em particular e a Europa em geral conseguissem progressivamente tal como

alude Dino Constantini transformar os princiacutepios democraacuteticos e humanistas tatildeo-reclamados

naquela circunscriccedilatildeo do globo em instrumentos de justificaccedilatildeo de dominaccedilatildeo com regulares

violaccedilotildees nas coloacutenias dando lugar a uma degeneraccedilatildeo sem precedente de uma suposta

ldquomissatildeo civilizadorardquo da Europa em Aacutefrica (cfr Constatini 2008 pp 33 e 53) Para pocircr a nu

o paradoxo de uma civilizaccedilatildeo dita humanista mas na praacutetica contestadora da proacutepria

humanidade no ldquodiferenterdquo Constatini evoca o coacutedigo civil de 1791 que coloca as coloacutenias

fora do direito comum institucionalizando uma cisatildeo social juridicamente fundamentada

entre as populaccedilotildees brancas e negras legitimando ao mesmo tempo a violecircncia primeiro no

plano simboacutelico e posteriormente no plano concreto numa clara declaraccedilatildeo de recusa de

reconhecimento e de integraccedilatildeo dos negros na vida da metroacutepole Eacute preciso dizer que esta

fragmentaccedilatildeo social legitimada pelo coacutedigo civil supra citado serviu de base para a

consagraccedilatildeo de uma nova compreensatildeo do conceito da ldquohumanidaderdquo que reduziria os

direitos humanos a direitos de cidadania reservando-os apenas aos europeus

Eacute o paradoxo no caso da Franccedila de uma Repuacuteblica que nunca deixou de contestar contra a

violecircncia de que tinha sido viacutetima em 1871 cegamente transformada numa autecircntica maacutequina

de violecircncia contra outros humanos sem qualquer fundamento legiacutetimo (cfr Constatini 2008

p 286) Eacute a contradiccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo ocidental defensora de direitos humanos mas que

natildeo hesita de reduzir os outros humanos agrave categoria de sub-humanos eacute a estrateacutegia de um

imaginaacuterio ideoloacutegico que no plano psicoloacutegico confere legitimidade a todas as barbaacuteries dos

colonizadores sobre os colonizados eacute a ironia de uma civilizaccedilatildeo cuja linha de demarcaccedilatildeo

com a barbaridade natildeo eacute expliacutecita Nem mesmo a dignidade humana universal e abstracta

apregoada pelos moralistas desta civilizaccedilatildeo como um dos valores mais sublimes entre os

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humanos em especial pela religiatildeo cristatilde mais consagrada ao serviccedilo do imperialismo do

que de Deus na oacuteptica de Ceacutesaire conseguiu dissimular a violecircncia contra o colonizado

6 Desmistificando o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista erguida na recusa do

ldquodiferenterdquo

Parece ter ficado evidente que a colonizaccedilatildeo se identificou mais com uma dinacircmica de

exploraccedilatildeo dos povos colonizados do que com um projecto de integraccedilatildeo dos indiacutegenas na

metroacutepole Iva Cabral ajuda-nos mais uma vez a perceber como a loacutegica do lucro presidiu a

todas as estrateacutegias e legislaccedilotildees coloniais Numa perspectiva simplesmente histoacuterica a autora

apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos

enunciados de Fanon que concedem sentido e substacircncia a este trabalho Com efeito Iva

Cabral afirma que as decisotildees poliacuteticas do regime colonial criavam condiccedilotildees para que os

filhos da meacutedia e baixa nobreza portuguesa neste particular mercadores e aventureiros

vislumbrassem no territoacuterio receacutem-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto

mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as

mercadorias daiacute advindas poderiam trazer (cfr Cabral 2015 p27)

Eacute loacutegico conjecturar que num tal jogo de lucro faacutecil que natildeo podia natildeo contar com os

recursos naturais e com o capital humano africanos como meios ideais para minimizar os

custos e maximizar os lucros a preocupaccedilatildeo pela integraccedilatildeo dos africanos no clube dos

evoluiacutedos e emancipados seria uma espeacutecie de atentado ao espiacuterito de negoacutecio Este postulado

encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da

recusa do ldquooutrordquo o diferente feito uma ameaccedila para o ldquonoacutesrdquo ideologicamente construiacutedo e

consagrado como o uacutenico paradigma possiacutevel de humanidade na seguinte declaraccedilatildeo

havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se

recusaram no seacuteculo de Colombo em reconhecer seus semelhantes homens

degradados que povoavam o novo mundo [hellip] Era impossiacutevel fixar um

instante do olhar no selvagem sem ler o anaacutetema escrito natildeo digo somente na

sua alma mas ateacute na forma exterior do seu corpo (De Maistre Joseph Apud

Ceacutesaire 1978 p 33)

Esta declaraccedilatildeo deixa transparecer uma inferecircncia loacutegica quase irrefutaacutevel de que o referido

anaacutetema dos indiacutegenas soacute natildeo se consumou ao extermiacutenio na perspectiva do colono por

razotildees de iacutendole puramente utilitarista como se depreende nesta passagem do jaacute citado autor

nesta transcriccedilatildeo de Ceacutesaire

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sob o ponto de vista de selecccedilatildeo consideraria deploraacutevel o desenvolvimento

numeacuterico [hellip] dos elementos amarelos e negros que seriam de eliminaccedilatildeo

difiacutecil Se todavia a sociedade futura se organizar numa base dualista com

uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raccedila inferior confiada agrave

mais grosseira matildeo-de-obra eacute possiacutevel que este uacuteltimo papel incumba aos

elementos amarelos e negros Neste caso aliaacutes natildeo seria um embaraccedilo mas

uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre Joseph Apud Ceacutesaire

1978 p 33)

Fica desvendado nestes dizeres do De Maistre o retrato do narcismo nihilista de muitos

artistas da europa colonial consubstanciado na ideia e na pretensatildeo de uma raccedila superior que

se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contaacutegio Eacute o drama de uma Europa

feita refeacutem pelo seu proacuteprio mito de pureza civilizacional uniracial um mito enganoso

pretensioso e pernicioso que potildee em causa a aspiraccedilatildeo de uma poliacutetica enquanto exigecircncia de

construccedilatildeo de uma comunidade humana na qual a consciecircncia da diversidade dos humanos e a

necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condiccedilatildeo ldquosine qua nonrdquo da

prosperidade e da sobrevivecircncia da proacutepria espeacutecie humana Lamentavelmente este

entendimento da poliacutetica como espaccedilo intermediaacuterio onde se joga a liberdade e interacccedilatildeo dos

humanos enquanto seres iguais e autoacutenomos eacute constantemente posto em causa como diz

Martha Nussbaum pelos apologistas deste mito que em todas as sociedades alimentam uma

falsa convicccedilatildeo de pureza etnocecircntrica ou ldquoclassececircntricardquo geradora de violecircncia contra os

excluiacutedos (cfr Nussbaum 2010 p 48) comprometendo a possibilidade de fazer da poliacutetica o

lugar por excelecircncia da profundidade humana

Para compreender as mais profundas motivaccedilotildees que levam os indiviacuteduos a um tal instinto

nihilista Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi que examina a possiacutevel

conexatildeo existente entre os domiacutenios psicoloacutegico e poliacutetico Com efeito Gandhi concluiacutera que

os desejos gananciosos o instinto de agressatildeo e a ansiedade narcisista satildeo empecilhos para a

edificaccedilatildeo de uma verdadeira civilizaccedilatildeo humana Pelo que a luta poliacutetica pela construccedilatildeo de

uma civilizaccedilatildeo humana assente nos pilares da liberdade empatia e igualdade deve ser

precedida de uma luta contra o medo do outro a ganacircncia e o instinto de agressatildeo narcisista

intriacutensecos em cada indiviacuteduo (cfr Nussbaum 2010 pp 48-50) E se partimos da hipoacutetese de

que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multidotildees ao oacutedio ao genociacutedio e agrave

instrumentalizaccedilatildeo dos ldquooutrosrdquo tidos como da raccedila inferior ou sub-humana ocorre mais em

contextos de pouca capacidade criacutetica ou de uma intelectualidade materialista ou

ldquoventriacuteloquerdquo usando a expressatildeo de Fabien Eboussi Boulaga isto eacute de uma intelectualidade

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corrupta desprovida de princiacutepios eacuteticos e humanistas forccediloso eacute concluir que por mais que a

Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizaccedilatildeo dos africanos natildeo teria condiccedilotildees

efectivas de o fazer ante a sua ganacircncia e arrogacircncia eurocentristas encorajadas por uma

jactacircncia ostensiva feito veneno instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do

lucro cuja solidificaccedilatildeo se daacute com o asselvajamento dos africanos em geral e dos negros em

particular

Eacute precisamente este instinto egoiacutesta e materialista que transparece na maneira como Ernest

Renan concebe o colonialismo Para ele o colonialismo eacute uma necessidade poliacutetica de

primeira ordem eacute a conquista de um paiacutes de raccedila inferior pela raccedila superior que se instala na

coloacutenia atraveacutes de um governo Trata-se na perspectiva deste autor de algo de extrema

normalidade que nada tem de chocante A colonizaccedilatildeo soacute se torna chocante se e somente se

as conquistas forem entre raccedilas iguais Assim se por um lado estas conquistas devem ser

desencorajadas e censuradas entre raccedilas iguais elas devem ser encorajadas entre as raccedilas

desiguais porque a regeneraccedilatildeo ou degeneraccedilatildeo de raccedilas inferiores pelas raccedilas superiores

deve estar na ordem providencial da humanidade ldquoRegere imperio populosrdquo eis a nossa

vocaccedilatildeo A natureza criou uma raccedila de trabalhadores industriais ndash eacute a raccedila chinesa uma de

jornaleiros agriacutecolas ndash eacute a raccedila negra [hellip] uma raccedila de senhores e de soldados eacute raccedila

europeiardquo Nesta oacuteptica a reduccedilatildeo desta nobre raccedila agrave classe trabalhadora em condiccedilotildees

degradantes como as dos negros e dos chineses gera revolta (cfr Renan 1967 pp 69-70) O

mais perplexo em tudo isso eacute que Renan numa enorme ousadia intelectual natildeo se tenha

inibido do seu instinto de superioridade racial ao defender de forma paradoxal numa obra

intitulada ldquoLa Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la Francerdquo a seguinte convicccedilatildeo

noacutes esperamos natildeo a igualdade mas sim a dominaccedilatildeo O paiacutes de raccedila

estrangeira deveraacute voltar a ser um paiacutes de servos de jornaleiros agriacutecolas ou

de trabalhadores industriais Natildeo se trata de suprimir as desigualdades entre

os homens mas de as ampliar e as converter em lei (Renan 1967 p69-70)

Uma visatildeo demasiado materialista e narcisista que mereceu num tom iroacutenico a criacutetica de

Ceacutesaire que qualifica o colono muito distinto muito humanista e muito cristatildeo do seacuteculo XX

como uma autecircntica encarnaccedilatildeo de Hitler Eacute o retrato do colono que traz em si segundo

Ceacutesaire ldquoum Hitler que se ignora que vive nele e que eacute o seu demoacutenio e se o vitupera eacute por

falta de loacutegica ou pelo instinto de afinidade racial pois os factos atestam que o que muitos

deles natildeo perdoam a Hitler natildeo eacute o crime em si nem tatildeo-pouco o crime contra a humanidade

mas o crime contra o homem branco a humilhaccedilatildeo do homem brancordquo Assim natildeo restam

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duacutevidas de que do ponto de vista do seu desenvolvimento socio-histoacuterico a colonizaccedilatildeo eacute

uma suprema barbaacuterie um nazismo pouco expressivo por ser aplicado aos negros e aos aacuterabes

de Aacutefrica Mas na sua essecircncia um tal narcisismo constitui a negaccedilatildeo mais eloquente do

humanismo universal e formal reivindicado por Fanon e ao mesmo tempo uma clara

renuacutencia dos ideais filosoacuteficos morais e cristatildeos de uma civilizaccedilatildeo decaiacuteda (cfr Ceacutesaire

1978 pp 18-19)

Estaacute assim denunciada a patologia de uma civilizaccedilatildeo que fundou a sua filosofia de acccedilatildeo na

estigmatizaccedilatildeo do ldquodiferenterdquo e na fragmentaccedilatildeo do mundo em puro e impuro Eacute a construccedilatildeo

patoloacutegica usando a expressatildeo da Nussbaum de um ldquonoacutesrdquo que se julga imaculado e de um

ldquoelesrdquo preconceitualmente denotado vil perigoso e contagioso Esta denunciada patologia

obriga-nos a retomar algumas das questotildees supra referenciadas tais como eacute possiacutevel pensar a

missatildeo civilizadora da Europa colonial num contexto de clara recusa da alteridade ou de

reconhecimento do africano como sujeito autoacutenomo dotado de razatildeo e de humanidade

Como compreender uma missatildeo civilizadora assente numa loacutegica social do segundo excluiacutedo

isto eacute numa loacutegica social fracturante e nihilista Seraacute que Aacutefrica ao engajar-se na luta pela

descolonizaccedilatildeo teraacute efectivamente recusado o projecto de desenvolvimento que configurava

a missatildeo civilizadora da potecircncia colonial Vamos no proacuteximo ponto tentar encontrar alguns

elementos de resposta a estes questionamentos em certa medida jaacute respondidos

7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta uma antiacutetese agrave pretensatildeo colonial da emancipaccedilatildeo

da Aacutefrica dos africanos

A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta da sociedade ou seja a bipolarizaccedilatildeo social assente no

princiacutepio da desigualdade entre as cidades dos homens isto eacute dos europeus e os bairros

indiacutegenas ou dos selvagens categorias sociais criadas pelo proacuteprio colono contradiz agrave

partida qualquer pretensatildeo colonial de reconhecimento e integraccedilatildeo da Aacutefrica e dos africanos

no universalismo humano (cfr Fanon 1968 p 27 ou 2002 p 453) Aliaacutes a estrutura social

montada pelo colono determinava ldquoa priorirdquo que as relaccedilotildees entre os habitantes dos dois

mundos fossem de exploradores e explorados dominadores e dominados opressores e

oprimidos superiores e inferiores homens e sub-homens Conveacutem no entanto sublinhar que

toda a violecircncia colonial tinha como grande propoacutesito a criaccedilatildeo de um ambiente de medo e

inibiccedilatildeo do colonizado no intuito de facilitar a dinamizaccedilatildeo da exploraccedilatildeo e a pilhagem de

recursos naturais num contexto inovador de mercantilismo que muito precisava do concurso

forccedilado dos proacuteprios indiacutegenas Para dar conta do dinamismo interno de uma tal

compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta Fanon escreve

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em sua zona o colono potildee em marcha o movimento de dominaccedilatildeo de

exploraccedilatildeo e de pilhagem Na outra zona a coisa colonizada oprimida e

espoliada alimenta como pode esse movimento [hellip] as mateacuterias-primas vatildeo

e vecircm legitimando a presenccedila do colono Enquanto o acocorado mais morto

do que vivo o colonizado se eterniza num sonho [hellip] o colono faz histoacuteria

Sua vida eacute uma epopeia uma odisseia (Fanon 1968 p 38 ou 2002 p 463)

Como se pode depreender mais uma vez este maniqueiacutesmo eacute em si mesmo uma antiacutetese de

qualquer projecto civilizador natildeo soacute pelo facto de se constituir num factor provocador de

desprezo e ignomiacutenia dos colonizados mas tambeacutem e sobretudo por ser um factor

desestabilizador suscitador de oacutedio e de violecircncia entre os habitantes das duas zonas Cocircnscio

desta tensatildeo latente e subjacente a esta configuraccedilatildeo geopoliacutetica opressiva o colono interpocircs

como deduz Fanon uma estrutura fronteiriccedila forte e intimidatoacuteria capaz de assegurar a

atmosfera de submissatildeo e de inibiccedilatildeo dos explorados tal como se pode ler

o mundo colonizado eacute um mundo cindido em dois A linha divisoacuteria a

fronteira eacute indicada pelos quarteis e delegacias de poliacutecia Nas coloacutenias o

interlocutor legal e institucional do colonizado o porta-voz do colono e do

regime de opressatildeo eacute o gendarme ou o soldado Nas sociedades capitalistas o

ensino religioso ou leigo a formaccedilatildeo de reflexos morais [hellip] criam em torno

do explorado uma atmosfera de submissatildeo e inibiccedilatildeo que torna

consideravelmente mais leve a tarefa das forccedilas da ordem [hellip] O

intermediaacuterio do poder utiliza uma linguagem de pura violecircncia [hellip] natildeo

torna mais leve a opressatildeo natildeo dissimula a dominaccedilatildeo Exibe-as manifesta-

as com a boa consciecircncia das forccedilas da ordem [hellip] leva a violecircncia agrave casa e

ao ceacuterebro do colonizado (Fanon 1968 p 28 ou Fanon 2002 pp 453-454)

Este e outros cenaacuterios permitem situar a originalidade do instinto colonial no princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica e social e no de desigualdade econoacutemica entre duas espeacutecies a

branca e a negra ou aacuterabe pois a patologia narcisista de superioridade racial estruturou no

imaginaacuterio individual e colectivo do colonizador a convicccedilatildeo de que ser branco significa ser

superior e consequentemente rico e ser negro ou aacuterabe africano eacute o oposto disto (cfr Fanon

1968 p 29 ou Fanon 2002 p 455) Este maniqueiacutesmo que toma balanccedilo no plano simboacutelico

no qual o branco remete agrave noccedilatildeo do bem do belo e do bom e o negro o seu oposto

desembarca no plano concreto com reflexos inofuscaacuteveis na configuraccedilatildeo geograacutefica da

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estrutura social montada pelo regime colonial A cidade do colono eacute uma cidade vida

enquanto no bairro do colonizado se sobrevive milagrosamente a cidade do colono eacute segura

mas no bairro indiacutegena a inseguranccedila eacute o proacuteprio cartatildeo-de-visita a cidade do colono eacute uma

cidade soacutelida toda de pedra e ferro iluminada asfaltada as ruas limpas lisas sem buracos

mas o bairro indiacutegena eacute o oposto disso Na cidade do colono os habitantes estatildeo

permanentemente saciados e repletos de boas coisas Em contrapartida o bairro indiacutegena ou

negro eacute um lugar mal-afamado e povoado eacute o bairro de homens mal-afamados aiacute nasce-se

natildeo importa como nem onde e morre-se natildeo importa a onde nem de quecirc Eacute um mundo sem

intervalos ou seja os homens estatildeo uns sobre os outros eacute o mundo dos famintos dos

analfabetos e dos doentes e indigentes (cfr Fanon 1968 p 28-29 ou Fanon 2002 pp 453-

454)

O mundo colonial diz Fanon forjou um povo sem alma e sem referecircncia originaacuterias O

colono criou categorias sub-humanas para destruir a autoestima dos negros e dos aacuterabes de

Aacutefrica Fez deles uma espeacutecie de quintessecircncia do mal considerando-os como seres

impermeaacuteveis agrave moral e agrave eacutetica com ausecircncia e negaccedilatildeo de valores mal absoluto elementos

corrosivos que destroem tudo o que se aproxima deles elementos deformadores que

desfiguram tudo o que se refere agrave esteacutetica ou agrave moral depositaacuterios de forccedilas cegas (cfr

Fanon 1968 p 31 ou Fanon 2002 p 456) Esta convicccedilatildeo levou M Meyer a afirmar em

plena Assembleia Nacional Francesa que

[hellip] natildeo era necessaacuterio prostituir a Repuacuteblica fazendo penetrar nela o povo

argelino Os valores com efeito se tornam irreversivelmente envenenados e

pervertidos desde que entram em contacto com a populaccedilatildeo colonizada Os

costumes do colonizado suas tradiccedilotildees [hellip] sobretudo seus mitos satildeo a

proacutepria marca desta indigecircncia desta depravaccedilatildeo constitucional (Fanon

1968 p31 ou Fanon 2002 p 456)

Este discurso forjado no seu espaccedilo existencial levou Ceacutesaire (1978 p17) agrave conclusatildeo de que

a Europa colonial se esmerou antes de mais em descivilizar primeiro o proacuteprio colonizador

embrutececirc-lo degradaacute-lo despertaacute-lo para os instintos ocultos para a cobiccedila para a violecircncia

para o oacutedio racial e para o relativismo moral e posteriormente descivilizar o colonizado

Todo este quadro legitima sobremaneira o anseio dos africanos pela liberdade e pelo

reconhecimento da sua dignidade Para desmascarar o argumento segundo o qual o

engajamento dos africanos na luta pela descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica teraacute sido uma espeacutecie de

recusa do desenvolvimento do Continente africano pelos africanos Ceacutesaire passa em revista

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e em jeito de balanccedilo o vasto fresco dos horrores da dominaccedilatildeo colonial em particular a

francesa em Aacutefrica deixando claro que nenhum desenvolvimento vale mais do que a

dignidade humana e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos povos Apoiando

o seu raciociacutenio nos factos Com efeito Ceacutesaire afirma que a equaccedilatildeo mais ajustada agrave

realidade vivida eacute colonizaccedilatildeo igual coisificaccedilatildeo e natildeo desenvolvimento porque no fim de

contas o fiel da balanccedila pende mais para prejuiacutezos do que para ganhos tal como consta do

longo extrato que extraiacutemos do texto de Ceacutesaire

falam-me de progressos de realizaccedilotildees de doenccedilas curadas de niacuteveis de vida

elevados acima de si proacuteprios eu falo de sociedades esvaziadas de si

proacuteprias de culturas espezinhadas de instituiccedilotildees minadas de terras

confiscadas de religiotildees assassinadas de magnificecircncias artiacutesticas

aniquiladas de extraordinaacuterias possibilidades suprimidas Lanccedilam-me agrave cara

factos estatiacutesticas quilometragens de estradas de canais de caminhos-de-

ferro mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano falo

dos que no momento em que escrevo cavam agrave matildeo o porto de Abidjan falo

de milhotildees de homens arrancados aos seus deuses agrave sua terra aos seus

haacutebitos agrave sua vida agrave danccedila agrave sabedoria falo de milhotildees de homens a quem

inculcaram sabiamente o medo o complexo de inferioridade o tremor a

genuflexatildeo o desespero o servilismo Laccedilam-me em cheio aos olhos

toneladas de algodatildeo ou cacau exportado hectares de oliveiras ou de vinha

plantadas mas eu falo de economias naturais de economias harmoniosas e

viaacuteveis de economias adaptadas agrave condiccedilatildeo do homem indiacutegena

desorganizadas de culturas de subsistecircncias destruiacutedas de subalimentaccedilatildeo

instalada de desenvolvimento agriacutecola orientada unicamente para benefiacutecio

das metroacutepoles de rapinas de produtos de rapinas de mateacuterias-primas

Ufanam-se de abusos suprimidos eu tambeacutem falo de abusos mas para dizer

que aos antigos ndash muito reais ndash sobrepuseram outros muito detestaacuteveis

Falam-me de tiranos locais trazidos agrave razatildeo poreacutem constato que regra geral

eles fazem muito boa parelha com os novos e que destes aos antigos e vice-

versa se estabeleceu em detrimento dos povos um circuito de bons serviccedilos

e cumplicidade Falam-me de civilizaccedilatildeo eu falo de proletarizaccedilatildeo e de

mistificaccedilatildeo [hellip] Cada dia que passa cada negaccedilatildeo de justiccedila cada carga

policial cada reclamaccedilatildeo operaacuteria afogada em sangue cada escacircndalo

abafado cada expediccedilatildeo punitiva cada poliacutecia e cada miliciano fazem-nos

sentir o preccedilo das nossas velhas sociedadesrdquo (Ceacutesaire 1978 pp25-26)

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Disso decorre que a essecircncia do colonialismo tal como realccedilou Maacuterio Pinto de Andrade

reside em dois aspectos no ldquoregime de exploraccedilatildeo desenfreada de imensas massas humanas

que encontra a sua legitimidade e sustentabilidade na violecircnciardquo e na ldquoforma moderna de

pilhagemrdquo (cfr Ceacutesaire Aimeacute 1978 p7) Assim se os niacuteveis cientiacuteficos tecnoloacutegicos e

organizacionais ostentados pela Europa colonial lhe conferem a todos os tiacutetulos um estatuto

de uma civilizaccedilatildeo o mesmo jaacute natildeo se daacute do ponto de vista da sua relaccedilatildeo com as coloacutenias

Por esta razatildeo Ceacutesaire chamou-lhe de civilizaccedilatildeo decadente enferma e moacuterbida por se ter

revelado incapaz de resolver os grandes problemas que criou nomeadamente o do

proletariado e o colonial Ouccedilamos Ceacutesaire a respeito

ldquouma civilizaccedilatildeo que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu

funcionamento suscita eacute uma civilizaccedilatildeo decadente Uma civilizaccedilatildeo que

prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais eacute uma civilizaccedilatildeo

enferma Uma civilizaccedilatildeo que trapaceia com os seus princiacutepios eacute uma

civilizaccedilatildeo moacuterbidardquo (Ceacutesaire 1978 p13)

Teratildeo Fanon Ceacutesaire Sartre e outros exagerado na sua criacutetica do colonialismo

Possivelmente sim Contudo a larga unanimidade existente sobre o assunto permite-nos

atribuir uma certa objectividade e verdade histoacuterica a muitos dos enunciados que nos satildeo

dados a apreciar Reneacute Grousset (1954 p 76) quase duas deacutecadas antes de Ceacutesaire

analisando o percurso evolutivo das civilizaccedilotildees constatava que nenhuma civilizaccedilatildeo

apareceu logo no iniacutecio tatildeo promissora e tatildeo ameaccedilada como a civilizaccedilatildeo ocidental A sua

ameaccedila em seu entender natildeo vem apenas da espada nuclear vem tambeacutem e sobretudo do

egoiacutesmo e do materialismo que inspiram os povos que a comandam Estaacute portanto evidente

que o regime colonial europeu foi essencialmente uma conquista assente em fins de

exploraccedilatildeo dos indiacutegenas Esta ideia ceacutesairiana de uma Europa exploradora no sentido

accedilambarcador do termo aparece tambeacutem no ldquoLe geacutenociderdquo no qual Jean-Paul Sartre eacute

perentoacuterio em afirmar que a colonizaccedilatildeo natildeo eacute uma mera conquista como foi a anexaccedilatildeo de

Alsace-Lorraine pela Alemanha na sua verdadeira natureza a colonizaccedilatildeo eacute um acto de

genociacutedio cultural Numa ldquodeacutemarcherdquo fenomenoloacutegica Sartre mostra que a colonizaccedilatildeo natildeo

acontece sem a liquidaccedilatildeo sistemaacutetica de todas as caracteriacutesticas particulares de sociedades

nativas e simultaneamente sem a recusa da sua integraccedilatildeo massiva na metroacutepole e sem a

negaccedilatildeo do seu acesso agraves vantagens da metroacutepole

Concordamos assim com Sartre que a colonizaccedilatildeo eacute um sistema de negoacutecio que requer

inevitavelmente a existecircncia de um sub-proletariado nacional forccedilado a trabalhar por

miseraacuteveis salaacuterios Vale dizer que no sistema colonial a coloacutenia teve uma funccedilatildeo

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instrumental ou seja foi usada para vender as suas mateacuterias-primas e seus produtos agriacutecolas

a um preccedilo irrisoacuterio agrave metroacutepole Em retorno a metroacutepole vendeu os bens manufaturados agraves

coloacutenias a preccedilo do mercado Este negoacutecio que contou com a comparticipaccedilatildeo da burguesia

nacional condenou os africanos a viverem num submundo de miseacuteria como negros fantasmas

continuamente recordados da sua condiccedilatildeo de sub-humanos (cfr Sartre 1967 p39)

Estaacute visto que a colonizaccedilatildeo partindo da efiacutegie aqui apresentada eacute um projecto oposto aos

ideais civilizacionais tal como alude Ceacutesaire ao desmistificar a tentativa de atribuir ao

processo de colonizaccedilatildeo uma intenccedilatildeo civilizadora A maldiccedilatildeo mais comum nesta mateacuteria eacute

deixarmo-nos iludir de boa-feacute por uma hipoacutetese colectiva e haacutebil em enunciar mal os

problemas para melhor justificar as soluccedilotildees que se lhes aplicam conferindo facilmente

legitimidade a um conjunto de praacuteticas abominaacuteveis atribuindo-lhes a categoria de um mal

necessaacuterio com vista a um fim nobre ndash a civilizaccedilatildeo dos selvagens (Ceacutesaire 1978 p14)

Conclusatildeo

A reflexatildeo feita nas paacuteginas anteriores permitiu-nos deduzir a existecircncia de uma possiacutevel

analogia entre a colonizaccedilatildeo e a civilizaccedilatildeo do ponto de vista teoacuterico conceitual Mas do

ponto de vista praacutetico tudo natildeo passou de uma simples ilusatildeo Uma ilusatildeo cimentada pela

foacutermula do pedantismo cristatildeo que procurou atribuir uma presumiacutevel missatildeo civilizadora ao

fenoacutemeno de colonizaccedilatildeo ao estabelecer a equaccedilatildeo cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria A anaacutelise mostrou que do ponto de vista doutrinal e factual

uma tal equaccedilatildeo eacute insustentaacutevel porquanto a colonizaccedilatildeo se assumiu mais como violecircncia

contra os povos colonizados e exploraccedilatildeo dos seus recursos naturais e da sua forccedila de trabalho

e nunca como projecto colonial de emancipaccedilatildeo dos povos colonizados Esta conclusatildeo pode

ter sido previsiacutevel mas como foi referido no princiacutepio deste trabalho esta anaacutelise sobre o

colonialismo encontra a sua utilidade neste texto na medida em que se nos apresenta como

movimento historicizante que constitui a mateacuteria e a forma que nos permitem vislumbrar o

horizonte teleoloacutegico da descolonizaccedilatildeo enquanto proposta de emergecircncia do novo nova

realidade novos seres e novo continente uma espeacutecie de antiacutetese do mundo colonial

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Obras do autor

1 FANON Frantz Frantz Fanon Ouevres Paris Eacuteditions La Deacutecouverte 2011

Paacutegina 43 de 74

2 ----------------------- Les damneacutes de la terre Paris Eacuteditions la Deacutecouverte (Preacuteface de Jean-Paul Sartre) 1961

3 ----------------------- Os condenados da terra Rio de Janeiro ndash Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Traduccedilatildeo de Joseacute

L de Melo 1968

Outras obras

1 BOURDIEU Pierre Sociologie de lrsquoAlgerie Paris PUF 1958

2 BURAWOY Michael Marxismo encontra Bourdieu Campinas Editora Unicamp 2010

3 CABRAL Iva A Primeira Elite Colonial Atlacircntica Dos ldquohomens honrados broncosrdquo de Santiago agrave

ldquonobreza da terrardquo Finais do seacutec XV ndash iniacutecio do seacutec XVII Cabo Verde Pedro Cardoso Livraria 2015

4 CEacuteSAIRE Aimeacute Discurso sobre a colonizaccedilatildeo Lisboa Livraria Saacute da Costa Editora 1978

5 CONSTATINI Dino Mission civilisatrice le role de lrsquohistoire colonial dans la construction de lrsquoidentiteacute

politique franccedilaise Paris Eacuteditions de la Deacutecouverte 2008

6 DE VIGNY Alfred ldquoCritique des anedotes historiques sur Alger de Jean-Toussaint de Merlerdquo In Bancel

Nicolas Blanchard Pascal Verges Franccediloise La Republique colonial Paris Albin Michel Coll Pluriel 2003

7 FOLLIET Joseph Le droit de colonisation Eacutetude de morale sociale et international Lyon GNeveu 1932

8 GIRARD Reneacute La Violence et le Sacreacute Paris Grasset reacuteeacute Pluriel 1972

9 GROUSSET Reneacute Lrsquohomme et son histoire Paris Plon 1954

10 NUSSBAUM C Martha Not For Profit Why Democracy Needs The Humanities Oxford Princeton

University Press 2010

11 RENAN Ernest La Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la France Paris Union Geacuteneacuterale drsquoEacuteditions 1967

12 SARTRE Jean-Paul ldquoLe Genociderdquo In Les Temps modernes nordm259 Gallimard Decembre 1967

13 SEMELIN Jacques Purifier et Deacutetruir Usages politiques de massacres et geacutenocides Paris Seuil 2005

14 SENGHOR Leopold Sedar (1964) On African Socialism London Pall Mall Press 1964

Artigos e Dicionaacuterios

1 BOURDIEU Pierre (1987) Le Sens Commum Chose dites In Fildwork in philosophy Paris Les Eacuteditions de

Minuit

2 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea Academia das Ciecircncias de Lisboa Editorial Verbo 2001

3 Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura Editorial Verbo Lisboa nordm5

4 OLUacuteFEacuteMI Taacuteiwo (2004) ldquoPost-Independence African Political Philosophyrdquo In Kwasi Wiredu A

Companion to African Philosophy Cornwall MPG Books Ltd Bodmim 2004 pp 243-260

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PEDAGOGIA laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO

LIBERAL EM AacuteFRICA

INAacuteCIO VALENTIM a

inaciovalentim82gmailcom

Resumo

Nada eacute tatildeo enobrecedor como ensinar e aprender A nobreza reside na consciecircncia estaacute no

encontro com o outro estaacute na disponibilidade que eacute criada para si e para o outro e estaacute

sobretudo no comprometimento que se tem consigo mesmo e com o outro O outro como o

rosto como memoacuteria e como um ldquooutro eurdquo Isto eacute o que ensinar e aprender nos oferece e nos

sugere Ter a noccedilatildeo de que todo o acto de ensinar eacute essencialmente um processo de aprender

de aprendizagem e de dar a possibilidade de interrogar-se sobre o aprendido e sobre

aprendizagem O objectivo deste artigo eacute de reflectir sobre a hermenecircutica do aprender o que

chamamos aprender e como acontece

Palavras-chave aprender comprometimento inacessibilidade responsabilidade fazer e

ensinar

Abstract

Nothing is so ennobling as teaching and learning The nobility lies in its consciousness is in

the encounter with the other it is in the availability that is created for itself and to the other

and itrsquos mainly in the compromise that it has with oneself and with the other The other as the

face as memory and as other selfrdquo This is what teaching and learning offers and suggests to

us Have the notion that the whole act of teaching is essentially a process of learning learning

and giving the possibility to question them about the learned and about learning The aim of

this article is to reflect on the hermeneutics of learning what we learn and how it happens

Keywords learning commitment inaccessibility responsibility doing and teaching

a Doutor em Filosofia pela Universidade Carlos III de Madrid Professor e Investigador Titular Director Geral do

Instituto Superior Politeacutecnico Sol Nascente Huambo - Angola wwwispsnorg

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O termo laquoaprenderraquo oferece agrave primeira vista com uma leitura muito atenta uma ideia muito

escorregadia apresenta algo de inacessibilidade algo que nos passa entre os dedos como

aacutegua como liacutequido como vento como espiacuterito Enfim como algo que natildeo nos eacute dado

aprisionar fiacutesica e mentalmente No entanto acreditamos que aprendemos e acreditamos que

podemos fazer com que outras pessoas aprendam connosco ou atraveacutes de noacutes e natildeo hesitamos

muitas vezes em oferecer-nos como instrumento de aprendizagem para os outros Apesar de

ser um termo muito duro no sentido de responsabilidade esta responsabilidade acaba por estar

ou ficar diluiacuteda na confusatildeo entre o aprender e o fazer entre o aprender e o ensinar entre o

aprender e o saber porque confundimos ou fundimos as duas perspectivas antecipando

precisamente o acto do segundo que eacute dirigido ou orientado para o aprendiz Enquanto

mecanismo que conduz agrave aquisiccedilatildeo do saber a aprendizagem ldquoopotildee-se ao ensinamento ou ao

ensino cujo objectivo eacute de dispensar conhecimentos e saberesrdquo Mas esta oposiccedilatildeo natildeo eacute de

ruptura porque natildeo pode haver aprendizagem senatildeo por intermeacutedio do ensino ou de quem

ensina

O aprender-se bem eacute reflectido sobretudo a partir da acccedilatildeo enquanto resultado e resposta do

aprender natildeo obstante enquanto fenoacutemeno o aprender eacute um acto de natureza invisiacutevel e

quase que inapreensiacutevel e intocaacutevel A sua visibilidade soacute eacute passiacutevel para o proacuteprio sujeito

isto eacute para o aprendiz ou no aprendiz Dificilmente eu como promotor ou enquanto promotor

de aprendizagem posso dizer com exactidatildeo o momento da captaccedilatildeo do sujeito do elemento

aprendido posso supor atraveacutes de perguntas que faccedilo ou que tenho que responder dele mas

apenas eacute uma suposiccedilatildeo Eacute pois esta complexidade que vai tambeacutem fazer com que o acto de

aprender seja acima de tudo um acto divino um momento ou uma instacircncia do natildeo humano

Soacute aquele que diviniza-se chega a aprender consegue aprender e supera com isso a primeira

instacircncia do humano E divinizar-se significaria ter um autocontrolo sobre os impulsos do

saber os impulsos desenfreados do desejo de aprender e de assumir-se como o promotor de

aprendizagem Mas este processo soacute eacute possiacutevel com um povo ou com gente que agrave partida natildeo

rejeita preliminarmente a filosofia soacute eacute possiacutevel com gente que natildeo eacute dirigida e que natildeo eacute

paciente dos meacutedicos do povo como diria Nietzsche O aprender filosoacutefico apenas acontece

com e para gente satilde os ldquoenfermos que se contactam com a filosofia ficam ainda mais

enfermosrdquo porque de certa forma a filosofia soacute pode salvar e curar quem jaacute estaacute curado

quem reuacutene requisitos para a cura E foi assim que os gregos conseguiram fazer da filosofia a

sua proacutepria casa o seu mundo o seu lugar apesar de a filosofia vir de outros lugares virou a

casa dos gregos tornou-se ou transformou-se no elemento da definiccedilatildeo essencialmente grego

Os gregos souberam pegar naquilo que os outros povos abandonaram e fizeram dele o mais

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alto elemento do saber precisamente porque souberam utilizar laquoa arte de aprender

produtivamenteraquo utilizando para este efeito os seus saacutebios Contrariamente aos outros povos

que laquotecircm santos os gregos tecircm saacutebiosraquo diz Nietzsche e satildeo estes saacutebios que vatildeo fazer com

que a filosofia tenha um sentido profundo e original para o grego justificando assim a sua

aposta a sua protecccedilatildeo e a utilidade da sua futilidade

Apesar dos gregos terem podido trazer a filosofia das outras paradas orientais como diz

Nietzsche natildeo tiveram nenhuma moda que lhes pudesse ajudar ou facilitar as coisas Tiveram

que inventar a sua proacutepria imaginaccedilatildeo tiveram que filosofar com laquouma puberdade madura

onde brotava a fogosa alegria de uma vitoriosa e valente idade viril1raquo Em outras palavras

tiveram que superar a idade da infacircncia humana a infacircncia social e tiveram que se fazer

responsaacuteveis Esta eacute tambeacutem uma das condiccedilotildees de aprendizagem ou do aprender fazer-se

responsaacutevel emancipar-se e dar conta de si e dos outros laquopois quanto mais fazemos sobre as

coisas mais pensamos sobre elas ou mais desenvolvemos pensamentos sobre elasraquo O nosso

aprender estaacute relacionado com um espaccedilo concreto com um lugar com uma referecircncia com

um encontro-chegada-regresso No fundo o nosso aprender estaacute relacionado com uma histoacuteria

concreta ou com uma meta-histoacuteria estaacute relacionado com um padratildeo que nos vai dizer que as

condiccedilotildees para aprender exigem abc A tarefa de aprender natildeo eacute compatiacutevel com o tempo

apressado com o tempo que se assimila ao material O aprender eacute como ler um livro que estaacute

destinado a

[hellip] leitores tranquilos a homens que ainda natildeo foram arrastados pela vertiginosa pressa

da nossa agitada era e que ainda natildeo sentem o prazer idolatra quando olham para baixo das

sua rodas [hellip] quer dizer Haacute poucos homens Estes ainda natildeo estatildeo habituados a

estabelecer o valor de cada coisa segundo a poupanccedila ou os gastos do tempo estes laquoainda

tecircm temporaquo ainda lhes eacute permitido sem culpar-se de nada seleccionar e reunir as melhores

horas da jornada e os seus momentos mais fecundos e vigorosos para reflectir sobre o

futuro da nossa educaccedilatildeo estes podem ter a certeza que chegaram agrave noite de uma forma

proveitosa e digna a saber na meditation generis futuri (meditaccedilatildeo sobre o geacutenero futuro)

Um homem assim ainda natildeo se esqueceu de pensar enquanto lecirc ainda compreende o

segredo de ler entre linhas mais ainda eacute de uma natureza tatildeo prodigiosa que reflecte sobre

o lido talvez muito tempo depois de ter deixado o livro E sem duacutevidas natildeo para escrever

uma resenha ou outro livro mas simplesmente para reflectir2

O aprender seria portanto um viver sem pressa um estar sem pressa um existir sem pressa

Um ser no desconhecimento Mas sabemos que isso natildeo eacute possiacutevel Natildeo eacute possiacutevel saber sem

1Cf Friedrich Nietzsche Obras completas Vol 1 Filosofiacutea en la Eacutepoca Traacutegica de los Griegos Trad e introduc

Joan B et alt Tecnos Madrid 2011 p 574 2 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 549

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ser conotado natildeo eacute possiacutevel saber sem ser procurado natildeo eacute possiacutevel saber sem falar do que se

sabe natildeo eacute possiacutevel saber sem comunicar o sabido Mas dizemos que natildeo eacute possiacutevel e na

verdade eacute possiacutevel porque natildeo estamos a falar da mesma coisa saber natildeo eacute aprender Satildeo

duas coisas completamente distintas mas apesar de tudo uma coisa tecircm em comum a fuga da

fanfarronice e o desejo desenfreado de confrontaccedilatildeo A atestaccedilatildeo do aprendido a examinaccedilatildeo

do sabido Tecircm em comum aquilo que falta ao homem moderno o excesso de si a auto-

referecircncia desmedida O aprender conduz-nos ao desejo de estar tatildeo bem formados a tal ponto

de natildeo pensarmos mais em noacutes mesmos ou na nossa formaccedilatildeo e ateacute ao ponto de desprezarmos

a nossa proacutepria formaccedilatildeo Contrariamente ao homem moderno diz Nietzsche haacute que evitar

fazer de noacutes mesmos uma espeacutecie de homo mesura precisamente porque natildeo somos criteacuterio

seguro de nada natildeo somos criteacuterio seguro do absoluto Aqui o aprender deixa de ser um

criteacuterio e passa a ser uma meta e a meta aqui eacute que aquele que estaacute aprender se entregue

completamente com laquoa maacutexima confianccedila agrave tutela do autor de quem apenas pode falar a partir

da sua proacutepria ignoracircncia e da consciecircncia da ignoracircnciaraquo O aprendiz eacute aquele de quem

Nietzsche faz este tremendo apelo porque eacute nele que ele acredita

[hellip] Deixai-vos encontrar voacutes os isolados em cuja existecircncia acredito Voacutes

os altruiacutestas voacutes que padeceis em voacutes mesmos as dores e as perversotildees do

espiacuterito (hellip) Voacutes os contemplativos cujo olhar natildeo palpa com pressurosa

suspeita o externo das coisas mas sim sabe encontrar a entrada ao nuacutecleo da

essecircncia Eu vos convoco apenas para esta vez natildeo vos escondais nas

cavernas do vosso retiro e da vossa desconfianccedila Sejam quando menos

leitores deste livro para mais em frente com os vossos feitos acabar com ele

e deixa-lo no esquecimento Compreendeis que este livro estaacute destinado a ser

o vosso pronuacutencio quando voacutes mesmos com as vossas armas vos apresenteis

na palestra [hellip]3

Ao seu modo Nietzsche apresenta aqui a figura do aprendiz o docente o estudante e todos os

inquietos de espiacuterito como aqueles que satildeo isolados que satildeo altruiacutestas e que padecem das

dores da perversatildeo do espiacuterito O acto de aprender eacute incompatiacutevel com o tremendo de

confusatildeo eacute incompatiacutevel com o egoiacutesmo e com o egocentrismo e eacute incompatiacutevel com o

regradamente certo O aprender exige ruptura porque supotildee adaptaccedilatildeo a uma nova era a uma

nova realidade exige encontrar o outro dentro e fora de mim e exige um prestar atenccedilatildeo a

mim mesmo que natildeo seja necessariamente um narcisismo O aprender exige que sejamos uns

3 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 550

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contemplativos sem pressa de conhecer e de chegar sem pressa de afirmar ou de concluir

apenas se espera que sejamos contemplativos que admiram para melhor conhecer e trazer a

utilidade profunda mas sombria que estaacute aprisionada nas cavernas das nossas pressas O

aprender exige que a nossa contemplaccedilatildeo nos conduza ao encontro da essecircncia daquilo que

deve ser objecto do aprender Por isso cada vez que noacutes que estamos no eterno caminho de

aprender nos confrontamos com um livro com uma obra temos a possibilidade de sair dos

nossos retiros contraditoacuterios das nossas cavernas e das nossas desconfianccedilas Temos a

possibilidade de dar a conhecer a nossa opiniatildeo eacute o nosso pronuacutencio na palestra que pode

naturalmente chocar com os dois modelos do aprender propostos pela cultura educativa

moderna a saber

Por um lado a educaccedilatildeo como o espaccedilo da proposta do aprender deve ser extensiacutevel a todo o

territoacuterio por outro o laquoimpulso de reduccedilatildeo e debilitamento do mesmoraquo Desde muito cedo

quando a educaccedilatildeo comeccedilou a ser vista como um elo importante o homem apesar de alguns

constrangimentos sempre soube que seria de muito mais valia que ela fosse extensiacutevel para

todo o territoacuterio independentemente das questotildees poliacuteticas culturais econoacutemicas e religiosas

Natildeo obstante a sua extensatildeo sempre dependeraacute da vontade do Estado da disponibilidade do

Estado enfim da autorizaccedilatildeo do Estado Os gregos que fazem parte dos povos que pensaram

a educaccedilatildeo depois dos egiacutepcios e dos feniacutecios assumiram a inseparabilidade destes dois

momentos a educaccedilatildeo que deve chegar a todo o territoacuterio e a educaccedilatildeo que para ser educaccedilatildeo

tem que ser controlada pelo Estado A educaccedilatildeo deve ser controlada pelo Estado mas natildeo

necessariamente executada pelo Estado Em A Poliacutetica Aristoacuteteles foi muito bem claro em

dizer que a tarefa de educaccedilatildeo se bem eacute da comunidade natildeo obstante compete em primeiro

lugar ao Estado e soacute na impossibilidade deste de cobrir todas as partes eacute que o particular

assume tambeacutem ele a tarefa de educar Educar e por conseguinte o aprender desde este

ponto de vista nasce com um problema eacute um problema natildeo apenas no sentido de delegaccedilatildeo

de autorizaccedilatildeo mas tambeacutem no sentido da proacutepria autodestruiccedilatildeo Quem aprende destroacutei-se e

autodestroacutei-se na medida em que vai pondo de lado ou vai equacionando os fundamentos do

conhecimento anterior agrave sua formaccedilatildeo agrave sua educaccedilatildeo Como diz Fullat citado por Carlos

Francisco de Sousa Reis ldquoO acto educador especificamente humano eacute no seu nuacutecleo e fonte

entitativa confrontaccedilatildeo de duas consciecircncias confrontaccedilatildeo constitutivamente violenta4rdquo Para

Carlos Francisco Fullat procura aqui justificar a partir dos modelos de habilidades emperia a

forma como a educaccedilatildeo pode apresentar-se como acto educativo violento ou simplesmente

4Cf Carlos Francisco de Sousa Reis Educaccedilatildeo e cultura mediaacutetica Anaacutelise de implicaccedilotildees deseducativas

Acircncora editora Lisboa 2014 p 45

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como condiccedilatildeo da violecircncia Fullat segundo o nosso autor para encontrar os fundamentos da

educaccedilatildeo como condiccedilatildeo de violecircncia analisa inicialmente o surgimento ontoloacutegico da

civilizaccedilatildeo a partir de trecircs perspectivas a perpectiva do animal faber a perspectiva do animal

symbolicum e a perspectiva do animal sociale A partir destas trecircs perspectivas ele conclui

que a violecircncia eacute constitutiva de todos os actos educativos O ponto de partida da educaccedilatildeo eacute

visto portanto para Fullat desde uma perspectiva negativa desde uma antropologia negativa e

desde uma possibilidade eacutetica negativa Natildeo pode haver uma educaccedilatildeo que natildeo seja sobretudo

uma acccedilatildeo que arraste a negatividade consigo mesma Isto eacute uma acccedilatildeo que procura desfazer-

se do estado da ignoracircncia anterior O estado ou acccedilatildeo educativa eacute uma acccedilatildeo de

ldquodeplacementrdquo para um novo siacutetio um novo mundo uma nova aventura

As leituras ou melhor os textos utilizados por Fullat como exemplos patenteiam

naturalmente esta negatividade na relaccedilatildeo educativa Eacute o caso da visatildeo hobbesiana freudiana

e de Sartre das relaccedilotildees humanas que satildeo muitas vezes relaccedilotildees de poder da negatividade

isto eacute onde a manutenccedilatildeo do poder implica a perda do outro ou do espaccedilo do outro Nestes

autores destacam-se duas perspectivas inconciliaacuteveis ldquoo egoiacutesmo de ter e o sadismo de

dominarrdquo A educaccedilatildeo eacute vista como uma necessidade desenfreada de ter e ter sempre e cada

vez mais ao mesmo tempo que este desejo incontrolado eacute tambeacutem alimentado com a outra

necessidade de dominar e controlar tudo a todo custo Estas duas febres como lhe chama

Fullat resultam de uma eacutetica hedoniacutestica onde no campo hobbesiano o prazer eacute sinoacutenimo da

dominaccedilatildeo ldquoToda a eacutetica de Hobbes depende do seu pressuposto fundamental a inclinaccedilatildeo

geral da Humanidade para um desejo perpeacutetuo e sem descanso de adquirir poder e mais poder

desejo esse que soacute termina com a morte O ser humano eacute egoiacutesta (hellip) e a fim de poder estar

preparado para alcanccedilar o que deseja tem de procurar aumentar sempre cada vez mais o seu

poder5rdquo Natildeo poderia ter havido civilizaccedilatildeo se natildeo houvesse uma agressividade natural diria

Fullat de Francisco de Sousa O que noacutes consideramos como civilizaccedilatildeo teria sido aquilo que

pensadores como Hobbes ou Rousseau teriam visto como um princiacutepio do pacto natildeo pacto o

pacto simulado no caso de Rousseau A civilizaccedilatildeo nasce a partir da distorccedilatildeo de uma

realidade anterior e para permanecer deve tambeacutem continuar a distorcer esta mesma realidade

para poder construir um poder de dominaccedilatildeo e do egoiacutesmo Neste acircmbito a educaccedilatildeo aparece

como o aparelho protector do Estado manipulador e violento que utiliza as ideologias como a

praccedila da fecundaccedilatildeo das suas manipulaccedilotildees E porque o homem procura sobretudo ser feliz

diz Aristoacuteteles entatildeo muitas vezes natildeo escolhe os meios para ser feliz isto eacute natildeo estaacute

5 Cf Marques 2000 120 Apud Carlos Francisco de Sousa 2014 46

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disposto a abdicar de alguns meios que podem ser uacuteteis para a sua felicidade Eacute o caso da

felicidade pelo trabalho diraacute Francisco de Sousa mas o trabalho exerce uma forccedila contraacuteria

sobre a natureza e eacute o caso da educaccedilatildeo onde no educar

ldquoO homem exige a educaccedilatildeo mas esta implica a violecircncia da programaccedilatildeo

geneacutetica e da programaccedilatildeo social Educar eacute uma luta de consciecircncias em que

o educador sempre investe sobre o educando desde a cultura que se alimenta

da repressatildeo social imposta a Eros (o prazer) e Thanatos (a agressividade)6rdquo

Se bem podemos ver as teorias pessimistas como um exagero da negaccedilatildeo humana no sentido

do encontro pleno ainda assim nesta possiacutevel negaccedilatildeo do encontro pleno entre os humanos

nasce a possibilidade da vida do outro isto eacute o mesmo ldquosujeito que pode trazer a morte do

outro tambeacutem traz a sua vidardquo no embate do encontro entre os diferentes haacute sempre uma

possibilidade da nova vida de um novo existir e a educaccedilatildeo eacute precisamente tudo isso o

encontro dos diferentes que tem como fim ajudar a criar uma nova vida fazer nascer uma

nova existecircncia uma nova oportunidade Porque segundo autores como Fullat diz Francisco

de Sousa natildeo se pode falar de educaccedilatildeo laacute onde natildeo haacute consciecircncia Apenas haacute educaccedilatildeo

porque haacute consciecircncia porque existe consciecircncia porque haacute dois encontros e porque apesar

do embate entre os dois nenhuma delas deixa perder a outra natildeo eacute um encontro ou um

embate para desgarrar o outro antes pelo contraacuterio este embate eacute feito para estabelecer o

outro no outro sem fazer desaparecer a alteridade Mas isso soacute eacute possiacutevel justamente porque

no lugar da violecircncia que poderia ter conduzido a uma ldquorobotizaccedilatildeordquo foi introduzido o factor

de cuidado diz Carlos Francisco de Sousa Eacute portanto o cuidado que vai fazer com que haja

um encontro entre as duas consciecircncias Como diz Hegel de Morin (2005 105 Apud Carlos

Francisco de Sousa 2014 49) ldquoa consciecircncia de si soacute atinge a sua satisfaccedilatildeo numa outra

consciecircncia de sirdquo Dito de outra forma em palavras de Fullat de Carlos Francisco de Sousa

ldquosoacute depois da descoberta do eu pelo enfrentamento do tu se daacute a verdadeira relaccedilatildeo

educativardquo Portanto natildeo pode haver educaccedilatildeo na ausecircncia do outro natildeo pode haver

educaccedilatildeo na ausecircncia do interlocutor e do intermediaacuterio e natildeo pode haver educaccedilatildeo na

ausecircncia de uma situaccedilatildeo educativa

A fase educativa eacute acompanhada pelo decliacutenio paulatino de amestramento porque supotildee a

chegada da consciecircncia supotildee a responsabilidade pela capacidade de escolher e de decidir

supotildee a autenticidade do SIM e do NAtildeO supotildee uma certa comunicaccedilatildeo de intimidade no

6 Cf Francisco de Sousa cit

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dizer de Jaspers de Carlos Francisco de Sousa O sim e o natildeo do educando jaacute tem um patamar

um pouco mais alto que o sim e o natildeo daquele que estaacute na fase de amestramento A pugna jaacute

tem um caraacutecter mais real a dor eacute mais audiacutevel porque eacute vivida e sentida por aquele que tem

capacidade fiacutesica de desforrar violecircncia sobre o seu mestre sobre o seu guia ou sobre aquele

que lhe dirige Eacute diferente da dor da infacircncia que eacute vivida por e pela compaixatildeo do outro no

outro Os pais e os parentes proacuteximos podem responder pela dor da crianccedila enferma levando-a

ao meacutedico ou ao especialista Sozinha natildeo poderia fazecirc-lo eacute por isso que dizemos que a dor

da infacircncia eacute uma dor de solidariedade compassiva isto eacute precisa de um terceiro para ser

actualizada ou minimizada A do adulto tambeacutem pode precisar mas com muito menos

coerccedilatildeo que a da crianccedila ou a do adulto-crianccedila Esta simbologia tambeacutem pode ser aplicada agrave

relaccedilatildeo do educador e do educando que estatildeo quase sempre inicialmente em perspectivas

diferentes em dizibilidades diferentes talvez por isso autores como Fullat falam do caraacutecter

agoacutenico da educaccedilatildeo ou da educabilidade Assumem que natildeo eacute possiacutevel educar sem existecircncia

de um processo agoacutenico porque haacute encontro de dois tipos de saberes que podem ser

completamente diferentes sobre o mesmo saber ou sobre o mesmo tema O saber daquele que

ensina e o saber sobre o saber daquele que vai aprender ou que estaacute para aprender satildeo coisas

completamente diferentes passando ou acontecendo no mesmo espaccedilo A aprendizagem da

educabilidade exige sempre uma proposta e um tempo de adaptaccedilatildeo retroactivo para garantir a

apropriaccedilatildeo do processo da aprendizagem isto eacute para garantir o processo da refinaccedilatildeo do

conhecimento em outras palavras para atingir a compreensatildeo Esta etapa da compreensatildeo eacute

feita de uma transiccedilatildeo a outra isto eacute passamos de uma ldquocivilizaccedilatildeo de resposta a uma

civilizaccedilatildeo de perguntasrdquo porque o tempo de respostas definitivas morreu

O aprender com profundidade exige que natildeo nos contentemos apenas com as pequenas

resoluccedilotildees como diz Andreacute Giordan mas que consigamos apoderar-nos dos enunciados para

debatecirc-los e com eles transformar a relaccedilatildeo do saber atraveacutes de argumentos e contra-

argumentos Quem aprende eacute obrigado a ter argumentos insiste Giordan Quem aprende lanccedila

duras inquisiccedilotildees sobre o processo eacute um constante inquieto

laquoDe que estamos exactamente a falar O que queremos mostrar Estou

convicto de que o que estou a dizer eacute verdade eis porquecircraquo Ele descobre o

que eacute uma demostraccedilatildeo os argumentos que eacute necessaacuterio accionar para

convencer a importacircncia do raciociacutenio e o sentido preciso das palavras No

fim do ensino secundaacuterio aqueles que aprendem nem sempre tecircm

consciecircncia que uma hipoacutetese na matemaacutetica (onde ela eacute um dogma que natildeo

podemos transgredir) natildeo tem o mesmo estatuto que no resto das ciecircncias

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onde ela natildeo eacute senatildeo uma explicaccedilatildeo entre outras explicaccedilatildeo que adoptamos

e adaptamos durante o tempo em que procuramos meios para a corroborar ou

informar Controlar a polissemia de um tal vocabulaacuterio evita muitas

confusotildees7

Quem aprende predispotildee-se a ser bravado e podado predispotildee-se a ser limitado ao mesmo

tempo que rompe a proacutepria limitaccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo da teacutecnica e de habilidades

predispotildee-se a demostrar que apesar das limitaccedilotildees ainda assim pode criar pode inventar e

pode inovar saindo precisamente do seu campo de conforto Qualquer investigaccedilatildeo mesmo

sendo apenas inicial tem como fim tirar-nos do nosso campo do conforto tem que como

objectivo tirar-nos da nossa aldeia e conduzir-nos para a cidade onde corremos o risco de nos

perder implica actualizar o nosso preconceito em relaccedilatildeo a algo implica questionar as

evidecircncias laquoQuanto mais aquele que aprende reflecte sobre o tratamento de uma tarefa mais

ele referencia e repara nos erros nos limites e nos disfuncionamentos Ele torna-se

rapidamente capaz de analisar os acontecimentos em curso e explicitar a estrateacutegia utilizada e

a sua pertinecircncia Comeccedila a emergir uma eficaacutecia oacuteptima8raquo A compreensatildeo e a preensatildeo do

conhecimento natildeo nos deixa indiferentes faz de noacutes outro laquooutroraquo outra realidade que apesar

da existecircncia autoacutenoma assume que soacute pode existir se tiver possibilidade de se comparar com

as outras e se puder ser referenciada Eacute por isso que o nosso modelo de aprender tem que

acompanhar se possiacutevel o enquadramento das concepccedilotildees e tem que actualizar os conceitos

a sua marginalidade e o seu centrismo Pois haacute que ter em conta que ningueacutem aprende sem

antes fazer um trabalho profundo sobre as suas proacuteprias concepccedilotildees (diz Andreacute Giordan) e

sobre as concepccedilotildees dos outros onde ele se apresenta como porta-voz ou como mediador Eacute

por isso que em algumas situaccedilotildees vemos que eacute muito complicado ser porta-voz ou mediador

educativo porque vamos tentar transmitir algo que estaacute fora da nossa dizibilidade cultural

fora do nosso quadro referencial fora do nosso imaginaacuterio cultural Natildeo posso explicar o

rigor do Inverno se natildeo tenho experiencia do Inverno rigoroso porque natildeo disponho dos

dados fortemente caracteriacutesticos do Inverno

A minha explicaccedilatildeo deve superar a mera imagem informativa ou elucidativa da realidade A

minha informaccedilatildeo deve ser a mais real possiacutevel A imagem natildeo eacute a minha realidade eacute a

realidade daquela realidade eacute a realidade da fotografia tirada por mim ou por algueacutem Aqui a

fotografia tem mais ou menos a mesma funccedilatildeo que o vocabulaacuterio que estaacute como a porta de

entrada para a compreensatildeo oral pode ajudar ou pode complicar a compreensatildeo atraveacutes de

7 Cf Andreacute Giordan Aprender Editora Horizontes Pedagoacutegicos Lisboa 2007 p 162

8 Cf Idem

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uma falsa intermediaccedilatildeo de essecircncia da acccedilatildeo cultural A palavra vai ter um peso muito

importante nesta transiccedilatildeo porque pode permitir que cheguemos ou que fiquemos pelo

caminho pode manipular duplamente os conceitos A palavra usada na transmissatildeo deve ser

suficientemente aberta para permitir ao aluno viver a sua liberdade na hora da escolha deve

sentir-se familiarizado com o tema que quer escolher ou que quer trabalhar A obtusidade da

palavra pode tambeacutem ser um factor muito importante natildeo apenas na apreensatildeo dos conteuacutedos

mas tambeacutem na proacutepria escolha dos conteuacutedos por afinidade por gosto por paixatildeo ou ateacute por

curiosidade Quer o docente e quer discente tecircm que saber que este processo natildeo cabe num

frasco de linearidade Haacute muacuteltiplas facetas de ensinar e muacuteltiplas facetas de aprender Mas

entre ambas haacute uma faceta que eacute transversal que eacute desejaacutevel que seja transversal eacute a faceta

do ensinar honesto ou com a honestidade a de aprender honesto ou com a honestidade a de

que cada um tem que ser aquilo que eacute para dar e receber

Esta honestidade eacute muito importante para ajudar a fazer com que quer o educador quer o

educando caminhem para um espaccedilo da educaccedilatildeo liberal ldquoA educaccedilatildeo liberal eacute uma

educaccedilatildeo na cultura e para cultura9rdquo diz Leo Strauss o ldquoproduto terminado de uma educaccedilatildeo

liberal eacute um ser humano cultivadordquo insiste Strauss Uma educaccedilatildeo na cultura e para cultura

que nos conduza agrave formaccedilatildeo de um ser humano cultivado soacute pode ser feita inicialmente com

um fundamento muito forte da honestidade do cuidado e de autocuidado Strauss vai buscar a

explicaccedilatildeo do termo cultura a partir da sua origem latina (cultura) que se refere em primeiro

lugar agrave agricultura diz ele e no seu sentido derivado e actual (insiste ele) quer dizer ou

refere-se ao cultivo da mente Ora insiste o nosso autor assim como a terra precisa de

lavradores a mente precisa de mestres mas estes mestres soacute podem ser mestres ou

reconhecidos como mestres porque para aleacutem da sua periacutecia satildeo acima de tudo honestos

iacutentegros rectos e raros Eacute por isso que eacute mais faacutecil encontrar agricultores do que os mestres

diz Strauss sobretudo os mestres que natildeo satildeo disciacutepulos isto eacute os livros os grandes livros

No acircmbito da educaccedilatildeo liberal o estudante natildeo pode portanto estar separado dos livros dos

grandes livros e porque natildeo pode estar separado dos livros ele vai adonar-se deles e vai criar

condiccedilotildees para poder ajudar os outros estudantes menos experimentados remata Strauss

Tudo isso eacute um processo de honestidade Dedicar-se a estudar com profundidade as grandes

obras os grandes livros que muitas vezes dizem coisas completamente desconcertantes com a

sua eacutepoca o seu espaccedilo ou o seu meio cultural poliacutetico ou religioso Eacute por isso que a

educaccedilatildeo liberal natildeo pode ser entendida como um simples doutrinamento10 Eu natildeo posso

9 Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Katz editores Buenos Aires 2007 p 13

10 Cf Cit p 14

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pretender ou achar que estou a educar simplesmente porque estou a ideologizar as pessoas as

crianccedilas os jovens etc vou educar se crio cultura e se transformo as pessoas em cultura e na

cultura verdadeiramente adquirida com a honestidade

Strauss abre a possibilidade para que o termo cultura tambeacutem seja discutida porque cada

regiatildeo de planeta tem a sua proacutepria cultura Noacutes temos a nossa cultura enquanto africanos e

dentro do africano tambeacutem haacute vaacuterias culturas e subculturas (mesmo sabendo que um

socioacutelogo apressado emitiria imediatamente a sua reclamaccedilatildeo sobre subculturas11) O ideal na

educaccedilatildeo liberal eacute que a cultura natildeo seja uma pequena janela que natildeo seja apenas um

singulare tantum diz Strauss mas que seja e que procure ser utilizada no plural que aceite e

assuma o sentido relativo que lhe permite ser discutida Com a excepccedilatildeo dos loucos todos

somos seres de cultura insiste Strauss apesar da maacute compreensatildeo e da maacute interpretaccedilatildeo que

isso causa agraves vezes Natildeo obstante as maacutes interpretaccedilotildees e as maacutes compreensotildees fazem parte

do preccedilo que uma educaccedilatildeo liberal tem que pagar e tem que correr A educaccedilatildeo democraacutetica eacute

um preccedilo caro no acircmbito da educaccedilatildeo liberal natildeo apenas para o acircmbito acadeacutemico mas

sobretudo para o acircmbito poliacutetico onde o poliacutetico tem que justificar e merecer o voto dos

eleitores No nosso caso concreto o caso africano e de maneira particular a Aacutefrica lusoacutefona a

democracia natildeo se fez muito sentir natildeo estaacute a ser muito acompanhada pela educaccedilatildeo A

proacutepria expressatildeo democracia eacute vista e usada com ambiguidade Mas voltaremos a esta

anaacutelise num outro momento

A Democracia e Educaccedilatildeo

O termo democracia deve ser dos termos ou das expressotildees mais utilizadas a niacutevel poliacutetico e

fora do campo poliacutetico Eacute tambeacutem provavelmente dos termos poliacutetico-sociais mais ingratos

mais incompreensiacuteveis cujo uso eacute muitas vezes inadequado O saacutebio fala de democracia o

especialista tambeacutem mas natildeo eacute por isso que quem natildeo sabe da democracia deixa de falar dela

e isso faz com que ela seja um campo de todos e de ningueacutem Um campo do saacutebio do

especialista e do analfabeto

E eacute sobretudo com este uacuteltimo que vamos trabalhar e falar na democracia moderna Os paiacuteses

lusoacutefonos como muitos paiacuteses de Aacutefrica foram apanhados numa encruzilhada forccedilada da

virada do mundo Do mundo econoacutemico do mundo poliacutetico que tem que obedecer ao mundo

econoacutemico e tal como acontece nas regras e jogos de poderes tiveram que aceitar e entrar

para um jogo e uma regra que natildeo lhes era de todo favoraacutevel Tinham que dar espaccedilo real aos

11

Cf Cit p 14 laquoEacute todo o padratildeo comum de conduta proacutepria de um grupo humanoraquo

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partidos que estavam na oposiccedilatildeo e natildeo era possiacutevel fazecirc-lo realisticamente porque natildeo se

deixa de ser um Partido-Estado de um dia para outro e tinham que lutar contra a pobreza e

contra o analfabetismo as duas inimigas principais da democracia moderna e natildeo havia

garantia de que pudessem fazecirc-los nos termos que a democracia pensada pelos outros

propunha

Portanto a leitura que se deve fazer destes 25 anos da democracia nestes paiacuteses natildeo seria

naturalmente uma leitura triunfalista mas antes pelo contraacuterio uma leitura analiacutetica

Perguntar-se se o que chamamos democracia desde o iniacutecio foi verdadeiramente democracia

A leitura triunfalista eacute uma leitura de auto-regozijo de auto-suficiecircncia e de triunfalismo

nacionalista que faz uma espeacutecie de apagatildeo naquilo que eacute ou sobre aquilo que eacute a memoacuteria do

difiacutecil que roccedila ao fracasso e se esquece que a democracia eacute um regime que eacute feito para

triunfar perdendo ou fracassando Natildeo se pode esperar outra coisa da democracia senatildeo o

triunfo porque aparentemente eacute um regime onde todo o mundo tem a possibilidade e a

oportunidade de decidir de decidir sobre si mesmo e de decidir com o uso da influecircncia sobre

os outros E eacute precisamente na eventualidade de que esta influecircncia sobre os outros venha a

concretizar-se que fez com que os grandes teoacutericos do poder na antiguidade tivessem medo

da democracia laquoO que eacute que seria daquele regime onde o povo eacute quem mandaraquo

Perguntavam eles O que eacute que seria dos ricos da elite dos intelectuais da induacutestria etc Uma

seacuterie de questotildees do acircmbito de interesse particular se punha para chamar a atenccedilatildeo dos

particulares para natildeo aderir a algo que lhes podia fazer mal e fazer mal aos seus negoacutecios Eacute

por isso que a democracia natildeo eacute um poder do povo mas um poder de elite que eacute criado dentro

do povo sem que para isso o povo se decirc conta Os criacuteticos como Platatildeo sempre olharam para

esta elite que vem do povo como algo que sempre seraacute mal preparada para assumir com

distinccedilatildeo algo que eacute muito importante para o destino do paiacutes por isso nunca apoiaraacute um

regime democraacutetico Mas a democracia que eacute um regime triunfalista eacute uma democracia

falaciosa porque natildeo se pode esperar um triunfo na maioria ou da maioria uma vez que a

verdadeira maioria natildeo negocia natildeo dialoga apenas remete para o ponto de partida para a

regra do jogo inicial ainda que esta regra do jogo seja escrita e feita por ela de forma

maliciosa Eacute por isso que quando se fala da vitoacuteria da democracia no sentido da maioria

democraacutetica temos que olhar para esta maioria como aquela que mesmo sendo a maioria

deixou de secirc-la voluntariamente para se revestir do risco de ter que dar explicaccedilotildees de ter que

justificar-se de ter que sujeitar-se a ouvir quem perdeu quem o povo natildeo quer natildeo escolheu

e natildeo conta com ele de forma expliacutecita

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O triunfo da democracia maioritaacuteria natildeo eacute um triunfo numeacuterico mas sim um triunfo da

gestatildeo das emoccedilotildees e dos egos do poder e da poliacutetica daqueles que o povo indicou para

fracassar e aqueles que indicou para o sucesso um certo sucesso de insucesso porque tudo eacute

aprazo e eacute o proacuteprio povo que em primeiro plano natildeo respeita e nunca respeitou o prazo

Exige as contas antes do fim do prazo que ele estipulou e natildeo aceita justificaccedilotildees que natildeo

satisfaccedilam a sua proacutepria demanda os outros se transformam para ele em indiviacuteduos e ele em

Estado que tem que fazer com que a lei seja cumprida Uma tentativa de saiacuteda para esta

realidade para esta situaccedilatildeo tem que passar necessariamente pela Educaccedilatildeo eacute por isso que

alguns pensadores da democracia como eacute o caso de Gianfraco Pasquino defendem que a luta

da democracia moderna eacute uma luta que consiste em satisfazer a educaccedilatildeo e eliminar a

pobreza Natildeo se pode falar de uma democracia triunfalista quando se tem medo de olhar para

a memoacuteria que apresenta um nuacutemero insustentaacutevel do analfabetismo e de pobreza O triunfo

da democracia moderna eacute um triunfo que passa pela lucidez e um sono tranquilo de barriga

cheia natildeo da elite mas daqueles que sem ser elite sentem que algueacutem cumpriu com um

direito deles o direito de natildeo passar fome e de natildeo morrer analfabeto E esta expectativa

corresponde com a democracia moderna em alguns momentos porque eacute uma expectativa que

soacute pode ser realizada pela virtude por um regime virtuoso Em algum momento acreditamos

ou se diz que a democracia eacute um regime que depende da virtude diz Strauss Um regime onde

todos ou a maioria dos homens satildeo saacutebios uma sociedade onde todos os adultos satildeo saacutebios e

virtuosos uma sociedade aristocraacutetica uma democracia aristocraacutetica No fundo um grande

mal-entendido Aparentemente eacute o que nos teraacute acontecido em alguns momentos quando

recebemos a democracia Olhamos para ela como o estado de realizaccedilatildeo perfeita de todos e

para todos Olhamos para ela quase como que uma espeacutecie de governo dos deuses Com

efeito Aristoacuteteles tinha razatildeo quando alertou que a natureza humana natildeo permite que

olhemos para nenhum governo como lugar de possiacutevel perfeiccedilatildeo como lugar seguro porque eacute

a gestatildeo humana que vai fazer com que um lugar um governo ou um Estado seja tido como

seguro ou natildeo A gestatildeo humana das coisas eacute volaacutetil

Quando Aristoacuteteles e outros teoacutericos pensaram no indiviacuteduo viram nas instituiccedilotildees condiccedilatildeo

indispensaacutevel para responder aos anseios deste mesmo indiviacuteduo eacute por isso que criaram

maneiras formas instacircncias e institutos para permitir uma salvaguarda real do indiviacuteduo A

cidade natildeo eacute um espaccedilo natural do indiviacuteduo diz Aristoacuteteles porque implica regras

completamente diferentes das regras individuais das regras da arbitrariedade das regras da

autonomia ilimitada e das regras da natildeo obediecircncia A cidade surge portanto para dar corpo a

todo este mosaico de regras de normas de paixatildeo mas com ordem e comando unificado num

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basanos num basileus que soacute eacute independente porque obedece agraves leis porque cumpre as leis

Este propoacutesito escapou-nos enquanto africanos que festejaram a chegada da democracia e

enquanto africanos que ensinam e dirigem o (s) paiacutes (es) Olhamos para democracia tal como

olhaacutevamos para a independecircncia sempre com total ausecircncia de prestaccedilatildeo de contas e sempre

com a expectativa irreal da igualdade Mas a realidade eacute um fenoacutemeno que se justifica por si

mesmo e eacute nesta perspectiva que a Ciecircncia Poliacutetica se debate diz Strauss entre tentar

encontrar a democracia na sua geacutenese e a democracia tal como a realidade se lhe apresenta A

nossa luta eacute perceber a democracia tal como a realidade a apresenta naturalmente fazendo

uma leitura histoacuterica daquilo que ela foi de como surgiu mas sobretudo ter em conta que ela

tem uma aplicaccedilatildeo e uma aplicabilidade epocal Cada eacutepoca cultiva a sua proacutepria democracia

diz a sua proacutepria democracia e interpreta a sua proacutepria democracia A sua epocalidade renova-

se diariamente constroacutei-se na sua proacutepria construccedilatildeo-autodestruiccedilatildeo em nome da proacutepria

democracia e da correspondecircncia epocal

Somos da opiniatildeo de que Aacutefrica deve criar um estilo proacuteprio para a sua democracia Deve

criar a sua proacutepria democracia que se enraiacuteza nas suas culturas que tem em conta a sua

proacutepria particularidade e multiplicidade que tem em conta o papel das autoridades

tradicionais que muitas vezes sentem-se completamente perdidas no acircmbito do

enquadramento democraacutetico deve ter em conta o papel fulcral da mulher de todas as esferas

em Aacutefrica

No nosso contexto sabemos que ldquoa mulher africana eacute a porta de todas as entradas e a saiacuteda

de nenhuma saiacuteda natildeo autorizada A mulher africana eacute alegria de um continente com as suas

vaacuterias naccedilotildees e a sua uacutenica raccedila ela eacute o fracasso da poliacutetica e do poder quando se faz machista

e eacute a vitoacuteria da poliacutetica e do poder quando se faz humana quando se torna ouvinte e se

capitaliza como espaccedilo de confianccedila e de reconhecimento de todos Natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel

sem estes atributos da mulher natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel sem uma poliacutetica que escuta a mulher e

que permita que a sua opiniatildeo natildeo seja apenas um mero disfarce do politicamente correcto e

do eticamente aceitaacutevel A Aacutefrica possiacutevel eacute a Aacutefrica madrugadora como a preocupaccedilatildeo da

mulher para com o seu lar os seus filhosas o seu marido e toda a famiacutelia alargada A Aacutefrica

possiacutevel eacute a Aacutefrica da ternura e do pragmatismo encarnado pela mulher atraveacutes dos diversos

cuidados que presta ao seu lar e agrave comunidade no seu dia-a-dia Natildeo poderemos amar

verdadeiramente Aacutefrica se continuarmos a desprezar as suas mulheres e suas crianccedilas se a

opiniatildeo da mulher continuar a ser uma espeacutecie de favor que a comunidade lhe faz porque natildeo

quer contar com ela em termos objectivos porque lhe pintou com preconceitos de

instabilidade de inseguranccedila e de fragilidade Porque olha para ela como o problema de todos

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os problemas o mal de todos os males e portanto aquela com quem natildeo se pode nem se deve

contar na primeira hora das tomadas das decisotildees Eacute a invenccedilatildeo dos preconceitos e da

prostituiccedilatildeo ideoloacutegica que depois acaba por ser direccionada agrave mulher atraveacutes dos

mecanismos do ldquopoder positivo natildeo legisladordquo o direito criado ou assumido a partir dos actos

de todos os dias

Se tivermos em conta que em Aacutefrica as mulheres satildeo mais de metade da populaccedilatildeo do

continente e a niacutevel global as mulheres de todo o mundo satildeo a metade de toda a populaccedilatildeo

mundial entatildeo poderemos com maior propriedade dar valor agrave figura da mulher natildeo soacute para o

nosso continente mas a niacutevel global Sabemos que de cada vez que a mulher ganha um

direito conquista um direito os seus ganhos e as suas conquistas cimentam a estabilidade

local e regional para a paz e para o desenvolvimento geopoliacutetico porque a mulher no seu

exerciacutecio de responsabilidade eacute muito mais persuasiva e honra com brilho o seu compromisso

Sabemos graccedilas agrave histoacuteria etnograacutefica e histoacuteria dos acontecimentos que muitas das

reivindicaccedilotildees das mulheres africanas antecederam uma boa parte das reivindicaccedilotildees

femininas no Ocidente moderno e contemporacircneo A descoberta do continente africano pelos

europeus tambeacutem conheceu a resistecircncia feminina ao lado dos homens africanos e isto

antecede a luta feminista e a luta a auto-afirmaccedilatildeo do geacutenero no Ocidente O fracasso da

Aacutefrica reside na ldquoahistorizaccedilatildeordquo do papel das suas mulheres reside na negaccedilatildeo da histoacuteria

positiva das suas mulheres reside no facto de encurtar as epopeias femininas das suas

heroiacutenas Paiacuteses como Ruanda demostram isso todos os dias Ruanda poacutes genociacutedio teve 56

das mulheres nos seus respectivos governos e todos noacutes temos notiacutecias e conhecimento da

solidez da economia e da poliacutetica de Ruanda

Temos consciecircncia de que apesar do brilho do bem-fazer e do saber-fazer da mulher africana

ainda assim haacute muitos obstaacuteculos que ela tem que superar entre eles o proacuteprio preconceito

machista Mas mesmo sabendo do preconceito machista cremos que o preconceito maior

com o qual ela se debate eacute o preconceito cultural e religioso para uma boa parte de Aacutefrica que

tem a ver com a tradiccedilatildeo negativa Estamos por exemplo a pensar na questatildeo da mutilaccedilatildeo

genital nos casamentos forccedilados e de conveniecircncia clacircnica o traacutefico das crianccedilas do sexo

feminino e o preconceito sobre a mulher que padece de viacuterus de VIH Estes males e

preconceitos satildeo mais prejudiciais agrave condiccedilatildeo feminina da mulher africana do que qualquer

mal que possa abater sobre ela Natildeo haacute um mal pior que o mal do preconceito e natildeo haacute cultura

mais enferma que a cultura preconceituosa

Aacutefrica soacute pode resgatar a sua cultura se lutar contra os seus preconceitos negativos elevando a

condiccedilatildeo da mulher e criando-lhe instrumentos e condiccedilotildees para lutar contra o mal que a

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cultura e tradiccedilatildeo criaram para ela e contra ela muitas vezes sem pedir a sua opiniatildeo O

horizonte possiacutevel para Aacutefrica eacute aquele de destruiccedilatildeo positiva dos preconceitos culturais

prejudiciais para as suas mulheres e crianccedilas Haacute que possibilitar que os dogmas culturais

intelectuais e religiosos sejam questionados para o bem da salvaguarda da proacutepria cultura da

proacutepria religiosidade e da proacutepria intelectualidade A poliacutetica e os poliacuteticos que tomarem isso

como uma iniciativa singular salvaratildeo todo o continente africano12

rdquo

A democracia que pensa a sua proacutepria realidade natildeo pode natildeo ter em conta estas necessidades

e particularidades Eacute por isso que o novo enfoque democraacutetico em Aacutefrica e nos paiacuteses

lusoacutefonos em particular deveria incluir na escolaridade preacute-universitaacuteria a disciplina da

EDUCACcedilAtildeO PARA A DEMOCRACIA assim como pensar a possibilidade de cadeiras

como ldquoLITERATURA E INSTRUCcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeOrdquo tambeacutem no preacute-

universitaacuterio Uma educaccedilatildeo para a democracia e uma literatura e instruccedilatildeo para a

democracia evitariam que caiacutessemos naquilo que Strauss chama ou designa por ldquofalta de

espiacuterito puacuteblico13

rdquo nas democracias modernas isto eacute a criaccedilatildeo de cidadatildeos que soacute se

interessam em ler as paacuteginas desportivas dos jornais e as paacuteginas das pequenas histoacuterias e

mais nada Pensar num ensino da democracia que possa ser cimentado com apoio das nossas

tradiccedilotildees orais ajudaria natildeo soacute a ter a qualidade viva dos nossos debates democraacuteticos como

tambeacutem a fundar uma democracia de raiacutezes africanas que bebem das outras culturas mas que

tambeacutem podem reivindicar a sua originalidade poliacutetica Os diversos tipos de ONDJANGO

que existem nas culturas africanas podem ser exploradas desde o ponto de vista democraacutetico

ondjango como espaccedilo de concertaccedilatildeo de ideias como espaccedilo de recepccedilatildeo do ensinamento

dos mais velhos se aproximaria ao conceito grego de aacutegora Uma educaccedilatildeo para a democracia

em Aacutefrica deveria ter em conta tambeacutem os nossos proveacuterbios adaacutegios e aforismos com uma

acentuada moralidade onde podemos encontrar a profundidade do ser africano do espiacuterito

africano e da sua consciecircncia moral e eacutetica Neles encontramos uma insondaacutevel e inesgotaacutevel

sabedoria praacutetica transversal a todo o continente O que em Angola se designa como

ondjango na Guineacute-Bissau aparece com o nome de Djembereacutem e em algumas circunstacircncias

com o nome de Bantaba de djumbai Ambos satildeo espaccedilos de confraternizaccedilatildeo de caraacutecter

educativo desde o ponto de vista da recepccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo da cultura e do pensamento

tradicional Quer a expressatildeo djembereacutem quer a expressatildeo bantaba designam um espaccedilo

circular de modo geral coberto de capim ou chapa de zinco podendo ser usados pelas pessoas

12

Cf Este trecho faz parte de um texto escrito a 31 de Julho de 2017 para um discurso ldquoencomendadordquo para o

dia internacional da mulher africana 13

Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Ed Katz Buenos Aires 2007 p 17

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de todas as idades mas em circunstacircncias diferentes Eacute um espaccedilo de reuniotildees e de encontro

de caraacutecter familiar da aldeia ou do grupo onde muitas vezes saem as decisotildees que dizem

respeito agrave comunidade eacute um espaccedilo legislativo da lei natildeo escrita da comunidade A palavra

djumbai significa divertir-se brincar daiacute que se bem o bantabaacute tem este caraacutecter seacuterio das

tomadas de decisotildees natildeo obstante esta seriedade eacute fundada na proximidade e na

familiaridade comunidade o que faz com que o poder natildeo seja algo estranho algo longiacutenquo e

tambeacutem faz com que o ensinamento e a transmissatildeo natildeo sejam vistos com a desmesura da

grandiosidade Contrariamente aos gregos e aos povos da Mesopotacircmia o lugar onde se

ensina e onde se toma as decisotildees eacute frequentado por todos pelas mulheres e crianccedilas pelos

doentes e saudaacuteveis

Conforme vimos o ondjango nos remete para a realidade da casa (NUNES

1991 159) Mas de que casa se trata Trata-se da casa de conversa de

reuniatildeo de hospedagem de partilha de bensrefeiccedilatildeoserviccedilos de

educaccedilatildeoiniciaccedilatildeo sociocultural de entretenimento eou de fazer justiccedila

Antes de tudo se trata de uma casa ponto de partida e ponto de confluecircncia

de uma casa com as condiccedilotildees de se poder sentar reunir junto de alguns

mais-velhos trata-se de um lugar de encontro14

Esta aproximaccedilatildeo de ondjango com a comunicaccedilatildeo e gestatildeo da casa permite-nos criar aqui

uma relaccedilatildeo comparativa com oikos nomoi xenofontino-aristoteacutelico Isto eacute podemos

reivindicar para o ondjango africano as mesmas capacidades os mesmos papeacuteis ou funccedilotildees

institucionais que tinha o oikos a partir da sua visatildeo da ldquofamiacutelia da propriedade da famiacutelia e

da casardquo Tal como vemos neste texto de Nunes citado por Martinho Kavaya este ondjango eacute

pluridisciplinar baseado em vaacuterias meacutetricas sociais o que de certa forma tambeacutem corresponde

com aquilo que podemos encontrar na concepccedilatildeo da palavra grega oikos A educaccedilatildeo do

ondjango do djembereacutem ou do djumbai satildeo portadoras do espaccedilo familiar da propriedade da

famiacutelia e da reflexatildeo sobre a casa sobre as coisas da casa e isso permite fazer com que o que

se discute neste espaccedilo seja efectivamente aquilo que importa agrave cidade aquilo que importaraacute agrave

cidade um dia E o que eacute pode importar profundamente agrave cidade Naturalmente as pessoas a

sua gente os homens e mulheres crianccedilas e velhos animais e plantas No fundo tudo que diz

respeito ao homem e ao seu envolvimento social e espiritual e eacute isso que o ondjango africano

14

Cf Martinho Kavaya Freire e o Ondjango podem dialogar Reflexotildees sobre o diaacutelogo de Freire com o

ondjango africano Angolano GT Educaccedilatildeo Popular n06 p 2 consultado em 30 de Outubro de 2017

httpwwwanpedorgbrsitesdefaultfilesgt06-2805-intpdf

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pretende passar atraveacutes dos seus diferentes status e fases do mais novo ao mais velho e do

mais velho ao mais novo

Toda a vida parte do ondjango e laacute encontra seu aacutepice Aiacute segundo a

pertinecircncia do vivenciado o ohango (conversadiaacutelogo) tomava vaacuterios

significados ldquoondjangordquo enquanto ldquoulongardquo (relato da vida desde o encontro

anterior) ldquoelongisordquo (ensinamento e aprendizado) ldquoekutardquo (partilha de bens

alimentares) ldquoekongelordquo (reuniatildeo de caraacuteter deliberativo)

ldquoekangaokusombaokusombisardquo (reuniatildeo para fazer justiccedila e sentenciar para

punir ou absolver o arguumlido) ldquookupapalardquo (encontro de entretenimento festas

e danccedilas culturais e tradicionais conforme a situaccedilatildeo vivida no momento

morte caccedila casamento iniciaccedilatildeo sociocultural e comunitaacuteria acolhimento

de uma visita etc) ldquoondjulukardquo (encontro para organizar um mutiratildeo

comunitaacuterio a favor de algum da comunidade em situaccedilatildeo de doenccedila

problema socioeconocircmico intervenccedilatildeo de ajuda na sua lavoura etc)

(KAVAYA 2006 p147) Afinal o ondjango eacute o habitat comunal e vital

onde se desenham as relaccedilotildees de conviacutevio geo-histoacuterico econocircmico

sociocultural poliacutetico etc em vista o bem comunitaacuterio15

Educar para a conservaccedilatildeo destes valores eacute tambeacutem educar para a democracia e eacute educar para

a manutenccedilatildeo da cultura e dos preconceitos positivos A democracia em todo o sentido e em

toda a sua histoacuteria sempre conteve um elemento educativo muito forte e quase indissociaacutevel

de si mesma eacute o diaacutelogo para gerar a cultura e a cultura para gerar diaacutelogo Natildeo pode haver

uma verdadeira democracia que dispense este binoacutemio O erro de pensadores como Platatildeo em

relaccedilatildeo agrave sua recusa agrave democracia reside no facto de desprezarem excessivamente qualquer

tipo de possibilidade para educaccedilatildeo viaacutevel do homem democraacutetico reside no facto de natildeo

acreditarem que a democracia pode educar um poloi e fazer dele um aristoacuteis agrave sua maneira

ou ainda este erro pode residir no facto de que estes pensadores natildeo tiveram em conta que o

poloi apenas pode querer ser simplesmente e eternamente um poloi mesmo sendo democrata

O erro consistiu em pensar que os que podem e devem governar a cidade deviam deixar de ser

das suas respectivas camadas e passar a ser aristocratas Eacute um erro que ainda vemos hoje

15

Cf Ibid p 3

Paacutegina 62 de 74

EDUCACcedilAtildeO CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO

UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS

ABEL JOSEacute DA SILVA a

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS b

adasilva00gmailcom

ireneinakulomoisesgmailcom

Resumo

A presente comunicaccedilatildeo faz uma caracterizaccedilatildeo do Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo

Universitaacuterio com ecircnfase nos seus desafios e perspectivas Analisa este processo a partir da

interpretaccedilatildeo sistecircmica que decorre dos pressupostos legais da Educaccedilatildeo e Ensino em Angola

Como meacutetodo usa a revisatildeo bibliograacutefica e a interpretaccedilatildeo e fundamenta a caracterizaccedilatildeo do

referido processo como variaacutevel baacutesica para a anaacutelise da qualidade do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola idealizado com base nos princiacutepios da legalidade da integridade da

laicidade da universalidade da democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da

intervenccedilatildeo do Estado da qualidade de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais

ciacutevicos e patrioacuteticos Tem como objectivo reflectir sobre os aspectos que o caracterizam e que

interferem na sua qualidade Apresenta a missatildeo do processo integrada ao Sistema em que

todos os agentes educativos participam da sua funcionalidade

Palavas-Chave Processo Ensino Aprendizagem Sistema

Abstract

This scientific paper characterizes the Non-University Teaching and Learning Process with an

emphasis on its challenges and perspectives It analyzes this process from the systemic

interpretation that arises from the legal presuppositions of Education and Teaching in Angola

As method uses the literature review and the interpretation and founded the characterization

of this process as basic variable for the analysis of the quality of the system of Education and

Teaching in Angola Idealized on the basis of the principles of legality integrity secularity

universality democracy gratuitousness obligation compulsion State intervention quality of

services education and promotion of moral civic and patriotic values It aims to reflect on the

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aspects that characterize and that interfere in its quality Has the mission of the process

integrated into the System in which all educational agents participate in its functionality

Key-words Process Teaching Learning System

Introduccedilatildeo

O Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo Universitaacuterio (PEANU) eacute uma importante variaacutevel

para a anaacutelise do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino em Angola (SEEA) sistema perspectivado

com base nos ldquoprinciacutepios da legalidade da integridade da laicidade da universalidade da

democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da intervenccedilatildeo do Estado da qualidade

de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticosrdquo (Lei no 1716

art 5ordm)1

A caracterizaccedilatildeo do PEANU pressupotildee assumir um posicionamento holiacutestico que analise o

mesmo como um processo natildeo isolado do todo porque o SEEA eacute estruturalmente unitaacuterio e a

sua realizaccedilatildeo na situaccedilatildeo especiacutefica da anaacutelise tem influecircncia no funcionamento da totalidade

(princiacutepio da integridade art 7ordm e art 17ordm)

Os desafios e perspectivas como outra dimensatildeo importante derivada do processo de

parametrizaccedilatildeo do assunto ndash objecto de anaacutelise justificam-se a partir da consideraccedilatildeo dos

princiacutepios da universalidade democraticidade gratuitidade obrigatoriedade intervenccedilatildeo do

Estado qualidade de serviccedilos e da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais pois que se a

Lei tipifica o que idealmente eacute o correcto a necessidade de confrontar com a realidade agrave luz

da pesquisa bibliograacutefica eacute inadiaacutevel para o alinhamento do agir educativo com os princiacutepios

legais

A partir destes princiacutepios infere-se que a Educaccedilatildeo e o Ensino satildeo natildeo apenas um direito mas

tambeacutem um dever que se deve realizar com a qualidade requerida para que a construccedilatildeo de

uma nova sociedade assente na democracia esclarecida seja possiacutevel Para isso agrave Escola

atraveacutes do Processo de Ensino e Aprendizagem (PEA) em todos os niacuteveis de ensino e

especialmente nos natildeo universitaacuterios impende a tarefa de formar personalidades capazes de

influenciar com o seu saber e suas qualidades o curso da histoacuteria concreta do seu contexto

Deste modo o Processo tem de ser significativo2 Para que o processo seja significativo eacute

1 Lei de Bases do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino que estabelece os princiacutepios e bases do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola de 7 de Outubro de 2016 Esta Lei revoga a Lei 1301 de 31 de Dezembro de 2001 2 O PEANU eacute significativo quando assegure o cumprimento da sua finalidade tal como se institui no art 25ordm da

Lei 1716 referente aos Objectivos Gerais do Subsistema do Ensino Geral Desta significatividade resulta em

consequecircncia a eficaacutecia do Sistema

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necessaacuterio caracterizaacute-lo com a finalidade de que se conheccedilam natildeo soacute os seus pontos fortes

mas tambeacutem os fracos aspecto que se aborda seguidamente

Por isso o objectivo deste trabalho consiste em reflectir sobre os aspectos do SEEA que o

caracterizam e que interferem na qualidade do PEANU

1 Estrutura do Seea Ponto de partida para a caracterizaccedilatildeo do Peanu

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento ldquoad intrardquo da

realidade educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento (Cfr

Silva 2016) Por isso a anaacutelise estrutural do SEEA baseada nas proposiccedilotildees da Lei 1716 e

fundamentada pela revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura criacutetico-contextual eacute uma

tarefa basilar para esta caracterizaccedilatildeo

A caracterizaccedilatildeo do Sistema Educativo numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional de

acordo com Ngaba ( 2012) e Liberato (2014) permite concluir que existem avanccedilos e

retrocessos no processo educativo angolano que em termos de poliacutetica educativa

condicionaram a sua evoluccedilatildeo positiva bem como a sua afirmaccedilatildeo no cenaacuterio internacional e

ateacute mesmo regional3

A partir desta ideia geral sobre o estado do SEEA que de modo especial se realiza por meio

do PEANU eacute possiacutevel compreender que estruturalmente estaacute bem concebido se se analisam

todos os factores intencionais de entrada e saiacuteda de um niacutevel de ensino para outro Entretanto

o aspecto funcional real fica aqueacutem do desejado se se avaliam com visatildeo criacutetico-acadeacutemica

os resultados do processo e os discursos oficiais que asseguram a Poliacutetica do Sistema

Educativo

Contrariamente agrave 1ordf Repuacuteblica (Cfr Ngaba 2012) que natildeo se fez reger por um documento

base tanto a 2ordf como a 3ordf Repuacuteblicas de Angola tecircm como fundamento a Lei de Bases do

SEEA que estabelece a criaccedilatildeo de condiccedilotildees mais adequadas para a aplicaccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas e dos programas nacionais com o objectivo de continuar a assegurar o

3 Este momento criacutetico do SEEA eacute tambeacutem hoje reconhecido oficialmente pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo do Paiacutes

na voz da sua titular no encerramento da Semana Nacional sobre Educaccedilatildeo em Angola realizada em Luanda Por

isso para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo actual do Sistema Educativo e do PEANU especificamente eacute criteacuterio dos

autores deste trabalho que os problemas fracturantes que colocam em causa a qualidade do Sistema natildeo podem

ser analisados unilateralmente sob pena de se incorrer num reducionismo indevido pois estatildeo em causa

muacuteltiplas variaacuteveis que chocam com diversos princiacutepios e disposiccedilotildees legais em que assenta o Sistema

infraestruturas precaacuterias insuficiecircncia dos materiais e meios didaacutecticos factos que se agravam ainda mais com a

falta de preparaccedilatildeo adequada dos professores de tal modo que possam responder aos desafios do Sistema

idealizados pela Reforma Educativa Essa visatildeo geral estrutural e conjuntural pode reflectir-se e explicar-se

melhor por meio do seguinte exemplo em relaccedilatildeo agrave indisciplina na aula espaccedilo privilegiado em que se

desenvolve o PEA Estrela (1983) citada por Lopes (2005) identificou um conjunto de variaacuteveis que vatildeo desde o

proacuteprio aluno passando pelo professor pela instituiccedilatildeo escolar ateacute agrave proacutepria sociedade Estes satildeo dados

suficientes para pensar na qualidade educativa como multideterminada

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desenvolvimento humano com base numa educaccedilatildeo e aprendizagem ao longo da vida para

todos os indiviacuteduos que permita assegurar o aumento dos niacuteveis de qualidade de ensino

Considerando a anaacutelise da estrutura do Sistema estabelecido pela Lei 1716 conclui-se que as

principais alteraccedilotildees agrave antiga Lei relacionam-se entre outras com a gratuitidade e

obrigatoriedade do ensino que passa a compreender as classes da Iniciaccedilatildeo do Ensino

Primaacuterio e do Primeiro Ciclo do Ensino Secundaacuterio bem como a nomenclatura das

instituiccedilotildees

Nesta vertente assume-se que o Subsistema de Ensino Geral eacute o fundamento do SEEA (Lei

no 1716 art 24ordm) que visa de acordo com o artigo em referecircncia assegurar uma formaccedilatildeo

integral harmoniosa e soacutelida necessaacuteria para uma boa inserccedilatildeo no mercado de trabalho e na

sociedade bem como para o acesso aos niacuteveis de ensino subsequentes

Como se pode apreciar existe uma relaccedilatildeo de determinaccedilatildeo entre o processo de ensino e

aprendizagem que se realiza no Subsistema do Ensino Geral e o trabalho bem como com a

Sociedade e com os niacuteveis de ensino posteriores o que significa o reconhecimento da

importacircncia deste niacutevel que deve permitir a aquisiccedilatildeo de ferramentas fundamentais para a

compreensatildeo da vida e do mundo Entre os seus objectivos de acordo com Ngaba (2012 p

158) constam os do desenvolvimento ldquodos conhecimentos e as capacidades que favoreccedilam

uma auto-formaccedilatildeo educar para a cidadaniardquo A educaccedilatildeo vista a partir da oacuteptica deste niacutevel

de ensino eacute um factor de integraccedilatildeo social

Por isso o questionamento da qualidade do PEANU eacute no fundo o questionamento da

qualidade do Sistema em si uma vez que estudando Poliacuteticas Educativas em Angola (1975-

2005) o autor antes referenciado e alinhado com Liberato afirma

ldquoEm termos gerais fica a ideia de estarmos perante um processo evolutivo que em periacuteodos

diferentes se foi deparando com os mesmos problemas e optando pelas mesmas soluccedilotildeesrdquo

No entanto de acordo com o mesmo autor ldquoquase quatro deacutecadas depois das primeiras

mudanccedilas ldquosignificativasrdquo no sector da educaccedilatildeo deacutecadas essas caraterizadas por sucessivos

estudos e mudanccedilas o paiacutes (hellip) carece de soluccedilotildees radicais que possam corrigir de uma vez

por todas os factores relacionados com o baixo coeficiente do sistema angolanordquo (Ngaba

2012 p 173)

De acordo com a ideia anterior a questatildeo da qualidade de ensino em Angola natildeo deve ser

vista como uma questatildeo da responsabilidade exclusiva de um ou de outro niacutevel de ensino

mas como uma questatildeo transversal do SEEA considerando entre outros princiacutepios gerais o

da integralidade estatuiacutedo no artigo 7o da Lei 1716 Por isso a anaacutelise desta questatildeo implica

um posicionamento multifactorial

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Com base nessa posiccedilatildeo o Sistema possui potencialidades capazes de proporcionar um PEA

motivador que permita a construccedilatildeo das aprendizagens dos alunos e que transforme o saber

em saber fazer e em saber ser na base de uma visatildeo axioloacutegica pois atendendo agrave

complexidade da acccedilatildeo educativa a UNESCO no Relatoacuterio DELORS (2003 p 11) sustenta

que para concretizar a sua meta a educaccedilatildeo deve organizar-se em quatro tipos fundamentais

de aprendizagens que ao longo da vida do indiviacuteduo seratildeo os pilares do conhecimento

Aprender a conhecer isto eacute adquirir os instrumentos para a compeensatildeo

aprender a fazer de modo a ser capaz de agir criativamente no proacuteprio

ambiente aprender a viver juntos de modo a participar e a colaborar com os

outros em todas as actividades humanas aprender a ser isto eacute um progresso

essencial que deriva dos trecircs precedentes

Para tornar este sonho real eacute necessaacuterio que o processo seja significativo e em si mesmo

motivador formando os professores de acordo com as necessidades da realidade objectiva

Trata-se de prover os recursos necessaacuterios a um processo que desafie os limites da situaccedilatildeo

actual pois se o professor eacute indispensaacutevel natildeo eacute menos verdade que os recursos educativos

tambeacutem o sejam (Lei 1716 art 97ordm)4

Tendo em conta os pressupostos legais da Repuacuteblica de Angola (Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e

Lei 1716) e os pilares da educaccedilatildeo propostos pela UNESCO considera-se que o ideal

educativo estaacute devidamente delineado Contudo eacute necessaacuterio que de acordo com Nanni

(2005 p81) citado por Fernando (2010 p 17) no ldquoacircmbito educativo o fim uacuteltimo ndash o

horizonte para o qual deve tender toda a acccedilatildeo educativa ndash natildeo deve fazer com que os fins

intermeacutedios ndash que o tornam possiacutevel e factiacutevel ndash sejam esquecidosrdquo Daiacute a relaccedilatildeo entre fins

meios e procedimentos educativos

A distinccedilatildeo entre fins uacuteltimos da educaccedilatildeo meios e procedimentos educativos eacute fundamental

porque de acordo com Fernando (2010 p 18)

Impele agrave procura e a determinar os recursos o tempo as modalidades e as estrateacutegias para a

realizaccedilatildeo do objectivo educativo que se pretende e permite de certo modo natildeo esquecer que

se natildeo se fizer a diferenccedila entre ideal e real entre fim uacuteltimo e limite da acccedilatildeo humana entre o

horizonte e o limite concreto das coisas e da existecircncia entre o itineraacuterio projectado e a

complexidade do percurso e da vida das pessoas corre-se o risco de se ser desumano e de cair

4 No artigo 97ordm a Lei 1716 define recursos educativos como os meios que contribuem para o desenvolvimento

do SEEA tais como a) Guias e programas pedagoacutegicos b) Manuais escolares C) Meios teacutecnicos e

tecnoloacutegicos de ensino d) Bibliotecas e) Equipamentos f) Laboratoacuterios g) Oficinas h) Instalaccedilotildees e

material desportivo e cultural i) Campos de ensaios treinamento e experimentaccedilatildeo j) Auditoacuterios e salas

especializadas

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no perfeccionismo ou de se desencorajar cansar e por fim de se sentir insatisfeito com aquilo

que se faz

Em consequecircncia nos nossos dias a questatildeo do discurso pedagoacutegico sobre a ldquofinalidaderdquo da

educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU natildeo eacute faacutecil porque a educaccedilatildeo eacute caracterizada hoje por

certa crise pela necessidade de inovaccedilatildeo e pelo pluralismo de ideias de valor e de cultura do

momento histoacuterico actual (Cfr Fernando 2010 Ngaba 2012 Liberato 2014)

Na continuidade da anaacutelise sobre a finalidade da educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU os

autores concordam com Fernando (2010 p 19) ao distinguir dois tipos de tendecircncias

educativas

1 A tendecircncia redutora que ldquoprocura ver a aprendizagem em funccedilatildeo das necessidades da

economia que com as suas solicitaccedilotildees convida a rever os conteuacutedos do ensino e sua

organizaccedilatildeo Esta eacute a linha ou corrente mais seguida nos nossos diasrdquo

2 A tendecircncia aberta que ldquoprocura integrar no conceito de aprendizagem outros elementos

significativos mais ligados agraves dimensotildees psicoloacutegicas sociais e culturais das experiecircncias do

indiviacuteduo enquanto protagonista da aprendizagemrdquo

Para os autores embora a primeira tendecircncia seja a mais seguida actualmente a segunda

parece melhor corresponder agrave dignidade do homem responsaacutevel porque de acordo com a Lei

1716 (art 15ordm) o SEEA deve promover natildeo soacute o cultivo da intelectualidade mas tambeacutem

dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticos

Assim a primeira reduz a finalidade da escola agrave instruccedilatildeo e a segunda supera esta visatildeo

sustentando que a finalidade primaacuteria da actividade pedagoacutegica escolar eacute a de educar sem

contudo deixar de parte a sua funccedilatildeo instrutiva Neste sentido a finalidade da educaccedilatildeo como

instituiccedilatildeo social deve coincidir com a finalidade da escola enquanto instituiccedilatildeo formal e

socialmente mandatada para educar isto eacute para possibilitar o desenvolvimento permanente da

qualidade da pessoa humana com dignidade e integridade

2 Desafios e Perspectivas da Educaccedilatildeo

Nas paacuteginas anteriores ficou clara a ideia de que os resultados qualitativos do SEEA

fundamentalmente relacionados com o PEANU satildeo e devem ser processo-produto de um

funcionamento integral do Sistema Por isso o maior desafio da educaccedilatildeo em Angola hoje eacute o

de vencer a contradiccedilatildeo existente em que satildeo atribuiacutedas culpas isoladas ou ao aluno que natildeo

estuda ou ao professor que natildeo estaacute preparado e natildeo motiva ou agraves mateacuterias que natildeo satildeo

atractivas e adaptadas agrave realidade profissional e do contexto de vida dos alunos ou aos pais

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que natildeo acompanham suficientemente os filhos ou ainda ao proacuteprio Sistema Educativo de

maneira geral

De acordo com a ideia anterior e tendo em conta a revisatildeo bibliograacutefica realizada5 os autores

consideram que os desafios para a melhoria das falhas devem ser enfrentados de forma

sistecircmica porque cada uma das variaacuteveis antes mencionadas eacute importante para o

funcionamento normal ou natildeo do PEA natildeo apenas no niacutevel referenciado mas em todos os

niacuteveis em atenccedilatildeo aos princiacutepios de integridade do Sistema e da obrigatoriedade e qualidade

dos serviccedilos educativos Isto pressupotildee uma poliacutetica educativa ajustada agrave realidade que

incentive a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores e garanta os meios materiais indispensaacuteveis

ao processo

Trata-se de construir uma verdadeira comunidade educativa em que todos os agentes

educativos como a famiacutelia a escola e a comunidade na sua dimensatildeo mais alargada

participem Por isso eacute necessaacuterio repensar a educaccedilatildeo para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de

um paiacutes novo como afirmara Joseacute Eduardo dos Santos (2008) nos seguintes termos ldquoum

novo paiacutes estaacute a nascer e com ele haacute-de florescer tambeacutem um cidadatildeo novordquo Quando

Considerando a perspectiva temporal como resposta os autores acreditam que isso se

realizaraacute agrave medida que a educaccedilatildeo se assuma antes de tudo como uma condiccedilatildeo de verdadeira

cidadania e natildeo de mera transmissatildeo de receitas importadas do exterior e enxertadas no nosso

contexto quando todos os agentes educativos tiverem presente que o educar eacute na verdade

um verbo ldquoque exige uma acccedilatildeo com atitude transformadorardquo (Pereira e Silva 2008 p 24)

Eacute neste sentido que Joseacute Eduardo dos Santos na sua alocuccedilatildeo agrave Naccedilatildeo referia-se ao papel dos

pais dos professores e de todos os actores sociais como verdadeiros agentes educativos da

juventude Trata-se do desafio de construir uma verdadeira sociedade educativa

Na construccedilatildeo dessa sociedade educativa a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores para o SEEA

e sobretudo para o PEANU deve ser entendida como uma consequecircncia de uma formaccedilatildeo

inicial que seja adequada agraves necessidades reais da sociedade para a qual se educa Isso implica

que os professores devem ser formados com base nos desafios da nova Repuacuteblica (Ngaba

2012)

5 Em Ofiacuteco de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Perrenoud (1995) denuncia uma dupla evidecircncia por um

lado haacute alunos que natildeo aprendem e por outro professores que natildeo formam porque ambos se contentam em

exercer manualmente os oacutecios do ofiacutecio enquanto a cabeccedila estaacute ausente Na mesma linha Grilo (2002) entende

que na ldquoNa sociedade do conhecimento hoje aprende-se e ensina-se em circunstacircncias e contextos muito

diversos embora por vezes se ensine mas natildeo se aprenda como ocorre por exemplo em algumas das escolas

Mas partindo do princiacutepio de que quando se ensina haacute sempre algueacutem que aprende o ensino (hellip) eacute um

mecanismo muito importante e uma peccedila fundamental desta sociedaderdquo (p 121)

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A formaccedilatildeo inicial que serve de base para a formaccedilatildeo contiacutenua de professores de acordo com

a Lei 1716 eacute assegurada pelo Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores que estaacute estruturado

em Ensino Secundaacuterio Pedagoacutegico e Ensino Superior Pedagoacutegico O primeiro constitui o

ldquoprocesso atraveacutes do qual os indiviacuteduos adquirem e desenvolvem conhecimentos haacutebitos

habilidades capacidades e atitudes que os capacite para o exerciacutecio da profissatildeo docente na

Educaccedilatildeo Preacute-escolar no Ensino Primaacuterio e no I Ciclo do Ensino Secundaacuterio Regular de

adultos e na Educaccedilatildeo Especial e mediante criteacuterios o acesso ao Ensino Superior

Pedagoacutegicordquo (Art 46)

Por outro lado e de acordo com a mesma Lei um dos fundamentos do SEEA o ldquoEnsino

Superior Pedagoacutegico eacute um conjunto de processos desenvolvidos em Instituiccedilotildees de Ensino

Superior vocacionados agrave formaccedilatildeo de professores e demais agentes de educaccedilatildeo habilitando-

os para o exerciacutecio da actividade docente e de apoio agrave docecircncia em todos os niacuteveis e

subsistemas de ensinordquo (Art 49)

Em correspondecircncia com os estes dois artigos da Lei 1716 compreende-se a relaccedilatildeo

intriacutenseca entre o Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores e os diferentes niacuteveis de ensino do

SEEA

A educaccedilatildeo em Angola vista na oacuteptica dos seus fundamentos legais constitui-se assim numa

ldquoforma de poder porque a educabilidade eacute um poder-ser humano mediado pela educaccedilatildeo

como poder sobre o ser humano que decide sobre o dever-ser humano Eacute um poder ser

porque o ser humano eacute um ser biologicamente aberto agrave criaccedilatildeo de uma segunda naturezardquo

(Monteiro 2004 p 12)

De acordo com o autor referenciado com antecedecircncia todas as formas de poder do ser

humano sobre o outro suscitam a questatildeo da sua legitimidade Esta questatildeo eacute no fundo a do

fundamento e controlo do poder que o professor exerce atraveacutes dos conteuacutedos e formas da

comunicaccedilatildeo que realiza ante o aluno Assim sendo

A ldquolegitimidade pedagoacutegica eacute de natureza social porque ser profissional da

educaccedilatildeo implica um mandato da sociedade atraveacutes do Estado que regula o

exerciacutecio da funccedilatildeo Eacute tambeacutem de natureza individual na medida em que a

competecircncia pessoal tem um efeito de auto-legitimaccedilatildeo junto dos educandos

Mas tem de ser problematizada com mais radicalidade porque a educaccedilatildeo eacute

afinal uma forma de poder do homem sobre o homemrdquo (Monteiro 2004 p

12)

Daiacute que se a educaccedilatildeo eacute uma forma de poder eacute necessaacuterio que se exerccedila tal poder na justa

medida tendo como princiacutepio e limite a Lei que estabelece entre outros aspectos importantes

natildeo soacute a formaccedilatildeo inicial mas tambeacutem a contiacutenua dos professores para que respondam agraves

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necessidades da sociedade angolana

Portanto a anaacutelise da qualidade da educaccedilatildeo como um fenoacutemeno multideterminado que

possibilita caracterizar o Sistema justifica que a formaccedilatildeo contiacutenua de professores variaacutevel

importante para esta caracterizaccedilatildeo natildeo deve ser vista como um simples adereccedilo mas sim

como parte importante de uma cultura institucionalmente legal onde a articulaccedilatildeo entre as

instituiccedilotildees de Ensino Superior (pedagoacutegicas ou natildeo) e as do ensino geral seja

dialecticamente um facto

CONCLUSAtildeO

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento da realidade

educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento que tem como

fundamento a interpretaccedilatildeo da Lei e a revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura

criacutetico-contextual

A revisatildeo bibliograacutefica assente numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional permite

concluir que existem avanccedilos e retrocessos no processo educativo angolano que em termos

de poliacutetica educativa condicionaram sua evoluccedilatildeo positiva bem como sua afirmaccedilatildeo no

cenaacuterio internacional e ateacute mesmo regional

Esta constataccedilatildeo impotildee desafios a vencer na perspectiva da construccedilatildeo de uma sociedade

educativa em que cada agente participe reconhecendo a necessidade contiacutenua da formaccedilatildeo

dos professores para o PEANU como fundamento do SEEA

Referecircncias Bibliograacuteficas

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la Repuacuteblica de Angola Tesis doctoral La Habana Universidade de Ciencias Pedagoacutegicas `Enrique Joseacute

Varonaacute

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Paacutegina 73 de 74

1 Os artigos podem ser escritos em portuguecircs inglecircs espanhol e francecircs

2 Tecircm que ser ineacuteditos e natildeo mais de 20 paacuteginas notas de peacute de paacuteginas incluiacutedas

3 As resenhas submetidas natildeo devem superar 6 paacuteginas

4 O envio de artigo deveraacute ser acompanhado por um abstract no idioma original do artigo e

em inglecircs e no miacutenimo com trecircs palavras-chave

5 O formato das letras eacute Times New Roman 12 justificado e com 15 de espaccedilo

6 Os textos devem ser enviados em formato Word Perfect ou em Word para o PC

7 Os artigos enviados devem ser assinados pelos autores que tambeacutem deveratildeo indicar os

seus graus acadeacutemicos e filiaccedilatildeo institucional

8 A redacccedilatildeo da revista reserva o direito de publicar ou natildeo

9 Haveraacute sempre um comiteacute externo para avaliaccedilatildeo dos artigos

10 Os tiacutetulos dos artigos devem estar na liacutengua original e em caso de necessidade em inglecircs

11 As referecircncias bibliograacuteficas e notas de peacute de paacuteginas devem ser numeradas As

referecircncias bibliograacuteficas devem ser completas na primeira cita utilizando a norma

claacutessica para as Ciecircncias Sociais e Humanas e Vancouver ou AMA para as Ciecircncias de

Sauacutede

12 Aceitam-se os projectos de investigaccedilatildeo que natildeo superam 8 paacuteginas

LIVROS ELECTROacuteNICOS

As citas devem comeccedilar com o primeiro e uacuteltimo nome do (s) autor (es) tiacutetulo do livro

electroacutenico (em itaacutelico) editor data de publicaccedilatildeo nuacutemero da paacutegina citada Endereccedilo Web

(Disponiacutevel a data da consulta)

PROCESSO DE AVALIACcedilAtildeO E DE SELECcedilAtildeO DOS ARTIGOS

1 Os artigos devem ser enviados para o e-mail da revista ou do Director nos prazos

indicados

2 A Direcccedilatildeo acusaraacute a recepccedilatildeo do trabalho sem necessariamente manter contacto com o

autor antes da decisatildeo final de publicar ou natildeo

3 Os autores dos artigos satildeo responsaacuteveis pela sua revisatildeo ortograacutefica e gramatical

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Page 6: Página 1 de 74 - Início | ISPSN · 2019. 5. 3. · Página 5 de 74 que traz um começo, que “cria um começo” e que reinventa um começo a partir da dor e da cura. A cidade

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IacuteNDICE

EDITORIAL 4

ARTIGOS 7

FILOSOFIA

O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA 8

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU

HISTOacuteRIA

A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA A PARTIR DE FRANTZ FANON 20

NLANDU MATONDO FAUSTINO

PEDAGOGIA

laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO LIBERAL EM AacuteFRICA 44

INAacuteCIO VALENTIM

EDUCACcedilAtildeO

CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS 62

ABEL JOSEacute DA SILVA

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS

NORMAS DE PUBLICACcedilAtildeO 72

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FILOSOFIA O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU a

Resumo

A vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante A Aacutefrica eacute um complexo e heterogeacuteneo mosaico

de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees cujo fundamento metafiacutesico de origem

representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica O fundamento metafiacutesico de origem

eacute importante porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do

que o que os separa Nisto o diaacutelogo eacute necessaacuterio para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente

se vatildeo intensificando na actualidade O diaacutelogo conducente agrave unidade natildeo obriga mas se

move no respeito da liberdade da pessoa e da soberania de cada Estado Enfim trata-se de um

diaacutelogo sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Palavras-chave Pessoa humana Aacutefrica Fundamento Metafiacutesico Fundamento Metafiacutesico e

Diaacutelogo

Abstract

The vocation to unity is a natural feature of the human because it is essentially free relational

and dialoguing Africa is a complex and heterogeneous mosaic of peoples languages races

cultures ethnic groups and religions whose metaphysical foundation of origin represents an

indivisible unity in historical reality The metaphysical basis of origin is important because in

all fields everything that unites human beings is stronger than what divides them In this

dialogue is necessary to overcome the historical prejudices and disagreements the divisions

intolerances and fundamentalisms that unfortunately are intensifying at the present time The

a Doutor em Filosofia Religioso Saletino e Decano da Faculdade de Direito da Universidade Katiavala Bwila

Benguela ndash Angola

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dialog leading to the unit doesnrsquot oblige but moves in respect of freedom of the person and

of the sovereignty of each State At last it is a sincere dialog and fruitful that acknowledging

all the legitimate diversity promotes respect harmony and collaboration

Keywords The Human Person Africa Metaphysical foundation Metaphysical foundation

and Dialogue

Premissa

No actual contexto de crescente e incisiva globalizaccedilatildeo eacute difiacutecil subtrair-se ao dever ou agrave

necessidade de prestar conta de si mesmos Neste clima cultural tambeacutem a unidade africana eacute

chamada a justificar-se ou seja a justificar o seu direito de continuar a ser Agrave primeira vista

poderia parecer que a sua justificaccedilatildeo natildeo seja hoje um problema visto que eacute cada vez mais

difuso o uso do termo unidade e da expressatildeo uniatildeo africana Mas urge reflectir nesta unidade

agrave luz da filosofia para lhe compreender o seu verdadeiro significado

Aprendemos com Nicola Abbagnano que laquonada do que eacute humano eacute estranho agrave filosofia [hellip]

aliaacutes esta eacute o mesmo homem que se interroga a si mesmo e procura as razotildees e o fundamento

do seu serraquo1 Esta eacute a filosofia na sua adesatildeo agrave existecircncia humana e ao mesmo tempo na sua

amplitude em relaccedilatildeo aos problemas do homem Natildeo de um homem que vive no Uacuterano mas

do homem concreto que na sua vida experimenta acircnsias e insuficiecircncias alegrias e

esperanccedilas tristezas e anguacutestias2 Portanto todas as coisas satildeo susceptiacuteveis de reflexatildeo

filosoacutefica inclusive a proacutepria unidade africana exige filosofar

De facto filosofar eacute examinar a realidade e isso de um modo ou de outro todos fazemos

constantemente Ao se tentar resolver os problemas globais sociais ou pessoais eacute impossiacutevel

se abster da racionalidade Entretanto haacute uma gama de situaccedilotildees onde a razatildeo natildeo pode

avanccedilar por falta ou excesso de dados o que impossibilita decisotildees objectivas Entra em cena

entatildeo a parte subjectiva humana mais especificamente a Intuiccedilatildeo como meio de direccionar

nosso foco de entendimento e apontar caminhos a serem trilhados pela racionalidade

Soacute que actualmente a filosofia passa por uma perda de identidade Existe uma verdadeira

inflaccedilatildeo do termo filosofia e como toda a inflaccedilatildeo eacute sintoma de queda de valores de crise

difusa e profunda Hoje o termo filosofia indica muitas vezes coisas difiacuteceis proacuteprias do

hiperuracircnio e natildeo o homem que natildeo aceitando passivamente as informaccedilotildees fornecidas pela

experiecircncia imediata desenvolve uma postura de questionamento proacuteprio sobre a realidade

interroga-se a si mesmo e metodoloacutegica e ordenadamente procura as razotildees e o fundamento

1 N ABBAGNANO Storia della filosofia I UTET Torino 1963 p XVII

2 Cf CONCIacuteLIO VATICANO II Gaudium et Spes n 1

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do seu ser buscando como faziam os gregos um instrumento fundamental e o uacutenico

racionalmente possiacutevel para a soluccedilatildeo dos problemas da vida

A confusatildeo com relaccedilatildeo agrave filosofia e a desinformaccedilatildeo geral que permeia mesmo o meio

acadeacutemico chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimeacutericas no sentido de se

eliminar a Filosofia Entretanto ciecircncia alguma pode se ocupar da macro realidade O

empirismo natildeo pode ser aplicado agrave civilizaccedilatildeo humana agrave mente ao total Quem estabelece a

comunicaccedilatildeo entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia Cremos ser

este o quadro em que se deve inserir a reflexatildeo sobre a unidade africana que aqui fazemos

partindo da metafiacutesica do termo pessoa

Tal reflexatildeo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vatildeo

desafiando a unidade do continente africano Haacute uma verdade hoje admitida por quase todos

e ateacute pelos mais preconceituosos arqueoacutelogos de que a humanidade e a civilizaccedilatildeo

desenvolveram-se na noite dos tempos no berccedilo deste continente gigantesco chamado Aacutefrica3

Temos consciecircncia de que a Aacutefrica eacute um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas Embora esta imensidatildeo nos aconselhe a natildeo fazer

generalizaccedilotildees na avaliaccedilatildeo dos problemas natildeo nos impede de buscar e propor soluccedilotildees aos

problemas inerentes agrave falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito

de pessoa

1 Breve excursus histoacuterico-filosoacutefico do conceito de pessoa

11 A densidade semacircntico-etimoloacutegica do termo pessoa

A densidade semacircntica do termo pessoa formou-se no tempo graccedilas ao contributo cultural de

muitos filotildees de reflexatildeo O conceito de pessoa tem pois um percurso rico quanto complexo

De recordar que na antiguidade greco-romana natildeo se encontra bem claro o conceito de pessoa

Todavia seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias

Etimologicamente e segundo algumas pesquisas atentas os primeiros indiacutecios do termo

pessoa encontram-se no acircmbito da cultura etrusca De facto o termo phersu utilizado nos

ritos em honra de Phersepona e que significaria maacutescara4 passou a significar o indiviacuteduo

3 Cf Carlos SERRANO ndash Mauriacutecio WALDMAN Memoacuteria drsquoAacutefrica A temaacutetica africana em sala de aula

Cortez Editora Satildeo Paulo 20082 p 75 Cf Tambeacutem Luigi TRANFO Africa La transizione Tra sfruttamento e

indifferenza EMI Bologna 1995 p 269 Pedro F MIGUEL Aacutefrica Uma visatildeo global Viverein Roma 2013

p 11 4 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique in

laquoRevue des sciences religieusesraquo XXII (1948) 277-299 A MILANO Persona in teologia Dehoniane Napoli

1984 pp 16-71

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mascarado a personagem que o actor representa no drama ou seja o indiviacuteduo humano

moral e social5

Nesta senda do indiviacuteduo mascarado Edith Stein observa que visto que nas comeacutedias e nas

trageacutedias se representavam personagens famosos o nome pessoa foi imposto para significar

sujeitos que tinham um papel na sociedade por isso alguns definem a pessoa como laquouma

hipoacutestase marcada por uma qualificada conexatildeo com a sua dignidaderaquo 6

Natildeo encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Boeacutecio que liga pessoa ao

verbo personare aludindo agrave amplificaccedilatildeo da voz de quem fala por detraacutes da maacutescara Assim

pessoa eacute segundo Boeacutecio laquodecta est volvatur sonusraquo 7 Tambeacutem natildeo eacute correcto afirmar que

pessoa seja a contracccedilatildeo de per se una como quereria a proposta de Alano di Lilla8

12 O percurso evolutivo do conceito de pessoa

Com Ciacutecero e Seacuteneca a evoluccedilatildeo do conceito de pessoa deu passos importantes sem

contudo chegar agrave definiccedilatildeo hodierna

Do segundo seacuteculo em diante o conceito de pessoa entra no uso corrente na onda do esforccedilo

de clarificaccedilatildeo exigida pelas controveacutersias teoloacutegicas sobre o dogma trinitaacuterio Poreacutem foi

com Boeacutecio que o conceito de pessoa adquire o actual conteuacutedo teoacuterico E isto no contexto da

clarificaccedilatildeo conceitual sobre as questotildees teoreacuteticas que emergiam da doutrina sobre a

Trindade

Segundo Boeacutecio laquopersona est rationalis naturae individua substantiaraquo (pessoa eacute substacircncia

individual de natureza racional) 9 Boeacutecio elabora esta definiccedilatildeo servindo-se do patrimoacutenio

filosoacutefico grego e latino De facto ele sistematiza os conceitos latinos de persona natura e

substantia estabelecendo uma equivalecircncia com os vocaacutebulos gregos πρόσωπον ούσία

ύπόστασις que na oscilaccedilatildeo terminoloacutegica do tempo eram usados de maneira equiacutevoca e

confusa

Com Boeacutecio a natura toma definitivamente o lugar de ούσία entendida como essecircncia e

substantia passa a traduzir o grego ύπόστασις10

Satildeo poucos os filoacutesofos que no medievo natildeo

5 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique op

cit pp 298-299 6 Edith STEIN Essere finito e essere eterno Per una elevavazione al senso dellrsquoessere Cittagrave Nuova Roma

1988 p 380 7 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1344

8 Cf Enrico BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico in AAVV Persona e

personalismo Aspetti filosofici e teologici Fondazione Lanza Padova 1992 p 43 9 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1343

10 Cf Claudio MICAELLI ldquoNaturardquo e ldquoPersonardquo nel ldquoContra Eutychen et Nestoriumrdquo di Boezio Osservazioni

su alcuni problemi filosofici e linguistici in Luca OBERTELLO (a cura di) Atti del Congresso Internazionale di

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tinham encontrado a definiccedilatildeo de Boeacutecio satisfatoacuteria porque essa interpretava a realidade que

se tentava definir precisando-lhe o significado

Esta definiccedilatildeo pessoa eacute substacircncia individual de natureza racional que durante o medievo

faz cultura e caracteriza a tradiccedilatildeo teoloacutegica latina surge sob o impulso das disputas contra os

nestorianos os quais sustentavam que em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em

uniatildeo permanente e moral e contra os monofisistas que sustentavam a existecircncia em Cristo de

uma soacute natureza a divina11

Na definiccedilatildeo de Boeacutecio o termo pessoa tem um sentido mais especiacutefico e refere-se agrave estrutura

fundamental e metafiacutesica do indiviacuteduo ou seja agrave substacircncia individual dotada de uma

natureza racional Quer dizer nem todos os seres naturais satildeo pessoas mas apenas aqueles

substanciais

Por isso a pessoa eacute substacircncia individual Eacute individual porque tem caracteriacutesticas que a

distinguem dos outros indiviacuteduos da mesma espeacutecie caracteriacutesticas que natildeo satildeo definiacuteveis

nem comunicaacuteveis aos outros Eacute substacircncia porque eacute existente em si por si e em nenhum

outro Dizer substacircncia individual significa portanto dizer que a pessoa natildeo tem necessidade

para existir de aderir a um outro ser e conteacutem no seu quid alguma coisa de

incomunicabilidade que divide com nenhum outro12

A pessoa eacute igualmente de natureza racional O seu conhecer natildeo eacute impresso na mateacuteria nem eacute

limitado por essa Dizer natureza racional significa por isso que a pessoa natildeo soacute exerce as

actividades conexas agrave natureza mas tem a capacidade de desenvolvecirc-las capacidade possuiacuteda

por natureza ou seja com o nascimento13

A pessoa eacute pois o gau mais elevado de ser

substancial porque essa eacute consciente do seu ser substacircncia individual

Toda a pessoa eacute portanto antes de mais um indiviacuteduo Mas ao mesmo tempo muito mais que

indiviacuteduo porque natildeo eacute uma personagem mas uma substacircncia individual que possui em si

uma certa dignidade em razatildeo da sua racionalidade Por isso natildeo basta afirmar que a pessoa eacute

Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott 1980) Herder Roma 1981 p 336 11

Fruto destas disputas eacute a obra de Boeacutecio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium

cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestoacuterio De recordar poreacutem que desde

os primeiros seacuteculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importacircncia ndashcom Tertuliano os Padres

Capadoacutecios S Agostinho e S Joatildeo Damasceno ndash nos interrogativos teoreacuteticos que emergiam da Revelaccedilatildeo e nas

controveacutersias teoloacutegicas acerca do dogma trinitaacuterio Tais controveacutersias se concluiacuteram com a foacutermula das trecircs

pessoas ou hipoacutestases na uacutenica substacircncia ούσία ou natureza divina Os Padres da Igreja separando de maneira

definitiva o conceito de πρόσωπον da referencia agrave personagem

traacutegica ou coacutemica deram focirclego a um aprofundamento do

conceito de pessoa tambeacutem na reflexatildeo filosoacutefica (cf Gregorio DI NISSA La grande catechesi CIttagrave Nuova

Roma 1982 p 51 Gregorio NAZIANZENO I cinque discorsi teologici CIttagrave Nuova Roma 1986 p 175)

12 Cf San Tommaso DrsquoAQUINO Questiones disputatae De potentia q 9 a 2 ID Summa Theologiae I q

29 a 13

Cf E BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico op cit p 48

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algo de individual e nem mesmo que eacute uma substacircncia ou uma natureza para defini-la do

ponto de vista metafiacutesico

Visto que a individualidade eacute acidente isto eacute pertence agravequilo que existe como perfeiccedilatildeo e eacute

caracteriacutestica de um sujeito e enquanto a substacircncia e a natureza indicam o que eacute proacuteprio da

espeacutecie ocorre a substacircncia individual de uma natureza racional para que exista pessoa

Ocorre portanto que se refira a uma substacircncia individualizada de um ser racional para que

exista pessoa do ponto de vista metafiacutesico Somente um ser racional pode corresponder agrave

dignidade de pessoa porque pessoa eacute enfim um ser em si que natildeo pode ser substituiacutedo por

um outro e que eacute capaz de operaccedilotildees proacuteprias e racionais

Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da foacutermula de Boeacutecio Satildeo

Tomaacutes elabora a sua definiccedilatildeo de pessoa como laquosubsistens in rationali naturaraquo 14

Com a foacutermula subsistens in rationali natura Satildeo Tomaacutes evidencia natildeo soacute o aspecto comum ndash

pressuposto universalmente aceite da pessoa ndash assim como expresso pela substacircncia

individual da definiccedilatildeo de Boeacutecio mas evidencia sobretudo aquele individual isto eacute o

existente considerado na acepccedilatildeo mais proacutepria ou seja o seu ser uacutenico e irrepetiacutevel De facto

na definiccedilatildeo de Boeacutecio a substacircncia individual parece ser concebida como individualidade A

individualidade poreacutem eacute determinaccedilatildeo da coisa e natildeo ainda do quem eacute uma conotaccedilatildeo

natural da pessoa e natildeo da mesma pessoa

Satildeo Tomaacutes condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o

que de mais nobre e perfeito haacute no universo e por isso afirma laquopersona significat id quod est

perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturaraquo 15

Pessoa eacute a natureza racional que existe num indiviacuteduo concreto Por isso somente aquilo que

eacute subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa E eacute o subsistir de maneira

individual na natureza racional que confere a dignidade agrave pessoa ou seja laquoquia magnae

dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur

personaraquo 16

De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana natildeo eacute a abstracta razatildeo ndash como parece

indicar a natureza racional da definiccedilatildeo de Boeacutecio ndash mas a racionalidade possuiacuteda por um

subsistente ou seja de um ser concreto E este em virtude de um actus essendi proacuteprio que

confere actualidade agrave substacircncia e agraves suas determinaccedilotildees Tudo isto que a pessoa sabe quer e

faz brota do proacuteprio acto em virtude do qual eacute aquilo que eacute

14

Cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 29 a 3 c 15

Ibidem 16

Ibidem

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Da elaboraccedilatildeo de Satildeo Tomaacutes compreende-se essencialmente o caraacutecter racional da pessoa

racional enquanto capaz de ser consciente do proacuteprio ser17

A pessoa eacute todo o indiviacuteduo de

natureza racional livre atravessado por tradiccedilotildees e culturas responsaacutevel relacional

inteligente volitivo dialogante e por isso fundamento de unidade entre indiviacuteduos e povos

2 Do conceito da pessoa agrave construccedilatildeo da unidade africana

Antes da conquista das independecircncias os colonos procuravam inflamar as diferenccedilas

fechando as coloacutenias em si mesmas num clima de reserva ciumenta de distacircncia e quase de

desconfianccedila Com as independecircncias os encontros entre paiacuteses antigamente colonizados se

multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaboraccedilatildeo E com a criaccedilatildeo da

Organizaccedilatildeo da Unidade Africana (OUA) que veio desempenhar o papel extremamente

precioso de lugar de encontros de oacutergatildeo de diaacutelogo e de troca de experiecircncias entre Chefes de

Estado e de Governo africanos o esforccedilo para a unidade se exprimiu de modo mais visiacutevel

Contudo a vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante E enquanto essencialmente relacionais e

dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e

que os distinguem das outras espeacutecies de seres Todos os homens tecircm as mesmas tendecircncias e

exigecircncias fundamentais quanto ao aneacutelito da unidade Todo o homem eacute chamado agrave comunhatildeo

e estaacute aberto agrave comunicaccedilatildeo e ao diaacutelogo

O homem eacute capaz pois de intercacircmbio de dar-se aos outros e deles receber porque a sua

natureza o abre agrave comunhatildeo agrave comunicaccedilatildeo e agrave unidade A sua natureza relacional e

dialogante natildeo eacute apenas uma necessidade mas eacute sobretudo um dom que o ambiente que o

impede de continuar fechado e isolado no egoiacutesmo e aberto aos conflitos De facto o homem

eacute aquilo que eacute pela sua inconfundiacutevel individualidade mas tambeacutem pelo seu ser aberto ao

outro e agraves realidades extriacutensecas por causa da sua sociabilidade A sociabilidade eacute pois uma

expressatildeo da sua humanidade e a unidade uma sua actuaccedilatildeo

Por isso a unidade africana pressupotildee a uniatildeo consciente entre africanos e o comum e

orgacircnico esforccedilo para conseguir o bem humano integral A unidade africana na base da

descoberta da comum humanidade articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para

com todos e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros

17

Muitas vezes o termo racional eacute confuso com o termo intelectual Na verdade intelecto e razatildeo diferem O

intelectual eacute um conhecimento simples e imediato enquanto o racional passa de um conhecimento simples para

um mais complexo (cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 59 a 1)

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povos do continente para alcanccedilar o bem comum18

Enfim a unidade encontra a sua raiz na essecircncia metafiacutesica da pessoa humana e exprime por

conseguinte a estrutura ontoloacutegica dos africanos e diz respeito agrave proacutepria possibilidade da sua

realizaccedilatildeo Por isso as divisotildees e os conflitos lupescos natildeo fazem parte da normalidade

africana

Portanto apesar de Aacutefrica ser um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas o continente africano explica-se como unidade na

diversidade E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos eacute garantida

metafisicamente pela origem pelo facto mesmo de sermos africanos ndash do Cabo ao Cairo de

Dar es-Salaam a Dakar ndash mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas

O fundamento metafiacutesico de origem representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica

uma forccedila inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as

diversidades presentes nos Estados africanos a incomunicabilidade geograacutefica a hipocrisia

as tensotildees e os desejos separatistas e conduzir a um compromisso claro entre os africanos

respeitando as suas diversidades e os seus interesses reciacuteprocos empenhando num projecto

comum para uma Aacutefrica mais humana e mais social em que reinem sempre o respeito muacutetuo

o reconhecimento e a protecccedilatildeo dos direitos humanos fundamentais e se faccedila valer o lado

melhor dos africanos os valores basilares da paz da justiccedila da liberdade da toleracircncia da

participaccedilatildeo e da solidariedade Este fundamento metafiacutesico de origem eacute importante

porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do que o que os

separa

Contudo a unidade africana deve ser construiacuteda e aprofundada de forma dinacircmica e

incessante porque os pressupostos da uniatildeo representados pelos factores geograacuteficos pela

multiplicidade das tradiccedilotildees regionais nacionais culturais e religiosas pelos interesses

econoacutemicos trocas econoacutemicas paciacuteficas e seguras pela heranccedila e tradiccedilotildees socioculturais

africanas mais autecircnticas em si natildeo bastam para criar a uniatildeo poliacutetica Eacute necessaacuterio voltarmos

agrave metafiacutesica da unidade e reelaborar juntos a histoacuteria da Aacutefrica que aleacutem das muito boas

experiecircncias de unidade eacute ainda caracterizada nalguns casos por desentendimentos lutas

fratricidas entre etnias e ateacute por conflitos beacutelicos

Com razatildeo Kwame Nkrumah apelava na sua obra A Aacutefrica deve unir-se agrave unidade natildeo

tanto para indicar a necessidade ou condiccedilatildeo de estar unidos mas sobretudo o acto de se unir

18

Cf L F KAMBALU A democracia personalista Os fundamentos onto-antropoloacutegicos da poliacutetica agrave luz de

Pietro Pavan Paulinas Lisboa 2012 pp 51-64

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porque os pressupostos geograacuteficos e econoacutemicos por si soacute natildeo bastam para criar a uniatildeo

Ocorrem instituiccedilotildees vinculativas bem como vontade e consciecircncia de pertenccedila a um mesmo

continente chamado Aacutefrica A consciecircncia deve preceder agrave formaccedilatildeo poliacutetica da unidade

africana que natildeo se poderaacute alcanccedilar de forma duradoira sem valores comuns Outrossim

ocorre recordar que a unidade eacute em si um bem somente quando eacute ordenada quando responde

agrave razatildeo objectiva da verdade da justiccedila e do bem O mesmo eacute dizer que a unidade eacute um bem

que vale tanto quanto respeita o que haacute de valor nas partes que a compotildeem

A unidade perde valor quando se realiza de modo maciccedilo esmagador absoluto destruidor e

totalitaacuterio abolindo o espaccedilo que permite o diaacutelogo destruindo desta forma a esfera em que os

homens agem tomam decisotildees comuns e operam colaborando Por isso sem liberdade nem

diaacutelogo a unidade africana seria impossiacutevel porque a Aacutefrica natildeo seria mais o espaccedilo onde cada

indiviacuteduo aos outros as proacuteprias capacidades em vista do bem comum segundo princiacutepios de

igualdade substancial Neste sentido a Aacutefrica seria um conjunto de indiviacuteduos e por

conseguinte um conjunto de Estados sem laccedilos entre si Cada um veria o outro natildeo como um

semelhante com quem eacute chamado a relacionar-se e tomar iniciativas mas um inimigo de

quem se defender

Enfim para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma

poliacutetica que envolva todas as pessoas e forccedilas a todos os niacuteveis na busca do bem comum ou

seja na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem agraves exigecircncias

intriacutensecas e imutaacuteveis da natureza humana Trata-se pois de condiccedilotildees econoacutemicas

juriacutedicas morais e religiosas que tornam possiacutevel e favorecem o conseguimento pleno e faacutecil

do desenvolvimento integral das pessoas

As exigecircncias histoacutericas e os significados de unidade satildeo sempre mutaacuteveis Mudam conforme

se entenda o que leva os homens a unirem-se a niacutevel ontoloacutegico e histoacuterico ou seja

consoante a efectiva existecircncia daquele princiacutepio originaacuterio em cada homem e povo ou

consoante o plano social poliacutetico religioso e cultural em que se actua a unidade De facto

natildeo poucas vezes os proacuteprios acontecimentos histoacutericos e as proacuteprias diferenccedilas exigem que

se redefinam os instrumentos poliacuteticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova

filosofia de relaccedilotildees entre povos e Estados que vatildeo aleacutem do que no passado natildeo foi possiacutevel

Tais diferenccedilas podem provir de uma profunda oposiccedilatildeo e de uma divergecircncia quanto ao fim

As diferenccedilas podem provir tambeacutem de uma dupla visatildeo de um mesmo objectivo Seja qual

for a origem das diferenccedilas a atitude sadia eacute compreender as realidades e promover o diaacutelogo

e ver como as proacuteprias diferenccedilas permitem situar melhor o objecto

Por isso eacute mister que nos diversos acircmbitos questotildees e temas sobre os quais incumbe o risco

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da divisatildeo os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma soacute voz cultivando e

empenhando-se intensa livre e conscientemente ao diaacutelogo

O diaacutelogo eacute fundamental para a vida poliacutetica sobretudo quando exerce a funccedilatildeo da busca da

verdade e do bem No caso da Aacutefrica o diaacutelogo torna-se uma exigecircncia insubstituiacutevel para

superar as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente se vatildeo intensificando

na actualidade O diaacutelogo eacute igualmente fundamental para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos culturais raciais sociais e religiosos e promover e concretizar a

unidade a justiccedila e a paz natildeo soacute por causa do pluralismo eacutetnico cultural racial social e

religioso do continente mas sobretudo por causa do seu pluralismo poliacutetico pois atraveacutes do

diaacutelogo cada indiviacuteduo ou povo enriquece o proacuteprio ponto de vista e converge para as noccedilotildees

de verdade e de bem humano e se empenha a potenciaacute-las corresponsavelmente para a

unidade

O diaacutelogo eacute tambeacutem essencial para a unidade poliacutetica social e econoacutemica e o

desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos pois tal como os povos tambeacutem

os Estados tecircm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si proacuteprios e no encontro

com os outros se realizarem plenamente Por isso o isolamento seria um impedimento

insuperaacutevel para a unidade e a realizaccedilatildeo do proacuteprio continente africano

Tal diaacutelogo deve basear-se em valores princiacutepios e normas aceites e deve ser assegurado por

um sistema constitucional e de direito pela promoccedilatildeo da justiccedila da paz e da liberdade para o

continente africano pela experiecircncia da verdade e pela busca constante de compreensatildeo dos

fundamentos que tecircm plasmado a Uniatildeo Africana

O diaacutelogo natildeo se processa sem dificuldades e eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes da discussatildeo e

argumentaccedilatildeo eacute reconheciacutevel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a

dignidade pessoa humana e eacute possiacutevel a diversos niacuteveis no plano da experiecircncia quotidiana

para as questotildees sociais comunitaacuterias familiares eacuteticas e ecoloacutegicas no plano do encontro

das culturas para o respeito e o melhor conhecimento reciacuteproco no plano desportivo para o

cultivo do sentimento de pertenccedila a um todo continental no plano poliacutetico para questotildees que

dizem respeito agrave seguranccedila econoacutemica cultural e juriacutedica no plano militar para questotildees que

dizem respeito agrave garantia da seguranccedila e integridade territorial bem como agrave erradicaccedilatildeo de

conflitos em Aacutefrica

Trata-se de um diaacutelogo gradual e sempre pronto a recomeccedilar Um diaacutelogo que natildeo obriga mas

se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado trata-se de um

diaacutelogo que natildeo eacute apenas instrumental nem nasce de taacutecticas ou de interesses mas um diaacutelogo

sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

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concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Enfim trata-se de uma actividade que apresenta motivaccedilotildees exigecircncias e dignidade proacutepria e

implica um muacutetuo esforccedilo de compreensatildeo por parte dos interlocutores que se compreendem

verdadeiramente quando descobrem aleacutem dos laccedilos que os unem e os integram uns aos outros

e dos valores a eles comuns as razotildees ideais em que cada um deles se inspira para realizaacute-los

Outrossim tal diaacutelogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente beneacuteficos como o

aumento da maturidade dos africanos ndash numa penetraccedilatildeo mais autecircntica da complexa

realidade do mundo hodierno em que a Aacutefrica se move ndash a resoluccedilatildeo dos problemas a

superaccedilatildeo dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de

todas as naccedilotildees bem como pela seguranccedila e bem-estar do continente africano

Tudo isso levanta muitos e difiacuteceis problemas de ordem econoacutemica social e poliacutetica Poreacutem

estaacute de facto que diante das diferenccedilas e dos antagonismos que o continente africano vive

actualmente soacute a consciecircncia da comum humanidade e o diaacutelogo franco luacutecido e proveitoso

pode permitir construir um caminho de toleracircncia e aceitaccedilatildeo muacutetuas para a realizaccedilatildeo de uma

convivecircncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da

pessoa humana da mobilidade interna da integraccedilatildeo soacutecio-econoacutemica do continente e do

florescimento de um mercado interno Isto faraacute tambeacutem com que os africanos natildeo sejam

meros fornecedores de mateacuterias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos

estrangeiros mas produtores e consumidores de produtos do seu proacuteprio continente

Um diaacutelogo natildeo inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade mas um diaacutelogo

franco na base da consciecircncia de pessoas humanas e do respeito reciacuteproco De facto sem

diaacutelogo franco natildeo haacute progresso porquanto o progresso eacute liberdade e somente a verdade que

pode exprimir-se nos torna livres

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HISTOacuteRIA A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO

SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA

A PARTIR DE FRANTZ FANON

NLANDU MATONDO FAUSTINO a

Resumo

O presente trabalho procurou desconstruir a partir das teses de Frantz Fanon sobretudo

aquelas formuladas nos ldquoCondenados da Terrardquo a ideia de uma suposta missatildeo civilizadora

subjacente na intenccedilatildeo colonizadora consubstanciada na equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual a

civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo Partindo de uma indagaccedilatildeo da validade criticaacutevel

da equaccedilatildeo em epiacutegrafe cruzou os factos agraves doutrinas que versam sobre o fenoacutemeno da

colonizaccedilatildeo de Aacutefrica e chegou a depreender com uma certa objectividade de que a

colonizaccedilatildeo em Aacutefrica tal ficou visto por Fanon foi mais um movimento de

despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeo dos africanos em geral e dos negros em particular do que

um projecto de humanizaccedilatildeo e de emancipaccedilatildeo dos indiacutegenas de Aacutefrica negra Ficou portanto

evidente ao longo deste trabalho de que a colonizaccedilatildeo foi uma violecircncia que extraiu a sua

originalidade na substantivaccedilatildeo do colonizado Uma violecircncia que natildeo soacute presidiu ao arranjo

do mundo colonial como tambeacutem ritmou e alimentou a destruiccedilatildeo antropoloacutegica e ontoloacutegica

do negro-africano incluindo todas as suas formas sociais arrasou completamente os seus

sistemas de referecircncias econoacutemicas os seus modos ldquoessendi et operandirdquo e decretou a crise

soacutecio-cultural dos povos negros de Aacutefrica

Palavras-chaves colonizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo violecircncia despersonalizaccedilatildeo descolonizaccedilatildeo

emancipaccedilatildeo

Abstract

The present study sought to deconstruct from the theses of Frantz Fanon especially those

formulated in The Wretched of the Earthrdquo the idea of a supposed civilizing mission

underlying the colonizing intention embodied in the equation colonization equal to

civilization and paganism equal to savageryrdquo Crossed the facts to the doctrines that focus on

a Doutorando em Filosofia na Universidade de Eacutevora Mestre em Ciecircncias da Educaccedilatildeo pela mesma

Universidade Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catoacutelica de

Angola

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the phenomenon of colonisation of Africa this was seen by Fanon was more a movement of

depersonalization of Africans in general and the negroes in particular than a draft of

humanization and emancipation of the peoples of black Africa Therefore became evident

throughout this work that the colonization was a violence that drew its originality of the

colonized

A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world as well as

marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African including all

its social forms wiped out completely their systems of economic references their modes

essendi et operandi and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa

Key words colonization civilization violence depersonalization decolonisation

emancipation

Introduccedilatildeo

A reflexatildeo em torno dos desafios da descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica continua actual e actuante em

qualquer discurso intelectual ou poliacutetico sobre o estado da naccedilatildeo de muitos Estados africanos

passados que satildeo aproximadamente seis deacutecadas desde que muitos deles se tornaram

independentes Esta actualidade pode todavia natildeo parecer evidente quando o enfoque do

discurso for a colonizaccedilatildeo De facto pode parecer anacroacutenico e mesmo sintomaacutetico falar da

colonizaccedilatildeo para tentar justificar a qualquer preccedilo o subdesenvolvimento e a instabilidade

sociopoliacutetica na actualidade de muitos Estados africanos independentes Bom ou malgrado

essa sensaccedilatildeo de anacronismo que sugere uma espeacutecie de eacutepokeacute em torno do fenoacutemeno

colonial perde a sua legitimidade na medida em que a pertinecircncia do discurso sobre a

descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica torna ldquoipsis verbirdquo procedente o discurso sobre a colonizaccedilatildeo Ou

seja toda a fala em torno da descolonizaccedilatildeo sugere de uma ou de outra forma uma incursatildeo

sobre a colonizaccedilatildeo Vamos ao longo deste trabalho procurar descortinar o conceito de

colonizaccedilatildeo na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do

trampolim que pode sugerir agrave nossa cogitaccedilatildeo sobre a descolonizaccedilatildeo Para o efeito

propomos a seguinte estrutura 1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a

partir da analiacutetica de Fanon 2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo

igual a civilizaccedilatildeo 3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel

deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo 4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos a uma possiacutevel

verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida 5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de

Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco 6 Desconstruindo o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista

erguida na recusa do humano enquanto diferente 7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta do

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mundo colonial uma antiacutetese agrave pretensatildeo de uma suposta missatildeo emancipadora dos

africanos subjacente na intenccedilatildeo colonizadora

1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a partir da sua analiacutetica

em Fanon

Natildeo eacute possiacutevel falar da descolonizaccedilatildeo em Fanon sem falar da colonizaccedilatildeo enquanto

referecircncia inofuscaacutevel e movimento historicizante que confere corpo e sentido mateacuteria e

forma a qualquer anaacutelise criacutetica do projecto de descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica Esta eacute de resto a

loacutegica que suporta o argumento de Fanon que passamos a transcrever

a descolonizaccedilatildeo [hellip] eacute um processo histoacuterico [hellip] natildeo pode ser

compreendida natildeo encontra a sua inteligibilidade natildeo se torna transparente

para si mesma senatildeo na exacta medida em que se faz discerniacutevel o

movimento historicizante que lhe daacute forma e conteuacutedo ndash a opressatildeo colonial

(Fanon 1968 p 26 ou Fanon 2002 p 452)

Desde esta perspectiva a anaacutelise sobre a colonizaccedilatildeo ganha uma particular relevacircncia na

medida em que se nos apresenta natildeo soacute como fundamento a partir do qual se pode erguer

qualquer avaliaccedilatildeo sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleoloacutegico da luta

dos africanos rumo agrave sua efectiva emancipaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo no universalismo humano

mas tambeacutem como pretexto para (re) pensar o caminho de superaccedilatildeo das novas formas de

colonizaccedilatildeo que grassam ainda Aacutefrica e que em si constituem um verdadeiro impasse para

uma descolonizaccedilatildeo efectiva do continente africano Importa desde jaacute sublinhar que esta

reflexatildeo de tipo histoacuterico natildeo encontra o seu real significado na descriccedilatildeo dos factos que ela

encerra nem na narraccedilatildeo histoacuterica que a constitui O seu real alcance reside na sua capacidade

de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a

descolonizaccedilatildeo vislumbrado pelos africanos passados que satildeo cinquenta e sete anos apoacutes a

morte de Fanon

Tem-se com efeito e natildeo poucas vezes associado a colonizaccedilatildeo de Aacutefrica a um projecto

civilizador ou modernizador que teraacute sido frustrado ou interrompido por uma espeacutecie de

ambiccedilatildeo irracional dos africanos admitindo-se deste modo a hipoacutetese segundo a qual a

colonizaccedilatildeo teraacute sido um ldquoprojecto interrompidordquo de civilizaccedilatildeo (modernizaccedilatildeo) da Aacutefrica e

dos africanos De recordar que o ldquodiscurso sobre o colonialismordquo de Aimeacute Ceacutesaire resulta

precisamente da necessidade de dissertar sobre uma possiacutevel analogia entre a ldquocolonizaccedilatildeo e

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a civilizaccedilatildeordquo Provocaccedilatildeo ou natildeo mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer

sobre o binocircmio colonizaccedilatildeo-civilizaccedilatildeo pelo Franco-Senegalecircs Alioune Diop fundador e

Director da Revista ldquoPreacutesence Africainerdquo em Paris 1950 insinua a existecircncia de tendecircncias

que aproximavam a colonizaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo Esta provocaccedilatildeo tal como nos parece ser natildeo

deixa de ser no plano metodoloacutegico um bom ponto de partida para uma discussatildeo mais

objectiva e criacutetica da concepccedilatildeo fanoniana do colonialismo porquanto nos permite lanccedilar a

discussatildeo levantando uma seacuterie de perguntas tais como 1 Eacute possiacutevel sustentar por via de

argumentaccedilatildeo uma provaacutevel analogia entre os dois conceitos em anaacutelise a saber colonizaccedilatildeo

e civilizaccedilatildeo 2 Teraacute havido realmente um plano colonial de civilizar ou modernizar a

Aacutefrica em proveito dos africanos 3 Era sensato legitimar a opressatildeo colonial a partir dos

progressos alcanccedilados nas coloacutenias de Aacutefrica durante a administraccedilatildeo colonial Dito de outro

modo Seraacute que os niacuteveis de desenvolvimento conseguidos em vaacuterios domiacutenios social

administrativo tecnoloacutegico e poliacutetico sob o regime colonial conferiam efectivamente a

merecida dignidade a Aacutefrica e aos africanos 4 Teraacute a Aacutefrica realmente recusado o

desenvolvimento como diria Axel Kabu ao engajar-se na luta pela descolonizaccedilatildeo 5 E hoje

em plena era poacutes-colonial poderatildeo os africanos afirmar com realismo franqueza e

frontalidade que os ideais que nortearam o projecto da descolonizaccedilatildeo foram alcanccedilados 6

Teraacute alguma razatildeo de ser o postulado segundo o qual o projecto de descolonizaccedilatildeo teraacute sido

abortado na sua menor idade admitindo-se deste modo um possiacutevel equiacutevoco entre os

liacutederes e os intelectuais africanos que teratildeo confundido as independecircncias (enquanto meio)

com a descolonizaccedilatildeo (enquanto fim da longa marcha usando a expressatildeo de Reneacute Dumont

rumo a um continente mais humano mais livre mais autoacutenomo mais justo e mais proacutespero)

Ao longo desta reflexatildeo tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas

perguntas tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon

2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeo

Qual teraacute sido o verdadeiro retrato do colonialismo um processo de civilizaccedilatildeo dos

chamados indiacutegenas ou um ldquomovimento de despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeordquo dos povos

africanos Eacute evidente que para Fanon esta questatildeo nem sequer merece ser colocada De

facto o jovem martinicano eacute bastante incisivo e objectivo na sua anaacutelise Para ele a

colonizaccedilatildeo eacute antes de mais uma ldquoviolecircnciardquo conceito que de resto daacute tiacutetulo ao Iordm capiacutetulo

do Les Damneacutes de la Terre (Fanon 1968 p23 ou 2002 p448) Na sua oacuteptica a violecircncia foi

precisamente o elemento estrateacutegico e estruturante da loacutegica colonial Trata-se de uma

violecircncia que extrai sua originalidade na substantificaccedilatildeo do colonizado que a proacutepria

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situaccedilatildeo colonial segrega e alimenta Aliaacutes o encontro entre o colonizador e o colonizado diz

Fanon teve sempre o retrato de violecircncia e nunca foi expressatildeo de uma vontade civilizadora

ou humanizadora Pode se ler em Fanon que a colonizaccedilatildeo eacute a categorizaccedilatildeo de um encontro

que

se desenrolou sob o signo da violecircncia e sua coabitaccedilatildeo ndash ou melhor

a exploraccedilatildeo do colonizado pelo colono ndash foi levada a cabo com

grande reforccedilo de baionetas e canhotildees [hellip] A violecircncia [hellip] presidiu

ao arranjo do mundo colonial [hellip] ritmou incansavelmente a

destruiccedilatildeo das formas sociais indiacutegenas [hellip] arrasou completamente

os sistemas de referecircncias da economia os modos da aparecircncia e do

vestuaacuterio do colonizado (Fanon 1968 pp 26 e 30)

Eacute possiacutevel aproximar em boa verdade uma situaccedilatildeo de uma clara alienaccedilatildeo antropoloacutegica

fazendo feacute agrave descriccedilatildeo de Fanon a um projecto de civilizaccedilatildeo sem cair em sofismas que

desemboquem numa contradiccedilatildeo De notar que este mesmo entendimento de Fanon eacute

corroborado pelo seu antigo mestre Aimeacute Ceacutesaire que parafraseamos nos seguintes termos a

colonizaccedilatildeo enquanto violecircncia no sentido mais bruto da palavra eacute uma autecircntica antiacutetese da

civilizaccedilatildeo ela por natureza desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado A

colonizaccedilatildeo legitima o ilegiacutetimo e normaliza o anormal pode-se matar agrave vontade na

Indochina torturar em Madagaacutescar prender na Aacutefrica negra seviciar nas Antilhashellip (cfr

Ceacutesaire 1978 pp 7 e 14) Natildeo eacute preciso muita hermenecircutica para apreender nos dizeres de

Sartre de que a violecircncia constitui o ldquomodus operandirdquo proacuteprio do sistema colonial que nem

as suas geniais trapaccedilas conseguem disfarccedilar A peculiaridade do agir colonial distancia a

colonizaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo E para deixar tudo a nu Sartre faz a seguinte inconfidecircncia

ldquonossos soldados no ultramar rechaccedilam o universalismo metropolitano

aplicam ao geacutenero humano o numerus clausus uma vez que ningueacutem pode

sem crime espoliar seu semelhante escravizaacute-lo ou mataacute-lo eles datildeo por

assente que o colonizado natildeo eacute o semelhante do homem Nossa tropa de

choque recebeu a missatildeo de transformar essa certeza abstrata em realidade a

ordem eacute rebaixar os habitantes do territoacuterio anexado ao niacutevel do macaco

superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [hellip] nada

deve ser poupado para liquidar as suas tradiccedilotildees para substituir a liacutengua deles

pela nossa para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossahelliprdquo (Sartre Les

Damneacutes 1961 p 9)

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Esta violecircncia que parte do plano simboacutelico conceitual atingiu o seu ponto auge com

desterramento dos indiacutegenas feitos estrangeiros na sua proacutepria terra como foi o caso do

coacutedigo civil imposto aos argelinos visando regular o direito agrave propriedade e agrave heranccedila com a

uacutenica finalidade de desterrar os autoacutectones tirando-lhes o que de mais precioso tinha ndash a sua

proacutepria terra De realccedilar que o referido coacutedigo tinha aprovado a titularidade comum de terras

entre a classe-meacutedia francesa e a sociedade tribal como estrateacutegia de expropriaccedilatildeo de terras

aos autoacutectones atraveacutes de poliacuteticas especulativas (cfr Sartre 1967 p39)

Desde este ponto de vista pode-se aferir que os ldquomodus essendi et operandirdquo do colonialismo

configuravam em certa medida aquilo que Sartre chamou de ldquoimoralidade narcisistardquo da

ambiccedilatildeo ocidental da qual emerge o impulso que modifica inevitavelmente qualquer

indiviacuteduo que adere agrave dinacircmica colonial dando-lhe boa consciecircncia e boas razotildees de ver no

outro (natildeo branco) um simples animal Esta constataccedilatildeo sartriana valida sem qualquer

sombra de duacutevida a convicccedilatildeo de Ceacutesaire para quem o colonialismo eacute brutalidade

intimidaccedilatildeo crueldade sadismo choque violaccedilatildeo roubo desprezo culturas obrigatoacuterias

desconfianccedila massas aviltadas ausecircncia de contacto humano relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de

submissatildeo que transformam o negro colonizado em criado ajudante comitre e instrumento de

produccedilatildeo (cfr Ceacutesaire 1978 p25) A partir destes pressupostos torna-se de facto forccediloso

concluir que natildeo existe tal como defende Fanon qualquer sustentabilidade quer

argumentacional quer factual para a validaccedilatildeo da equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeordquo

pois os factos atestam que colonizaccedilatildeo eacute o oposto de civilizaccedilatildeo Mas uma deacutemarche

etimoloacutegica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano teoacuterico

conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem

3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo

Para fundamentar com maior objectividade o alcance da deduccedilatildeo decorrente da narrativa de

Fanon em relaccedilatildeo a conjecturada correlaccedilatildeo entre os dois conceitos em anaacutelise pareceu-nos

mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos no sentido de os tornar mais

inteligiacuteveis para daiacute depreender o seu justo significado e consequentemente confirmar ou

infirmar a suposta correlaccedilatildeo entre ambas Conveacutem no entanto sublinhar que o caraacutecter

polisseacutemico dos conceitos em epiacutegrafe natildeo nos permite ignorar o facto de que natildeo eacute tatildeo faacutecil

quer do ponto de vista conceitual quer do ponto de vista factual traccedilar a linha de

convergecircncia ou de divergecircncia entre eles pois o proacuteprio caraacutecter multidisciplinar que o

conceito de civilizaccedilatildeo envolve hoje confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta

qualquer entendimento homogeacuteneo linear e conclusivo Acresce-se a este dado o facto de

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que nos dias que correm o conceito de civilizaccedilatildeo eacute reivindicado como objeto de estudo da

antropologia da ciecircncia da cultura do direito da histoacuteria da filosofia poliacutetica da sociologia

poliacutetica da religiatildeo etc proporcionando-lhe um enquadramento episteacutemico bastante

complexo que recusa qualquer unicidade semacircntica No entanto um recuo estrateacutegico e

metodoloacutegico ao seacuteculo das luzes onde o significado do termo ldquocivilizaccedilatildeordquo emergiu da

proacutepria raiz etimoloacutegica do conceito ldquocivilisrdquo ldquocivisrdquo cujo entendimento remetia agrave acccedilatildeo

de tornar civil ou urbano pode permitir uma espeacutecie de unidade de sentido a partir do qual se

pode fundamentar a possiacutevel analogia conceitual destes dois termos

A Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura natildeo foge muito desta percepccedilatildeo quando define a

colonizaccedilatildeo como um fenoacutemeno sociopoliacutetico baseado na dependecircncia de um grupo humano

ou de um territoacuterio a um outro que exerce nele influecircncias demograacuteficas econoacutemicas

culturais sociais ou poliacuteticas Entendimento agrave luz do qual alguns teoacutericos nos seacuteculos XIX e

XX basearam a sua definiccedilatildeo de colonizaccedilatildeo como atividade pela qual um povo de cultura

superior ocupa e organiza por conta proacutepria um territoacuterio habitado por povos de cultura

inferior estendendo a sua soberania desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas

segundo o princiacutepio da civilizaccedilatildeo Observa-se aqui a missatildeo civilizadora subjacente ao

conceito da colonizaccedilatildeo enquanto fenoacutemeno sociopoliacutetico cuja meta eacute levar as coloacutenias ao

desenvolvimento cultural social econoacutemico e cientiacutefico ou seja agrave modernizaccedilatildeo do territoacuterio

ocupado Este eacute de resto o significado que decorre do entendimento filoloacutegico do conceito de

colonizaccedilatildeo cuja estrutura originaacuteria se funda em torno de dois pressupostos basilares

nomeadamente o cultivo da terra isto eacute o desenvolvimento econoacutemico e o cultivo dos

homens ou seja a promoccedilatildeo sociocultural e econoacutemica das populaccedilotildees consideradas na

posiccedilatildeo receptiva (cfr Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura nordm5 p996ss)

De salientar que o conceito de civilizaccedilatildeo emergiu e muito provavelmente antes de qualquer

outro paiacutes no contexto sociocultural francecircs e fazia referecircncia essencialmente a trecircs

dimensotildees que vale a pena enumerar a primeira era referente ao primado da vida em

comunidade sobre a vida solitaacuteria a segunda fazia alusatildeo ao primado da vida na cidade sobre

a vida no campo a uacuteltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o

selvagem isto eacute o homem moderno distinguido pela ciecircncia e pela teacutecnica sobre o baacuterbaro

(cfr Enciclopeacutedia LB da Cultura nordm5) Neste contexto teoacuterico-conceitual civilizar era de

facto sinoacutenimo de trabalhar na integraccedilatildeo dos indiacutegenas na comunidade metropolitana na

modernizaccedilatildeo da vida do campo isto eacute levando as condiccedilotildees da cidade ao campo (energia

eleacutectrica aacutegua potaacutevel educaccedilatildeo escolar assistecircncia meacutedica e medicamentosahellip) e na policcedilatildeo

do baacuterbaro pela chamada ldquoculturardquo cientiacutefica e tecnoloacutegica

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Este parece ser o entendimento mais viaacutevel para o exame a que nos propusemos da

correlaccedilatildeo destes dois vocaacutebulos O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e

sustentabilidade episteacutemica no Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea editorial

Verbo acresce ainda mais o nosso interesse por esta perspectiva (cfr 2001 p833) Segundo

o Dicionaacuterio ora referenciado a ldquocivilizaccedilatildeordquo eacute a acccedilatildeo ou o resultado de transmitir

conhecimentos comportamentos e teacutecnicas consideradas desejaacuteveis numa sociedade moderna

Por conseguinte civilizar eacute dar caracteriacutesticas proacuteprias de sociedades teacutecnicas cientiacutefica e

economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas ou ainda dar haacutebitos e ajudar a

desenvolver comportamentos desejaacuteveis numa sociedade desenvolvida Conclui-se pois que

do ponto de vista conceitual ou definicional existem razotildees para fundamentar a presumiacutevel

correlaccedilatildeo entre os conceitos de ldquocolonizaccedilatildeo e civilizaccedilatildeordquo Mas a natildeo homogeneidade de

compreensatildeo na interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo destes conceitos agrave partida polisseacutemicos e

multidisciplinares e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descriccedilotildees fanonianas

obrigam-nos a dar um passo a mais espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e

continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo

4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos agrave uma possiacutevel verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de

partida

Se eacute possiacutevel aferir do ponto de vista definicional uma certa correlaccedilatildeo analoacutegica entre os

conceitos que fundam a nossa equaccedilatildeo de partida tal como ficou patenteado no ponto

anterior do ponto de vista doutrinal e factual esta correlaccedilatildeo carece de uma anaacutelise

minuciosa que permita apurar se a propensatildeo civilizadora inerente ao conceito de colonizaccedilatildeo

pelo menos no plano teoacuterico-conceitual conseguiu vincar como aspecto norteador da acccedilatildeo

colonial ou teraacute por alguma razatildeo ficado ofuscada durante o processo colonial Impotildee-se-

nos a este niacutevel retomar o ponto de vista de Fanon para quem a colonizaccedilatildeo eacute antes de

mais uma violecircncia que se consubstancia na animalizaccedilatildeo e na aniquilaccedilatildeo dos (negros)

colonizados Para sustentar o seu argumento Fanon comeccedila por relembrar a atitude do colono

que em vaacuterias circunstacircncias fez recurso a ldquouma linguagem zooloacutegica usando expressotildees

como ldquo[hellip] hordas fedor buliacutecio [hellip] e quando os quisesse descrever com mais exatidatildeo

[hellip] recorria constantemente ao bestiaacuteriordquo para designar os negros (Fanon 1968 p 31 ou

2002 p 456) Esta animalizaccedilatildeo do colonizado eacute para Fanon a expressatildeo mais eloquente de

uma violecircncia absoluta que desenraiacuteza o aviltado de sua humanidade E para reforccedilar a sua

criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista o colono via-se na necessidade de

encontrar novos atributos que pudessem explicitar da melhor maneira possiacutevel a real

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dimensatildeo semacircntica subjacente nos conceitos de ldquoindiacutegena e selvagemrdquo que em si jaacute natildeo

eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de

Aacutefrica entre outros

demografia galopante massas histeacutericas rostos de onde fugiu qualquer traccedilo

de humanidade corpos obesos que natildeo se assemelham mais a nada corte sem

cabeccedila nem cauda crianccedilas que datildeo a impressatildeo de natildeo pertencerem a

ningueacutem preguiccedila estendida ao sol ritmo vegetalhellip (Fanon 1968 p 32 ou

Fanon 2002 p457)

A validade histoacuterica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento Eacute sensato

falar de um projecto de civilizaccedilatildeo de animais sem converter a proacutepria racionalidade

civilizadora numa irracionalidade animal Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade

animal de uma civilizaccedilatildeo cuja racionalidade eacute o epicentro da sua acccedilatildeo muitos preferiram

considerar as afirmaccedilotildees de Fanon de irresponsaacuteveis e repletas de inverdades qualificando o

proacuteprio Fanon de agitador e instigador da violecircncia ante a sua incisiva caracterizaccedilatildeo do

sistema colonial Dentre outros podemos citar Alain Finkierkraut cujo pensamento mais do

que uma antiacutetese agraves teses de Fanon eacute uma tentativa de demonstraccedilatildeo da derrota do projecto da

descolonizaccedilatildeo Piegraverre Bourdieu de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que

pesam sobre Fanon eacute paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010 p 109)

como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus Simone de

Beauvoir Germaine Tillion Jasques Amrouche e outros que como Fanon e Sartre tiveram a

ousadia de denunciar cada um agrave sua maneira a violecircncia inerente ao sistema colonial

forjando novas noccedilotildees de identidade poliacutetica que continuam a influenciar o debate poliacutetico na

actualidade

No seu ldquomarxismo encontra Bourdieurdquo Burawoy procura mostrar que apesar da enorme

distacircncia que separa o quadro teoacuterico-reflexivo de Bourdieu e Fanon nomeadamente ldquoo

marxismo terceiro-mundista de um lado e a teoria da modernizaccedilatildeo de outro ladordquo o

pensamento destes dois autores apresenta inuacutemeras similitudes sobretudo entre o Fanon do

Le Damneacutes de la terre de 1961 e o Bourdieu de Sociologie de lrsquoAlgerie de 1958 Embora

natildeo seja objecto deste debate julgamos oportuno e procedente mencionar a tiacutetulo de

exemplo algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violecircncia como uma das

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave natureza proacutepria do sistema colonial e nos termos muito

semelhantes aqueles que aparecem nas paacuteginas 26 e 30 do Le Damneacutes de la terre de Fanon

(cfr 1968) ao afirmar

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o sistema colonial enquanto tal natildeo poderaacute ser destruiacutedo senatildeo atraveacutes de

um questionamento radical Todas as mutaccedilotildees satildeo submetidas agrave lei de tudo

ou nada Este facto estaacute na consciecircncia pelo menos de forma confusa quer

entre os membros da sociedade dominante quer entre os membros da

sociedade dominada [hellip] Mas eacute preciso admitir que o primeiro e uacutenico

questionamento radical do sistema eacute aquele que o proacuteprio sistema engendrou

isto eacute a revoluccedilatildeo contra os princiacutepios que o fundaram [hellip] A situaccedilatildeo

colonial criou o despreziacutevel e ao mesmo tempo o desprezo mas criou

tambeacutem a revolta contra o desprezo Assim cresce cada vez mais a tensatildeo

que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu 1958 pp 28 e 129)

Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu numa clara aproximaccedilatildeo da

colonizaccedilatildeo agrave violecircncia De facto a violecircncia simboacutelica e real eacute depreendida em muitos

cenaacuterios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial

Vaacuterios satildeo os etnoacutelogos e ideoacutelogos que nas entrelinhas do seu pensamento conferem uma

certa razatildeo a um tal pressuposto Alfred de Vigny por exemplo faz jus a esta violecircncia

simboacutelica ao afirmar sem rodeios que o mundo natildeo europeu eacute um mundo animal mundo dos

baacuterbaros mundo da morte e consequentemente uma ameaccedila ao mundo europeu Partindo

deste postulado deduz-se que para De Vigny a colonizaccedilatildeo era um processo compulsivo de

civilizaccedilatildeo isto eacute uma opccedilatildeo para a vida e tal como diz ldquose se prefere a vida agrave morte tem de

se preferir a civilizaccedilatildeo agrave barbaridaderdquo que natildeo eacute apenas um reino animal e de morte mas

tambeacutem uma ameaccedila agrave civilizaccedilatildeo Em virtude disto conclui De Vigny ldquonenhum povo tem o

direito de permanecer baacuterbaro ao lado das naccedilotildees civilizadasrdquo Depreende-se daqui que a

uacutenica loacutegica vaacutelida eacute a disjuntiva ldquoto be or not to berdquo como diria Shakespeare ldquothat is the

questionrdquo (cfr De Vigny 2003 p87)

Esta apreciaccedilatildeo lacoacutenica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que como De

Vigny tambeacutem considera a colonizaccedilatildeo como uma obra civilizadora uma espeacutecie de direito e

dever das sociedades evoluiacutedas Folliet baseia o seu argumento nas caracteriacutesticas

heterogeacuteneas das sociedades isto eacute nos desniacuteveis existentes entre as sociedades colonizadas e

colonizadoras quer nos planos econoacutemico administrativo cultural social e poliacutetico quer nos

planos cientiacutefico e tecnoloacutegico Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizaccedilatildeo

seria possivelmente o processo de supressatildeo destes desniacuteveis sociais com o auxiacutelio das

sociedades mais desenvolvidas Pelo que a manutenccedilatildeo destes desniacuteveis como forma

hegemoacutenica de controlo ou de manutenccedilatildeo de superioridade foge do acircmbito da colonizaccedilatildeo

para desembocar no campo de acccedilatildeo do colonialismo (cfr Folliet 1932 p 75) Eacute caso para

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dizer que o entendimento teoacuterico de Folliet apresenta uma diferenccedila niacutetida entre a colonizaccedilatildeo

que seria para o autor o sinoacutenimo de civilizaccedilatildeo e o colonialismo que pode ser visto como

processo de exploraccedilatildeo e subjugaccedilatildeo das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades

desenvolvidas

Mas eacute preciso dizer que se do ponto de vista conceitual Folliet deu um tamanho salto

qualitativo propiciador de uma possiacutevel coabitaccedilatildeo paciacutefica entre o colono e o colonizador

aludindo agrave missatildeo civilizadora da colonizaccedilatildeo do ponto de vista praacutetico o discurso follietiano

deu lugar a muitas ambiguidades sobretudo quando o proacuteprio autor considera a colonizaccedilatildeo

como forma mais viaacutevel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em

territoacuterios subdesenvolvidos e valorizaacute-los para o bem-comum da humanidade sem definir as

regras nem as modalidades ou os viacutenculos contractuais para tal Com efeito Folliet considera

um dado assente que ldquoas naccedilotildees economicamente mais evoluiacutedas tecircm o direito de explorar as

riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagensrdquo (Folliet 1932 pp 101 e 268) E

para natildeo camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violecircncia Folliet

defende a necessidade da manutenccedilatildeo das desigualdades entre o colonizador e o colonizado

numa clara opccedilatildeo pelo colonialismo em detrimento da colonizaccedilatildeo contrariando a sua proacutepria

doutrina com o seguinte posicionamento

a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores de modo que o sujeito

colonizado natildeo passe numa vontade de vinganccedila a esquecer a sua

heteronomia absoluta eacute portanto uacutetil e necessaacuterio que as mais vastas

propriedades as mais ricas induacutestrias os mais frutuosos comeacutercios pertenccedilam

aos representantes da raccedila superior (Folliet 1932 p228)

Uma possiacutevel deduccedilatildeo leva-nos por um lado a aferir a inadequaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida

com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analiacuteticos da questatildeo em

estudo e a considerar por outro lado a emergecircncia da categoria de dominaccedilatildeo como outro

elemento caracteriacutestico da estrateacutegia colonial na relaccedilatildeo colonizadocolonizador Este

princiacutepio que eacute em si mesmo o elemento estruturante da tensatildeo e ao mesmo tempo

provocador da dialeacutectica do senhor e do escravo permite-nos um salto para o exame da

possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a Aacutefrica em proveito dos

africanos

5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco

Eacute possiacutevel compatibilizar o instinto de dominaccedilatildeo com a vontade de promover ou de

emancipar Guillaume Sureacutena num movimento contraacuterio ao nosso itineraacuterio apresenta um

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discurso capaz de relanccedilar a discussatildeo No seu artigo intitulado ldquoPsycanalyse et

anticolonialismerdquo Sureacutena lamenta o desperdiacutecio de uma oportunidade que teria resultado num

possiacutevel encontro inter-civilizacional frutiacutefero e que no entanto teraacute sido frustrado pela

vontade dominadora do instinto colonial Os textos surenianos insinuam que do ponto de

vista praacutetico a civilizaccedilatildeo europeia nunca teve qualquer plano de promover nem de

reconhecer as outras civilizaccedilotildees como parceiras importantes para um crescimento conjunto

A sua ambiccedilatildeo foi sempre de conhecer para dominar e subjugar como ficou explicitado nesta

passagem

este encontro de civilizaccedilotildees tatildeo diferentes poderia ter sido o momento de um

intercacircmbio fecundo e de um enriquecimento muacutetuo como lamentou o

antropoacutelogo francecircs Claude Levi-Strauss Mas para a metafiacutesica europeia

desde a Greacutecia antiga o saber foi sempre o equivalente de ldquomaitriserrdquo isto eacute

de dominar As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados

sob os conceitos com partiacuteculas latinas e gregas Os locais geograacuteficos

receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridiacuteculos por

falta de qualquer relaccedilatildeo com os espiacuteritos que os habitavam outrora (Sureacutena

1943 p 4)

Diga-se pois de passagem que foi assim na Greacutecia antiga foi assim ateacute ao seacuteculo XX e

nada justifica que natildeo continue assim nos dias que hatildeo-de vir Mas a questatildeo eacute qual o destino

que o instinto dominador das naccedilotildees pode proporcionar agrave espeacutecie humana Conveacutem recordar

que num passado mais recente da histoacuteria da Europa a colonizaccedilatildeo assumiu o caraacutecter de

dominaccedilatildeo dos povos e dos seus recursos naturais Os europeus sempre mostraram-se mais

interessados com uma partenogeacutenese profunda dos africanos para os submeter mais

facilmente e natildeo para os civilizar De facto desde o iniacutecio do seacuteculo XVII com as grandes

navegaccedilotildees e os descobrimentos das ameacutericas o interesse em explorar e conquistar novas

terras ganhou um enorme vigor na Europa e com ele emergiu tambeacutem a chamada

colonizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de povoamento A primeira forma de colonizaccedilatildeo foi o momento

no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as coloacutenias tinham uma

utilidade meramente lucrativa junto da metroacutepole A segunda acontecia de maneira

espontacircnea mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econoacutemica

com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem aiacute acorria

Muitos estudos mostram que no continente africano este tipo de colonizaccedilatildeo foi sempre

acompanhado de desterramento de zonas araacuteveis ou de pastagem dos autoacutectones bem como

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da supressatildeo dos eventuais direitos que detinham1 Embora referindo-se a um contexto muito

mais preteacuterito ao de Fanon Ceacutesaire Sartre e outros Iva Cabral traz ao de cima a ideia de

dominaccedilatildeo e de exploraccedilatildeo como elementos catalisadores do interesse europeu em Aacutefrica

ajudando assim na desconstruccedilatildeo da hipoacutetese de um possiacutevel plano colonial para o

desenvolvimento de Aacutefrica e dos africanos De facto Iva Cabral afirma que a experiecircncia

ultramarina se resumia na conquista das praccedilas do Norte de Aacutefrica e na fixaccedilatildeo de guarniccedilotildees

e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territoacuterios tropicais de

Aacutefrica natildeo pelo desejo de levar a civilizaccedilatildeo agraves terras longiacutenquas de Aacutefrica mas por causa

dos inuacutemeros privileacutegios econoacutemicos e sociais que tinham os quais incluiacuteam em alguns

casos a sociedade escravocrata de produccedilatildeo no Atlacircntico (cfr 2015 p25)

Este suporte histoacuterico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra

um reforccedilo na posiccedilatildeo de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa

anaacutelise sobre as categorias de dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo como sustentaacuteculos da acccedilatildeo

colonizadora quando num tom autocriacutetico apontando o dedo aos seus irmatildeos europeus

pinta sem complexo nem contemplaccedilotildees o verdadeiro retrato da Europa colonial permitindo

a apreensatildeo da razatildeo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opressatildeo contra os

autoacutectones em territoacuterios colonizados sobretudo em Aacutefrica nestes termos

sabeis muito bem que somos exploradores Sabeis que nos apoderamos do

ouro e dos metais e posteriormente do petroacuteleo dos continentes novos e que

os trouxemos para as velhas metroacutepoles Com excelentes resultados palaacutecios

catedrais capitais industriais [hellip] A Europa empanturrada de riquezas

concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes entre noacutes

lucramos com a exploraccedilatildeo colonial (Fanon 1968 p 17)

Se tomamos a seacuterio as diversas constataccedilotildees dos autores supra mencionados torna-se

insustentaacutevel a hipoacutetese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos

africanos e da Aacutefrica num contexto de exploraccedilatildeo no seu sentido mais radical e mais bruto do

termo isto eacute uma exploraccedilatildeo natildeo soacute de recursos naturais dos territoacuterios colonizados mas

tambeacutem do seu proacuteprio capital humano Num tal contexto aproximar a colonizaccedilatildeo da

civilizaccedilatildeo eacute admitir agrave partida uma ambiguidade semacircntica na compreensatildeo destes dois

conceitos Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade Ceacutesaire diz que a colonizaccedilatildeo natildeo

deve ser confundida com uma empresa filantroacutepica nem com uma nobre vontade de recuar as

fronteiras da ignoracircncia da doenccedila da tirania e ateacute mesmo da propagaccedilatildeo de Deus e muito

1 Cfr httpsptwikipediaogwikicolonizaccedilatildeo Enciclopeacutedia livre 15022017

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menos com uma poliacutetica de extensatildeo dos direitos do povo colonizado como pretendeu o

pedantismo cristatildeo que concebeu o referido equiacutevoco ao enunciar uma equaccedilatildeo eacutetica e

religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria tornando-se assim responsaacutevel pelas consequecircncias

abominaacuteveis decorrentes dos actos coloniais cujas viacutetimas seriam os iacutendios os amarelos e os

negros (cfr Ceacutesaire 1978 pp14-15)

Pode se depreender dos textos de Ceacutesaire que a colonizaccedilatildeo eacute a manifestaccedilatildeo sem precedente

da ganacircncia do aventureiro e do pirata do comerciante e do armador do pesquisador de ouro

e do mercado do apetite e da forccedila tendo por detraacutes a sombra maleacutefica projetada de uma

forma de civilizaccedilatildeo que a dado momento da sua histoacuteria se viu obrigada internamente a

alargar agrave escala mundial a concorrecircncia das suas economias Se natildeo como se pode perceber

que a Franccedila em particular e a Europa em geral conseguissem progressivamente tal como

alude Dino Constantini transformar os princiacutepios democraacuteticos e humanistas tatildeo-reclamados

naquela circunscriccedilatildeo do globo em instrumentos de justificaccedilatildeo de dominaccedilatildeo com regulares

violaccedilotildees nas coloacutenias dando lugar a uma degeneraccedilatildeo sem precedente de uma suposta

ldquomissatildeo civilizadorardquo da Europa em Aacutefrica (cfr Constatini 2008 pp 33 e 53) Para pocircr a nu

o paradoxo de uma civilizaccedilatildeo dita humanista mas na praacutetica contestadora da proacutepria

humanidade no ldquodiferenterdquo Constatini evoca o coacutedigo civil de 1791 que coloca as coloacutenias

fora do direito comum institucionalizando uma cisatildeo social juridicamente fundamentada

entre as populaccedilotildees brancas e negras legitimando ao mesmo tempo a violecircncia primeiro no

plano simboacutelico e posteriormente no plano concreto numa clara declaraccedilatildeo de recusa de

reconhecimento e de integraccedilatildeo dos negros na vida da metroacutepole Eacute preciso dizer que esta

fragmentaccedilatildeo social legitimada pelo coacutedigo civil supra citado serviu de base para a

consagraccedilatildeo de uma nova compreensatildeo do conceito da ldquohumanidaderdquo que reduziria os

direitos humanos a direitos de cidadania reservando-os apenas aos europeus

Eacute o paradoxo no caso da Franccedila de uma Repuacuteblica que nunca deixou de contestar contra a

violecircncia de que tinha sido viacutetima em 1871 cegamente transformada numa autecircntica maacutequina

de violecircncia contra outros humanos sem qualquer fundamento legiacutetimo (cfr Constatini 2008

p 286) Eacute a contradiccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo ocidental defensora de direitos humanos mas que

natildeo hesita de reduzir os outros humanos agrave categoria de sub-humanos eacute a estrateacutegia de um

imaginaacuterio ideoloacutegico que no plano psicoloacutegico confere legitimidade a todas as barbaacuteries dos

colonizadores sobre os colonizados eacute a ironia de uma civilizaccedilatildeo cuja linha de demarcaccedilatildeo

com a barbaridade natildeo eacute expliacutecita Nem mesmo a dignidade humana universal e abstracta

apregoada pelos moralistas desta civilizaccedilatildeo como um dos valores mais sublimes entre os

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humanos em especial pela religiatildeo cristatilde mais consagrada ao serviccedilo do imperialismo do

que de Deus na oacuteptica de Ceacutesaire conseguiu dissimular a violecircncia contra o colonizado

6 Desmistificando o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista erguida na recusa do

ldquodiferenterdquo

Parece ter ficado evidente que a colonizaccedilatildeo se identificou mais com uma dinacircmica de

exploraccedilatildeo dos povos colonizados do que com um projecto de integraccedilatildeo dos indiacutegenas na

metroacutepole Iva Cabral ajuda-nos mais uma vez a perceber como a loacutegica do lucro presidiu a

todas as estrateacutegias e legislaccedilotildees coloniais Numa perspectiva simplesmente histoacuterica a autora

apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos

enunciados de Fanon que concedem sentido e substacircncia a este trabalho Com efeito Iva

Cabral afirma que as decisotildees poliacuteticas do regime colonial criavam condiccedilotildees para que os

filhos da meacutedia e baixa nobreza portuguesa neste particular mercadores e aventureiros

vislumbrassem no territoacuterio receacutem-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto

mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as

mercadorias daiacute advindas poderiam trazer (cfr Cabral 2015 p27)

Eacute loacutegico conjecturar que num tal jogo de lucro faacutecil que natildeo podia natildeo contar com os

recursos naturais e com o capital humano africanos como meios ideais para minimizar os

custos e maximizar os lucros a preocupaccedilatildeo pela integraccedilatildeo dos africanos no clube dos

evoluiacutedos e emancipados seria uma espeacutecie de atentado ao espiacuterito de negoacutecio Este postulado

encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da

recusa do ldquooutrordquo o diferente feito uma ameaccedila para o ldquonoacutesrdquo ideologicamente construiacutedo e

consagrado como o uacutenico paradigma possiacutevel de humanidade na seguinte declaraccedilatildeo

havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se

recusaram no seacuteculo de Colombo em reconhecer seus semelhantes homens

degradados que povoavam o novo mundo [hellip] Era impossiacutevel fixar um

instante do olhar no selvagem sem ler o anaacutetema escrito natildeo digo somente na

sua alma mas ateacute na forma exterior do seu corpo (De Maistre Joseph Apud

Ceacutesaire 1978 p 33)

Esta declaraccedilatildeo deixa transparecer uma inferecircncia loacutegica quase irrefutaacutevel de que o referido

anaacutetema dos indiacutegenas soacute natildeo se consumou ao extermiacutenio na perspectiva do colono por

razotildees de iacutendole puramente utilitarista como se depreende nesta passagem do jaacute citado autor

nesta transcriccedilatildeo de Ceacutesaire

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sob o ponto de vista de selecccedilatildeo consideraria deploraacutevel o desenvolvimento

numeacuterico [hellip] dos elementos amarelos e negros que seriam de eliminaccedilatildeo

difiacutecil Se todavia a sociedade futura se organizar numa base dualista com

uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raccedila inferior confiada agrave

mais grosseira matildeo-de-obra eacute possiacutevel que este uacuteltimo papel incumba aos

elementos amarelos e negros Neste caso aliaacutes natildeo seria um embaraccedilo mas

uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre Joseph Apud Ceacutesaire

1978 p 33)

Fica desvendado nestes dizeres do De Maistre o retrato do narcismo nihilista de muitos

artistas da europa colonial consubstanciado na ideia e na pretensatildeo de uma raccedila superior que

se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contaacutegio Eacute o drama de uma Europa

feita refeacutem pelo seu proacuteprio mito de pureza civilizacional uniracial um mito enganoso

pretensioso e pernicioso que potildee em causa a aspiraccedilatildeo de uma poliacutetica enquanto exigecircncia de

construccedilatildeo de uma comunidade humana na qual a consciecircncia da diversidade dos humanos e a

necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condiccedilatildeo ldquosine qua nonrdquo da

prosperidade e da sobrevivecircncia da proacutepria espeacutecie humana Lamentavelmente este

entendimento da poliacutetica como espaccedilo intermediaacuterio onde se joga a liberdade e interacccedilatildeo dos

humanos enquanto seres iguais e autoacutenomos eacute constantemente posto em causa como diz

Martha Nussbaum pelos apologistas deste mito que em todas as sociedades alimentam uma

falsa convicccedilatildeo de pureza etnocecircntrica ou ldquoclassececircntricardquo geradora de violecircncia contra os

excluiacutedos (cfr Nussbaum 2010 p 48) comprometendo a possibilidade de fazer da poliacutetica o

lugar por excelecircncia da profundidade humana

Para compreender as mais profundas motivaccedilotildees que levam os indiviacuteduos a um tal instinto

nihilista Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi que examina a possiacutevel

conexatildeo existente entre os domiacutenios psicoloacutegico e poliacutetico Com efeito Gandhi concluiacutera que

os desejos gananciosos o instinto de agressatildeo e a ansiedade narcisista satildeo empecilhos para a

edificaccedilatildeo de uma verdadeira civilizaccedilatildeo humana Pelo que a luta poliacutetica pela construccedilatildeo de

uma civilizaccedilatildeo humana assente nos pilares da liberdade empatia e igualdade deve ser

precedida de uma luta contra o medo do outro a ganacircncia e o instinto de agressatildeo narcisista

intriacutensecos em cada indiviacuteduo (cfr Nussbaum 2010 pp 48-50) E se partimos da hipoacutetese de

que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multidotildees ao oacutedio ao genociacutedio e agrave

instrumentalizaccedilatildeo dos ldquooutrosrdquo tidos como da raccedila inferior ou sub-humana ocorre mais em

contextos de pouca capacidade criacutetica ou de uma intelectualidade materialista ou

ldquoventriacuteloquerdquo usando a expressatildeo de Fabien Eboussi Boulaga isto eacute de uma intelectualidade

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corrupta desprovida de princiacutepios eacuteticos e humanistas forccediloso eacute concluir que por mais que a

Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizaccedilatildeo dos africanos natildeo teria condiccedilotildees

efectivas de o fazer ante a sua ganacircncia e arrogacircncia eurocentristas encorajadas por uma

jactacircncia ostensiva feito veneno instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do

lucro cuja solidificaccedilatildeo se daacute com o asselvajamento dos africanos em geral e dos negros em

particular

Eacute precisamente este instinto egoiacutesta e materialista que transparece na maneira como Ernest

Renan concebe o colonialismo Para ele o colonialismo eacute uma necessidade poliacutetica de

primeira ordem eacute a conquista de um paiacutes de raccedila inferior pela raccedila superior que se instala na

coloacutenia atraveacutes de um governo Trata-se na perspectiva deste autor de algo de extrema

normalidade que nada tem de chocante A colonizaccedilatildeo soacute se torna chocante se e somente se

as conquistas forem entre raccedilas iguais Assim se por um lado estas conquistas devem ser

desencorajadas e censuradas entre raccedilas iguais elas devem ser encorajadas entre as raccedilas

desiguais porque a regeneraccedilatildeo ou degeneraccedilatildeo de raccedilas inferiores pelas raccedilas superiores

deve estar na ordem providencial da humanidade ldquoRegere imperio populosrdquo eis a nossa

vocaccedilatildeo A natureza criou uma raccedila de trabalhadores industriais ndash eacute a raccedila chinesa uma de

jornaleiros agriacutecolas ndash eacute a raccedila negra [hellip] uma raccedila de senhores e de soldados eacute raccedila

europeiardquo Nesta oacuteptica a reduccedilatildeo desta nobre raccedila agrave classe trabalhadora em condiccedilotildees

degradantes como as dos negros e dos chineses gera revolta (cfr Renan 1967 pp 69-70) O

mais perplexo em tudo isso eacute que Renan numa enorme ousadia intelectual natildeo se tenha

inibido do seu instinto de superioridade racial ao defender de forma paradoxal numa obra

intitulada ldquoLa Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la Francerdquo a seguinte convicccedilatildeo

noacutes esperamos natildeo a igualdade mas sim a dominaccedilatildeo O paiacutes de raccedila

estrangeira deveraacute voltar a ser um paiacutes de servos de jornaleiros agriacutecolas ou

de trabalhadores industriais Natildeo se trata de suprimir as desigualdades entre

os homens mas de as ampliar e as converter em lei (Renan 1967 p69-70)

Uma visatildeo demasiado materialista e narcisista que mereceu num tom iroacutenico a criacutetica de

Ceacutesaire que qualifica o colono muito distinto muito humanista e muito cristatildeo do seacuteculo XX

como uma autecircntica encarnaccedilatildeo de Hitler Eacute o retrato do colono que traz em si segundo

Ceacutesaire ldquoum Hitler que se ignora que vive nele e que eacute o seu demoacutenio e se o vitupera eacute por

falta de loacutegica ou pelo instinto de afinidade racial pois os factos atestam que o que muitos

deles natildeo perdoam a Hitler natildeo eacute o crime em si nem tatildeo-pouco o crime contra a humanidade

mas o crime contra o homem branco a humilhaccedilatildeo do homem brancordquo Assim natildeo restam

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duacutevidas de que do ponto de vista do seu desenvolvimento socio-histoacuterico a colonizaccedilatildeo eacute

uma suprema barbaacuterie um nazismo pouco expressivo por ser aplicado aos negros e aos aacuterabes

de Aacutefrica Mas na sua essecircncia um tal narcisismo constitui a negaccedilatildeo mais eloquente do

humanismo universal e formal reivindicado por Fanon e ao mesmo tempo uma clara

renuacutencia dos ideais filosoacuteficos morais e cristatildeos de uma civilizaccedilatildeo decaiacuteda (cfr Ceacutesaire

1978 pp 18-19)

Estaacute assim denunciada a patologia de uma civilizaccedilatildeo que fundou a sua filosofia de acccedilatildeo na

estigmatizaccedilatildeo do ldquodiferenterdquo e na fragmentaccedilatildeo do mundo em puro e impuro Eacute a construccedilatildeo

patoloacutegica usando a expressatildeo da Nussbaum de um ldquonoacutesrdquo que se julga imaculado e de um

ldquoelesrdquo preconceitualmente denotado vil perigoso e contagioso Esta denunciada patologia

obriga-nos a retomar algumas das questotildees supra referenciadas tais como eacute possiacutevel pensar a

missatildeo civilizadora da Europa colonial num contexto de clara recusa da alteridade ou de

reconhecimento do africano como sujeito autoacutenomo dotado de razatildeo e de humanidade

Como compreender uma missatildeo civilizadora assente numa loacutegica social do segundo excluiacutedo

isto eacute numa loacutegica social fracturante e nihilista Seraacute que Aacutefrica ao engajar-se na luta pela

descolonizaccedilatildeo teraacute efectivamente recusado o projecto de desenvolvimento que configurava

a missatildeo civilizadora da potecircncia colonial Vamos no proacuteximo ponto tentar encontrar alguns

elementos de resposta a estes questionamentos em certa medida jaacute respondidos

7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta uma antiacutetese agrave pretensatildeo colonial da emancipaccedilatildeo

da Aacutefrica dos africanos

A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta da sociedade ou seja a bipolarizaccedilatildeo social assente no

princiacutepio da desigualdade entre as cidades dos homens isto eacute dos europeus e os bairros

indiacutegenas ou dos selvagens categorias sociais criadas pelo proacuteprio colono contradiz agrave

partida qualquer pretensatildeo colonial de reconhecimento e integraccedilatildeo da Aacutefrica e dos africanos

no universalismo humano (cfr Fanon 1968 p 27 ou 2002 p 453) Aliaacutes a estrutura social

montada pelo colono determinava ldquoa priorirdquo que as relaccedilotildees entre os habitantes dos dois

mundos fossem de exploradores e explorados dominadores e dominados opressores e

oprimidos superiores e inferiores homens e sub-homens Conveacutem no entanto sublinhar que

toda a violecircncia colonial tinha como grande propoacutesito a criaccedilatildeo de um ambiente de medo e

inibiccedilatildeo do colonizado no intuito de facilitar a dinamizaccedilatildeo da exploraccedilatildeo e a pilhagem de

recursos naturais num contexto inovador de mercantilismo que muito precisava do concurso

forccedilado dos proacuteprios indiacutegenas Para dar conta do dinamismo interno de uma tal

compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta Fanon escreve

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em sua zona o colono potildee em marcha o movimento de dominaccedilatildeo de

exploraccedilatildeo e de pilhagem Na outra zona a coisa colonizada oprimida e

espoliada alimenta como pode esse movimento [hellip] as mateacuterias-primas vatildeo

e vecircm legitimando a presenccedila do colono Enquanto o acocorado mais morto

do que vivo o colonizado se eterniza num sonho [hellip] o colono faz histoacuteria

Sua vida eacute uma epopeia uma odisseia (Fanon 1968 p 38 ou 2002 p 463)

Como se pode depreender mais uma vez este maniqueiacutesmo eacute em si mesmo uma antiacutetese de

qualquer projecto civilizador natildeo soacute pelo facto de se constituir num factor provocador de

desprezo e ignomiacutenia dos colonizados mas tambeacutem e sobretudo por ser um factor

desestabilizador suscitador de oacutedio e de violecircncia entre os habitantes das duas zonas Cocircnscio

desta tensatildeo latente e subjacente a esta configuraccedilatildeo geopoliacutetica opressiva o colono interpocircs

como deduz Fanon uma estrutura fronteiriccedila forte e intimidatoacuteria capaz de assegurar a

atmosfera de submissatildeo e de inibiccedilatildeo dos explorados tal como se pode ler

o mundo colonizado eacute um mundo cindido em dois A linha divisoacuteria a

fronteira eacute indicada pelos quarteis e delegacias de poliacutecia Nas coloacutenias o

interlocutor legal e institucional do colonizado o porta-voz do colono e do

regime de opressatildeo eacute o gendarme ou o soldado Nas sociedades capitalistas o

ensino religioso ou leigo a formaccedilatildeo de reflexos morais [hellip] criam em torno

do explorado uma atmosfera de submissatildeo e inibiccedilatildeo que torna

consideravelmente mais leve a tarefa das forccedilas da ordem [hellip] O

intermediaacuterio do poder utiliza uma linguagem de pura violecircncia [hellip] natildeo

torna mais leve a opressatildeo natildeo dissimula a dominaccedilatildeo Exibe-as manifesta-

as com a boa consciecircncia das forccedilas da ordem [hellip] leva a violecircncia agrave casa e

ao ceacuterebro do colonizado (Fanon 1968 p 28 ou Fanon 2002 pp 453-454)

Este e outros cenaacuterios permitem situar a originalidade do instinto colonial no princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica e social e no de desigualdade econoacutemica entre duas espeacutecies a

branca e a negra ou aacuterabe pois a patologia narcisista de superioridade racial estruturou no

imaginaacuterio individual e colectivo do colonizador a convicccedilatildeo de que ser branco significa ser

superior e consequentemente rico e ser negro ou aacuterabe africano eacute o oposto disto (cfr Fanon

1968 p 29 ou Fanon 2002 p 455) Este maniqueiacutesmo que toma balanccedilo no plano simboacutelico

no qual o branco remete agrave noccedilatildeo do bem do belo e do bom e o negro o seu oposto

desembarca no plano concreto com reflexos inofuscaacuteveis na configuraccedilatildeo geograacutefica da

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estrutura social montada pelo regime colonial A cidade do colono eacute uma cidade vida

enquanto no bairro do colonizado se sobrevive milagrosamente a cidade do colono eacute segura

mas no bairro indiacutegena a inseguranccedila eacute o proacuteprio cartatildeo-de-visita a cidade do colono eacute uma

cidade soacutelida toda de pedra e ferro iluminada asfaltada as ruas limpas lisas sem buracos

mas o bairro indiacutegena eacute o oposto disso Na cidade do colono os habitantes estatildeo

permanentemente saciados e repletos de boas coisas Em contrapartida o bairro indiacutegena ou

negro eacute um lugar mal-afamado e povoado eacute o bairro de homens mal-afamados aiacute nasce-se

natildeo importa como nem onde e morre-se natildeo importa a onde nem de quecirc Eacute um mundo sem

intervalos ou seja os homens estatildeo uns sobre os outros eacute o mundo dos famintos dos

analfabetos e dos doentes e indigentes (cfr Fanon 1968 p 28-29 ou Fanon 2002 pp 453-

454)

O mundo colonial diz Fanon forjou um povo sem alma e sem referecircncia originaacuterias O

colono criou categorias sub-humanas para destruir a autoestima dos negros e dos aacuterabes de

Aacutefrica Fez deles uma espeacutecie de quintessecircncia do mal considerando-os como seres

impermeaacuteveis agrave moral e agrave eacutetica com ausecircncia e negaccedilatildeo de valores mal absoluto elementos

corrosivos que destroem tudo o que se aproxima deles elementos deformadores que

desfiguram tudo o que se refere agrave esteacutetica ou agrave moral depositaacuterios de forccedilas cegas (cfr

Fanon 1968 p 31 ou Fanon 2002 p 456) Esta convicccedilatildeo levou M Meyer a afirmar em

plena Assembleia Nacional Francesa que

[hellip] natildeo era necessaacuterio prostituir a Repuacuteblica fazendo penetrar nela o povo

argelino Os valores com efeito se tornam irreversivelmente envenenados e

pervertidos desde que entram em contacto com a populaccedilatildeo colonizada Os

costumes do colonizado suas tradiccedilotildees [hellip] sobretudo seus mitos satildeo a

proacutepria marca desta indigecircncia desta depravaccedilatildeo constitucional (Fanon

1968 p31 ou Fanon 2002 p 456)

Este discurso forjado no seu espaccedilo existencial levou Ceacutesaire (1978 p17) agrave conclusatildeo de que

a Europa colonial se esmerou antes de mais em descivilizar primeiro o proacuteprio colonizador

embrutececirc-lo degradaacute-lo despertaacute-lo para os instintos ocultos para a cobiccedila para a violecircncia

para o oacutedio racial e para o relativismo moral e posteriormente descivilizar o colonizado

Todo este quadro legitima sobremaneira o anseio dos africanos pela liberdade e pelo

reconhecimento da sua dignidade Para desmascarar o argumento segundo o qual o

engajamento dos africanos na luta pela descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica teraacute sido uma espeacutecie de

recusa do desenvolvimento do Continente africano pelos africanos Ceacutesaire passa em revista

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e em jeito de balanccedilo o vasto fresco dos horrores da dominaccedilatildeo colonial em particular a

francesa em Aacutefrica deixando claro que nenhum desenvolvimento vale mais do que a

dignidade humana e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos povos Apoiando

o seu raciociacutenio nos factos Com efeito Ceacutesaire afirma que a equaccedilatildeo mais ajustada agrave

realidade vivida eacute colonizaccedilatildeo igual coisificaccedilatildeo e natildeo desenvolvimento porque no fim de

contas o fiel da balanccedila pende mais para prejuiacutezos do que para ganhos tal como consta do

longo extrato que extraiacutemos do texto de Ceacutesaire

falam-me de progressos de realizaccedilotildees de doenccedilas curadas de niacuteveis de vida

elevados acima de si proacuteprios eu falo de sociedades esvaziadas de si

proacuteprias de culturas espezinhadas de instituiccedilotildees minadas de terras

confiscadas de religiotildees assassinadas de magnificecircncias artiacutesticas

aniquiladas de extraordinaacuterias possibilidades suprimidas Lanccedilam-me agrave cara

factos estatiacutesticas quilometragens de estradas de canais de caminhos-de-

ferro mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano falo

dos que no momento em que escrevo cavam agrave matildeo o porto de Abidjan falo

de milhotildees de homens arrancados aos seus deuses agrave sua terra aos seus

haacutebitos agrave sua vida agrave danccedila agrave sabedoria falo de milhotildees de homens a quem

inculcaram sabiamente o medo o complexo de inferioridade o tremor a

genuflexatildeo o desespero o servilismo Laccedilam-me em cheio aos olhos

toneladas de algodatildeo ou cacau exportado hectares de oliveiras ou de vinha

plantadas mas eu falo de economias naturais de economias harmoniosas e

viaacuteveis de economias adaptadas agrave condiccedilatildeo do homem indiacutegena

desorganizadas de culturas de subsistecircncias destruiacutedas de subalimentaccedilatildeo

instalada de desenvolvimento agriacutecola orientada unicamente para benefiacutecio

das metroacutepoles de rapinas de produtos de rapinas de mateacuterias-primas

Ufanam-se de abusos suprimidos eu tambeacutem falo de abusos mas para dizer

que aos antigos ndash muito reais ndash sobrepuseram outros muito detestaacuteveis

Falam-me de tiranos locais trazidos agrave razatildeo poreacutem constato que regra geral

eles fazem muito boa parelha com os novos e que destes aos antigos e vice-

versa se estabeleceu em detrimento dos povos um circuito de bons serviccedilos

e cumplicidade Falam-me de civilizaccedilatildeo eu falo de proletarizaccedilatildeo e de

mistificaccedilatildeo [hellip] Cada dia que passa cada negaccedilatildeo de justiccedila cada carga

policial cada reclamaccedilatildeo operaacuteria afogada em sangue cada escacircndalo

abafado cada expediccedilatildeo punitiva cada poliacutecia e cada miliciano fazem-nos

sentir o preccedilo das nossas velhas sociedadesrdquo (Ceacutesaire 1978 pp25-26)

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Disso decorre que a essecircncia do colonialismo tal como realccedilou Maacuterio Pinto de Andrade

reside em dois aspectos no ldquoregime de exploraccedilatildeo desenfreada de imensas massas humanas

que encontra a sua legitimidade e sustentabilidade na violecircnciardquo e na ldquoforma moderna de

pilhagemrdquo (cfr Ceacutesaire Aimeacute 1978 p7) Assim se os niacuteveis cientiacuteficos tecnoloacutegicos e

organizacionais ostentados pela Europa colonial lhe conferem a todos os tiacutetulos um estatuto

de uma civilizaccedilatildeo o mesmo jaacute natildeo se daacute do ponto de vista da sua relaccedilatildeo com as coloacutenias

Por esta razatildeo Ceacutesaire chamou-lhe de civilizaccedilatildeo decadente enferma e moacuterbida por se ter

revelado incapaz de resolver os grandes problemas que criou nomeadamente o do

proletariado e o colonial Ouccedilamos Ceacutesaire a respeito

ldquouma civilizaccedilatildeo que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu

funcionamento suscita eacute uma civilizaccedilatildeo decadente Uma civilizaccedilatildeo que

prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais eacute uma civilizaccedilatildeo

enferma Uma civilizaccedilatildeo que trapaceia com os seus princiacutepios eacute uma

civilizaccedilatildeo moacuterbidardquo (Ceacutesaire 1978 p13)

Teratildeo Fanon Ceacutesaire Sartre e outros exagerado na sua criacutetica do colonialismo

Possivelmente sim Contudo a larga unanimidade existente sobre o assunto permite-nos

atribuir uma certa objectividade e verdade histoacuterica a muitos dos enunciados que nos satildeo

dados a apreciar Reneacute Grousset (1954 p 76) quase duas deacutecadas antes de Ceacutesaire

analisando o percurso evolutivo das civilizaccedilotildees constatava que nenhuma civilizaccedilatildeo

apareceu logo no iniacutecio tatildeo promissora e tatildeo ameaccedilada como a civilizaccedilatildeo ocidental A sua

ameaccedila em seu entender natildeo vem apenas da espada nuclear vem tambeacutem e sobretudo do

egoiacutesmo e do materialismo que inspiram os povos que a comandam Estaacute portanto evidente

que o regime colonial europeu foi essencialmente uma conquista assente em fins de

exploraccedilatildeo dos indiacutegenas Esta ideia ceacutesairiana de uma Europa exploradora no sentido

accedilambarcador do termo aparece tambeacutem no ldquoLe geacutenociderdquo no qual Jean-Paul Sartre eacute

perentoacuterio em afirmar que a colonizaccedilatildeo natildeo eacute uma mera conquista como foi a anexaccedilatildeo de

Alsace-Lorraine pela Alemanha na sua verdadeira natureza a colonizaccedilatildeo eacute um acto de

genociacutedio cultural Numa ldquodeacutemarcherdquo fenomenoloacutegica Sartre mostra que a colonizaccedilatildeo natildeo

acontece sem a liquidaccedilatildeo sistemaacutetica de todas as caracteriacutesticas particulares de sociedades

nativas e simultaneamente sem a recusa da sua integraccedilatildeo massiva na metroacutepole e sem a

negaccedilatildeo do seu acesso agraves vantagens da metroacutepole

Concordamos assim com Sartre que a colonizaccedilatildeo eacute um sistema de negoacutecio que requer

inevitavelmente a existecircncia de um sub-proletariado nacional forccedilado a trabalhar por

miseraacuteveis salaacuterios Vale dizer que no sistema colonial a coloacutenia teve uma funccedilatildeo

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instrumental ou seja foi usada para vender as suas mateacuterias-primas e seus produtos agriacutecolas

a um preccedilo irrisoacuterio agrave metroacutepole Em retorno a metroacutepole vendeu os bens manufaturados agraves

coloacutenias a preccedilo do mercado Este negoacutecio que contou com a comparticipaccedilatildeo da burguesia

nacional condenou os africanos a viverem num submundo de miseacuteria como negros fantasmas

continuamente recordados da sua condiccedilatildeo de sub-humanos (cfr Sartre 1967 p39)

Estaacute visto que a colonizaccedilatildeo partindo da efiacutegie aqui apresentada eacute um projecto oposto aos

ideais civilizacionais tal como alude Ceacutesaire ao desmistificar a tentativa de atribuir ao

processo de colonizaccedilatildeo uma intenccedilatildeo civilizadora A maldiccedilatildeo mais comum nesta mateacuteria eacute

deixarmo-nos iludir de boa-feacute por uma hipoacutetese colectiva e haacutebil em enunciar mal os

problemas para melhor justificar as soluccedilotildees que se lhes aplicam conferindo facilmente

legitimidade a um conjunto de praacuteticas abominaacuteveis atribuindo-lhes a categoria de um mal

necessaacuterio com vista a um fim nobre ndash a civilizaccedilatildeo dos selvagens (Ceacutesaire 1978 p14)

Conclusatildeo

A reflexatildeo feita nas paacuteginas anteriores permitiu-nos deduzir a existecircncia de uma possiacutevel

analogia entre a colonizaccedilatildeo e a civilizaccedilatildeo do ponto de vista teoacuterico conceitual Mas do

ponto de vista praacutetico tudo natildeo passou de uma simples ilusatildeo Uma ilusatildeo cimentada pela

foacutermula do pedantismo cristatildeo que procurou atribuir uma presumiacutevel missatildeo civilizadora ao

fenoacutemeno de colonizaccedilatildeo ao estabelecer a equaccedilatildeo cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria A anaacutelise mostrou que do ponto de vista doutrinal e factual

uma tal equaccedilatildeo eacute insustentaacutevel porquanto a colonizaccedilatildeo se assumiu mais como violecircncia

contra os povos colonizados e exploraccedilatildeo dos seus recursos naturais e da sua forccedila de trabalho

e nunca como projecto colonial de emancipaccedilatildeo dos povos colonizados Esta conclusatildeo pode

ter sido previsiacutevel mas como foi referido no princiacutepio deste trabalho esta anaacutelise sobre o

colonialismo encontra a sua utilidade neste texto na medida em que se nos apresenta como

movimento historicizante que constitui a mateacuteria e a forma que nos permitem vislumbrar o

horizonte teleoloacutegico da descolonizaccedilatildeo enquanto proposta de emergecircncia do novo nova

realidade novos seres e novo continente uma espeacutecie de antiacutetese do mundo colonial

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Obras do autor

1 FANON Frantz Frantz Fanon Ouevres Paris Eacuteditions La Deacutecouverte 2011

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2 ----------------------- Les damneacutes de la terre Paris Eacuteditions la Deacutecouverte (Preacuteface de Jean-Paul Sartre) 1961

3 ----------------------- Os condenados da terra Rio de Janeiro ndash Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Traduccedilatildeo de Joseacute

L de Melo 1968

Outras obras

1 BOURDIEU Pierre Sociologie de lrsquoAlgerie Paris PUF 1958

2 BURAWOY Michael Marxismo encontra Bourdieu Campinas Editora Unicamp 2010

3 CABRAL Iva A Primeira Elite Colonial Atlacircntica Dos ldquohomens honrados broncosrdquo de Santiago agrave

ldquonobreza da terrardquo Finais do seacutec XV ndash iniacutecio do seacutec XVII Cabo Verde Pedro Cardoso Livraria 2015

4 CEacuteSAIRE Aimeacute Discurso sobre a colonizaccedilatildeo Lisboa Livraria Saacute da Costa Editora 1978

5 CONSTATINI Dino Mission civilisatrice le role de lrsquohistoire colonial dans la construction de lrsquoidentiteacute

politique franccedilaise Paris Eacuteditions de la Deacutecouverte 2008

6 DE VIGNY Alfred ldquoCritique des anedotes historiques sur Alger de Jean-Toussaint de Merlerdquo In Bancel

Nicolas Blanchard Pascal Verges Franccediloise La Republique colonial Paris Albin Michel Coll Pluriel 2003

7 FOLLIET Joseph Le droit de colonisation Eacutetude de morale sociale et international Lyon GNeveu 1932

8 GIRARD Reneacute La Violence et le Sacreacute Paris Grasset reacuteeacute Pluriel 1972

9 GROUSSET Reneacute Lrsquohomme et son histoire Paris Plon 1954

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University Press 2010

11 RENAN Ernest La Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la France Paris Union Geacuteneacuterale drsquoEacuteditions 1967

12 SARTRE Jean-Paul ldquoLe Genociderdquo In Les Temps modernes nordm259 Gallimard Decembre 1967

13 SEMELIN Jacques Purifier et Deacutetruir Usages politiques de massacres et geacutenocides Paris Seuil 2005

14 SENGHOR Leopold Sedar (1964) On African Socialism London Pall Mall Press 1964

Artigos e Dicionaacuterios

1 BOURDIEU Pierre (1987) Le Sens Commum Chose dites In Fildwork in philosophy Paris Les Eacuteditions de

Minuit

2 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea Academia das Ciecircncias de Lisboa Editorial Verbo 2001

3 Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura Editorial Verbo Lisboa nordm5

4 OLUacuteFEacuteMI Taacuteiwo (2004) ldquoPost-Independence African Political Philosophyrdquo In Kwasi Wiredu A

Companion to African Philosophy Cornwall MPG Books Ltd Bodmim 2004 pp 243-260

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PEDAGOGIA laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO

LIBERAL EM AacuteFRICA

INAacuteCIO VALENTIM a

inaciovalentim82gmailcom

Resumo

Nada eacute tatildeo enobrecedor como ensinar e aprender A nobreza reside na consciecircncia estaacute no

encontro com o outro estaacute na disponibilidade que eacute criada para si e para o outro e estaacute

sobretudo no comprometimento que se tem consigo mesmo e com o outro O outro como o

rosto como memoacuteria e como um ldquooutro eurdquo Isto eacute o que ensinar e aprender nos oferece e nos

sugere Ter a noccedilatildeo de que todo o acto de ensinar eacute essencialmente um processo de aprender

de aprendizagem e de dar a possibilidade de interrogar-se sobre o aprendido e sobre

aprendizagem O objectivo deste artigo eacute de reflectir sobre a hermenecircutica do aprender o que

chamamos aprender e como acontece

Palavras-chave aprender comprometimento inacessibilidade responsabilidade fazer e

ensinar

Abstract

Nothing is so ennobling as teaching and learning The nobility lies in its consciousness is in

the encounter with the other it is in the availability that is created for itself and to the other

and itrsquos mainly in the compromise that it has with oneself and with the other The other as the

face as memory and as other selfrdquo This is what teaching and learning offers and suggests to

us Have the notion that the whole act of teaching is essentially a process of learning learning

and giving the possibility to question them about the learned and about learning The aim of

this article is to reflect on the hermeneutics of learning what we learn and how it happens

Keywords learning commitment inaccessibility responsibility doing and teaching

a Doutor em Filosofia pela Universidade Carlos III de Madrid Professor e Investigador Titular Director Geral do

Instituto Superior Politeacutecnico Sol Nascente Huambo - Angola wwwispsnorg

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O termo laquoaprenderraquo oferece agrave primeira vista com uma leitura muito atenta uma ideia muito

escorregadia apresenta algo de inacessibilidade algo que nos passa entre os dedos como

aacutegua como liacutequido como vento como espiacuterito Enfim como algo que natildeo nos eacute dado

aprisionar fiacutesica e mentalmente No entanto acreditamos que aprendemos e acreditamos que

podemos fazer com que outras pessoas aprendam connosco ou atraveacutes de noacutes e natildeo hesitamos

muitas vezes em oferecer-nos como instrumento de aprendizagem para os outros Apesar de

ser um termo muito duro no sentido de responsabilidade esta responsabilidade acaba por estar

ou ficar diluiacuteda na confusatildeo entre o aprender e o fazer entre o aprender e o ensinar entre o

aprender e o saber porque confundimos ou fundimos as duas perspectivas antecipando

precisamente o acto do segundo que eacute dirigido ou orientado para o aprendiz Enquanto

mecanismo que conduz agrave aquisiccedilatildeo do saber a aprendizagem ldquoopotildee-se ao ensinamento ou ao

ensino cujo objectivo eacute de dispensar conhecimentos e saberesrdquo Mas esta oposiccedilatildeo natildeo eacute de

ruptura porque natildeo pode haver aprendizagem senatildeo por intermeacutedio do ensino ou de quem

ensina

O aprender-se bem eacute reflectido sobretudo a partir da acccedilatildeo enquanto resultado e resposta do

aprender natildeo obstante enquanto fenoacutemeno o aprender eacute um acto de natureza invisiacutevel e

quase que inapreensiacutevel e intocaacutevel A sua visibilidade soacute eacute passiacutevel para o proacuteprio sujeito

isto eacute para o aprendiz ou no aprendiz Dificilmente eu como promotor ou enquanto promotor

de aprendizagem posso dizer com exactidatildeo o momento da captaccedilatildeo do sujeito do elemento

aprendido posso supor atraveacutes de perguntas que faccedilo ou que tenho que responder dele mas

apenas eacute uma suposiccedilatildeo Eacute pois esta complexidade que vai tambeacutem fazer com que o acto de

aprender seja acima de tudo um acto divino um momento ou uma instacircncia do natildeo humano

Soacute aquele que diviniza-se chega a aprender consegue aprender e supera com isso a primeira

instacircncia do humano E divinizar-se significaria ter um autocontrolo sobre os impulsos do

saber os impulsos desenfreados do desejo de aprender e de assumir-se como o promotor de

aprendizagem Mas este processo soacute eacute possiacutevel com um povo ou com gente que agrave partida natildeo

rejeita preliminarmente a filosofia soacute eacute possiacutevel com gente que natildeo eacute dirigida e que natildeo eacute

paciente dos meacutedicos do povo como diria Nietzsche O aprender filosoacutefico apenas acontece

com e para gente satilde os ldquoenfermos que se contactam com a filosofia ficam ainda mais

enfermosrdquo porque de certa forma a filosofia soacute pode salvar e curar quem jaacute estaacute curado

quem reuacutene requisitos para a cura E foi assim que os gregos conseguiram fazer da filosofia a

sua proacutepria casa o seu mundo o seu lugar apesar de a filosofia vir de outros lugares virou a

casa dos gregos tornou-se ou transformou-se no elemento da definiccedilatildeo essencialmente grego

Os gregos souberam pegar naquilo que os outros povos abandonaram e fizeram dele o mais

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alto elemento do saber precisamente porque souberam utilizar laquoa arte de aprender

produtivamenteraquo utilizando para este efeito os seus saacutebios Contrariamente aos outros povos

que laquotecircm santos os gregos tecircm saacutebiosraquo diz Nietzsche e satildeo estes saacutebios que vatildeo fazer com

que a filosofia tenha um sentido profundo e original para o grego justificando assim a sua

aposta a sua protecccedilatildeo e a utilidade da sua futilidade

Apesar dos gregos terem podido trazer a filosofia das outras paradas orientais como diz

Nietzsche natildeo tiveram nenhuma moda que lhes pudesse ajudar ou facilitar as coisas Tiveram

que inventar a sua proacutepria imaginaccedilatildeo tiveram que filosofar com laquouma puberdade madura

onde brotava a fogosa alegria de uma vitoriosa e valente idade viril1raquo Em outras palavras

tiveram que superar a idade da infacircncia humana a infacircncia social e tiveram que se fazer

responsaacuteveis Esta eacute tambeacutem uma das condiccedilotildees de aprendizagem ou do aprender fazer-se

responsaacutevel emancipar-se e dar conta de si e dos outros laquopois quanto mais fazemos sobre as

coisas mais pensamos sobre elas ou mais desenvolvemos pensamentos sobre elasraquo O nosso

aprender estaacute relacionado com um espaccedilo concreto com um lugar com uma referecircncia com

um encontro-chegada-regresso No fundo o nosso aprender estaacute relacionado com uma histoacuteria

concreta ou com uma meta-histoacuteria estaacute relacionado com um padratildeo que nos vai dizer que as

condiccedilotildees para aprender exigem abc A tarefa de aprender natildeo eacute compatiacutevel com o tempo

apressado com o tempo que se assimila ao material O aprender eacute como ler um livro que estaacute

destinado a

[hellip] leitores tranquilos a homens que ainda natildeo foram arrastados pela vertiginosa pressa

da nossa agitada era e que ainda natildeo sentem o prazer idolatra quando olham para baixo das

sua rodas [hellip] quer dizer Haacute poucos homens Estes ainda natildeo estatildeo habituados a

estabelecer o valor de cada coisa segundo a poupanccedila ou os gastos do tempo estes laquoainda

tecircm temporaquo ainda lhes eacute permitido sem culpar-se de nada seleccionar e reunir as melhores

horas da jornada e os seus momentos mais fecundos e vigorosos para reflectir sobre o

futuro da nossa educaccedilatildeo estes podem ter a certeza que chegaram agrave noite de uma forma

proveitosa e digna a saber na meditation generis futuri (meditaccedilatildeo sobre o geacutenero futuro)

Um homem assim ainda natildeo se esqueceu de pensar enquanto lecirc ainda compreende o

segredo de ler entre linhas mais ainda eacute de uma natureza tatildeo prodigiosa que reflecte sobre

o lido talvez muito tempo depois de ter deixado o livro E sem duacutevidas natildeo para escrever

uma resenha ou outro livro mas simplesmente para reflectir2

O aprender seria portanto um viver sem pressa um estar sem pressa um existir sem pressa

Um ser no desconhecimento Mas sabemos que isso natildeo eacute possiacutevel Natildeo eacute possiacutevel saber sem

1Cf Friedrich Nietzsche Obras completas Vol 1 Filosofiacutea en la Eacutepoca Traacutegica de los Griegos Trad e introduc

Joan B et alt Tecnos Madrid 2011 p 574 2 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 549

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ser conotado natildeo eacute possiacutevel saber sem ser procurado natildeo eacute possiacutevel saber sem falar do que se

sabe natildeo eacute possiacutevel saber sem comunicar o sabido Mas dizemos que natildeo eacute possiacutevel e na

verdade eacute possiacutevel porque natildeo estamos a falar da mesma coisa saber natildeo eacute aprender Satildeo

duas coisas completamente distintas mas apesar de tudo uma coisa tecircm em comum a fuga da

fanfarronice e o desejo desenfreado de confrontaccedilatildeo A atestaccedilatildeo do aprendido a examinaccedilatildeo

do sabido Tecircm em comum aquilo que falta ao homem moderno o excesso de si a auto-

referecircncia desmedida O aprender conduz-nos ao desejo de estar tatildeo bem formados a tal ponto

de natildeo pensarmos mais em noacutes mesmos ou na nossa formaccedilatildeo e ateacute ao ponto de desprezarmos

a nossa proacutepria formaccedilatildeo Contrariamente ao homem moderno diz Nietzsche haacute que evitar

fazer de noacutes mesmos uma espeacutecie de homo mesura precisamente porque natildeo somos criteacuterio

seguro de nada natildeo somos criteacuterio seguro do absoluto Aqui o aprender deixa de ser um

criteacuterio e passa a ser uma meta e a meta aqui eacute que aquele que estaacute aprender se entregue

completamente com laquoa maacutexima confianccedila agrave tutela do autor de quem apenas pode falar a partir

da sua proacutepria ignoracircncia e da consciecircncia da ignoracircnciaraquo O aprendiz eacute aquele de quem

Nietzsche faz este tremendo apelo porque eacute nele que ele acredita

[hellip] Deixai-vos encontrar voacutes os isolados em cuja existecircncia acredito Voacutes

os altruiacutestas voacutes que padeceis em voacutes mesmos as dores e as perversotildees do

espiacuterito (hellip) Voacutes os contemplativos cujo olhar natildeo palpa com pressurosa

suspeita o externo das coisas mas sim sabe encontrar a entrada ao nuacutecleo da

essecircncia Eu vos convoco apenas para esta vez natildeo vos escondais nas

cavernas do vosso retiro e da vossa desconfianccedila Sejam quando menos

leitores deste livro para mais em frente com os vossos feitos acabar com ele

e deixa-lo no esquecimento Compreendeis que este livro estaacute destinado a ser

o vosso pronuacutencio quando voacutes mesmos com as vossas armas vos apresenteis

na palestra [hellip]3

Ao seu modo Nietzsche apresenta aqui a figura do aprendiz o docente o estudante e todos os

inquietos de espiacuterito como aqueles que satildeo isolados que satildeo altruiacutestas e que padecem das

dores da perversatildeo do espiacuterito O acto de aprender eacute incompatiacutevel com o tremendo de

confusatildeo eacute incompatiacutevel com o egoiacutesmo e com o egocentrismo e eacute incompatiacutevel com o

regradamente certo O aprender exige ruptura porque supotildee adaptaccedilatildeo a uma nova era a uma

nova realidade exige encontrar o outro dentro e fora de mim e exige um prestar atenccedilatildeo a

mim mesmo que natildeo seja necessariamente um narcisismo O aprender exige que sejamos uns

3 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 550

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contemplativos sem pressa de conhecer e de chegar sem pressa de afirmar ou de concluir

apenas se espera que sejamos contemplativos que admiram para melhor conhecer e trazer a

utilidade profunda mas sombria que estaacute aprisionada nas cavernas das nossas pressas O

aprender exige que a nossa contemplaccedilatildeo nos conduza ao encontro da essecircncia daquilo que

deve ser objecto do aprender Por isso cada vez que noacutes que estamos no eterno caminho de

aprender nos confrontamos com um livro com uma obra temos a possibilidade de sair dos

nossos retiros contraditoacuterios das nossas cavernas e das nossas desconfianccedilas Temos a

possibilidade de dar a conhecer a nossa opiniatildeo eacute o nosso pronuacutencio na palestra que pode

naturalmente chocar com os dois modelos do aprender propostos pela cultura educativa

moderna a saber

Por um lado a educaccedilatildeo como o espaccedilo da proposta do aprender deve ser extensiacutevel a todo o

territoacuterio por outro o laquoimpulso de reduccedilatildeo e debilitamento do mesmoraquo Desde muito cedo

quando a educaccedilatildeo comeccedilou a ser vista como um elo importante o homem apesar de alguns

constrangimentos sempre soube que seria de muito mais valia que ela fosse extensiacutevel para

todo o territoacuterio independentemente das questotildees poliacuteticas culturais econoacutemicas e religiosas

Natildeo obstante a sua extensatildeo sempre dependeraacute da vontade do Estado da disponibilidade do

Estado enfim da autorizaccedilatildeo do Estado Os gregos que fazem parte dos povos que pensaram

a educaccedilatildeo depois dos egiacutepcios e dos feniacutecios assumiram a inseparabilidade destes dois

momentos a educaccedilatildeo que deve chegar a todo o territoacuterio e a educaccedilatildeo que para ser educaccedilatildeo

tem que ser controlada pelo Estado A educaccedilatildeo deve ser controlada pelo Estado mas natildeo

necessariamente executada pelo Estado Em A Poliacutetica Aristoacuteteles foi muito bem claro em

dizer que a tarefa de educaccedilatildeo se bem eacute da comunidade natildeo obstante compete em primeiro

lugar ao Estado e soacute na impossibilidade deste de cobrir todas as partes eacute que o particular

assume tambeacutem ele a tarefa de educar Educar e por conseguinte o aprender desde este

ponto de vista nasce com um problema eacute um problema natildeo apenas no sentido de delegaccedilatildeo

de autorizaccedilatildeo mas tambeacutem no sentido da proacutepria autodestruiccedilatildeo Quem aprende destroacutei-se e

autodestroacutei-se na medida em que vai pondo de lado ou vai equacionando os fundamentos do

conhecimento anterior agrave sua formaccedilatildeo agrave sua educaccedilatildeo Como diz Fullat citado por Carlos

Francisco de Sousa Reis ldquoO acto educador especificamente humano eacute no seu nuacutecleo e fonte

entitativa confrontaccedilatildeo de duas consciecircncias confrontaccedilatildeo constitutivamente violenta4rdquo Para

Carlos Francisco Fullat procura aqui justificar a partir dos modelos de habilidades emperia a

forma como a educaccedilatildeo pode apresentar-se como acto educativo violento ou simplesmente

4Cf Carlos Francisco de Sousa Reis Educaccedilatildeo e cultura mediaacutetica Anaacutelise de implicaccedilotildees deseducativas

Acircncora editora Lisboa 2014 p 45

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como condiccedilatildeo da violecircncia Fullat segundo o nosso autor para encontrar os fundamentos da

educaccedilatildeo como condiccedilatildeo de violecircncia analisa inicialmente o surgimento ontoloacutegico da

civilizaccedilatildeo a partir de trecircs perspectivas a perpectiva do animal faber a perspectiva do animal

symbolicum e a perspectiva do animal sociale A partir destas trecircs perspectivas ele conclui

que a violecircncia eacute constitutiva de todos os actos educativos O ponto de partida da educaccedilatildeo eacute

visto portanto para Fullat desde uma perspectiva negativa desde uma antropologia negativa e

desde uma possibilidade eacutetica negativa Natildeo pode haver uma educaccedilatildeo que natildeo seja sobretudo

uma acccedilatildeo que arraste a negatividade consigo mesma Isto eacute uma acccedilatildeo que procura desfazer-

se do estado da ignoracircncia anterior O estado ou acccedilatildeo educativa eacute uma acccedilatildeo de

ldquodeplacementrdquo para um novo siacutetio um novo mundo uma nova aventura

As leituras ou melhor os textos utilizados por Fullat como exemplos patenteiam

naturalmente esta negatividade na relaccedilatildeo educativa Eacute o caso da visatildeo hobbesiana freudiana

e de Sartre das relaccedilotildees humanas que satildeo muitas vezes relaccedilotildees de poder da negatividade

isto eacute onde a manutenccedilatildeo do poder implica a perda do outro ou do espaccedilo do outro Nestes

autores destacam-se duas perspectivas inconciliaacuteveis ldquoo egoiacutesmo de ter e o sadismo de

dominarrdquo A educaccedilatildeo eacute vista como uma necessidade desenfreada de ter e ter sempre e cada

vez mais ao mesmo tempo que este desejo incontrolado eacute tambeacutem alimentado com a outra

necessidade de dominar e controlar tudo a todo custo Estas duas febres como lhe chama

Fullat resultam de uma eacutetica hedoniacutestica onde no campo hobbesiano o prazer eacute sinoacutenimo da

dominaccedilatildeo ldquoToda a eacutetica de Hobbes depende do seu pressuposto fundamental a inclinaccedilatildeo

geral da Humanidade para um desejo perpeacutetuo e sem descanso de adquirir poder e mais poder

desejo esse que soacute termina com a morte O ser humano eacute egoiacutesta (hellip) e a fim de poder estar

preparado para alcanccedilar o que deseja tem de procurar aumentar sempre cada vez mais o seu

poder5rdquo Natildeo poderia ter havido civilizaccedilatildeo se natildeo houvesse uma agressividade natural diria

Fullat de Francisco de Sousa O que noacutes consideramos como civilizaccedilatildeo teria sido aquilo que

pensadores como Hobbes ou Rousseau teriam visto como um princiacutepio do pacto natildeo pacto o

pacto simulado no caso de Rousseau A civilizaccedilatildeo nasce a partir da distorccedilatildeo de uma

realidade anterior e para permanecer deve tambeacutem continuar a distorcer esta mesma realidade

para poder construir um poder de dominaccedilatildeo e do egoiacutesmo Neste acircmbito a educaccedilatildeo aparece

como o aparelho protector do Estado manipulador e violento que utiliza as ideologias como a

praccedila da fecundaccedilatildeo das suas manipulaccedilotildees E porque o homem procura sobretudo ser feliz

diz Aristoacuteteles entatildeo muitas vezes natildeo escolhe os meios para ser feliz isto eacute natildeo estaacute

5 Cf Marques 2000 120 Apud Carlos Francisco de Sousa 2014 46

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disposto a abdicar de alguns meios que podem ser uacuteteis para a sua felicidade Eacute o caso da

felicidade pelo trabalho diraacute Francisco de Sousa mas o trabalho exerce uma forccedila contraacuteria

sobre a natureza e eacute o caso da educaccedilatildeo onde no educar

ldquoO homem exige a educaccedilatildeo mas esta implica a violecircncia da programaccedilatildeo

geneacutetica e da programaccedilatildeo social Educar eacute uma luta de consciecircncias em que

o educador sempre investe sobre o educando desde a cultura que se alimenta

da repressatildeo social imposta a Eros (o prazer) e Thanatos (a agressividade)6rdquo

Se bem podemos ver as teorias pessimistas como um exagero da negaccedilatildeo humana no sentido

do encontro pleno ainda assim nesta possiacutevel negaccedilatildeo do encontro pleno entre os humanos

nasce a possibilidade da vida do outro isto eacute o mesmo ldquosujeito que pode trazer a morte do

outro tambeacutem traz a sua vidardquo no embate do encontro entre os diferentes haacute sempre uma

possibilidade da nova vida de um novo existir e a educaccedilatildeo eacute precisamente tudo isso o

encontro dos diferentes que tem como fim ajudar a criar uma nova vida fazer nascer uma

nova existecircncia uma nova oportunidade Porque segundo autores como Fullat diz Francisco

de Sousa natildeo se pode falar de educaccedilatildeo laacute onde natildeo haacute consciecircncia Apenas haacute educaccedilatildeo

porque haacute consciecircncia porque existe consciecircncia porque haacute dois encontros e porque apesar

do embate entre os dois nenhuma delas deixa perder a outra natildeo eacute um encontro ou um

embate para desgarrar o outro antes pelo contraacuterio este embate eacute feito para estabelecer o

outro no outro sem fazer desaparecer a alteridade Mas isso soacute eacute possiacutevel justamente porque

no lugar da violecircncia que poderia ter conduzido a uma ldquorobotizaccedilatildeordquo foi introduzido o factor

de cuidado diz Carlos Francisco de Sousa Eacute portanto o cuidado que vai fazer com que haja

um encontro entre as duas consciecircncias Como diz Hegel de Morin (2005 105 Apud Carlos

Francisco de Sousa 2014 49) ldquoa consciecircncia de si soacute atinge a sua satisfaccedilatildeo numa outra

consciecircncia de sirdquo Dito de outra forma em palavras de Fullat de Carlos Francisco de Sousa

ldquosoacute depois da descoberta do eu pelo enfrentamento do tu se daacute a verdadeira relaccedilatildeo

educativardquo Portanto natildeo pode haver educaccedilatildeo na ausecircncia do outro natildeo pode haver

educaccedilatildeo na ausecircncia do interlocutor e do intermediaacuterio e natildeo pode haver educaccedilatildeo na

ausecircncia de uma situaccedilatildeo educativa

A fase educativa eacute acompanhada pelo decliacutenio paulatino de amestramento porque supotildee a

chegada da consciecircncia supotildee a responsabilidade pela capacidade de escolher e de decidir

supotildee a autenticidade do SIM e do NAtildeO supotildee uma certa comunicaccedilatildeo de intimidade no

6 Cf Francisco de Sousa cit

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dizer de Jaspers de Carlos Francisco de Sousa O sim e o natildeo do educando jaacute tem um patamar

um pouco mais alto que o sim e o natildeo daquele que estaacute na fase de amestramento A pugna jaacute

tem um caraacutecter mais real a dor eacute mais audiacutevel porque eacute vivida e sentida por aquele que tem

capacidade fiacutesica de desforrar violecircncia sobre o seu mestre sobre o seu guia ou sobre aquele

que lhe dirige Eacute diferente da dor da infacircncia que eacute vivida por e pela compaixatildeo do outro no

outro Os pais e os parentes proacuteximos podem responder pela dor da crianccedila enferma levando-a

ao meacutedico ou ao especialista Sozinha natildeo poderia fazecirc-lo eacute por isso que dizemos que a dor

da infacircncia eacute uma dor de solidariedade compassiva isto eacute precisa de um terceiro para ser

actualizada ou minimizada A do adulto tambeacutem pode precisar mas com muito menos

coerccedilatildeo que a da crianccedila ou a do adulto-crianccedila Esta simbologia tambeacutem pode ser aplicada agrave

relaccedilatildeo do educador e do educando que estatildeo quase sempre inicialmente em perspectivas

diferentes em dizibilidades diferentes talvez por isso autores como Fullat falam do caraacutecter

agoacutenico da educaccedilatildeo ou da educabilidade Assumem que natildeo eacute possiacutevel educar sem existecircncia

de um processo agoacutenico porque haacute encontro de dois tipos de saberes que podem ser

completamente diferentes sobre o mesmo saber ou sobre o mesmo tema O saber daquele que

ensina e o saber sobre o saber daquele que vai aprender ou que estaacute para aprender satildeo coisas

completamente diferentes passando ou acontecendo no mesmo espaccedilo A aprendizagem da

educabilidade exige sempre uma proposta e um tempo de adaptaccedilatildeo retroactivo para garantir a

apropriaccedilatildeo do processo da aprendizagem isto eacute para garantir o processo da refinaccedilatildeo do

conhecimento em outras palavras para atingir a compreensatildeo Esta etapa da compreensatildeo eacute

feita de uma transiccedilatildeo a outra isto eacute passamos de uma ldquocivilizaccedilatildeo de resposta a uma

civilizaccedilatildeo de perguntasrdquo porque o tempo de respostas definitivas morreu

O aprender com profundidade exige que natildeo nos contentemos apenas com as pequenas

resoluccedilotildees como diz Andreacute Giordan mas que consigamos apoderar-nos dos enunciados para

debatecirc-los e com eles transformar a relaccedilatildeo do saber atraveacutes de argumentos e contra-

argumentos Quem aprende eacute obrigado a ter argumentos insiste Giordan Quem aprende lanccedila

duras inquisiccedilotildees sobre o processo eacute um constante inquieto

laquoDe que estamos exactamente a falar O que queremos mostrar Estou

convicto de que o que estou a dizer eacute verdade eis porquecircraquo Ele descobre o

que eacute uma demostraccedilatildeo os argumentos que eacute necessaacuterio accionar para

convencer a importacircncia do raciociacutenio e o sentido preciso das palavras No

fim do ensino secundaacuterio aqueles que aprendem nem sempre tecircm

consciecircncia que uma hipoacutetese na matemaacutetica (onde ela eacute um dogma que natildeo

podemos transgredir) natildeo tem o mesmo estatuto que no resto das ciecircncias

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onde ela natildeo eacute senatildeo uma explicaccedilatildeo entre outras explicaccedilatildeo que adoptamos

e adaptamos durante o tempo em que procuramos meios para a corroborar ou

informar Controlar a polissemia de um tal vocabulaacuterio evita muitas

confusotildees7

Quem aprende predispotildee-se a ser bravado e podado predispotildee-se a ser limitado ao mesmo

tempo que rompe a proacutepria limitaccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo da teacutecnica e de habilidades

predispotildee-se a demostrar que apesar das limitaccedilotildees ainda assim pode criar pode inventar e

pode inovar saindo precisamente do seu campo de conforto Qualquer investigaccedilatildeo mesmo

sendo apenas inicial tem como fim tirar-nos do nosso campo do conforto tem que como

objectivo tirar-nos da nossa aldeia e conduzir-nos para a cidade onde corremos o risco de nos

perder implica actualizar o nosso preconceito em relaccedilatildeo a algo implica questionar as

evidecircncias laquoQuanto mais aquele que aprende reflecte sobre o tratamento de uma tarefa mais

ele referencia e repara nos erros nos limites e nos disfuncionamentos Ele torna-se

rapidamente capaz de analisar os acontecimentos em curso e explicitar a estrateacutegia utilizada e

a sua pertinecircncia Comeccedila a emergir uma eficaacutecia oacuteptima8raquo A compreensatildeo e a preensatildeo do

conhecimento natildeo nos deixa indiferentes faz de noacutes outro laquooutroraquo outra realidade que apesar

da existecircncia autoacutenoma assume que soacute pode existir se tiver possibilidade de se comparar com

as outras e se puder ser referenciada Eacute por isso que o nosso modelo de aprender tem que

acompanhar se possiacutevel o enquadramento das concepccedilotildees e tem que actualizar os conceitos

a sua marginalidade e o seu centrismo Pois haacute que ter em conta que ningueacutem aprende sem

antes fazer um trabalho profundo sobre as suas proacuteprias concepccedilotildees (diz Andreacute Giordan) e

sobre as concepccedilotildees dos outros onde ele se apresenta como porta-voz ou como mediador Eacute

por isso que em algumas situaccedilotildees vemos que eacute muito complicado ser porta-voz ou mediador

educativo porque vamos tentar transmitir algo que estaacute fora da nossa dizibilidade cultural

fora do nosso quadro referencial fora do nosso imaginaacuterio cultural Natildeo posso explicar o

rigor do Inverno se natildeo tenho experiencia do Inverno rigoroso porque natildeo disponho dos

dados fortemente caracteriacutesticos do Inverno

A minha explicaccedilatildeo deve superar a mera imagem informativa ou elucidativa da realidade A

minha informaccedilatildeo deve ser a mais real possiacutevel A imagem natildeo eacute a minha realidade eacute a

realidade daquela realidade eacute a realidade da fotografia tirada por mim ou por algueacutem Aqui a

fotografia tem mais ou menos a mesma funccedilatildeo que o vocabulaacuterio que estaacute como a porta de

entrada para a compreensatildeo oral pode ajudar ou pode complicar a compreensatildeo atraveacutes de

7 Cf Andreacute Giordan Aprender Editora Horizontes Pedagoacutegicos Lisboa 2007 p 162

8 Cf Idem

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uma falsa intermediaccedilatildeo de essecircncia da acccedilatildeo cultural A palavra vai ter um peso muito

importante nesta transiccedilatildeo porque pode permitir que cheguemos ou que fiquemos pelo

caminho pode manipular duplamente os conceitos A palavra usada na transmissatildeo deve ser

suficientemente aberta para permitir ao aluno viver a sua liberdade na hora da escolha deve

sentir-se familiarizado com o tema que quer escolher ou que quer trabalhar A obtusidade da

palavra pode tambeacutem ser um factor muito importante natildeo apenas na apreensatildeo dos conteuacutedos

mas tambeacutem na proacutepria escolha dos conteuacutedos por afinidade por gosto por paixatildeo ou ateacute por

curiosidade Quer o docente e quer discente tecircm que saber que este processo natildeo cabe num

frasco de linearidade Haacute muacuteltiplas facetas de ensinar e muacuteltiplas facetas de aprender Mas

entre ambas haacute uma faceta que eacute transversal que eacute desejaacutevel que seja transversal eacute a faceta

do ensinar honesto ou com a honestidade a de aprender honesto ou com a honestidade a de

que cada um tem que ser aquilo que eacute para dar e receber

Esta honestidade eacute muito importante para ajudar a fazer com que quer o educador quer o

educando caminhem para um espaccedilo da educaccedilatildeo liberal ldquoA educaccedilatildeo liberal eacute uma

educaccedilatildeo na cultura e para cultura9rdquo diz Leo Strauss o ldquoproduto terminado de uma educaccedilatildeo

liberal eacute um ser humano cultivadordquo insiste Strauss Uma educaccedilatildeo na cultura e para cultura

que nos conduza agrave formaccedilatildeo de um ser humano cultivado soacute pode ser feita inicialmente com

um fundamento muito forte da honestidade do cuidado e de autocuidado Strauss vai buscar a

explicaccedilatildeo do termo cultura a partir da sua origem latina (cultura) que se refere em primeiro

lugar agrave agricultura diz ele e no seu sentido derivado e actual (insiste ele) quer dizer ou

refere-se ao cultivo da mente Ora insiste o nosso autor assim como a terra precisa de

lavradores a mente precisa de mestres mas estes mestres soacute podem ser mestres ou

reconhecidos como mestres porque para aleacutem da sua periacutecia satildeo acima de tudo honestos

iacutentegros rectos e raros Eacute por isso que eacute mais faacutecil encontrar agricultores do que os mestres

diz Strauss sobretudo os mestres que natildeo satildeo disciacutepulos isto eacute os livros os grandes livros

No acircmbito da educaccedilatildeo liberal o estudante natildeo pode portanto estar separado dos livros dos

grandes livros e porque natildeo pode estar separado dos livros ele vai adonar-se deles e vai criar

condiccedilotildees para poder ajudar os outros estudantes menos experimentados remata Strauss

Tudo isso eacute um processo de honestidade Dedicar-se a estudar com profundidade as grandes

obras os grandes livros que muitas vezes dizem coisas completamente desconcertantes com a

sua eacutepoca o seu espaccedilo ou o seu meio cultural poliacutetico ou religioso Eacute por isso que a

educaccedilatildeo liberal natildeo pode ser entendida como um simples doutrinamento10 Eu natildeo posso

9 Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Katz editores Buenos Aires 2007 p 13

10 Cf Cit p 14

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pretender ou achar que estou a educar simplesmente porque estou a ideologizar as pessoas as

crianccedilas os jovens etc vou educar se crio cultura e se transformo as pessoas em cultura e na

cultura verdadeiramente adquirida com a honestidade

Strauss abre a possibilidade para que o termo cultura tambeacutem seja discutida porque cada

regiatildeo de planeta tem a sua proacutepria cultura Noacutes temos a nossa cultura enquanto africanos e

dentro do africano tambeacutem haacute vaacuterias culturas e subculturas (mesmo sabendo que um

socioacutelogo apressado emitiria imediatamente a sua reclamaccedilatildeo sobre subculturas11) O ideal na

educaccedilatildeo liberal eacute que a cultura natildeo seja uma pequena janela que natildeo seja apenas um

singulare tantum diz Strauss mas que seja e que procure ser utilizada no plural que aceite e

assuma o sentido relativo que lhe permite ser discutida Com a excepccedilatildeo dos loucos todos

somos seres de cultura insiste Strauss apesar da maacute compreensatildeo e da maacute interpretaccedilatildeo que

isso causa agraves vezes Natildeo obstante as maacutes interpretaccedilotildees e as maacutes compreensotildees fazem parte

do preccedilo que uma educaccedilatildeo liberal tem que pagar e tem que correr A educaccedilatildeo democraacutetica eacute

um preccedilo caro no acircmbito da educaccedilatildeo liberal natildeo apenas para o acircmbito acadeacutemico mas

sobretudo para o acircmbito poliacutetico onde o poliacutetico tem que justificar e merecer o voto dos

eleitores No nosso caso concreto o caso africano e de maneira particular a Aacutefrica lusoacutefona a

democracia natildeo se fez muito sentir natildeo estaacute a ser muito acompanhada pela educaccedilatildeo A

proacutepria expressatildeo democracia eacute vista e usada com ambiguidade Mas voltaremos a esta

anaacutelise num outro momento

A Democracia e Educaccedilatildeo

O termo democracia deve ser dos termos ou das expressotildees mais utilizadas a niacutevel poliacutetico e

fora do campo poliacutetico Eacute tambeacutem provavelmente dos termos poliacutetico-sociais mais ingratos

mais incompreensiacuteveis cujo uso eacute muitas vezes inadequado O saacutebio fala de democracia o

especialista tambeacutem mas natildeo eacute por isso que quem natildeo sabe da democracia deixa de falar dela

e isso faz com que ela seja um campo de todos e de ningueacutem Um campo do saacutebio do

especialista e do analfabeto

E eacute sobretudo com este uacuteltimo que vamos trabalhar e falar na democracia moderna Os paiacuteses

lusoacutefonos como muitos paiacuteses de Aacutefrica foram apanhados numa encruzilhada forccedilada da

virada do mundo Do mundo econoacutemico do mundo poliacutetico que tem que obedecer ao mundo

econoacutemico e tal como acontece nas regras e jogos de poderes tiveram que aceitar e entrar

para um jogo e uma regra que natildeo lhes era de todo favoraacutevel Tinham que dar espaccedilo real aos

11

Cf Cit p 14 laquoEacute todo o padratildeo comum de conduta proacutepria de um grupo humanoraquo

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partidos que estavam na oposiccedilatildeo e natildeo era possiacutevel fazecirc-lo realisticamente porque natildeo se

deixa de ser um Partido-Estado de um dia para outro e tinham que lutar contra a pobreza e

contra o analfabetismo as duas inimigas principais da democracia moderna e natildeo havia

garantia de que pudessem fazecirc-los nos termos que a democracia pensada pelos outros

propunha

Portanto a leitura que se deve fazer destes 25 anos da democracia nestes paiacuteses natildeo seria

naturalmente uma leitura triunfalista mas antes pelo contraacuterio uma leitura analiacutetica

Perguntar-se se o que chamamos democracia desde o iniacutecio foi verdadeiramente democracia

A leitura triunfalista eacute uma leitura de auto-regozijo de auto-suficiecircncia e de triunfalismo

nacionalista que faz uma espeacutecie de apagatildeo naquilo que eacute ou sobre aquilo que eacute a memoacuteria do

difiacutecil que roccedila ao fracasso e se esquece que a democracia eacute um regime que eacute feito para

triunfar perdendo ou fracassando Natildeo se pode esperar outra coisa da democracia senatildeo o

triunfo porque aparentemente eacute um regime onde todo o mundo tem a possibilidade e a

oportunidade de decidir de decidir sobre si mesmo e de decidir com o uso da influecircncia sobre

os outros E eacute precisamente na eventualidade de que esta influecircncia sobre os outros venha a

concretizar-se que fez com que os grandes teoacutericos do poder na antiguidade tivessem medo

da democracia laquoO que eacute que seria daquele regime onde o povo eacute quem mandaraquo

Perguntavam eles O que eacute que seria dos ricos da elite dos intelectuais da induacutestria etc Uma

seacuterie de questotildees do acircmbito de interesse particular se punha para chamar a atenccedilatildeo dos

particulares para natildeo aderir a algo que lhes podia fazer mal e fazer mal aos seus negoacutecios Eacute

por isso que a democracia natildeo eacute um poder do povo mas um poder de elite que eacute criado dentro

do povo sem que para isso o povo se decirc conta Os criacuteticos como Platatildeo sempre olharam para

esta elite que vem do povo como algo que sempre seraacute mal preparada para assumir com

distinccedilatildeo algo que eacute muito importante para o destino do paiacutes por isso nunca apoiaraacute um

regime democraacutetico Mas a democracia que eacute um regime triunfalista eacute uma democracia

falaciosa porque natildeo se pode esperar um triunfo na maioria ou da maioria uma vez que a

verdadeira maioria natildeo negocia natildeo dialoga apenas remete para o ponto de partida para a

regra do jogo inicial ainda que esta regra do jogo seja escrita e feita por ela de forma

maliciosa Eacute por isso que quando se fala da vitoacuteria da democracia no sentido da maioria

democraacutetica temos que olhar para esta maioria como aquela que mesmo sendo a maioria

deixou de secirc-la voluntariamente para se revestir do risco de ter que dar explicaccedilotildees de ter que

justificar-se de ter que sujeitar-se a ouvir quem perdeu quem o povo natildeo quer natildeo escolheu

e natildeo conta com ele de forma expliacutecita

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O triunfo da democracia maioritaacuteria natildeo eacute um triunfo numeacuterico mas sim um triunfo da

gestatildeo das emoccedilotildees e dos egos do poder e da poliacutetica daqueles que o povo indicou para

fracassar e aqueles que indicou para o sucesso um certo sucesso de insucesso porque tudo eacute

aprazo e eacute o proacuteprio povo que em primeiro plano natildeo respeita e nunca respeitou o prazo

Exige as contas antes do fim do prazo que ele estipulou e natildeo aceita justificaccedilotildees que natildeo

satisfaccedilam a sua proacutepria demanda os outros se transformam para ele em indiviacuteduos e ele em

Estado que tem que fazer com que a lei seja cumprida Uma tentativa de saiacuteda para esta

realidade para esta situaccedilatildeo tem que passar necessariamente pela Educaccedilatildeo eacute por isso que

alguns pensadores da democracia como eacute o caso de Gianfraco Pasquino defendem que a luta

da democracia moderna eacute uma luta que consiste em satisfazer a educaccedilatildeo e eliminar a

pobreza Natildeo se pode falar de uma democracia triunfalista quando se tem medo de olhar para

a memoacuteria que apresenta um nuacutemero insustentaacutevel do analfabetismo e de pobreza O triunfo

da democracia moderna eacute um triunfo que passa pela lucidez e um sono tranquilo de barriga

cheia natildeo da elite mas daqueles que sem ser elite sentem que algueacutem cumpriu com um

direito deles o direito de natildeo passar fome e de natildeo morrer analfabeto E esta expectativa

corresponde com a democracia moderna em alguns momentos porque eacute uma expectativa que

soacute pode ser realizada pela virtude por um regime virtuoso Em algum momento acreditamos

ou se diz que a democracia eacute um regime que depende da virtude diz Strauss Um regime onde

todos ou a maioria dos homens satildeo saacutebios uma sociedade onde todos os adultos satildeo saacutebios e

virtuosos uma sociedade aristocraacutetica uma democracia aristocraacutetica No fundo um grande

mal-entendido Aparentemente eacute o que nos teraacute acontecido em alguns momentos quando

recebemos a democracia Olhamos para ela como o estado de realizaccedilatildeo perfeita de todos e

para todos Olhamos para ela quase como que uma espeacutecie de governo dos deuses Com

efeito Aristoacuteteles tinha razatildeo quando alertou que a natureza humana natildeo permite que

olhemos para nenhum governo como lugar de possiacutevel perfeiccedilatildeo como lugar seguro porque eacute

a gestatildeo humana que vai fazer com que um lugar um governo ou um Estado seja tido como

seguro ou natildeo A gestatildeo humana das coisas eacute volaacutetil

Quando Aristoacuteteles e outros teoacutericos pensaram no indiviacuteduo viram nas instituiccedilotildees condiccedilatildeo

indispensaacutevel para responder aos anseios deste mesmo indiviacuteduo eacute por isso que criaram

maneiras formas instacircncias e institutos para permitir uma salvaguarda real do indiviacuteduo A

cidade natildeo eacute um espaccedilo natural do indiviacuteduo diz Aristoacuteteles porque implica regras

completamente diferentes das regras individuais das regras da arbitrariedade das regras da

autonomia ilimitada e das regras da natildeo obediecircncia A cidade surge portanto para dar corpo a

todo este mosaico de regras de normas de paixatildeo mas com ordem e comando unificado num

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basanos num basileus que soacute eacute independente porque obedece agraves leis porque cumpre as leis

Este propoacutesito escapou-nos enquanto africanos que festejaram a chegada da democracia e

enquanto africanos que ensinam e dirigem o (s) paiacutes (es) Olhamos para democracia tal como

olhaacutevamos para a independecircncia sempre com total ausecircncia de prestaccedilatildeo de contas e sempre

com a expectativa irreal da igualdade Mas a realidade eacute um fenoacutemeno que se justifica por si

mesmo e eacute nesta perspectiva que a Ciecircncia Poliacutetica se debate diz Strauss entre tentar

encontrar a democracia na sua geacutenese e a democracia tal como a realidade se lhe apresenta A

nossa luta eacute perceber a democracia tal como a realidade a apresenta naturalmente fazendo

uma leitura histoacuterica daquilo que ela foi de como surgiu mas sobretudo ter em conta que ela

tem uma aplicaccedilatildeo e uma aplicabilidade epocal Cada eacutepoca cultiva a sua proacutepria democracia

diz a sua proacutepria democracia e interpreta a sua proacutepria democracia A sua epocalidade renova-

se diariamente constroacutei-se na sua proacutepria construccedilatildeo-autodestruiccedilatildeo em nome da proacutepria

democracia e da correspondecircncia epocal

Somos da opiniatildeo de que Aacutefrica deve criar um estilo proacuteprio para a sua democracia Deve

criar a sua proacutepria democracia que se enraiacuteza nas suas culturas que tem em conta a sua

proacutepria particularidade e multiplicidade que tem em conta o papel das autoridades

tradicionais que muitas vezes sentem-se completamente perdidas no acircmbito do

enquadramento democraacutetico deve ter em conta o papel fulcral da mulher de todas as esferas

em Aacutefrica

No nosso contexto sabemos que ldquoa mulher africana eacute a porta de todas as entradas e a saiacuteda

de nenhuma saiacuteda natildeo autorizada A mulher africana eacute alegria de um continente com as suas

vaacuterias naccedilotildees e a sua uacutenica raccedila ela eacute o fracasso da poliacutetica e do poder quando se faz machista

e eacute a vitoacuteria da poliacutetica e do poder quando se faz humana quando se torna ouvinte e se

capitaliza como espaccedilo de confianccedila e de reconhecimento de todos Natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel

sem estes atributos da mulher natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel sem uma poliacutetica que escuta a mulher e

que permita que a sua opiniatildeo natildeo seja apenas um mero disfarce do politicamente correcto e

do eticamente aceitaacutevel A Aacutefrica possiacutevel eacute a Aacutefrica madrugadora como a preocupaccedilatildeo da

mulher para com o seu lar os seus filhosas o seu marido e toda a famiacutelia alargada A Aacutefrica

possiacutevel eacute a Aacutefrica da ternura e do pragmatismo encarnado pela mulher atraveacutes dos diversos

cuidados que presta ao seu lar e agrave comunidade no seu dia-a-dia Natildeo poderemos amar

verdadeiramente Aacutefrica se continuarmos a desprezar as suas mulheres e suas crianccedilas se a

opiniatildeo da mulher continuar a ser uma espeacutecie de favor que a comunidade lhe faz porque natildeo

quer contar com ela em termos objectivos porque lhe pintou com preconceitos de

instabilidade de inseguranccedila e de fragilidade Porque olha para ela como o problema de todos

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os problemas o mal de todos os males e portanto aquela com quem natildeo se pode nem se deve

contar na primeira hora das tomadas das decisotildees Eacute a invenccedilatildeo dos preconceitos e da

prostituiccedilatildeo ideoloacutegica que depois acaba por ser direccionada agrave mulher atraveacutes dos

mecanismos do ldquopoder positivo natildeo legisladordquo o direito criado ou assumido a partir dos actos

de todos os dias

Se tivermos em conta que em Aacutefrica as mulheres satildeo mais de metade da populaccedilatildeo do

continente e a niacutevel global as mulheres de todo o mundo satildeo a metade de toda a populaccedilatildeo

mundial entatildeo poderemos com maior propriedade dar valor agrave figura da mulher natildeo soacute para o

nosso continente mas a niacutevel global Sabemos que de cada vez que a mulher ganha um

direito conquista um direito os seus ganhos e as suas conquistas cimentam a estabilidade

local e regional para a paz e para o desenvolvimento geopoliacutetico porque a mulher no seu

exerciacutecio de responsabilidade eacute muito mais persuasiva e honra com brilho o seu compromisso

Sabemos graccedilas agrave histoacuteria etnograacutefica e histoacuteria dos acontecimentos que muitas das

reivindicaccedilotildees das mulheres africanas antecederam uma boa parte das reivindicaccedilotildees

femininas no Ocidente moderno e contemporacircneo A descoberta do continente africano pelos

europeus tambeacutem conheceu a resistecircncia feminina ao lado dos homens africanos e isto

antecede a luta feminista e a luta a auto-afirmaccedilatildeo do geacutenero no Ocidente O fracasso da

Aacutefrica reside na ldquoahistorizaccedilatildeordquo do papel das suas mulheres reside na negaccedilatildeo da histoacuteria

positiva das suas mulheres reside no facto de encurtar as epopeias femininas das suas

heroiacutenas Paiacuteses como Ruanda demostram isso todos os dias Ruanda poacutes genociacutedio teve 56

das mulheres nos seus respectivos governos e todos noacutes temos notiacutecias e conhecimento da

solidez da economia e da poliacutetica de Ruanda

Temos consciecircncia de que apesar do brilho do bem-fazer e do saber-fazer da mulher africana

ainda assim haacute muitos obstaacuteculos que ela tem que superar entre eles o proacuteprio preconceito

machista Mas mesmo sabendo do preconceito machista cremos que o preconceito maior

com o qual ela se debate eacute o preconceito cultural e religioso para uma boa parte de Aacutefrica que

tem a ver com a tradiccedilatildeo negativa Estamos por exemplo a pensar na questatildeo da mutilaccedilatildeo

genital nos casamentos forccedilados e de conveniecircncia clacircnica o traacutefico das crianccedilas do sexo

feminino e o preconceito sobre a mulher que padece de viacuterus de VIH Estes males e

preconceitos satildeo mais prejudiciais agrave condiccedilatildeo feminina da mulher africana do que qualquer

mal que possa abater sobre ela Natildeo haacute um mal pior que o mal do preconceito e natildeo haacute cultura

mais enferma que a cultura preconceituosa

Aacutefrica soacute pode resgatar a sua cultura se lutar contra os seus preconceitos negativos elevando a

condiccedilatildeo da mulher e criando-lhe instrumentos e condiccedilotildees para lutar contra o mal que a

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cultura e tradiccedilatildeo criaram para ela e contra ela muitas vezes sem pedir a sua opiniatildeo O

horizonte possiacutevel para Aacutefrica eacute aquele de destruiccedilatildeo positiva dos preconceitos culturais

prejudiciais para as suas mulheres e crianccedilas Haacute que possibilitar que os dogmas culturais

intelectuais e religiosos sejam questionados para o bem da salvaguarda da proacutepria cultura da

proacutepria religiosidade e da proacutepria intelectualidade A poliacutetica e os poliacuteticos que tomarem isso

como uma iniciativa singular salvaratildeo todo o continente africano12

rdquo

A democracia que pensa a sua proacutepria realidade natildeo pode natildeo ter em conta estas necessidades

e particularidades Eacute por isso que o novo enfoque democraacutetico em Aacutefrica e nos paiacuteses

lusoacutefonos em particular deveria incluir na escolaridade preacute-universitaacuteria a disciplina da

EDUCACcedilAtildeO PARA A DEMOCRACIA assim como pensar a possibilidade de cadeiras

como ldquoLITERATURA E INSTRUCcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeOrdquo tambeacutem no preacute-

universitaacuterio Uma educaccedilatildeo para a democracia e uma literatura e instruccedilatildeo para a

democracia evitariam que caiacutessemos naquilo que Strauss chama ou designa por ldquofalta de

espiacuterito puacuteblico13

rdquo nas democracias modernas isto eacute a criaccedilatildeo de cidadatildeos que soacute se

interessam em ler as paacuteginas desportivas dos jornais e as paacuteginas das pequenas histoacuterias e

mais nada Pensar num ensino da democracia que possa ser cimentado com apoio das nossas

tradiccedilotildees orais ajudaria natildeo soacute a ter a qualidade viva dos nossos debates democraacuteticos como

tambeacutem a fundar uma democracia de raiacutezes africanas que bebem das outras culturas mas que

tambeacutem podem reivindicar a sua originalidade poliacutetica Os diversos tipos de ONDJANGO

que existem nas culturas africanas podem ser exploradas desde o ponto de vista democraacutetico

ondjango como espaccedilo de concertaccedilatildeo de ideias como espaccedilo de recepccedilatildeo do ensinamento

dos mais velhos se aproximaria ao conceito grego de aacutegora Uma educaccedilatildeo para a democracia

em Aacutefrica deveria ter em conta tambeacutem os nossos proveacuterbios adaacutegios e aforismos com uma

acentuada moralidade onde podemos encontrar a profundidade do ser africano do espiacuterito

africano e da sua consciecircncia moral e eacutetica Neles encontramos uma insondaacutevel e inesgotaacutevel

sabedoria praacutetica transversal a todo o continente O que em Angola se designa como

ondjango na Guineacute-Bissau aparece com o nome de Djembereacutem e em algumas circunstacircncias

com o nome de Bantaba de djumbai Ambos satildeo espaccedilos de confraternizaccedilatildeo de caraacutecter

educativo desde o ponto de vista da recepccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo da cultura e do pensamento

tradicional Quer a expressatildeo djembereacutem quer a expressatildeo bantaba designam um espaccedilo

circular de modo geral coberto de capim ou chapa de zinco podendo ser usados pelas pessoas

12

Cf Este trecho faz parte de um texto escrito a 31 de Julho de 2017 para um discurso ldquoencomendadordquo para o

dia internacional da mulher africana 13

Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Ed Katz Buenos Aires 2007 p 17

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de todas as idades mas em circunstacircncias diferentes Eacute um espaccedilo de reuniotildees e de encontro

de caraacutecter familiar da aldeia ou do grupo onde muitas vezes saem as decisotildees que dizem

respeito agrave comunidade eacute um espaccedilo legislativo da lei natildeo escrita da comunidade A palavra

djumbai significa divertir-se brincar daiacute que se bem o bantabaacute tem este caraacutecter seacuterio das

tomadas de decisotildees natildeo obstante esta seriedade eacute fundada na proximidade e na

familiaridade comunidade o que faz com que o poder natildeo seja algo estranho algo longiacutenquo e

tambeacutem faz com que o ensinamento e a transmissatildeo natildeo sejam vistos com a desmesura da

grandiosidade Contrariamente aos gregos e aos povos da Mesopotacircmia o lugar onde se

ensina e onde se toma as decisotildees eacute frequentado por todos pelas mulheres e crianccedilas pelos

doentes e saudaacuteveis

Conforme vimos o ondjango nos remete para a realidade da casa (NUNES

1991 159) Mas de que casa se trata Trata-se da casa de conversa de

reuniatildeo de hospedagem de partilha de bensrefeiccedilatildeoserviccedilos de

educaccedilatildeoiniciaccedilatildeo sociocultural de entretenimento eou de fazer justiccedila

Antes de tudo se trata de uma casa ponto de partida e ponto de confluecircncia

de uma casa com as condiccedilotildees de se poder sentar reunir junto de alguns

mais-velhos trata-se de um lugar de encontro14

Esta aproximaccedilatildeo de ondjango com a comunicaccedilatildeo e gestatildeo da casa permite-nos criar aqui

uma relaccedilatildeo comparativa com oikos nomoi xenofontino-aristoteacutelico Isto eacute podemos

reivindicar para o ondjango africano as mesmas capacidades os mesmos papeacuteis ou funccedilotildees

institucionais que tinha o oikos a partir da sua visatildeo da ldquofamiacutelia da propriedade da famiacutelia e

da casardquo Tal como vemos neste texto de Nunes citado por Martinho Kavaya este ondjango eacute

pluridisciplinar baseado em vaacuterias meacutetricas sociais o que de certa forma tambeacutem corresponde

com aquilo que podemos encontrar na concepccedilatildeo da palavra grega oikos A educaccedilatildeo do

ondjango do djembereacutem ou do djumbai satildeo portadoras do espaccedilo familiar da propriedade da

famiacutelia e da reflexatildeo sobre a casa sobre as coisas da casa e isso permite fazer com que o que

se discute neste espaccedilo seja efectivamente aquilo que importa agrave cidade aquilo que importaraacute agrave

cidade um dia E o que eacute pode importar profundamente agrave cidade Naturalmente as pessoas a

sua gente os homens e mulheres crianccedilas e velhos animais e plantas No fundo tudo que diz

respeito ao homem e ao seu envolvimento social e espiritual e eacute isso que o ondjango africano

14

Cf Martinho Kavaya Freire e o Ondjango podem dialogar Reflexotildees sobre o diaacutelogo de Freire com o

ondjango africano Angolano GT Educaccedilatildeo Popular n06 p 2 consultado em 30 de Outubro de 2017

httpwwwanpedorgbrsitesdefaultfilesgt06-2805-intpdf

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pretende passar atraveacutes dos seus diferentes status e fases do mais novo ao mais velho e do

mais velho ao mais novo

Toda a vida parte do ondjango e laacute encontra seu aacutepice Aiacute segundo a

pertinecircncia do vivenciado o ohango (conversadiaacutelogo) tomava vaacuterios

significados ldquoondjangordquo enquanto ldquoulongardquo (relato da vida desde o encontro

anterior) ldquoelongisordquo (ensinamento e aprendizado) ldquoekutardquo (partilha de bens

alimentares) ldquoekongelordquo (reuniatildeo de caraacuteter deliberativo)

ldquoekangaokusombaokusombisardquo (reuniatildeo para fazer justiccedila e sentenciar para

punir ou absolver o arguumlido) ldquookupapalardquo (encontro de entretenimento festas

e danccedilas culturais e tradicionais conforme a situaccedilatildeo vivida no momento

morte caccedila casamento iniciaccedilatildeo sociocultural e comunitaacuteria acolhimento

de uma visita etc) ldquoondjulukardquo (encontro para organizar um mutiratildeo

comunitaacuterio a favor de algum da comunidade em situaccedilatildeo de doenccedila

problema socioeconocircmico intervenccedilatildeo de ajuda na sua lavoura etc)

(KAVAYA 2006 p147) Afinal o ondjango eacute o habitat comunal e vital

onde se desenham as relaccedilotildees de conviacutevio geo-histoacuterico econocircmico

sociocultural poliacutetico etc em vista o bem comunitaacuterio15

Educar para a conservaccedilatildeo destes valores eacute tambeacutem educar para a democracia e eacute educar para

a manutenccedilatildeo da cultura e dos preconceitos positivos A democracia em todo o sentido e em

toda a sua histoacuteria sempre conteve um elemento educativo muito forte e quase indissociaacutevel

de si mesma eacute o diaacutelogo para gerar a cultura e a cultura para gerar diaacutelogo Natildeo pode haver

uma verdadeira democracia que dispense este binoacutemio O erro de pensadores como Platatildeo em

relaccedilatildeo agrave sua recusa agrave democracia reside no facto de desprezarem excessivamente qualquer

tipo de possibilidade para educaccedilatildeo viaacutevel do homem democraacutetico reside no facto de natildeo

acreditarem que a democracia pode educar um poloi e fazer dele um aristoacuteis agrave sua maneira

ou ainda este erro pode residir no facto de que estes pensadores natildeo tiveram em conta que o

poloi apenas pode querer ser simplesmente e eternamente um poloi mesmo sendo democrata

O erro consistiu em pensar que os que podem e devem governar a cidade deviam deixar de ser

das suas respectivas camadas e passar a ser aristocratas Eacute um erro que ainda vemos hoje

15

Cf Ibid p 3

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EDUCACcedilAtildeO CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO

UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS

ABEL JOSEacute DA SILVA a

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS b

adasilva00gmailcom

ireneinakulomoisesgmailcom

Resumo

A presente comunicaccedilatildeo faz uma caracterizaccedilatildeo do Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo

Universitaacuterio com ecircnfase nos seus desafios e perspectivas Analisa este processo a partir da

interpretaccedilatildeo sistecircmica que decorre dos pressupostos legais da Educaccedilatildeo e Ensino em Angola

Como meacutetodo usa a revisatildeo bibliograacutefica e a interpretaccedilatildeo e fundamenta a caracterizaccedilatildeo do

referido processo como variaacutevel baacutesica para a anaacutelise da qualidade do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola idealizado com base nos princiacutepios da legalidade da integridade da

laicidade da universalidade da democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da

intervenccedilatildeo do Estado da qualidade de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais

ciacutevicos e patrioacuteticos Tem como objectivo reflectir sobre os aspectos que o caracterizam e que

interferem na sua qualidade Apresenta a missatildeo do processo integrada ao Sistema em que

todos os agentes educativos participam da sua funcionalidade

Palavas-Chave Processo Ensino Aprendizagem Sistema

Abstract

This scientific paper characterizes the Non-University Teaching and Learning Process with an

emphasis on its challenges and perspectives It analyzes this process from the systemic

interpretation that arises from the legal presuppositions of Education and Teaching in Angola

As method uses the literature review and the interpretation and founded the characterization

of this process as basic variable for the analysis of the quality of the system of Education and

Teaching in Angola Idealized on the basis of the principles of legality integrity secularity

universality democracy gratuitousness obligation compulsion State intervention quality of

services education and promotion of moral civic and patriotic values It aims to reflect on the

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aspects that characterize and that interfere in its quality Has the mission of the process

integrated into the System in which all educational agents participate in its functionality

Key-words Process Teaching Learning System

Introduccedilatildeo

O Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo Universitaacuterio (PEANU) eacute uma importante variaacutevel

para a anaacutelise do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino em Angola (SEEA) sistema perspectivado

com base nos ldquoprinciacutepios da legalidade da integridade da laicidade da universalidade da

democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da intervenccedilatildeo do Estado da qualidade

de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticosrdquo (Lei no 1716

art 5ordm)1

A caracterizaccedilatildeo do PEANU pressupotildee assumir um posicionamento holiacutestico que analise o

mesmo como um processo natildeo isolado do todo porque o SEEA eacute estruturalmente unitaacuterio e a

sua realizaccedilatildeo na situaccedilatildeo especiacutefica da anaacutelise tem influecircncia no funcionamento da totalidade

(princiacutepio da integridade art 7ordm e art 17ordm)

Os desafios e perspectivas como outra dimensatildeo importante derivada do processo de

parametrizaccedilatildeo do assunto ndash objecto de anaacutelise justificam-se a partir da consideraccedilatildeo dos

princiacutepios da universalidade democraticidade gratuitidade obrigatoriedade intervenccedilatildeo do

Estado qualidade de serviccedilos e da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais pois que se a

Lei tipifica o que idealmente eacute o correcto a necessidade de confrontar com a realidade agrave luz

da pesquisa bibliograacutefica eacute inadiaacutevel para o alinhamento do agir educativo com os princiacutepios

legais

A partir destes princiacutepios infere-se que a Educaccedilatildeo e o Ensino satildeo natildeo apenas um direito mas

tambeacutem um dever que se deve realizar com a qualidade requerida para que a construccedilatildeo de

uma nova sociedade assente na democracia esclarecida seja possiacutevel Para isso agrave Escola

atraveacutes do Processo de Ensino e Aprendizagem (PEA) em todos os niacuteveis de ensino e

especialmente nos natildeo universitaacuterios impende a tarefa de formar personalidades capazes de

influenciar com o seu saber e suas qualidades o curso da histoacuteria concreta do seu contexto

Deste modo o Processo tem de ser significativo2 Para que o processo seja significativo eacute

1 Lei de Bases do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino que estabelece os princiacutepios e bases do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola de 7 de Outubro de 2016 Esta Lei revoga a Lei 1301 de 31 de Dezembro de 2001 2 O PEANU eacute significativo quando assegure o cumprimento da sua finalidade tal como se institui no art 25ordm da

Lei 1716 referente aos Objectivos Gerais do Subsistema do Ensino Geral Desta significatividade resulta em

consequecircncia a eficaacutecia do Sistema

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necessaacuterio caracterizaacute-lo com a finalidade de que se conheccedilam natildeo soacute os seus pontos fortes

mas tambeacutem os fracos aspecto que se aborda seguidamente

Por isso o objectivo deste trabalho consiste em reflectir sobre os aspectos do SEEA que o

caracterizam e que interferem na qualidade do PEANU

1 Estrutura do Seea Ponto de partida para a caracterizaccedilatildeo do Peanu

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento ldquoad intrardquo da

realidade educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento (Cfr

Silva 2016) Por isso a anaacutelise estrutural do SEEA baseada nas proposiccedilotildees da Lei 1716 e

fundamentada pela revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura criacutetico-contextual eacute uma

tarefa basilar para esta caracterizaccedilatildeo

A caracterizaccedilatildeo do Sistema Educativo numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional de

acordo com Ngaba ( 2012) e Liberato (2014) permite concluir que existem avanccedilos e

retrocessos no processo educativo angolano que em termos de poliacutetica educativa

condicionaram a sua evoluccedilatildeo positiva bem como a sua afirmaccedilatildeo no cenaacuterio internacional e

ateacute mesmo regional3

A partir desta ideia geral sobre o estado do SEEA que de modo especial se realiza por meio

do PEANU eacute possiacutevel compreender que estruturalmente estaacute bem concebido se se analisam

todos os factores intencionais de entrada e saiacuteda de um niacutevel de ensino para outro Entretanto

o aspecto funcional real fica aqueacutem do desejado se se avaliam com visatildeo criacutetico-acadeacutemica

os resultados do processo e os discursos oficiais que asseguram a Poliacutetica do Sistema

Educativo

Contrariamente agrave 1ordf Repuacuteblica (Cfr Ngaba 2012) que natildeo se fez reger por um documento

base tanto a 2ordf como a 3ordf Repuacuteblicas de Angola tecircm como fundamento a Lei de Bases do

SEEA que estabelece a criaccedilatildeo de condiccedilotildees mais adequadas para a aplicaccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas e dos programas nacionais com o objectivo de continuar a assegurar o

3 Este momento criacutetico do SEEA eacute tambeacutem hoje reconhecido oficialmente pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo do Paiacutes

na voz da sua titular no encerramento da Semana Nacional sobre Educaccedilatildeo em Angola realizada em Luanda Por

isso para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo actual do Sistema Educativo e do PEANU especificamente eacute criteacuterio dos

autores deste trabalho que os problemas fracturantes que colocam em causa a qualidade do Sistema natildeo podem

ser analisados unilateralmente sob pena de se incorrer num reducionismo indevido pois estatildeo em causa

muacuteltiplas variaacuteveis que chocam com diversos princiacutepios e disposiccedilotildees legais em que assenta o Sistema

infraestruturas precaacuterias insuficiecircncia dos materiais e meios didaacutecticos factos que se agravam ainda mais com a

falta de preparaccedilatildeo adequada dos professores de tal modo que possam responder aos desafios do Sistema

idealizados pela Reforma Educativa Essa visatildeo geral estrutural e conjuntural pode reflectir-se e explicar-se

melhor por meio do seguinte exemplo em relaccedilatildeo agrave indisciplina na aula espaccedilo privilegiado em que se

desenvolve o PEA Estrela (1983) citada por Lopes (2005) identificou um conjunto de variaacuteveis que vatildeo desde o

proacuteprio aluno passando pelo professor pela instituiccedilatildeo escolar ateacute agrave proacutepria sociedade Estes satildeo dados

suficientes para pensar na qualidade educativa como multideterminada

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desenvolvimento humano com base numa educaccedilatildeo e aprendizagem ao longo da vida para

todos os indiviacuteduos que permita assegurar o aumento dos niacuteveis de qualidade de ensino

Considerando a anaacutelise da estrutura do Sistema estabelecido pela Lei 1716 conclui-se que as

principais alteraccedilotildees agrave antiga Lei relacionam-se entre outras com a gratuitidade e

obrigatoriedade do ensino que passa a compreender as classes da Iniciaccedilatildeo do Ensino

Primaacuterio e do Primeiro Ciclo do Ensino Secundaacuterio bem como a nomenclatura das

instituiccedilotildees

Nesta vertente assume-se que o Subsistema de Ensino Geral eacute o fundamento do SEEA (Lei

no 1716 art 24ordm) que visa de acordo com o artigo em referecircncia assegurar uma formaccedilatildeo

integral harmoniosa e soacutelida necessaacuteria para uma boa inserccedilatildeo no mercado de trabalho e na

sociedade bem como para o acesso aos niacuteveis de ensino subsequentes

Como se pode apreciar existe uma relaccedilatildeo de determinaccedilatildeo entre o processo de ensino e

aprendizagem que se realiza no Subsistema do Ensino Geral e o trabalho bem como com a

Sociedade e com os niacuteveis de ensino posteriores o que significa o reconhecimento da

importacircncia deste niacutevel que deve permitir a aquisiccedilatildeo de ferramentas fundamentais para a

compreensatildeo da vida e do mundo Entre os seus objectivos de acordo com Ngaba (2012 p

158) constam os do desenvolvimento ldquodos conhecimentos e as capacidades que favoreccedilam

uma auto-formaccedilatildeo educar para a cidadaniardquo A educaccedilatildeo vista a partir da oacuteptica deste niacutevel

de ensino eacute um factor de integraccedilatildeo social

Por isso o questionamento da qualidade do PEANU eacute no fundo o questionamento da

qualidade do Sistema em si uma vez que estudando Poliacuteticas Educativas em Angola (1975-

2005) o autor antes referenciado e alinhado com Liberato afirma

ldquoEm termos gerais fica a ideia de estarmos perante um processo evolutivo que em periacuteodos

diferentes se foi deparando com os mesmos problemas e optando pelas mesmas soluccedilotildeesrdquo

No entanto de acordo com o mesmo autor ldquoquase quatro deacutecadas depois das primeiras

mudanccedilas ldquosignificativasrdquo no sector da educaccedilatildeo deacutecadas essas caraterizadas por sucessivos

estudos e mudanccedilas o paiacutes (hellip) carece de soluccedilotildees radicais que possam corrigir de uma vez

por todas os factores relacionados com o baixo coeficiente do sistema angolanordquo (Ngaba

2012 p 173)

De acordo com a ideia anterior a questatildeo da qualidade de ensino em Angola natildeo deve ser

vista como uma questatildeo da responsabilidade exclusiva de um ou de outro niacutevel de ensino

mas como uma questatildeo transversal do SEEA considerando entre outros princiacutepios gerais o

da integralidade estatuiacutedo no artigo 7o da Lei 1716 Por isso a anaacutelise desta questatildeo implica

um posicionamento multifactorial

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Com base nessa posiccedilatildeo o Sistema possui potencialidades capazes de proporcionar um PEA

motivador que permita a construccedilatildeo das aprendizagens dos alunos e que transforme o saber

em saber fazer e em saber ser na base de uma visatildeo axioloacutegica pois atendendo agrave

complexidade da acccedilatildeo educativa a UNESCO no Relatoacuterio DELORS (2003 p 11) sustenta

que para concretizar a sua meta a educaccedilatildeo deve organizar-se em quatro tipos fundamentais

de aprendizagens que ao longo da vida do indiviacuteduo seratildeo os pilares do conhecimento

Aprender a conhecer isto eacute adquirir os instrumentos para a compeensatildeo

aprender a fazer de modo a ser capaz de agir criativamente no proacuteprio

ambiente aprender a viver juntos de modo a participar e a colaborar com os

outros em todas as actividades humanas aprender a ser isto eacute um progresso

essencial que deriva dos trecircs precedentes

Para tornar este sonho real eacute necessaacuterio que o processo seja significativo e em si mesmo

motivador formando os professores de acordo com as necessidades da realidade objectiva

Trata-se de prover os recursos necessaacuterios a um processo que desafie os limites da situaccedilatildeo

actual pois se o professor eacute indispensaacutevel natildeo eacute menos verdade que os recursos educativos

tambeacutem o sejam (Lei 1716 art 97ordm)4

Tendo em conta os pressupostos legais da Repuacuteblica de Angola (Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e

Lei 1716) e os pilares da educaccedilatildeo propostos pela UNESCO considera-se que o ideal

educativo estaacute devidamente delineado Contudo eacute necessaacuterio que de acordo com Nanni

(2005 p81) citado por Fernando (2010 p 17) no ldquoacircmbito educativo o fim uacuteltimo ndash o

horizonte para o qual deve tender toda a acccedilatildeo educativa ndash natildeo deve fazer com que os fins

intermeacutedios ndash que o tornam possiacutevel e factiacutevel ndash sejam esquecidosrdquo Daiacute a relaccedilatildeo entre fins

meios e procedimentos educativos

A distinccedilatildeo entre fins uacuteltimos da educaccedilatildeo meios e procedimentos educativos eacute fundamental

porque de acordo com Fernando (2010 p 18)

Impele agrave procura e a determinar os recursos o tempo as modalidades e as estrateacutegias para a

realizaccedilatildeo do objectivo educativo que se pretende e permite de certo modo natildeo esquecer que

se natildeo se fizer a diferenccedila entre ideal e real entre fim uacuteltimo e limite da acccedilatildeo humana entre o

horizonte e o limite concreto das coisas e da existecircncia entre o itineraacuterio projectado e a

complexidade do percurso e da vida das pessoas corre-se o risco de se ser desumano e de cair

4 No artigo 97ordm a Lei 1716 define recursos educativos como os meios que contribuem para o desenvolvimento

do SEEA tais como a) Guias e programas pedagoacutegicos b) Manuais escolares C) Meios teacutecnicos e

tecnoloacutegicos de ensino d) Bibliotecas e) Equipamentos f) Laboratoacuterios g) Oficinas h) Instalaccedilotildees e

material desportivo e cultural i) Campos de ensaios treinamento e experimentaccedilatildeo j) Auditoacuterios e salas

especializadas

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no perfeccionismo ou de se desencorajar cansar e por fim de se sentir insatisfeito com aquilo

que se faz

Em consequecircncia nos nossos dias a questatildeo do discurso pedagoacutegico sobre a ldquofinalidaderdquo da

educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU natildeo eacute faacutecil porque a educaccedilatildeo eacute caracterizada hoje por

certa crise pela necessidade de inovaccedilatildeo e pelo pluralismo de ideias de valor e de cultura do

momento histoacuterico actual (Cfr Fernando 2010 Ngaba 2012 Liberato 2014)

Na continuidade da anaacutelise sobre a finalidade da educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU os

autores concordam com Fernando (2010 p 19) ao distinguir dois tipos de tendecircncias

educativas

1 A tendecircncia redutora que ldquoprocura ver a aprendizagem em funccedilatildeo das necessidades da

economia que com as suas solicitaccedilotildees convida a rever os conteuacutedos do ensino e sua

organizaccedilatildeo Esta eacute a linha ou corrente mais seguida nos nossos diasrdquo

2 A tendecircncia aberta que ldquoprocura integrar no conceito de aprendizagem outros elementos

significativos mais ligados agraves dimensotildees psicoloacutegicas sociais e culturais das experiecircncias do

indiviacuteduo enquanto protagonista da aprendizagemrdquo

Para os autores embora a primeira tendecircncia seja a mais seguida actualmente a segunda

parece melhor corresponder agrave dignidade do homem responsaacutevel porque de acordo com a Lei

1716 (art 15ordm) o SEEA deve promover natildeo soacute o cultivo da intelectualidade mas tambeacutem

dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticos

Assim a primeira reduz a finalidade da escola agrave instruccedilatildeo e a segunda supera esta visatildeo

sustentando que a finalidade primaacuteria da actividade pedagoacutegica escolar eacute a de educar sem

contudo deixar de parte a sua funccedilatildeo instrutiva Neste sentido a finalidade da educaccedilatildeo como

instituiccedilatildeo social deve coincidir com a finalidade da escola enquanto instituiccedilatildeo formal e

socialmente mandatada para educar isto eacute para possibilitar o desenvolvimento permanente da

qualidade da pessoa humana com dignidade e integridade

2 Desafios e Perspectivas da Educaccedilatildeo

Nas paacuteginas anteriores ficou clara a ideia de que os resultados qualitativos do SEEA

fundamentalmente relacionados com o PEANU satildeo e devem ser processo-produto de um

funcionamento integral do Sistema Por isso o maior desafio da educaccedilatildeo em Angola hoje eacute o

de vencer a contradiccedilatildeo existente em que satildeo atribuiacutedas culpas isoladas ou ao aluno que natildeo

estuda ou ao professor que natildeo estaacute preparado e natildeo motiva ou agraves mateacuterias que natildeo satildeo

atractivas e adaptadas agrave realidade profissional e do contexto de vida dos alunos ou aos pais

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que natildeo acompanham suficientemente os filhos ou ainda ao proacuteprio Sistema Educativo de

maneira geral

De acordo com a ideia anterior e tendo em conta a revisatildeo bibliograacutefica realizada5 os autores

consideram que os desafios para a melhoria das falhas devem ser enfrentados de forma

sistecircmica porque cada uma das variaacuteveis antes mencionadas eacute importante para o

funcionamento normal ou natildeo do PEA natildeo apenas no niacutevel referenciado mas em todos os

niacuteveis em atenccedilatildeo aos princiacutepios de integridade do Sistema e da obrigatoriedade e qualidade

dos serviccedilos educativos Isto pressupotildee uma poliacutetica educativa ajustada agrave realidade que

incentive a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores e garanta os meios materiais indispensaacuteveis

ao processo

Trata-se de construir uma verdadeira comunidade educativa em que todos os agentes

educativos como a famiacutelia a escola e a comunidade na sua dimensatildeo mais alargada

participem Por isso eacute necessaacuterio repensar a educaccedilatildeo para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de

um paiacutes novo como afirmara Joseacute Eduardo dos Santos (2008) nos seguintes termos ldquoum

novo paiacutes estaacute a nascer e com ele haacute-de florescer tambeacutem um cidadatildeo novordquo Quando

Considerando a perspectiva temporal como resposta os autores acreditam que isso se

realizaraacute agrave medida que a educaccedilatildeo se assuma antes de tudo como uma condiccedilatildeo de verdadeira

cidadania e natildeo de mera transmissatildeo de receitas importadas do exterior e enxertadas no nosso

contexto quando todos os agentes educativos tiverem presente que o educar eacute na verdade

um verbo ldquoque exige uma acccedilatildeo com atitude transformadorardquo (Pereira e Silva 2008 p 24)

Eacute neste sentido que Joseacute Eduardo dos Santos na sua alocuccedilatildeo agrave Naccedilatildeo referia-se ao papel dos

pais dos professores e de todos os actores sociais como verdadeiros agentes educativos da

juventude Trata-se do desafio de construir uma verdadeira sociedade educativa

Na construccedilatildeo dessa sociedade educativa a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores para o SEEA

e sobretudo para o PEANU deve ser entendida como uma consequecircncia de uma formaccedilatildeo

inicial que seja adequada agraves necessidades reais da sociedade para a qual se educa Isso implica

que os professores devem ser formados com base nos desafios da nova Repuacuteblica (Ngaba

2012)

5 Em Ofiacuteco de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Perrenoud (1995) denuncia uma dupla evidecircncia por um

lado haacute alunos que natildeo aprendem e por outro professores que natildeo formam porque ambos se contentam em

exercer manualmente os oacutecios do ofiacutecio enquanto a cabeccedila estaacute ausente Na mesma linha Grilo (2002) entende

que na ldquoNa sociedade do conhecimento hoje aprende-se e ensina-se em circunstacircncias e contextos muito

diversos embora por vezes se ensine mas natildeo se aprenda como ocorre por exemplo em algumas das escolas

Mas partindo do princiacutepio de que quando se ensina haacute sempre algueacutem que aprende o ensino (hellip) eacute um

mecanismo muito importante e uma peccedila fundamental desta sociedaderdquo (p 121)

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A formaccedilatildeo inicial que serve de base para a formaccedilatildeo contiacutenua de professores de acordo com

a Lei 1716 eacute assegurada pelo Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores que estaacute estruturado

em Ensino Secundaacuterio Pedagoacutegico e Ensino Superior Pedagoacutegico O primeiro constitui o

ldquoprocesso atraveacutes do qual os indiviacuteduos adquirem e desenvolvem conhecimentos haacutebitos

habilidades capacidades e atitudes que os capacite para o exerciacutecio da profissatildeo docente na

Educaccedilatildeo Preacute-escolar no Ensino Primaacuterio e no I Ciclo do Ensino Secundaacuterio Regular de

adultos e na Educaccedilatildeo Especial e mediante criteacuterios o acesso ao Ensino Superior

Pedagoacutegicordquo (Art 46)

Por outro lado e de acordo com a mesma Lei um dos fundamentos do SEEA o ldquoEnsino

Superior Pedagoacutegico eacute um conjunto de processos desenvolvidos em Instituiccedilotildees de Ensino

Superior vocacionados agrave formaccedilatildeo de professores e demais agentes de educaccedilatildeo habilitando-

os para o exerciacutecio da actividade docente e de apoio agrave docecircncia em todos os niacuteveis e

subsistemas de ensinordquo (Art 49)

Em correspondecircncia com os estes dois artigos da Lei 1716 compreende-se a relaccedilatildeo

intriacutenseca entre o Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores e os diferentes niacuteveis de ensino do

SEEA

A educaccedilatildeo em Angola vista na oacuteptica dos seus fundamentos legais constitui-se assim numa

ldquoforma de poder porque a educabilidade eacute um poder-ser humano mediado pela educaccedilatildeo

como poder sobre o ser humano que decide sobre o dever-ser humano Eacute um poder ser

porque o ser humano eacute um ser biologicamente aberto agrave criaccedilatildeo de uma segunda naturezardquo

(Monteiro 2004 p 12)

De acordo com o autor referenciado com antecedecircncia todas as formas de poder do ser

humano sobre o outro suscitam a questatildeo da sua legitimidade Esta questatildeo eacute no fundo a do

fundamento e controlo do poder que o professor exerce atraveacutes dos conteuacutedos e formas da

comunicaccedilatildeo que realiza ante o aluno Assim sendo

A ldquolegitimidade pedagoacutegica eacute de natureza social porque ser profissional da

educaccedilatildeo implica um mandato da sociedade atraveacutes do Estado que regula o

exerciacutecio da funccedilatildeo Eacute tambeacutem de natureza individual na medida em que a

competecircncia pessoal tem um efeito de auto-legitimaccedilatildeo junto dos educandos

Mas tem de ser problematizada com mais radicalidade porque a educaccedilatildeo eacute

afinal uma forma de poder do homem sobre o homemrdquo (Monteiro 2004 p

12)

Daiacute que se a educaccedilatildeo eacute uma forma de poder eacute necessaacuterio que se exerccedila tal poder na justa

medida tendo como princiacutepio e limite a Lei que estabelece entre outros aspectos importantes

natildeo soacute a formaccedilatildeo inicial mas tambeacutem a contiacutenua dos professores para que respondam agraves

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necessidades da sociedade angolana

Portanto a anaacutelise da qualidade da educaccedilatildeo como um fenoacutemeno multideterminado que

possibilita caracterizar o Sistema justifica que a formaccedilatildeo contiacutenua de professores variaacutevel

importante para esta caracterizaccedilatildeo natildeo deve ser vista como um simples adereccedilo mas sim

como parte importante de uma cultura institucionalmente legal onde a articulaccedilatildeo entre as

instituiccedilotildees de Ensino Superior (pedagoacutegicas ou natildeo) e as do ensino geral seja

dialecticamente um facto

CONCLUSAtildeO

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento da realidade

educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento que tem como

fundamento a interpretaccedilatildeo da Lei e a revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura

criacutetico-contextual

A revisatildeo bibliograacutefica assente numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional permite

concluir que existem avanccedilos e retrocessos no processo educativo angolano que em termos

de poliacutetica educativa condicionaram sua evoluccedilatildeo positiva bem como sua afirmaccedilatildeo no

cenaacuterio internacional e ateacute mesmo regional

Esta constataccedilatildeo impotildee desafios a vencer na perspectiva da construccedilatildeo de uma sociedade

educativa em que cada agente participe reconhecendo a necessidade contiacutenua da formaccedilatildeo

dos professores para o PEANU como fundamento do SEEA

Referecircncias Bibliograacuteficas

Delors J etal (2006) EDUCACcedilAtildeO Um tesouro a descobrir Relatoacuterio para a UNESCO da Comissatildeo

Internacional sobre Educaccedilatildeo para o seacuteculo XXI 10ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez Editora

Eliana Alves Leite Pereira e Eloi Lopes da Silva (2008) Educaccedilatildeo Eacutetica e Cidadania A contribuiccedilatildeo da actual

instituiccedilatildeo escolar sc sce

FULLAT O (2000) Filosofia da Educaccedilatildeo Madrid Editorial Sintesis Educacioacuten

FREIRE P (sd) Educaccedilatildeo como Praacutetica da Liberdade 5ordf ediccedilatildeo Lisboa Dinalivro Lda

GOTZENS C (2003) A Disciplina Escolar Prevenccedilatildeo e intervenccedilatildeo nos problemas de comportamento 2ordf

ediccedilatildeo Trad de Faacutetima Murad Satildeo Paulo Artmedd Editora

Grilo M (2002) Desafios da Educaccedilatildeo - Ideiasb para uma poliacutetica educativa no seacuteculo XXI Lisboa Oficina

do Livro

Liberato E (2014) Avanccedilos e retrocessos da educaccedilatildeo em Angola Revista Brasileira de Educaccedilatildeo 1003

Lopes C d (2005) Caracterizar a Acccedilatildeo Educativa para ensinar a partir do Aluno SC Ediccedilotildees Cosmos

Morin E (2002) Os Sete Saberes Para a Educaccedilatildeo do Futuro Trad de Ana Paula de Viveiros Lisboa

Instituto Piaget

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Ngaba A V (2012) Poliacuteticas Educativas em Angola - Entre o global e o local o sistema educatuivo mundial

Mbanza-Kongo SEDIECA

Ngula A (2003) A escolarizaccedilatildeo em Aacutefrica Das grandes ilusotildees agrave pedagogia do projecto Roma Edizioni

Vivere i

Perrenoud P (1995) Ofiacutecio de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Porto Porto Editora

Perrenoud P (2002) A Escola e a aprendizagem da democracia Porto Asa

Silva A J (2016) La superacioacuten psicopedagoacutegica de los docentes de unversidad `Joseacute Eduardo dos Santosacute de

la Repuacuteblica de Angola Tesis doctoral La Habana Universidade de Ciencias Pedagoacutegicas `Enrique Joseacute

Varonaacute

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1 Os artigos podem ser escritos em portuguecircs inglecircs espanhol e francecircs

2 Tecircm que ser ineacuteditos e natildeo mais de 20 paacuteginas notas de peacute de paacuteginas incluiacutedas

3 As resenhas submetidas natildeo devem superar 6 paacuteginas

4 O envio de artigo deveraacute ser acompanhado por um abstract no idioma original do artigo e

em inglecircs e no miacutenimo com trecircs palavras-chave

5 O formato das letras eacute Times New Roman 12 justificado e com 15 de espaccedilo

6 Os textos devem ser enviados em formato Word Perfect ou em Word para o PC

7 Os artigos enviados devem ser assinados pelos autores que tambeacutem deveratildeo indicar os

seus graus acadeacutemicos e filiaccedilatildeo institucional

8 A redacccedilatildeo da revista reserva o direito de publicar ou natildeo

9 Haveraacute sempre um comiteacute externo para avaliaccedilatildeo dos artigos

10 Os tiacutetulos dos artigos devem estar na liacutengua original e em caso de necessidade em inglecircs

11 As referecircncias bibliograacuteficas e notas de peacute de paacuteginas devem ser numeradas As

referecircncias bibliograacuteficas devem ser completas na primeira cita utilizando a norma

claacutessica para as Ciecircncias Sociais e Humanas e Vancouver ou AMA para as Ciecircncias de

Sauacutede

12 Aceitam-se os projectos de investigaccedilatildeo que natildeo superam 8 paacuteginas

LIVROS ELECTROacuteNICOS

As citas devem comeccedilar com o primeiro e uacuteltimo nome do (s) autor (es) tiacutetulo do livro

electroacutenico (em itaacutelico) editor data de publicaccedilatildeo nuacutemero da paacutegina citada Endereccedilo Web

(Disponiacutevel a data da consulta)

PROCESSO DE AVALIACcedilAtildeO E DE SELECcedilAtildeO DOS ARTIGOS

1 Os artigos devem ser enviados para o e-mail da revista ou do Director nos prazos

indicados

2 A Direcccedilatildeo acusaraacute a recepccedilatildeo do trabalho sem necessariamente manter contacto com o

autor antes da decisatildeo final de publicar ou natildeo

3 Os autores dos artigos satildeo responsaacuteveis pela sua revisatildeo ortograacutefica e gramatical

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Page 7: Página 1 de 74 - Início | ISPSN · 2019. 5. 3. · Página 5 de 74 que traz um começo, que “cria um começo” e que reinventa um começo a partir da dor e da cura. A cidade

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FILOSOFIA O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU a

Resumo

A vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante A Aacutefrica eacute um complexo e heterogeacuteneo mosaico

de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees cujo fundamento metafiacutesico de origem

representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica O fundamento metafiacutesico de origem

eacute importante porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do

que o que os separa Nisto o diaacutelogo eacute necessaacuterio para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente

se vatildeo intensificando na actualidade O diaacutelogo conducente agrave unidade natildeo obriga mas se

move no respeito da liberdade da pessoa e da soberania de cada Estado Enfim trata-se de um

diaacutelogo sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Palavras-chave Pessoa humana Aacutefrica Fundamento Metafiacutesico Fundamento Metafiacutesico e

Diaacutelogo

Abstract

The vocation to unity is a natural feature of the human because it is essentially free relational

and dialoguing Africa is a complex and heterogeneous mosaic of peoples languages races

cultures ethnic groups and religions whose metaphysical foundation of origin represents an

indivisible unity in historical reality The metaphysical basis of origin is important because in

all fields everything that unites human beings is stronger than what divides them In this

dialogue is necessary to overcome the historical prejudices and disagreements the divisions

intolerances and fundamentalisms that unfortunately are intensifying at the present time The

a Doutor em Filosofia Religioso Saletino e Decano da Faculdade de Direito da Universidade Katiavala Bwila

Benguela ndash Angola

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dialog leading to the unit doesnrsquot oblige but moves in respect of freedom of the person and

of the sovereignty of each State At last it is a sincere dialog and fruitful that acknowledging

all the legitimate diversity promotes respect harmony and collaboration

Keywords The Human Person Africa Metaphysical foundation Metaphysical foundation

and Dialogue

Premissa

No actual contexto de crescente e incisiva globalizaccedilatildeo eacute difiacutecil subtrair-se ao dever ou agrave

necessidade de prestar conta de si mesmos Neste clima cultural tambeacutem a unidade africana eacute

chamada a justificar-se ou seja a justificar o seu direito de continuar a ser Agrave primeira vista

poderia parecer que a sua justificaccedilatildeo natildeo seja hoje um problema visto que eacute cada vez mais

difuso o uso do termo unidade e da expressatildeo uniatildeo africana Mas urge reflectir nesta unidade

agrave luz da filosofia para lhe compreender o seu verdadeiro significado

Aprendemos com Nicola Abbagnano que laquonada do que eacute humano eacute estranho agrave filosofia [hellip]

aliaacutes esta eacute o mesmo homem que se interroga a si mesmo e procura as razotildees e o fundamento

do seu serraquo1 Esta eacute a filosofia na sua adesatildeo agrave existecircncia humana e ao mesmo tempo na sua

amplitude em relaccedilatildeo aos problemas do homem Natildeo de um homem que vive no Uacuterano mas

do homem concreto que na sua vida experimenta acircnsias e insuficiecircncias alegrias e

esperanccedilas tristezas e anguacutestias2 Portanto todas as coisas satildeo susceptiacuteveis de reflexatildeo

filosoacutefica inclusive a proacutepria unidade africana exige filosofar

De facto filosofar eacute examinar a realidade e isso de um modo ou de outro todos fazemos

constantemente Ao se tentar resolver os problemas globais sociais ou pessoais eacute impossiacutevel

se abster da racionalidade Entretanto haacute uma gama de situaccedilotildees onde a razatildeo natildeo pode

avanccedilar por falta ou excesso de dados o que impossibilita decisotildees objectivas Entra em cena

entatildeo a parte subjectiva humana mais especificamente a Intuiccedilatildeo como meio de direccionar

nosso foco de entendimento e apontar caminhos a serem trilhados pela racionalidade

Soacute que actualmente a filosofia passa por uma perda de identidade Existe uma verdadeira

inflaccedilatildeo do termo filosofia e como toda a inflaccedilatildeo eacute sintoma de queda de valores de crise

difusa e profunda Hoje o termo filosofia indica muitas vezes coisas difiacuteceis proacuteprias do

hiperuracircnio e natildeo o homem que natildeo aceitando passivamente as informaccedilotildees fornecidas pela

experiecircncia imediata desenvolve uma postura de questionamento proacuteprio sobre a realidade

interroga-se a si mesmo e metodoloacutegica e ordenadamente procura as razotildees e o fundamento

1 N ABBAGNANO Storia della filosofia I UTET Torino 1963 p XVII

2 Cf CONCIacuteLIO VATICANO II Gaudium et Spes n 1

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do seu ser buscando como faziam os gregos um instrumento fundamental e o uacutenico

racionalmente possiacutevel para a soluccedilatildeo dos problemas da vida

A confusatildeo com relaccedilatildeo agrave filosofia e a desinformaccedilatildeo geral que permeia mesmo o meio

acadeacutemico chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimeacutericas no sentido de se

eliminar a Filosofia Entretanto ciecircncia alguma pode se ocupar da macro realidade O

empirismo natildeo pode ser aplicado agrave civilizaccedilatildeo humana agrave mente ao total Quem estabelece a

comunicaccedilatildeo entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia Cremos ser

este o quadro em que se deve inserir a reflexatildeo sobre a unidade africana que aqui fazemos

partindo da metafiacutesica do termo pessoa

Tal reflexatildeo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vatildeo

desafiando a unidade do continente africano Haacute uma verdade hoje admitida por quase todos

e ateacute pelos mais preconceituosos arqueoacutelogos de que a humanidade e a civilizaccedilatildeo

desenvolveram-se na noite dos tempos no berccedilo deste continente gigantesco chamado Aacutefrica3

Temos consciecircncia de que a Aacutefrica eacute um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas Embora esta imensidatildeo nos aconselhe a natildeo fazer

generalizaccedilotildees na avaliaccedilatildeo dos problemas natildeo nos impede de buscar e propor soluccedilotildees aos

problemas inerentes agrave falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito

de pessoa

1 Breve excursus histoacuterico-filosoacutefico do conceito de pessoa

11 A densidade semacircntico-etimoloacutegica do termo pessoa

A densidade semacircntica do termo pessoa formou-se no tempo graccedilas ao contributo cultural de

muitos filotildees de reflexatildeo O conceito de pessoa tem pois um percurso rico quanto complexo

De recordar que na antiguidade greco-romana natildeo se encontra bem claro o conceito de pessoa

Todavia seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias

Etimologicamente e segundo algumas pesquisas atentas os primeiros indiacutecios do termo

pessoa encontram-se no acircmbito da cultura etrusca De facto o termo phersu utilizado nos

ritos em honra de Phersepona e que significaria maacutescara4 passou a significar o indiviacuteduo

3 Cf Carlos SERRANO ndash Mauriacutecio WALDMAN Memoacuteria drsquoAacutefrica A temaacutetica africana em sala de aula

Cortez Editora Satildeo Paulo 20082 p 75 Cf Tambeacutem Luigi TRANFO Africa La transizione Tra sfruttamento e

indifferenza EMI Bologna 1995 p 269 Pedro F MIGUEL Aacutefrica Uma visatildeo global Viverein Roma 2013

p 11 4 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique in

laquoRevue des sciences religieusesraquo XXII (1948) 277-299 A MILANO Persona in teologia Dehoniane Napoli

1984 pp 16-71

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mascarado a personagem que o actor representa no drama ou seja o indiviacuteduo humano

moral e social5

Nesta senda do indiviacuteduo mascarado Edith Stein observa que visto que nas comeacutedias e nas

trageacutedias se representavam personagens famosos o nome pessoa foi imposto para significar

sujeitos que tinham um papel na sociedade por isso alguns definem a pessoa como laquouma

hipoacutestase marcada por uma qualificada conexatildeo com a sua dignidaderaquo 6

Natildeo encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Boeacutecio que liga pessoa ao

verbo personare aludindo agrave amplificaccedilatildeo da voz de quem fala por detraacutes da maacutescara Assim

pessoa eacute segundo Boeacutecio laquodecta est volvatur sonusraquo 7 Tambeacutem natildeo eacute correcto afirmar que

pessoa seja a contracccedilatildeo de per se una como quereria a proposta de Alano di Lilla8

12 O percurso evolutivo do conceito de pessoa

Com Ciacutecero e Seacuteneca a evoluccedilatildeo do conceito de pessoa deu passos importantes sem

contudo chegar agrave definiccedilatildeo hodierna

Do segundo seacuteculo em diante o conceito de pessoa entra no uso corrente na onda do esforccedilo

de clarificaccedilatildeo exigida pelas controveacutersias teoloacutegicas sobre o dogma trinitaacuterio Poreacutem foi

com Boeacutecio que o conceito de pessoa adquire o actual conteuacutedo teoacuterico E isto no contexto da

clarificaccedilatildeo conceitual sobre as questotildees teoreacuteticas que emergiam da doutrina sobre a

Trindade

Segundo Boeacutecio laquopersona est rationalis naturae individua substantiaraquo (pessoa eacute substacircncia

individual de natureza racional) 9 Boeacutecio elabora esta definiccedilatildeo servindo-se do patrimoacutenio

filosoacutefico grego e latino De facto ele sistematiza os conceitos latinos de persona natura e

substantia estabelecendo uma equivalecircncia com os vocaacutebulos gregos πρόσωπον ούσία

ύπόστασις que na oscilaccedilatildeo terminoloacutegica do tempo eram usados de maneira equiacutevoca e

confusa

Com Boeacutecio a natura toma definitivamente o lugar de ούσία entendida como essecircncia e

substantia passa a traduzir o grego ύπόστασις10

Satildeo poucos os filoacutesofos que no medievo natildeo

5 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique op

cit pp 298-299 6 Edith STEIN Essere finito e essere eterno Per una elevavazione al senso dellrsquoessere Cittagrave Nuova Roma

1988 p 380 7 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1344

8 Cf Enrico BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico in AAVV Persona e

personalismo Aspetti filosofici e teologici Fondazione Lanza Padova 1992 p 43 9 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1343

10 Cf Claudio MICAELLI ldquoNaturardquo e ldquoPersonardquo nel ldquoContra Eutychen et Nestoriumrdquo di Boezio Osservazioni

su alcuni problemi filosofici e linguistici in Luca OBERTELLO (a cura di) Atti del Congresso Internazionale di

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tinham encontrado a definiccedilatildeo de Boeacutecio satisfatoacuteria porque essa interpretava a realidade que

se tentava definir precisando-lhe o significado

Esta definiccedilatildeo pessoa eacute substacircncia individual de natureza racional que durante o medievo

faz cultura e caracteriza a tradiccedilatildeo teoloacutegica latina surge sob o impulso das disputas contra os

nestorianos os quais sustentavam que em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em

uniatildeo permanente e moral e contra os monofisistas que sustentavam a existecircncia em Cristo de

uma soacute natureza a divina11

Na definiccedilatildeo de Boeacutecio o termo pessoa tem um sentido mais especiacutefico e refere-se agrave estrutura

fundamental e metafiacutesica do indiviacuteduo ou seja agrave substacircncia individual dotada de uma

natureza racional Quer dizer nem todos os seres naturais satildeo pessoas mas apenas aqueles

substanciais

Por isso a pessoa eacute substacircncia individual Eacute individual porque tem caracteriacutesticas que a

distinguem dos outros indiviacuteduos da mesma espeacutecie caracteriacutesticas que natildeo satildeo definiacuteveis

nem comunicaacuteveis aos outros Eacute substacircncia porque eacute existente em si por si e em nenhum

outro Dizer substacircncia individual significa portanto dizer que a pessoa natildeo tem necessidade

para existir de aderir a um outro ser e conteacutem no seu quid alguma coisa de

incomunicabilidade que divide com nenhum outro12

A pessoa eacute igualmente de natureza racional O seu conhecer natildeo eacute impresso na mateacuteria nem eacute

limitado por essa Dizer natureza racional significa por isso que a pessoa natildeo soacute exerce as

actividades conexas agrave natureza mas tem a capacidade de desenvolvecirc-las capacidade possuiacuteda

por natureza ou seja com o nascimento13

A pessoa eacute pois o gau mais elevado de ser

substancial porque essa eacute consciente do seu ser substacircncia individual

Toda a pessoa eacute portanto antes de mais um indiviacuteduo Mas ao mesmo tempo muito mais que

indiviacuteduo porque natildeo eacute uma personagem mas uma substacircncia individual que possui em si

uma certa dignidade em razatildeo da sua racionalidade Por isso natildeo basta afirmar que a pessoa eacute

Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott 1980) Herder Roma 1981 p 336 11

Fruto destas disputas eacute a obra de Boeacutecio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium

cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestoacuterio De recordar poreacutem que desde

os primeiros seacuteculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importacircncia ndashcom Tertuliano os Padres

Capadoacutecios S Agostinho e S Joatildeo Damasceno ndash nos interrogativos teoreacuteticos que emergiam da Revelaccedilatildeo e nas

controveacutersias teoloacutegicas acerca do dogma trinitaacuterio Tais controveacutersias se concluiacuteram com a foacutermula das trecircs

pessoas ou hipoacutestases na uacutenica substacircncia ούσία ou natureza divina Os Padres da Igreja separando de maneira

definitiva o conceito de πρόσωπον da referencia agrave personagem

traacutegica ou coacutemica deram focirclego a um aprofundamento do

conceito de pessoa tambeacutem na reflexatildeo filosoacutefica (cf Gregorio DI NISSA La grande catechesi CIttagrave Nuova

Roma 1982 p 51 Gregorio NAZIANZENO I cinque discorsi teologici CIttagrave Nuova Roma 1986 p 175)

12 Cf San Tommaso DrsquoAQUINO Questiones disputatae De potentia q 9 a 2 ID Summa Theologiae I q

29 a 13

Cf E BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico op cit p 48

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algo de individual e nem mesmo que eacute uma substacircncia ou uma natureza para defini-la do

ponto de vista metafiacutesico

Visto que a individualidade eacute acidente isto eacute pertence agravequilo que existe como perfeiccedilatildeo e eacute

caracteriacutestica de um sujeito e enquanto a substacircncia e a natureza indicam o que eacute proacuteprio da

espeacutecie ocorre a substacircncia individual de uma natureza racional para que exista pessoa

Ocorre portanto que se refira a uma substacircncia individualizada de um ser racional para que

exista pessoa do ponto de vista metafiacutesico Somente um ser racional pode corresponder agrave

dignidade de pessoa porque pessoa eacute enfim um ser em si que natildeo pode ser substituiacutedo por

um outro e que eacute capaz de operaccedilotildees proacuteprias e racionais

Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da foacutermula de Boeacutecio Satildeo

Tomaacutes elabora a sua definiccedilatildeo de pessoa como laquosubsistens in rationali naturaraquo 14

Com a foacutermula subsistens in rationali natura Satildeo Tomaacutes evidencia natildeo soacute o aspecto comum ndash

pressuposto universalmente aceite da pessoa ndash assim como expresso pela substacircncia

individual da definiccedilatildeo de Boeacutecio mas evidencia sobretudo aquele individual isto eacute o

existente considerado na acepccedilatildeo mais proacutepria ou seja o seu ser uacutenico e irrepetiacutevel De facto

na definiccedilatildeo de Boeacutecio a substacircncia individual parece ser concebida como individualidade A

individualidade poreacutem eacute determinaccedilatildeo da coisa e natildeo ainda do quem eacute uma conotaccedilatildeo

natural da pessoa e natildeo da mesma pessoa

Satildeo Tomaacutes condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o

que de mais nobre e perfeito haacute no universo e por isso afirma laquopersona significat id quod est

perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturaraquo 15

Pessoa eacute a natureza racional que existe num indiviacuteduo concreto Por isso somente aquilo que

eacute subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa E eacute o subsistir de maneira

individual na natureza racional que confere a dignidade agrave pessoa ou seja laquoquia magnae

dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur

personaraquo 16

De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana natildeo eacute a abstracta razatildeo ndash como parece

indicar a natureza racional da definiccedilatildeo de Boeacutecio ndash mas a racionalidade possuiacuteda por um

subsistente ou seja de um ser concreto E este em virtude de um actus essendi proacuteprio que

confere actualidade agrave substacircncia e agraves suas determinaccedilotildees Tudo isto que a pessoa sabe quer e

faz brota do proacuteprio acto em virtude do qual eacute aquilo que eacute

14

Cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 29 a 3 c 15

Ibidem 16

Ibidem

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Da elaboraccedilatildeo de Satildeo Tomaacutes compreende-se essencialmente o caraacutecter racional da pessoa

racional enquanto capaz de ser consciente do proacuteprio ser17

A pessoa eacute todo o indiviacuteduo de

natureza racional livre atravessado por tradiccedilotildees e culturas responsaacutevel relacional

inteligente volitivo dialogante e por isso fundamento de unidade entre indiviacuteduos e povos

2 Do conceito da pessoa agrave construccedilatildeo da unidade africana

Antes da conquista das independecircncias os colonos procuravam inflamar as diferenccedilas

fechando as coloacutenias em si mesmas num clima de reserva ciumenta de distacircncia e quase de

desconfianccedila Com as independecircncias os encontros entre paiacuteses antigamente colonizados se

multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaboraccedilatildeo E com a criaccedilatildeo da

Organizaccedilatildeo da Unidade Africana (OUA) que veio desempenhar o papel extremamente

precioso de lugar de encontros de oacutergatildeo de diaacutelogo e de troca de experiecircncias entre Chefes de

Estado e de Governo africanos o esforccedilo para a unidade se exprimiu de modo mais visiacutevel

Contudo a vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante E enquanto essencialmente relacionais e

dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e

que os distinguem das outras espeacutecies de seres Todos os homens tecircm as mesmas tendecircncias e

exigecircncias fundamentais quanto ao aneacutelito da unidade Todo o homem eacute chamado agrave comunhatildeo

e estaacute aberto agrave comunicaccedilatildeo e ao diaacutelogo

O homem eacute capaz pois de intercacircmbio de dar-se aos outros e deles receber porque a sua

natureza o abre agrave comunhatildeo agrave comunicaccedilatildeo e agrave unidade A sua natureza relacional e

dialogante natildeo eacute apenas uma necessidade mas eacute sobretudo um dom que o ambiente que o

impede de continuar fechado e isolado no egoiacutesmo e aberto aos conflitos De facto o homem

eacute aquilo que eacute pela sua inconfundiacutevel individualidade mas tambeacutem pelo seu ser aberto ao

outro e agraves realidades extriacutensecas por causa da sua sociabilidade A sociabilidade eacute pois uma

expressatildeo da sua humanidade e a unidade uma sua actuaccedilatildeo

Por isso a unidade africana pressupotildee a uniatildeo consciente entre africanos e o comum e

orgacircnico esforccedilo para conseguir o bem humano integral A unidade africana na base da

descoberta da comum humanidade articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para

com todos e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros

17

Muitas vezes o termo racional eacute confuso com o termo intelectual Na verdade intelecto e razatildeo diferem O

intelectual eacute um conhecimento simples e imediato enquanto o racional passa de um conhecimento simples para

um mais complexo (cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 59 a 1)

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povos do continente para alcanccedilar o bem comum18

Enfim a unidade encontra a sua raiz na essecircncia metafiacutesica da pessoa humana e exprime por

conseguinte a estrutura ontoloacutegica dos africanos e diz respeito agrave proacutepria possibilidade da sua

realizaccedilatildeo Por isso as divisotildees e os conflitos lupescos natildeo fazem parte da normalidade

africana

Portanto apesar de Aacutefrica ser um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas o continente africano explica-se como unidade na

diversidade E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos eacute garantida

metafisicamente pela origem pelo facto mesmo de sermos africanos ndash do Cabo ao Cairo de

Dar es-Salaam a Dakar ndash mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas

O fundamento metafiacutesico de origem representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica

uma forccedila inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as

diversidades presentes nos Estados africanos a incomunicabilidade geograacutefica a hipocrisia

as tensotildees e os desejos separatistas e conduzir a um compromisso claro entre os africanos

respeitando as suas diversidades e os seus interesses reciacuteprocos empenhando num projecto

comum para uma Aacutefrica mais humana e mais social em que reinem sempre o respeito muacutetuo

o reconhecimento e a protecccedilatildeo dos direitos humanos fundamentais e se faccedila valer o lado

melhor dos africanos os valores basilares da paz da justiccedila da liberdade da toleracircncia da

participaccedilatildeo e da solidariedade Este fundamento metafiacutesico de origem eacute importante

porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do que o que os

separa

Contudo a unidade africana deve ser construiacuteda e aprofundada de forma dinacircmica e

incessante porque os pressupostos da uniatildeo representados pelos factores geograacuteficos pela

multiplicidade das tradiccedilotildees regionais nacionais culturais e religiosas pelos interesses

econoacutemicos trocas econoacutemicas paciacuteficas e seguras pela heranccedila e tradiccedilotildees socioculturais

africanas mais autecircnticas em si natildeo bastam para criar a uniatildeo poliacutetica Eacute necessaacuterio voltarmos

agrave metafiacutesica da unidade e reelaborar juntos a histoacuteria da Aacutefrica que aleacutem das muito boas

experiecircncias de unidade eacute ainda caracterizada nalguns casos por desentendimentos lutas

fratricidas entre etnias e ateacute por conflitos beacutelicos

Com razatildeo Kwame Nkrumah apelava na sua obra A Aacutefrica deve unir-se agrave unidade natildeo

tanto para indicar a necessidade ou condiccedilatildeo de estar unidos mas sobretudo o acto de se unir

18

Cf L F KAMBALU A democracia personalista Os fundamentos onto-antropoloacutegicos da poliacutetica agrave luz de

Pietro Pavan Paulinas Lisboa 2012 pp 51-64

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porque os pressupostos geograacuteficos e econoacutemicos por si soacute natildeo bastam para criar a uniatildeo

Ocorrem instituiccedilotildees vinculativas bem como vontade e consciecircncia de pertenccedila a um mesmo

continente chamado Aacutefrica A consciecircncia deve preceder agrave formaccedilatildeo poliacutetica da unidade

africana que natildeo se poderaacute alcanccedilar de forma duradoira sem valores comuns Outrossim

ocorre recordar que a unidade eacute em si um bem somente quando eacute ordenada quando responde

agrave razatildeo objectiva da verdade da justiccedila e do bem O mesmo eacute dizer que a unidade eacute um bem

que vale tanto quanto respeita o que haacute de valor nas partes que a compotildeem

A unidade perde valor quando se realiza de modo maciccedilo esmagador absoluto destruidor e

totalitaacuterio abolindo o espaccedilo que permite o diaacutelogo destruindo desta forma a esfera em que os

homens agem tomam decisotildees comuns e operam colaborando Por isso sem liberdade nem

diaacutelogo a unidade africana seria impossiacutevel porque a Aacutefrica natildeo seria mais o espaccedilo onde cada

indiviacuteduo aos outros as proacuteprias capacidades em vista do bem comum segundo princiacutepios de

igualdade substancial Neste sentido a Aacutefrica seria um conjunto de indiviacuteduos e por

conseguinte um conjunto de Estados sem laccedilos entre si Cada um veria o outro natildeo como um

semelhante com quem eacute chamado a relacionar-se e tomar iniciativas mas um inimigo de

quem se defender

Enfim para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma

poliacutetica que envolva todas as pessoas e forccedilas a todos os niacuteveis na busca do bem comum ou

seja na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem agraves exigecircncias

intriacutensecas e imutaacuteveis da natureza humana Trata-se pois de condiccedilotildees econoacutemicas

juriacutedicas morais e religiosas que tornam possiacutevel e favorecem o conseguimento pleno e faacutecil

do desenvolvimento integral das pessoas

As exigecircncias histoacutericas e os significados de unidade satildeo sempre mutaacuteveis Mudam conforme

se entenda o que leva os homens a unirem-se a niacutevel ontoloacutegico e histoacuterico ou seja

consoante a efectiva existecircncia daquele princiacutepio originaacuterio em cada homem e povo ou

consoante o plano social poliacutetico religioso e cultural em que se actua a unidade De facto

natildeo poucas vezes os proacuteprios acontecimentos histoacutericos e as proacuteprias diferenccedilas exigem que

se redefinam os instrumentos poliacuteticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova

filosofia de relaccedilotildees entre povos e Estados que vatildeo aleacutem do que no passado natildeo foi possiacutevel

Tais diferenccedilas podem provir de uma profunda oposiccedilatildeo e de uma divergecircncia quanto ao fim

As diferenccedilas podem provir tambeacutem de uma dupla visatildeo de um mesmo objectivo Seja qual

for a origem das diferenccedilas a atitude sadia eacute compreender as realidades e promover o diaacutelogo

e ver como as proacuteprias diferenccedilas permitem situar melhor o objecto

Por isso eacute mister que nos diversos acircmbitos questotildees e temas sobre os quais incumbe o risco

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da divisatildeo os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma soacute voz cultivando e

empenhando-se intensa livre e conscientemente ao diaacutelogo

O diaacutelogo eacute fundamental para a vida poliacutetica sobretudo quando exerce a funccedilatildeo da busca da

verdade e do bem No caso da Aacutefrica o diaacutelogo torna-se uma exigecircncia insubstituiacutevel para

superar as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente se vatildeo intensificando

na actualidade O diaacutelogo eacute igualmente fundamental para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos culturais raciais sociais e religiosos e promover e concretizar a

unidade a justiccedila e a paz natildeo soacute por causa do pluralismo eacutetnico cultural racial social e

religioso do continente mas sobretudo por causa do seu pluralismo poliacutetico pois atraveacutes do

diaacutelogo cada indiviacuteduo ou povo enriquece o proacuteprio ponto de vista e converge para as noccedilotildees

de verdade e de bem humano e se empenha a potenciaacute-las corresponsavelmente para a

unidade

O diaacutelogo eacute tambeacutem essencial para a unidade poliacutetica social e econoacutemica e o

desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos pois tal como os povos tambeacutem

os Estados tecircm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si proacuteprios e no encontro

com os outros se realizarem plenamente Por isso o isolamento seria um impedimento

insuperaacutevel para a unidade e a realizaccedilatildeo do proacuteprio continente africano

Tal diaacutelogo deve basear-se em valores princiacutepios e normas aceites e deve ser assegurado por

um sistema constitucional e de direito pela promoccedilatildeo da justiccedila da paz e da liberdade para o

continente africano pela experiecircncia da verdade e pela busca constante de compreensatildeo dos

fundamentos que tecircm plasmado a Uniatildeo Africana

O diaacutelogo natildeo se processa sem dificuldades e eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes da discussatildeo e

argumentaccedilatildeo eacute reconheciacutevel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a

dignidade pessoa humana e eacute possiacutevel a diversos niacuteveis no plano da experiecircncia quotidiana

para as questotildees sociais comunitaacuterias familiares eacuteticas e ecoloacutegicas no plano do encontro

das culturas para o respeito e o melhor conhecimento reciacuteproco no plano desportivo para o

cultivo do sentimento de pertenccedila a um todo continental no plano poliacutetico para questotildees que

dizem respeito agrave seguranccedila econoacutemica cultural e juriacutedica no plano militar para questotildees que

dizem respeito agrave garantia da seguranccedila e integridade territorial bem como agrave erradicaccedilatildeo de

conflitos em Aacutefrica

Trata-se de um diaacutelogo gradual e sempre pronto a recomeccedilar Um diaacutelogo que natildeo obriga mas

se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado trata-se de um

diaacutelogo que natildeo eacute apenas instrumental nem nasce de taacutecticas ou de interesses mas um diaacutelogo

sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

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concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Enfim trata-se de uma actividade que apresenta motivaccedilotildees exigecircncias e dignidade proacutepria e

implica um muacutetuo esforccedilo de compreensatildeo por parte dos interlocutores que se compreendem

verdadeiramente quando descobrem aleacutem dos laccedilos que os unem e os integram uns aos outros

e dos valores a eles comuns as razotildees ideais em que cada um deles se inspira para realizaacute-los

Outrossim tal diaacutelogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente beneacuteficos como o

aumento da maturidade dos africanos ndash numa penetraccedilatildeo mais autecircntica da complexa

realidade do mundo hodierno em que a Aacutefrica se move ndash a resoluccedilatildeo dos problemas a

superaccedilatildeo dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de

todas as naccedilotildees bem como pela seguranccedila e bem-estar do continente africano

Tudo isso levanta muitos e difiacuteceis problemas de ordem econoacutemica social e poliacutetica Poreacutem

estaacute de facto que diante das diferenccedilas e dos antagonismos que o continente africano vive

actualmente soacute a consciecircncia da comum humanidade e o diaacutelogo franco luacutecido e proveitoso

pode permitir construir um caminho de toleracircncia e aceitaccedilatildeo muacutetuas para a realizaccedilatildeo de uma

convivecircncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da

pessoa humana da mobilidade interna da integraccedilatildeo soacutecio-econoacutemica do continente e do

florescimento de um mercado interno Isto faraacute tambeacutem com que os africanos natildeo sejam

meros fornecedores de mateacuterias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos

estrangeiros mas produtores e consumidores de produtos do seu proacuteprio continente

Um diaacutelogo natildeo inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade mas um diaacutelogo

franco na base da consciecircncia de pessoas humanas e do respeito reciacuteproco De facto sem

diaacutelogo franco natildeo haacute progresso porquanto o progresso eacute liberdade e somente a verdade que

pode exprimir-se nos torna livres

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HISTOacuteRIA A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO

SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA

A PARTIR DE FRANTZ FANON

NLANDU MATONDO FAUSTINO a

Resumo

O presente trabalho procurou desconstruir a partir das teses de Frantz Fanon sobretudo

aquelas formuladas nos ldquoCondenados da Terrardquo a ideia de uma suposta missatildeo civilizadora

subjacente na intenccedilatildeo colonizadora consubstanciada na equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual a

civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo Partindo de uma indagaccedilatildeo da validade criticaacutevel

da equaccedilatildeo em epiacutegrafe cruzou os factos agraves doutrinas que versam sobre o fenoacutemeno da

colonizaccedilatildeo de Aacutefrica e chegou a depreender com uma certa objectividade de que a

colonizaccedilatildeo em Aacutefrica tal ficou visto por Fanon foi mais um movimento de

despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeo dos africanos em geral e dos negros em particular do que

um projecto de humanizaccedilatildeo e de emancipaccedilatildeo dos indiacutegenas de Aacutefrica negra Ficou portanto

evidente ao longo deste trabalho de que a colonizaccedilatildeo foi uma violecircncia que extraiu a sua

originalidade na substantivaccedilatildeo do colonizado Uma violecircncia que natildeo soacute presidiu ao arranjo

do mundo colonial como tambeacutem ritmou e alimentou a destruiccedilatildeo antropoloacutegica e ontoloacutegica

do negro-africano incluindo todas as suas formas sociais arrasou completamente os seus

sistemas de referecircncias econoacutemicas os seus modos ldquoessendi et operandirdquo e decretou a crise

soacutecio-cultural dos povos negros de Aacutefrica

Palavras-chaves colonizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo violecircncia despersonalizaccedilatildeo descolonizaccedilatildeo

emancipaccedilatildeo

Abstract

The present study sought to deconstruct from the theses of Frantz Fanon especially those

formulated in The Wretched of the Earthrdquo the idea of a supposed civilizing mission

underlying the colonizing intention embodied in the equation colonization equal to

civilization and paganism equal to savageryrdquo Crossed the facts to the doctrines that focus on

a Doutorando em Filosofia na Universidade de Eacutevora Mestre em Ciecircncias da Educaccedilatildeo pela mesma

Universidade Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catoacutelica de

Angola

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the phenomenon of colonisation of Africa this was seen by Fanon was more a movement of

depersonalization of Africans in general and the negroes in particular than a draft of

humanization and emancipation of the peoples of black Africa Therefore became evident

throughout this work that the colonization was a violence that drew its originality of the

colonized

A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world as well as

marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African including all

its social forms wiped out completely their systems of economic references their modes

essendi et operandi and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa

Key words colonization civilization violence depersonalization decolonisation

emancipation

Introduccedilatildeo

A reflexatildeo em torno dos desafios da descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica continua actual e actuante em

qualquer discurso intelectual ou poliacutetico sobre o estado da naccedilatildeo de muitos Estados africanos

passados que satildeo aproximadamente seis deacutecadas desde que muitos deles se tornaram

independentes Esta actualidade pode todavia natildeo parecer evidente quando o enfoque do

discurso for a colonizaccedilatildeo De facto pode parecer anacroacutenico e mesmo sintomaacutetico falar da

colonizaccedilatildeo para tentar justificar a qualquer preccedilo o subdesenvolvimento e a instabilidade

sociopoliacutetica na actualidade de muitos Estados africanos independentes Bom ou malgrado

essa sensaccedilatildeo de anacronismo que sugere uma espeacutecie de eacutepokeacute em torno do fenoacutemeno

colonial perde a sua legitimidade na medida em que a pertinecircncia do discurso sobre a

descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica torna ldquoipsis verbirdquo procedente o discurso sobre a colonizaccedilatildeo Ou

seja toda a fala em torno da descolonizaccedilatildeo sugere de uma ou de outra forma uma incursatildeo

sobre a colonizaccedilatildeo Vamos ao longo deste trabalho procurar descortinar o conceito de

colonizaccedilatildeo na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do

trampolim que pode sugerir agrave nossa cogitaccedilatildeo sobre a descolonizaccedilatildeo Para o efeito

propomos a seguinte estrutura 1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a

partir da analiacutetica de Fanon 2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo

igual a civilizaccedilatildeo 3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel

deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo 4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos a uma possiacutevel

verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida 5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de

Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco 6 Desconstruindo o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista

erguida na recusa do humano enquanto diferente 7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta do

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mundo colonial uma antiacutetese agrave pretensatildeo de uma suposta missatildeo emancipadora dos

africanos subjacente na intenccedilatildeo colonizadora

1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a partir da sua analiacutetica

em Fanon

Natildeo eacute possiacutevel falar da descolonizaccedilatildeo em Fanon sem falar da colonizaccedilatildeo enquanto

referecircncia inofuscaacutevel e movimento historicizante que confere corpo e sentido mateacuteria e

forma a qualquer anaacutelise criacutetica do projecto de descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica Esta eacute de resto a

loacutegica que suporta o argumento de Fanon que passamos a transcrever

a descolonizaccedilatildeo [hellip] eacute um processo histoacuterico [hellip] natildeo pode ser

compreendida natildeo encontra a sua inteligibilidade natildeo se torna transparente

para si mesma senatildeo na exacta medida em que se faz discerniacutevel o

movimento historicizante que lhe daacute forma e conteuacutedo ndash a opressatildeo colonial

(Fanon 1968 p 26 ou Fanon 2002 p 452)

Desde esta perspectiva a anaacutelise sobre a colonizaccedilatildeo ganha uma particular relevacircncia na

medida em que se nos apresenta natildeo soacute como fundamento a partir do qual se pode erguer

qualquer avaliaccedilatildeo sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleoloacutegico da luta

dos africanos rumo agrave sua efectiva emancipaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo no universalismo humano

mas tambeacutem como pretexto para (re) pensar o caminho de superaccedilatildeo das novas formas de

colonizaccedilatildeo que grassam ainda Aacutefrica e que em si constituem um verdadeiro impasse para

uma descolonizaccedilatildeo efectiva do continente africano Importa desde jaacute sublinhar que esta

reflexatildeo de tipo histoacuterico natildeo encontra o seu real significado na descriccedilatildeo dos factos que ela

encerra nem na narraccedilatildeo histoacuterica que a constitui O seu real alcance reside na sua capacidade

de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a

descolonizaccedilatildeo vislumbrado pelos africanos passados que satildeo cinquenta e sete anos apoacutes a

morte de Fanon

Tem-se com efeito e natildeo poucas vezes associado a colonizaccedilatildeo de Aacutefrica a um projecto

civilizador ou modernizador que teraacute sido frustrado ou interrompido por uma espeacutecie de

ambiccedilatildeo irracional dos africanos admitindo-se deste modo a hipoacutetese segundo a qual a

colonizaccedilatildeo teraacute sido um ldquoprojecto interrompidordquo de civilizaccedilatildeo (modernizaccedilatildeo) da Aacutefrica e

dos africanos De recordar que o ldquodiscurso sobre o colonialismordquo de Aimeacute Ceacutesaire resulta

precisamente da necessidade de dissertar sobre uma possiacutevel analogia entre a ldquocolonizaccedilatildeo e

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a civilizaccedilatildeordquo Provocaccedilatildeo ou natildeo mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer

sobre o binocircmio colonizaccedilatildeo-civilizaccedilatildeo pelo Franco-Senegalecircs Alioune Diop fundador e

Director da Revista ldquoPreacutesence Africainerdquo em Paris 1950 insinua a existecircncia de tendecircncias

que aproximavam a colonizaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo Esta provocaccedilatildeo tal como nos parece ser natildeo

deixa de ser no plano metodoloacutegico um bom ponto de partida para uma discussatildeo mais

objectiva e criacutetica da concepccedilatildeo fanoniana do colonialismo porquanto nos permite lanccedilar a

discussatildeo levantando uma seacuterie de perguntas tais como 1 Eacute possiacutevel sustentar por via de

argumentaccedilatildeo uma provaacutevel analogia entre os dois conceitos em anaacutelise a saber colonizaccedilatildeo

e civilizaccedilatildeo 2 Teraacute havido realmente um plano colonial de civilizar ou modernizar a

Aacutefrica em proveito dos africanos 3 Era sensato legitimar a opressatildeo colonial a partir dos

progressos alcanccedilados nas coloacutenias de Aacutefrica durante a administraccedilatildeo colonial Dito de outro

modo Seraacute que os niacuteveis de desenvolvimento conseguidos em vaacuterios domiacutenios social

administrativo tecnoloacutegico e poliacutetico sob o regime colonial conferiam efectivamente a

merecida dignidade a Aacutefrica e aos africanos 4 Teraacute a Aacutefrica realmente recusado o

desenvolvimento como diria Axel Kabu ao engajar-se na luta pela descolonizaccedilatildeo 5 E hoje

em plena era poacutes-colonial poderatildeo os africanos afirmar com realismo franqueza e

frontalidade que os ideais que nortearam o projecto da descolonizaccedilatildeo foram alcanccedilados 6

Teraacute alguma razatildeo de ser o postulado segundo o qual o projecto de descolonizaccedilatildeo teraacute sido

abortado na sua menor idade admitindo-se deste modo um possiacutevel equiacutevoco entre os

liacutederes e os intelectuais africanos que teratildeo confundido as independecircncias (enquanto meio)

com a descolonizaccedilatildeo (enquanto fim da longa marcha usando a expressatildeo de Reneacute Dumont

rumo a um continente mais humano mais livre mais autoacutenomo mais justo e mais proacutespero)

Ao longo desta reflexatildeo tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas

perguntas tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon

2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeo

Qual teraacute sido o verdadeiro retrato do colonialismo um processo de civilizaccedilatildeo dos

chamados indiacutegenas ou um ldquomovimento de despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeordquo dos povos

africanos Eacute evidente que para Fanon esta questatildeo nem sequer merece ser colocada De

facto o jovem martinicano eacute bastante incisivo e objectivo na sua anaacutelise Para ele a

colonizaccedilatildeo eacute antes de mais uma ldquoviolecircnciardquo conceito que de resto daacute tiacutetulo ao Iordm capiacutetulo

do Les Damneacutes de la Terre (Fanon 1968 p23 ou 2002 p448) Na sua oacuteptica a violecircncia foi

precisamente o elemento estrateacutegico e estruturante da loacutegica colonial Trata-se de uma

violecircncia que extrai sua originalidade na substantificaccedilatildeo do colonizado que a proacutepria

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situaccedilatildeo colonial segrega e alimenta Aliaacutes o encontro entre o colonizador e o colonizado diz

Fanon teve sempre o retrato de violecircncia e nunca foi expressatildeo de uma vontade civilizadora

ou humanizadora Pode se ler em Fanon que a colonizaccedilatildeo eacute a categorizaccedilatildeo de um encontro

que

se desenrolou sob o signo da violecircncia e sua coabitaccedilatildeo ndash ou melhor

a exploraccedilatildeo do colonizado pelo colono ndash foi levada a cabo com

grande reforccedilo de baionetas e canhotildees [hellip] A violecircncia [hellip] presidiu

ao arranjo do mundo colonial [hellip] ritmou incansavelmente a

destruiccedilatildeo das formas sociais indiacutegenas [hellip] arrasou completamente

os sistemas de referecircncias da economia os modos da aparecircncia e do

vestuaacuterio do colonizado (Fanon 1968 pp 26 e 30)

Eacute possiacutevel aproximar em boa verdade uma situaccedilatildeo de uma clara alienaccedilatildeo antropoloacutegica

fazendo feacute agrave descriccedilatildeo de Fanon a um projecto de civilizaccedilatildeo sem cair em sofismas que

desemboquem numa contradiccedilatildeo De notar que este mesmo entendimento de Fanon eacute

corroborado pelo seu antigo mestre Aimeacute Ceacutesaire que parafraseamos nos seguintes termos a

colonizaccedilatildeo enquanto violecircncia no sentido mais bruto da palavra eacute uma autecircntica antiacutetese da

civilizaccedilatildeo ela por natureza desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado A

colonizaccedilatildeo legitima o ilegiacutetimo e normaliza o anormal pode-se matar agrave vontade na

Indochina torturar em Madagaacutescar prender na Aacutefrica negra seviciar nas Antilhashellip (cfr

Ceacutesaire 1978 pp 7 e 14) Natildeo eacute preciso muita hermenecircutica para apreender nos dizeres de

Sartre de que a violecircncia constitui o ldquomodus operandirdquo proacuteprio do sistema colonial que nem

as suas geniais trapaccedilas conseguem disfarccedilar A peculiaridade do agir colonial distancia a

colonizaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo E para deixar tudo a nu Sartre faz a seguinte inconfidecircncia

ldquonossos soldados no ultramar rechaccedilam o universalismo metropolitano

aplicam ao geacutenero humano o numerus clausus uma vez que ningueacutem pode

sem crime espoliar seu semelhante escravizaacute-lo ou mataacute-lo eles datildeo por

assente que o colonizado natildeo eacute o semelhante do homem Nossa tropa de

choque recebeu a missatildeo de transformar essa certeza abstrata em realidade a

ordem eacute rebaixar os habitantes do territoacuterio anexado ao niacutevel do macaco

superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [hellip] nada

deve ser poupado para liquidar as suas tradiccedilotildees para substituir a liacutengua deles

pela nossa para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossahelliprdquo (Sartre Les

Damneacutes 1961 p 9)

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Esta violecircncia que parte do plano simboacutelico conceitual atingiu o seu ponto auge com

desterramento dos indiacutegenas feitos estrangeiros na sua proacutepria terra como foi o caso do

coacutedigo civil imposto aos argelinos visando regular o direito agrave propriedade e agrave heranccedila com a

uacutenica finalidade de desterrar os autoacutectones tirando-lhes o que de mais precioso tinha ndash a sua

proacutepria terra De realccedilar que o referido coacutedigo tinha aprovado a titularidade comum de terras

entre a classe-meacutedia francesa e a sociedade tribal como estrateacutegia de expropriaccedilatildeo de terras

aos autoacutectones atraveacutes de poliacuteticas especulativas (cfr Sartre 1967 p39)

Desde este ponto de vista pode-se aferir que os ldquomodus essendi et operandirdquo do colonialismo

configuravam em certa medida aquilo que Sartre chamou de ldquoimoralidade narcisistardquo da

ambiccedilatildeo ocidental da qual emerge o impulso que modifica inevitavelmente qualquer

indiviacuteduo que adere agrave dinacircmica colonial dando-lhe boa consciecircncia e boas razotildees de ver no

outro (natildeo branco) um simples animal Esta constataccedilatildeo sartriana valida sem qualquer

sombra de duacutevida a convicccedilatildeo de Ceacutesaire para quem o colonialismo eacute brutalidade

intimidaccedilatildeo crueldade sadismo choque violaccedilatildeo roubo desprezo culturas obrigatoacuterias

desconfianccedila massas aviltadas ausecircncia de contacto humano relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de

submissatildeo que transformam o negro colonizado em criado ajudante comitre e instrumento de

produccedilatildeo (cfr Ceacutesaire 1978 p25) A partir destes pressupostos torna-se de facto forccediloso

concluir que natildeo existe tal como defende Fanon qualquer sustentabilidade quer

argumentacional quer factual para a validaccedilatildeo da equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeordquo

pois os factos atestam que colonizaccedilatildeo eacute o oposto de civilizaccedilatildeo Mas uma deacutemarche

etimoloacutegica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano teoacuterico

conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem

3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo

Para fundamentar com maior objectividade o alcance da deduccedilatildeo decorrente da narrativa de

Fanon em relaccedilatildeo a conjecturada correlaccedilatildeo entre os dois conceitos em anaacutelise pareceu-nos

mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos no sentido de os tornar mais

inteligiacuteveis para daiacute depreender o seu justo significado e consequentemente confirmar ou

infirmar a suposta correlaccedilatildeo entre ambas Conveacutem no entanto sublinhar que o caraacutecter

polisseacutemico dos conceitos em epiacutegrafe natildeo nos permite ignorar o facto de que natildeo eacute tatildeo faacutecil

quer do ponto de vista conceitual quer do ponto de vista factual traccedilar a linha de

convergecircncia ou de divergecircncia entre eles pois o proacuteprio caraacutecter multidisciplinar que o

conceito de civilizaccedilatildeo envolve hoje confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta

qualquer entendimento homogeacuteneo linear e conclusivo Acresce-se a este dado o facto de

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que nos dias que correm o conceito de civilizaccedilatildeo eacute reivindicado como objeto de estudo da

antropologia da ciecircncia da cultura do direito da histoacuteria da filosofia poliacutetica da sociologia

poliacutetica da religiatildeo etc proporcionando-lhe um enquadramento episteacutemico bastante

complexo que recusa qualquer unicidade semacircntica No entanto um recuo estrateacutegico e

metodoloacutegico ao seacuteculo das luzes onde o significado do termo ldquocivilizaccedilatildeordquo emergiu da

proacutepria raiz etimoloacutegica do conceito ldquocivilisrdquo ldquocivisrdquo cujo entendimento remetia agrave acccedilatildeo

de tornar civil ou urbano pode permitir uma espeacutecie de unidade de sentido a partir do qual se

pode fundamentar a possiacutevel analogia conceitual destes dois termos

A Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura natildeo foge muito desta percepccedilatildeo quando define a

colonizaccedilatildeo como um fenoacutemeno sociopoliacutetico baseado na dependecircncia de um grupo humano

ou de um territoacuterio a um outro que exerce nele influecircncias demograacuteficas econoacutemicas

culturais sociais ou poliacuteticas Entendimento agrave luz do qual alguns teoacutericos nos seacuteculos XIX e

XX basearam a sua definiccedilatildeo de colonizaccedilatildeo como atividade pela qual um povo de cultura

superior ocupa e organiza por conta proacutepria um territoacuterio habitado por povos de cultura

inferior estendendo a sua soberania desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas

segundo o princiacutepio da civilizaccedilatildeo Observa-se aqui a missatildeo civilizadora subjacente ao

conceito da colonizaccedilatildeo enquanto fenoacutemeno sociopoliacutetico cuja meta eacute levar as coloacutenias ao

desenvolvimento cultural social econoacutemico e cientiacutefico ou seja agrave modernizaccedilatildeo do territoacuterio

ocupado Este eacute de resto o significado que decorre do entendimento filoloacutegico do conceito de

colonizaccedilatildeo cuja estrutura originaacuteria se funda em torno de dois pressupostos basilares

nomeadamente o cultivo da terra isto eacute o desenvolvimento econoacutemico e o cultivo dos

homens ou seja a promoccedilatildeo sociocultural e econoacutemica das populaccedilotildees consideradas na

posiccedilatildeo receptiva (cfr Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura nordm5 p996ss)

De salientar que o conceito de civilizaccedilatildeo emergiu e muito provavelmente antes de qualquer

outro paiacutes no contexto sociocultural francecircs e fazia referecircncia essencialmente a trecircs

dimensotildees que vale a pena enumerar a primeira era referente ao primado da vida em

comunidade sobre a vida solitaacuteria a segunda fazia alusatildeo ao primado da vida na cidade sobre

a vida no campo a uacuteltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o

selvagem isto eacute o homem moderno distinguido pela ciecircncia e pela teacutecnica sobre o baacuterbaro

(cfr Enciclopeacutedia LB da Cultura nordm5) Neste contexto teoacuterico-conceitual civilizar era de

facto sinoacutenimo de trabalhar na integraccedilatildeo dos indiacutegenas na comunidade metropolitana na

modernizaccedilatildeo da vida do campo isto eacute levando as condiccedilotildees da cidade ao campo (energia

eleacutectrica aacutegua potaacutevel educaccedilatildeo escolar assistecircncia meacutedica e medicamentosahellip) e na policcedilatildeo

do baacuterbaro pela chamada ldquoculturardquo cientiacutefica e tecnoloacutegica

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Este parece ser o entendimento mais viaacutevel para o exame a que nos propusemos da

correlaccedilatildeo destes dois vocaacutebulos O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e

sustentabilidade episteacutemica no Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea editorial

Verbo acresce ainda mais o nosso interesse por esta perspectiva (cfr 2001 p833) Segundo

o Dicionaacuterio ora referenciado a ldquocivilizaccedilatildeordquo eacute a acccedilatildeo ou o resultado de transmitir

conhecimentos comportamentos e teacutecnicas consideradas desejaacuteveis numa sociedade moderna

Por conseguinte civilizar eacute dar caracteriacutesticas proacuteprias de sociedades teacutecnicas cientiacutefica e

economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas ou ainda dar haacutebitos e ajudar a

desenvolver comportamentos desejaacuteveis numa sociedade desenvolvida Conclui-se pois que

do ponto de vista conceitual ou definicional existem razotildees para fundamentar a presumiacutevel

correlaccedilatildeo entre os conceitos de ldquocolonizaccedilatildeo e civilizaccedilatildeordquo Mas a natildeo homogeneidade de

compreensatildeo na interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo destes conceitos agrave partida polisseacutemicos e

multidisciplinares e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descriccedilotildees fanonianas

obrigam-nos a dar um passo a mais espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e

continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo

4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos agrave uma possiacutevel verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de

partida

Se eacute possiacutevel aferir do ponto de vista definicional uma certa correlaccedilatildeo analoacutegica entre os

conceitos que fundam a nossa equaccedilatildeo de partida tal como ficou patenteado no ponto

anterior do ponto de vista doutrinal e factual esta correlaccedilatildeo carece de uma anaacutelise

minuciosa que permita apurar se a propensatildeo civilizadora inerente ao conceito de colonizaccedilatildeo

pelo menos no plano teoacuterico-conceitual conseguiu vincar como aspecto norteador da acccedilatildeo

colonial ou teraacute por alguma razatildeo ficado ofuscada durante o processo colonial Impotildee-se-

nos a este niacutevel retomar o ponto de vista de Fanon para quem a colonizaccedilatildeo eacute antes de

mais uma violecircncia que se consubstancia na animalizaccedilatildeo e na aniquilaccedilatildeo dos (negros)

colonizados Para sustentar o seu argumento Fanon comeccedila por relembrar a atitude do colono

que em vaacuterias circunstacircncias fez recurso a ldquouma linguagem zooloacutegica usando expressotildees

como ldquo[hellip] hordas fedor buliacutecio [hellip] e quando os quisesse descrever com mais exatidatildeo

[hellip] recorria constantemente ao bestiaacuteriordquo para designar os negros (Fanon 1968 p 31 ou

2002 p 456) Esta animalizaccedilatildeo do colonizado eacute para Fanon a expressatildeo mais eloquente de

uma violecircncia absoluta que desenraiacuteza o aviltado de sua humanidade E para reforccedilar a sua

criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista o colono via-se na necessidade de

encontrar novos atributos que pudessem explicitar da melhor maneira possiacutevel a real

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dimensatildeo semacircntica subjacente nos conceitos de ldquoindiacutegena e selvagemrdquo que em si jaacute natildeo

eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de

Aacutefrica entre outros

demografia galopante massas histeacutericas rostos de onde fugiu qualquer traccedilo

de humanidade corpos obesos que natildeo se assemelham mais a nada corte sem

cabeccedila nem cauda crianccedilas que datildeo a impressatildeo de natildeo pertencerem a

ningueacutem preguiccedila estendida ao sol ritmo vegetalhellip (Fanon 1968 p 32 ou

Fanon 2002 p457)

A validade histoacuterica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento Eacute sensato

falar de um projecto de civilizaccedilatildeo de animais sem converter a proacutepria racionalidade

civilizadora numa irracionalidade animal Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade

animal de uma civilizaccedilatildeo cuja racionalidade eacute o epicentro da sua acccedilatildeo muitos preferiram

considerar as afirmaccedilotildees de Fanon de irresponsaacuteveis e repletas de inverdades qualificando o

proacuteprio Fanon de agitador e instigador da violecircncia ante a sua incisiva caracterizaccedilatildeo do

sistema colonial Dentre outros podemos citar Alain Finkierkraut cujo pensamento mais do

que uma antiacutetese agraves teses de Fanon eacute uma tentativa de demonstraccedilatildeo da derrota do projecto da

descolonizaccedilatildeo Piegraverre Bourdieu de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que

pesam sobre Fanon eacute paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010 p 109)

como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus Simone de

Beauvoir Germaine Tillion Jasques Amrouche e outros que como Fanon e Sartre tiveram a

ousadia de denunciar cada um agrave sua maneira a violecircncia inerente ao sistema colonial

forjando novas noccedilotildees de identidade poliacutetica que continuam a influenciar o debate poliacutetico na

actualidade

No seu ldquomarxismo encontra Bourdieurdquo Burawoy procura mostrar que apesar da enorme

distacircncia que separa o quadro teoacuterico-reflexivo de Bourdieu e Fanon nomeadamente ldquoo

marxismo terceiro-mundista de um lado e a teoria da modernizaccedilatildeo de outro ladordquo o

pensamento destes dois autores apresenta inuacutemeras similitudes sobretudo entre o Fanon do

Le Damneacutes de la terre de 1961 e o Bourdieu de Sociologie de lrsquoAlgerie de 1958 Embora

natildeo seja objecto deste debate julgamos oportuno e procedente mencionar a tiacutetulo de

exemplo algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violecircncia como uma das

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave natureza proacutepria do sistema colonial e nos termos muito

semelhantes aqueles que aparecem nas paacuteginas 26 e 30 do Le Damneacutes de la terre de Fanon

(cfr 1968) ao afirmar

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o sistema colonial enquanto tal natildeo poderaacute ser destruiacutedo senatildeo atraveacutes de

um questionamento radical Todas as mutaccedilotildees satildeo submetidas agrave lei de tudo

ou nada Este facto estaacute na consciecircncia pelo menos de forma confusa quer

entre os membros da sociedade dominante quer entre os membros da

sociedade dominada [hellip] Mas eacute preciso admitir que o primeiro e uacutenico

questionamento radical do sistema eacute aquele que o proacuteprio sistema engendrou

isto eacute a revoluccedilatildeo contra os princiacutepios que o fundaram [hellip] A situaccedilatildeo

colonial criou o despreziacutevel e ao mesmo tempo o desprezo mas criou

tambeacutem a revolta contra o desprezo Assim cresce cada vez mais a tensatildeo

que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu 1958 pp 28 e 129)

Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu numa clara aproximaccedilatildeo da

colonizaccedilatildeo agrave violecircncia De facto a violecircncia simboacutelica e real eacute depreendida em muitos

cenaacuterios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial

Vaacuterios satildeo os etnoacutelogos e ideoacutelogos que nas entrelinhas do seu pensamento conferem uma

certa razatildeo a um tal pressuposto Alfred de Vigny por exemplo faz jus a esta violecircncia

simboacutelica ao afirmar sem rodeios que o mundo natildeo europeu eacute um mundo animal mundo dos

baacuterbaros mundo da morte e consequentemente uma ameaccedila ao mundo europeu Partindo

deste postulado deduz-se que para De Vigny a colonizaccedilatildeo era um processo compulsivo de

civilizaccedilatildeo isto eacute uma opccedilatildeo para a vida e tal como diz ldquose se prefere a vida agrave morte tem de

se preferir a civilizaccedilatildeo agrave barbaridaderdquo que natildeo eacute apenas um reino animal e de morte mas

tambeacutem uma ameaccedila agrave civilizaccedilatildeo Em virtude disto conclui De Vigny ldquonenhum povo tem o

direito de permanecer baacuterbaro ao lado das naccedilotildees civilizadasrdquo Depreende-se daqui que a

uacutenica loacutegica vaacutelida eacute a disjuntiva ldquoto be or not to berdquo como diria Shakespeare ldquothat is the

questionrdquo (cfr De Vigny 2003 p87)

Esta apreciaccedilatildeo lacoacutenica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que como De

Vigny tambeacutem considera a colonizaccedilatildeo como uma obra civilizadora uma espeacutecie de direito e

dever das sociedades evoluiacutedas Folliet baseia o seu argumento nas caracteriacutesticas

heterogeacuteneas das sociedades isto eacute nos desniacuteveis existentes entre as sociedades colonizadas e

colonizadoras quer nos planos econoacutemico administrativo cultural social e poliacutetico quer nos

planos cientiacutefico e tecnoloacutegico Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizaccedilatildeo

seria possivelmente o processo de supressatildeo destes desniacuteveis sociais com o auxiacutelio das

sociedades mais desenvolvidas Pelo que a manutenccedilatildeo destes desniacuteveis como forma

hegemoacutenica de controlo ou de manutenccedilatildeo de superioridade foge do acircmbito da colonizaccedilatildeo

para desembocar no campo de acccedilatildeo do colonialismo (cfr Folliet 1932 p 75) Eacute caso para

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dizer que o entendimento teoacuterico de Folliet apresenta uma diferenccedila niacutetida entre a colonizaccedilatildeo

que seria para o autor o sinoacutenimo de civilizaccedilatildeo e o colonialismo que pode ser visto como

processo de exploraccedilatildeo e subjugaccedilatildeo das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades

desenvolvidas

Mas eacute preciso dizer que se do ponto de vista conceitual Folliet deu um tamanho salto

qualitativo propiciador de uma possiacutevel coabitaccedilatildeo paciacutefica entre o colono e o colonizador

aludindo agrave missatildeo civilizadora da colonizaccedilatildeo do ponto de vista praacutetico o discurso follietiano

deu lugar a muitas ambiguidades sobretudo quando o proacuteprio autor considera a colonizaccedilatildeo

como forma mais viaacutevel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em

territoacuterios subdesenvolvidos e valorizaacute-los para o bem-comum da humanidade sem definir as

regras nem as modalidades ou os viacutenculos contractuais para tal Com efeito Folliet considera

um dado assente que ldquoas naccedilotildees economicamente mais evoluiacutedas tecircm o direito de explorar as

riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagensrdquo (Folliet 1932 pp 101 e 268) E

para natildeo camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violecircncia Folliet

defende a necessidade da manutenccedilatildeo das desigualdades entre o colonizador e o colonizado

numa clara opccedilatildeo pelo colonialismo em detrimento da colonizaccedilatildeo contrariando a sua proacutepria

doutrina com o seguinte posicionamento

a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores de modo que o sujeito

colonizado natildeo passe numa vontade de vinganccedila a esquecer a sua

heteronomia absoluta eacute portanto uacutetil e necessaacuterio que as mais vastas

propriedades as mais ricas induacutestrias os mais frutuosos comeacutercios pertenccedilam

aos representantes da raccedila superior (Folliet 1932 p228)

Uma possiacutevel deduccedilatildeo leva-nos por um lado a aferir a inadequaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida

com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analiacuteticos da questatildeo em

estudo e a considerar por outro lado a emergecircncia da categoria de dominaccedilatildeo como outro

elemento caracteriacutestico da estrateacutegia colonial na relaccedilatildeo colonizadocolonizador Este

princiacutepio que eacute em si mesmo o elemento estruturante da tensatildeo e ao mesmo tempo

provocador da dialeacutectica do senhor e do escravo permite-nos um salto para o exame da

possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a Aacutefrica em proveito dos

africanos

5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco

Eacute possiacutevel compatibilizar o instinto de dominaccedilatildeo com a vontade de promover ou de

emancipar Guillaume Sureacutena num movimento contraacuterio ao nosso itineraacuterio apresenta um

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discurso capaz de relanccedilar a discussatildeo No seu artigo intitulado ldquoPsycanalyse et

anticolonialismerdquo Sureacutena lamenta o desperdiacutecio de uma oportunidade que teria resultado num

possiacutevel encontro inter-civilizacional frutiacutefero e que no entanto teraacute sido frustrado pela

vontade dominadora do instinto colonial Os textos surenianos insinuam que do ponto de

vista praacutetico a civilizaccedilatildeo europeia nunca teve qualquer plano de promover nem de

reconhecer as outras civilizaccedilotildees como parceiras importantes para um crescimento conjunto

A sua ambiccedilatildeo foi sempre de conhecer para dominar e subjugar como ficou explicitado nesta

passagem

este encontro de civilizaccedilotildees tatildeo diferentes poderia ter sido o momento de um

intercacircmbio fecundo e de um enriquecimento muacutetuo como lamentou o

antropoacutelogo francecircs Claude Levi-Strauss Mas para a metafiacutesica europeia

desde a Greacutecia antiga o saber foi sempre o equivalente de ldquomaitriserrdquo isto eacute

de dominar As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados

sob os conceitos com partiacuteculas latinas e gregas Os locais geograacuteficos

receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridiacuteculos por

falta de qualquer relaccedilatildeo com os espiacuteritos que os habitavam outrora (Sureacutena

1943 p 4)

Diga-se pois de passagem que foi assim na Greacutecia antiga foi assim ateacute ao seacuteculo XX e

nada justifica que natildeo continue assim nos dias que hatildeo-de vir Mas a questatildeo eacute qual o destino

que o instinto dominador das naccedilotildees pode proporcionar agrave espeacutecie humana Conveacutem recordar

que num passado mais recente da histoacuteria da Europa a colonizaccedilatildeo assumiu o caraacutecter de

dominaccedilatildeo dos povos e dos seus recursos naturais Os europeus sempre mostraram-se mais

interessados com uma partenogeacutenese profunda dos africanos para os submeter mais

facilmente e natildeo para os civilizar De facto desde o iniacutecio do seacuteculo XVII com as grandes

navegaccedilotildees e os descobrimentos das ameacutericas o interesse em explorar e conquistar novas

terras ganhou um enorme vigor na Europa e com ele emergiu tambeacutem a chamada

colonizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de povoamento A primeira forma de colonizaccedilatildeo foi o momento

no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as coloacutenias tinham uma

utilidade meramente lucrativa junto da metroacutepole A segunda acontecia de maneira

espontacircnea mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econoacutemica

com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem aiacute acorria

Muitos estudos mostram que no continente africano este tipo de colonizaccedilatildeo foi sempre

acompanhado de desterramento de zonas araacuteveis ou de pastagem dos autoacutectones bem como

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da supressatildeo dos eventuais direitos que detinham1 Embora referindo-se a um contexto muito

mais preteacuterito ao de Fanon Ceacutesaire Sartre e outros Iva Cabral traz ao de cima a ideia de

dominaccedilatildeo e de exploraccedilatildeo como elementos catalisadores do interesse europeu em Aacutefrica

ajudando assim na desconstruccedilatildeo da hipoacutetese de um possiacutevel plano colonial para o

desenvolvimento de Aacutefrica e dos africanos De facto Iva Cabral afirma que a experiecircncia

ultramarina se resumia na conquista das praccedilas do Norte de Aacutefrica e na fixaccedilatildeo de guarniccedilotildees

e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territoacuterios tropicais de

Aacutefrica natildeo pelo desejo de levar a civilizaccedilatildeo agraves terras longiacutenquas de Aacutefrica mas por causa

dos inuacutemeros privileacutegios econoacutemicos e sociais que tinham os quais incluiacuteam em alguns

casos a sociedade escravocrata de produccedilatildeo no Atlacircntico (cfr 2015 p25)

Este suporte histoacuterico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra

um reforccedilo na posiccedilatildeo de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa

anaacutelise sobre as categorias de dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo como sustentaacuteculos da acccedilatildeo

colonizadora quando num tom autocriacutetico apontando o dedo aos seus irmatildeos europeus

pinta sem complexo nem contemplaccedilotildees o verdadeiro retrato da Europa colonial permitindo

a apreensatildeo da razatildeo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opressatildeo contra os

autoacutectones em territoacuterios colonizados sobretudo em Aacutefrica nestes termos

sabeis muito bem que somos exploradores Sabeis que nos apoderamos do

ouro e dos metais e posteriormente do petroacuteleo dos continentes novos e que

os trouxemos para as velhas metroacutepoles Com excelentes resultados palaacutecios

catedrais capitais industriais [hellip] A Europa empanturrada de riquezas

concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes entre noacutes

lucramos com a exploraccedilatildeo colonial (Fanon 1968 p 17)

Se tomamos a seacuterio as diversas constataccedilotildees dos autores supra mencionados torna-se

insustentaacutevel a hipoacutetese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos

africanos e da Aacutefrica num contexto de exploraccedilatildeo no seu sentido mais radical e mais bruto do

termo isto eacute uma exploraccedilatildeo natildeo soacute de recursos naturais dos territoacuterios colonizados mas

tambeacutem do seu proacuteprio capital humano Num tal contexto aproximar a colonizaccedilatildeo da

civilizaccedilatildeo eacute admitir agrave partida uma ambiguidade semacircntica na compreensatildeo destes dois

conceitos Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade Ceacutesaire diz que a colonizaccedilatildeo natildeo

deve ser confundida com uma empresa filantroacutepica nem com uma nobre vontade de recuar as

fronteiras da ignoracircncia da doenccedila da tirania e ateacute mesmo da propagaccedilatildeo de Deus e muito

1 Cfr httpsptwikipediaogwikicolonizaccedilatildeo Enciclopeacutedia livre 15022017

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menos com uma poliacutetica de extensatildeo dos direitos do povo colonizado como pretendeu o

pedantismo cristatildeo que concebeu o referido equiacutevoco ao enunciar uma equaccedilatildeo eacutetica e

religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria tornando-se assim responsaacutevel pelas consequecircncias

abominaacuteveis decorrentes dos actos coloniais cujas viacutetimas seriam os iacutendios os amarelos e os

negros (cfr Ceacutesaire 1978 pp14-15)

Pode se depreender dos textos de Ceacutesaire que a colonizaccedilatildeo eacute a manifestaccedilatildeo sem precedente

da ganacircncia do aventureiro e do pirata do comerciante e do armador do pesquisador de ouro

e do mercado do apetite e da forccedila tendo por detraacutes a sombra maleacutefica projetada de uma

forma de civilizaccedilatildeo que a dado momento da sua histoacuteria se viu obrigada internamente a

alargar agrave escala mundial a concorrecircncia das suas economias Se natildeo como se pode perceber

que a Franccedila em particular e a Europa em geral conseguissem progressivamente tal como

alude Dino Constantini transformar os princiacutepios democraacuteticos e humanistas tatildeo-reclamados

naquela circunscriccedilatildeo do globo em instrumentos de justificaccedilatildeo de dominaccedilatildeo com regulares

violaccedilotildees nas coloacutenias dando lugar a uma degeneraccedilatildeo sem precedente de uma suposta

ldquomissatildeo civilizadorardquo da Europa em Aacutefrica (cfr Constatini 2008 pp 33 e 53) Para pocircr a nu

o paradoxo de uma civilizaccedilatildeo dita humanista mas na praacutetica contestadora da proacutepria

humanidade no ldquodiferenterdquo Constatini evoca o coacutedigo civil de 1791 que coloca as coloacutenias

fora do direito comum institucionalizando uma cisatildeo social juridicamente fundamentada

entre as populaccedilotildees brancas e negras legitimando ao mesmo tempo a violecircncia primeiro no

plano simboacutelico e posteriormente no plano concreto numa clara declaraccedilatildeo de recusa de

reconhecimento e de integraccedilatildeo dos negros na vida da metroacutepole Eacute preciso dizer que esta

fragmentaccedilatildeo social legitimada pelo coacutedigo civil supra citado serviu de base para a

consagraccedilatildeo de uma nova compreensatildeo do conceito da ldquohumanidaderdquo que reduziria os

direitos humanos a direitos de cidadania reservando-os apenas aos europeus

Eacute o paradoxo no caso da Franccedila de uma Repuacuteblica que nunca deixou de contestar contra a

violecircncia de que tinha sido viacutetima em 1871 cegamente transformada numa autecircntica maacutequina

de violecircncia contra outros humanos sem qualquer fundamento legiacutetimo (cfr Constatini 2008

p 286) Eacute a contradiccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo ocidental defensora de direitos humanos mas que

natildeo hesita de reduzir os outros humanos agrave categoria de sub-humanos eacute a estrateacutegia de um

imaginaacuterio ideoloacutegico que no plano psicoloacutegico confere legitimidade a todas as barbaacuteries dos

colonizadores sobre os colonizados eacute a ironia de uma civilizaccedilatildeo cuja linha de demarcaccedilatildeo

com a barbaridade natildeo eacute expliacutecita Nem mesmo a dignidade humana universal e abstracta

apregoada pelos moralistas desta civilizaccedilatildeo como um dos valores mais sublimes entre os

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humanos em especial pela religiatildeo cristatilde mais consagrada ao serviccedilo do imperialismo do

que de Deus na oacuteptica de Ceacutesaire conseguiu dissimular a violecircncia contra o colonizado

6 Desmistificando o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista erguida na recusa do

ldquodiferenterdquo

Parece ter ficado evidente que a colonizaccedilatildeo se identificou mais com uma dinacircmica de

exploraccedilatildeo dos povos colonizados do que com um projecto de integraccedilatildeo dos indiacutegenas na

metroacutepole Iva Cabral ajuda-nos mais uma vez a perceber como a loacutegica do lucro presidiu a

todas as estrateacutegias e legislaccedilotildees coloniais Numa perspectiva simplesmente histoacuterica a autora

apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos

enunciados de Fanon que concedem sentido e substacircncia a este trabalho Com efeito Iva

Cabral afirma que as decisotildees poliacuteticas do regime colonial criavam condiccedilotildees para que os

filhos da meacutedia e baixa nobreza portuguesa neste particular mercadores e aventureiros

vislumbrassem no territoacuterio receacutem-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto

mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as

mercadorias daiacute advindas poderiam trazer (cfr Cabral 2015 p27)

Eacute loacutegico conjecturar que num tal jogo de lucro faacutecil que natildeo podia natildeo contar com os

recursos naturais e com o capital humano africanos como meios ideais para minimizar os

custos e maximizar os lucros a preocupaccedilatildeo pela integraccedilatildeo dos africanos no clube dos

evoluiacutedos e emancipados seria uma espeacutecie de atentado ao espiacuterito de negoacutecio Este postulado

encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da

recusa do ldquooutrordquo o diferente feito uma ameaccedila para o ldquonoacutesrdquo ideologicamente construiacutedo e

consagrado como o uacutenico paradigma possiacutevel de humanidade na seguinte declaraccedilatildeo

havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se

recusaram no seacuteculo de Colombo em reconhecer seus semelhantes homens

degradados que povoavam o novo mundo [hellip] Era impossiacutevel fixar um

instante do olhar no selvagem sem ler o anaacutetema escrito natildeo digo somente na

sua alma mas ateacute na forma exterior do seu corpo (De Maistre Joseph Apud

Ceacutesaire 1978 p 33)

Esta declaraccedilatildeo deixa transparecer uma inferecircncia loacutegica quase irrefutaacutevel de que o referido

anaacutetema dos indiacutegenas soacute natildeo se consumou ao extermiacutenio na perspectiva do colono por

razotildees de iacutendole puramente utilitarista como se depreende nesta passagem do jaacute citado autor

nesta transcriccedilatildeo de Ceacutesaire

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sob o ponto de vista de selecccedilatildeo consideraria deploraacutevel o desenvolvimento

numeacuterico [hellip] dos elementos amarelos e negros que seriam de eliminaccedilatildeo

difiacutecil Se todavia a sociedade futura se organizar numa base dualista com

uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raccedila inferior confiada agrave

mais grosseira matildeo-de-obra eacute possiacutevel que este uacuteltimo papel incumba aos

elementos amarelos e negros Neste caso aliaacutes natildeo seria um embaraccedilo mas

uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre Joseph Apud Ceacutesaire

1978 p 33)

Fica desvendado nestes dizeres do De Maistre o retrato do narcismo nihilista de muitos

artistas da europa colonial consubstanciado na ideia e na pretensatildeo de uma raccedila superior que

se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contaacutegio Eacute o drama de uma Europa

feita refeacutem pelo seu proacuteprio mito de pureza civilizacional uniracial um mito enganoso

pretensioso e pernicioso que potildee em causa a aspiraccedilatildeo de uma poliacutetica enquanto exigecircncia de

construccedilatildeo de uma comunidade humana na qual a consciecircncia da diversidade dos humanos e a

necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condiccedilatildeo ldquosine qua nonrdquo da

prosperidade e da sobrevivecircncia da proacutepria espeacutecie humana Lamentavelmente este

entendimento da poliacutetica como espaccedilo intermediaacuterio onde se joga a liberdade e interacccedilatildeo dos

humanos enquanto seres iguais e autoacutenomos eacute constantemente posto em causa como diz

Martha Nussbaum pelos apologistas deste mito que em todas as sociedades alimentam uma

falsa convicccedilatildeo de pureza etnocecircntrica ou ldquoclassececircntricardquo geradora de violecircncia contra os

excluiacutedos (cfr Nussbaum 2010 p 48) comprometendo a possibilidade de fazer da poliacutetica o

lugar por excelecircncia da profundidade humana

Para compreender as mais profundas motivaccedilotildees que levam os indiviacuteduos a um tal instinto

nihilista Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi que examina a possiacutevel

conexatildeo existente entre os domiacutenios psicoloacutegico e poliacutetico Com efeito Gandhi concluiacutera que

os desejos gananciosos o instinto de agressatildeo e a ansiedade narcisista satildeo empecilhos para a

edificaccedilatildeo de uma verdadeira civilizaccedilatildeo humana Pelo que a luta poliacutetica pela construccedilatildeo de

uma civilizaccedilatildeo humana assente nos pilares da liberdade empatia e igualdade deve ser

precedida de uma luta contra o medo do outro a ganacircncia e o instinto de agressatildeo narcisista

intriacutensecos em cada indiviacuteduo (cfr Nussbaum 2010 pp 48-50) E se partimos da hipoacutetese de

que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multidotildees ao oacutedio ao genociacutedio e agrave

instrumentalizaccedilatildeo dos ldquooutrosrdquo tidos como da raccedila inferior ou sub-humana ocorre mais em

contextos de pouca capacidade criacutetica ou de uma intelectualidade materialista ou

ldquoventriacuteloquerdquo usando a expressatildeo de Fabien Eboussi Boulaga isto eacute de uma intelectualidade

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corrupta desprovida de princiacutepios eacuteticos e humanistas forccediloso eacute concluir que por mais que a

Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizaccedilatildeo dos africanos natildeo teria condiccedilotildees

efectivas de o fazer ante a sua ganacircncia e arrogacircncia eurocentristas encorajadas por uma

jactacircncia ostensiva feito veneno instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do

lucro cuja solidificaccedilatildeo se daacute com o asselvajamento dos africanos em geral e dos negros em

particular

Eacute precisamente este instinto egoiacutesta e materialista que transparece na maneira como Ernest

Renan concebe o colonialismo Para ele o colonialismo eacute uma necessidade poliacutetica de

primeira ordem eacute a conquista de um paiacutes de raccedila inferior pela raccedila superior que se instala na

coloacutenia atraveacutes de um governo Trata-se na perspectiva deste autor de algo de extrema

normalidade que nada tem de chocante A colonizaccedilatildeo soacute se torna chocante se e somente se

as conquistas forem entre raccedilas iguais Assim se por um lado estas conquistas devem ser

desencorajadas e censuradas entre raccedilas iguais elas devem ser encorajadas entre as raccedilas

desiguais porque a regeneraccedilatildeo ou degeneraccedilatildeo de raccedilas inferiores pelas raccedilas superiores

deve estar na ordem providencial da humanidade ldquoRegere imperio populosrdquo eis a nossa

vocaccedilatildeo A natureza criou uma raccedila de trabalhadores industriais ndash eacute a raccedila chinesa uma de

jornaleiros agriacutecolas ndash eacute a raccedila negra [hellip] uma raccedila de senhores e de soldados eacute raccedila

europeiardquo Nesta oacuteptica a reduccedilatildeo desta nobre raccedila agrave classe trabalhadora em condiccedilotildees

degradantes como as dos negros e dos chineses gera revolta (cfr Renan 1967 pp 69-70) O

mais perplexo em tudo isso eacute que Renan numa enorme ousadia intelectual natildeo se tenha

inibido do seu instinto de superioridade racial ao defender de forma paradoxal numa obra

intitulada ldquoLa Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la Francerdquo a seguinte convicccedilatildeo

noacutes esperamos natildeo a igualdade mas sim a dominaccedilatildeo O paiacutes de raccedila

estrangeira deveraacute voltar a ser um paiacutes de servos de jornaleiros agriacutecolas ou

de trabalhadores industriais Natildeo se trata de suprimir as desigualdades entre

os homens mas de as ampliar e as converter em lei (Renan 1967 p69-70)

Uma visatildeo demasiado materialista e narcisista que mereceu num tom iroacutenico a criacutetica de

Ceacutesaire que qualifica o colono muito distinto muito humanista e muito cristatildeo do seacuteculo XX

como uma autecircntica encarnaccedilatildeo de Hitler Eacute o retrato do colono que traz em si segundo

Ceacutesaire ldquoum Hitler que se ignora que vive nele e que eacute o seu demoacutenio e se o vitupera eacute por

falta de loacutegica ou pelo instinto de afinidade racial pois os factos atestam que o que muitos

deles natildeo perdoam a Hitler natildeo eacute o crime em si nem tatildeo-pouco o crime contra a humanidade

mas o crime contra o homem branco a humilhaccedilatildeo do homem brancordquo Assim natildeo restam

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duacutevidas de que do ponto de vista do seu desenvolvimento socio-histoacuterico a colonizaccedilatildeo eacute

uma suprema barbaacuterie um nazismo pouco expressivo por ser aplicado aos negros e aos aacuterabes

de Aacutefrica Mas na sua essecircncia um tal narcisismo constitui a negaccedilatildeo mais eloquente do

humanismo universal e formal reivindicado por Fanon e ao mesmo tempo uma clara

renuacutencia dos ideais filosoacuteficos morais e cristatildeos de uma civilizaccedilatildeo decaiacuteda (cfr Ceacutesaire

1978 pp 18-19)

Estaacute assim denunciada a patologia de uma civilizaccedilatildeo que fundou a sua filosofia de acccedilatildeo na

estigmatizaccedilatildeo do ldquodiferenterdquo e na fragmentaccedilatildeo do mundo em puro e impuro Eacute a construccedilatildeo

patoloacutegica usando a expressatildeo da Nussbaum de um ldquonoacutesrdquo que se julga imaculado e de um

ldquoelesrdquo preconceitualmente denotado vil perigoso e contagioso Esta denunciada patologia

obriga-nos a retomar algumas das questotildees supra referenciadas tais como eacute possiacutevel pensar a

missatildeo civilizadora da Europa colonial num contexto de clara recusa da alteridade ou de

reconhecimento do africano como sujeito autoacutenomo dotado de razatildeo e de humanidade

Como compreender uma missatildeo civilizadora assente numa loacutegica social do segundo excluiacutedo

isto eacute numa loacutegica social fracturante e nihilista Seraacute que Aacutefrica ao engajar-se na luta pela

descolonizaccedilatildeo teraacute efectivamente recusado o projecto de desenvolvimento que configurava

a missatildeo civilizadora da potecircncia colonial Vamos no proacuteximo ponto tentar encontrar alguns

elementos de resposta a estes questionamentos em certa medida jaacute respondidos

7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta uma antiacutetese agrave pretensatildeo colonial da emancipaccedilatildeo

da Aacutefrica dos africanos

A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta da sociedade ou seja a bipolarizaccedilatildeo social assente no

princiacutepio da desigualdade entre as cidades dos homens isto eacute dos europeus e os bairros

indiacutegenas ou dos selvagens categorias sociais criadas pelo proacuteprio colono contradiz agrave

partida qualquer pretensatildeo colonial de reconhecimento e integraccedilatildeo da Aacutefrica e dos africanos

no universalismo humano (cfr Fanon 1968 p 27 ou 2002 p 453) Aliaacutes a estrutura social

montada pelo colono determinava ldquoa priorirdquo que as relaccedilotildees entre os habitantes dos dois

mundos fossem de exploradores e explorados dominadores e dominados opressores e

oprimidos superiores e inferiores homens e sub-homens Conveacutem no entanto sublinhar que

toda a violecircncia colonial tinha como grande propoacutesito a criaccedilatildeo de um ambiente de medo e

inibiccedilatildeo do colonizado no intuito de facilitar a dinamizaccedilatildeo da exploraccedilatildeo e a pilhagem de

recursos naturais num contexto inovador de mercantilismo que muito precisava do concurso

forccedilado dos proacuteprios indiacutegenas Para dar conta do dinamismo interno de uma tal

compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta Fanon escreve

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em sua zona o colono potildee em marcha o movimento de dominaccedilatildeo de

exploraccedilatildeo e de pilhagem Na outra zona a coisa colonizada oprimida e

espoliada alimenta como pode esse movimento [hellip] as mateacuterias-primas vatildeo

e vecircm legitimando a presenccedila do colono Enquanto o acocorado mais morto

do que vivo o colonizado se eterniza num sonho [hellip] o colono faz histoacuteria

Sua vida eacute uma epopeia uma odisseia (Fanon 1968 p 38 ou 2002 p 463)

Como se pode depreender mais uma vez este maniqueiacutesmo eacute em si mesmo uma antiacutetese de

qualquer projecto civilizador natildeo soacute pelo facto de se constituir num factor provocador de

desprezo e ignomiacutenia dos colonizados mas tambeacutem e sobretudo por ser um factor

desestabilizador suscitador de oacutedio e de violecircncia entre os habitantes das duas zonas Cocircnscio

desta tensatildeo latente e subjacente a esta configuraccedilatildeo geopoliacutetica opressiva o colono interpocircs

como deduz Fanon uma estrutura fronteiriccedila forte e intimidatoacuteria capaz de assegurar a

atmosfera de submissatildeo e de inibiccedilatildeo dos explorados tal como se pode ler

o mundo colonizado eacute um mundo cindido em dois A linha divisoacuteria a

fronteira eacute indicada pelos quarteis e delegacias de poliacutecia Nas coloacutenias o

interlocutor legal e institucional do colonizado o porta-voz do colono e do

regime de opressatildeo eacute o gendarme ou o soldado Nas sociedades capitalistas o

ensino religioso ou leigo a formaccedilatildeo de reflexos morais [hellip] criam em torno

do explorado uma atmosfera de submissatildeo e inibiccedilatildeo que torna

consideravelmente mais leve a tarefa das forccedilas da ordem [hellip] O

intermediaacuterio do poder utiliza uma linguagem de pura violecircncia [hellip] natildeo

torna mais leve a opressatildeo natildeo dissimula a dominaccedilatildeo Exibe-as manifesta-

as com a boa consciecircncia das forccedilas da ordem [hellip] leva a violecircncia agrave casa e

ao ceacuterebro do colonizado (Fanon 1968 p 28 ou Fanon 2002 pp 453-454)

Este e outros cenaacuterios permitem situar a originalidade do instinto colonial no princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica e social e no de desigualdade econoacutemica entre duas espeacutecies a

branca e a negra ou aacuterabe pois a patologia narcisista de superioridade racial estruturou no

imaginaacuterio individual e colectivo do colonizador a convicccedilatildeo de que ser branco significa ser

superior e consequentemente rico e ser negro ou aacuterabe africano eacute o oposto disto (cfr Fanon

1968 p 29 ou Fanon 2002 p 455) Este maniqueiacutesmo que toma balanccedilo no plano simboacutelico

no qual o branco remete agrave noccedilatildeo do bem do belo e do bom e o negro o seu oposto

desembarca no plano concreto com reflexos inofuscaacuteveis na configuraccedilatildeo geograacutefica da

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estrutura social montada pelo regime colonial A cidade do colono eacute uma cidade vida

enquanto no bairro do colonizado se sobrevive milagrosamente a cidade do colono eacute segura

mas no bairro indiacutegena a inseguranccedila eacute o proacuteprio cartatildeo-de-visita a cidade do colono eacute uma

cidade soacutelida toda de pedra e ferro iluminada asfaltada as ruas limpas lisas sem buracos

mas o bairro indiacutegena eacute o oposto disso Na cidade do colono os habitantes estatildeo

permanentemente saciados e repletos de boas coisas Em contrapartida o bairro indiacutegena ou

negro eacute um lugar mal-afamado e povoado eacute o bairro de homens mal-afamados aiacute nasce-se

natildeo importa como nem onde e morre-se natildeo importa a onde nem de quecirc Eacute um mundo sem

intervalos ou seja os homens estatildeo uns sobre os outros eacute o mundo dos famintos dos

analfabetos e dos doentes e indigentes (cfr Fanon 1968 p 28-29 ou Fanon 2002 pp 453-

454)

O mundo colonial diz Fanon forjou um povo sem alma e sem referecircncia originaacuterias O

colono criou categorias sub-humanas para destruir a autoestima dos negros e dos aacuterabes de

Aacutefrica Fez deles uma espeacutecie de quintessecircncia do mal considerando-os como seres

impermeaacuteveis agrave moral e agrave eacutetica com ausecircncia e negaccedilatildeo de valores mal absoluto elementos

corrosivos que destroem tudo o que se aproxima deles elementos deformadores que

desfiguram tudo o que se refere agrave esteacutetica ou agrave moral depositaacuterios de forccedilas cegas (cfr

Fanon 1968 p 31 ou Fanon 2002 p 456) Esta convicccedilatildeo levou M Meyer a afirmar em

plena Assembleia Nacional Francesa que

[hellip] natildeo era necessaacuterio prostituir a Repuacuteblica fazendo penetrar nela o povo

argelino Os valores com efeito se tornam irreversivelmente envenenados e

pervertidos desde que entram em contacto com a populaccedilatildeo colonizada Os

costumes do colonizado suas tradiccedilotildees [hellip] sobretudo seus mitos satildeo a

proacutepria marca desta indigecircncia desta depravaccedilatildeo constitucional (Fanon

1968 p31 ou Fanon 2002 p 456)

Este discurso forjado no seu espaccedilo existencial levou Ceacutesaire (1978 p17) agrave conclusatildeo de que

a Europa colonial se esmerou antes de mais em descivilizar primeiro o proacuteprio colonizador

embrutececirc-lo degradaacute-lo despertaacute-lo para os instintos ocultos para a cobiccedila para a violecircncia

para o oacutedio racial e para o relativismo moral e posteriormente descivilizar o colonizado

Todo este quadro legitima sobremaneira o anseio dos africanos pela liberdade e pelo

reconhecimento da sua dignidade Para desmascarar o argumento segundo o qual o

engajamento dos africanos na luta pela descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica teraacute sido uma espeacutecie de

recusa do desenvolvimento do Continente africano pelos africanos Ceacutesaire passa em revista

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e em jeito de balanccedilo o vasto fresco dos horrores da dominaccedilatildeo colonial em particular a

francesa em Aacutefrica deixando claro que nenhum desenvolvimento vale mais do que a

dignidade humana e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos povos Apoiando

o seu raciociacutenio nos factos Com efeito Ceacutesaire afirma que a equaccedilatildeo mais ajustada agrave

realidade vivida eacute colonizaccedilatildeo igual coisificaccedilatildeo e natildeo desenvolvimento porque no fim de

contas o fiel da balanccedila pende mais para prejuiacutezos do que para ganhos tal como consta do

longo extrato que extraiacutemos do texto de Ceacutesaire

falam-me de progressos de realizaccedilotildees de doenccedilas curadas de niacuteveis de vida

elevados acima de si proacuteprios eu falo de sociedades esvaziadas de si

proacuteprias de culturas espezinhadas de instituiccedilotildees minadas de terras

confiscadas de religiotildees assassinadas de magnificecircncias artiacutesticas

aniquiladas de extraordinaacuterias possibilidades suprimidas Lanccedilam-me agrave cara

factos estatiacutesticas quilometragens de estradas de canais de caminhos-de-

ferro mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano falo

dos que no momento em que escrevo cavam agrave matildeo o porto de Abidjan falo

de milhotildees de homens arrancados aos seus deuses agrave sua terra aos seus

haacutebitos agrave sua vida agrave danccedila agrave sabedoria falo de milhotildees de homens a quem

inculcaram sabiamente o medo o complexo de inferioridade o tremor a

genuflexatildeo o desespero o servilismo Laccedilam-me em cheio aos olhos

toneladas de algodatildeo ou cacau exportado hectares de oliveiras ou de vinha

plantadas mas eu falo de economias naturais de economias harmoniosas e

viaacuteveis de economias adaptadas agrave condiccedilatildeo do homem indiacutegena

desorganizadas de culturas de subsistecircncias destruiacutedas de subalimentaccedilatildeo

instalada de desenvolvimento agriacutecola orientada unicamente para benefiacutecio

das metroacutepoles de rapinas de produtos de rapinas de mateacuterias-primas

Ufanam-se de abusos suprimidos eu tambeacutem falo de abusos mas para dizer

que aos antigos ndash muito reais ndash sobrepuseram outros muito detestaacuteveis

Falam-me de tiranos locais trazidos agrave razatildeo poreacutem constato que regra geral

eles fazem muito boa parelha com os novos e que destes aos antigos e vice-

versa se estabeleceu em detrimento dos povos um circuito de bons serviccedilos

e cumplicidade Falam-me de civilizaccedilatildeo eu falo de proletarizaccedilatildeo e de

mistificaccedilatildeo [hellip] Cada dia que passa cada negaccedilatildeo de justiccedila cada carga

policial cada reclamaccedilatildeo operaacuteria afogada em sangue cada escacircndalo

abafado cada expediccedilatildeo punitiva cada poliacutecia e cada miliciano fazem-nos

sentir o preccedilo das nossas velhas sociedadesrdquo (Ceacutesaire 1978 pp25-26)

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Disso decorre que a essecircncia do colonialismo tal como realccedilou Maacuterio Pinto de Andrade

reside em dois aspectos no ldquoregime de exploraccedilatildeo desenfreada de imensas massas humanas

que encontra a sua legitimidade e sustentabilidade na violecircnciardquo e na ldquoforma moderna de

pilhagemrdquo (cfr Ceacutesaire Aimeacute 1978 p7) Assim se os niacuteveis cientiacuteficos tecnoloacutegicos e

organizacionais ostentados pela Europa colonial lhe conferem a todos os tiacutetulos um estatuto

de uma civilizaccedilatildeo o mesmo jaacute natildeo se daacute do ponto de vista da sua relaccedilatildeo com as coloacutenias

Por esta razatildeo Ceacutesaire chamou-lhe de civilizaccedilatildeo decadente enferma e moacuterbida por se ter

revelado incapaz de resolver os grandes problemas que criou nomeadamente o do

proletariado e o colonial Ouccedilamos Ceacutesaire a respeito

ldquouma civilizaccedilatildeo que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu

funcionamento suscita eacute uma civilizaccedilatildeo decadente Uma civilizaccedilatildeo que

prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais eacute uma civilizaccedilatildeo

enferma Uma civilizaccedilatildeo que trapaceia com os seus princiacutepios eacute uma

civilizaccedilatildeo moacuterbidardquo (Ceacutesaire 1978 p13)

Teratildeo Fanon Ceacutesaire Sartre e outros exagerado na sua criacutetica do colonialismo

Possivelmente sim Contudo a larga unanimidade existente sobre o assunto permite-nos

atribuir uma certa objectividade e verdade histoacuterica a muitos dos enunciados que nos satildeo

dados a apreciar Reneacute Grousset (1954 p 76) quase duas deacutecadas antes de Ceacutesaire

analisando o percurso evolutivo das civilizaccedilotildees constatava que nenhuma civilizaccedilatildeo

apareceu logo no iniacutecio tatildeo promissora e tatildeo ameaccedilada como a civilizaccedilatildeo ocidental A sua

ameaccedila em seu entender natildeo vem apenas da espada nuclear vem tambeacutem e sobretudo do

egoiacutesmo e do materialismo que inspiram os povos que a comandam Estaacute portanto evidente

que o regime colonial europeu foi essencialmente uma conquista assente em fins de

exploraccedilatildeo dos indiacutegenas Esta ideia ceacutesairiana de uma Europa exploradora no sentido

accedilambarcador do termo aparece tambeacutem no ldquoLe geacutenociderdquo no qual Jean-Paul Sartre eacute

perentoacuterio em afirmar que a colonizaccedilatildeo natildeo eacute uma mera conquista como foi a anexaccedilatildeo de

Alsace-Lorraine pela Alemanha na sua verdadeira natureza a colonizaccedilatildeo eacute um acto de

genociacutedio cultural Numa ldquodeacutemarcherdquo fenomenoloacutegica Sartre mostra que a colonizaccedilatildeo natildeo

acontece sem a liquidaccedilatildeo sistemaacutetica de todas as caracteriacutesticas particulares de sociedades

nativas e simultaneamente sem a recusa da sua integraccedilatildeo massiva na metroacutepole e sem a

negaccedilatildeo do seu acesso agraves vantagens da metroacutepole

Concordamos assim com Sartre que a colonizaccedilatildeo eacute um sistema de negoacutecio que requer

inevitavelmente a existecircncia de um sub-proletariado nacional forccedilado a trabalhar por

miseraacuteveis salaacuterios Vale dizer que no sistema colonial a coloacutenia teve uma funccedilatildeo

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instrumental ou seja foi usada para vender as suas mateacuterias-primas e seus produtos agriacutecolas

a um preccedilo irrisoacuterio agrave metroacutepole Em retorno a metroacutepole vendeu os bens manufaturados agraves

coloacutenias a preccedilo do mercado Este negoacutecio que contou com a comparticipaccedilatildeo da burguesia

nacional condenou os africanos a viverem num submundo de miseacuteria como negros fantasmas

continuamente recordados da sua condiccedilatildeo de sub-humanos (cfr Sartre 1967 p39)

Estaacute visto que a colonizaccedilatildeo partindo da efiacutegie aqui apresentada eacute um projecto oposto aos

ideais civilizacionais tal como alude Ceacutesaire ao desmistificar a tentativa de atribuir ao

processo de colonizaccedilatildeo uma intenccedilatildeo civilizadora A maldiccedilatildeo mais comum nesta mateacuteria eacute

deixarmo-nos iludir de boa-feacute por uma hipoacutetese colectiva e haacutebil em enunciar mal os

problemas para melhor justificar as soluccedilotildees que se lhes aplicam conferindo facilmente

legitimidade a um conjunto de praacuteticas abominaacuteveis atribuindo-lhes a categoria de um mal

necessaacuterio com vista a um fim nobre ndash a civilizaccedilatildeo dos selvagens (Ceacutesaire 1978 p14)

Conclusatildeo

A reflexatildeo feita nas paacuteginas anteriores permitiu-nos deduzir a existecircncia de uma possiacutevel

analogia entre a colonizaccedilatildeo e a civilizaccedilatildeo do ponto de vista teoacuterico conceitual Mas do

ponto de vista praacutetico tudo natildeo passou de uma simples ilusatildeo Uma ilusatildeo cimentada pela

foacutermula do pedantismo cristatildeo que procurou atribuir uma presumiacutevel missatildeo civilizadora ao

fenoacutemeno de colonizaccedilatildeo ao estabelecer a equaccedilatildeo cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria A anaacutelise mostrou que do ponto de vista doutrinal e factual

uma tal equaccedilatildeo eacute insustentaacutevel porquanto a colonizaccedilatildeo se assumiu mais como violecircncia

contra os povos colonizados e exploraccedilatildeo dos seus recursos naturais e da sua forccedila de trabalho

e nunca como projecto colonial de emancipaccedilatildeo dos povos colonizados Esta conclusatildeo pode

ter sido previsiacutevel mas como foi referido no princiacutepio deste trabalho esta anaacutelise sobre o

colonialismo encontra a sua utilidade neste texto na medida em que se nos apresenta como

movimento historicizante que constitui a mateacuteria e a forma que nos permitem vislumbrar o

horizonte teleoloacutegico da descolonizaccedilatildeo enquanto proposta de emergecircncia do novo nova

realidade novos seres e novo continente uma espeacutecie de antiacutetese do mundo colonial

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Obras do autor

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Companion to African Philosophy Cornwall MPG Books Ltd Bodmim 2004 pp 243-260

Paacutegina 44 de 74

PEDAGOGIA laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO

LIBERAL EM AacuteFRICA

INAacuteCIO VALENTIM a

inaciovalentim82gmailcom

Resumo

Nada eacute tatildeo enobrecedor como ensinar e aprender A nobreza reside na consciecircncia estaacute no

encontro com o outro estaacute na disponibilidade que eacute criada para si e para o outro e estaacute

sobretudo no comprometimento que se tem consigo mesmo e com o outro O outro como o

rosto como memoacuteria e como um ldquooutro eurdquo Isto eacute o que ensinar e aprender nos oferece e nos

sugere Ter a noccedilatildeo de que todo o acto de ensinar eacute essencialmente um processo de aprender

de aprendizagem e de dar a possibilidade de interrogar-se sobre o aprendido e sobre

aprendizagem O objectivo deste artigo eacute de reflectir sobre a hermenecircutica do aprender o que

chamamos aprender e como acontece

Palavras-chave aprender comprometimento inacessibilidade responsabilidade fazer e

ensinar

Abstract

Nothing is so ennobling as teaching and learning The nobility lies in its consciousness is in

the encounter with the other it is in the availability that is created for itself and to the other

and itrsquos mainly in the compromise that it has with oneself and with the other The other as the

face as memory and as other selfrdquo This is what teaching and learning offers and suggests to

us Have the notion that the whole act of teaching is essentially a process of learning learning

and giving the possibility to question them about the learned and about learning The aim of

this article is to reflect on the hermeneutics of learning what we learn and how it happens

Keywords learning commitment inaccessibility responsibility doing and teaching

a Doutor em Filosofia pela Universidade Carlos III de Madrid Professor e Investigador Titular Director Geral do

Instituto Superior Politeacutecnico Sol Nascente Huambo - Angola wwwispsnorg

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O termo laquoaprenderraquo oferece agrave primeira vista com uma leitura muito atenta uma ideia muito

escorregadia apresenta algo de inacessibilidade algo que nos passa entre os dedos como

aacutegua como liacutequido como vento como espiacuterito Enfim como algo que natildeo nos eacute dado

aprisionar fiacutesica e mentalmente No entanto acreditamos que aprendemos e acreditamos que

podemos fazer com que outras pessoas aprendam connosco ou atraveacutes de noacutes e natildeo hesitamos

muitas vezes em oferecer-nos como instrumento de aprendizagem para os outros Apesar de

ser um termo muito duro no sentido de responsabilidade esta responsabilidade acaba por estar

ou ficar diluiacuteda na confusatildeo entre o aprender e o fazer entre o aprender e o ensinar entre o

aprender e o saber porque confundimos ou fundimos as duas perspectivas antecipando

precisamente o acto do segundo que eacute dirigido ou orientado para o aprendiz Enquanto

mecanismo que conduz agrave aquisiccedilatildeo do saber a aprendizagem ldquoopotildee-se ao ensinamento ou ao

ensino cujo objectivo eacute de dispensar conhecimentos e saberesrdquo Mas esta oposiccedilatildeo natildeo eacute de

ruptura porque natildeo pode haver aprendizagem senatildeo por intermeacutedio do ensino ou de quem

ensina

O aprender-se bem eacute reflectido sobretudo a partir da acccedilatildeo enquanto resultado e resposta do

aprender natildeo obstante enquanto fenoacutemeno o aprender eacute um acto de natureza invisiacutevel e

quase que inapreensiacutevel e intocaacutevel A sua visibilidade soacute eacute passiacutevel para o proacuteprio sujeito

isto eacute para o aprendiz ou no aprendiz Dificilmente eu como promotor ou enquanto promotor

de aprendizagem posso dizer com exactidatildeo o momento da captaccedilatildeo do sujeito do elemento

aprendido posso supor atraveacutes de perguntas que faccedilo ou que tenho que responder dele mas

apenas eacute uma suposiccedilatildeo Eacute pois esta complexidade que vai tambeacutem fazer com que o acto de

aprender seja acima de tudo um acto divino um momento ou uma instacircncia do natildeo humano

Soacute aquele que diviniza-se chega a aprender consegue aprender e supera com isso a primeira

instacircncia do humano E divinizar-se significaria ter um autocontrolo sobre os impulsos do

saber os impulsos desenfreados do desejo de aprender e de assumir-se como o promotor de

aprendizagem Mas este processo soacute eacute possiacutevel com um povo ou com gente que agrave partida natildeo

rejeita preliminarmente a filosofia soacute eacute possiacutevel com gente que natildeo eacute dirigida e que natildeo eacute

paciente dos meacutedicos do povo como diria Nietzsche O aprender filosoacutefico apenas acontece

com e para gente satilde os ldquoenfermos que se contactam com a filosofia ficam ainda mais

enfermosrdquo porque de certa forma a filosofia soacute pode salvar e curar quem jaacute estaacute curado

quem reuacutene requisitos para a cura E foi assim que os gregos conseguiram fazer da filosofia a

sua proacutepria casa o seu mundo o seu lugar apesar de a filosofia vir de outros lugares virou a

casa dos gregos tornou-se ou transformou-se no elemento da definiccedilatildeo essencialmente grego

Os gregos souberam pegar naquilo que os outros povos abandonaram e fizeram dele o mais

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alto elemento do saber precisamente porque souberam utilizar laquoa arte de aprender

produtivamenteraquo utilizando para este efeito os seus saacutebios Contrariamente aos outros povos

que laquotecircm santos os gregos tecircm saacutebiosraquo diz Nietzsche e satildeo estes saacutebios que vatildeo fazer com

que a filosofia tenha um sentido profundo e original para o grego justificando assim a sua

aposta a sua protecccedilatildeo e a utilidade da sua futilidade

Apesar dos gregos terem podido trazer a filosofia das outras paradas orientais como diz

Nietzsche natildeo tiveram nenhuma moda que lhes pudesse ajudar ou facilitar as coisas Tiveram

que inventar a sua proacutepria imaginaccedilatildeo tiveram que filosofar com laquouma puberdade madura

onde brotava a fogosa alegria de uma vitoriosa e valente idade viril1raquo Em outras palavras

tiveram que superar a idade da infacircncia humana a infacircncia social e tiveram que se fazer

responsaacuteveis Esta eacute tambeacutem uma das condiccedilotildees de aprendizagem ou do aprender fazer-se

responsaacutevel emancipar-se e dar conta de si e dos outros laquopois quanto mais fazemos sobre as

coisas mais pensamos sobre elas ou mais desenvolvemos pensamentos sobre elasraquo O nosso

aprender estaacute relacionado com um espaccedilo concreto com um lugar com uma referecircncia com

um encontro-chegada-regresso No fundo o nosso aprender estaacute relacionado com uma histoacuteria

concreta ou com uma meta-histoacuteria estaacute relacionado com um padratildeo que nos vai dizer que as

condiccedilotildees para aprender exigem abc A tarefa de aprender natildeo eacute compatiacutevel com o tempo

apressado com o tempo que se assimila ao material O aprender eacute como ler um livro que estaacute

destinado a

[hellip] leitores tranquilos a homens que ainda natildeo foram arrastados pela vertiginosa pressa

da nossa agitada era e que ainda natildeo sentem o prazer idolatra quando olham para baixo das

sua rodas [hellip] quer dizer Haacute poucos homens Estes ainda natildeo estatildeo habituados a

estabelecer o valor de cada coisa segundo a poupanccedila ou os gastos do tempo estes laquoainda

tecircm temporaquo ainda lhes eacute permitido sem culpar-se de nada seleccionar e reunir as melhores

horas da jornada e os seus momentos mais fecundos e vigorosos para reflectir sobre o

futuro da nossa educaccedilatildeo estes podem ter a certeza que chegaram agrave noite de uma forma

proveitosa e digna a saber na meditation generis futuri (meditaccedilatildeo sobre o geacutenero futuro)

Um homem assim ainda natildeo se esqueceu de pensar enquanto lecirc ainda compreende o

segredo de ler entre linhas mais ainda eacute de uma natureza tatildeo prodigiosa que reflecte sobre

o lido talvez muito tempo depois de ter deixado o livro E sem duacutevidas natildeo para escrever

uma resenha ou outro livro mas simplesmente para reflectir2

O aprender seria portanto um viver sem pressa um estar sem pressa um existir sem pressa

Um ser no desconhecimento Mas sabemos que isso natildeo eacute possiacutevel Natildeo eacute possiacutevel saber sem

1Cf Friedrich Nietzsche Obras completas Vol 1 Filosofiacutea en la Eacutepoca Traacutegica de los Griegos Trad e introduc

Joan B et alt Tecnos Madrid 2011 p 574 2 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 549

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ser conotado natildeo eacute possiacutevel saber sem ser procurado natildeo eacute possiacutevel saber sem falar do que se

sabe natildeo eacute possiacutevel saber sem comunicar o sabido Mas dizemos que natildeo eacute possiacutevel e na

verdade eacute possiacutevel porque natildeo estamos a falar da mesma coisa saber natildeo eacute aprender Satildeo

duas coisas completamente distintas mas apesar de tudo uma coisa tecircm em comum a fuga da

fanfarronice e o desejo desenfreado de confrontaccedilatildeo A atestaccedilatildeo do aprendido a examinaccedilatildeo

do sabido Tecircm em comum aquilo que falta ao homem moderno o excesso de si a auto-

referecircncia desmedida O aprender conduz-nos ao desejo de estar tatildeo bem formados a tal ponto

de natildeo pensarmos mais em noacutes mesmos ou na nossa formaccedilatildeo e ateacute ao ponto de desprezarmos

a nossa proacutepria formaccedilatildeo Contrariamente ao homem moderno diz Nietzsche haacute que evitar

fazer de noacutes mesmos uma espeacutecie de homo mesura precisamente porque natildeo somos criteacuterio

seguro de nada natildeo somos criteacuterio seguro do absoluto Aqui o aprender deixa de ser um

criteacuterio e passa a ser uma meta e a meta aqui eacute que aquele que estaacute aprender se entregue

completamente com laquoa maacutexima confianccedila agrave tutela do autor de quem apenas pode falar a partir

da sua proacutepria ignoracircncia e da consciecircncia da ignoracircnciaraquo O aprendiz eacute aquele de quem

Nietzsche faz este tremendo apelo porque eacute nele que ele acredita

[hellip] Deixai-vos encontrar voacutes os isolados em cuja existecircncia acredito Voacutes

os altruiacutestas voacutes que padeceis em voacutes mesmos as dores e as perversotildees do

espiacuterito (hellip) Voacutes os contemplativos cujo olhar natildeo palpa com pressurosa

suspeita o externo das coisas mas sim sabe encontrar a entrada ao nuacutecleo da

essecircncia Eu vos convoco apenas para esta vez natildeo vos escondais nas

cavernas do vosso retiro e da vossa desconfianccedila Sejam quando menos

leitores deste livro para mais em frente com os vossos feitos acabar com ele

e deixa-lo no esquecimento Compreendeis que este livro estaacute destinado a ser

o vosso pronuacutencio quando voacutes mesmos com as vossas armas vos apresenteis

na palestra [hellip]3

Ao seu modo Nietzsche apresenta aqui a figura do aprendiz o docente o estudante e todos os

inquietos de espiacuterito como aqueles que satildeo isolados que satildeo altruiacutestas e que padecem das

dores da perversatildeo do espiacuterito O acto de aprender eacute incompatiacutevel com o tremendo de

confusatildeo eacute incompatiacutevel com o egoiacutesmo e com o egocentrismo e eacute incompatiacutevel com o

regradamente certo O aprender exige ruptura porque supotildee adaptaccedilatildeo a uma nova era a uma

nova realidade exige encontrar o outro dentro e fora de mim e exige um prestar atenccedilatildeo a

mim mesmo que natildeo seja necessariamente um narcisismo O aprender exige que sejamos uns

3 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 550

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contemplativos sem pressa de conhecer e de chegar sem pressa de afirmar ou de concluir

apenas se espera que sejamos contemplativos que admiram para melhor conhecer e trazer a

utilidade profunda mas sombria que estaacute aprisionada nas cavernas das nossas pressas O

aprender exige que a nossa contemplaccedilatildeo nos conduza ao encontro da essecircncia daquilo que

deve ser objecto do aprender Por isso cada vez que noacutes que estamos no eterno caminho de

aprender nos confrontamos com um livro com uma obra temos a possibilidade de sair dos

nossos retiros contraditoacuterios das nossas cavernas e das nossas desconfianccedilas Temos a

possibilidade de dar a conhecer a nossa opiniatildeo eacute o nosso pronuacutencio na palestra que pode

naturalmente chocar com os dois modelos do aprender propostos pela cultura educativa

moderna a saber

Por um lado a educaccedilatildeo como o espaccedilo da proposta do aprender deve ser extensiacutevel a todo o

territoacuterio por outro o laquoimpulso de reduccedilatildeo e debilitamento do mesmoraquo Desde muito cedo

quando a educaccedilatildeo comeccedilou a ser vista como um elo importante o homem apesar de alguns

constrangimentos sempre soube que seria de muito mais valia que ela fosse extensiacutevel para

todo o territoacuterio independentemente das questotildees poliacuteticas culturais econoacutemicas e religiosas

Natildeo obstante a sua extensatildeo sempre dependeraacute da vontade do Estado da disponibilidade do

Estado enfim da autorizaccedilatildeo do Estado Os gregos que fazem parte dos povos que pensaram

a educaccedilatildeo depois dos egiacutepcios e dos feniacutecios assumiram a inseparabilidade destes dois

momentos a educaccedilatildeo que deve chegar a todo o territoacuterio e a educaccedilatildeo que para ser educaccedilatildeo

tem que ser controlada pelo Estado A educaccedilatildeo deve ser controlada pelo Estado mas natildeo

necessariamente executada pelo Estado Em A Poliacutetica Aristoacuteteles foi muito bem claro em

dizer que a tarefa de educaccedilatildeo se bem eacute da comunidade natildeo obstante compete em primeiro

lugar ao Estado e soacute na impossibilidade deste de cobrir todas as partes eacute que o particular

assume tambeacutem ele a tarefa de educar Educar e por conseguinte o aprender desde este

ponto de vista nasce com um problema eacute um problema natildeo apenas no sentido de delegaccedilatildeo

de autorizaccedilatildeo mas tambeacutem no sentido da proacutepria autodestruiccedilatildeo Quem aprende destroacutei-se e

autodestroacutei-se na medida em que vai pondo de lado ou vai equacionando os fundamentos do

conhecimento anterior agrave sua formaccedilatildeo agrave sua educaccedilatildeo Como diz Fullat citado por Carlos

Francisco de Sousa Reis ldquoO acto educador especificamente humano eacute no seu nuacutecleo e fonte

entitativa confrontaccedilatildeo de duas consciecircncias confrontaccedilatildeo constitutivamente violenta4rdquo Para

Carlos Francisco Fullat procura aqui justificar a partir dos modelos de habilidades emperia a

forma como a educaccedilatildeo pode apresentar-se como acto educativo violento ou simplesmente

4Cf Carlos Francisco de Sousa Reis Educaccedilatildeo e cultura mediaacutetica Anaacutelise de implicaccedilotildees deseducativas

Acircncora editora Lisboa 2014 p 45

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como condiccedilatildeo da violecircncia Fullat segundo o nosso autor para encontrar os fundamentos da

educaccedilatildeo como condiccedilatildeo de violecircncia analisa inicialmente o surgimento ontoloacutegico da

civilizaccedilatildeo a partir de trecircs perspectivas a perpectiva do animal faber a perspectiva do animal

symbolicum e a perspectiva do animal sociale A partir destas trecircs perspectivas ele conclui

que a violecircncia eacute constitutiva de todos os actos educativos O ponto de partida da educaccedilatildeo eacute

visto portanto para Fullat desde uma perspectiva negativa desde uma antropologia negativa e

desde uma possibilidade eacutetica negativa Natildeo pode haver uma educaccedilatildeo que natildeo seja sobretudo

uma acccedilatildeo que arraste a negatividade consigo mesma Isto eacute uma acccedilatildeo que procura desfazer-

se do estado da ignoracircncia anterior O estado ou acccedilatildeo educativa eacute uma acccedilatildeo de

ldquodeplacementrdquo para um novo siacutetio um novo mundo uma nova aventura

As leituras ou melhor os textos utilizados por Fullat como exemplos patenteiam

naturalmente esta negatividade na relaccedilatildeo educativa Eacute o caso da visatildeo hobbesiana freudiana

e de Sartre das relaccedilotildees humanas que satildeo muitas vezes relaccedilotildees de poder da negatividade

isto eacute onde a manutenccedilatildeo do poder implica a perda do outro ou do espaccedilo do outro Nestes

autores destacam-se duas perspectivas inconciliaacuteveis ldquoo egoiacutesmo de ter e o sadismo de

dominarrdquo A educaccedilatildeo eacute vista como uma necessidade desenfreada de ter e ter sempre e cada

vez mais ao mesmo tempo que este desejo incontrolado eacute tambeacutem alimentado com a outra

necessidade de dominar e controlar tudo a todo custo Estas duas febres como lhe chama

Fullat resultam de uma eacutetica hedoniacutestica onde no campo hobbesiano o prazer eacute sinoacutenimo da

dominaccedilatildeo ldquoToda a eacutetica de Hobbes depende do seu pressuposto fundamental a inclinaccedilatildeo

geral da Humanidade para um desejo perpeacutetuo e sem descanso de adquirir poder e mais poder

desejo esse que soacute termina com a morte O ser humano eacute egoiacutesta (hellip) e a fim de poder estar

preparado para alcanccedilar o que deseja tem de procurar aumentar sempre cada vez mais o seu

poder5rdquo Natildeo poderia ter havido civilizaccedilatildeo se natildeo houvesse uma agressividade natural diria

Fullat de Francisco de Sousa O que noacutes consideramos como civilizaccedilatildeo teria sido aquilo que

pensadores como Hobbes ou Rousseau teriam visto como um princiacutepio do pacto natildeo pacto o

pacto simulado no caso de Rousseau A civilizaccedilatildeo nasce a partir da distorccedilatildeo de uma

realidade anterior e para permanecer deve tambeacutem continuar a distorcer esta mesma realidade

para poder construir um poder de dominaccedilatildeo e do egoiacutesmo Neste acircmbito a educaccedilatildeo aparece

como o aparelho protector do Estado manipulador e violento que utiliza as ideologias como a

praccedila da fecundaccedilatildeo das suas manipulaccedilotildees E porque o homem procura sobretudo ser feliz

diz Aristoacuteteles entatildeo muitas vezes natildeo escolhe os meios para ser feliz isto eacute natildeo estaacute

5 Cf Marques 2000 120 Apud Carlos Francisco de Sousa 2014 46

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disposto a abdicar de alguns meios que podem ser uacuteteis para a sua felicidade Eacute o caso da

felicidade pelo trabalho diraacute Francisco de Sousa mas o trabalho exerce uma forccedila contraacuteria

sobre a natureza e eacute o caso da educaccedilatildeo onde no educar

ldquoO homem exige a educaccedilatildeo mas esta implica a violecircncia da programaccedilatildeo

geneacutetica e da programaccedilatildeo social Educar eacute uma luta de consciecircncias em que

o educador sempre investe sobre o educando desde a cultura que se alimenta

da repressatildeo social imposta a Eros (o prazer) e Thanatos (a agressividade)6rdquo

Se bem podemos ver as teorias pessimistas como um exagero da negaccedilatildeo humana no sentido

do encontro pleno ainda assim nesta possiacutevel negaccedilatildeo do encontro pleno entre os humanos

nasce a possibilidade da vida do outro isto eacute o mesmo ldquosujeito que pode trazer a morte do

outro tambeacutem traz a sua vidardquo no embate do encontro entre os diferentes haacute sempre uma

possibilidade da nova vida de um novo existir e a educaccedilatildeo eacute precisamente tudo isso o

encontro dos diferentes que tem como fim ajudar a criar uma nova vida fazer nascer uma

nova existecircncia uma nova oportunidade Porque segundo autores como Fullat diz Francisco

de Sousa natildeo se pode falar de educaccedilatildeo laacute onde natildeo haacute consciecircncia Apenas haacute educaccedilatildeo

porque haacute consciecircncia porque existe consciecircncia porque haacute dois encontros e porque apesar

do embate entre os dois nenhuma delas deixa perder a outra natildeo eacute um encontro ou um

embate para desgarrar o outro antes pelo contraacuterio este embate eacute feito para estabelecer o

outro no outro sem fazer desaparecer a alteridade Mas isso soacute eacute possiacutevel justamente porque

no lugar da violecircncia que poderia ter conduzido a uma ldquorobotizaccedilatildeordquo foi introduzido o factor

de cuidado diz Carlos Francisco de Sousa Eacute portanto o cuidado que vai fazer com que haja

um encontro entre as duas consciecircncias Como diz Hegel de Morin (2005 105 Apud Carlos

Francisco de Sousa 2014 49) ldquoa consciecircncia de si soacute atinge a sua satisfaccedilatildeo numa outra

consciecircncia de sirdquo Dito de outra forma em palavras de Fullat de Carlos Francisco de Sousa

ldquosoacute depois da descoberta do eu pelo enfrentamento do tu se daacute a verdadeira relaccedilatildeo

educativardquo Portanto natildeo pode haver educaccedilatildeo na ausecircncia do outro natildeo pode haver

educaccedilatildeo na ausecircncia do interlocutor e do intermediaacuterio e natildeo pode haver educaccedilatildeo na

ausecircncia de uma situaccedilatildeo educativa

A fase educativa eacute acompanhada pelo decliacutenio paulatino de amestramento porque supotildee a

chegada da consciecircncia supotildee a responsabilidade pela capacidade de escolher e de decidir

supotildee a autenticidade do SIM e do NAtildeO supotildee uma certa comunicaccedilatildeo de intimidade no

6 Cf Francisco de Sousa cit

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dizer de Jaspers de Carlos Francisco de Sousa O sim e o natildeo do educando jaacute tem um patamar

um pouco mais alto que o sim e o natildeo daquele que estaacute na fase de amestramento A pugna jaacute

tem um caraacutecter mais real a dor eacute mais audiacutevel porque eacute vivida e sentida por aquele que tem

capacidade fiacutesica de desforrar violecircncia sobre o seu mestre sobre o seu guia ou sobre aquele

que lhe dirige Eacute diferente da dor da infacircncia que eacute vivida por e pela compaixatildeo do outro no

outro Os pais e os parentes proacuteximos podem responder pela dor da crianccedila enferma levando-a

ao meacutedico ou ao especialista Sozinha natildeo poderia fazecirc-lo eacute por isso que dizemos que a dor

da infacircncia eacute uma dor de solidariedade compassiva isto eacute precisa de um terceiro para ser

actualizada ou minimizada A do adulto tambeacutem pode precisar mas com muito menos

coerccedilatildeo que a da crianccedila ou a do adulto-crianccedila Esta simbologia tambeacutem pode ser aplicada agrave

relaccedilatildeo do educador e do educando que estatildeo quase sempre inicialmente em perspectivas

diferentes em dizibilidades diferentes talvez por isso autores como Fullat falam do caraacutecter

agoacutenico da educaccedilatildeo ou da educabilidade Assumem que natildeo eacute possiacutevel educar sem existecircncia

de um processo agoacutenico porque haacute encontro de dois tipos de saberes que podem ser

completamente diferentes sobre o mesmo saber ou sobre o mesmo tema O saber daquele que

ensina e o saber sobre o saber daquele que vai aprender ou que estaacute para aprender satildeo coisas

completamente diferentes passando ou acontecendo no mesmo espaccedilo A aprendizagem da

educabilidade exige sempre uma proposta e um tempo de adaptaccedilatildeo retroactivo para garantir a

apropriaccedilatildeo do processo da aprendizagem isto eacute para garantir o processo da refinaccedilatildeo do

conhecimento em outras palavras para atingir a compreensatildeo Esta etapa da compreensatildeo eacute

feita de uma transiccedilatildeo a outra isto eacute passamos de uma ldquocivilizaccedilatildeo de resposta a uma

civilizaccedilatildeo de perguntasrdquo porque o tempo de respostas definitivas morreu

O aprender com profundidade exige que natildeo nos contentemos apenas com as pequenas

resoluccedilotildees como diz Andreacute Giordan mas que consigamos apoderar-nos dos enunciados para

debatecirc-los e com eles transformar a relaccedilatildeo do saber atraveacutes de argumentos e contra-

argumentos Quem aprende eacute obrigado a ter argumentos insiste Giordan Quem aprende lanccedila

duras inquisiccedilotildees sobre o processo eacute um constante inquieto

laquoDe que estamos exactamente a falar O que queremos mostrar Estou

convicto de que o que estou a dizer eacute verdade eis porquecircraquo Ele descobre o

que eacute uma demostraccedilatildeo os argumentos que eacute necessaacuterio accionar para

convencer a importacircncia do raciociacutenio e o sentido preciso das palavras No

fim do ensino secundaacuterio aqueles que aprendem nem sempre tecircm

consciecircncia que uma hipoacutetese na matemaacutetica (onde ela eacute um dogma que natildeo

podemos transgredir) natildeo tem o mesmo estatuto que no resto das ciecircncias

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onde ela natildeo eacute senatildeo uma explicaccedilatildeo entre outras explicaccedilatildeo que adoptamos

e adaptamos durante o tempo em que procuramos meios para a corroborar ou

informar Controlar a polissemia de um tal vocabulaacuterio evita muitas

confusotildees7

Quem aprende predispotildee-se a ser bravado e podado predispotildee-se a ser limitado ao mesmo

tempo que rompe a proacutepria limitaccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo da teacutecnica e de habilidades

predispotildee-se a demostrar que apesar das limitaccedilotildees ainda assim pode criar pode inventar e

pode inovar saindo precisamente do seu campo de conforto Qualquer investigaccedilatildeo mesmo

sendo apenas inicial tem como fim tirar-nos do nosso campo do conforto tem que como

objectivo tirar-nos da nossa aldeia e conduzir-nos para a cidade onde corremos o risco de nos

perder implica actualizar o nosso preconceito em relaccedilatildeo a algo implica questionar as

evidecircncias laquoQuanto mais aquele que aprende reflecte sobre o tratamento de uma tarefa mais

ele referencia e repara nos erros nos limites e nos disfuncionamentos Ele torna-se

rapidamente capaz de analisar os acontecimentos em curso e explicitar a estrateacutegia utilizada e

a sua pertinecircncia Comeccedila a emergir uma eficaacutecia oacuteptima8raquo A compreensatildeo e a preensatildeo do

conhecimento natildeo nos deixa indiferentes faz de noacutes outro laquooutroraquo outra realidade que apesar

da existecircncia autoacutenoma assume que soacute pode existir se tiver possibilidade de se comparar com

as outras e se puder ser referenciada Eacute por isso que o nosso modelo de aprender tem que

acompanhar se possiacutevel o enquadramento das concepccedilotildees e tem que actualizar os conceitos

a sua marginalidade e o seu centrismo Pois haacute que ter em conta que ningueacutem aprende sem

antes fazer um trabalho profundo sobre as suas proacuteprias concepccedilotildees (diz Andreacute Giordan) e

sobre as concepccedilotildees dos outros onde ele se apresenta como porta-voz ou como mediador Eacute

por isso que em algumas situaccedilotildees vemos que eacute muito complicado ser porta-voz ou mediador

educativo porque vamos tentar transmitir algo que estaacute fora da nossa dizibilidade cultural

fora do nosso quadro referencial fora do nosso imaginaacuterio cultural Natildeo posso explicar o

rigor do Inverno se natildeo tenho experiencia do Inverno rigoroso porque natildeo disponho dos

dados fortemente caracteriacutesticos do Inverno

A minha explicaccedilatildeo deve superar a mera imagem informativa ou elucidativa da realidade A

minha informaccedilatildeo deve ser a mais real possiacutevel A imagem natildeo eacute a minha realidade eacute a

realidade daquela realidade eacute a realidade da fotografia tirada por mim ou por algueacutem Aqui a

fotografia tem mais ou menos a mesma funccedilatildeo que o vocabulaacuterio que estaacute como a porta de

entrada para a compreensatildeo oral pode ajudar ou pode complicar a compreensatildeo atraveacutes de

7 Cf Andreacute Giordan Aprender Editora Horizontes Pedagoacutegicos Lisboa 2007 p 162

8 Cf Idem

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uma falsa intermediaccedilatildeo de essecircncia da acccedilatildeo cultural A palavra vai ter um peso muito

importante nesta transiccedilatildeo porque pode permitir que cheguemos ou que fiquemos pelo

caminho pode manipular duplamente os conceitos A palavra usada na transmissatildeo deve ser

suficientemente aberta para permitir ao aluno viver a sua liberdade na hora da escolha deve

sentir-se familiarizado com o tema que quer escolher ou que quer trabalhar A obtusidade da

palavra pode tambeacutem ser um factor muito importante natildeo apenas na apreensatildeo dos conteuacutedos

mas tambeacutem na proacutepria escolha dos conteuacutedos por afinidade por gosto por paixatildeo ou ateacute por

curiosidade Quer o docente e quer discente tecircm que saber que este processo natildeo cabe num

frasco de linearidade Haacute muacuteltiplas facetas de ensinar e muacuteltiplas facetas de aprender Mas

entre ambas haacute uma faceta que eacute transversal que eacute desejaacutevel que seja transversal eacute a faceta

do ensinar honesto ou com a honestidade a de aprender honesto ou com a honestidade a de

que cada um tem que ser aquilo que eacute para dar e receber

Esta honestidade eacute muito importante para ajudar a fazer com que quer o educador quer o

educando caminhem para um espaccedilo da educaccedilatildeo liberal ldquoA educaccedilatildeo liberal eacute uma

educaccedilatildeo na cultura e para cultura9rdquo diz Leo Strauss o ldquoproduto terminado de uma educaccedilatildeo

liberal eacute um ser humano cultivadordquo insiste Strauss Uma educaccedilatildeo na cultura e para cultura

que nos conduza agrave formaccedilatildeo de um ser humano cultivado soacute pode ser feita inicialmente com

um fundamento muito forte da honestidade do cuidado e de autocuidado Strauss vai buscar a

explicaccedilatildeo do termo cultura a partir da sua origem latina (cultura) que se refere em primeiro

lugar agrave agricultura diz ele e no seu sentido derivado e actual (insiste ele) quer dizer ou

refere-se ao cultivo da mente Ora insiste o nosso autor assim como a terra precisa de

lavradores a mente precisa de mestres mas estes mestres soacute podem ser mestres ou

reconhecidos como mestres porque para aleacutem da sua periacutecia satildeo acima de tudo honestos

iacutentegros rectos e raros Eacute por isso que eacute mais faacutecil encontrar agricultores do que os mestres

diz Strauss sobretudo os mestres que natildeo satildeo disciacutepulos isto eacute os livros os grandes livros

No acircmbito da educaccedilatildeo liberal o estudante natildeo pode portanto estar separado dos livros dos

grandes livros e porque natildeo pode estar separado dos livros ele vai adonar-se deles e vai criar

condiccedilotildees para poder ajudar os outros estudantes menos experimentados remata Strauss

Tudo isso eacute um processo de honestidade Dedicar-se a estudar com profundidade as grandes

obras os grandes livros que muitas vezes dizem coisas completamente desconcertantes com a

sua eacutepoca o seu espaccedilo ou o seu meio cultural poliacutetico ou religioso Eacute por isso que a

educaccedilatildeo liberal natildeo pode ser entendida como um simples doutrinamento10 Eu natildeo posso

9 Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Katz editores Buenos Aires 2007 p 13

10 Cf Cit p 14

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pretender ou achar que estou a educar simplesmente porque estou a ideologizar as pessoas as

crianccedilas os jovens etc vou educar se crio cultura e se transformo as pessoas em cultura e na

cultura verdadeiramente adquirida com a honestidade

Strauss abre a possibilidade para que o termo cultura tambeacutem seja discutida porque cada

regiatildeo de planeta tem a sua proacutepria cultura Noacutes temos a nossa cultura enquanto africanos e

dentro do africano tambeacutem haacute vaacuterias culturas e subculturas (mesmo sabendo que um

socioacutelogo apressado emitiria imediatamente a sua reclamaccedilatildeo sobre subculturas11) O ideal na

educaccedilatildeo liberal eacute que a cultura natildeo seja uma pequena janela que natildeo seja apenas um

singulare tantum diz Strauss mas que seja e que procure ser utilizada no plural que aceite e

assuma o sentido relativo que lhe permite ser discutida Com a excepccedilatildeo dos loucos todos

somos seres de cultura insiste Strauss apesar da maacute compreensatildeo e da maacute interpretaccedilatildeo que

isso causa agraves vezes Natildeo obstante as maacutes interpretaccedilotildees e as maacutes compreensotildees fazem parte

do preccedilo que uma educaccedilatildeo liberal tem que pagar e tem que correr A educaccedilatildeo democraacutetica eacute

um preccedilo caro no acircmbito da educaccedilatildeo liberal natildeo apenas para o acircmbito acadeacutemico mas

sobretudo para o acircmbito poliacutetico onde o poliacutetico tem que justificar e merecer o voto dos

eleitores No nosso caso concreto o caso africano e de maneira particular a Aacutefrica lusoacutefona a

democracia natildeo se fez muito sentir natildeo estaacute a ser muito acompanhada pela educaccedilatildeo A

proacutepria expressatildeo democracia eacute vista e usada com ambiguidade Mas voltaremos a esta

anaacutelise num outro momento

A Democracia e Educaccedilatildeo

O termo democracia deve ser dos termos ou das expressotildees mais utilizadas a niacutevel poliacutetico e

fora do campo poliacutetico Eacute tambeacutem provavelmente dos termos poliacutetico-sociais mais ingratos

mais incompreensiacuteveis cujo uso eacute muitas vezes inadequado O saacutebio fala de democracia o

especialista tambeacutem mas natildeo eacute por isso que quem natildeo sabe da democracia deixa de falar dela

e isso faz com que ela seja um campo de todos e de ningueacutem Um campo do saacutebio do

especialista e do analfabeto

E eacute sobretudo com este uacuteltimo que vamos trabalhar e falar na democracia moderna Os paiacuteses

lusoacutefonos como muitos paiacuteses de Aacutefrica foram apanhados numa encruzilhada forccedilada da

virada do mundo Do mundo econoacutemico do mundo poliacutetico que tem que obedecer ao mundo

econoacutemico e tal como acontece nas regras e jogos de poderes tiveram que aceitar e entrar

para um jogo e uma regra que natildeo lhes era de todo favoraacutevel Tinham que dar espaccedilo real aos

11

Cf Cit p 14 laquoEacute todo o padratildeo comum de conduta proacutepria de um grupo humanoraquo

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partidos que estavam na oposiccedilatildeo e natildeo era possiacutevel fazecirc-lo realisticamente porque natildeo se

deixa de ser um Partido-Estado de um dia para outro e tinham que lutar contra a pobreza e

contra o analfabetismo as duas inimigas principais da democracia moderna e natildeo havia

garantia de que pudessem fazecirc-los nos termos que a democracia pensada pelos outros

propunha

Portanto a leitura que se deve fazer destes 25 anos da democracia nestes paiacuteses natildeo seria

naturalmente uma leitura triunfalista mas antes pelo contraacuterio uma leitura analiacutetica

Perguntar-se se o que chamamos democracia desde o iniacutecio foi verdadeiramente democracia

A leitura triunfalista eacute uma leitura de auto-regozijo de auto-suficiecircncia e de triunfalismo

nacionalista que faz uma espeacutecie de apagatildeo naquilo que eacute ou sobre aquilo que eacute a memoacuteria do

difiacutecil que roccedila ao fracasso e se esquece que a democracia eacute um regime que eacute feito para

triunfar perdendo ou fracassando Natildeo se pode esperar outra coisa da democracia senatildeo o

triunfo porque aparentemente eacute um regime onde todo o mundo tem a possibilidade e a

oportunidade de decidir de decidir sobre si mesmo e de decidir com o uso da influecircncia sobre

os outros E eacute precisamente na eventualidade de que esta influecircncia sobre os outros venha a

concretizar-se que fez com que os grandes teoacutericos do poder na antiguidade tivessem medo

da democracia laquoO que eacute que seria daquele regime onde o povo eacute quem mandaraquo

Perguntavam eles O que eacute que seria dos ricos da elite dos intelectuais da induacutestria etc Uma

seacuterie de questotildees do acircmbito de interesse particular se punha para chamar a atenccedilatildeo dos

particulares para natildeo aderir a algo que lhes podia fazer mal e fazer mal aos seus negoacutecios Eacute

por isso que a democracia natildeo eacute um poder do povo mas um poder de elite que eacute criado dentro

do povo sem que para isso o povo se decirc conta Os criacuteticos como Platatildeo sempre olharam para

esta elite que vem do povo como algo que sempre seraacute mal preparada para assumir com

distinccedilatildeo algo que eacute muito importante para o destino do paiacutes por isso nunca apoiaraacute um

regime democraacutetico Mas a democracia que eacute um regime triunfalista eacute uma democracia

falaciosa porque natildeo se pode esperar um triunfo na maioria ou da maioria uma vez que a

verdadeira maioria natildeo negocia natildeo dialoga apenas remete para o ponto de partida para a

regra do jogo inicial ainda que esta regra do jogo seja escrita e feita por ela de forma

maliciosa Eacute por isso que quando se fala da vitoacuteria da democracia no sentido da maioria

democraacutetica temos que olhar para esta maioria como aquela que mesmo sendo a maioria

deixou de secirc-la voluntariamente para se revestir do risco de ter que dar explicaccedilotildees de ter que

justificar-se de ter que sujeitar-se a ouvir quem perdeu quem o povo natildeo quer natildeo escolheu

e natildeo conta com ele de forma expliacutecita

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O triunfo da democracia maioritaacuteria natildeo eacute um triunfo numeacuterico mas sim um triunfo da

gestatildeo das emoccedilotildees e dos egos do poder e da poliacutetica daqueles que o povo indicou para

fracassar e aqueles que indicou para o sucesso um certo sucesso de insucesso porque tudo eacute

aprazo e eacute o proacuteprio povo que em primeiro plano natildeo respeita e nunca respeitou o prazo

Exige as contas antes do fim do prazo que ele estipulou e natildeo aceita justificaccedilotildees que natildeo

satisfaccedilam a sua proacutepria demanda os outros se transformam para ele em indiviacuteduos e ele em

Estado que tem que fazer com que a lei seja cumprida Uma tentativa de saiacuteda para esta

realidade para esta situaccedilatildeo tem que passar necessariamente pela Educaccedilatildeo eacute por isso que

alguns pensadores da democracia como eacute o caso de Gianfraco Pasquino defendem que a luta

da democracia moderna eacute uma luta que consiste em satisfazer a educaccedilatildeo e eliminar a

pobreza Natildeo se pode falar de uma democracia triunfalista quando se tem medo de olhar para

a memoacuteria que apresenta um nuacutemero insustentaacutevel do analfabetismo e de pobreza O triunfo

da democracia moderna eacute um triunfo que passa pela lucidez e um sono tranquilo de barriga

cheia natildeo da elite mas daqueles que sem ser elite sentem que algueacutem cumpriu com um

direito deles o direito de natildeo passar fome e de natildeo morrer analfabeto E esta expectativa

corresponde com a democracia moderna em alguns momentos porque eacute uma expectativa que

soacute pode ser realizada pela virtude por um regime virtuoso Em algum momento acreditamos

ou se diz que a democracia eacute um regime que depende da virtude diz Strauss Um regime onde

todos ou a maioria dos homens satildeo saacutebios uma sociedade onde todos os adultos satildeo saacutebios e

virtuosos uma sociedade aristocraacutetica uma democracia aristocraacutetica No fundo um grande

mal-entendido Aparentemente eacute o que nos teraacute acontecido em alguns momentos quando

recebemos a democracia Olhamos para ela como o estado de realizaccedilatildeo perfeita de todos e

para todos Olhamos para ela quase como que uma espeacutecie de governo dos deuses Com

efeito Aristoacuteteles tinha razatildeo quando alertou que a natureza humana natildeo permite que

olhemos para nenhum governo como lugar de possiacutevel perfeiccedilatildeo como lugar seguro porque eacute

a gestatildeo humana que vai fazer com que um lugar um governo ou um Estado seja tido como

seguro ou natildeo A gestatildeo humana das coisas eacute volaacutetil

Quando Aristoacuteteles e outros teoacutericos pensaram no indiviacuteduo viram nas instituiccedilotildees condiccedilatildeo

indispensaacutevel para responder aos anseios deste mesmo indiviacuteduo eacute por isso que criaram

maneiras formas instacircncias e institutos para permitir uma salvaguarda real do indiviacuteduo A

cidade natildeo eacute um espaccedilo natural do indiviacuteduo diz Aristoacuteteles porque implica regras

completamente diferentes das regras individuais das regras da arbitrariedade das regras da

autonomia ilimitada e das regras da natildeo obediecircncia A cidade surge portanto para dar corpo a

todo este mosaico de regras de normas de paixatildeo mas com ordem e comando unificado num

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basanos num basileus que soacute eacute independente porque obedece agraves leis porque cumpre as leis

Este propoacutesito escapou-nos enquanto africanos que festejaram a chegada da democracia e

enquanto africanos que ensinam e dirigem o (s) paiacutes (es) Olhamos para democracia tal como

olhaacutevamos para a independecircncia sempre com total ausecircncia de prestaccedilatildeo de contas e sempre

com a expectativa irreal da igualdade Mas a realidade eacute um fenoacutemeno que se justifica por si

mesmo e eacute nesta perspectiva que a Ciecircncia Poliacutetica se debate diz Strauss entre tentar

encontrar a democracia na sua geacutenese e a democracia tal como a realidade se lhe apresenta A

nossa luta eacute perceber a democracia tal como a realidade a apresenta naturalmente fazendo

uma leitura histoacuterica daquilo que ela foi de como surgiu mas sobretudo ter em conta que ela

tem uma aplicaccedilatildeo e uma aplicabilidade epocal Cada eacutepoca cultiva a sua proacutepria democracia

diz a sua proacutepria democracia e interpreta a sua proacutepria democracia A sua epocalidade renova-

se diariamente constroacutei-se na sua proacutepria construccedilatildeo-autodestruiccedilatildeo em nome da proacutepria

democracia e da correspondecircncia epocal

Somos da opiniatildeo de que Aacutefrica deve criar um estilo proacuteprio para a sua democracia Deve

criar a sua proacutepria democracia que se enraiacuteza nas suas culturas que tem em conta a sua

proacutepria particularidade e multiplicidade que tem em conta o papel das autoridades

tradicionais que muitas vezes sentem-se completamente perdidas no acircmbito do

enquadramento democraacutetico deve ter em conta o papel fulcral da mulher de todas as esferas

em Aacutefrica

No nosso contexto sabemos que ldquoa mulher africana eacute a porta de todas as entradas e a saiacuteda

de nenhuma saiacuteda natildeo autorizada A mulher africana eacute alegria de um continente com as suas

vaacuterias naccedilotildees e a sua uacutenica raccedila ela eacute o fracasso da poliacutetica e do poder quando se faz machista

e eacute a vitoacuteria da poliacutetica e do poder quando se faz humana quando se torna ouvinte e se

capitaliza como espaccedilo de confianccedila e de reconhecimento de todos Natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel

sem estes atributos da mulher natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel sem uma poliacutetica que escuta a mulher e

que permita que a sua opiniatildeo natildeo seja apenas um mero disfarce do politicamente correcto e

do eticamente aceitaacutevel A Aacutefrica possiacutevel eacute a Aacutefrica madrugadora como a preocupaccedilatildeo da

mulher para com o seu lar os seus filhosas o seu marido e toda a famiacutelia alargada A Aacutefrica

possiacutevel eacute a Aacutefrica da ternura e do pragmatismo encarnado pela mulher atraveacutes dos diversos

cuidados que presta ao seu lar e agrave comunidade no seu dia-a-dia Natildeo poderemos amar

verdadeiramente Aacutefrica se continuarmos a desprezar as suas mulheres e suas crianccedilas se a

opiniatildeo da mulher continuar a ser uma espeacutecie de favor que a comunidade lhe faz porque natildeo

quer contar com ela em termos objectivos porque lhe pintou com preconceitos de

instabilidade de inseguranccedila e de fragilidade Porque olha para ela como o problema de todos

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os problemas o mal de todos os males e portanto aquela com quem natildeo se pode nem se deve

contar na primeira hora das tomadas das decisotildees Eacute a invenccedilatildeo dos preconceitos e da

prostituiccedilatildeo ideoloacutegica que depois acaba por ser direccionada agrave mulher atraveacutes dos

mecanismos do ldquopoder positivo natildeo legisladordquo o direito criado ou assumido a partir dos actos

de todos os dias

Se tivermos em conta que em Aacutefrica as mulheres satildeo mais de metade da populaccedilatildeo do

continente e a niacutevel global as mulheres de todo o mundo satildeo a metade de toda a populaccedilatildeo

mundial entatildeo poderemos com maior propriedade dar valor agrave figura da mulher natildeo soacute para o

nosso continente mas a niacutevel global Sabemos que de cada vez que a mulher ganha um

direito conquista um direito os seus ganhos e as suas conquistas cimentam a estabilidade

local e regional para a paz e para o desenvolvimento geopoliacutetico porque a mulher no seu

exerciacutecio de responsabilidade eacute muito mais persuasiva e honra com brilho o seu compromisso

Sabemos graccedilas agrave histoacuteria etnograacutefica e histoacuteria dos acontecimentos que muitas das

reivindicaccedilotildees das mulheres africanas antecederam uma boa parte das reivindicaccedilotildees

femininas no Ocidente moderno e contemporacircneo A descoberta do continente africano pelos

europeus tambeacutem conheceu a resistecircncia feminina ao lado dos homens africanos e isto

antecede a luta feminista e a luta a auto-afirmaccedilatildeo do geacutenero no Ocidente O fracasso da

Aacutefrica reside na ldquoahistorizaccedilatildeordquo do papel das suas mulheres reside na negaccedilatildeo da histoacuteria

positiva das suas mulheres reside no facto de encurtar as epopeias femininas das suas

heroiacutenas Paiacuteses como Ruanda demostram isso todos os dias Ruanda poacutes genociacutedio teve 56

das mulheres nos seus respectivos governos e todos noacutes temos notiacutecias e conhecimento da

solidez da economia e da poliacutetica de Ruanda

Temos consciecircncia de que apesar do brilho do bem-fazer e do saber-fazer da mulher africana

ainda assim haacute muitos obstaacuteculos que ela tem que superar entre eles o proacuteprio preconceito

machista Mas mesmo sabendo do preconceito machista cremos que o preconceito maior

com o qual ela se debate eacute o preconceito cultural e religioso para uma boa parte de Aacutefrica que

tem a ver com a tradiccedilatildeo negativa Estamos por exemplo a pensar na questatildeo da mutilaccedilatildeo

genital nos casamentos forccedilados e de conveniecircncia clacircnica o traacutefico das crianccedilas do sexo

feminino e o preconceito sobre a mulher que padece de viacuterus de VIH Estes males e

preconceitos satildeo mais prejudiciais agrave condiccedilatildeo feminina da mulher africana do que qualquer

mal que possa abater sobre ela Natildeo haacute um mal pior que o mal do preconceito e natildeo haacute cultura

mais enferma que a cultura preconceituosa

Aacutefrica soacute pode resgatar a sua cultura se lutar contra os seus preconceitos negativos elevando a

condiccedilatildeo da mulher e criando-lhe instrumentos e condiccedilotildees para lutar contra o mal que a

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cultura e tradiccedilatildeo criaram para ela e contra ela muitas vezes sem pedir a sua opiniatildeo O

horizonte possiacutevel para Aacutefrica eacute aquele de destruiccedilatildeo positiva dos preconceitos culturais

prejudiciais para as suas mulheres e crianccedilas Haacute que possibilitar que os dogmas culturais

intelectuais e religiosos sejam questionados para o bem da salvaguarda da proacutepria cultura da

proacutepria religiosidade e da proacutepria intelectualidade A poliacutetica e os poliacuteticos que tomarem isso

como uma iniciativa singular salvaratildeo todo o continente africano12

rdquo

A democracia que pensa a sua proacutepria realidade natildeo pode natildeo ter em conta estas necessidades

e particularidades Eacute por isso que o novo enfoque democraacutetico em Aacutefrica e nos paiacuteses

lusoacutefonos em particular deveria incluir na escolaridade preacute-universitaacuteria a disciplina da

EDUCACcedilAtildeO PARA A DEMOCRACIA assim como pensar a possibilidade de cadeiras

como ldquoLITERATURA E INSTRUCcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeOrdquo tambeacutem no preacute-

universitaacuterio Uma educaccedilatildeo para a democracia e uma literatura e instruccedilatildeo para a

democracia evitariam que caiacutessemos naquilo que Strauss chama ou designa por ldquofalta de

espiacuterito puacuteblico13

rdquo nas democracias modernas isto eacute a criaccedilatildeo de cidadatildeos que soacute se

interessam em ler as paacuteginas desportivas dos jornais e as paacuteginas das pequenas histoacuterias e

mais nada Pensar num ensino da democracia que possa ser cimentado com apoio das nossas

tradiccedilotildees orais ajudaria natildeo soacute a ter a qualidade viva dos nossos debates democraacuteticos como

tambeacutem a fundar uma democracia de raiacutezes africanas que bebem das outras culturas mas que

tambeacutem podem reivindicar a sua originalidade poliacutetica Os diversos tipos de ONDJANGO

que existem nas culturas africanas podem ser exploradas desde o ponto de vista democraacutetico

ondjango como espaccedilo de concertaccedilatildeo de ideias como espaccedilo de recepccedilatildeo do ensinamento

dos mais velhos se aproximaria ao conceito grego de aacutegora Uma educaccedilatildeo para a democracia

em Aacutefrica deveria ter em conta tambeacutem os nossos proveacuterbios adaacutegios e aforismos com uma

acentuada moralidade onde podemos encontrar a profundidade do ser africano do espiacuterito

africano e da sua consciecircncia moral e eacutetica Neles encontramos uma insondaacutevel e inesgotaacutevel

sabedoria praacutetica transversal a todo o continente O que em Angola se designa como

ondjango na Guineacute-Bissau aparece com o nome de Djembereacutem e em algumas circunstacircncias

com o nome de Bantaba de djumbai Ambos satildeo espaccedilos de confraternizaccedilatildeo de caraacutecter

educativo desde o ponto de vista da recepccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo da cultura e do pensamento

tradicional Quer a expressatildeo djembereacutem quer a expressatildeo bantaba designam um espaccedilo

circular de modo geral coberto de capim ou chapa de zinco podendo ser usados pelas pessoas

12

Cf Este trecho faz parte de um texto escrito a 31 de Julho de 2017 para um discurso ldquoencomendadordquo para o

dia internacional da mulher africana 13

Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Ed Katz Buenos Aires 2007 p 17

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de todas as idades mas em circunstacircncias diferentes Eacute um espaccedilo de reuniotildees e de encontro

de caraacutecter familiar da aldeia ou do grupo onde muitas vezes saem as decisotildees que dizem

respeito agrave comunidade eacute um espaccedilo legislativo da lei natildeo escrita da comunidade A palavra

djumbai significa divertir-se brincar daiacute que se bem o bantabaacute tem este caraacutecter seacuterio das

tomadas de decisotildees natildeo obstante esta seriedade eacute fundada na proximidade e na

familiaridade comunidade o que faz com que o poder natildeo seja algo estranho algo longiacutenquo e

tambeacutem faz com que o ensinamento e a transmissatildeo natildeo sejam vistos com a desmesura da

grandiosidade Contrariamente aos gregos e aos povos da Mesopotacircmia o lugar onde se

ensina e onde se toma as decisotildees eacute frequentado por todos pelas mulheres e crianccedilas pelos

doentes e saudaacuteveis

Conforme vimos o ondjango nos remete para a realidade da casa (NUNES

1991 159) Mas de que casa se trata Trata-se da casa de conversa de

reuniatildeo de hospedagem de partilha de bensrefeiccedilatildeoserviccedilos de

educaccedilatildeoiniciaccedilatildeo sociocultural de entretenimento eou de fazer justiccedila

Antes de tudo se trata de uma casa ponto de partida e ponto de confluecircncia

de uma casa com as condiccedilotildees de se poder sentar reunir junto de alguns

mais-velhos trata-se de um lugar de encontro14

Esta aproximaccedilatildeo de ondjango com a comunicaccedilatildeo e gestatildeo da casa permite-nos criar aqui

uma relaccedilatildeo comparativa com oikos nomoi xenofontino-aristoteacutelico Isto eacute podemos

reivindicar para o ondjango africano as mesmas capacidades os mesmos papeacuteis ou funccedilotildees

institucionais que tinha o oikos a partir da sua visatildeo da ldquofamiacutelia da propriedade da famiacutelia e

da casardquo Tal como vemos neste texto de Nunes citado por Martinho Kavaya este ondjango eacute

pluridisciplinar baseado em vaacuterias meacutetricas sociais o que de certa forma tambeacutem corresponde

com aquilo que podemos encontrar na concepccedilatildeo da palavra grega oikos A educaccedilatildeo do

ondjango do djembereacutem ou do djumbai satildeo portadoras do espaccedilo familiar da propriedade da

famiacutelia e da reflexatildeo sobre a casa sobre as coisas da casa e isso permite fazer com que o que

se discute neste espaccedilo seja efectivamente aquilo que importa agrave cidade aquilo que importaraacute agrave

cidade um dia E o que eacute pode importar profundamente agrave cidade Naturalmente as pessoas a

sua gente os homens e mulheres crianccedilas e velhos animais e plantas No fundo tudo que diz

respeito ao homem e ao seu envolvimento social e espiritual e eacute isso que o ondjango africano

14

Cf Martinho Kavaya Freire e o Ondjango podem dialogar Reflexotildees sobre o diaacutelogo de Freire com o

ondjango africano Angolano GT Educaccedilatildeo Popular n06 p 2 consultado em 30 de Outubro de 2017

httpwwwanpedorgbrsitesdefaultfilesgt06-2805-intpdf

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pretende passar atraveacutes dos seus diferentes status e fases do mais novo ao mais velho e do

mais velho ao mais novo

Toda a vida parte do ondjango e laacute encontra seu aacutepice Aiacute segundo a

pertinecircncia do vivenciado o ohango (conversadiaacutelogo) tomava vaacuterios

significados ldquoondjangordquo enquanto ldquoulongardquo (relato da vida desde o encontro

anterior) ldquoelongisordquo (ensinamento e aprendizado) ldquoekutardquo (partilha de bens

alimentares) ldquoekongelordquo (reuniatildeo de caraacuteter deliberativo)

ldquoekangaokusombaokusombisardquo (reuniatildeo para fazer justiccedila e sentenciar para

punir ou absolver o arguumlido) ldquookupapalardquo (encontro de entretenimento festas

e danccedilas culturais e tradicionais conforme a situaccedilatildeo vivida no momento

morte caccedila casamento iniciaccedilatildeo sociocultural e comunitaacuteria acolhimento

de uma visita etc) ldquoondjulukardquo (encontro para organizar um mutiratildeo

comunitaacuterio a favor de algum da comunidade em situaccedilatildeo de doenccedila

problema socioeconocircmico intervenccedilatildeo de ajuda na sua lavoura etc)

(KAVAYA 2006 p147) Afinal o ondjango eacute o habitat comunal e vital

onde se desenham as relaccedilotildees de conviacutevio geo-histoacuterico econocircmico

sociocultural poliacutetico etc em vista o bem comunitaacuterio15

Educar para a conservaccedilatildeo destes valores eacute tambeacutem educar para a democracia e eacute educar para

a manutenccedilatildeo da cultura e dos preconceitos positivos A democracia em todo o sentido e em

toda a sua histoacuteria sempre conteve um elemento educativo muito forte e quase indissociaacutevel

de si mesma eacute o diaacutelogo para gerar a cultura e a cultura para gerar diaacutelogo Natildeo pode haver

uma verdadeira democracia que dispense este binoacutemio O erro de pensadores como Platatildeo em

relaccedilatildeo agrave sua recusa agrave democracia reside no facto de desprezarem excessivamente qualquer

tipo de possibilidade para educaccedilatildeo viaacutevel do homem democraacutetico reside no facto de natildeo

acreditarem que a democracia pode educar um poloi e fazer dele um aristoacuteis agrave sua maneira

ou ainda este erro pode residir no facto de que estes pensadores natildeo tiveram em conta que o

poloi apenas pode querer ser simplesmente e eternamente um poloi mesmo sendo democrata

O erro consistiu em pensar que os que podem e devem governar a cidade deviam deixar de ser

das suas respectivas camadas e passar a ser aristocratas Eacute um erro que ainda vemos hoje

15

Cf Ibid p 3

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EDUCACcedilAtildeO CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO

UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS

ABEL JOSEacute DA SILVA a

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS b

adasilva00gmailcom

ireneinakulomoisesgmailcom

Resumo

A presente comunicaccedilatildeo faz uma caracterizaccedilatildeo do Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo

Universitaacuterio com ecircnfase nos seus desafios e perspectivas Analisa este processo a partir da

interpretaccedilatildeo sistecircmica que decorre dos pressupostos legais da Educaccedilatildeo e Ensino em Angola

Como meacutetodo usa a revisatildeo bibliograacutefica e a interpretaccedilatildeo e fundamenta a caracterizaccedilatildeo do

referido processo como variaacutevel baacutesica para a anaacutelise da qualidade do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola idealizado com base nos princiacutepios da legalidade da integridade da

laicidade da universalidade da democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da

intervenccedilatildeo do Estado da qualidade de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais

ciacutevicos e patrioacuteticos Tem como objectivo reflectir sobre os aspectos que o caracterizam e que

interferem na sua qualidade Apresenta a missatildeo do processo integrada ao Sistema em que

todos os agentes educativos participam da sua funcionalidade

Palavas-Chave Processo Ensino Aprendizagem Sistema

Abstract

This scientific paper characterizes the Non-University Teaching and Learning Process with an

emphasis on its challenges and perspectives It analyzes this process from the systemic

interpretation that arises from the legal presuppositions of Education and Teaching in Angola

As method uses the literature review and the interpretation and founded the characterization

of this process as basic variable for the analysis of the quality of the system of Education and

Teaching in Angola Idealized on the basis of the principles of legality integrity secularity

universality democracy gratuitousness obligation compulsion State intervention quality of

services education and promotion of moral civic and patriotic values It aims to reflect on the

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aspects that characterize and that interfere in its quality Has the mission of the process

integrated into the System in which all educational agents participate in its functionality

Key-words Process Teaching Learning System

Introduccedilatildeo

O Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo Universitaacuterio (PEANU) eacute uma importante variaacutevel

para a anaacutelise do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino em Angola (SEEA) sistema perspectivado

com base nos ldquoprinciacutepios da legalidade da integridade da laicidade da universalidade da

democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da intervenccedilatildeo do Estado da qualidade

de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticosrdquo (Lei no 1716

art 5ordm)1

A caracterizaccedilatildeo do PEANU pressupotildee assumir um posicionamento holiacutestico que analise o

mesmo como um processo natildeo isolado do todo porque o SEEA eacute estruturalmente unitaacuterio e a

sua realizaccedilatildeo na situaccedilatildeo especiacutefica da anaacutelise tem influecircncia no funcionamento da totalidade

(princiacutepio da integridade art 7ordm e art 17ordm)

Os desafios e perspectivas como outra dimensatildeo importante derivada do processo de

parametrizaccedilatildeo do assunto ndash objecto de anaacutelise justificam-se a partir da consideraccedilatildeo dos

princiacutepios da universalidade democraticidade gratuitidade obrigatoriedade intervenccedilatildeo do

Estado qualidade de serviccedilos e da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais pois que se a

Lei tipifica o que idealmente eacute o correcto a necessidade de confrontar com a realidade agrave luz

da pesquisa bibliograacutefica eacute inadiaacutevel para o alinhamento do agir educativo com os princiacutepios

legais

A partir destes princiacutepios infere-se que a Educaccedilatildeo e o Ensino satildeo natildeo apenas um direito mas

tambeacutem um dever que se deve realizar com a qualidade requerida para que a construccedilatildeo de

uma nova sociedade assente na democracia esclarecida seja possiacutevel Para isso agrave Escola

atraveacutes do Processo de Ensino e Aprendizagem (PEA) em todos os niacuteveis de ensino e

especialmente nos natildeo universitaacuterios impende a tarefa de formar personalidades capazes de

influenciar com o seu saber e suas qualidades o curso da histoacuteria concreta do seu contexto

Deste modo o Processo tem de ser significativo2 Para que o processo seja significativo eacute

1 Lei de Bases do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino que estabelece os princiacutepios e bases do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola de 7 de Outubro de 2016 Esta Lei revoga a Lei 1301 de 31 de Dezembro de 2001 2 O PEANU eacute significativo quando assegure o cumprimento da sua finalidade tal como se institui no art 25ordm da

Lei 1716 referente aos Objectivos Gerais do Subsistema do Ensino Geral Desta significatividade resulta em

consequecircncia a eficaacutecia do Sistema

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necessaacuterio caracterizaacute-lo com a finalidade de que se conheccedilam natildeo soacute os seus pontos fortes

mas tambeacutem os fracos aspecto que se aborda seguidamente

Por isso o objectivo deste trabalho consiste em reflectir sobre os aspectos do SEEA que o

caracterizam e que interferem na qualidade do PEANU

1 Estrutura do Seea Ponto de partida para a caracterizaccedilatildeo do Peanu

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento ldquoad intrardquo da

realidade educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento (Cfr

Silva 2016) Por isso a anaacutelise estrutural do SEEA baseada nas proposiccedilotildees da Lei 1716 e

fundamentada pela revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura criacutetico-contextual eacute uma

tarefa basilar para esta caracterizaccedilatildeo

A caracterizaccedilatildeo do Sistema Educativo numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional de

acordo com Ngaba ( 2012) e Liberato (2014) permite concluir que existem avanccedilos e

retrocessos no processo educativo angolano que em termos de poliacutetica educativa

condicionaram a sua evoluccedilatildeo positiva bem como a sua afirmaccedilatildeo no cenaacuterio internacional e

ateacute mesmo regional3

A partir desta ideia geral sobre o estado do SEEA que de modo especial se realiza por meio

do PEANU eacute possiacutevel compreender que estruturalmente estaacute bem concebido se se analisam

todos os factores intencionais de entrada e saiacuteda de um niacutevel de ensino para outro Entretanto

o aspecto funcional real fica aqueacutem do desejado se se avaliam com visatildeo criacutetico-acadeacutemica

os resultados do processo e os discursos oficiais que asseguram a Poliacutetica do Sistema

Educativo

Contrariamente agrave 1ordf Repuacuteblica (Cfr Ngaba 2012) que natildeo se fez reger por um documento

base tanto a 2ordf como a 3ordf Repuacuteblicas de Angola tecircm como fundamento a Lei de Bases do

SEEA que estabelece a criaccedilatildeo de condiccedilotildees mais adequadas para a aplicaccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas e dos programas nacionais com o objectivo de continuar a assegurar o

3 Este momento criacutetico do SEEA eacute tambeacutem hoje reconhecido oficialmente pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo do Paiacutes

na voz da sua titular no encerramento da Semana Nacional sobre Educaccedilatildeo em Angola realizada em Luanda Por

isso para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo actual do Sistema Educativo e do PEANU especificamente eacute criteacuterio dos

autores deste trabalho que os problemas fracturantes que colocam em causa a qualidade do Sistema natildeo podem

ser analisados unilateralmente sob pena de se incorrer num reducionismo indevido pois estatildeo em causa

muacuteltiplas variaacuteveis que chocam com diversos princiacutepios e disposiccedilotildees legais em que assenta o Sistema

infraestruturas precaacuterias insuficiecircncia dos materiais e meios didaacutecticos factos que se agravam ainda mais com a

falta de preparaccedilatildeo adequada dos professores de tal modo que possam responder aos desafios do Sistema

idealizados pela Reforma Educativa Essa visatildeo geral estrutural e conjuntural pode reflectir-se e explicar-se

melhor por meio do seguinte exemplo em relaccedilatildeo agrave indisciplina na aula espaccedilo privilegiado em que se

desenvolve o PEA Estrela (1983) citada por Lopes (2005) identificou um conjunto de variaacuteveis que vatildeo desde o

proacuteprio aluno passando pelo professor pela instituiccedilatildeo escolar ateacute agrave proacutepria sociedade Estes satildeo dados

suficientes para pensar na qualidade educativa como multideterminada

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desenvolvimento humano com base numa educaccedilatildeo e aprendizagem ao longo da vida para

todos os indiviacuteduos que permita assegurar o aumento dos niacuteveis de qualidade de ensino

Considerando a anaacutelise da estrutura do Sistema estabelecido pela Lei 1716 conclui-se que as

principais alteraccedilotildees agrave antiga Lei relacionam-se entre outras com a gratuitidade e

obrigatoriedade do ensino que passa a compreender as classes da Iniciaccedilatildeo do Ensino

Primaacuterio e do Primeiro Ciclo do Ensino Secundaacuterio bem como a nomenclatura das

instituiccedilotildees

Nesta vertente assume-se que o Subsistema de Ensino Geral eacute o fundamento do SEEA (Lei

no 1716 art 24ordm) que visa de acordo com o artigo em referecircncia assegurar uma formaccedilatildeo

integral harmoniosa e soacutelida necessaacuteria para uma boa inserccedilatildeo no mercado de trabalho e na

sociedade bem como para o acesso aos niacuteveis de ensino subsequentes

Como se pode apreciar existe uma relaccedilatildeo de determinaccedilatildeo entre o processo de ensino e

aprendizagem que se realiza no Subsistema do Ensino Geral e o trabalho bem como com a

Sociedade e com os niacuteveis de ensino posteriores o que significa o reconhecimento da

importacircncia deste niacutevel que deve permitir a aquisiccedilatildeo de ferramentas fundamentais para a

compreensatildeo da vida e do mundo Entre os seus objectivos de acordo com Ngaba (2012 p

158) constam os do desenvolvimento ldquodos conhecimentos e as capacidades que favoreccedilam

uma auto-formaccedilatildeo educar para a cidadaniardquo A educaccedilatildeo vista a partir da oacuteptica deste niacutevel

de ensino eacute um factor de integraccedilatildeo social

Por isso o questionamento da qualidade do PEANU eacute no fundo o questionamento da

qualidade do Sistema em si uma vez que estudando Poliacuteticas Educativas em Angola (1975-

2005) o autor antes referenciado e alinhado com Liberato afirma

ldquoEm termos gerais fica a ideia de estarmos perante um processo evolutivo que em periacuteodos

diferentes se foi deparando com os mesmos problemas e optando pelas mesmas soluccedilotildeesrdquo

No entanto de acordo com o mesmo autor ldquoquase quatro deacutecadas depois das primeiras

mudanccedilas ldquosignificativasrdquo no sector da educaccedilatildeo deacutecadas essas caraterizadas por sucessivos

estudos e mudanccedilas o paiacutes (hellip) carece de soluccedilotildees radicais que possam corrigir de uma vez

por todas os factores relacionados com o baixo coeficiente do sistema angolanordquo (Ngaba

2012 p 173)

De acordo com a ideia anterior a questatildeo da qualidade de ensino em Angola natildeo deve ser

vista como uma questatildeo da responsabilidade exclusiva de um ou de outro niacutevel de ensino

mas como uma questatildeo transversal do SEEA considerando entre outros princiacutepios gerais o

da integralidade estatuiacutedo no artigo 7o da Lei 1716 Por isso a anaacutelise desta questatildeo implica

um posicionamento multifactorial

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Com base nessa posiccedilatildeo o Sistema possui potencialidades capazes de proporcionar um PEA

motivador que permita a construccedilatildeo das aprendizagens dos alunos e que transforme o saber

em saber fazer e em saber ser na base de uma visatildeo axioloacutegica pois atendendo agrave

complexidade da acccedilatildeo educativa a UNESCO no Relatoacuterio DELORS (2003 p 11) sustenta

que para concretizar a sua meta a educaccedilatildeo deve organizar-se em quatro tipos fundamentais

de aprendizagens que ao longo da vida do indiviacuteduo seratildeo os pilares do conhecimento

Aprender a conhecer isto eacute adquirir os instrumentos para a compeensatildeo

aprender a fazer de modo a ser capaz de agir criativamente no proacuteprio

ambiente aprender a viver juntos de modo a participar e a colaborar com os

outros em todas as actividades humanas aprender a ser isto eacute um progresso

essencial que deriva dos trecircs precedentes

Para tornar este sonho real eacute necessaacuterio que o processo seja significativo e em si mesmo

motivador formando os professores de acordo com as necessidades da realidade objectiva

Trata-se de prover os recursos necessaacuterios a um processo que desafie os limites da situaccedilatildeo

actual pois se o professor eacute indispensaacutevel natildeo eacute menos verdade que os recursos educativos

tambeacutem o sejam (Lei 1716 art 97ordm)4

Tendo em conta os pressupostos legais da Repuacuteblica de Angola (Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e

Lei 1716) e os pilares da educaccedilatildeo propostos pela UNESCO considera-se que o ideal

educativo estaacute devidamente delineado Contudo eacute necessaacuterio que de acordo com Nanni

(2005 p81) citado por Fernando (2010 p 17) no ldquoacircmbito educativo o fim uacuteltimo ndash o

horizonte para o qual deve tender toda a acccedilatildeo educativa ndash natildeo deve fazer com que os fins

intermeacutedios ndash que o tornam possiacutevel e factiacutevel ndash sejam esquecidosrdquo Daiacute a relaccedilatildeo entre fins

meios e procedimentos educativos

A distinccedilatildeo entre fins uacuteltimos da educaccedilatildeo meios e procedimentos educativos eacute fundamental

porque de acordo com Fernando (2010 p 18)

Impele agrave procura e a determinar os recursos o tempo as modalidades e as estrateacutegias para a

realizaccedilatildeo do objectivo educativo que se pretende e permite de certo modo natildeo esquecer que

se natildeo se fizer a diferenccedila entre ideal e real entre fim uacuteltimo e limite da acccedilatildeo humana entre o

horizonte e o limite concreto das coisas e da existecircncia entre o itineraacuterio projectado e a

complexidade do percurso e da vida das pessoas corre-se o risco de se ser desumano e de cair

4 No artigo 97ordm a Lei 1716 define recursos educativos como os meios que contribuem para o desenvolvimento

do SEEA tais como a) Guias e programas pedagoacutegicos b) Manuais escolares C) Meios teacutecnicos e

tecnoloacutegicos de ensino d) Bibliotecas e) Equipamentos f) Laboratoacuterios g) Oficinas h) Instalaccedilotildees e

material desportivo e cultural i) Campos de ensaios treinamento e experimentaccedilatildeo j) Auditoacuterios e salas

especializadas

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no perfeccionismo ou de se desencorajar cansar e por fim de se sentir insatisfeito com aquilo

que se faz

Em consequecircncia nos nossos dias a questatildeo do discurso pedagoacutegico sobre a ldquofinalidaderdquo da

educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU natildeo eacute faacutecil porque a educaccedilatildeo eacute caracterizada hoje por

certa crise pela necessidade de inovaccedilatildeo e pelo pluralismo de ideias de valor e de cultura do

momento histoacuterico actual (Cfr Fernando 2010 Ngaba 2012 Liberato 2014)

Na continuidade da anaacutelise sobre a finalidade da educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU os

autores concordam com Fernando (2010 p 19) ao distinguir dois tipos de tendecircncias

educativas

1 A tendecircncia redutora que ldquoprocura ver a aprendizagem em funccedilatildeo das necessidades da

economia que com as suas solicitaccedilotildees convida a rever os conteuacutedos do ensino e sua

organizaccedilatildeo Esta eacute a linha ou corrente mais seguida nos nossos diasrdquo

2 A tendecircncia aberta que ldquoprocura integrar no conceito de aprendizagem outros elementos

significativos mais ligados agraves dimensotildees psicoloacutegicas sociais e culturais das experiecircncias do

indiviacuteduo enquanto protagonista da aprendizagemrdquo

Para os autores embora a primeira tendecircncia seja a mais seguida actualmente a segunda

parece melhor corresponder agrave dignidade do homem responsaacutevel porque de acordo com a Lei

1716 (art 15ordm) o SEEA deve promover natildeo soacute o cultivo da intelectualidade mas tambeacutem

dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticos

Assim a primeira reduz a finalidade da escola agrave instruccedilatildeo e a segunda supera esta visatildeo

sustentando que a finalidade primaacuteria da actividade pedagoacutegica escolar eacute a de educar sem

contudo deixar de parte a sua funccedilatildeo instrutiva Neste sentido a finalidade da educaccedilatildeo como

instituiccedilatildeo social deve coincidir com a finalidade da escola enquanto instituiccedilatildeo formal e

socialmente mandatada para educar isto eacute para possibilitar o desenvolvimento permanente da

qualidade da pessoa humana com dignidade e integridade

2 Desafios e Perspectivas da Educaccedilatildeo

Nas paacuteginas anteriores ficou clara a ideia de que os resultados qualitativos do SEEA

fundamentalmente relacionados com o PEANU satildeo e devem ser processo-produto de um

funcionamento integral do Sistema Por isso o maior desafio da educaccedilatildeo em Angola hoje eacute o

de vencer a contradiccedilatildeo existente em que satildeo atribuiacutedas culpas isoladas ou ao aluno que natildeo

estuda ou ao professor que natildeo estaacute preparado e natildeo motiva ou agraves mateacuterias que natildeo satildeo

atractivas e adaptadas agrave realidade profissional e do contexto de vida dos alunos ou aos pais

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que natildeo acompanham suficientemente os filhos ou ainda ao proacuteprio Sistema Educativo de

maneira geral

De acordo com a ideia anterior e tendo em conta a revisatildeo bibliograacutefica realizada5 os autores

consideram que os desafios para a melhoria das falhas devem ser enfrentados de forma

sistecircmica porque cada uma das variaacuteveis antes mencionadas eacute importante para o

funcionamento normal ou natildeo do PEA natildeo apenas no niacutevel referenciado mas em todos os

niacuteveis em atenccedilatildeo aos princiacutepios de integridade do Sistema e da obrigatoriedade e qualidade

dos serviccedilos educativos Isto pressupotildee uma poliacutetica educativa ajustada agrave realidade que

incentive a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores e garanta os meios materiais indispensaacuteveis

ao processo

Trata-se de construir uma verdadeira comunidade educativa em que todos os agentes

educativos como a famiacutelia a escola e a comunidade na sua dimensatildeo mais alargada

participem Por isso eacute necessaacuterio repensar a educaccedilatildeo para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de

um paiacutes novo como afirmara Joseacute Eduardo dos Santos (2008) nos seguintes termos ldquoum

novo paiacutes estaacute a nascer e com ele haacute-de florescer tambeacutem um cidadatildeo novordquo Quando

Considerando a perspectiva temporal como resposta os autores acreditam que isso se

realizaraacute agrave medida que a educaccedilatildeo se assuma antes de tudo como uma condiccedilatildeo de verdadeira

cidadania e natildeo de mera transmissatildeo de receitas importadas do exterior e enxertadas no nosso

contexto quando todos os agentes educativos tiverem presente que o educar eacute na verdade

um verbo ldquoque exige uma acccedilatildeo com atitude transformadorardquo (Pereira e Silva 2008 p 24)

Eacute neste sentido que Joseacute Eduardo dos Santos na sua alocuccedilatildeo agrave Naccedilatildeo referia-se ao papel dos

pais dos professores e de todos os actores sociais como verdadeiros agentes educativos da

juventude Trata-se do desafio de construir uma verdadeira sociedade educativa

Na construccedilatildeo dessa sociedade educativa a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores para o SEEA

e sobretudo para o PEANU deve ser entendida como uma consequecircncia de uma formaccedilatildeo

inicial que seja adequada agraves necessidades reais da sociedade para a qual se educa Isso implica

que os professores devem ser formados com base nos desafios da nova Repuacuteblica (Ngaba

2012)

5 Em Ofiacuteco de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Perrenoud (1995) denuncia uma dupla evidecircncia por um

lado haacute alunos que natildeo aprendem e por outro professores que natildeo formam porque ambos se contentam em

exercer manualmente os oacutecios do ofiacutecio enquanto a cabeccedila estaacute ausente Na mesma linha Grilo (2002) entende

que na ldquoNa sociedade do conhecimento hoje aprende-se e ensina-se em circunstacircncias e contextos muito

diversos embora por vezes se ensine mas natildeo se aprenda como ocorre por exemplo em algumas das escolas

Mas partindo do princiacutepio de que quando se ensina haacute sempre algueacutem que aprende o ensino (hellip) eacute um

mecanismo muito importante e uma peccedila fundamental desta sociedaderdquo (p 121)

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A formaccedilatildeo inicial que serve de base para a formaccedilatildeo contiacutenua de professores de acordo com

a Lei 1716 eacute assegurada pelo Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores que estaacute estruturado

em Ensino Secundaacuterio Pedagoacutegico e Ensino Superior Pedagoacutegico O primeiro constitui o

ldquoprocesso atraveacutes do qual os indiviacuteduos adquirem e desenvolvem conhecimentos haacutebitos

habilidades capacidades e atitudes que os capacite para o exerciacutecio da profissatildeo docente na

Educaccedilatildeo Preacute-escolar no Ensino Primaacuterio e no I Ciclo do Ensino Secundaacuterio Regular de

adultos e na Educaccedilatildeo Especial e mediante criteacuterios o acesso ao Ensino Superior

Pedagoacutegicordquo (Art 46)

Por outro lado e de acordo com a mesma Lei um dos fundamentos do SEEA o ldquoEnsino

Superior Pedagoacutegico eacute um conjunto de processos desenvolvidos em Instituiccedilotildees de Ensino

Superior vocacionados agrave formaccedilatildeo de professores e demais agentes de educaccedilatildeo habilitando-

os para o exerciacutecio da actividade docente e de apoio agrave docecircncia em todos os niacuteveis e

subsistemas de ensinordquo (Art 49)

Em correspondecircncia com os estes dois artigos da Lei 1716 compreende-se a relaccedilatildeo

intriacutenseca entre o Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores e os diferentes niacuteveis de ensino do

SEEA

A educaccedilatildeo em Angola vista na oacuteptica dos seus fundamentos legais constitui-se assim numa

ldquoforma de poder porque a educabilidade eacute um poder-ser humano mediado pela educaccedilatildeo

como poder sobre o ser humano que decide sobre o dever-ser humano Eacute um poder ser

porque o ser humano eacute um ser biologicamente aberto agrave criaccedilatildeo de uma segunda naturezardquo

(Monteiro 2004 p 12)

De acordo com o autor referenciado com antecedecircncia todas as formas de poder do ser

humano sobre o outro suscitam a questatildeo da sua legitimidade Esta questatildeo eacute no fundo a do

fundamento e controlo do poder que o professor exerce atraveacutes dos conteuacutedos e formas da

comunicaccedilatildeo que realiza ante o aluno Assim sendo

A ldquolegitimidade pedagoacutegica eacute de natureza social porque ser profissional da

educaccedilatildeo implica um mandato da sociedade atraveacutes do Estado que regula o

exerciacutecio da funccedilatildeo Eacute tambeacutem de natureza individual na medida em que a

competecircncia pessoal tem um efeito de auto-legitimaccedilatildeo junto dos educandos

Mas tem de ser problematizada com mais radicalidade porque a educaccedilatildeo eacute

afinal uma forma de poder do homem sobre o homemrdquo (Monteiro 2004 p

12)

Daiacute que se a educaccedilatildeo eacute uma forma de poder eacute necessaacuterio que se exerccedila tal poder na justa

medida tendo como princiacutepio e limite a Lei que estabelece entre outros aspectos importantes

natildeo soacute a formaccedilatildeo inicial mas tambeacutem a contiacutenua dos professores para que respondam agraves

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necessidades da sociedade angolana

Portanto a anaacutelise da qualidade da educaccedilatildeo como um fenoacutemeno multideterminado que

possibilita caracterizar o Sistema justifica que a formaccedilatildeo contiacutenua de professores variaacutevel

importante para esta caracterizaccedilatildeo natildeo deve ser vista como um simples adereccedilo mas sim

como parte importante de uma cultura institucionalmente legal onde a articulaccedilatildeo entre as

instituiccedilotildees de Ensino Superior (pedagoacutegicas ou natildeo) e as do ensino geral seja

dialecticamente um facto

CONCLUSAtildeO

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento da realidade

educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento que tem como

fundamento a interpretaccedilatildeo da Lei e a revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura

criacutetico-contextual

A revisatildeo bibliograacutefica assente numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional permite

concluir que existem avanccedilos e retrocessos no processo educativo angolano que em termos

de poliacutetica educativa condicionaram sua evoluccedilatildeo positiva bem como sua afirmaccedilatildeo no

cenaacuterio internacional e ateacute mesmo regional

Esta constataccedilatildeo impotildee desafios a vencer na perspectiva da construccedilatildeo de uma sociedade

educativa em que cada agente participe reconhecendo a necessidade contiacutenua da formaccedilatildeo

dos professores para o PEANU como fundamento do SEEA

Referecircncias Bibliograacuteficas

Delors J etal (2006) EDUCACcedilAtildeO Um tesouro a descobrir Relatoacuterio para a UNESCO da Comissatildeo

Internacional sobre Educaccedilatildeo para o seacuteculo XXI 10ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez Editora

Eliana Alves Leite Pereira e Eloi Lopes da Silva (2008) Educaccedilatildeo Eacutetica e Cidadania A contribuiccedilatildeo da actual

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FULLAT O (2000) Filosofia da Educaccedilatildeo Madrid Editorial Sintesis Educacioacuten

FREIRE P (sd) Educaccedilatildeo como Praacutetica da Liberdade 5ordf ediccedilatildeo Lisboa Dinalivro Lda

GOTZENS C (2003) A Disciplina Escolar Prevenccedilatildeo e intervenccedilatildeo nos problemas de comportamento 2ordf

ediccedilatildeo Trad de Faacutetima Murad Satildeo Paulo Artmedd Editora

Grilo M (2002) Desafios da Educaccedilatildeo - Ideiasb para uma poliacutetica educativa no seacuteculo XXI Lisboa Oficina

do Livro

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Lopes C d (2005) Caracterizar a Acccedilatildeo Educativa para ensinar a partir do Aluno SC Ediccedilotildees Cosmos

Morin E (2002) Os Sete Saberes Para a Educaccedilatildeo do Futuro Trad de Ana Paula de Viveiros Lisboa

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Mbanza-Kongo SEDIECA

Ngula A (2003) A escolarizaccedilatildeo em Aacutefrica Das grandes ilusotildees agrave pedagogia do projecto Roma Edizioni

Vivere i

Perrenoud P (1995) Ofiacutecio de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Porto Porto Editora

Perrenoud P (2002) A Escola e a aprendizagem da democracia Porto Asa

Silva A J (2016) La superacioacuten psicopedagoacutegica de los docentes de unversidad `Joseacute Eduardo dos Santosacute de

la Repuacuteblica de Angola Tesis doctoral La Habana Universidade de Ciencias Pedagoacutegicas `Enrique Joseacute

Varonaacute

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1 Os artigos podem ser escritos em portuguecircs inglecircs espanhol e francecircs

2 Tecircm que ser ineacuteditos e natildeo mais de 20 paacuteginas notas de peacute de paacuteginas incluiacutedas

3 As resenhas submetidas natildeo devem superar 6 paacuteginas

4 O envio de artigo deveraacute ser acompanhado por um abstract no idioma original do artigo e

em inglecircs e no miacutenimo com trecircs palavras-chave

5 O formato das letras eacute Times New Roman 12 justificado e com 15 de espaccedilo

6 Os textos devem ser enviados em formato Word Perfect ou em Word para o PC

7 Os artigos enviados devem ser assinados pelos autores que tambeacutem deveratildeo indicar os

seus graus acadeacutemicos e filiaccedilatildeo institucional

8 A redacccedilatildeo da revista reserva o direito de publicar ou natildeo

9 Haveraacute sempre um comiteacute externo para avaliaccedilatildeo dos artigos

10 Os tiacutetulos dos artigos devem estar na liacutengua original e em caso de necessidade em inglecircs

11 As referecircncias bibliograacuteficas e notas de peacute de paacuteginas devem ser numeradas As

referecircncias bibliograacuteficas devem ser completas na primeira cita utilizando a norma

claacutessica para as Ciecircncias Sociais e Humanas e Vancouver ou AMA para as Ciecircncias de

Sauacutede

12 Aceitam-se os projectos de investigaccedilatildeo que natildeo superam 8 paacuteginas

LIVROS ELECTROacuteNICOS

As citas devem comeccedilar com o primeiro e uacuteltimo nome do (s) autor (es) tiacutetulo do livro

electroacutenico (em itaacutelico) editor data de publicaccedilatildeo nuacutemero da paacutegina citada Endereccedilo Web

(Disponiacutevel a data da consulta)

PROCESSO DE AVALIACcedilAtildeO E DE SELECcedilAtildeO DOS ARTIGOS

1 Os artigos devem ser enviados para o e-mail da revista ou do Director nos prazos

indicados

2 A Direcccedilatildeo acusaraacute a recepccedilatildeo do trabalho sem necessariamente manter contacto com o

autor antes da decisatildeo final de publicar ou natildeo

3 Os autores dos artigos satildeo responsaacuteveis pela sua revisatildeo ortograacutefica e gramatical

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Page 8: Página 1 de 74 - Início | ISPSN · 2019. 5. 3. · Página 5 de 74 que traz um começo, que “cria um começo” e que reinventa um começo a partir da dor e da cura. A cidade

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FILOSOFIA O CONCEITO DE PESSOA E A METAFIacuteSICA DA UNIDADE AFRICANA

FLAVIANO LOURENCcedilO KAMBALU a

Resumo

A vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante A Aacutefrica eacute um complexo e heterogeacuteneo mosaico

de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees cujo fundamento metafiacutesico de origem

representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica O fundamento metafiacutesico de origem

eacute importante porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do

que o que os separa Nisto o diaacutelogo eacute necessaacuterio para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente

se vatildeo intensificando na actualidade O diaacutelogo conducente agrave unidade natildeo obriga mas se

move no respeito da liberdade da pessoa e da soberania de cada Estado Enfim trata-se de um

diaacutelogo sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Palavras-chave Pessoa humana Aacutefrica Fundamento Metafiacutesico Fundamento Metafiacutesico e

Diaacutelogo

Abstract

The vocation to unity is a natural feature of the human because it is essentially free relational

and dialoguing Africa is a complex and heterogeneous mosaic of peoples languages races

cultures ethnic groups and religions whose metaphysical foundation of origin represents an

indivisible unity in historical reality The metaphysical basis of origin is important because in

all fields everything that unites human beings is stronger than what divides them In this

dialogue is necessary to overcome the historical prejudices and disagreements the divisions

intolerances and fundamentalisms that unfortunately are intensifying at the present time The

a Doutor em Filosofia Religioso Saletino e Decano da Faculdade de Direito da Universidade Katiavala Bwila

Benguela ndash Angola

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dialog leading to the unit doesnrsquot oblige but moves in respect of freedom of the person and

of the sovereignty of each State At last it is a sincere dialog and fruitful that acknowledging

all the legitimate diversity promotes respect harmony and collaboration

Keywords The Human Person Africa Metaphysical foundation Metaphysical foundation

and Dialogue

Premissa

No actual contexto de crescente e incisiva globalizaccedilatildeo eacute difiacutecil subtrair-se ao dever ou agrave

necessidade de prestar conta de si mesmos Neste clima cultural tambeacutem a unidade africana eacute

chamada a justificar-se ou seja a justificar o seu direito de continuar a ser Agrave primeira vista

poderia parecer que a sua justificaccedilatildeo natildeo seja hoje um problema visto que eacute cada vez mais

difuso o uso do termo unidade e da expressatildeo uniatildeo africana Mas urge reflectir nesta unidade

agrave luz da filosofia para lhe compreender o seu verdadeiro significado

Aprendemos com Nicola Abbagnano que laquonada do que eacute humano eacute estranho agrave filosofia [hellip]

aliaacutes esta eacute o mesmo homem que se interroga a si mesmo e procura as razotildees e o fundamento

do seu serraquo1 Esta eacute a filosofia na sua adesatildeo agrave existecircncia humana e ao mesmo tempo na sua

amplitude em relaccedilatildeo aos problemas do homem Natildeo de um homem que vive no Uacuterano mas

do homem concreto que na sua vida experimenta acircnsias e insuficiecircncias alegrias e

esperanccedilas tristezas e anguacutestias2 Portanto todas as coisas satildeo susceptiacuteveis de reflexatildeo

filosoacutefica inclusive a proacutepria unidade africana exige filosofar

De facto filosofar eacute examinar a realidade e isso de um modo ou de outro todos fazemos

constantemente Ao se tentar resolver os problemas globais sociais ou pessoais eacute impossiacutevel

se abster da racionalidade Entretanto haacute uma gama de situaccedilotildees onde a razatildeo natildeo pode

avanccedilar por falta ou excesso de dados o que impossibilita decisotildees objectivas Entra em cena

entatildeo a parte subjectiva humana mais especificamente a Intuiccedilatildeo como meio de direccionar

nosso foco de entendimento e apontar caminhos a serem trilhados pela racionalidade

Soacute que actualmente a filosofia passa por uma perda de identidade Existe uma verdadeira

inflaccedilatildeo do termo filosofia e como toda a inflaccedilatildeo eacute sintoma de queda de valores de crise

difusa e profunda Hoje o termo filosofia indica muitas vezes coisas difiacuteceis proacuteprias do

hiperuracircnio e natildeo o homem que natildeo aceitando passivamente as informaccedilotildees fornecidas pela

experiecircncia imediata desenvolve uma postura de questionamento proacuteprio sobre a realidade

interroga-se a si mesmo e metodoloacutegica e ordenadamente procura as razotildees e o fundamento

1 N ABBAGNANO Storia della filosofia I UTET Torino 1963 p XVII

2 Cf CONCIacuteLIO VATICANO II Gaudium et Spes n 1

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do seu ser buscando como faziam os gregos um instrumento fundamental e o uacutenico

racionalmente possiacutevel para a soluccedilatildeo dos problemas da vida

A confusatildeo com relaccedilatildeo agrave filosofia e a desinformaccedilatildeo geral que permeia mesmo o meio

acadeacutemico chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimeacutericas no sentido de se

eliminar a Filosofia Entretanto ciecircncia alguma pode se ocupar da macro realidade O

empirismo natildeo pode ser aplicado agrave civilizaccedilatildeo humana agrave mente ao total Quem estabelece a

comunicaccedilatildeo entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia Cremos ser

este o quadro em que se deve inserir a reflexatildeo sobre a unidade africana que aqui fazemos

partindo da metafiacutesica do termo pessoa

Tal reflexatildeo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vatildeo

desafiando a unidade do continente africano Haacute uma verdade hoje admitida por quase todos

e ateacute pelos mais preconceituosos arqueoacutelogos de que a humanidade e a civilizaccedilatildeo

desenvolveram-se na noite dos tempos no berccedilo deste continente gigantesco chamado Aacutefrica3

Temos consciecircncia de que a Aacutefrica eacute um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas Embora esta imensidatildeo nos aconselhe a natildeo fazer

generalizaccedilotildees na avaliaccedilatildeo dos problemas natildeo nos impede de buscar e propor soluccedilotildees aos

problemas inerentes agrave falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito

de pessoa

1 Breve excursus histoacuterico-filosoacutefico do conceito de pessoa

11 A densidade semacircntico-etimoloacutegica do termo pessoa

A densidade semacircntica do termo pessoa formou-se no tempo graccedilas ao contributo cultural de

muitos filotildees de reflexatildeo O conceito de pessoa tem pois um percurso rico quanto complexo

De recordar que na antiguidade greco-romana natildeo se encontra bem claro o conceito de pessoa

Todavia seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias

Etimologicamente e segundo algumas pesquisas atentas os primeiros indiacutecios do termo

pessoa encontram-se no acircmbito da cultura etrusca De facto o termo phersu utilizado nos

ritos em honra de Phersepona e que significaria maacutescara4 passou a significar o indiviacuteduo

3 Cf Carlos SERRANO ndash Mauriacutecio WALDMAN Memoacuteria drsquoAacutefrica A temaacutetica africana em sala de aula

Cortez Editora Satildeo Paulo 20082 p 75 Cf Tambeacutem Luigi TRANFO Africa La transizione Tra sfruttamento e

indifferenza EMI Bologna 1995 p 269 Pedro F MIGUEL Aacutefrica Uma visatildeo global Viverein Roma 2013

p 11 4 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique in

laquoRevue des sciences religieusesraquo XXII (1948) 277-299 A MILANO Persona in teologia Dehoniane Napoli

1984 pp 16-71

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mascarado a personagem que o actor representa no drama ou seja o indiviacuteduo humano

moral e social5

Nesta senda do indiviacuteduo mascarado Edith Stein observa que visto que nas comeacutedias e nas

trageacutedias se representavam personagens famosos o nome pessoa foi imposto para significar

sujeitos que tinham um papel na sociedade por isso alguns definem a pessoa como laquouma

hipoacutestase marcada por uma qualificada conexatildeo com a sua dignidaderaquo 6

Natildeo encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Boeacutecio que liga pessoa ao

verbo personare aludindo agrave amplificaccedilatildeo da voz de quem fala por detraacutes da maacutescara Assim

pessoa eacute segundo Boeacutecio laquodecta est volvatur sonusraquo 7 Tambeacutem natildeo eacute correcto afirmar que

pessoa seja a contracccedilatildeo de per se una como quereria a proposta de Alano di Lilla8

12 O percurso evolutivo do conceito de pessoa

Com Ciacutecero e Seacuteneca a evoluccedilatildeo do conceito de pessoa deu passos importantes sem

contudo chegar agrave definiccedilatildeo hodierna

Do segundo seacuteculo em diante o conceito de pessoa entra no uso corrente na onda do esforccedilo

de clarificaccedilatildeo exigida pelas controveacutersias teoloacutegicas sobre o dogma trinitaacuterio Poreacutem foi

com Boeacutecio que o conceito de pessoa adquire o actual conteuacutedo teoacuterico E isto no contexto da

clarificaccedilatildeo conceitual sobre as questotildees teoreacuteticas que emergiam da doutrina sobre a

Trindade

Segundo Boeacutecio laquopersona est rationalis naturae individua substantiaraquo (pessoa eacute substacircncia

individual de natureza racional) 9 Boeacutecio elabora esta definiccedilatildeo servindo-se do patrimoacutenio

filosoacutefico grego e latino De facto ele sistematiza os conceitos latinos de persona natura e

substantia estabelecendo uma equivalecircncia com os vocaacutebulos gregos πρόσωπον ούσία

ύπόστασις que na oscilaccedilatildeo terminoloacutegica do tempo eram usados de maneira equiacutevoca e

confusa

Com Boeacutecio a natura toma definitivamente o lugar de ούσία entendida como essecircncia e

substantia passa a traduzir o grego ύπόστασις10

Satildeo poucos os filoacutesofos que no medievo natildeo

5 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique op

cit pp 298-299 6 Edith STEIN Essere finito e essere eterno Per una elevavazione al senso dellrsquoessere Cittagrave Nuova Roma

1988 p 380 7 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1344

8 Cf Enrico BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico in AAVV Persona e

personalismo Aspetti filosofici e teologici Fondazione Lanza Padova 1992 p 43 9 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1343

10 Cf Claudio MICAELLI ldquoNaturardquo e ldquoPersonardquo nel ldquoContra Eutychen et Nestoriumrdquo di Boezio Osservazioni

su alcuni problemi filosofici e linguistici in Luca OBERTELLO (a cura di) Atti del Congresso Internazionale di

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tinham encontrado a definiccedilatildeo de Boeacutecio satisfatoacuteria porque essa interpretava a realidade que

se tentava definir precisando-lhe o significado

Esta definiccedilatildeo pessoa eacute substacircncia individual de natureza racional que durante o medievo

faz cultura e caracteriza a tradiccedilatildeo teoloacutegica latina surge sob o impulso das disputas contra os

nestorianos os quais sustentavam que em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em

uniatildeo permanente e moral e contra os monofisistas que sustentavam a existecircncia em Cristo de

uma soacute natureza a divina11

Na definiccedilatildeo de Boeacutecio o termo pessoa tem um sentido mais especiacutefico e refere-se agrave estrutura

fundamental e metafiacutesica do indiviacuteduo ou seja agrave substacircncia individual dotada de uma

natureza racional Quer dizer nem todos os seres naturais satildeo pessoas mas apenas aqueles

substanciais

Por isso a pessoa eacute substacircncia individual Eacute individual porque tem caracteriacutesticas que a

distinguem dos outros indiviacuteduos da mesma espeacutecie caracteriacutesticas que natildeo satildeo definiacuteveis

nem comunicaacuteveis aos outros Eacute substacircncia porque eacute existente em si por si e em nenhum

outro Dizer substacircncia individual significa portanto dizer que a pessoa natildeo tem necessidade

para existir de aderir a um outro ser e conteacutem no seu quid alguma coisa de

incomunicabilidade que divide com nenhum outro12

A pessoa eacute igualmente de natureza racional O seu conhecer natildeo eacute impresso na mateacuteria nem eacute

limitado por essa Dizer natureza racional significa por isso que a pessoa natildeo soacute exerce as

actividades conexas agrave natureza mas tem a capacidade de desenvolvecirc-las capacidade possuiacuteda

por natureza ou seja com o nascimento13

A pessoa eacute pois o gau mais elevado de ser

substancial porque essa eacute consciente do seu ser substacircncia individual

Toda a pessoa eacute portanto antes de mais um indiviacuteduo Mas ao mesmo tempo muito mais que

indiviacuteduo porque natildeo eacute uma personagem mas uma substacircncia individual que possui em si

uma certa dignidade em razatildeo da sua racionalidade Por isso natildeo basta afirmar que a pessoa eacute

Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott 1980) Herder Roma 1981 p 336 11

Fruto destas disputas eacute a obra de Boeacutecio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium

cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestoacuterio De recordar poreacutem que desde

os primeiros seacuteculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importacircncia ndashcom Tertuliano os Padres

Capadoacutecios S Agostinho e S Joatildeo Damasceno ndash nos interrogativos teoreacuteticos que emergiam da Revelaccedilatildeo e nas

controveacutersias teoloacutegicas acerca do dogma trinitaacuterio Tais controveacutersias se concluiacuteram com a foacutermula das trecircs

pessoas ou hipoacutestases na uacutenica substacircncia ούσία ou natureza divina Os Padres da Igreja separando de maneira

definitiva o conceito de πρόσωπον da referencia agrave personagem

traacutegica ou coacutemica deram focirclego a um aprofundamento do

conceito de pessoa tambeacutem na reflexatildeo filosoacutefica (cf Gregorio DI NISSA La grande catechesi CIttagrave Nuova

Roma 1982 p 51 Gregorio NAZIANZENO I cinque discorsi teologici CIttagrave Nuova Roma 1986 p 175)

12 Cf San Tommaso DrsquoAQUINO Questiones disputatae De potentia q 9 a 2 ID Summa Theologiae I q

29 a 13

Cf E BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico op cit p 48

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algo de individual e nem mesmo que eacute uma substacircncia ou uma natureza para defini-la do

ponto de vista metafiacutesico

Visto que a individualidade eacute acidente isto eacute pertence agravequilo que existe como perfeiccedilatildeo e eacute

caracteriacutestica de um sujeito e enquanto a substacircncia e a natureza indicam o que eacute proacuteprio da

espeacutecie ocorre a substacircncia individual de uma natureza racional para que exista pessoa

Ocorre portanto que se refira a uma substacircncia individualizada de um ser racional para que

exista pessoa do ponto de vista metafiacutesico Somente um ser racional pode corresponder agrave

dignidade de pessoa porque pessoa eacute enfim um ser em si que natildeo pode ser substituiacutedo por

um outro e que eacute capaz de operaccedilotildees proacuteprias e racionais

Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da foacutermula de Boeacutecio Satildeo

Tomaacutes elabora a sua definiccedilatildeo de pessoa como laquosubsistens in rationali naturaraquo 14

Com a foacutermula subsistens in rationali natura Satildeo Tomaacutes evidencia natildeo soacute o aspecto comum ndash

pressuposto universalmente aceite da pessoa ndash assim como expresso pela substacircncia

individual da definiccedilatildeo de Boeacutecio mas evidencia sobretudo aquele individual isto eacute o

existente considerado na acepccedilatildeo mais proacutepria ou seja o seu ser uacutenico e irrepetiacutevel De facto

na definiccedilatildeo de Boeacutecio a substacircncia individual parece ser concebida como individualidade A

individualidade poreacutem eacute determinaccedilatildeo da coisa e natildeo ainda do quem eacute uma conotaccedilatildeo

natural da pessoa e natildeo da mesma pessoa

Satildeo Tomaacutes condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o

que de mais nobre e perfeito haacute no universo e por isso afirma laquopersona significat id quod est

perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturaraquo 15

Pessoa eacute a natureza racional que existe num indiviacuteduo concreto Por isso somente aquilo que

eacute subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa E eacute o subsistir de maneira

individual na natureza racional que confere a dignidade agrave pessoa ou seja laquoquia magnae

dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur

personaraquo 16

De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana natildeo eacute a abstracta razatildeo ndash como parece

indicar a natureza racional da definiccedilatildeo de Boeacutecio ndash mas a racionalidade possuiacuteda por um

subsistente ou seja de um ser concreto E este em virtude de um actus essendi proacuteprio que

confere actualidade agrave substacircncia e agraves suas determinaccedilotildees Tudo isto que a pessoa sabe quer e

faz brota do proacuteprio acto em virtude do qual eacute aquilo que eacute

14

Cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 29 a 3 c 15

Ibidem 16

Ibidem

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Da elaboraccedilatildeo de Satildeo Tomaacutes compreende-se essencialmente o caraacutecter racional da pessoa

racional enquanto capaz de ser consciente do proacuteprio ser17

A pessoa eacute todo o indiviacuteduo de

natureza racional livre atravessado por tradiccedilotildees e culturas responsaacutevel relacional

inteligente volitivo dialogante e por isso fundamento de unidade entre indiviacuteduos e povos

2 Do conceito da pessoa agrave construccedilatildeo da unidade africana

Antes da conquista das independecircncias os colonos procuravam inflamar as diferenccedilas

fechando as coloacutenias em si mesmas num clima de reserva ciumenta de distacircncia e quase de

desconfianccedila Com as independecircncias os encontros entre paiacuteses antigamente colonizados se

multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaboraccedilatildeo E com a criaccedilatildeo da

Organizaccedilatildeo da Unidade Africana (OUA) que veio desempenhar o papel extremamente

precioso de lugar de encontros de oacutergatildeo de diaacutelogo e de troca de experiecircncias entre Chefes de

Estado e de Governo africanos o esforccedilo para a unidade se exprimiu de modo mais visiacutevel

Contudo a vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante E enquanto essencialmente relacionais e

dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e

que os distinguem das outras espeacutecies de seres Todos os homens tecircm as mesmas tendecircncias e

exigecircncias fundamentais quanto ao aneacutelito da unidade Todo o homem eacute chamado agrave comunhatildeo

e estaacute aberto agrave comunicaccedilatildeo e ao diaacutelogo

O homem eacute capaz pois de intercacircmbio de dar-se aos outros e deles receber porque a sua

natureza o abre agrave comunhatildeo agrave comunicaccedilatildeo e agrave unidade A sua natureza relacional e

dialogante natildeo eacute apenas uma necessidade mas eacute sobretudo um dom que o ambiente que o

impede de continuar fechado e isolado no egoiacutesmo e aberto aos conflitos De facto o homem

eacute aquilo que eacute pela sua inconfundiacutevel individualidade mas tambeacutem pelo seu ser aberto ao

outro e agraves realidades extriacutensecas por causa da sua sociabilidade A sociabilidade eacute pois uma

expressatildeo da sua humanidade e a unidade uma sua actuaccedilatildeo

Por isso a unidade africana pressupotildee a uniatildeo consciente entre africanos e o comum e

orgacircnico esforccedilo para conseguir o bem humano integral A unidade africana na base da

descoberta da comum humanidade articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para

com todos e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros

17

Muitas vezes o termo racional eacute confuso com o termo intelectual Na verdade intelecto e razatildeo diferem O

intelectual eacute um conhecimento simples e imediato enquanto o racional passa de um conhecimento simples para

um mais complexo (cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 59 a 1)

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povos do continente para alcanccedilar o bem comum18

Enfim a unidade encontra a sua raiz na essecircncia metafiacutesica da pessoa humana e exprime por

conseguinte a estrutura ontoloacutegica dos africanos e diz respeito agrave proacutepria possibilidade da sua

realizaccedilatildeo Por isso as divisotildees e os conflitos lupescos natildeo fazem parte da normalidade

africana

Portanto apesar de Aacutefrica ser um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas o continente africano explica-se como unidade na

diversidade E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos eacute garantida

metafisicamente pela origem pelo facto mesmo de sermos africanos ndash do Cabo ao Cairo de

Dar es-Salaam a Dakar ndash mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas

O fundamento metafiacutesico de origem representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica

uma forccedila inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as

diversidades presentes nos Estados africanos a incomunicabilidade geograacutefica a hipocrisia

as tensotildees e os desejos separatistas e conduzir a um compromisso claro entre os africanos

respeitando as suas diversidades e os seus interesses reciacuteprocos empenhando num projecto

comum para uma Aacutefrica mais humana e mais social em que reinem sempre o respeito muacutetuo

o reconhecimento e a protecccedilatildeo dos direitos humanos fundamentais e se faccedila valer o lado

melhor dos africanos os valores basilares da paz da justiccedila da liberdade da toleracircncia da

participaccedilatildeo e da solidariedade Este fundamento metafiacutesico de origem eacute importante

porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do que o que os

separa

Contudo a unidade africana deve ser construiacuteda e aprofundada de forma dinacircmica e

incessante porque os pressupostos da uniatildeo representados pelos factores geograacuteficos pela

multiplicidade das tradiccedilotildees regionais nacionais culturais e religiosas pelos interesses

econoacutemicos trocas econoacutemicas paciacuteficas e seguras pela heranccedila e tradiccedilotildees socioculturais

africanas mais autecircnticas em si natildeo bastam para criar a uniatildeo poliacutetica Eacute necessaacuterio voltarmos

agrave metafiacutesica da unidade e reelaborar juntos a histoacuteria da Aacutefrica que aleacutem das muito boas

experiecircncias de unidade eacute ainda caracterizada nalguns casos por desentendimentos lutas

fratricidas entre etnias e ateacute por conflitos beacutelicos

Com razatildeo Kwame Nkrumah apelava na sua obra A Aacutefrica deve unir-se agrave unidade natildeo

tanto para indicar a necessidade ou condiccedilatildeo de estar unidos mas sobretudo o acto de se unir

18

Cf L F KAMBALU A democracia personalista Os fundamentos onto-antropoloacutegicos da poliacutetica agrave luz de

Pietro Pavan Paulinas Lisboa 2012 pp 51-64

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porque os pressupostos geograacuteficos e econoacutemicos por si soacute natildeo bastam para criar a uniatildeo

Ocorrem instituiccedilotildees vinculativas bem como vontade e consciecircncia de pertenccedila a um mesmo

continente chamado Aacutefrica A consciecircncia deve preceder agrave formaccedilatildeo poliacutetica da unidade

africana que natildeo se poderaacute alcanccedilar de forma duradoira sem valores comuns Outrossim

ocorre recordar que a unidade eacute em si um bem somente quando eacute ordenada quando responde

agrave razatildeo objectiva da verdade da justiccedila e do bem O mesmo eacute dizer que a unidade eacute um bem

que vale tanto quanto respeita o que haacute de valor nas partes que a compotildeem

A unidade perde valor quando se realiza de modo maciccedilo esmagador absoluto destruidor e

totalitaacuterio abolindo o espaccedilo que permite o diaacutelogo destruindo desta forma a esfera em que os

homens agem tomam decisotildees comuns e operam colaborando Por isso sem liberdade nem

diaacutelogo a unidade africana seria impossiacutevel porque a Aacutefrica natildeo seria mais o espaccedilo onde cada

indiviacuteduo aos outros as proacuteprias capacidades em vista do bem comum segundo princiacutepios de

igualdade substancial Neste sentido a Aacutefrica seria um conjunto de indiviacuteduos e por

conseguinte um conjunto de Estados sem laccedilos entre si Cada um veria o outro natildeo como um

semelhante com quem eacute chamado a relacionar-se e tomar iniciativas mas um inimigo de

quem se defender

Enfim para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma

poliacutetica que envolva todas as pessoas e forccedilas a todos os niacuteveis na busca do bem comum ou

seja na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem agraves exigecircncias

intriacutensecas e imutaacuteveis da natureza humana Trata-se pois de condiccedilotildees econoacutemicas

juriacutedicas morais e religiosas que tornam possiacutevel e favorecem o conseguimento pleno e faacutecil

do desenvolvimento integral das pessoas

As exigecircncias histoacutericas e os significados de unidade satildeo sempre mutaacuteveis Mudam conforme

se entenda o que leva os homens a unirem-se a niacutevel ontoloacutegico e histoacuterico ou seja

consoante a efectiva existecircncia daquele princiacutepio originaacuterio em cada homem e povo ou

consoante o plano social poliacutetico religioso e cultural em que se actua a unidade De facto

natildeo poucas vezes os proacuteprios acontecimentos histoacutericos e as proacuteprias diferenccedilas exigem que

se redefinam os instrumentos poliacuteticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova

filosofia de relaccedilotildees entre povos e Estados que vatildeo aleacutem do que no passado natildeo foi possiacutevel

Tais diferenccedilas podem provir de uma profunda oposiccedilatildeo e de uma divergecircncia quanto ao fim

As diferenccedilas podem provir tambeacutem de uma dupla visatildeo de um mesmo objectivo Seja qual

for a origem das diferenccedilas a atitude sadia eacute compreender as realidades e promover o diaacutelogo

e ver como as proacuteprias diferenccedilas permitem situar melhor o objecto

Por isso eacute mister que nos diversos acircmbitos questotildees e temas sobre os quais incumbe o risco

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da divisatildeo os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma soacute voz cultivando e

empenhando-se intensa livre e conscientemente ao diaacutelogo

O diaacutelogo eacute fundamental para a vida poliacutetica sobretudo quando exerce a funccedilatildeo da busca da

verdade e do bem No caso da Aacutefrica o diaacutelogo torna-se uma exigecircncia insubstituiacutevel para

superar as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente se vatildeo intensificando

na actualidade O diaacutelogo eacute igualmente fundamental para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos culturais raciais sociais e religiosos e promover e concretizar a

unidade a justiccedila e a paz natildeo soacute por causa do pluralismo eacutetnico cultural racial social e

religioso do continente mas sobretudo por causa do seu pluralismo poliacutetico pois atraveacutes do

diaacutelogo cada indiviacuteduo ou povo enriquece o proacuteprio ponto de vista e converge para as noccedilotildees

de verdade e de bem humano e se empenha a potenciaacute-las corresponsavelmente para a

unidade

O diaacutelogo eacute tambeacutem essencial para a unidade poliacutetica social e econoacutemica e o

desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos pois tal como os povos tambeacutem

os Estados tecircm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si proacuteprios e no encontro

com os outros se realizarem plenamente Por isso o isolamento seria um impedimento

insuperaacutevel para a unidade e a realizaccedilatildeo do proacuteprio continente africano

Tal diaacutelogo deve basear-se em valores princiacutepios e normas aceites e deve ser assegurado por

um sistema constitucional e de direito pela promoccedilatildeo da justiccedila da paz e da liberdade para o

continente africano pela experiecircncia da verdade e pela busca constante de compreensatildeo dos

fundamentos que tecircm plasmado a Uniatildeo Africana

O diaacutelogo natildeo se processa sem dificuldades e eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes da discussatildeo e

argumentaccedilatildeo eacute reconheciacutevel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a

dignidade pessoa humana e eacute possiacutevel a diversos niacuteveis no plano da experiecircncia quotidiana

para as questotildees sociais comunitaacuterias familiares eacuteticas e ecoloacutegicas no plano do encontro

das culturas para o respeito e o melhor conhecimento reciacuteproco no plano desportivo para o

cultivo do sentimento de pertenccedila a um todo continental no plano poliacutetico para questotildees que

dizem respeito agrave seguranccedila econoacutemica cultural e juriacutedica no plano militar para questotildees que

dizem respeito agrave garantia da seguranccedila e integridade territorial bem como agrave erradicaccedilatildeo de

conflitos em Aacutefrica

Trata-se de um diaacutelogo gradual e sempre pronto a recomeccedilar Um diaacutelogo que natildeo obriga mas

se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado trata-se de um

diaacutelogo que natildeo eacute apenas instrumental nem nasce de taacutecticas ou de interesses mas um diaacutelogo

sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

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concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Enfim trata-se de uma actividade que apresenta motivaccedilotildees exigecircncias e dignidade proacutepria e

implica um muacutetuo esforccedilo de compreensatildeo por parte dos interlocutores que se compreendem

verdadeiramente quando descobrem aleacutem dos laccedilos que os unem e os integram uns aos outros

e dos valores a eles comuns as razotildees ideais em que cada um deles se inspira para realizaacute-los

Outrossim tal diaacutelogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente beneacuteficos como o

aumento da maturidade dos africanos ndash numa penetraccedilatildeo mais autecircntica da complexa

realidade do mundo hodierno em que a Aacutefrica se move ndash a resoluccedilatildeo dos problemas a

superaccedilatildeo dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de

todas as naccedilotildees bem como pela seguranccedila e bem-estar do continente africano

Tudo isso levanta muitos e difiacuteceis problemas de ordem econoacutemica social e poliacutetica Poreacutem

estaacute de facto que diante das diferenccedilas e dos antagonismos que o continente africano vive

actualmente soacute a consciecircncia da comum humanidade e o diaacutelogo franco luacutecido e proveitoso

pode permitir construir um caminho de toleracircncia e aceitaccedilatildeo muacutetuas para a realizaccedilatildeo de uma

convivecircncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da

pessoa humana da mobilidade interna da integraccedilatildeo soacutecio-econoacutemica do continente e do

florescimento de um mercado interno Isto faraacute tambeacutem com que os africanos natildeo sejam

meros fornecedores de mateacuterias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos

estrangeiros mas produtores e consumidores de produtos do seu proacuteprio continente

Um diaacutelogo natildeo inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade mas um diaacutelogo

franco na base da consciecircncia de pessoas humanas e do respeito reciacuteproco De facto sem

diaacutelogo franco natildeo haacute progresso porquanto o progresso eacute liberdade e somente a verdade que

pode exprimir-se nos torna livres

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TRANFO Luigi Africa La transizione Tra sfruttamento e indifferenza EMI Bologna 1995

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HISTOacuteRIA A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO

SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA

A PARTIR DE FRANTZ FANON

NLANDU MATONDO FAUSTINO a

Resumo

O presente trabalho procurou desconstruir a partir das teses de Frantz Fanon sobretudo

aquelas formuladas nos ldquoCondenados da Terrardquo a ideia de uma suposta missatildeo civilizadora

subjacente na intenccedilatildeo colonizadora consubstanciada na equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual a

civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo Partindo de uma indagaccedilatildeo da validade criticaacutevel

da equaccedilatildeo em epiacutegrafe cruzou os factos agraves doutrinas que versam sobre o fenoacutemeno da

colonizaccedilatildeo de Aacutefrica e chegou a depreender com uma certa objectividade de que a

colonizaccedilatildeo em Aacutefrica tal ficou visto por Fanon foi mais um movimento de

despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeo dos africanos em geral e dos negros em particular do que

um projecto de humanizaccedilatildeo e de emancipaccedilatildeo dos indiacutegenas de Aacutefrica negra Ficou portanto

evidente ao longo deste trabalho de que a colonizaccedilatildeo foi uma violecircncia que extraiu a sua

originalidade na substantivaccedilatildeo do colonizado Uma violecircncia que natildeo soacute presidiu ao arranjo

do mundo colonial como tambeacutem ritmou e alimentou a destruiccedilatildeo antropoloacutegica e ontoloacutegica

do negro-africano incluindo todas as suas formas sociais arrasou completamente os seus

sistemas de referecircncias econoacutemicas os seus modos ldquoessendi et operandirdquo e decretou a crise

soacutecio-cultural dos povos negros de Aacutefrica

Palavras-chaves colonizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo violecircncia despersonalizaccedilatildeo descolonizaccedilatildeo

emancipaccedilatildeo

Abstract

The present study sought to deconstruct from the theses of Frantz Fanon especially those

formulated in The Wretched of the Earthrdquo the idea of a supposed civilizing mission

underlying the colonizing intention embodied in the equation colonization equal to

civilization and paganism equal to savageryrdquo Crossed the facts to the doctrines that focus on

a Doutorando em Filosofia na Universidade de Eacutevora Mestre em Ciecircncias da Educaccedilatildeo pela mesma

Universidade Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catoacutelica de

Angola

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the phenomenon of colonisation of Africa this was seen by Fanon was more a movement of

depersonalization of Africans in general and the negroes in particular than a draft of

humanization and emancipation of the peoples of black Africa Therefore became evident

throughout this work that the colonization was a violence that drew its originality of the

colonized

A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world as well as

marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African including all

its social forms wiped out completely their systems of economic references their modes

essendi et operandi and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa

Key words colonization civilization violence depersonalization decolonisation

emancipation

Introduccedilatildeo

A reflexatildeo em torno dos desafios da descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica continua actual e actuante em

qualquer discurso intelectual ou poliacutetico sobre o estado da naccedilatildeo de muitos Estados africanos

passados que satildeo aproximadamente seis deacutecadas desde que muitos deles se tornaram

independentes Esta actualidade pode todavia natildeo parecer evidente quando o enfoque do

discurso for a colonizaccedilatildeo De facto pode parecer anacroacutenico e mesmo sintomaacutetico falar da

colonizaccedilatildeo para tentar justificar a qualquer preccedilo o subdesenvolvimento e a instabilidade

sociopoliacutetica na actualidade de muitos Estados africanos independentes Bom ou malgrado

essa sensaccedilatildeo de anacronismo que sugere uma espeacutecie de eacutepokeacute em torno do fenoacutemeno

colonial perde a sua legitimidade na medida em que a pertinecircncia do discurso sobre a

descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica torna ldquoipsis verbirdquo procedente o discurso sobre a colonizaccedilatildeo Ou

seja toda a fala em torno da descolonizaccedilatildeo sugere de uma ou de outra forma uma incursatildeo

sobre a colonizaccedilatildeo Vamos ao longo deste trabalho procurar descortinar o conceito de

colonizaccedilatildeo na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do

trampolim que pode sugerir agrave nossa cogitaccedilatildeo sobre a descolonizaccedilatildeo Para o efeito

propomos a seguinte estrutura 1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a

partir da analiacutetica de Fanon 2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo

igual a civilizaccedilatildeo 3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel

deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo 4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos a uma possiacutevel

verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida 5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de

Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco 6 Desconstruindo o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista

erguida na recusa do humano enquanto diferente 7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta do

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mundo colonial uma antiacutetese agrave pretensatildeo de uma suposta missatildeo emancipadora dos

africanos subjacente na intenccedilatildeo colonizadora

1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a partir da sua analiacutetica

em Fanon

Natildeo eacute possiacutevel falar da descolonizaccedilatildeo em Fanon sem falar da colonizaccedilatildeo enquanto

referecircncia inofuscaacutevel e movimento historicizante que confere corpo e sentido mateacuteria e

forma a qualquer anaacutelise criacutetica do projecto de descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica Esta eacute de resto a

loacutegica que suporta o argumento de Fanon que passamos a transcrever

a descolonizaccedilatildeo [hellip] eacute um processo histoacuterico [hellip] natildeo pode ser

compreendida natildeo encontra a sua inteligibilidade natildeo se torna transparente

para si mesma senatildeo na exacta medida em que se faz discerniacutevel o

movimento historicizante que lhe daacute forma e conteuacutedo ndash a opressatildeo colonial

(Fanon 1968 p 26 ou Fanon 2002 p 452)

Desde esta perspectiva a anaacutelise sobre a colonizaccedilatildeo ganha uma particular relevacircncia na

medida em que se nos apresenta natildeo soacute como fundamento a partir do qual se pode erguer

qualquer avaliaccedilatildeo sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleoloacutegico da luta

dos africanos rumo agrave sua efectiva emancipaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo no universalismo humano

mas tambeacutem como pretexto para (re) pensar o caminho de superaccedilatildeo das novas formas de

colonizaccedilatildeo que grassam ainda Aacutefrica e que em si constituem um verdadeiro impasse para

uma descolonizaccedilatildeo efectiva do continente africano Importa desde jaacute sublinhar que esta

reflexatildeo de tipo histoacuterico natildeo encontra o seu real significado na descriccedilatildeo dos factos que ela

encerra nem na narraccedilatildeo histoacuterica que a constitui O seu real alcance reside na sua capacidade

de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a

descolonizaccedilatildeo vislumbrado pelos africanos passados que satildeo cinquenta e sete anos apoacutes a

morte de Fanon

Tem-se com efeito e natildeo poucas vezes associado a colonizaccedilatildeo de Aacutefrica a um projecto

civilizador ou modernizador que teraacute sido frustrado ou interrompido por uma espeacutecie de

ambiccedilatildeo irracional dos africanos admitindo-se deste modo a hipoacutetese segundo a qual a

colonizaccedilatildeo teraacute sido um ldquoprojecto interrompidordquo de civilizaccedilatildeo (modernizaccedilatildeo) da Aacutefrica e

dos africanos De recordar que o ldquodiscurso sobre o colonialismordquo de Aimeacute Ceacutesaire resulta

precisamente da necessidade de dissertar sobre uma possiacutevel analogia entre a ldquocolonizaccedilatildeo e

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a civilizaccedilatildeordquo Provocaccedilatildeo ou natildeo mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer

sobre o binocircmio colonizaccedilatildeo-civilizaccedilatildeo pelo Franco-Senegalecircs Alioune Diop fundador e

Director da Revista ldquoPreacutesence Africainerdquo em Paris 1950 insinua a existecircncia de tendecircncias

que aproximavam a colonizaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo Esta provocaccedilatildeo tal como nos parece ser natildeo

deixa de ser no plano metodoloacutegico um bom ponto de partida para uma discussatildeo mais

objectiva e criacutetica da concepccedilatildeo fanoniana do colonialismo porquanto nos permite lanccedilar a

discussatildeo levantando uma seacuterie de perguntas tais como 1 Eacute possiacutevel sustentar por via de

argumentaccedilatildeo uma provaacutevel analogia entre os dois conceitos em anaacutelise a saber colonizaccedilatildeo

e civilizaccedilatildeo 2 Teraacute havido realmente um plano colonial de civilizar ou modernizar a

Aacutefrica em proveito dos africanos 3 Era sensato legitimar a opressatildeo colonial a partir dos

progressos alcanccedilados nas coloacutenias de Aacutefrica durante a administraccedilatildeo colonial Dito de outro

modo Seraacute que os niacuteveis de desenvolvimento conseguidos em vaacuterios domiacutenios social

administrativo tecnoloacutegico e poliacutetico sob o regime colonial conferiam efectivamente a

merecida dignidade a Aacutefrica e aos africanos 4 Teraacute a Aacutefrica realmente recusado o

desenvolvimento como diria Axel Kabu ao engajar-se na luta pela descolonizaccedilatildeo 5 E hoje

em plena era poacutes-colonial poderatildeo os africanos afirmar com realismo franqueza e

frontalidade que os ideais que nortearam o projecto da descolonizaccedilatildeo foram alcanccedilados 6

Teraacute alguma razatildeo de ser o postulado segundo o qual o projecto de descolonizaccedilatildeo teraacute sido

abortado na sua menor idade admitindo-se deste modo um possiacutevel equiacutevoco entre os

liacutederes e os intelectuais africanos que teratildeo confundido as independecircncias (enquanto meio)

com a descolonizaccedilatildeo (enquanto fim da longa marcha usando a expressatildeo de Reneacute Dumont

rumo a um continente mais humano mais livre mais autoacutenomo mais justo e mais proacutespero)

Ao longo desta reflexatildeo tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas

perguntas tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon

2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeo

Qual teraacute sido o verdadeiro retrato do colonialismo um processo de civilizaccedilatildeo dos

chamados indiacutegenas ou um ldquomovimento de despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeordquo dos povos

africanos Eacute evidente que para Fanon esta questatildeo nem sequer merece ser colocada De

facto o jovem martinicano eacute bastante incisivo e objectivo na sua anaacutelise Para ele a

colonizaccedilatildeo eacute antes de mais uma ldquoviolecircnciardquo conceito que de resto daacute tiacutetulo ao Iordm capiacutetulo

do Les Damneacutes de la Terre (Fanon 1968 p23 ou 2002 p448) Na sua oacuteptica a violecircncia foi

precisamente o elemento estrateacutegico e estruturante da loacutegica colonial Trata-se de uma

violecircncia que extrai sua originalidade na substantificaccedilatildeo do colonizado que a proacutepria

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situaccedilatildeo colonial segrega e alimenta Aliaacutes o encontro entre o colonizador e o colonizado diz

Fanon teve sempre o retrato de violecircncia e nunca foi expressatildeo de uma vontade civilizadora

ou humanizadora Pode se ler em Fanon que a colonizaccedilatildeo eacute a categorizaccedilatildeo de um encontro

que

se desenrolou sob o signo da violecircncia e sua coabitaccedilatildeo ndash ou melhor

a exploraccedilatildeo do colonizado pelo colono ndash foi levada a cabo com

grande reforccedilo de baionetas e canhotildees [hellip] A violecircncia [hellip] presidiu

ao arranjo do mundo colonial [hellip] ritmou incansavelmente a

destruiccedilatildeo das formas sociais indiacutegenas [hellip] arrasou completamente

os sistemas de referecircncias da economia os modos da aparecircncia e do

vestuaacuterio do colonizado (Fanon 1968 pp 26 e 30)

Eacute possiacutevel aproximar em boa verdade uma situaccedilatildeo de uma clara alienaccedilatildeo antropoloacutegica

fazendo feacute agrave descriccedilatildeo de Fanon a um projecto de civilizaccedilatildeo sem cair em sofismas que

desemboquem numa contradiccedilatildeo De notar que este mesmo entendimento de Fanon eacute

corroborado pelo seu antigo mestre Aimeacute Ceacutesaire que parafraseamos nos seguintes termos a

colonizaccedilatildeo enquanto violecircncia no sentido mais bruto da palavra eacute uma autecircntica antiacutetese da

civilizaccedilatildeo ela por natureza desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado A

colonizaccedilatildeo legitima o ilegiacutetimo e normaliza o anormal pode-se matar agrave vontade na

Indochina torturar em Madagaacutescar prender na Aacutefrica negra seviciar nas Antilhashellip (cfr

Ceacutesaire 1978 pp 7 e 14) Natildeo eacute preciso muita hermenecircutica para apreender nos dizeres de

Sartre de que a violecircncia constitui o ldquomodus operandirdquo proacuteprio do sistema colonial que nem

as suas geniais trapaccedilas conseguem disfarccedilar A peculiaridade do agir colonial distancia a

colonizaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo E para deixar tudo a nu Sartre faz a seguinte inconfidecircncia

ldquonossos soldados no ultramar rechaccedilam o universalismo metropolitano

aplicam ao geacutenero humano o numerus clausus uma vez que ningueacutem pode

sem crime espoliar seu semelhante escravizaacute-lo ou mataacute-lo eles datildeo por

assente que o colonizado natildeo eacute o semelhante do homem Nossa tropa de

choque recebeu a missatildeo de transformar essa certeza abstrata em realidade a

ordem eacute rebaixar os habitantes do territoacuterio anexado ao niacutevel do macaco

superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [hellip] nada

deve ser poupado para liquidar as suas tradiccedilotildees para substituir a liacutengua deles

pela nossa para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossahelliprdquo (Sartre Les

Damneacutes 1961 p 9)

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Esta violecircncia que parte do plano simboacutelico conceitual atingiu o seu ponto auge com

desterramento dos indiacutegenas feitos estrangeiros na sua proacutepria terra como foi o caso do

coacutedigo civil imposto aos argelinos visando regular o direito agrave propriedade e agrave heranccedila com a

uacutenica finalidade de desterrar os autoacutectones tirando-lhes o que de mais precioso tinha ndash a sua

proacutepria terra De realccedilar que o referido coacutedigo tinha aprovado a titularidade comum de terras

entre a classe-meacutedia francesa e a sociedade tribal como estrateacutegia de expropriaccedilatildeo de terras

aos autoacutectones atraveacutes de poliacuteticas especulativas (cfr Sartre 1967 p39)

Desde este ponto de vista pode-se aferir que os ldquomodus essendi et operandirdquo do colonialismo

configuravam em certa medida aquilo que Sartre chamou de ldquoimoralidade narcisistardquo da

ambiccedilatildeo ocidental da qual emerge o impulso que modifica inevitavelmente qualquer

indiviacuteduo que adere agrave dinacircmica colonial dando-lhe boa consciecircncia e boas razotildees de ver no

outro (natildeo branco) um simples animal Esta constataccedilatildeo sartriana valida sem qualquer

sombra de duacutevida a convicccedilatildeo de Ceacutesaire para quem o colonialismo eacute brutalidade

intimidaccedilatildeo crueldade sadismo choque violaccedilatildeo roubo desprezo culturas obrigatoacuterias

desconfianccedila massas aviltadas ausecircncia de contacto humano relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de

submissatildeo que transformam o negro colonizado em criado ajudante comitre e instrumento de

produccedilatildeo (cfr Ceacutesaire 1978 p25) A partir destes pressupostos torna-se de facto forccediloso

concluir que natildeo existe tal como defende Fanon qualquer sustentabilidade quer

argumentacional quer factual para a validaccedilatildeo da equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeordquo

pois os factos atestam que colonizaccedilatildeo eacute o oposto de civilizaccedilatildeo Mas uma deacutemarche

etimoloacutegica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano teoacuterico

conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem

3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo

Para fundamentar com maior objectividade o alcance da deduccedilatildeo decorrente da narrativa de

Fanon em relaccedilatildeo a conjecturada correlaccedilatildeo entre os dois conceitos em anaacutelise pareceu-nos

mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos no sentido de os tornar mais

inteligiacuteveis para daiacute depreender o seu justo significado e consequentemente confirmar ou

infirmar a suposta correlaccedilatildeo entre ambas Conveacutem no entanto sublinhar que o caraacutecter

polisseacutemico dos conceitos em epiacutegrafe natildeo nos permite ignorar o facto de que natildeo eacute tatildeo faacutecil

quer do ponto de vista conceitual quer do ponto de vista factual traccedilar a linha de

convergecircncia ou de divergecircncia entre eles pois o proacuteprio caraacutecter multidisciplinar que o

conceito de civilizaccedilatildeo envolve hoje confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta

qualquer entendimento homogeacuteneo linear e conclusivo Acresce-se a este dado o facto de

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que nos dias que correm o conceito de civilizaccedilatildeo eacute reivindicado como objeto de estudo da

antropologia da ciecircncia da cultura do direito da histoacuteria da filosofia poliacutetica da sociologia

poliacutetica da religiatildeo etc proporcionando-lhe um enquadramento episteacutemico bastante

complexo que recusa qualquer unicidade semacircntica No entanto um recuo estrateacutegico e

metodoloacutegico ao seacuteculo das luzes onde o significado do termo ldquocivilizaccedilatildeordquo emergiu da

proacutepria raiz etimoloacutegica do conceito ldquocivilisrdquo ldquocivisrdquo cujo entendimento remetia agrave acccedilatildeo

de tornar civil ou urbano pode permitir uma espeacutecie de unidade de sentido a partir do qual se

pode fundamentar a possiacutevel analogia conceitual destes dois termos

A Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura natildeo foge muito desta percepccedilatildeo quando define a

colonizaccedilatildeo como um fenoacutemeno sociopoliacutetico baseado na dependecircncia de um grupo humano

ou de um territoacuterio a um outro que exerce nele influecircncias demograacuteficas econoacutemicas

culturais sociais ou poliacuteticas Entendimento agrave luz do qual alguns teoacutericos nos seacuteculos XIX e

XX basearam a sua definiccedilatildeo de colonizaccedilatildeo como atividade pela qual um povo de cultura

superior ocupa e organiza por conta proacutepria um territoacuterio habitado por povos de cultura

inferior estendendo a sua soberania desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas

segundo o princiacutepio da civilizaccedilatildeo Observa-se aqui a missatildeo civilizadora subjacente ao

conceito da colonizaccedilatildeo enquanto fenoacutemeno sociopoliacutetico cuja meta eacute levar as coloacutenias ao

desenvolvimento cultural social econoacutemico e cientiacutefico ou seja agrave modernizaccedilatildeo do territoacuterio

ocupado Este eacute de resto o significado que decorre do entendimento filoloacutegico do conceito de

colonizaccedilatildeo cuja estrutura originaacuteria se funda em torno de dois pressupostos basilares

nomeadamente o cultivo da terra isto eacute o desenvolvimento econoacutemico e o cultivo dos

homens ou seja a promoccedilatildeo sociocultural e econoacutemica das populaccedilotildees consideradas na

posiccedilatildeo receptiva (cfr Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura nordm5 p996ss)

De salientar que o conceito de civilizaccedilatildeo emergiu e muito provavelmente antes de qualquer

outro paiacutes no contexto sociocultural francecircs e fazia referecircncia essencialmente a trecircs

dimensotildees que vale a pena enumerar a primeira era referente ao primado da vida em

comunidade sobre a vida solitaacuteria a segunda fazia alusatildeo ao primado da vida na cidade sobre

a vida no campo a uacuteltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o

selvagem isto eacute o homem moderno distinguido pela ciecircncia e pela teacutecnica sobre o baacuterbaro

(cfr Enciclopeacutedia LB da Cultura nordm5) Neste contexto teoacuterico-conceitual civilizar era de

facto sinoacutenimo de trabalhar na integraccedilatildeo dos indiacutegenas na comunidade metropolitana na

modernizaccedilatildeo da vida do campo isto eacute levando as condiccedilotildees da cidade ao campo (energia

eleacutectrica aacutegua potaacutevel educaccedilatildeo escolar assistecircncia meacutedica e medicamentosahellip) e na policcedilatildeo

do baacuterbaro pela chamada ldquoculturardquo cientiacutefica e tecnoloacutegica

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Este parece ser o entendimento mais viaacutevel para o exame a que nos propusemos da

correlaccedilatildeo destes dois vocaacutebulos O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e

sustentabilidade episteacutemica no Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea editorial

Verbo acresce ainda mais o nosso interesse por esta perspectiva (cfr 2001 p833) Segundo

o Dicionaacuterio ora referenciado a ldquocivilizaccedilatildeordquo eacute a acccedilatildeo ou o resultado de transmitir

conhecimentos comportamentos e teacutecnicas consideradas desejaacuteveis numa sociedade moderna

Por conseguinte civilizar eacute dar caracteriacutesticas proacuteprias de sociedades teacutecnicas cientiacutefica e

economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas ou ainda dar haacutebitos e ajudar a

desenvolver comportamentos desejaacuteveis numa sociedade desenvolvida Conclui-se pois que

do ponto de vista conceitual ou definicional existem razotildees para fundamentar a presumiacutevel

correlaccedilatildeo entre os conceitos de ldquocolonizaccedilatildeo e civilizaccedilatildeordquo Mas a natildeo homogeneidade de

compreensatildeo na interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo destes conceitos agrave partida polisseacutemicos e

multidisciplinares e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descriccedilotildees fanonianas

obrigam-nos a dar um passo a mais espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e

continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo

4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos agrave uma possiacutevel verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de

partida

Se eacute possiacutevel aferir do ponto de vista definicional uma certa correlaccedilatildeo analoacutegica entre os

conceitos que fundam a nossa equaccedilatildeo de partida tal como ficou patenteado no ponto

anterior do ponto de vista doutrinal e factual esta correlaccedilatildeo carece de uma anaacutelise

minuciosa que permita apurar se a propensatildeo civilizadora inerente ao conceito de colonizaccedilatildeo

pelo menos no plano teoacuterico-conceitual conseguiu vincar como aspecto norteador da acccedilatildeo

colonial ou teraacute por alguma razatildeo ficado ofuscada durante o processo colonial Impotildee-se-

nos a este niacutevel retomar o ponto de vista de Fanon para quem a colonizaccedilatildeo eacute antes de

mais uma violecircncia que se consubstancia na animalizaccedilatildeo e na aniquilaccedilatildeo dos (negros)

colonizados Para sustentar o seu argumento Fanon comeccedila por relembrar a atitude do colono

que em vaacuterias circunstacircncias fez recurso a ldquouma linguagem zooloacutegica usando expressotildees

como ldquo[hellip] hordas fedor buliacutecio [hellip] e quando os quisesse descrever com mais exatidatildeo

[hellip] recorria constantemente ao bestiaacuteriordquo para designar os negros (Fanon 1968 p 31 ou

2002 p 456) Esta animalizaccedilatildeo do colonizado eacute para Fanon a expressatildeo mais eloquente de

uma violecircncia absoluta que desenraiacuteza o aviltado de sua humanidade E para reforccedilar a sua

criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista o colono via-se na necessidade de

encontrar novos atributos que pudessem explicitar da melhor maneira possiacutevel a real

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dimensatildeo semacircntica subjacente nos conceitos de ldquoindiacutegena e selvagemrdquo que em si jaacute natildeo

eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de

Aacutefrica entre outros

demografia galopante massas histeacutericas rostos de onde fugiu qualquer traccedilo

de humanidade corpos obesos que natildeo se assemelham mais a nada corte sem

cabeccedila nem cauda crianccedilas que datildeo a impressatildeo de natildeo pertencerem a

ningueacutem preguiccedila estendida ao sol ritmo vegetalhellip (Fanon 1968 p 32 ou

Fanon 2002 p457)

A validade histoacuterica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento Eacute sensato

falar de um projecto de civilizaccedilatildeo de animais sem converter a proacutepria racionalidade

civilizadora numa irracionalidade animal Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade

animal de uma civilizaccedilatildeo cuja racionalidade eacute o epicentro da sua acccedilatildeo muitos preferiram

considerar as afirmaccedilotildees de Fanon de irresponsaacuteveis e repletas de inverdades qualificando o

proacuteprio Fanon de agitador e instigador da violecircncia ante a sua incisiva caracterizaccedilatildeo do

sistema colonial Dentre outros podemos citar Alain Finkierkraut cujo pensamento mais do

que uma antiacutetese agraves teses de Fanon eacute uma tentativa de demonstraccedilatildeo da derrota do projecto da

descolonizaccedilatildeo Piegraverre Bourdieu de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que

pesam sobre Fanon eacute paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010 p 109)

como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus Simone de

Beauvoir Germaine Tillion Jasques Amrouche e outros que como Fanon e Sartre tiveram a

ousadia de denunciar cada um agrave sua maneira a violecircncia inerente ao sistema colonial

forjando novas noccedilotildees de identidade poliacutetica que continuam a influenciar o debate poliacutetico na

actualidade

No seu ldquomarxismo encontra Bourdieurdquo Burawoy procura mostrar que apesar da enorme

distacircncia que separa o quadro teoacuterico-reflexivo de Bourdieu e Fanon nomeadamente ldquoo

marxismo terceiro-mundista de um lado e a teoria da modernizaccedilatildeo de outro ladordquo o

pensamento destes dois autores apresenta inuacutemeras similitudes sobretudo entre o Fanon do

Le Damneacutes de la terre de 1961 e o Bourdieu de Sociologie de lrsquoAlgerie de 1958 Embora

natildeo seja objecto deste debate julgamos oportuno e procedente mencionar a tiacutetulo de

exemplo algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violecircncia como uma das

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave natureza proacutepria do sistema colonial e nos termos muito

semelhantes aqueles que aparecem nas paacuteginas 26 e 30 do Le Damneacutes de la terre de Fanon

(cfr 1968) ao afirmar

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o sistema colonial enquanto tal natildeo poderaacute ser destruiacutedo senatildeo atraveacutes de

um questionamento radical Todas as mutaccedilotildees satildeo submetidas agrave lei de tudo

ou nada Este facto estaacute na consciecircncia pelo menos de forma confusa quer

entre os membros da sociedade dominante quer entre os membros da

sociedade dominada [hellip] Mas eacute preciso admitir que o primeiro e uacutenico

questionamento radical do sistema eacute aquele que o proacuteprio sistema engendrou

isto eacute a revoluccedilatildeo contra os princiacutepios que o fundaram [hellip] A situaccedilatildeo

colonial criou o despreziacutevel e ao mesmo tempo o desprezo mas criou

tambeacutem a revolta contra o desprezo Assim cresce cada vez mais a tensatildeo

que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu 1958 pp 28 e 129)

Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu numa clara aproximaccedilatildeo da

colonizaccedilatildeo agrave violecircncia De facto a violecircncia simboacutelica e real eacute depreendida em muitos

cenaacuterios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial

Vaacuterios satildeo os etnoacutelogos e ideoacutelogos que nas entrelinhas do seu pensamento conferem uma

certa razatildeo a um tal pressuposto Alfred de Vigny por exemplo faz jus a esta violecircncia

simboacutelica ao afirmar sem rodeios que o mundo natildeo europeu eacute um mundo animal mundo dos

baacuterbaros mundo da morte e consequentemente uma ameaccedila ao mundo europeu Partindo

deste postulado deduz-se que para De Vigny a colonizaccedilatildeo era um processo compulsivo de

civilizaccedilatildeo isto eacute uma opccedilatildeo para a vida e tal como diz ldquose se prefere a vida agrave morte tem de

se preferir a civilizaccedilatildeo agrave barbaridaderdquo que natildeo eacute apenas um reino animal e de morte mas

tambeacutem uma ameaccedila agrave civilizaccedilatildeo Em virtude disto conclui De Vigny ldquonenhum povo tem o

direito de permanecer baacuterbaro ao lado das naccedilotildees civilizadasrdquo Depreende-se daqui que a

uacutenica loacutegica vaacutelida eacute a disjuntiva ldquoto be or not to berdquo como diria Shakespeare ldquothat is the

questionrdquo (cfr De Vigny 2003 p87)

Esta apreciaccedilatildeo lacoacutenica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que como De

Vigny tambeacutem considera a colonizaccedilatildeo como uma obra civilizadora uma espeacutecie de direito e

dever das sociedades evoluiacutedas Folliet baseia o seu argumento nas caracteriacutesticas

heterogeacuteneas das sociedades isto eacute nos desniacuteveis existentes entre as sociedades colonizadas e

colonizadoras quer nos planos econoacutemico administrativo cultural social e poliacutetico quer nos

planos cientiacutefico e tecnoloacutegico Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizaccedilatildeo

seria possivelmente o processo de supressatildeo destes desniacuteveis sociais com o auxiacutelio das

sociedades mais desenvolvidas Pelo que a manutenccedilatildeo destes desniacuteveis como forma

hegemoacutenica de controlo ou de manutenccedilatildeo de superioridade foge do acircmbito da colonizaccedilatildeo

para desembocar no campo de acccedilatildeo do colonialismo (cfr Folliet 1932 p 75) Eacute caso para

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dizer que o entendimento teoacuterico de Folliet apresenta uma diferenccedila niacutetida entre a colonizaccedilatildeo

que seria para o autor o sinoacutenimo de civilizaccedilatildeo e o colonialismo que pode ser visto como

processo de exploraccedilatildeo e subjugaccedilatildeo das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades

desenvolvidas

Mas eacute preciso dizer que se do ponto de vista conceitual Folliet deu um tamanho salto

qualitativo propiciador de uma possiacutevel coabitaccedilatildeo paciacutefica entre o colono e o colonizador

aludindo agrave missatildeo civilizadora da colonizaccedilatildeo do ponto de vista praacutetico o discurso follietiano

deu lugar a muitas ambiguidades sobretudo quando o proacuteprio autor considera a colonizaccedilatildeo

como forma mais viaacutevel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em

territoacuterios subdesenvolvidos e valorizaacute-los para o bem-comum da humanidade sem definir as

regras nem as modalidades ou os viacutenculos contractuais para tal Com efeito Folliet considera

um dado assente que ldquoas naccedilotildees economicamente mais evoluiacutedas tecircm o direito de explorar as

riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagensrdquo (Folliet 1932 pp 101 e 268) E

para natildeo camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violecircncia Folliet

defende a necessidade da manutenccedilatildeo das desigualdades entre o colonizador e o colonizado

numa clara opccedilatildeo pelo colonialismo em detrimento da colonizaccedilatildeo contrariando a sua proacutepria

doutrina com o seguinte posicionamento

a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores de modo que o sujeito

colonizado natildeo passe numa vontade de vinganccedila a esquecer a sua

heteronomia absoluta eacute portanto uacutetil e necessaacuterio que as mais vastas

propriedades as mais ricas induacutestrias os mais frutuosos comeacutercios pertenccedilam

aos representantes da raccedila superior (Folliet 1932 p228)

Uma possiacutevel deduccedilatildeo leva-nos por um lado a aferir a inadequaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida

com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analiacuteticos da questatildeo em

estudo e a considerar por outro lado a emergecircncia da categoria de dominaccedilatildeo como outro

elemento caracteriacutestico da estrateacutegia colonial na relaccedilatildeo colonizadocolonizador Este

princiacutepio que eacute em si mesmo o elemento estruturante da tensatildeo e ao mesmo tempo

provocador da dialeacutectica do senhor e do escravo permite-nos um salto para o exame da

possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a Aacutefrica em proveito dos

africanos

5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco

Eacute possiacutevel compatibilizar o instinto de dominaccedilatildeo com a vontade de promover ou de

emancipar Guillaume Sureacutena num movimento contraacuterio ao nosso itineraacuterio apresenta um

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discurso capaz de relanccedilar a discussatildeo No seu artigo intitulado ldquoPsycanalyse et

anticolonialismerdquo Sureacutena lamenta o desperdiacutecio de uma oportunidade que teria resultado num

possiacutevel encontro inter-civilizacional frutiacutefero e que no entanto teraacute sido frustrado pela

vontade dominadora do instinto colonial Os textos surenianos insinuam que do ponto de

vista praacutetico a civilizaccedilatildeo europeia nunca teve qualquer plano de promover nem de

reconhecer as outras civilizaccedilotildees como parceiras importantes para um crescimento conjunto

A sua ambiccedilatildeo foi sempre de conhecer para dominar e subjugar como ficou explicitado nesta

passagem

este encontro de civilizaccedilotildees tatildeo diferentes poderia ter sido o momento de um

intercacircmbio fecundo e de um enriquecimento muacutetuo como lamentou o

antropoacutelogo francecircs Claude Levi-Strauss Mas para a metafiacutesica europeia

desde a Greacutecia antiga o saber foi sempre o equivalente de ldquomaitriserrdquo isto eacute

de dominar As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados

sob os conceitos com partiacuteculas latinas e gregas Os locais geograacuteficos

receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridiacuteculos por

falta de qualquer relaccedilatildeo com os espiacuteritos que os habitavam outrora (Sureacutena

1943 p 4)

Diga-se pois de passagem que foi assim na Greacutecia antiga foi assim ateacute ao seacuteculo XX e

nada justifica que natildeo continue assim nos dias que hatildeo-de vir Mas a questatildeo eacute qual o destino

que o instinto dominador das naccedilotildees pode proporcionar agrave espeacutecie humana Conveacutem recordar

que num passado mais recente da histoacuteria da Europa a colonizaccedilatildeo assumiu o caraacutecter de

dominaccedilatildeo dos povos e dos seus recursos naturais Os europeus sempre mostraram-se mais

interessados com uma partenogeacutenese profunda dos africanos para os submeter mais

facilmente e natildeo para os civilizar De facto desde o iniacutecio do seacuteculo XVII com as grandes

navegaccedilotildees e os descobrimentos das ameacutericas o interesse em explorar e conquistar novas

terras ganhou um enorme vigor na Europa e com ele emergiu tambeacutem a chamada

colonizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de povoamento A primeira forma de colonizaccedilatildeo foi o momento

no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as coloacutenias tinham uma

utilidade meramente lucrativa junto da metroacutepole A segunda acontecia de maneira

espontacircnea mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econoacutemica

com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem aiacute acorria

Muitos estudos mostram que no continente africano este tipo de colonizaccedilatildeo foi sempre

acompanhado de desterramento de zonas araacuteveis ou de pastagem dos autoacutectones bem como

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da supressatildeo dos eventuais direitos que detinham1 Embora referindo-se a um contexto muito

mais preteacuterito ao de Fanon Ceacutesaire Sartre e outros Iva Cabral traz ao de cima a ideia de

dominaccedilatildeo e de exploraccedilatildeo como elementos catalisadores do interesse europeu em Aacutefrica

ajudando assim na desconstruccedilatildeo da hipoacutetese de um possiacutevel plano colonial para o

desenvolvimento de Aacutefrica e dos africanos De facto Iva Cabral afirma que a experiecircncia

ultramarina se resumia na conquista das praccedilas do Norte de Aacutefrica e na fixaccedilatildeo de guarniccedilotildees

e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territoacuterios tropicais de

Aacutefrica natildeo pelo desejo de levar a civilizaccedilatildeo agraves terras longiacutenquas de Aacutefrica mas por causa

dos inuacutemeros privileacutegios econoacutemicos e sociais que tinham os quais incluiacuteam em alguns

casos a sociedade escravocrata de produccedilatildeo no Atlacircntico (cfr 2015 p25)

Este suporte histoacuterico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra

um reforccedilo na posiccedilatildeo de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa

anaacutelise sobre as categorias de dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo como sustentaacuteculos da acccedilatildeo

colonizadora quando num tom autocriacutetico apontando o dedo aos seus irmatildeos europeus

pinta sem complexo nem contemplaccedilotildees o verdadeiro retrato da Europa colonial permitindo

a apreensatildeo da razatildeo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opressatildeo contra os

autoacutectones em territoacuterios colonizados sobretudo em Aacutefrica nestes termos

sabeis muito bem que somos exploradores Sabeis que nos apoderamos do

ouro e dos metais e posteriormente do petroacuteleo dos continentes novos e que

os trouxemos para as velhas metroacutepoles Com excelentes resultados palaacutecios

catedrais capitais industriais [hellip] A Europa empanturrada de riquezas

concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes entre noacutes

lucramos com a exploraccedilatildeo colonial (Fanon 1968 p 17)

Se tomamos a seacuterio as diversas constataccedilotildees dos autores supra mencionados torna-se

insustentaacutevel a hipoacutetese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos

africanos e da Aacutefrica num contexto de exploraccedilatildeo no seu sentido mais radical e mais bruto do

termo isto eacute uma exploraccedilatildeo natildeo soacute de recursos naturais dos territoacuterios colonizados mas

tambeacutem do seu proacuteprio capital humano Num tal contexto aproximar a colonizaccedilatildeo da

civilizaccedilatildeo eacute admitir agrave partida uma ambiguidade semacircntica na compreensatildeo destes dois

conceitos Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade Ceacutesaire diz que a colonizaccedilatildeo natildeo

deve ser confundida com uma empresa filantroacutepica nem com uma nobre vontade de recuar as

fronteiras da ignoracircncia da doenccedila da tirania e ateacute mesmo da propagaccedilatildeo de Deus e muito

1 Cfr httpsptwikipediaogwikicolonizaccedilatildeo Enciclopeacutedia livre 15022017

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menos com uma poliacutetica de extensatildeo dos direitos do povo colonizado como pretendeu o

pedantismo cristatildeo que concebeu o referido equiacutevoco ao enunciar uma equaccedilatildeo eacutetica e

religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria tornando-se assim responsaacutevel pelas consequecircncias

abominaacuteveis decorrentes dos actos coloniais cujas viacutetimas seriam os iacutendios os amarelos e os

negros (cfr Ceacutesaire 1978 pp14-15)

Pode se depreender dos textos de Ceacutesaire que a colonizaccedilatildeo eacute a manifestaccedilatildeo sem precedente

da ganacircncia do aventureiro e do pirata do comerciante e do armador do pesquisador de ouro

e do mercado do apetite e da forccedila tendo por detraacutes a sombra maleacutefica projetada de uma

forma de civilizaccedilatildeo que a dado momento da sua histoacuteria se viu obrigada internamente a

alargar agrave escala mundial a concorrecircncia das suas economias Se natildeo como se pode perceber

que a Franccedila em particular e a Europa em geral conseguissem progressivamente tal como

alude Dino Constantini transformar os princiacutepios democraacuteticos e humanistas tatildeo-reclamados

naquela circunscriccedilatildeo do globo em instrumentos de justificaccedilatildeo de dominaccedilatildeo com regulares

violaccedilotildees nas coloacutenias dando lugar a uma degeneraccedilatildeo sem precedente de uma suposta

ldquomissatildeo civilizadorardquo da Europa em Aacutefrica (cfr Constatini 2008 pp 33 e 53) Para pocircr a nu

o paradoxo de uma civilizaccedilatildeo dita humanista mas na praacutetica contestadora da proacutepria

humanidade no ldquodiferenterdquo Constatini evoca o coacutedigo civil de 1791 que coloca as coloacutenias

fora do direito comum institucionalizando uma cisatildeo social juridicamente fundamentada

entre as populaccedilotildees brancas e negras legitimando ao mesmo tempo a violecircncia primeiro no

plano simboacutelico e posteriormente no plano concreto numa clara declaraccedilatildeo de recusa de

reconhecimento e de integraccedilatildeo dos negros na vida da metroacutepole Eacute preciso dizer que esta

fragmentaccedilatildeo social legitimada pelo coacutedigo civil supra citado serviu de base para a

consagraccedilatildeo de uma nova compreensatildeo do conceito da ldquohumanidaderdquo que reduziria os

direitos humanos a direitos de cidadania reservando-os apenas aos europeus

Eacute o paradoxo no caso da Franccedila de uma Repuacuteblica que nunca deixou de contestar contra a

violecircncia de que tinha sido viacutetima em 1871 cegamente transformada numa autecircntica maacutequina

de violecircncia contra outros humanos sem qualquer fundamento legiacutetimo (cfr Constatini 2008

p 286) Eacute a contradiccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo ocidental defensora de direitos humanos mas que

natildeo hesita de reduzir os outros humanos agrave categoria de sub-humanos eacute a estrateacutegia de um

imaginaacuterio ideoloacutegico que no plano psicoloacutegico confere legitimidade a todas as barbaacuteries dos

colonizadores sobre os colonizados eacute a ironia de uma civilizaccedilatildeo cuja linha de demarcaccedilatildeo

com a barbaridade natildeo eacute expliacutecita Nem mesmo a dignidade humana universal e abstracta

apregoada pelos moralistas desta civilizaccedilatildeo como um dos valores mais sublimes entre os

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humanos em especial pela religiatildeo cristatilde mais consagrada ao serviccedilo do imperialismo do

que de Deus na oacuteptica de Ceacutesaire conseguiu dissimular a violecircncia contra o colonizado

6 Desmistificando o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista erguida na recusa do

ldquodiferenterdquo

Parece ter ficado evidente que a colonizaccedilatildeo se identificou mais com uma dinacircmica de

exploraccedilatildeo dos povos colonizados do que com um projecto de integraccedilatildeo dos indiacutegenas na

metroacutepole Iva Cabral ajuda-nos mais uma vez a perceber como a loacutegica do lucro presidiu a

todas as estrateacutegias e legislaccedilotildees coloniais Numa perspectiva simplesmente histoacuterica a autora

apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos

enunciados de Fanon que concedem sentido e substacircncia a este trabalho Com efeito Iva

Cabral afirma que as decisotildees poliacuteticas do regime colonial criavam condiccedilotildees para que os

filhos da meacutedia e baixa nobreza portuguesa neste particular mercadores e aventureiros

vislumbrassem no territoacuterio receacutem-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto

mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as

mercadorias daiacute advindas poderiam trazer (cfr Cabral 2015 p27)

Eacute loacutegico conjecturar que num tal jogo de lucro faacutecil que natildeo podia natildeo contar com os

recursos naturais e com o capital humano africanos como meios ideais para minimizar os

custos e maximizar os lucros a preocupaccedilatildeo pela integraccedilatildeo dos africanos no clube dos

evoluiacutedos e emancipados seria uma espeacutecie de atentado ao espiacuterito de negoacutecio Este postulado

encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da

recusa do ldquooutrordquo o diferente feito uma ameaccedila para o ldquonoacutesrdquo ideologicamente construiacutedo e

consagrado como o uacutenico paradigma possiacutevel de humanidade na seguinte declaraccedilatildeo

havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se

recusaram no seacuteculo de Colombo em reconhecer seus semelhantes homens

degradados que povoavam o novo mundo [hellip] Era impossiacutevel fixar um

instante do olhar no selvagem sem ler o anaacutetema escrito natildeo digo somente na

sua alma mas ateacute na forma exterior do seu corpo (De Maistre Joseph Apud

Ceacutesaire 1978 p 33)

Esta declaraccedilatildeo deixa transparecer uma inferecircncia loacutegica quase irrefutaacutevel de que o referido

anaacutetema dos indiacutegenas soacute natildeo se consumou ao extermiacutenio na perspectiva do colono por

razotildees de iacutendole puramente utilitarista como se depreende nesta passagem do jaacute citado autor

nesta transcriccedilatildeo de Ceacutesaire

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sob o ponto de vista de selecccedilatildeo consideraria deploraacutevel o desenvolvimento

numeacuterico [hellip] dos elementos amarelos e negros que seriam de eliminaccedilatildeo

difiacutecil Se todavia a sociedade futura se organizar numa base dualista com

uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raccedila inferior confiada agrave

mais grosseira matildeo-de-obra eacute possiacutevel que este uacuteltimo papel incumba aos

elementos amarelos e negros Neste caso aliaacutes natildeo seria um embaraccedilo mas

uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre Joseph Apud Ceacutesaire

1978 p 33)

Fica desvendado nestes dizeres do De Maistre o retrato do narcismo nihilista de muitos

artistas da europa colonial consubstanciado na ideia e na pretensatildeo de uma raccedila superior que

se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contaacutegio Eacute o drama de uma Europa

feita refeacutem pelo seu proacuteprio mito de pureza civilizacional uniracial um mito enganoso

pretensioso e pernicioso que potildee em causa a aspiraccedilatildeo de uma poliacutetica enquanto exigecircncia de

construccedilatildeo de uma comunidade humana na qual a consciecircncia da diversidade dos humanos e a

necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condiccedilatildeo ldquosine qua nonrdquo da

prosperidade e da sobrevivecircncia da proacutepria espeacutecie humana Lamentavelmente este

entendimento da poliacutetica como espaccedilo intermediaacuterio onde se joga a liberdade e interacccedilatildeo dos

humanos enquanto seres iguais e autoacutenomos eacute constantemente posto em causa como diz

Martha Nussbaum pelos apologistas deste mito que em todas as sociedades alimentam uma

falsa convicccedilatildeo de pureza etnocecircntrica ou ldquoclassececircntricardquo geradora de violecircncia contra os

excluiacutedos (cfr Nussbaum 2010 p 48) comprometendo a possibilidade de fazer da poliacutetica o

lugar por excelecircncia da profundidade humana

Para compreender as mais profundas motivaccedilotildees que levam os indiviacuteduos a um tal instinto

nihilista Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi que examina a possiacutevel

conexatildeo existente entre os domiacutenios psicoloacutegico e poliacutetico Com efeito Gandhi concluiacutera que

os desejos gananciosos o instinto de agressatildeo e a ansiedade narcisista satildeo empecilhos para a

edificaccedilatildeo de uma verdadeira civilizaccedilatildeo humana Pelo que a luta poliacutetica pela construccedilatildeo de

uma civilizaccedilatildeo humana assente nos pilares da liberdade empatia e igualdade deve ser

precedida de uma luta contra o medo do outro a ganacircncia e o instinto de agressatildeo narcisista

intriacutensecos em cada indiviacuteduo (cfr Nussbaum 2010 pp 48-50) E se partimos da hipoacutetese de

que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multidotildees ao oacutedio ao genociacutedio e agrave

instrumentalizaccedilatildeo dos ldquooutrosrdquo tidos como da raccedila inferior ou sub-humana ocorre mais em

contextos de pouca capacidade criacutetica ou de uma intelectualidade materialista ou

ldquoventriacuteloquerdquo usando a expressatildeo de Fabien Eboussi Boulaga isto eacute de uma intelectualidade

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corrupta desprovida de princiacutepios eacuteticos e humanistas forccediloso eacute concluir que por mais que a

Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizaccedilatildeo dos africanos natildeo teria condiccedilotildees

efectivas de o fazer ante a sua ganacircncia e arrogacircncia eurocentristas encorajadas por uma

jactacircncia ostensiva feito veneno instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do

lucro cuja solidificaccedilatildeo se daacute com o asselvajamento dos africanos em geral e dos negros em

particular

Eacute precisamente este instinto egoiacutesta e materialista que transparece na maneira como Ernest

Renan concebe o colonialismo Para ele o colonialismo eacute uma necessidade poliacutetica de

primeira ordem eacute a conquista de um paiacutes de raccedila inferior pela raccedila superior que se instala na

coloacutenia atraveacutes de um governo Trata-se na perspectiva deste autor de algo de extrema

normalidade que nada tem de chocante A colonizaccedilatildeo soacute se torna chocante se e somente se

as conquistas forem entre raccedilas iguais Assim se por um lado estas conquistas devem ser

desencorajadas e censuradas entre raccedilas iguais elas devem ser encorajadas entre as raccedilas

desiguais porque a regeneraccedilatildeo ou degeneraccedilatildeo de raccedilas inferiores pelas raccedilas superiores

deve estar na ordem providencial da humanidade ldquoRegere imperio populosrdquo eis a nossa

vocaccedilatildeo A natureza criou uma raccedila de trabalhadores industriais ndash eacute a raccedila chinesa uma de

jornaleiros agriacutecolas ndash eacute a raccedila negra [hellip] uma raccedila de senhores e de soldados eacute raccedila

europeiardquo Nesta oacuteptica a reduccedilatildeo desta nobre raccedila agrave classe trabalhadora em condiccedilotildees

degradantes como as dos negros e dos chineses gera revolta (cfr Renan 1967 pp 69-70) O

mais perplexo em tudo isso eacute que Renan numa enorme ousadia intelectual natildeo se tenha

inibido do seu instinto de superioridade racial ao defender de forma paradoxal numa obra

intitulada ldquoLa Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la Francerdquo a seguinte convicccedilatildeo

noacutes esperamos natildeo a igualdade mas sim a dominaccedilatildeo O paiacutes de raccedila

estrangeira deveraacute voltar a ser um paiacutes de servos de jornaleiros agriacutecolas ou

de trabalhadores industriais Natildeo se trata de suprimir as desigualdades entre

os homens mas de as ampliar e as converter em lei (Renan 1967 p69-70)

Uma visatildeo demasiado materialista e narcisista que mereceu num tom iroacutenico a criacutetica de

Ceacutesaire que qualifica o colono muito distinto muito humanista e muito cristatildeo do seacuteculo XX

como uma autecircntica encarnaccedilatildeo de Hitler Eacute o retrato do colono que traz em si segundo

Ceacutesaire ldquoum Hitler que se ignora que vive nele e que eacute o seu demoacutenio e se o vitupera eacute por

falta de loacutegica ou pelo instinto de afinidade racial pois os factos atestam que o que muitos

deles natildeo perdoam a Hitler natildeo eacute o crime em si nem tatildeo-pouco o crime contra a humanidade

mas o crime contra o homem branco a humilhaccedilatildeo do homem brancordquo Assim natildeo restam

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duacutevidas de que do ponto de vista do seu desenvolvimento socio-histoacuterico a colonizaccedilatildeo eacute

uma suprema barbaacuterie um nazismo pouco expressivo por ser aplicado aos negros e aos aacuterabes

de Aacutefrica Mas na sua essecircncia um tal narcisismo constitui a negaccedilatildeo mais eloquente do

humanismo universal e formal reivindicado por Fanon e ao mesmo tempo uma clara

renuacutencia dos ideais filosoacuteficos morais e cristatildeos de uma civilizaccedilatildeo decaiacuteda (cfr Ceacutesaire

1978 pp 18-19)

Estaacute assim denunciada a patologia de uma civilizaccedilatildeo que fundou a sua filosofia de acccedilatildeo na

estigmatizaccedilatildeo do ldquodiferenterdquo e na fragmentaccedilatildeo do mundo em puro e impuro Eacute a construccedilatildeo

patoloacutegica usando a expressatildeo da Nussbaum de um ldquonoacutesrdquo que se julga imaculado e de um

ldquoelesrdquo preconceitualmente denotado vil perigoso e contagioso Esta denunciada patologia

obriga-nos a retomar algumas das questotildees supra referenciadas tais como eacute possiacutevel pensar a

missatildeo civilizadora da Europa colonial num contexto de clara recusa da alteridade ou de

reconhecimento do africano como sujeito autoacutenomo dotado de razatildeo e de humanidade

Como compreender uma missatildeo civilizadora assente numa loacutegica social do segundo excluiacutedo

isto eacute numa loacutegica social fracturante e nihilista Seraacute que Aacutefrica ao engajar-se na luta pela

descolonizaccedilatildeo teraacute efectivamente recusado o projecto de desenvolvimento que configurava

a missatildeo civilizadora da potecircncia colonial Vamos no proacuteximo ponto tentar encontrar alguns

elementos de resposta a estes questionamentos em certa medida jaacute respondidos

7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta uma antiacutetese agrave pretensatildeo colonial da emancipaccedilatildeo

da Aacutefrica dos africanos

A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta da sociedade ou seja a bipolarizaccedilatildeo social assente no

princiacutepio da desigualdade entre as cidades dos homens isto eacute dos europeus e os bairros

indiacutegenas ou dos selvagens categorias sociais criadas pelo proacuteprio colono contradiz agrave

partida qualquer pretensatildeo colonial de reconhecimento e integraccedilatildeo da Aacutefrica e dos africanos

no universalismo humano (cfr Fanon 1968 p 27 ou 2002 p 453) Aliaacutes a estrutura social

montada pelo colono determinava ldquoa priorirdquo que as relaccedilotildees entre os habitantes dos dois

mundos fossem de exploradores e explorados dominadores e dominados opressores e

oprimidos superiores e inferiores homens e sub-homens Conveacutem no entanto sublinhar que

toda a violecircncia colonial tinha como grande propoacutesito a criaccedilatildeo de um ambiente de medo e

inibiccedilatildeo do colonizado no intuito de facilitar a dinamizaccedilatildeo da exploraccedilatildeo e a pilhagem de

recursos naturais num contexto inovador de mercantilismo que muito precisava do concurso

forccedilado dos proacuteprios indiacutegenas Para dar conta do dinamismo interno de uma tal

compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta Fanon escreve

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em sua zona o colono potildee em marcha o movimento de dominaccedilatildeo de

exploraccedilatildeo e de pilhagem Na outra zona a coisa colonizada oprimida e

espoliada alimenta como pode esse movimento [hellip] as mateacuterias-primas vatildeo

e vecircm legitimando a presenccedila do colono Enquanto o acocorado mais morto

do que vivo o colonizado se eterniza num sonho [hellip] o colono faz histoacuteria

Sua vida eacute uma epopeia uma odisseia (Fanon 1968 p 38 ou 2002 p 463)

Como se pode depreender mais uma vez este maniqueiacutesmo eacute em si mesmo uma antiacutetese de

qualquer projecto civilizador natildeo soacute pelo facto de se constituir num factor provocador de

desprezo e ignomiacutenia dos colonizados mas tambeacutem e sobretudo por ser um factor

desestabilizador suscitador de oacutedio e de violecircncia entre os habitantes das duas zonas Cocircnscio

desta tensatildeo latente e subjacente a esta configuraccedilatildeo geopoliacutetica opressiva o colono interpocircs

como deduz Fanon uma estrutura fronteiriccedila forte e intimidatoacuteria capaz de assegurar a

atmosfera de submissatildeo e de inibiccedilatildeo dos explorados tal como se pode ler

o mundo colonizado eacute um mundo cindido em dois A linha divisoacuteria a

fronteira eacute indicada pelos quarteis e delegacias de poliacutecia Nas coloacutenias o

interlocutor legal e institucional do colonizado o porta-voz do colono e do

regime de opressatildeo eacute o gendarme ou o soldado Nas sociedades capitalistas o

ensino religioso ou leigo a formaccedilatildeo de reflexos morais [hellip] criam em torno

do explorado uma atmosfera de submissatildeo e inibiccedilatildeo que torna

consideravelmente mais leve a tarefa das forccedilas da ordem [hellip] O

intermediaacuterio do poder utiliza uma linguagem de pura violecircncia [hellip] natildeo

torna mais leve a opressatildeo natildeo dissimula a dominaccedilatildeo Exibe-as manifesta-

as com a boa consciecircncia das forccedilas da ordem [hellip] leva a violecircncia agrave casa e

ao ceacuterebro do colonizado (Fanon 1968 p 28 ou Fanon 2002 pp 453-454)

Este e outros cenaacuterios permitem situar a originalidade do instinto colonial no princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica e social e no de desigualdade econoacutemica entre duas espeacutecies a

branca e a negra ou aacuterabe pois a patologia narcisista de superioridade racial estruturou no

imaginaacuterio individual e colectivo do colonizador a convicccedilatildeo de que ser branco significa ser

superior e consequentemente rico e ser negro ou aacuterabe africano eacute o oposto disto (cfr Fanon

1968 p 29 ou Fanon 2002 p 455) Este maniqueiacutesmo que toma balanccedilo no plano simboacutelico

no qual o branco remete agrave noccedilatildeo do bem do belo e do bom e o negro o seu oposto

desembarca no plano concreto com reflexos inofuscaacuteveis na configuraccedilatildeo geograacutefica da

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estrutura social montada pelo regime colonial A cidade do colono eacute uma cidade vida

enquanto no bairro do colonizado se sobrevive milagrosamente a cidade do colono eacute segura

mas no bairro indiacutegena a inseguranccedila eacute o proacuteprio cartatildeo-de-visita a cidade do colono eacute uma

cidade soacutelida toda de pedra e ferro iluminada asfaltada as ruas limpas lisas sem buracos

mas o bairro indiacutegena eacute o oposto disso Na cidade do colono os habitantes estatildeo

permanentemente saciados e repletos de boas coisas Em contrapartida o bairro indiacutegena ou

negro eacute um lugar mal-afamado e povoado eacute o bairro de homens mal-afamados aiacute nasce-se

natildeo importa como nem onde e morre-se natildeo importa a onde nem de quecirc Eacute um mundo sem

intervalos ou seja os homens estatildeo uns sobre os outros eacute o mundo dos famintos dos

analfabetos e dos doentes e indigentes (cfr Fanon 1968 p 28-29 ou Fanon 2002 pp 453-

454)

O mundo colonial diz Fanon forjou um povo sem alma e sem referecircncia originaacuterias O

colono criou categorias sub-humanas para destruir a autoestima dos negros e dos aacuterabes de

Aacutefrica Fez deles uma espeacutecie de quintessecircncia do mal considerando-os como seres

impermeaacuteveis agrave moral e agrave eacutetica com ausecircncia e negaccedilatildeo de valores mal absoluto elementos

corrosivos que destroem tudo o que se aproxima deles elementos deformadores que

desfiguram tudo o que se refere agrave esteacutetica ou agrave moral depositaacuterios de forccedilas cegas (cfr

Fanon 1968 p 31 ou Fanon 2002 p 456) Esta convicccedilatildeo levou M Meyer a afirmar em

plena Assembleia Nacional Francesa que

[hellip] natildeo era necessaacuterio prostituir a Repuacuteblica fazendo penetrar nela o povo

argelino Os valores com efeito se tornam irreversivelmente envenenados e

pervertidos desde que entram em contacto com a populaccedilatildeo colonizada Os

costumes do colonizado suas tradiccedilotildees [hellip] sobretudo seus mitos satildeo a

proacutepria marca desta indigecircncia desta depravaccedilatildeo constitucional (Fanon

1968 p31 ou Fanon 2002 p 456)

Este discurso forjado no seu espaccedilo existencial levou Ceacutesaire (1978 p17) agrave conclusatildeo de que

a Europa colonial se esmerou antes de mais em descivilizar primeiro o proacuteprio colonizador

embrutececirc-lo degradaacute-lo despertaacute-lo para os instintos ocultos para a cobiccedila para a violecircncia

para o oacutedio racial e para o relativismo moral e posteriormente descivilizar o colonizado

Todo este quadro legitima sobremaneira o anseio dos africanos pela liberdade e pelo

reconhecimento da sua dignidade Para desmascarar o argumento segundo o qual o

engajamento dos africanos na luta pela descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica teraacute sido uma espeacutecie de

recusa do desenvolvimento do Continente africano pelos africanos Ceacutesaire passa em revista

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e em jeito de balanccedilo o vasto fresco dos horrores da dominaccedilatildeo colonial em particular a

francesa em Aacutefrica deixando claro que nenhum desenvolvimento vale mais do que a

dignidade humana e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos povos Apoiando

o seu raciociacutenio nos factos Com efeito Ceacutesaire afirma que a equaccedilatildeo mais ajustada agrave

realidade vivida eacute colonizaccedilatildeo igual coisificaccedilatildeo e natildeo desenvolvimento porque no fim de

contas o fiel da balanccedila pende mais para prejuiacutezos do que para ganhos tal como consta do

longo extrato que extraiacutemos do texto de Ceacutesaire

falam-me de progressos de realizaccedilotildees de doenccedilas curadas de niacuteveis de vida

elevados acima de si proacuteprios eu falo de sociedades esvaziadas de si

proacuteprias de culturas espezinhadas de instituiccedilotildees minadas de terras

confiscadas de religiotildees assassinadas de magnificecircncias artiacutesticas

aniquiladas de extraordinaacuterias possibilidades suprimidas Lanccedilam-me agrave cara

factos estatiacutesticas quilometragens de estradas de canais de caminhos-de-

ferro mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano falo

dos que no momento em que escrevo cavam agrave matildeo o porto de Abidjan falo

de milhotildees de homens arrancados aos seus deuses agrave sua terra aos seus

haacutebitos agrave sua vida agrave danccedila agrave sabedoria falo de milhotildees de homens a quem

inculcaram sabiamente o medo o complexo de inferioridade o tremor a

genuflexatildeo o desespero o servilismo Laccedilam-me em cheio aos olhos

toneladas de algodatildeo ou cacau exportado hectares de oliveiras ou de vinha

plantadas mas eu falo de economias naturais de economias harmoniosas e

viaacuteveis de economias adaptadas agrave condiccedilatildeo do homem indiacutegena

desorganizadas de culturas de subsistecircncias destruiacutedas de subalimentaccedilatildeo

instalada de desenvolvimento agriacutecola orientada unicamente para benefiacutecio

das metroacutepoles de rapinas de produtos de rapinas de mateacuterias-primas

Ufanam-se de abusos suprimidos eu tambeacutem falo de abusos mas para dizer

que aos antigos ndash muito reais ndash sobrepuseram outros muito detestaacuteveis

Falam-me de tiranos locais trazidos agrave razatildeo poreacutem constato que regra geral

eles fazem muito boa parelha com os novos e que destes aos antigos e vice-

versa se estabeleceu em detrimento dos povos um circuito de bons serviccedilos

e cumplicidade Falam-me de civilizaccedilatildeo eu falo de proletarizaccedilatildeo e de

mistificaccedilatildeo [hellip] Cada dia que passa cada negaccedilatildeo de justiccedila cada carga

policial cada reclamaccedilatildeo operaacuteria afogada em sangue cada escacircndalo

abafado cada expediccedilatildeo punitiva cada poliacutecia e cada miliciano fazem-nos

sentir o preccedilo das nossas velhas sociedadesrdquo (Ceacutesaire 1978 pp25-26)

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Disso decorre que a essecircncia do colonialismo tal como realccedilou Maacuterio Pinto de Andrade

reside em dois aspectos no ldquoregime de exploraccedilatildeo desenfreada de imensas massas humanas

que encontra a sua legitimidade e sustentabilidade na violecircnciardquo e na ldquoforma moderna de

pilhagemrdquo (cfr Ceacutesaire Aimeacute 1978 p7) Assim se os niacuteveis cientiacuteficos tecnoloacutegicos e

organizacionais ostentados pela Europa colonial lhe conferem a todos os tiacutetulos um estatuto

de uma civilizaccedilatildeo o mesmo jaacute natildeo se daacute do ponto de vista da sua relaccedilatildeo com as coloacutenias

Por esta razatildeo Ceacutesaire chamou-lhe de civilizaccedilatildeo decadente enferma e moacuterbida por se ter

revelado incapaz de resolver os grandes problemas que criou nomeadamente o do

proletariado e o colonial Ouccedilamos Ceacutesaire a respeito

ldquouma civilizaccedilatildeo que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu

funcionamento suscita eacute uma civilizaccedilatildeo decadente Uma civilizaccedilatildeo que

prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais eacute uma civilizaccedilatildeo

enferma Uma civilizaccedilatildeo que trapaceia com os seus princiacutepios eacute uma

civilizaccedilatildeo moacuterbidardquo (Ceacutesaire 1978 p13)

Teratildeo Fanon Ceacutesaire Sartre e outros exagerado na sua criacutetica do colonialismo

Possivelmente sim Contudo a larga unanimidade existente sobre o assunto permite-nos

atribuir uma certa objectividade e verdade histoacuterica a muitos dos enunciados que nos satildeo

dados a apreciar Reneacute Grousset (1954 p 76) quase duas deacutecadas antes de Ceacutesaire

analisando o percurso evolutivo das civilizaccedilotildees constatava que nenhuma civilizaccedilatildeo

apareceu logo no iniacutecio tatildeo promissora e tatildeo ameaccedilada como a civilizaccedilatildeo ocidental A sua

ameaccedila em seu entender natildeo vem apenas da espada nuclear vem tambeacutem e sobretudo do

egoiacutesmo e do materialismo que inspiram os povos que a comandam Estaacute portanto evidente

que o regime colonial europeu foi essencialmente uma conquista assente em fins de

exploraccedilatildeo dos indiacutegenas Esta ideia ceacutesairiana de uma Europa exploradora no sentido

accedilambarcador do termo aparece tambeacutem no ldquoLe geacutenociderdquo no qual Jean-Paul Sartre eacute

perentoacuterio em afirmar que a colonizaccedilatildeo natildeo eacute uma mera conquista como foi a anexaccedilatildeo de

Alsace-Lorraine pela Alemanha na sua verdadeira natureza a colonizaccedilatildeo eacute um acto de

genociacutedio cultural Numa ldquodeacutemarcherdquo fenomenoloacutegica Sartre mostra que a colonizaccedilatildeo natildeo

acontece sem a liquidaccedilatildeo sistemaacutetica de todas as caracteriacutesticas particulares de sociedades

nativas e simultaneamente sem a recusa da sua integraccedilatildeo massiva na metroacutepole e sem a

negaccedilatildeo do seu acesso agraves vantagens da metroacutepole

Concordamos assim com Sartre que a colonizaccedilatildeo eacute um sistema de negoacutecio que requer

inevitavelmente a existecircncia de um sub-proletariado nacional forccedilado a trabalhar por

miseraacuteveis salaacuterios Vale dizer que no sistema colonial a coloacutenia teve uma funccedilatildeo

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instrumental ou seja foi usada para vender as suas mateacuterias-primas e seus produtos agriacutecolas

a um preccedilo irrisoacuterio agrave metroacutepole Em retorno a metroacutepole vendeu os bens manufaturados agraves

coloacutenias a preccedilo do mercado Este negoacutecio que contou com a comparticipaccedilatildeo da burguesia

nacional condenou os africanos a viverem num submundo de miseacuteria como negros fantasmas

continuamente recordados da sua condiccedilatildeo de sub-humanos (cfr Sartre 1967 p39)

Estaacute visto que a colonizaccedilatildeo partindo da efiacutegie aqui apresentada eacute um projecto oposto aos

ideais civilizacionais tal como alude Ceacutesaire ao desmistificar a tentativa de atribuir ao

processo de colonizaccedilatildeo uma intenccedilatildeo civilizadora A maldiccedilatildeo mais comum nesta mateacuteria eacute

deixarmo-nos iludir de boa-feacute por uma hipoacutetese colectiva e haacutebil em enunciar mal os

problemas para melhor justificar as soluccedilotildees que se lhes aplicam conferindo facilmente

legitimidade a um conjunto de praacuteticas abominaacuteveis atribuindo-lhes a categoria de um mal

necessaacuterio com vista a um fim nobre ndash a civilizaccedilatildeo dos selvagens (Ceacutesaire 1978 p14)

Conclusatildeo

A reflexatildeo feita nas paacuteginas anteriores permitiu-nos deduzir a existecircncia de uma possiacutevel

analogia entre a colonizaccedilatildeo e a civilizaccedilatildeo do ponto de vista teoacuterico conceitual Mas do

ponto de vista praacutetico tudo natildeo passou de uma simples ilusatildeo Uma ilusatildeo cimentada pela

foacutermula do pedantismo cristatildeo que procurou atribuir uma presumiacutevel missatildeo civilizadora ao

fenoacutemeno de colonizaccedilatildeo ao estabelecer a equaccedilatildeo cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria A anaacutelise mostrou que do ponto de vista doutrinal e factual

uma tal equaccedilatildeo eacute insustentaacutevel porquanto a colonizaccedilatildeo se assumiu mais como violecircncia

contra os povos colonizados e exploraccedilatildeo dos seus recursos naturais e da sua forccedila de trabalho

e nunca como projecto colonial de emancipaccedilatildeo dos povos colonizados Esta conclusatildeo pode

ter sido previsiacutevel mas como foi referido no princiacutepio deste trabalho esta anaacutelise sobre o

colonialismo encontra a sua utilidade neste texto na medida em que se nos apresenta como

movimento historicizante que constitui a mateacuteria e a forma que nos permitem vislumbrar o

horizonte teleoloacutegico da descolonizaccedilatildeo enquanto proposta de emergecircncia do novo nova

realidade novos seres e novo continente uma espeacutecie de antiacutetese do mundo colonial

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Obras do autor

1 FANON Frantz Frantz Fanon Ouevres Paris Eacuteditions La Deacutecouverte 2011

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2 ----------------------- Les damneacutes de la terre Paris Eacuteditions la Deacutecouverte (Preacuteface de Jean-Paul Sartre) 1961

3 ----------------------- Os condenados da terra Rio de Janeiro ndash Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Traduccedilatildeo de Joseacute

L de Melo 1968

Outras obras

1 BOURDIEU Pierre Sociologie de lrsquoAlgerie Paris PUF 1958

2 BURAWOY Michael Marxismo encontra Bourdieu Campinas Editora Unicamp 2010

3 CABRAL Iva A Primeira Elite Colonial Atlacircntica Dos ldquohomens honrados broncosrdquo de Santiago agrave

ldquonobreza da terrardquo Finais do seacutec XV ndash iniacutecio do seacutec XVII Cabo Verde Pedro Cardoso Livraria 2015

4 CEacuteSAIRE Aimeacute Discurso sobre a colonizaccedilatildeo Lisboa Livraria Saacute da Costa Editora 1978

5 CONSTATINI Dino Mission civilisatrice le role de lrsquohistoire colonial dans la construction de lrsquoidentiteacute

politique franccedilaise Paris Eacuteditions de la Deacutecouverte 2008

6 DE VIGNY Alfred ldquoCritique des anedotes historiques sur Alger de Jean-Toussaint de Merlerdquo In Bancel

Nicolas Blanchard Pascal Verges Franccediloise La Republique colonial Paris Albin Michel Coll Pluriel 2003

7 FOLLIET Joseph Le droit de colonisation Eacutetude de morale sociale et international Lyon GNeveu 1932

8 GIRARD Reneacute La Violence et le Sacreacute Paris Grasset reacuteeacute Pluriel 1972

9 GROUSSET Reneacute Lrsquohomme et son histoire Paris Plon 1954

10 NUSSBAUM C Martha Not For Profit Why Democracy Needs The Humanities Oxford Princeton

University Press 2010

11 RENAN Ernest La Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la France Paris Union Geacuteneacuterale drsquoEacuteditions 1967

12 SARTRE Jean-Paul ldquoLe Genociderdquo In Les Temps modernes nordm259 Gallimard Decembre 1967

13 SEMELIN Jacques Purifier et Deacutetruir Usages politiques de massacres et geacutenocides Paris Seuil 2005

14 SENGHOR Leopold Sedar (1964) On African Socialism London Pall Mall Press 1964

Artigos e Dicionaacuterios

1 BOURDIEU Pierre (1987) Le Sens Commum Chose dites In Fildwork in philosophy Paris Les Eacuteditions de

Minuit

2 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea Academia das Ciecircncias de Lisboa Editorial Verbo 2001

3 Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura Editorial Verbo Lisboa nordm5

4 OLUacuteFEacuteMI Taacuteiwo (2004) ldquoPost-Independence African Political Philosophyrdquo In Kwasi Wiredu A

Companion to African Philosophy Cornwall MPG Books Ltd Bodmim 2004 pp 243-260

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PEDAGOGIA laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO

LIBERAL EM AacuteFRICA

INAacuteCIO VALENTIM a

inaciovalentim82gmailcom

Resumo

Nada eacute tatildeo enobrecedor como ensinar e aprender A nobreza reside na consciecircncia estaacute no

encontro com o outro estaacute na disponibilidade que eacute criada para si e para o outro e estaacute

sobretudo no comprometimento que se tem consigo mesmo e com o outro O outro como o

rosto como memoacuteria e como um ldquooutro eurdquo Isto eacute o que ensinar e aprender nos oferece e nos

sugere Ter a noccedilatildeo de que todo o acto de ensinar eacute essencialmente um processo de aprender

de aprendizagem e de dar a possibilidade de interrogar-se sobre o aprendido e sobre

aprendizagem O objectivo deste artigo eacute de reflectir sobre a hermenecircutica do aprender o que

chamamos aprender e como acontece

Palavras-chave aprender comprometimento inacessibilidade responsabilidade fazer e

ensinar

Abstract

Nothing is so ennobling as teaching and learning The nobility lies in its consciousness is in

the encounter with the other it is in the availability that is created for itself and to the other

and itrsquos mainly in the compromise that it has with oneself and with the other The other as the

face as memory and as other selfrdquo This is what teaching and learning offers and suggests to

us Have the notion that the whole act of teaching is essentially a process of learning learning

and giving the possibility to question them about the learned and about learning The aim of

this article is to reflect on the hermeneutics of learning what we learn and how it happens

Keywords learning commitment inaccessibility responsibility doing and teaching

a Doutor em Filosofia pela Universidade Carlos III de Madrid Professor e Investigador Titular Director Geral do

Instituto Superior Politeacutecnico Sol Nascente Huambo - Angola wwwispsnorg

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O termo laquoaprenderraquo oferece agrave primeira vista com uma leitura muito atenta uma ideia muito

escorregadia apresenta algo de inacessibilidade algo que nos passa entre os dedos como

aacutegua como liacutequido como vento como espiacuterito Enfim como algo que natildeo nos eacute dado

aprisionar fiacutesica e mentalmente No entanto acreditamos que aprendemos e acreditamos que

podemos fazer com que outras pessoas aprendam connosco ou atraveacutes de noacutes e natildeo hesitamos

muitas vezes em oferecer-nos como instrumento de aprendizagem para os outros Apesar de

ser um termo muito duro no sentido de responsabilidade esta responsabilidade acaba por estar

ou ficar diluiacuteda na confusatildeo entre o aprender e o fazer entre o aprender e o ensinar entre o

aprender e o saber porque confundimos ou fundimos as duas perspectivas antecipando

precisamente o acto do segundo que eacute dirigido ou orientado para o aprendiz Enquanto

mecanismo que conduz agrave aquisiccedilatildeo do saber a aprendizagem ldquoopotildee-se ao ensinamento ou ao

ensino cujo objectivo eacute de dispensar conhecimentos e saberesrdquo Mas esta oposiccedilatildeo natildeo eacute de

ruptura porque natildeo pode haver aprendizagem senatildeo por intermeacutedio do ensino ou de quem

ensina

O aprender-se bem eacute reflectido sobretudo a partir da acccedilatildeo enquanto resultado e resposta do

aprender natildeo obstante enquanto fenoacutemeno o aprender eacute um acto de natureza invisiacutevel e

quase que inapreensiacutevel e intocaacutevel A sua visibilidade soacute eacute passiacutevel para o proacuteprio sujeito

isto eacute para o aprendiz ou no aprendiz Dificilmente eu como promotor ou enquanto promotor

de aprendizagem posso dizer com exactidatildeo o momento da captaccedilatildeo do sujeito do elemento

aprendido posso supor atraveacutes de perguntas que faccedilo ou que tenho que responder dele mas

apenas eacute uma suposiccedilatildeo Eacute pois esta complexidade que vai tambeacutem fazer com que o acto de

aprender seja acima de tudo um acto divino um momento ou uma instacircncia do natildeo humano

Soacute aquele que diviniza-se chega a aprender consegue aprender e supera com isso a primeira

instacircncia do humano E divinizar-se significaria ter um autocontrolo sobre os impulsos do

saber os impulsos desenfreados do desejo de aprender e de assumir-se como o promotor de

aprendizagem Mas este processo soacute eacute possiacutevel com um povo ou com gente que agrave partida natildeo

rejeita preliminarmente a filosofia soacute eacute possiacutevel com gente que natildeo eacute dirigida e que natildeo eacute

paciente dos meacutedicos do povo como diria Nietzsche O aprender filosoacutefico apenas acontece

com e para gente satilde os ldquoenfermos que se contactam com a filosofia ficam ainda mais

enfermosrdquo porque de certa forma a filosofia soacute pode salvar e curar quem jaacute estaacute curado

quem reuacutene requisitos para a cura E foi assim que os gregos conseguiram fazer da filosofia a

sua proacutepria casa o seu mundo o seu lugar apesar de a filosofia vir de outros lugares virou a

casa dos gregos tornou-se ou transformou-se no elemento da definiccedilatildeo essencialmente grego

Os gregos souberam pegar naquilo que os outros povos abandonaram e fizeram dele o mais

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alto elemento do saber precisamente porque souberam utilizar laquoa arte de aprender

produtivamenteraquo utilizando para este efeito os seus saacutebios Contrariamente aos outros povos

que laquotecircm santos os gregos tecircm saacutebiosraquo diz Nietzsche e satildeo estes saacutebios que vatildeo fazer com

que a filosofia tenha um sentido profundo e original para o grego justificando assim a sua

aposta a sua protecccedilatildeo e a utilidade da sua futilidade

Apesar dos gregos terem podido trazer a filosofia das outras paradas orientais como diz

Nietzsche natildeo tiveram nenhuma moda que lhes pudesse ajudar ou facilitar as coisas Tiveram

que inventar a sua proacutepria imaginaccedilatildeo tiveram que filosofar com laquouma puberdade madura

onde brotava a fogosa alegria de uma vitoriosa e valente idade viril1raquo Em outras palavras

tiveram que superar a idade da infacircncia humana a infacircncia social e tiveram que se fazer

responsaacuteveis Esta eacute tambeacutem uma das condiccedilotildees de aprendizagem ou do aprender fazer-se

responsaacutevel emancipar-se e dar conta de si e dos outros laquopois quanto mais fazemos sobre as

coisas mais pensamos sobre elas ou mais desenvolvemos pensamentos sobre elasraquo O nosso

aprender estaacute relacionado com um espaccedilo concreto com um lugar com uma referecircncia com

um encontro-chegada-regresso No fundo o nosso aprender estaacute relacionado com uma histoacuteria

concreta ou com uma meta-histoacuteria estaacute relacionado com um padratildeo que nos vai dizer que as

condiccedilotildees para aprender exigem abc A tarefa de aprender natildeo eacute compatiacutevel com o tempo

apressado com o tempo que se assimila ao material O aprender eacute como ler um livro que estaacute

destinado a

[hellip] leitores tranquilos a homens que ainda natildeo foram arrastados pela vertiginosa pressa

da nossa agitada era e que ainda natildeo sentem o prazer idolatra quando olham para baixo das

sua rodas [hellip] quer dizer Haacute poucos homens Estes ainda natildeo estatildeo habituados a

estabelecer o valor de cada coisa segundo a poupanccedila ou os gastos do tempo estes laquoainda

tecircm temporaquo ainda lhes eacute permitido sem culpar-se de nada seleccionar e reunir as melhores

horas da jornada e os seus momentos mais fecundos e vigorosos para reflectir sobre o

futuro da nossa educaccedilatildeo estes podem ter a certeza que chegaram agrave noite de uma forma

proveitosa e digna a saber na meditation generis futuri (meditaccedilatildeo sobre o geacutenero futuro)

Um homem assim ainda natildeo se esqueceu de pensar enquanto lecirc ainda compreende o

segredo de ler entre linhas mais ainda eacute de uma natureza tatildeo prodigiosa que reflecte sobre

o lido talvez muito tempo depois de ter deixado o livro E sem duacutevidas natildeo para escrever

uma resenha ou outro livro mas simplesmente para reflectir2

O aprender seria portanto um viver sem pressa um estar sem pressa um existir sem pressa

Um ser no desconhecimento Mas sabemos que isso natildeo eacute possiacutevel Natildeo eacute possiacutevel saber sem

1Cf Friedrich Nietzsche Obras completas Vol 1 Filosofiacutea en la Eacutepoca Traacutegica de los Griegos Trad e introduc

Joan B et alt Tecnos Madrid 2011 p 574 2 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 549

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ser conotado natildeo eacute possiacutevel saber sem ser procurado natildeo eacute possiacutevel saber sem falar do que se

sabe natildeo eacute possiacutevel saber sem comunicar o sabido Mas dizemos que natildeo eacute possiacutevel e na

verdade eacute possiacutevel porque natildeo estamos a falar da mesma coisa saber natildeo eacute aprender Satildeo

duas coisas completamente distintas mas apesar de tudo uma coisa tecircm em comum a fuga da

fanfarronice e o desejo desenfreado de confrontaccedilatildeo A atestaccedilatildeo do aprendido a examinaccedilatildeo

do sabido Tecircm em comum aquilo que falta ao homem moderno o excesso de si a auto-

referecircncia desmedida O aprender conduz-nos ao desejo de estar tatildeo bem formados a tal ponto

de natildeo pensarmos mais em noacutes mesmos ou na nossa formaccedilatildeo e ateacute ao ponto de desprezarmos

a nossa proacutepria formaccedilatildeo Contrariamente ao homem moderno diz Nietzsche haacute que evitar

fazer de noacutes mesmos uma espeacutecie de homo mesura precisamente porque natildeo somos criteacuterio

seguro de nada natildeo somos criteacuterio seguro do absoluto Aqui o aprender deixa de ser um

criteacuterio e passa a ser uma meta e a meta aqui eacute que aquele que estaacute aprender se entregue

completamente com laquoa maacutexima confianccedila agrave tutela do autor de quem apenas pode falar a partir

da sua proacutepria ignoracircncia e da consciecircncia da ignoracircnciaraquo O aprendiz eacute aquele de quem

Nietzsche faz este tremendo apelo porque eacute nele que ele acredita

[hellip] Deixai-vos encontrar voacutes os isolados em cuja existecircncia acredito Voacutes

os altruiacutestas voacutes que padeceis em voacutes mesmos as dores e as perversotildees do

espiacuterito (hellip) Voacutes os contemplativos cujo olhar natildeo palpa com pressurosa

suspeita o externo das coisas mas sim sabe encontrar a entrada ao nuacutecleo da

essecircncia Eu vos convoco apenas para esta vez natildeo vos escondais nas

cavernas do vosso retiro e da vossa desconfianccedila Sejam quando menos

leitores deste livro para mais em frente com os vossos feitos acabar com ele

e deixa-lo no esquecimento Compreendeis que este livro estaacute destinado a ser

o vosso pronuacutencio quando voacutes mesmos com as vossas armas vos apresenteis

na palestra [hellip]3

Ao seu modo Nietzsche apresenta aqui a figura do aprendiz o docente o estudante e todos os

inquietos de espiacuterito como aqueles que satildeo isolados que satildeo altruiacutestas e que padecem das

dores da perversatildeo do espiacuterito O acto de aprender eacute incompatiacutevel com o tremendo de

confusatildeo eacute incompatiacutevel com o egoiacutesmo e com o egocentrismo e eacute incompatiacutevel com o

regradamente certo O aprender exige ruptura porque supotildee adaptaccedilatildeo a uma nova era a uma

nova realidade exige encontrar o outro dentro e fora de mim e exige um prestar atenccedilatildeo a

mim mesmo que natildeo seja necessariamente um narcisismo O aprender exige que sejamos uns

3 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 550

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contemplativos sem pressa de conhecer e de chegar sem pressa de afirmar ou de concluir

apenas se espera que sejamos contemplativos que admiram para melhor conhecer e trazer a

utilidade profunda mas sombria que estaacute aprisionada nas cavernas das nossas pressas O

aprender exige que a nossa contemplaccedilatildeo nos conduza ao encontro da essecircncia daquilo que

deve ser objecto do aprender Por isso cada vez que noacutes que estamos no eterno caminho de

aprender nos confrontamos com um livro com uma obra temos a possibilidade de sair dos

nossos retiros contraditoacuterios das nossas cavernas e das nossas desconfianccedilas Temos a

possibilidade de dar a conhecer a nossa opiniatildeo eacute o nosso pronuacutencio na palestra que pode

naturalmente chocar com os dois modelos do aprender propostos pela cultura educativa

moderna a saber

Por um lado a educaccedilatildeo como o espaccedilo da proposta do aprender deve ser extensiacutevel a todo o

territoacuterio por outro o laquoimpulso de reduccedilatildeo e debilitamento do mesmoraquo Desde muito cedo

quando a educaccedilatildeo comeccedilou a ser vista como um elo importante o homem apesar de alguns

constrangimentos sempre soube que seria de muito mais valia que ela fosse extensiacutevel para

todo o territoacuterio independentemente das questotildees poliacuteticas culturais econoacutemicas e religiosas

Natildeo obstante a sua extensatildeo sempre dependeraacute da vontade do Estado da disponibilidade do

Estado enfim da autorizaccedilatildeo do Estado Os gregos que fazem parte dos povos que pensaram

a educaccedilatildeo depois dos egiacutepcios e dos feniacutecios assumiram a inseparabilidade destes dois

momentos a educaccedilatildeo que deve chegar a todo o territoacuterio e a educaccedilatildeo que para ser educaccedilatildeo

tem que ser controlada pelo Estado A educaccedilatildeo deve ser controlada pelo Estado mas natildeo

necessariamente executada pelo Estado Em A Poliacutetica Aristoacuteteles foi muito bem claro em

dizer que a tarefa de educaccedilatildeo se bem eacute da comunidade natildeo obstante compete em primeiro

lugar ao Estado e soacute na impossibilidade deste de cobrir todas as partes eacute que o particular

assume tambeacutem ele a tarefa de educar Educar e por conseguinte o aprender desde este

ponto de vista nasce com um problema eacute um problema natildeo apenas no sentido de delegaccedilatildeo

de autorizaccedilatildeo mas tambeacutem no sentido da proacutepria autodestruiccedilatildeo Quem aprende destroacutei-se e

autodestroacutei-se na medida em que vai pondo de lado ou vai equacionando os fundamentos do

conhecimento anterior agrave sua formaccedilatildeo agrave sua educaccedilatildeo Como diz Fullat citado por Carlos

Francisco de Sousa Reis ldquoO acto educador especificamente humano eacute no seu nuacutecleo e fonte

entitativa confrontaccedilatildeo de duas consciecircncias confrontaccedilatildeo constitutivamente violenta4rdquo Para

Carlos Francisco Fullat procura aqui justificar a partir dos modelos de habilidades emperia a

forma como a educaccedilatildeo pode apresentar-se como acto educativo violento ou simplesmente

4Cf Carlos Francisco de Sousa Reis Educaccedilatildeo e cultura mediaacutetica Anaacutelise de implicaccedilotildees deseducativas

Acircncora editora Lisboa 2014 p 45

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como condiccedilatildeo da violecircncia Fullat segundo o nosso autor para encontrar os fundamentos da

educaccedilatildeo como condiccedilatildeo de violecircncia analisa inicialmente o surgimento ontoloacutegico da

civilizaccedilatildeo a partir de trecircs perspectivas a perpectiva do animal faber a perspectiva do animal

symbolicum e a perspectiva do animal sociale A partir destas trecircs perspectivas ele conclui

que a violecircncia eacute constitutiva de todos os actos educativos O ponto de partida da educaccedilatildeo eacute

visto portanto para Fullat desde uma perspectiva negativa desde uma antropologia negativa e

desde uma possibilidade eacutetica negativa Natildeo pode haver uma educaccedilatildeo que natildeo seja sobretudo

uma acccedilatildeo que arraste a negatividade consigo mesma Isto eacute uma acccedilatildeo que procura desfazer-

se do estado da ignoracircncia anterior O estado ou acccedilatildeo educativa eacute uma acccedilatildeo de

ldquodeplacementrdquo para um novo siacutetio um novo mundo uma nova aventura

As leituras ou melhor os textos utilizados por Fullat como exemplos patenteiam

naturalmente esta negatividade na relaccedilatildeo educativa Eacute o caso da visatildeo hobbesiana freudiana

e de Sartre das relaccedilotildees humanas que satildeo muitas vezes relaccedilotildees de poder da negatividade

isto eacute onde a manutenccedilatildeo do poder implica a perda do outro ou do espaccedilo do outro Nestes

autores destacam-se duas perspectivas inconciliaacuteveis ldquoo egoiacutesmo de ter e o sadismo de

dominarrdquo A educaccedilatildeo eacute vista como uma necessidade desenfreada de ter e ter sempre e cada

vez mais ao mesmo tempo que este desejo incontrolado eacute tambeacutem alimentado com a outra

necessidade de dominar e controlar tudo a todo custo Estas duas febres como lhe chama

Fullat resultam de uma eacutetica hedoniacutestica onde no campo hobbesiano o prazer eacute sinoacutenimo da

dominaccedilatildeo ldquoToda a eacutetica de Hobbes depende do seu pressuposto fundamental a inclinaccedilatildeo

geral da Humanidade para um desejo perpeacutetuo e sem descanso de adquirir poder e mais poder

desejo esse que soacute termina com a morte O ser humano eacute egoiacutesta (hellip) e a fim de poder estar

preparado para alcanccedilar o que deseja tem de procurar aumentar sempre cada vez mais o seu

poder5rdquo Natildeo poderia ter havido civilizaccedilatildeo se natildeo houvesse uma agressividade natural diria

Fullat de Francisco de Sousa O que noacutes consideramos como civilizaccedilatildeo teria sido aquilo que

pensadores como Hobbes ou Rousseau teriam visto como um princiacutepio do pacto natildeo pacto o

pacto simulado no caso de Rousseau A civilizaccedilatildeo nasce a partir da distorccedilatildeo de uma

realidade anterior e para permanecer deve tambeacutem continuar a distorcer esta mesma realidade

para poder construir um poder de dominaccedilatildeo e do egoiacutesmo Neste acircmbito a educaccedilatildeo aparece

como o aparelho protector do Estado manipulador e violento que utiliza as ideologias como a

praccedila da fecundaccedilatildeo das suas manipulaccedilotildees E porque o homem procura sobretudo ser feliz

diz Aristoacuteteles entatildeo muitas vezes natildeo escolhe os meios para ser feliz isto eacute natildeo estaacute

5 Cf Marques 2000 120 Apud Carlos Francisco de Sousa 2014 46

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disposto a abdicar de alguns meios que podem ser uacuteteis para a sua felicidade Eacute o caso da

felicidade pelo trabalho diraacute Francisco de Sousa mas o trabalho exerce uma forccedila contraacuteria

sobre a natureza e eacute o caso da educaccedilatildeo onde no educar

ldquoO homem exige a educaccedilatildeo mas esta implica a violecircncia da programaccedilatildeo

geneacutetica e da programaccedilatildeo social Educar eacute uma luta de consciecircncias em que

o educador sempre investe sobre o educando desde a cultura que se alimenta

da repressatildeo social imposta a Eros (o prazer) e Thanatos (a agressividade)6rdquo

Se bem podemos ver as teorias pessimistas como um exagero da negaccedilatildeo humana no sentido

do encontro pleno ainda assim nesta possiacutevel negaccedilatildeo do encontro pleno entre os humanos

nasce a possibilidade da vida do outro isto eacute o mesmo ldquosujeito que pode trazer a morte do

outro tambeacutem traz a sua vidardquo no embate do encontro entre os diferentes haacute sempre uma

possibilidade da nova vida de um novo existir e a educaccedilatildeo eacute precisamente tudo isso o

encontro dos diferentes que tem como fim ajudar a criar uma nova vida fazer nascer uma

nova existecircncia uma nova oportunidade Porque segundo autores como Fullat diz Francisco

de Sousa natildeo se pode falar de educaccedilatildeo laacute onde natildeo haacute consciecircncia Apenas haacute educaccedilatildeo

porque haacute consciecircncia porque existe consciecircncia porque haacute dois encontros e porque apesar

do embate entre os dois nenhuma delas deixa perder a outra natildeo eacute um encontro ou um

embate para desgarrar o outro antes pelo contraacuterio este embate eacute feito para estabelecer o

outro no outro sem fazer desaparecer a alteridade Mas isso soacute eacute possiacutevel justamente porque

no lugar da violecircncia que poderia ter conduzido a uma ldquorobotizaccedilatildeordquo foi introduzido o factor

de cuidado diz Carlos Francisco de Sousa Eacute portanto o cuidado que vai fazer com que haja

um encontro entre as duas consciecircncias Como diz Hegel de Morin (2005 105 Apud Carlos

Francisco de Sousa 2014 49) ldquoa consciecircncia de si soacute atinge a sua satisfaccedilatildeo numa outra

consciecircncia de sirdquo Dito de outra forma em palavras de Fullat de Carlos Francisco de Sousa

ldquosoacute depois da descoberta do eu pelo enfrentamento do tu se daacute a verdadeira relaccedilatildeo

educativardquo Portanto natildeo pode haver educaccedilatildeo na ausecircncia do outro natildeo pode haver

educaccedilatildeo na ausecircncia do interlocutor e do intermediaacuterio e natildeo pode haver educaccedilatildeo na

ausecircncia de uma situaccedilatildeo educativa

A fase educativa eacute acompanhada pelo decliacutenio paulatino de amestramento porque supotildee a

chegada da consciecircncia supotildee a responsabilidade pela capacidade de escolher e de decidir

supotildee a autenticidade do SIM e do NAtildeO supotildee uma certa comunicaccedilatildeo de intimidade no

6 Cf Francisco de Sousa cit

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dizer de Jaspers de Carlos Francisco de Sousa O sim e o natildeo do educando jaacute tem um patamar

um pouco mais alto que o sim e o natildeo daquele que estaacute na fase de amestramento A pugna jaacute

tem um caraacutecter mais real a dor eacute mais audiacutevel porque eacute vivida e sentida por aquele que tem

capacidade fiacutesica de desforrar violecircncia sobre o seu mestre sobre o seu guia ou sobre aquele

que lhe dirige Eacute diferente da dor da infacircncia que eacute vivida por e pela compaixatildeo do outro no

outro Os pais e os parentes proacuteximos podem responder pela dor da crianccedila enferma levando-a

ao meacutedico ou ao especialista Sozinha natildeo poderia fazecirc-lo eacute por isso que dizemos que a dor

da infacircncia eacute uma dor de solidariedade compassiva isto eacute precisa de um terceiro para ser

actualizada ou minimizada A do adulto tambeacutem pode precisar mas com muito menos

coerccedilatildeo que a da crianccedila ou a do adulto-crianccedila Esta simbologia tambeacutem pode ser aplicada agrave

relaccedilatildeo do educador e do educando que estatildeo quase sempre inicialmente em perspectivas

diferentes em dizibilidades diferentes talvez por isso autores como Fullat falam do caraacutecter

agoacutenico da educaccedilatildeo ou da educabilidade Assumem que natildeo eacute possiacutevel educar sem existecircncia

de um processo agoacutenico porque haacute encontro de dois tipos de saberes que podem ser

completamente diferentes sobre o mesmo saber ou sobre o mesmo tema O saber daquele que

ensina e o saber sobre o saber daquele que vai aprender ou que estaacute para aprender satildeo coisas

completamente diferentes passando ou acontecendo no mesmo espaccedilo A aprendizagem da

educabilidade exige sempre uma proposta e um tempo de adaptaccedilatildeo retroactivo para garantir a

apropriaccedilatildeo do processo da aprendizagem isto eacute para garantir o processo da refinaccedilatildeo do

conhecimento em outras palavras para atingir a compreensatildeo Esta etapa da compreensatildeo eacute

feita de uma transiccedilatildeo a outra isto eacute passamos de uma ldquocivilizaccedilatildeo de resposta a uma

civilizaccedilatildeo de perguntasrdquo porque o tempo de respostas definitivas morreu

O aprender com profundidade exige que natildeo nos contentemos apenas com as pequenas

resoluccedilotildees como diz Andreacute Giordan mas que consigamos apoderar-nos dos enunciados para

debatecirc-los e com eles transformar a relaccedilatildeo do saber atraveacutes de argumentos e contra-

argumentos Quem aprende eacute obrigado a ter argumentos insiste Giordan Quem aprende lanccedila

duras inquisiccedilotildees sobre o processo eacute um constante inquieto

laquoDe que estamos exactamente a falar O que queremos mostrar Estou

convicto de que o que estou a dizer eacute verdade eis porquecircraquo Ele descobre o

que eacute uma demostraccedilatildeo os argumentos que eacute necessaacuterio accionar para

convencer a importacircncia do raciociacutenio e o sentido preciso das palavras No

fim do ensino secundaacuterio aqueles que aprendem nem sempre tecircm

consciecircncia que uma hipoacutetese na matemaacutetica (onde ela eacute um dogma que natildeo

podemos transgredir) natildeo tem o mesmo estatuto que no resto das ciecircncias

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onde ela natildeo eacute senatildeo uma explicaccedilatildeo entre outras explicaccedilatildeo que adoptamos

e adaptamos durante o tempo em que procuramos meios para a corroborar ou

informar Controlar a polissemia de um tal vocabulaacuterio evita muitas

confusotildees7

Quem aprende predispotildee-se a ser bravado e podado predispotildee-se a ser limitado ao mesmo

tempo que rompe a proacutepria limitaccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo da teacutecnica e de habilidades

predispotildee-se a demostrar que apesar das limitaccedilotildees ainda assim pode criar pode inventar e

pode inovar saindo precisamente do seu campo de conforto Qualquer investigaccedilatildeo mesmo

sendo apenas inicial tem como fim tirar-nos do nosso campo do conforto tem que como

objectivo tirar-nos da nossa aldeia e conduzir-nos para a cidade onde corremos o risco de nos

perder implica actualizar o nosso preconceito em relaccedilatildeo a algo implica questionar as

evidecircncias laquoQuanto mais aquele que aprende reflecte sobre o tratamento de uma tarefa mais

ele referencia e repara nos erros nos limites e nos disfuncionamentos Ele torna-se

rapidamente capaz de analisar os acontecimentos em curso e explicitar a estrateacutegia utilizada e

a sua pertinecircncia Comeccedila a emergir uma eficaacutecia oacuteptima8raquo A compreensatildeo e a preensatildeo do

conhecimento natildeo nos deixa indiferentes faz de noacutes outro laquooutroraquo outra realidade que apesar

da existecircncia autoacutenoma assume que soacute pode existir se tiver possibilidade de se comparar com

as outras e se puder ser referenciada Eacute por isso que o nosso modelo de aprender tem que

acompanhar se possiacutevel o enquadramento das concepccedilotildees e tem que actualizar os conceitos

a sua marginalidade e o seu centrismo Pois haacute que ter em conta que ningueacutem aprende sem

antes fazer um trabalho profundo sobre as suas proacuteprias concepccedilotildees (diz Andreacute Giordan) e

sobre as concepccedilotildees dos outros onde ele se apresenta como porta-voz ou como mediador Eacute

por isso que em algumas situaccedilotildees vemos que eacute muito complicado ser porta-voz ou mediador

educativo porque vamos tentar transmitir algo que estaacute fora da nossa dizibilidade cultural

fora do nosso quadro referencial fora do nosso imaginaacuterio cultural Natildeo posso explicar o

rigor do Inverno se natildeo tenho experiencia do Inverno rigoroso porque natildeo disponho dos

dados fortemente caracteriacutesticos do Inverno

A minha explicaccedilatildeo deve superar a mera imagem informativa ou elucidativa da realidade A

minha informaccedilatildeo deve ser a mais real possiacutevel A imagem natildeo eacute a minha realidade eacute a

realidade daquela realidade eacute a realidade da fotografia tirada por mim ou por algueacutem Aqui a

fotografia tem mais ou menos a mesma funccedilatildeo que o vocabulaacuterio que estaacute como a porta de

entrada para a compreensatildeo oral pode ajudar ou pode complicar a compreensatildeo atraveacutes de

7 Cf Andreacute Giordan Aprender Editora Horizontes Pedagoacutegicos Lisboa 2007 p 162

8 Cf Idem

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uma falsa intermediaccedilatildeo de essecircncia da acccedilatildeo cultural A palavra vai ter um peso muito

importante nesta transiccedilatildeo porque pode permitir que cheguemos ou que fiquemos pelo

caminho pode manipular duplamente os conceitos A palavra usada na transmissatildeo deve ser

suficientemente aberta para permitir ao aluno viver a sua liberdade na hora da escolha deve

sentir-se familiarizado com o tema que quer escolher ou que quer trabalhar A obtusidade da

palavra pode tambeacutem ser um factor muito importante natildeo apenas na apreensatildeo dos conteuacutedos

mas tambeacutem na proacutepria escolha dos conteuacutedos por afinidade por gosto por paixatildeo ou ateacute por

curiosidade Quer o docente e quer discente tecircm que saber que este processo natildeo cabe num

frasco de linearidade Haacute muacuteltiplas facetas de ensinar e muacuteltiplas facetas de aprender Mas

entre ambas haacute uma faceta que eacute transversal que eacute desejaacutevel que seja transversal eacute a faceta

do ensinar honesto ou com a honestidade a de aprender honesto ou com a honestidade a de

que cada um tem que ser aquilo que eacute para dar e receber

Esta honestidade eacute muito importante para ajudar a fazer com que quer o educador quer o

educando caminhem para um espaccedilo da educaccedilatildeo liberal ldquoA educaccedilatildeo liberal eacute uma

educaccedilatildeo na cultura e para cultura9rdquo diz Leo Strauss o ldquoproduto terminado de uma educaccedilatildeo

liberal eacute um ser humano cultivadordquo insiste Strauss Uma educaccedilatildeo na cultura e para cultura

que nos conduza agrave formaccedilatildeo de um ser humano cultivado soacute pode ser feita inicialmente com

um fundamento muito forte da honestidade do cuidado e de autocuidado Strauss vai buscar a

explicaccedilatildeo do termo cultura a partir da sua origem latina (cultura) que se refere em primeiro

lugar agrave agricultura diz ele e no seu sentido derivado e actual (insiste ele) quer dizer ou

refere-se ao cultivo da mente Ora insiste o nosso autor assim como a terra precisa de

lavradores a mente precisa de mestres mas estes mestres soacute podem ser mestres ou

reconhecidos como mestres porque para aleacutem da sua periacutecia satildeo acima de tudo honestos

iacutentegros rectos e raros Eacute por isso que eacute mais faacutecil encontrar agricultores do que os mestres

diz Strauss sobretudo os mestres que natildeo satildeo disciacutepulos isto eacute os livros os grandes livros

No acircmbito da educaccedilatildeo liberal o estudante natildeo pode portanto estar separado dos livros dos

grandes livros e porque natildeo pode estar separado dos livros ele vai adonar-se deles e vai criar

condiccedilotildees para poder ajudar os outros estudantes menos experimentados remata Strauss

Tudo isso eacute um processo de honestidade Dedicar-se a estudar com profundidade as grandes

obras os grandes livros que muitas vezes dizem coisas completamente desconcertantes com a

sua eacutepoca o seu espaccedilo ou o seu meio cultural poliacutetico ou religioso Eacute por isso que a

educaccedilatildeo liberal natildeo pode ser entendida como um simples doutrinamento10 Eu natildeo posso

9 Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Katz editores Buenos Aires 2007 p 13

10 Cf Cit p 14

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pretender ou achar que estou a educar simplesmente porque estou a ideologizar as pessoas as

crianccedilas os jovens etc vou educar se crio cultura e se transformo as pessoas em cultura e na

cultura verdadeiramente adquirida com a honestidade

Strauss abre a possibilidade para que o termo cultura tambeacutem seja discutida porque cada

regiatildeo de planeta tem a sua proacutepria cultura Noacutes temos a nossa cultura enquanto africanos e

dentro do africano tambeacutem haacute vaacuterias culturas e subculturas (mesmo sabendo que um

socioacutelogo apressado emitiria imediatamente a sua reclamaccedilatildeo sobre subculturas11) O ideal na

educaccedilatildeo liberal eacute que a cultura natildeo seja uma pequena janela que natildeo seja apenas um

singulare tantum diz Strauss mas que seja e que procure ser utilizada no plural que aceite e

assuma o sentido relativo que lhe permite ser discutida Com a excepccedilatildeo dos loucos todos

somos seres de cultura insiste Strauss apesar da maacute compreensatildeo e da maacute interpretaccedilatildeo que

isso causa agraves vezes Natildeo obstante as maacutes interpretaccedilotildees e as maacutes compreensotildees fazem parte

do preccedilo que uma educaccedilatildeo liberal tem que pagar e tem que correr A educaccedilatildeo democraacutetica eacute

um preccedilo caro no acircmbito da educaccedilatildeo liberal natildeo apenas para o acircmbito acadeacutemico mas

sobretudo para o acircmbito poliacutetico onde o poliacutetico tem que justificar e merecer o voto dos

eleitores No nosso caso concreto o caso africano e de maneira particular a Aacutefrica lusoacutefona a

democracia natildeo se fez muito sentir natildeo estaacute a ser muito acompanhada pela educaccedilatildeo A

proacutepria expressatildeo democracia eacute vista e usada com ambiguidade Mas voltaremos a esta

anaacutelise num outro momento

A Democracia e Educaccedilatildeo

O termo democracia deve ser dos termos ou das expressotildees mais utilizadas a niacutevel poliacutetico e

fora do campo poliacutetico Eacute tambeacutem provavelmente dos termos poliacutetico-sociais mais ingratos

mais incompreensiacuteveis cujo uso eacute muitas vezes inadequado O saacutebio fala de democracia o

especialista tambeacutem mas natildeo eacute por isso que quem natildeo sabe da democracia deixa de falar dela

e isso faz com que ela seja um campo de todos e de ningueacutem Um campo do saacutebio do

especialista e do analfabeto

E eacute sobretudo com este uacuteltimo que vamos trabalhar e falar na democracia moderna Os paiacuteses

lusoacutefonos como muitos paiacuteses de Aacutefrica foram apanhados numa encruzilhada forccedilada da

virada do mundo Do mundo econoacutemico do mundo poliacutetico que tem que obedecer ao mundo

econoacutemico e tal como acontece nas regras e jogos de poderes tiveram que aceitar e entrar

para um jogo e uma regra que natildeo lhes era de todo favoraacutevel Tinham que dar espaccedilo real aos

11

Cf Cit p 14 laquoEacute todo o padratildeo comum de conduta proacutepria de um grupo humanoraquo

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partidos que estavam na oposiccedilatildeo e natildeo era possiacutevel fazecirc-lo realisticamente porque natildeo se

deixa de ser um Partido-Estado de um dia para outro e tinham que lutar contra a pobreza e

contra o analfabetismo as duas inimigas principais da democracia moderna e natildeo havia

garantia de que pudessem fazecirc-los nos termos que a democracia pensada pelos outros

propunha

Portanto a leitura que se deve fazer destes 25 anos da democracia nestes paiacuteses natildeo seria

naturalmente uma leitura triunfalista mas antes pelo contraacuterio uma leitura analiacutetica

Perguntar-se se o que chamamos democracia desde o iniacutecio foi verdadeiramente democracia

A leitura triunfalista eacute uma leitura de auto-regozijo de auto-suficiecircncia e de triunfalismo

nacionalista que faz uma espeacutecie de apagatildeo naquilo que eacute ou sobre aquilo que eacute a memoacuteria do

difiacutecil que roccedila ao fracasso e se esquece que a democracia eacute um regime que eacute feito para

triunfar perdendo ou fracassando Natildeo se pode esperar outra coisa da democracia senatildeo o

triunfo porque aparentemente eacute um regime onde todo o mundo tem a possibilidade e a

oportunidade de decidir de decidir sobre si mesmo e de decidir com o uso da influecircncia sobre

os outros E eacute precisamente na eventualidade de que esta influecircncia sobre os outros venha a

concretizar-se que fez com que os grandes teoacutericos do poder na antiguidade tivessem medo

da democracia laquoO que eacute que seria daquele regime onde o povo eacute quem mandaraquo

Perguntavam eles O que eacute que seria dos ricos da elite dos intelectuais da induacutestria etc Uma

seacuterie de questotildees do acircmbito de interesse particular se punha para chamar a atenccedilatildeo dos

particulares para natildeo aderir a algo que lhes podia fazer mal e fazer mal aos seus negoacutecios Eacute

por isso que a democracia natildeo eacute um poder do povo mas um poder de elite que eacute criado dentro

do povo sem que para isso o povo se decirc conta Os criacuteticos como Platatildeo sempre olharam para

esta elite que vem do povo como algo que sempre seraacute mal preparada para assumir com

distinccedilatildeo algo que eacute muito importante para o destino do paiacutes por isso nunca apoiaraacute um

regime democraacutetico Mas a democracia que eacute um regime triunfalista eacute uma democracia

falaciosa porque natildeo se pode esperar um triunfo na maioria ou da maioria uma vez que a

verdadeira maioria natildeo negocia natildeo dialoga apenas remete para o ponto de partida para a

regra do jogo inicial ainda que esta regra do jogo seja escrita e feita por ela de forma

maliciosa Eacute por isso que quando se fala da vitoacuteria da democracia no sentido da maioria

democraacutetica temos que olhar para esta maioria como aquela que mesmo sendo a maioria

deixou de secirc-la voluntariamente para se revestir do risco de ter que dar explicaccedilotildees de ter que

justificar-se de ter que sujeitar-se a ouvir quem perdeu quem o povo natildeo quer natildeo escolheu

e natildeo conta com ele de forma expliacutecita

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O triunfo da democracia maioritaacuteria natildeo eacute um triunfo numeacuterico mas sim um triunfo da

gestatildeo das emoccedilotildees e dos egos do poder e da poliacutetica daqueles que o povo indicou para

fracassar e aqueles que indicou para o sucesso um certo sucesso de insucesso porque tudo eacute

aprazo e eacute o proacuteprio povo que em primeiro plano natildeo respeita e nunca respeitou o prazo

Exige as contas antes do fim do prazo que ele estipulou e natildeo aceita justificaccedilotildees que natildeo

satisfaccedilam a sua proacutepria demanda os outros se transformam para ele em indiviacuteduos e ele em

Estado que tem que fazer com que a lei seja cumprida Uma tentativa de saiacuteda para esta

realidade para esta situaccedilatildeo tem que passar necessariamente pela Educaccedilatildeo eacute por isso que

alguns pensadores da democracia como eacute o caso de Gianfraco Pasquino defendem que a luta

da democracia moderna eacute uma luta que consiste em satisfazer a educaccedilatildeo e eliminar a

pobreza Natildeo se pode falar de uma democracia triunfalista quando se tem medo de olhar para

a memoacuteria que apresenta um nuacutemero insustentaacutevel do analfabetismo e de pobreza O triunfo

da democracia moderna eacute um triunfo que passa pela lucidez e um sono tranquilo de barriga

cheia natildeo da elite mas daqueles que sem ser elite sentem que algueacutem cumpriu com um

direito deles o direito de natildeo passar fome e de natildeo morrer analfabeto E esta expectativa

corresponde com a democracia moderna em alguns momentos porque eacute uma expectativa que

soacute pode ser realizada pela virtude por um regime virtuoso Em algum momento acreditamos

ou se diz que a democracia eacute um regime que depende da virtude diz Strauss Um regime onde

todos ou a maioria dos homens satildeo saacutebios uma sociedade onde todos os adultos satildeo saacutebios e

virtuosos uma sociedade aristocraacutetica uma democracia aristocraacutetica No fundo um grande

mal-entendido Aparentemente eacute o que nos teraacute acontecido em alguns momentos quando

recebemos a democracia Olhamos para ela como o estado de realizaccedilatildeo perfeita de todos e

para todos Olhamos para ela quase como que uma espeacutecie de governo dos deuses Com

efeito Aristoacuteteles tinha razatildeo quando alertou que a natureza humana natildeo permite que

olhemos para nenhum governo como lugar de possiacutevel perfeiccedilatildeo como lugar seguro porque eacute

a gestatildeo humana que vai fazer com que um lugar um governo ou um Estado seja tido como

seguro ou natildeo A gestatildeo humana das coisas eacute volaacutetil

Quando Aristoacuteteles e outros teoacutericos pensaram no indiviacuteduo viram nas instituiccedilotildees condiccedilatildeo

indispensaacutevel para responder aos anseios deste mesmo indiviacuteduo eacute por isso que criaram

maneiras formas instacircncias e institutos para permitir uma salvaguarda real do indiviacuteduo A

cidade natildeo eacute um espaccedilo natural do indiviacuteduo diz Aristoacuteteles porque implica regras

completamente diferentes das regras individuais das regras da arbitrariedade das regras da

autonomia ilimitada e das regras da natildeo obediecircncia A cidade surge portanto para dar corpo a

todo este mosaico de regras de normas de paixatildeo mas com ordem e comando unificado num

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basanos num basileus que soacute eacute independente porque obedece agraves leis porque cumpre as leis

Este propoacutesito escapou-nos enquanto africanos que festejaram a chegada da democracia e

enquanto africanos que ensinam e dirigem o (s) paiacutes (es) Olhamos para democracia tal como

olhaacutevamos para a independecircncia sempre com total ausecircncia de prestaccedilatildeo de contas e sempre

com a expectativa irreal da igualdade Mas a realidade eacute um fenoacutemeno que se justifica por si

mesmo e eacute nesta perspectiva que a Ciecircncia Poliacutetica se debate diz Strauss entre tentar

encontrar a democracia na sua geacutenese e a democracia tal como a realidade se lhe apresenta A

nossa luta eacute perceber a democracia tal como a realidade a apresenta naturalmente fazendo

uma leitura histoacuterica daquilo que ela foi de como surgiu mas sobretudo ter em conta que ela

tem uma aplicaccedilatildeo e uma aplicabilidade epocal Cada eacutepoca cultiva a sua proacutepria democracia

diz a sua proacutepria democracia e interpreta a sua proacutepria democracia A sua epocalidade renova-

se diariamente constroacutei-se na sua proacutepria construccedilatildeo-autodestruiccedilatildeo em nome da proacutepria

democracia e da correspondecircncia epocal

Somos da opiniatildeo de que Aacutefrica deve criar um estilo proacuteprio para a sua democracia Deve

criar a sua proacutepria democracia que se enraiacuteza nas suas culturas que tem em conta a sua

proacutepria particularidade e multiplicidade que tem em conta o papel das autoridades

tradicionais que muitas vezes sentem-se completamente perdidas no acircmbito do

enquadramento democraacutetico deve ter em conta o papel fulcral da mulher de todas as esferas

em Aacutefrica

No nosso contexto sabemos que ldquoa mulher africana eacute a porta de todas as entradas e a saiacuteda

de nenhuma saiacuteda natildeo autorizada A mulher africana eacute alegria de um continente com as suas

vaacuterias naccedilotildees e a sua uacutenica raccedila ela eacute o fracasso da poliacutetica e do poder quando se faz machista

e eacute a vitoacuteria da poliacutetica e do poder quando se faz humana quando se torna ouvinte e se

capitaliza como espaccedilo de confianccedila e de reconhecimento de todos Natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel

sem estes atributos da mulher natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel sem uma poliacutetica que escuta a mulher e

que permita que a sua opiniatildeo natildeo seja apenas um mero disfarce do politicamente correcto e

do eticamente aceitaacutevel A Aacutefrica possiacutevel eacute a Aacutefrica madrugadora como a preocupaccedilatildeo da

mulher para com o seu lar os seus filhosas o seu marido e toda a famiacutelia alargada A Aacutefrica

possiacutevel eacute a Aacutefrica da ternura e do pragmatismo encarnado pela mulher atraveacutes dos diversos

cuidados que presta ao seu lar e agrave comunidade no seu dia-a-dia Natildeo poderemos amar

verdadeiramente Aacutefrica se continuarmos a desprezar as suas mulheres e suas crianccedilas se a

opiniatildeo da mulher continuar a ser uma espeacutecie de favor que a comunidade lhe faz porque natildeo

quer contar com ela em termos objectivos porque lhe pintou com preconceitos de

instabilidade de inseguranccedila e de fragilidade Porque olha para ela como o problema de todos

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os problemas o mal de todos os males e portanto aquela com quem natildeo se pode nem se deve

contar na primeira hora das tomadas das decisotildees Eacute a invenccedilatildeo dos preconceitos e da

prostituiccedilatildeo ideoloacutegica que depois acaba por ser direccionada agrave mulher atraveacutes dos

mecanismos do ldquopoder positivo natildeo legisladordquo o direito criado ou assumido a partir dos actos

de todos os dias

Se tivermos em conta que em Aacutefrica as mulheres satildeo mais de metade da populaccedilatildeo do

continente e a niacutevel global as mulheres de todo o mundo satildeo a metade de toda a populaccedilatildeo

mundial entatildeo poderemos com maior propriedade dar valor agrave figura da mulher natildeo soacute para o

nosso continente mas a niacutevel global Sabemos que de cada vez que a mulher ganha um

direito conquista um direito os seus ganhos e as suas conquistas cimentam a estabilidade

local e regional para a paz e para o desenvolvimento geopoliacutetico porque a mulher no seu

exerciacutecio de responsabilidade eacute muito mais persuasiva e honra com brilho o seu compromisso

Sabemos graccedilas agrave histoacuteria etnograacutefica e histoacuteria dos acontecimentos que muitas das

reivindicaccedilotildees das mulheres africanas antecederam uma boa parte das reivindicaccedilotildees

femininas no Ocidente moderno e contemporacircneo A descoberta do continente africano pelos

europeus tambeacutem conheceu a resistecircncia feminina ao lado dos homens africanos e isto

antecede a luta feminista e a luta a auto-afirmaccedilatildeo do geacutenero no Ocidente O fracasso da

Aacutefrica reside na ldquoahistorizaccedilatildeordquo do papel das suas mulheres reside na negaccedilatildeo da histoacuteria

positiva das suas mulheres reside no facto de encurtar as epopeias femininas das suas

heroiacutenas Paiacuteses como Ruanda demostram isso todos os dias Ruanda poacutes genociacutedio teve 56

das mulheres nos seus respectivos governos e todos noacutes temos notiacutecias e conhecimento da

solidez da economia e da poliacutetica de Ruanda

Temos consciecircncia de que apesar do brilho do bem-fazer e do saber-fazer da mulher africana

ainda assim haacute muitos obstaacuteculos que ela tem que superar entre eles o proacuteprio preconceito

machista Mas mesmo sabendo do preconceito machista cremos que o preconceito maior

com o qual ela se debate eacute o preconceito cultural e religioso para uma boa parte de Aacutefrica que

tem a ver com a tradiccedilatildeo negativa Estamos por exemplo a pensar na questatildeo da mutilaccedilatildeo

genital nos casamentos forccedilados e de conveniecircncia clacircnica o traacutefico das crianccedilas do sexo

feminino e o preconceito sobre a mulher que padece de viacuterus de VIH Estes males e

preconceitos satildeo mais prejudiciais agrave condiccedilatildeo feminina da mulher africana do que qualquer

mal que possa abater sobre ela Natildeo haacute um mal pior que o mal do preconceito e natildeo haacute cultura

mais enferma que a cultura preconceituosa

Aacutefrica soacute pode resgatar a sua cultura se lutar contra os seus preconceitos negativos elevando a

condiccedilatildeo da mulher e criando-lhe instrumentos e condiccedilotildees para lutar contra o mal que a

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cultura e tradiccedilatildeo criaram para ela e contra ela muitas vezes sem pedir a sua opiniatildeo O

horizonte possiacutevel para Aacutefrica eacute aquele de destruiccedilatildeo positiva dos preconceitos culturais

prejudiciais para as suas mulheres e crianccedilas Haacute que possibilitar que os dogmas culturais

intelectuais e religiosos sejam questionados para o bem da salvaguarda da proacutepria cultura da

proacutepria religiosidade e da proacutepria intelectualidade A poliacutetica e os poliacuteticos que tomarem isso

como uma iniciativa singular salvaratildeo todo o continente africano12

rdquo

A democracia que pensa a sua proacutepria realidade natildeo pode natildeo ter em conta estas necessidades

e particularidades Eacute por isso que o novo enfoque democraacutetico em Aacutefrica e nos paiacuteses

lusoacutefonos em particular deveria incluir na escolaridade preacute-universitaacuteria a disciplina da

EDUCACcedilAtildeO PARA A DEMOCRACIA assim como pensar a possibilidade de cadeiras

como ldquoLITERATURA E INSTRUCcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeOrdquo tambeacutem no preacute-

universitaacuterio Uma educaccedilatildeo para a democracia e uma literatura e instruccedilatildeo para a

democracia evitariam que caiacutessemos naquilo que Strauss chama ou designa por ldquofalta de

espiacuterito puacuteblico13

rdquo nas democracias modernas isto eacute a criaccedilatildeo de cidadatildeos que soacute se

interessam em ler as paacuteginas desportivas dos jornais e as paacuteginas das pequenas histoacuterias e

mais nada Pensar num ensino da democracia que possa ser cimentado com apoio das nossas

tradiccedilotildees orais ajudaria natildeo soacute a ter a qualidade viva dos nossos debates democraacuteticos como

tambeacutem a fundar uma democracia de raiacutezes africanas que bebem das outras culturas mas que

tambeacutem podem reivindicar a sua originalidade poliacutetica Os diversos tipos de ONDJANGO

que existem nas culturas africanas podem ser exploradas desde o ponto de vista democraacutetico

ondjango como espaccedilo de concertaccedilatildeo de ideias como espaccedilo de recepccedilatildeo do ensinamento

dos mais velhos se aproximaria ao conceito grego de aacutegora Uma educaccedilatildeo para a democracia

em Aacutefrica deveria ter em conta tambeacutem os nossos proveacuterbios adaacutegios e aforismos com uma

acentuada moralidade onde podemos encontrar a profundidade do ser africano do espiacuterito

africano e da sua consciecircncia moral e eacutetica Neles encontramos uma insondaacutevel e inesgotaacutevel

sabedoria praacutetica transversal a todo o continente O que em Angola se designa como

ondjango na Guineacute-Bissau aparece com o nome de Djembereacutem e em algumas circunstacircncias

com o nome de Bantaba de djumbai Ambos satildeo espaccedilos de confraternizaccedilatildeo de caraacutecter

educativo desde o ponto de vista da recepccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo da cultura e do pensamento

tradicional Quer a expressatildeo djembereacutem quer a expressatildeo bantaba designam um espaccedilo

circular de modo geral coberto de capim ou chapa de zinco podendo ser usados pelas pessoas

12

Cf Este trecho faz parte de um texto escrito a 31 de Julho de 2017 para um discurso ldquoencomendadordquo para o

dia internacional da mulher africana 13

Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Ed Katz Buenos Aires 2007 p 17

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de todas as idades mas em circunstacircncias diferentes Eacute um espaccedilo de reuniotildees e de encontro

de caraacutecter familiar da aldeia ou do grupo onde muitas vezes saem as decisotildees que dizem

respeito agrave comunidade eacute um espaccedilo legislativo da lei natildeo escrita da comunidade A palavra

djumbai significa divertir-se brincar daiacute que se bem o bantabaacute tem este caraacutecter seacuterio das

tomadas de decisotildees natildeo obstante esta seriedade eacute fundada na proximidade e na

familiaridade comunidade o que faz com que o poder natildeo seja algo estranho algo longiacutenquo e

tambeacutem faz com que o ensinamento e a transmissatildeo natildeo sejam vistos com a desmesura da

grandiosidade Contrariamente aos gregos e aos povos da Mesopotacircmia o lugar onde se

ensina e onde se toma as decisotildees eacute frequentado por todos pelas mulheres e crianccedilas pelos

doentes e saudaacuteveis

Conforme vimos o ondjango nos remete para a realidade da casa (NUNES

1991 159) Mas de que casa se trata Trata-se da casa de conversa de

reuniatildeo de hospedagem de partilha de bensrefeiccedilatildeoserviccedilos de

educaccedilatildeoiniciaccedilatildeo sociocultural de entretenimento eou de fazer justiccedila

Antes de tudo se trata de uma casa ponto de partida e ponto de confluecircncia

de uma casa com as condiccedilotildees de se poder sentar reunir junto de alguns

mais-velhos trata-se de um lugar de encontro14

Esta aproximaccedilatildeo de ondjango com a comunicaccedilatildeo e gestatildeo da casa permite-nos criar aqui

uma relaccedilatildeo comparativa com oikos nomoi xenofontino-aristoteacutelico Isto eacute podemos

reivindicar para o ondjango africano as mesmas capacidades os mesmos papeacuteis ou funccedilotildees

institucionais que tinha o oikos a partir da sua visatildeo da ldquofamiacutelia da propriedade da famiacutelia e

da casardquo Tal como vemos neste texto de Nunes citado por Martinho Kavaya este ondjango eacute

pluridisciplinar baseado em vaacuterias meacutetricas sociais o que de certa forma tambeacutem corresponde

com aquilo que podemos encontrar na concepccedilatildeo da palavra grega oikos A educaccedilatildeo do

ondjango do djembereacutem ou do djumbai satildeo portadoras do espaccedilo familiar da propriedade da

famiacutelia e da reflexatildeo sobre a casa sobre as coisas da casa e isso permite fazer com que o que

se discute neste espaccedilo seja efectivamente aquilo que importa agrave cidade aquilo que importaraacute agrave

cidade um dia E o que eacute pode importar profundamente agrave cidade Naturalmente as pessoas a

sua gente os homens e mulheres crianccedilas e velhos animais e plantas No fundo tudo que diz

respeito ao homem e ao seu envolvimento social e espiritual e eacute isso que o ondjango africano

14

Cf Martinho Kavaya Freire e o Ondjango podem dialogar Reflexotildees sobre o diaacutelogo de Freire com o

ondjango africano Angolano GT Educaccedilatildeo Popular n06 p 2 consultado em 30 de Outubro de 2017

httpwwwanpedorgbrsitesdefaultfilesgt06-2805-intpdf

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pretende passar atraveacutes dos seus diferentes status e fases do mais novo ao mais velho e do

mais velho ao mais novo

Toda a vida parte do ondjango e laacute encontra seu aacutepice Aiacute segundo a

pertinecircncia do vivenciado o ohango (conversadiaacutelogo) tomava vaacuterios

significados ldquoondjangordquo enquanto ldquoulongardquo (relato da vida desde o encontro

anterior) ldquoelongisordquo (ensinamento e aprendizado) ldquoekutardquo (partilha de bens

alimentares) ldquoekongelordquo (reuniatildeo de caraacuteter deliberativo)

ldquoekangaokusombaokusombisardquo (reuniatildeo para fazer justiccedila e sentenciar para

punir ou absolver o arguumlido) ldquookupapalardquo (encontro de entretenimento festas

e danccedilas culturais e tradicionais conforme a situaccedilatildeo vivida no momento

morte caccedila casamento iniciaccedilatildeo sociocultural e comunitaacuteria acolhimento

de uma visita etc) ldquoondjulukardquo (encontro para organizar um mutiratildeo

comunitaacuterio a favor de algum da comunidade em situaccedilatildeo de doenccedila

problema socioeconocircmico intervenccedilatildeo de ajuda na sua lavoura etc)

(KAVAYA 2006 p147) Afinal o ondjango eacute o habitat comunal e vital

onde se desenham as relaccedilotildees de conviacutevio geo-histoacuterico econocircmico

sociocultural poliacutetico etc em vista o bem comunitaacuterio15

Educar para a conservaccedilatildeo destes valores eacute tambeacutem educar para a democracia e eacute educar para

a manutenccedilatildeo da cultura e dos preconceitos positivos A democracia em todo o sentido e em

toda a sua histoacuteria sempre conteve um elemento educativo muito forte e quase indissociaacutevel

de si mesma eacute o diaacutelogo para gerar a cultura e a cultura para gerar diaacutelogo Natildeo pode haver

uma verdadeira democracia que dispense este binoacutemio O erro de pensadores como Platatildeo em

relaccedilatildeo agrave sua recusa agrave democracia reside no facto de desprezarem excessivamente qualquer

tipo de possibilidade para educaccedilatildeo viaacutevel do homem democraacutetico reside no facto de natildeo

acreditarem que a democracia pode educar um poloi e fazer dele um aristoacuteis agrave sua maneira

ou ainda este erro pode residir no facto de que estes pensadores natildeo tiveram em conta que o

poloi apenas pode querer ser simplesmente e eternamente um poloi mesmo sendo democrata

O erro consistiu em pensar que os que podem e devem governar a cidade deviam deixar de ser

das suas respectivas camadas e passar a ser aristocratas Eacute um erro que ainda vemos hoje

15

Cf Ibid p 3

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EDUCACcedilAtildeO CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO

UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS

ABEL JOSEacute DA SILVA a

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS b

adasilva00gmailcom

ireneinakulomoisesgmailcom

Resumo

A presente comunicaccedilatildeo faz uma caracterizaccedilatildeo do Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo

Universitaacuterio com ecircnfase nos seus desafios e perspectivas Analisa este processo a partir da

interpretaccedilatildeo sistecircmica que decorre dos pressupostos legais da Educaccedilatildeo e Ensino em Angola

Como meacutetodo usa a revisatildeo bibliograacutefica e a interpretaccedilatildeo e fundamenta a caracterizaccedilatildeo do

referido processo como variaacutevel baacutesica para a anaacutelise da qualidade do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola idealizado com base nos princiacutepios da legalidade da integridade da

laicidade da universalidade da democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da

intervenccedilatildeo do Estado da qualidade de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais

ciacutevicos e patrioacuteticos Tem como objectivo reflectir sobre os aspectos que o caracterizam e que

interferem na sua qualidade Apresenta a missatildeo do processo integrada ao Sistema em que

todos os agentes educativos participam da sua funcionalidade

Palavas-Chave Processo Ensino Aprendizagem Sistema

Abstract

This scientific paper characterizes the Non-University Teaching and Learning Process with an

emphasis on its challenges and perspectives It analyzes this process from the systemic

interpretation that arises from the legal presuppositions of Education and Teaching in Angola

As method uses the literature review and the interpretation and founded the characterization

of this process as basic variable for the analysis of the quality of the system of Education and

Teaching in Angola Idealized on the basis of the principles of legality integrity secularity

universality democracy gratuitousness obligation compulsion State intervention quality of

services education and promotion of moral civic and patriotic values It aims to reflect on the

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aspects that characterize and that interfere in its quality Has the mission of the process

integrated into the System in which all educational agents participate in its functionality

Key-words Process Teaching Learning System

Introduccedilatildeo

O Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo Universitaacuterio (PEANU) eacute uma importante variaacutevel

para a anaacutelise do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino em Angola (SEEA) sistema perspectivado

com base nos ldquoprinciacutepios da legalidade da integridade da laicidade da universalidade da

democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da intervenccedilatildeo do Estado da qualidade

de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticosrdquo (Lei no 1716

art 5ordm)1

A caracterizaccedilatildeo do PEANU pressupotildee assumir um posicionamento holiacutestico que analise o

mesmo como um processo natildeo isolado do todo porque o SEEA eacute estruturalmente unitaacuterio e a

sua realizaccedilatildeo na situaccedilatildeo especiacutefica da anaacutelise tem influecircncia no funcionamento da totalidade

(princiacutepio da integridade art 7ordm e art 17ordm)

Os desafios e perspectivas como outra dimensatildeo importante derivada do processo de

parametrizaccedilatildeo do assunto ndash objecto de anaacutelise justificam-se a partir da consideraccedilatildeo dos

princiacutepios da universalidade democraticidade gratuitidade obrigatoriedade intervenccedilatildeo do

Estado qualidade de serviccedilos e da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais pois que se a

Lei tipifica o que idealmente eacute o correcto a necessidade de confrontar com a realidade agrave luz

da pesquisa bibliograacutefica eacute inadiaacutevel para o alinhamento do agir educativo com os princiacutepios

legais

A partir destes princiacutepios infere-se que a Educaccedilatildeo e o Ensino satildeo natildeo apenas um direito mas

tambeacutem um dever que se deve realizar com a qualidade requerida para que a construccedilatildeo de

uma nova sociedade assente na democracia esclarecida seja possiacutevel Para isso agrave Escola

atraveacutes do Processo de Ensino e Aprendizagem (PEA) em todos os niacuteveis de ensino e

especialmente nos natildeo universitaacuterios impende a tarefa de formar personalidades capazes de

influenciar com o seu saber e suas qualidades o curso da histoacuteria concreta do seu contexto

Deste modo o Processo tem de ser significativo2 Para que o processo seja significativo eacute

1 Lei de Bases do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino que estabelece os princiacutepios e bases do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola de 7 de Outubro de 2016 Esta Lei revoga a Lei 1301 de 31 de Dezembro de 2001 2 O PEANU eacute significativo quando assegure o cumprimento da sua finalidade tal como se institui no art 25ordm da

Lei 1716 referente aos Objectivos Gerais do Subsistema do Ensino Geral Desta significatividade resulta em

consequecircncia a eficaacutecia do Sistema

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necessaacuterio caracterizaacute-lo com a finalidade de que se conheccedilam natildeo soacute os seus pontos fortes

mas tambeacutem os fracos aspecto que se aborda seguidamente

Por isso o objectivo deste trabalho consiste em reflectir sobre os aspectos do SEEA que o

caracterizam e que interferem na qualidade do PEANU

1 Estrutura do Seea Ponto de partida para a caracterizaccedilatildeo do Peanu

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento ldquoad intrardquo da

realidade educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento (Cfr

Silva 2016) Por isso a anaacutelise estrutural do SEEA baseada nas proposiccedilotildees da Lei 1716 e

fundamentada pela revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura criacutetico-contextual eacute uma

tarefa basilar para esta caracterizaccedilatildeo

A caracterizaccedilatildeo do Sistema Educativo numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional de

acordo com Ngaba ( 2012) e Liberato (2014) permite concluir que existem avanccedilos e

retrocessos no processo educativo angolano que em termos de poliacutetica educativa

condicionaram a sua evoluccedilatildeo positiva bem como a sua afirmaccedilatildeo no cenaacuterio internacional e

ateacute mesmo regional3

A partir desta ideia geral sobre o estado do SEEA que de modo especial se realiza por meio

do PEANU eacute possiacutevel compreender que estruturalmente estaacute bem concebido se se analisam

todos os factores intencionais de entrada e saiacuteda de um niacutevel de ensino para outro Entretanto

o aspecto funcional real fica aqueacutem do desejado se se avaliam com visatildeo criacutetico-acadeacutemica

os resultados do processo e os discursos oficiais que asseguram a Poliacutetica do Sistema

Educativo

Contrariamente agrave 1ordf Repuacuteblica (Cfr Ngaba 2012) que natildeo se fez reger por um documento

base tanto a 2ordf como a 3ordf Repuacuteblicas de Angola tecircm como fundamento a Lei de Bases do

SEEA que estabelece a criaccedilatildeo de condiccedilotildees mais adequadas para a aplicaccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas e dos programas nacionais com o objectivo de continuar a assegurar o

3 Este momento criacutetico do SEEA eacute tambeacutem hoje reconhecido oficialmente pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo do Paiacutes

na voz da sua titular no encerramento da Semana Nacional sobre Educaccedilatildeo em Angola realizada em Luanda Por

isso para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo actual do Sistema Educativo e do PEANU especificamente eacute criteacuterio dos

autores deste trabalho que os problemas fracturantes que colocam em causa a qualidade do Sistema natildeo podem

ser analisados unilateralmente sob pena de se incorrer num reducionismo indevido pois estatildeo em causa

muacuteltiplas variaacuteveis que chocam com diversos princiacutepios e disposiccedilotildees legais em que assenta o Sistema

infraestruturas precaacuterias insuficiecircncia dos materiais e meios didaacutecticos factos que se agravam ainda mais com a

falta de preparaccedilatildeo adequada dos professores de tal modo que possam responder aos desafios do Sistema

idealizados pela Reforma Educativa Essa visatildeo geral estrutural e conjuntural pode reflectir-se e explicar-se

melhor por meio do seguinte exemplo em relaccedilatildeo agrave indisciplina na aula espaccedilo privilegiado em que se

desenvolve o PEA Estrela (1983) citada por Lopes (2005) identificou um conjunto de variaacuteveis que vatildeo desde o

proacuteprio aluno passando pelo professor pela instituiccedilatildeo escolar ateacute agrave proacutepria sociedade Estes satildeo dados

suficientes para pensar na qualidade educativa como multideterminada

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desenvolvimento humano com base numa educaccedilatildeo e aprendizagem ao longo da vida para

todos os indiviacuteduos que permita assegurar o aumento dos niacuteveis de qualidade de ensino

Considerando a anaacutelise da estrutura do Sistema estabelecido pela Lei 1716 conclui-se que as

principais alteraccedilotildees agrave antiga Lei relacionam-se entre outras com a gratuitidade e

obrigatoriedade do ensino que passa a compreender as classes da Iniciaccedilatildeo do Ensino

Primaacuterio e do Primeiro Ciclo do Ensino Secundaacuterio bem como a nomenclatura das

instituiccedilotildees

Nesta vertente assume-se que o Subsistema de Ensino Geral eacute o fundamento do SEEA (Lei

no 1716 art 24ordm) que visa de acordo com o artigo em referecircncia assegurar uma formaccedilatildeo

integral harmoniosa e soacutelida necessaacuteria para uma boa inserccedilatildeo no mercado de trabalho e na

sociedade bem como para o acesso aos niacuteveis de ensino subsequentes

Como se pode apreciar existe uma relaccedilatildeo de determinaccedilatildeo entre o processo de ensino e

aprendizagem que se realiza no Subsistema do Ensino Geral e o trabalho bem como com a

Sociedade e com os niacuteveis de ensino posteriores o que significa o reconhecimento da

importacircncia deste niacutevel que deve permitir a aquisiccedilatildeo de ferramentas fundamentais para a

compreensatildeo da vida e do mundo Entre os seus objectivos de acordo com Ngaba (2012 p

158) constam os do desenvolvimento ldquodos conhecimentos e as capacidades que favoreccedilam

uma auto-formaccedilatildeo educar para a cidadaniardquo A educaccedilatildeo vista a partir da oacuteptica deste niacutevel

de ensino eacute um factor de integraccedilatildeo social

Por isso o questionamento da qualidade do PEANU eacute no fundo o questionamento da

qualidade do Sistema em si uma vez que estudando Poliacuteticas Educativas em Angola (1975-

2005) o autor antes referenciado e alinhado com Liberato afirma

ldquoEm termos gerais fica a ideia de estarmos perante um processo evolutivo que em periacuteodos

diferentes se foi deparando com os mesmos problemas e optando pelas mesmas soluccedilotildeesrdquo

No entanto de acordo com o mesmo autor ldquoquase quatro deacutecadas depois das primeiras

mudanccedilas ldquosignificativasrdquo no sector da educaccedilatildeo deacutecadas essas caraterizadas por sucessivos

estudos e mudanccedilas o paiacutes (hellip) carece de soluccedilotildees radicais que possam corrigir de uma vez

por todas os factores relacionados com o baixo coeficiente do sistema angolanordquo (Ngaba

2012 p 173)

De acordo com a ideia anterior a questatildeo da qualidade de ensino em Angola natildeo deve ser

vista como uma questatildeo da responsabilidade exclusiva de um ou de outro niacutevel de ensino

mas como uma questatildeo transversal do SEEA considerando entre outros princiacutepios gerais o

da integralidade estatuiacutedo no artigo 7o da Lei 1716 Por isso a anaacutelise desta questatildeo implica

um posicionamento multifactorial

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Com base nessa posiccedilatildeo o Sistema possui potencialidades capazes de proporcionar um PEA

motivador que permita a construccedilatildeo das aprendizagens dos alunos e que transforme o saber

em saber fazer e em saber ser na base de uma visatildeo axioloacutegica pois atendendo agrave

complexidade da acccedilatildeo educativa a UNESCO no Relatoacuterio DELORS (2003 p 11) sustenta

que para concretizar a sua meta a educaccedilatildeo deve organizar-se em quatro tipos fundamentais

de aprendizagens que ao longo da vida do indiviacuteduo seratildeo os pilares do conhecimento

Aprender a conhecer isto eacute adquirir os instrumentos para a compeensatildeo

aprender a fazer de modo a ser capaz de agir criativamente no proacuteprio

ambiente aprender a viver juntos de modo a participar e a colaborar com os

outros em todas as actividades humanas aprender a ser isto eacute um progresso

essencial que deriva dos trecircs precedentes

Para tornar este sonho real eacute necessaacuterio que o processo seja significativo e em si mesmo

motivador formando os professores de acordo com as necessidades da realidade objectiva

Trata-se de prover os recursos necessaacuterios a um processo que desafie os limites da situaccedilatildeo

actual pois se o professor eacute indispensaacutevel natildeo eacute menos verdade que os recursos educativos

tambeacutem o sejam (Lei 1716 art 97ordm)4

Tendo em conta os pressupostos legais da Repuacuteblica de Angola (Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e

Lei 1716) e os pilares da educaccedilatildeo propostos pela UNESCO considera-se que o ideal

educativo estaacute devidamente delineado Contudo eacute necessaacuterio que de acordo com Nanni

(2005 p81) citado por Fernando (2010 p 17) no ldquoacircmbito educativo o fim uacuteltimo ndash o

horizonte para o qual deve tender toda a acccedilatildeo educativa ndash natildeo deve fazer com que os fins

intermeacutedios ndash que o tornam possiacutevel e factiacutevel ndash sejam esquecidosrdquo Daiacute a relaccedilatildeo entre fins

meios e procedimentos educativos

A distinccedilatildeo entre fins uacuteltimos da educaccedilatildeo meios e procedimentos educativos eacute fundamental

porque de acordo com Fernando (2010 p 18)

Impele agrave procura e a determinar os recursos o tempo as modalidades e as estrateacutegias para a

realizaccedilatildeo do objectivo educativo que se pretende e permite de certo modo natildeo esquecer que

se natildeo se fizer a diferenccedila entre ideal e real entre fim uacuteltimo e limite da acccedilatildeo humana entre o

horizonte e o limite concreto das coisas e da existecircncia entre o itineraacuterio projectado e a

complexidade do percurso e da vida das pessoas corre-se o risco de se ser desumano e de cair

4 No artigo 97ordm a Lei 1716 define recursos educativos como os meios que contribuem para o desenvolvimento

do SEEA tais como a) Guias e programas pedagoacutegicos b) Manuais escolares C) Meios teacutecnicos e

tecnoloacutegicos de ensino d) Bibliotecas e) Equipamentos f) Laboratoacuterios g) Oficinas h) Instalaccedilotildees e

material desportivo e cultural i) Campos de ensaios treinamento e experimentaccedilatildeo j) Auditoacuterios e salas

especializadas

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no perfeccionismo ou de se desencorajar cansar e por fim de se sentir insatisfeito com aquilo

que se faz

Em consequecircncia nos nossos dias a questatildeo do discurso pedagoacutegico sobre a ldquofinalidaderdquo da

educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU natildeo eacute faacutecil porque a educaccedilatildeo eacute caracterizada hoje por

certa crise pela necessidade de inovaccedilatildeo e pelo pluralismo de ideias de valor e de cultura do

momento histoacuterico actual (Cfr Fernando 2010 Ngaba 2012 Liberato 2014)

Na continuidade da anaacutelise sobre a finalidade da educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU os

autores concordam com Fernando (2010 p 19) ao distinguir dois tipos de tendecircncias

educativas

1 A tendecircncia redutora que ldquoprocura ver a aprendizagem em funccedilatildeo das necessidades da

economia que com as suas solicitaccedilotildees convida a rever os conteuacutedos do ensino e sua

organizaccedilatildeo Esta eacute a linha ou corrente mais seguida nos nossos diasrdquo

2 A tendecircncia aberta que ldquoprocura integrar no conceito de aprendizagem outros elementos

significativos mais ligados agraves dimensotildees psicoloacutegicas sociais e culturais das experiecircncias do

indiviacuteduo enquanto protagonista da aprendizagemrdquo

Para os autores embora a primeira tendecircncia seja a mais seguida actualmente a segunda

parece melhor corresponder agrave dignidade do homem responsaacutevel porque de acordo com a Lei

1716 (art 15ordm) o SEEA deve promover natildeo soacute o cultivo da intelectualidade mas tambeacutem

dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticos

Assim a primeira reduz a finalidade da escola agrave instruccedilatildeo e a segunda supera esta visatildeo

sustentando que a finalidade primaacuteria da actividade pedagoacutegica escolar eacute a de educar sem

contudo deixar de parte a sua funccedilatildeo instrutiva Neste sentido a finalidade da educaccedilatildeo como

instituiccedilatildeo social deve coincidir com a finalidade da escola enquanto instituiccedilatildeo formal e

socialmente mandatada para educar isto eacute para possibilitar o desenvolvimento permanente da

qualidade da pessoa humana com dignidade e integridade

2 Desafios e Perspectivas da Educaccedilatildeo

Nas paacuteginas anteriores ficou clara a ideia de que os resultados qualitativos do SEEA

fundamentalmente relacionados com o PEANU satildeo e devem ser processo-produto de um

funcionamento integral do Sistema Por isso o maior desafio da educaccedilatildeo em Angola hoje eacute o

de vencer a contradiccedilatildeo existente em que satildeo atribuiacutedas culpas isoladas ou ao aluno que natildeo

estuda ou ao professor que natildeo estaacute preparado e natildeo motiva ou agraves mateacuterias que natildeo satildeo

atractivas e adaptadas agrave realidade profissional e do contexto de vida dos alunos ou aos pais

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que natildeo acompanham suficientemente os filhos ou ainda ao proacuteprio Sistema Educativo de

maneira geral

De acordo com a ideia anterior e tendo em conta a revisatildeo bibliograacutefica realizada5 os autores

consideram que os desafios para a melhoria das falhas devem ser enfrentados de forma

sistecircmica porque cada uma das variaacuteveis antes mencionadas eacute importante para o

funcionamento normal ou natildeo do PEA natildeo apenas no niacutevel referenciado mas em todos os

niacuteveis em atenccedilatildeo aos princiacutepios de integridade do Sistema e da obrigatoriedade e qualidade

dos serviccedilos educativos Isto pressupotildee uma poliacutetica educativa ajustada agrave realidade que

incentive a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores e garanta os meios materiais indispensaacuteveis

ao processo

Trata-se de construir uma verdadeira comunidade educativa em que todos os agentes

educativos como a famiacutelia a escola e a comunidade na sua dimensatildeo mais alargada

participem Por isso eacute necessaacuterio repensar a educaccedilatildeo para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de

um paiacutes novo como afirmara Joseacute Eduardo dos Santos (2008) nos seguintes termos ldquoum

novo paiacutes estaacute a nascer e com ele haacute-de florescer tambeacutem um cidadatildeo novordquo Quando

Considerando a perspectiva temporal como resposta os autores acreditam que isso se

realizaraacute agrave medida que a educaccedilatildeo se assuma antes de tudo como uma condiccedilatildeo de verdadeira

cidadania e natildeo de mera transmissatildeo de receitas importadas do exterior e enxertadas no nosso

contexto quando todos os agentes educativos tiverem presente que o educar eacute na verdade

um verbo ldquoque exige uma acccedilatildeo com atitude transformadorardquo (Pereira e Silva 2008 p 24)

Eacute neste sentido que Joseacute Eduardo dos Santos na sua alocuccedilatildeo agrave Naccedilatildeo referia-se ao papel dos

pais dos professores e de todos os actores sociais como verdadeiros agentes educativos da

juventude Trata-se do desafio de construir uma verdadeira sociedade educativa

Na construccedilatildeo dessa sociedade educativa a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores para o SEEA

e sobretudo para o PEANU deve ser entendida como uma consequecircncia de uma formaccedilatildeo

inicial que seja adequada agraves necessidades reais da sociedade para a qual se educa Isso implica

que os professores devem ser formados com base nos desafios da nova Repuacuteblica (Ngaba

2012)

5 Em Ofiacuteco de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Perrenoud (1995) denuncia uma dupla evidecircncia por um

lado haacute alunos que natildeo aprendem e por outro professores que natildeo formam porque ambos se contentam em

exercer manualmente os oacutecios do ofiacutecio enquanto a cabeccedila estaacute ausente Na mesma linha Grilo (2002) entende

que na ldquoNa sociedade do conhecimento hoje aprende-se e ensina-se em circunstacircncias e contextos muito

diversos embora por vezes se ensine mas natildeo se aprenda como ocorre por exemplo em algumas das escolas

Mas partindo do princiacutepio de que quando se ensina haacute sempre algueacutem que aprende o ensino (hellip) eacute um

mecanismo muito importante e uma peccedila fundamental desta sociedaderdquo (p 121)

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A formaccedilatildeo inicial que serve de base para a formaccedilatildeo contiacutenua de professores de acordo com

a Lei 1716 eacute assegurada pelo Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores que estaacute estruturado

em Ensino Secundaacuterio Pedagoacutegico e Ensino Superior Pedagoacutegico O primeiro constitui o

ldquoprocesso atraveacutes do qual os indiviacuteduos adquirem e desenvolvem conhecimentos haacutebitos

habilidades capacidades e atitudes que os capacite para o exerciacutecio da profissatildeo docente na

Educaccedilatildeo Preacute-escolar no Ensino Primaacuterio e no I Ciclo do Ensino Secundaacuterio Regular de

adultos e na Educaccedilatildeo Especial e mediante criteacuterios o acesso ao Ensino Superior

Pedagoacutegicordquo (Art 46)

Por outro lado e de acordo com a mesma Lei um dos fundamentos do SEEA o ldquoEnsino

Superior Pedagoacutegico eacute um conjunto de processos desenvolvidos em Instituiccedilotildees de Ensino

Superior vocacionados agrave formaccedilatildeo de professores e demais agentes de educaccedilatildeo habilitando-

os para o exerciacutecio da actividade docente e de apoio agrave docecircncia em todos os niacuteveis e

subsistemas de ensinordquo (Art 49)

Em correspondecircncia com os estes dois artigos da Lei 1716 compreende-se a relaccedilatildeo

intriacutenseca entre o Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores e os diferentes niacuteveis de ensino do

SEEA

A educaccedilatildeo em Angola vista na oacuteptica dos seus fundamentos legais constitui-se assim numa

ldquoforma de poder porque a educabilidade eacute um poder-ser humano mediado pela educaccedilatildeo

como poder sobre o ser humano que decide sobre o dever-ser humano Eacute um poder ser

porque o ser humano eacute um ser biologicamente aberto agrave criaccedilatildeo de uma segunda naturezardquo

(Monteiro 2004 p 12)

De acordo com o autor referenciado com antecedecircncia todas as formas de poder do ser

humano sobre o outro suscitam a questatildeo da sua legitimidade Esta questatildeo eacute no fundo a do

fundamento e controlo do poder que o professor exerce atraveacutes dos conteuacutedos e formas da

comunicaccedilatildeo que realiza ante o aluno Assim sendo

A ldquolegitimidade pedagoacutegica eacute de natureza social porque ser profissional da

educaccedilatildeo implica um mandato da sociedade atraveacutes do Estado que regula o

exerciacutecio da funccedilatildeo Eacute tambeacutem de natureza individual na medida em que a

competecircncia pessoal tem um efeito de auto-legitimaccedilatildeo junto dos educandos

Mas tem de ser problematizada com mais radicalidade porque a educaccedilatildeo eacute

afinal uma forma de poder do homem sobre o homemrdquo (Monteiro 2004 p

12)

Daiacute que se a educaccedilatildeo eacute uma forma de poder eacute necessaacuterio que se exerccedila tal poder na justa

medida tendo como princiacutepio e limite a Lei que estabelece entre outros aspectos importantes

natildeo soacute a formaccedilatildeo inicial mas tambeacutem a contiacutenua dos professores para que respondam agraves

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necessidades da sociedade angolana

Portanto a anaacutelise da qualidade da educaccedilatildeo como um fenoacutemeno multideterminado que

possibilita caracterizar o Sistema justifica que a formaccedilatildeo contiacutenua de professores variaacutevel

importante para esta caracterizaccedilatildeo natildeo deve ser vista como um simples adereccedilo mas sim

como parte importante de uma cultura institucionalmente legal onde a articulaccedilatildeo entre as

instituiccedilotildees de Ensino Superior (pedagoacutegicas ou natildeo) e as do ensino geral seja

dialecticamente um facto

CONCLUSAtildeO

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento da realidade

educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento que tem como

fundamento a interpretaccedilatildeo da Lei e a revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura

criacutetico-contextual

A revisatildeo bibliograacutefica assente numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional permite

concluir que existem avanccedilos e retrocessos no processo educativo angolano que em termos

de poliacutetica educativa condicionaram sua evoluccedilatildeo positiva bem como sua afirmaccedilatildeo no

cenaacuterio internacional e ateacute mesmo regional

Esta constataccedilatildeo impotildee desafios a vencer na perspectiva da construccedilatildeo de uma sociedade

educativa em que cada agente participe reconhecendo a necessidade contiacutenua da formaccedilatildeo

dos professores para o PEANU como fundamento do SEEA

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la Repuacuteblica de Angola Tesis doctoral La Habana Universidade de Ciencias Pedagoacutegicas `Enrique Joseacute

Varonaacute

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Paacutegina 73 de 74

1 Os artigos podem ser escritos em portuguecircs inglecircs espanhol e francecircs

2 Tecircm que ser ineacuteditos e natildeo mais de 20 paacuteginas notas de peacute de paacuteginas incluiacutedas

3 As resenhas submetidas natildeo devem superar 6 paacuteginas

4 O envio de artigo deveraacute ser acompanhado por um abstract no idioma original do artigo e

em inglecircs e no miacutenimo com trecircs palavras-chave

5 O formato das letras eacute Times New Roman 12 justificado e com 15 de espaccedilo

6 Os textos devem ser enviados em formato Word Perfect ou em Word para o PC

7 Os artigos enviados devem ser assinados pelos autores que tambeacutem deveratildeo indicar os

seus graus acadeacutemicos e filiaccedilatildeo institucional

8 A redacccedilatildeo da revista reserva o direito de publicar ou natildeo

9 Haveraacute sempre um comiteacute externo para avaliaccedilatildeo dos artigos

10 Os tiacutetulos dos artigos devem estar na liacutengua original e em caso de necessidade em inglecircs

11 As referecircncias bibliograacuteficas e notas de peacute de paacuteginas devem ser numeradas As

referecircncias bibliograacuteficas devem ser completas na primeira cita utilizando a norma

claacutessica para as Ciecircncias Sociais e Humanas e Vancouver ou AMA para as Ciecircncias de

Sauacutede

12 Aceitam-se os projectos de investigaccedilatildeo que natildeo superam 8 paacuteginas

LIVROS ELECTROacuteNICOS

As citas devem comeccedilar com o primeiro e uacuteltimo nome do (s) autor (es) tiacutetulo do livro

electroacutenico (em itaacutelico) editor data de publicaccedilatildeo nuacutemero da paacutegina citada Endereccedilo Web

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PROCESSO DE AVALIACcedilAtildeO E DE SELECcedilAtildeO DOS ARTIGOS

1 Os artigos devem ser enviados para o e-mail da revista ou do Director nos prazos

indicados

2 A Direcccedilatildeo acusaraacute a recepccedilatildeo do trabalho sem necessariamente manter contacto com o

autor antes da decisatildeo final de publicar ou natildeo

3 Os autores dos artigos satildeo responsaacuteveis pela sua revisatildeo ortograacutefica e gramatical

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Page 9: Página 1 de 74 - Início | ISPSN · 2019. 5. 3. · Página 5 de 74 que traz um começo, que “cria um começo” e que reinventa um começo a partir da dor e da cura. A cidade

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dialog leading to the unit doesnrsquot oblige but moves in respect of freedom of the person and

of the sovereignty of each State At last it is a sincere dialog and fruitful that acknowledging

all the legitimate diversity promotes respect harmony and collaboration

Keywords The Human Person Africa Metaphysical foundation Metaphysical foundation

and Dialogue

Premissa

No actual contexto de crescente e incisiva globalizaccedilatildeo eacute difiacutecil subtrair-se ao dever ou agrave

necessidade de prestar conta de si mesmos Neste clima cultural tambeacutem a unidade africana eacute

chamada a justificar-se ou seja a justificar o seu direito de continuar a ser Agrave primeira vista

poderia parecer que a sua justificaccedilatildeo natildeo seja hoje um problema visto que eacute cada vez mais

difuso o uso do termo unidade e da expressatildeo uniatildeo africana Mas urge reflectir nesta unidade

agrave luz da filosofia para lhe compreender o seu verdadeiro significado

Aprendemos com Nicola Abbagnano que laquonada do que eacute humano eacute estranho agrave filosofia [hellip]

aliaacutes esta eacute o mesmo homem que se interroga a si mesmo e procura as razotildees e o fundamento

do seu serraquo1 Esta eacute a filosofia na sua adesatildeo agrave existecircncia humana e ao mesmo tempo na sua

amplitude em relaccedilatildeo aos problemas do homem Natildeo de um homem que vive no Uacuterano mas

do homem concreto que na sua vida experimenta acircnsias e insuficiecircncias alegrias e

esperanccedilas tristezas e anguacutestias2 Portanto todas as coisas satildeo susceptiacuteveis de reflexatildeo

filosoacutefica inclusive a proacutepria unidade africana exige filosofar

De facto filosofar eacute examinar a realidade e isso de um modo ou de outro todos fazemos

constantemente Ao se tentar resolver os problemas globais sociais ou pessoais eacute impossiacutevel

se abster da racionalidade Entretanto haacute uma gama de situaccedilotildees onde a razatildeo natildeo pode

avanccedilar por falta ou excesso de dados o que impossibilita decisotildees objectivas Entra em cena

entatildeo a parte subjectiva humana mais especificamente a Intuiccedilatildeo como meio de direccionar

nosso foco de entendimento e apontar caminhos a serem trilhados pela racionalidade

Soacute que actualmente a filosofia passa por uma perda de identidade Existe uma verdadeira

inflaccedilatildeo do termo filosofia e como toda a inflaccedilatildeo eacute sintoma de queda de valores de crise

difusa e profunda Hoje o termo filosofia indica muitas vezes coisas difiacuteceis proacuteprias do

hiperuracircnio e natildeo o homem que natildeo aceitando passivamente as informaccedilotildees fornecidas pela

experiecircncia imediata desenvolve uma postura de questionamento proacuteprio sobre a realidade

interroga-se a si mesmo e metodoloacutegica e ordenadamente procura as razotildees e o fundamento

1 N ABBAGNANO Storia della filosofia I UTET Torino 1963 p XVII

2 Cf CONCIacuteLIO VATICANO II Gaudium et Spes n 1

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do seu ser buscando como faziam os gregos um instrumento fundamental e o uacutenico

racionalmente possiacutevel para a soluccedilatildeo dos problemas da vida

A confusatildeo com relaccedilatildeo agrave filosofia e a desinformaccedilatildeo geral que permeia mesmo o meio

acadeacutemico chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimeacutericas no sentido de se

eliminar a Filosofia Entretanto ciecircncia alguma pode se ocupar da macro realidade O

empirismo natildeo pode ser aplicado agrave civilizaccedilatildeo humana agrave mente ao total Quem estabelece a

comunicaccedilatildeo entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia Cremos ser

este o quadro em que se deve inserir a reflexatildeo sobre a unidade africana que aqui fazemos

partindo da metafiacutesica do termo pessoa

Tal reflexatildeo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vatildeo

desafiando a unidade do continente africano Haacute uma verdade hoje admitida por quase todos

e ateacute pelos mais preconceituosos arqueoacutelogos de que a humanidade e a civilizaccedilatildeo

desenvolveram-se na noite dos tempos no berccedilo deste continente gigantesco chamado Aacutefrica3

Temos consciecircncia de que a Aacutefrica eacute um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas Embora esta imensidatildeo nos aconselhe a natildeo fazer

generalizaccedilotildees na avaliaccedilatildeo dos problemas natildeo nos impede de buscar e propor soluccedilotildees aos

problemas inerentes agrave falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito

de pessoa

1 Breve excursus histoacuterico-filosoacutefico do conceito de pessoa

11 A densidade semacircntico-etimoloacutegica do termo pessoa

A densidade semacircntica do termo pessoa formou-se no tempo graccedilas ao contributo cultural de

muitos filotildees de reflexatildeo O conceito de pessoa tem pois um percurso rico quanto complexo

De recordar que na antiguidade greco-romana natildeo se encontra bem claro o conceito de pessoa

Todavia seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias

Etimologicamente e segundo algumas pesquisas atentas os primeiros indiacutecios do termo

pessoa encontram-se no acircmbito da cultura etrusca De facto o termo phersu utilizado nos

ritos em honra de Phersepona e que significaria maacutescara4 passou a significar o indiviacuteduo

3 Cf Carlos SERRANO ndash Mauriacutecio WALDMAN Memoacuteria drsquoAacutefrica A temaacutetica africana em sala de aula

Cortez Editora Satildeo Paulo 20082 p 75 Cf Tambeacutem Luigi TRANFO Africa La transizione Tra sfruttamento e

indifferenza EMI Bologna 1995 p 269 Pedro F MIGUEL Aacutefrica Uma visatildeo global Viverein Roma 2013

p 11 4 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique in

laquoRevue des sciences religieusesraquo XXII (1948) 277-299 A MILANO Persona in teologia Dehoniane Napoli

1984 pp 16-71

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mascarado a personagem que o actor representa no drama ou seja o indiviacuteduo humano

moral e social5

Nesta senda do indiviacuteduo mascarado Edith Stein observa que visto que nas comeacutedias e nas

trageacutedias se representavam personagens famosos o nome pessoa foi imposto para significar

sujeitos que tinham um papel na sociedade por isso alguns definem a pessoa como laquouma

hipoacutestase marcada por uma qualificada conexatildeo com a sua dignidaderaquo 6

Natildeo encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Boeacutecio que liga pessoa ao

verbo personare aludindo agrave amplificaccedilatildeo da voz de quem fala por detraacutes da maacutescara Assim

pessoa eacute segundo Boeacutecio laquodecta est volvatur sonusraquo 7 Tambeacutem natildeo eacute correcto afirmar que

pessoa seja a contracccedilatildeo de per se una como quereria a proposta de Alano di Lilla8

12 O percurso evolutivo do conceito de pessoa

Com Ciacutecero e Seacuteneca a evoluccedilatildeo do conceito de pessoa deu passos importantes sem

contudo chegar agrave definiccedilatildeo hodierna

Do segundo seacuteculo em diante o conceito de pessoa entra no uso corrente na onda do esforccedilo

de clarificaccedilatildeo exigida pelas controveacutersias teoloacutegicas sobre o dogma trinitaacuterio Poreacutem foi

com Boeacutecio que o conceito de pessoa adquire o actual conteuacutedo teoacuterico E isto no contexto da

clarificaccedilatildeo conceitual sobre as questotildees teoreacuteticas que emergiam da doutrina sobre a

Trindade

Segundo Boeacutecio laquopersona est rationalis naturae individua substantiaraquo (pessoa eacute substacircncia

individual de natureza racional) 9 Boeacutecio elabora esta definiccedilatildeo servindo-se do patrimoacutenio

filosoacutefico grego e latino De facto ele sistematiza os conceitos latinos de persona natura e

substantia estabelecendo uma equivalecircncia com os vocaacutebulos gregos πρόσωπον ούσία

ύπόστασις que na oscilaccedilatildeo terminoloacutegica do tempo eram usados de maneira equiacutevoca e

confusa

Com Boeacutecio a natura toma definitivamente o lugar de ούσία entendida como essecircncia e

substantia passa a traduzir o grego ύπόστασις10

Satildeo poucos os filoacutesofos que no medievo natildeo

5 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique op

cit pp 298-299 6 Edith STEIN Essere finito e essere eterno Per una elevavazione al senso dellrsquoessere Cittagrave Nuova Roma

1988 p 380 7 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1344

8 Cf Enrico BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico in AAVV Persona e

personalismo Aspetti filosofici e teologici Fondazione Lanza Padova 1992 p 43 9 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1343

10 Cf Claudio MICAELLI ldquoNaturardquo e ldquoPersonardquo nel ldquoContra Eutychen et Nestoriumrdquo di Boezio Osservazioni

su alcuni problemi filosofici e linguistici in Luca OBERTELLO (a cura di) Atti del Congresso Internazionale di

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tinham encontrado a definiccedilatildeo de Boeacutecio satisfatoacuteria porque essa interpretava a realidade que

se tentava definir precisando-lhe o significado

Esta definiccedilatildeo pessoa eacute substacircncia individual de natureza racional que durante o medievo

faz cultura e caracteriza a tradiccedilatildeo teoloacutegica latina surge sob o impulso das disputas contra os

nestorianos os quais sustentavam que em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em

uniatildeo permanente e moral e contra os monofisistas que sustentavam a existecircncia em Cristo de

uma soacute natureza a divina11

Na definiccedilatildeo de Boeacutecio o termo pessoa tem um sentido mais especiacutefico e refere-se agrave estrutura

fundamental e metafiacutesica do indiviacuteduo ou seja agrave substacircncia individual dotada de uma

natureza racional Quer dizer nem todos os seres naturais satildeo pessoas mas apenas aqueles

substanciais

Por isso a pessoa eacute substacircncia individual Eacute individual porque tem caracteriacutesticas que a

distinguem dos outros indiviacuteduos da mesma espeacutecie caracteriacutesticas que natildeo satildeo definiacuteveis

nem comunicaacuteveis aos outros Eacute substacircncia porque eacute existente em si por si e em nenhum

outro Dizer substacircncia individual significa portanto dizer que a pessoa natildeo tem necessidade

para existir de aderir a um outro ser e conteacutem no seu quid alguma coisa de

incomunicabilidade que divide com nenhum outro12

A pessoa eacute igualmente de natureza racional O seu conhecer natildeo eacute impresso na mateacuteria nem eacute

limitado por essa Dizer natureza racional significa por isso que a pessoa natildeo soacute exerce as

actividades conexas agrave natureza mas tem a capacidade de desenvolvecirc-las capacidade possuiacuteda

por natureza ou seja com o nascimento13

A pessoa eacute pois o gau mais elevado de ser

substancial porque essa eacute consciente do seu ser substacircncia individual

Toda a pessoa eacute portanto antes de mais um indiviacuteduo Mas ao mesmo tempo muito mais que

indiviacuteduo porque natildeo eacute uma personagem mas uma substacircncia individual que possui em si

uma certa dignidade em razatildeo da sua racionalidade Por isso natildeo basta afirmar que a pessoa eacute

Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott 1980) Herder Roma 1981 p 336 11

Fruto destas disputas eacute a obra de Boeacutecio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium

cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestoacuterio De recordar poreacutem que desde

os primeiros seacuteculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importacircncia ndashcom Tertuliano os Padres

Capadoacutecios S Agostinho e S Joatildeo Damasceno ndash nos interrogativos teoreacuteticos que emergiam da Revelaccedilatildeo e nas

controveacutersias teoloacutegicas acerca do dogma trinitaacuterio Tais controveacutersias se concluiacuteram com a foacutermula das trecircs

pessoas ou hipoacutestases na uacutenica substacircncia ούσία ou natureza divina Os Padres da Igreja separando de maneira

definitiva o conceito de πρόσωπον da referencia agrave personagem

traacutegica ou coacutemica deram focirclego a um aprofundamento do

conceito de pessoa tambeacutem na reflexatildeo filosoacutefica (cf Gregorio DI NISSA La grande catechesi CIttagrave Nuova

Roma 1982 p 51 Gregorio NAZIANZENO I cinque discorsi teologici CIttagrave Nuova Roma 1986 p 175)

12 Cf San Tommaso DrsquoAQUINO Questiones disputatae De potentia q 9 a 2 ID Summa Theologiae I q

29 a 13

Cf E BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico op cit p 48

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algo de individual e nem mesmo que eacute uma substacircncia ou uma natureza para defini-la do

ponto de vista metafiacutesico

Visto que a individualidade eacute acidente isto eacute pertence agravequilo que existe como perfeiccedilatildeo e eacute

caracteriacutestica de um sujeito e enquanto a substacircncia e a natureza indicam o que eacute proacuteprio da

espeacutecie ocorre a substacircncia individual de uma natureza racional para que exista pessoa

Ocorre portanto que se refira a uma substacircncia individualizada de um ser racional para que

exista pessoa do ponto de vista metafiacutesico Somente um ser racional pode corresponder agrave

dignidade de pessoa porque pessoa eacute enfim um ser em si que natildeo pode ser substituiacutedo por

um outro e que eacute capaz de operaccedilotildees proacuteprias e racionais

Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da foacutermula de Boeacutecio Satildeo

Tomaacutes elabora a sua definiccedilatildeo de pessoa como laquosubsistens in rationali naturaraquo 14

Com a foacutermula subsistens in rationali natura Satildeo Tomaacutes evidencia natildeo soacute o aspecto comum ndash

pressuposto universalmente aceite da pessoa ndash assim como expresso pela substacircncia

individual da definiccedilatildeo de Boeacutecio mas evidencia sobretudo aquele individual isto eacute o

existente considerado na acepccedilatildeo mais proacutepria ou seja o seu ser uacutenico e irrepetiacutevel De facto

na definiccedilatildeo de Boeacutecio a substacircncia individual parece ser concebida como individualidade A

individualidade poreacutem eacute determinaccedilatildeo da coisa e natildeo ainda do quem eacute uma conotaccedilatildeo

natural da pessoa e natildeo da mesma pessoa

Satildeo Tomaacutes condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o

que de mais nobre e perfeito haacute no universo e por isso afirma laquopersona significat id quod est

perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturaraquo 15

Pessoa eacute a natureza racional que existe num indiviacuteduo concreto Por isso somente aquilo que

eacute subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa E eacute o subsistir de maneira

individual na natureza racional que confere a dignidade agrave pessoa ou seja laquoquia magnae

dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur

personaraquo 16

De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana natildeo eacute a abstracta razatildeo ndash como parece

indicar a natureza racional da definiccedilatildeo de Boeacutecio ndash mas a racionalidade possuiacuteda por um

subsistente ou seja de um ser concreto E este em virtude de um actus essendi proacuteprio que

confere actualidade agrave substacircncia e agraves suas determinaccedilotildees Tudo isto que a pessoa sabe quer e

faz brota do proacuteprio acto em virtude do qual eacute aquilo que eacute

14

Cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 29 a 3 c 15

Ibidem 16

Ibidem

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Da elaboraccedilatildeo de Satildeo Tomaacutes compreende-se essencialmente o caraacutecter racional da pessoa

racional enquanto capaz de ser consciente do proacuteprio ser17

A pessoa eacute todo o indiviacuteduo de

natureza racional livre atravessado por tradiccedilotildees e culturas responsaacutevel relacional

inteligente volitivo dialogante e por isso fundamento de unidade entre indiviacuteduos e povos

2 Do conceito da pessoa agrave construccedilatildeo da unidade africana

Antes da conquista das independecircncias os colonos procuravam inflamar as diferenccedilas

fechando as coloacutenias em si mesmas num clima de reserva ciumenta de distacircncia e quase de

desconfianccedila Com as independecircncias os encontros entre paiacuteses antigamente colonizados se

multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaboraccedilatildeo E com a criaccedilatildeo da

Organizaccedilatildeo da Unidade Africana (OUA) que veio desempenhar o papel extremamente

precioso de lugar de encontros de oacutergatildeo de diaacutelogo e de troca de experiecircncias entre Chefes de

Estado e de Governo africanos o esforccedilo para a unidade se exprimiu de modo mais visiacutevel

Contudo a vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante E enquanto essencialmente relacionais e

dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e

que os distinguem das outras espeacutecies de seres Todos os homens tecircm as mesmas tendecircncias e

exigecircncias fundamentais quanto ao aneacutelito da unidade Todo o homem eacute chamado agrave comunhatildeo

e estaacute aberto agrave comunicaccedilatildeo e ao diaacutelogo

O homem eacute capaz pois de intercacircmbio de dar-se aos outros e deles receber porque a sua

natureza o abre agrave comunhatildeo agrave comunicaccedilatildeo e agrave unidade A sua natureza relacional e

dialogante natildeo eacute apenas uma necessidade mas eacute sobretudo um dom que o ambiente que o

impede de continuar fechado e isolado no egoiacutesmo e aberto aos conflitos De facto o homem

eacute aquilo que eacute pela sua inconfundiacutevel individualidade mas tambeacutem pelo seu ser aberto ao

outro e agraves realidades extriacutensecas por causa da sua sociabilidade A sociabilidade eacute pois uma

expressatildeo da sua humanidade e a unidade uma sua actuaccedilatildeo

Por isso a unidade africana pressupotildee a uniatildeo consciente entre africanos e o comum e

orgacircnico esforccedilo para conseguir o bem humano integral A unidade africana na base da

descoberta da comum humanidade articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para

com todos e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros

17

Muitas vezes o termo racional eacute confuso com o termo intelectual Na verdade intelecto e razatildeo diferem O

intelectual eacute um conhecimento simples e imediato enquanto o racional passa de um conhecimento simples para

um mais complexo (cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 59 a 1)

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povos do continente para alcanccedilar o bem comum18

Enfim a unidade encontra a sua raiz na essecircncia metafiacutesica da pessoa humana e exprime por

conseguinte a estrutura ontoloacutegica dos africanos e diz respeito agrave proacutepria possibilidade da sua

realizaccedilatildeo Por isso as divisotildees e os conflitos lupescos natildeo fazem parte da normalidade

africana

Portanto apesar de Aacutefrica ser um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas o continente africano explica-se como unidade na

diversidade E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos eacute garantida

metafisicamente pela origem pelo facto mesmo de sermos africanos ndash do Cabo ao Cairo de

Dar es-Salaam a Dakar ndash mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas

O fundamento metafiacutesico de origem representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica

uma forccedila inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as

diversidades presentes nos Estados africanos a incomunicabilidade geograacutefica a hipocrisia

as tensotildees e os desejos separatistas e conduzir a um compromisso claro entre os africanos

respeitando as suas diversidades e os seus interesses reciacuteprocos empenhando num projecto

comum para uma Aacutefrica mais humana e mais social em que reinem sempre o respeito muacutetuo

o reconhecimento e a protecccedilatildeo dos direitos humanos fundamentais e se faccedila valer o lado

melhor dos africanos os valores basilares da paz da justiccedila da liberdade da toleracircncia da

participaccedilatildeo e da solidariedade Este fundamento metafiacutesico de origem eacute importante

porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do que o que os

separa

Contudo a unidade africana deve ser construiacuteda e aprofundada de forma dinacircmica e

incessante porque os pressupostos da uniatildeo representados pelos factores geograacuteficos pela

multiplicidade das tradiccedilotildees regionais nacionais culturais e religiosas pelos interesses

econoacutemicos trocas econoacutemicas paciacuteficas e seguras pela heranccedila e tradiccedilotildees socioculturais

africanas mais autecircnticas em si natildeo bastam para criar a uniatildeo poliacutetica Eacute necessaacuterio voltarmos

agrave metafiacutesica da unidade e reelaborar juntos a histoacuteria da Aacutefrica que aleacutem das muito boas

experiecircncias de unidade eacute ainda caracterizada nalguns casos por desentendimentos lutas

fratricidas entre etnias e ateacute por conflitos beacutelicos

Com razatildeo Kwame Nkrumah apelava na sua obra A Aacutefrica deve unir-se agrave unidade natildeo

tanto para indicar a necessidade ou condiccedilatildeo de estar unidos mas sobretudo o acto de se unir

18

Cf L F KAMBALU A democracia personalista Os fundamentos onto-antropoloacutegicos da poliacutetica agrave luz de

Pietro Pavan Paulinas Lisboa 2012 pp 51-64

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porque os pressupostos geograacuteficos e econoacutemicos por si soacute natildeo bastam para criar a uniatildeo

Ocorrem instituiccedilotildees vinculativas bem como vontade e consciecircncia de pertenccedila a um mesmo

continente chamado Aacutefrica A consciecircncia deve preceder agrave formaccedilatildeo poliacutetica da unidade

africana que natildeo se poderaacute alcanccedilar de forma duradoira sem valores comuns Outrossim

ocorre recordar que a unidade eacute em si um bem somente quando eacute ordenada quando responde

agrave razatildeo objectiva da verdade da justiccedila e do bem O mesmo eacute dizer que a unidade eacute um bem

que vale tanto quanto respeita o que haacute de valor nas partes que a compotildeem

A unidade perde valor quando se realiza de modo maciccedilo esmagador absoluto destruidor e

totalitaacuterio abolindo o espaccedilo que permite o diaacutelogo destruindo desta forma a esfera em que os

homens agem tomam decisotildees comuns e operam colaborando Por isso sem liberdade nem

diaacutelogo a unidade africana seria impossiacutevel porque a Aacutefrica natildeo seria mais o espaccedilo onde cada

indiviacuteduo aos outros as proacuteprias capacidades em vista do bem comum segundo princiacutepios de

igualdade substancial Neste sentido a Aacutefrica seria um conjunto de indiviacuteduos e por

conseguinte um conjunto de Estados sem laccedilos entre si Cada um veria o outro natildeo como um

semelhante com quem eacute chamado a relacionar-se e tomar iniciativas mas um inimigo de

quem se defender

Enfim para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma

poliacutetica que envolva todas as pessoas e forccedilas a todos os niacuteveis na busca do bem comum ou

seja na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem agraves exigecircncias

intriacutensecas e imutaacuteveis da natureza humana Trata-se pois de condiccedilotildees econoacutemicas

juriacutedicas morais e religiosas que tornam possiacutevel e favorecem o conseguimento pleno e faacutecil

do desenvolvimento integral das pessoas

As exigecircncias histoacutericas e os significados de unidade satildeo sempre mutaacuteveis Mudam conforme

se entenda o que leva os homens a unirem-se a niacutevel ontoloacutegico e histoacuterico ou seja

consoante a efectiva existecircncia daquele princiacutepio originaacuterio em cada homem e povo ou

consoante o plano social poliacutetico religioso e cultural em que se actua a unidade De facto

natildeo poucas vezes os proacuteprios acontecimentos histoacutericos e as proacuteprias diferenccedilas exigem que

se redefinam os instrumentos poliacuteticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova

filosofia de relaccedilotildees entre povos e Estados que vatildeo aleacutem do que no passado natildeo foi possiacutevel

Tais diferenccedilas podem provir de uma profunda oposiccedilatildeo e de uma divergecircncia quanto ao fim

As diferenccedilas podem provir tambeacutem de uma dupla visatildeo de um mesmo objectivo Seja qual

for a origem das diferenccedilas a atitude sadia eacute compreender as realidades e promover o diaacutelogo

e ver como as proacuteprias diferenccedilas permitem situar melhor o objecto

Por isso eacute mister que nos diversos acircmbitos questotildees e temas sobre os quais incumbe o risco

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da divisatildeo os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma soacute voz cultivando e

empenhando-se intensa livre e conscientemente ao diaacutelogo

O diaacutelogo eacute fundamental para a vida poliacutetica sobretudo quando exerce a funccedilatildeo da busca da

verdade e do bem No caso da Aacutefrica o diaacutelogo torna-se uma exigecircncia insubstituiacutevel para

superar as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente se vatildeo intensificando

na actualidade O diaacutelogo eacute igualmente fundamental para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos culturais raciais sociais e religiosos e promover e concretizar a

unidade a justiccedila e a paz natildeo soacute por causa do pluralismo eacutetnico cultural racial social e

religioso do continente mas sobretudo por causa do seu pluralismo poliacutetico pois atraveacutes do

diaacutelogo cada indiviacuteduo ou povo enriquece o proacuteprio ponto de vista e converge para as noccedilotildees

de verdade e de bem humano e se empenha a potenciaacute-las corresponsavelmente para a

unidade

O diaacutelogo eacute tambeacutem essencial para a unidade poliacutetica social e econoacutemica e o

desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos pois tal como os povos tambeacutem

os Estados tecircm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si proacuteprios e no encontro

com os outros se realizarem plenamente Por isso o isolamento seria um impedimento

insuperaacutevel para a unidade e a realizaccedilatildeo do proacuteprio continente africano

Tal diaacutelogo deve basear-se em valores princiacutepios e normas aceites e deve ser assegurado por

um sistema constitucional e de direito pela promoccedilatildeo da justiccedila da paz e da liberdade para o

continente africano pela experiecircncia da verdade e pela busca constante de compreensatildeo dos

fundamentos que tecircm plasmado a Uniatildeo Africana

O diaacutelogo natildeo se processa sem dificuldades e eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes da discussatildeo e

argumentaccedilatildeo eacute reconheciacutevel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a

dignidade pessoa humana e eacute possiacutevel a diversos niacuteveis no plano da experiecircncia quotidiana

para as questotildees sociais comunitaacuterias familiares eacuteticas e ecoloacutegicas no plano do encontro

das culturas para o respeito e o melhor conhecimento reciacuteproco no plano desportivo para o

cultivo do sentimento de pertenccedila a um todo continental no plano poliacutetico para questotildees que

dizem respeito agrave seguranccedila econoacutemica cultural e juriacutedica no plano militar para questotildees que

dizem respeito agrave garantia da seguranccedila e integridade territorial bem como agrave erradicaccedilatildeo de

conflitos em Aacutefrica

Trata-se de um diaacutelogo gradual e sempre pronto a recomeccedilar Um diaacutelogo que natildeo obriga mas

se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado trata-se de um

diaacutelogo que natildeo eacute apenas instrumental nem nasce de taacutecticas ou de interesses mas um diaacutelogo

sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

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concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Enfim trata-se de uma actividade que apresenta motivaccedilotildees exigecircncias e dignidade proacutepria e

implica um muacutetuo esforccedilo de compreensatildeo por parte dos interlocutores que se compreendem

verdadeiramente quando descobrem aleacutem dos laccedilos que os unem e os integram uns aos outros

e dos valores a eles comuns as razotildees ideais em que cada um deles se inspira para realizaacute-los

Outrossim tal diaacutelogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente beneacuteficos como o

aumento da maturidade dos africanos ndash numa penetraccedilatildeo mais autecircntica da complexa

realidade do mundo hodierno em que a Aacutefrica se move ndash a resoluccedilatildeo dos problemas a

superaccedilatildeo dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de

todas as naccedilotildees bem como pela seguranccedila e bem-estar do continente africano

Tudo isso levanta muitos e difiacuteceis problemas de ordem econoacutemica social e poliacutetica Poreacutem

estaacute de facto que diante das diferenccedilas e dos antagonismos que o continente africano vive

actualmente soacute a consciecircncia da comum humanidade e o diaacutelogo franco luacutecido e proveitoso

pode permitir construir um caminho de toleracircncia e aceitaccedilatildeo muacutetuas para a realizaccedilatildeo de uma

convivecircncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da

pessoa humana da mobilidade interna da integraccedilatildeo soacutecio-econoacutemica do continente e do

florescimento de um mercado interno Isto faraacute tambeacutem com que os africanos natildeo sejam

meros fornecedores de mateacuterias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos

estrangeiros mas produtores e consumidores de produtos do seu proacuteprio continente

Um diaacutelogo natildeo inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade mas um diaacutelogo

franco na base da consciecircncia de pessoas humanas e do respeito reciacuteproco De facto sem

diaacutelogo franco natildeo haacute progresso porquanto o progresso eacute liberdade e somente a verdade que

pode exprimir-se nos torna livres

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HISTOacuteRIA A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO

SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA

A PARTIR DE FRANTZ FANON

NLANDU MATONDO FAUSTINO a

Resumo

O presente trabalho procurou desconstruir a partir das teses de Frantz Fanon sobretudo

aquelas formuladas nos ldquoCondenados da Terrardquo a ideia de uma suposta missatildeo civilizadora

subjacente na intenccedilatildeo colonizadora consubstanciada na equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual a

civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo Partindo de uma indagaccedilatildeo da validade criticaacutevel

da equaccedilatildeo em epiacutegrafe cruzou os factos agraves doutrinas que versam sobre o fenoacutemeno da

colonizaccedilatildeo de Aacutefrica e chegou a depreender com uma certa objectividade de que a

colonizaccedilatildeo em Aacutefrica tal ficou visto por Fanon foi mais um movimento de

despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeo dos africanos em geral e dos negros em particular do que

um projecto de humanizaccedilatildeo e de emancipaccedilatildeo dos indiacutegenas de Aacutefrica negra Ficou portanto

evidente ao longo deste trabalho de que a colonizaccedilatildeo foi uma violecircncia que extraiu a sua

originalidade na substantivaccedilatildeo do colonizado Uma violecircncia que natildeo soacute presidiu ao arranjo

do mundo colonial como tambeacutem ritmou e alimentou a destruiccedilatildeo antropoloacutegica e ontoloacutegica

do negro-africano incluindo todas as suas formas sociais arrasou completamente os seus

sistemas de referecircncias econoacutemicas os seus modos ldquoessendi et operandirdquo e decretou a crise

soacutecio-cultural dos povos negros de Aacutefrica

Palavras-chaves colonizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo violecircncia despersonalizaccedilatildeo descolonizaccedilatildeo

emancipaccedilatildeo

Abstract

The present study sought to deconstruct from the theses of Frantz Fanon especially those

formulated in The Wretched of the Earthrdquo the idea of a supposed civilizing mission

underlying the colonizing intention embodied in the equation colonization equal to

civilization and paganism equal to savageryrdquo Crossed the facts to the doctrines that focus on

a Doutorando em Filosofia na Universidade de Eacutevora Mestre em Ciecircncias da Educaccedilatildeo pela mesma

Universidade Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catoacutelica de

Angola

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the phenomenon of colonisation of Africa this was seen by Fanon was more a movement of

depersonalization of Africans in general and the negroes in particular than a draft of

humanization and emancipation of the peoples of black Africa Therefore became evident

throughout this work that the colonization was a violence that drew its originality of the

colonized

A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world as well as

marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African including all

its social forms wiped out completely their systems of economic references their modes

essendi et operandi and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa

Key words colonization civilization violence depersonalization decolonisation

emancipation

Introduccedilatildeo

A reflexatildeo em torno dos desafios da descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica continua actual e actuante em

qualquer discurso intelectual ou poliacutetico sobre o estado da naccedilatildeo de muitos Estados africanos

passados que satildeo aproximadamente seis deacutecadas desde que muitos deles se tornaram

independentes Esta actualidade pode todavia natildeo parecer evidente quando o enfoque do

discurso for a colonizaccedilatildeo De facto pode parecer anacroacutenico e mesmo sintomaacutetico falar da

colonizaccedilatildeo para tentar justificar a qualquer preccedilo o subdesenvolvimento e a instabilidade

sociopoliacutetica na actualidade de muitos Estados africanos independentes Bom ou malgrado

essa sensaccedilatildeo de anacronismo que sugere uma espeacutecie de eacutepokeacute em torno do fenoacutemeno

colonial perde a sua legitimidade na medida em que a pertinecircncia do discurso sobre a

descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica torna ldquoipsis verbirdquo procedente o discurso sobre a colonizaccedilatildeo Ou

seja toda a fala em torno da descolonizaccedilatildeo sugere de uma ou de outra forma uma incursatildeo

sobre a colonizaccedilatildeo Vamos ao longo deste trabalho procurar descortinar o conceito de

colonizaccedilatildeo na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do

trampolim que pode sugerir agrave nossa cogitaccedilatildeo sobre a descolonizaccedilatildeo Para o efeito

propomos a seguinte estrutura 1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a

partir da analiacutetica de Fanon 2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo

igual a civilizaccedilatildeo 3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel

deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo 4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos a uma possiacutevel

verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida 5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de

Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco 6 Desconstruindo o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista

erguida na recusa do humano enquanto diferente 7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta do

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mundo colonial uma antiacutetese agrave pretensatildeo de uma suposta missatildeo emancipadora dos

africanos subjacente na intenccedilatildeo colonizadora

1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a partir da sua analiacutetica

em Fanon

Natildeo eacute possiacutevel falar da descolonizaccedilatildeo em Fanon sem falar da colonizaccedilatildeo enquanto

referecircncia inofuscaacutevel e movimento historicizante que confere corpo e sentido mateacuteria e

forma a qualquer anaacutelise criacutetica do projecto de descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica Esta eacute de resto a

loacutegica que suporta o argumento de Fanon que passamos a transcrever

a descolonizaccedilatildeo [hellip] eacute um processo histoacuterico [hellip] natildeo pode ser

compreendida natildeo encontra a sua inteligibilidade natildeo se torna transparente

para si mesma senatildeo na exacta medida em que se faz discerniacutevel o

movimento historicizante que lhe daacute forma e conteuacutedo ndash a opressatildeo colonial

(Fanon 1968 p 26 ou Fanon 2002 p 452)

Desde esta perspectiva a anaacutelise sobre a colonizaccedilatildeo ganha uma particular relevacircncia na

medida em que se nos apresenta natildeo soacute como fundamento a partir do qual se pode erguer

qualquer avaliaccedilatildeo sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleoloacutegico da luta

dos africanos rumo agrave sua efectiva emancipaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo no universalismo humano

mas tambeacutem como pretexto para (re) pensar o caminho de superaccedilatildeo das novas formas de

colonizaccedilatildeo que grassam ainda Aacutefrica e que em si constituem um verdadeiro impasse para

uma descolonizaccedilatildeo efectiva do continente africano Importa desde jaacute sublinhar que esta

reflexatildeo de tipo histoacuterico natildeo encontra o seu real significado na descriccedilatildeo dos factos que ela

encerra nem na narraccedilatildeo histoacuterica que a constitui O seu real alcance reside na sua capacidade

de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a

descolonizaccedilatildeo vislumbrado pelos africanos passados que satildeo cinquenta e sete anos apoacutes a

morte de Fanon

Tem-se com efeito e natildeo poucas vezes associado a colonizaccedilatildeo de Aacutefrica a um projecto

civilizador ou modernizador que teraacute sido frustrado ou interrompido por uma espeacutecie de

ambiccedilatildeo irracional dos africanos admitindo-se deste modo a hipoacutetese segundo a qual a

colonizaccedilatildeo teraacute sido um ldquoprojecto interrompidordquo de civilizaccedilatildeo (modernizaccedilatildeo) da Aacutefrica e

dos africanos De recordar que o ldquodiscurso sobre o colonialismordquo de Aimeacute Ceacutesaire resulta

precisamente da necessidade de dissertar sobre uma possiacutevel analogia entre a ldquocolonizaccedilatildeo e

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a civilizaccedilatildeordquo Provocaccedilatildeo ou natildeo mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer

sobre o binocircmio colonizaccedilatildeo-civilizaccedilatildeo pelo Franco-Senegalecircs Alioune Diop fundador e

Director da Revista ldquoPreacutesence Africainerdquo em Paris 1950 insinua a existecircncia de tendecircncias

que aproximavam a colonizaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo Esta provocaccedilatildeo tal como nos parece ser natildeo

deixa de ser no plano metodoloacutegico um bom ponto de partida para uma discussatildeo mais

objectiva e criacutetica da concepccedilatildeo fanoniana do colonialismo porquanto nos permite lanccedilar a

discussatildeo levantando uma seacuterie de perguntas tais como 1 Eacute possiacutevel sustentar por via de

argumentaccedilatildeo uma provaacutevel analogia entre os dois conceitos em anaacutelise a saber colonizaccedilatildeo

e civilizaccedilatildeo 2 Teraacute havido realmente um plano colonial de civilizar ou modernizar a

Aacutefrica em proveito dos africanos 3 Era sensato legitimar a opressatildeo colonial a partir dos

progressos alcanccedilados nas coloacutenias de Aacutefrica durante a administraccedilatildeo colonial Dito de outro

modo Seraacute que os niacuteveis de desenvolvimento conseguidos em vaacuterios domiacutenios social

administrativo tecnoloacutegico e poliacutetico sob o regime colonial conferiam efectivamente a

merecida dignidade a Aacutefrica e aos africanos 4 Teraacute a Aacutefrica realmente recusado o

desenvolvimento como diria Axel Kabu ao engajar-se na luta pela descolonizaccedilatildeo 5 E hoje

em plena era poacutes-colonial poderatildeo os africanos afirmar com realismo franqueza e

frontalidade que os ideais que nortearam o projecto da descolonizaccedilatildeo foram alcanccedilados 6

Teraacute alguma razatildeo de ser o postulado segundo o qual o projecto de descolonizaccedilatildeo teraacute sido

abortado na sua menor idade admitindo-se deste modo um possiacutevel equiacutevoco entre os

liacutederes e os intelectuais africanos que teratildeo confundido as independecircncias (enquanto meio)

com a descolonizaccedilatildeo (enquanto fim da longa marcha usando a expressatildeo de Reneacute Dumont

rumo a um continente mais humano mais livre mais autoacutenomo mais justo e mais proacutespero)

Ao longo desta reflexatildeo tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas

perguntas tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon

2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeo

Qual teraacute sido o verdadeiro retrato do colonialismo um processo de civilizaccedilatildeo dos

chamados indiacutegenas ou um ldquomovimento de despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeordquo dos povos

africanos Eacute evidente que para Fanon esta questatildeo nem sequer merece ser colocada De

facto o jovem martinicano eacute bastante incisivo e objectivo na sua anaacutelise Para ele a

colonizaccedilatildeo eacute antes de mais uma ldquoviolecircnciardquo conceito que de resto daacute tiacutetulo ao Iordm capiacutetulo

do Les Damneacutes de la Terre (Fanon 1968 p23 ou 2002 p448) Na sua oacuteptica a violecircncia foi

precisamente o elemento estrateacutegico e estruturante da loacutegica colonial Trata-se de uma

violecircncia que extrai sua originalidade na substantificaccedilatildeo do colonizado que a proacutepria

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situaccedilatildeo colonial segrega e alimenta Aliaacutes o encontro entre o colonizador e o colonizado diz

Fanon teve sempre o retrato de violecircncia e nunca foi expressatildeo de uma vontade civilizadora

ou humanizadora Pode se ler em Fanon que a colonizaccedilatildeo eacute a categorizaccedilatildeo de um encontro

que

se desenrolou sob o signo da violecircncia e sua coabitaccedilatildeo ndash ou melhor

a exploraccedilatildeo do colonizado pelo colono ndash foi levada a cabo com

grande reforccedilo de baionetas e canhotildees [hellip] A violecircncia [hellip] presidiu

ao arranjo do mundo colonial [hellip] ritmou incansavelmente a

destruiccedilatildeo das formas sociais indiacutegenas [hellip] arrasou completamente

os sistemas de referecircncias da economia os modos da aparecircncia e do

vestuaacuterio do colonizado (Fanon 1968 pp 26 e 30)

Eacute possiacutevel aproximar em boa verdade uma situaccedilatildeo de uma clara alienaccedilatildeo antropoloacutegica

fazendo feacute agrave descriccedilatildeo de Fanon a um projecto de civilizaccedilatildeo sem cair em sofismas que

desemboquem numa contradiccedilatildeo De notar que este mesmo entendimento de Fanon eacute

corroborado pelo seu antigo mestre Aimeacute Ceacutesaire que parafraseamos nos seguintes termos a

colonizaccedilatildeo enquanto violecircncia no sentido mais bruto da palavra eacute uma autecircntica antiacutetese da

civilizaccedilatildeo ela por natureza desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado A

colonizaccedilatildeo legitima o ilegiacutetimo e normaliza o anormal pode-se matar agrave vontade na

Indochina torturar em Madagaacutescar prender na Aacutefrica negra seviciar nas Antilhashellip (cfr

Ceacutesaire 1978 pp 7 e 14) Natildeo eacute preciso muita hermenecircutica para apreender nos dizeres de

Sartre de que a violecircncia constitui o ldquomodus operandirdquo proacuteprio do sistema colonial que nem

as suas geniais trapaccedilas conseguem disfarccedilar A peculiaridade do agir colonial distancia a

colonizaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo E para deixar tudo a nu Sartre faz a seguinte inconfidecircncia

ldquonossos soldados no ultramar rechaccedilam o universalismo metropolitano

aplicam ao geacutenero humano o numerus clausus uma vez que ningueacutem pode

sem crime espoliar seu semelhante escravizaacute-lo ou mataacute-lo eles datildeo por

assente que o colonizado natildeo eacute o semelhante do homem Nossa tropa de

choque recebeu a missatildeo de transformar essa certeza abstrata em realidade a

ordem eacute rebaixar os habitantes do territoacuterio anexado ao niacutevel do macaco

superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [hellip] nada

deve ser poupado para liquidar as suas tradiccedilotildees para substituir a liacutengua deles

pela nossa para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossahelliprdquo (Sartre Les

Damneacutes 1961 p 9)

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Esta violecircncia que parte do plano simboacutelico conceitual atingiu o seu ponto auge com

desterramento dos indiacutegenas feitos estrangeiros na sua proacutepria terra como foi o caso do

coacutedigo civil imposto aos argelinos visando regular o direito agrave propriedade e agrave heranccedila com a

uacutenica finalidade de desterrar os autoacutectones tirando-lhes o que de mais precioso tinha ndash a sua

proacutepria terra De realccedilar que o referido coacutedigo tinha aprovado a titularidade comum de terras

entre a classe-meacutedia francesa e a sociedade tribal como estrateacutegia de expropriaccedilatildeo de terras

aos autoacutectones atraveacutes de poliacuteticas especulativas (cfr Sartre 1967 p39)

Desde este ponto de vista pode-se aferir que os ldquomodus essendi et operandirdquo do colonialismo

configuravam em certa medida aquilo que Sartre chamou de ldquoimoralidade narcisistardquo da

ambiccedilatildeo ocidental da qual emerge o impulso que modifica inevitavelmente qualquer

indiviacuteduo que adere agrave dinacircmica colonial dando-lhe boa consciecircncia e boas razotildees de ver no

outro (natildeo branco) um simples animal Esta constataccedilatildeo sartriana valida sem qualquer

sombra de duacutevida a convicccedilatildeo de Ceacutesaire para quem o colonialismo eacute brutalidade

intimidaccedilatildeo crueldade sadismo choque violaccedilatildeo roubo desprezo culturas obrigatoacuterias

desconfianccedila massas aviltadas ausecircncia de contacto humano relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de

submissatildeo que transformam o negro colonizado em criado ajudante comitre e instrumento de

produccedilatildeo (cfr Ceacutesaire 1978 p25) A partir destes pressupostos torna-se de facto forccediloso

concluir que natildeo existe tal como defende Fanon qualquer sustentabilidade quer

argumentacional quer factual para a validaccedilatildeo da equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeordquo

pois os factos atestam que colonizaccedilatildeo eacute o oposto de civilizaccedilatildeo Mas uma deacutemarche

etimoloacutegica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano teoacuterico

conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem

3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo

Para fundamentar com maior objectividade o alcance da deduccedilatildeo decorrente da narrativa de

Fanon em relaccedilatildeo a conjecturada correlaccedilatildeo entre os dois conceitos em anaacutelise pareceu-nos

mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos no sentido de os tornar mais

inteligiacuteveis para daiacute depreender o seu justo significado e consequentemente confirmar ou

infirmar a suposta correlaccedilatildeo entre ambas Conveacutem no entanto sublinhar que o caraacutecter

polisseacutemico dos conceitos em epiacutegrafe natildeo nos permite ignorar o facto de que natildeo eacute tatildeo faacutecil

quer do ponto de vista conceitual quer do ponto de vista factual traccedilar a linha de

convergecircncia ou de divergecircncia entre eles pois o proacuteprio caraacutecter multidisciplinar que o

conceito de civilizaccedilatildeo envolve hoje confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta

qualquer entendimento homogeacuteneo linear e conclusivo Acresce-se a este dado o facto de

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que nos dias que correm o conceito de civilizaccedilatildeo eacute reivindicado como objeto de estudo da

antropologia da ciecircncia da cultura do direito da histoacuteria da filosofia poliacutetica da sociologia

poliacutetica da religiatildeo etc proporcionando-lhe um enquadramento episteacutemico bastante

complexo que recusa qualquer unicidade semacircntica No entanto um recuo estrateacutegico e

metodoloacutegico ao seacuteculo das luzes onde o significado do termo ldquocivilizaccedilatildeordquo emergiu da

proacutepria raiz etimoloacutegica do conceito ldquocivilisrdquo ldquocivisrdquo cujo entendimento remetia agrave acccedilatildeo

de tornar civil ou urbano pode permitir uma espeacutecie de unidade de sentido a partir do qual se

pode fundamentar a possiacutevel analogia conceitual destes dois termos

A Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura natildeo foge muito desta percepccedilatildeo quando define a

colonizaccedilatildeo como um fenoacutemeno sociopoliacutetico baseado na dependecircncia de um grupo humano

ou de um territoacuterio a um outro que exerce nele influecircncias demograacuteficas econoacutemicas

culturais sociais ou poliacuteticas Entendimento agrave luz do qual alguns teoacutericos nos seacuteculos XIX e

XX basearam a sua definiccedilatildeo de colonizaccedilatildeo como atividade pela qual um povo de cultura

superior ocupa e organiza por conta proacutepria um territoacuterio habitado por povos de cultura

inferior estendendo a sua soberania desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas

segundo o princiacutepio da civilizaccedilatildeo Observa-se aqui a missatildeo civilizadora subjacente ao

conceito da colonizaccedilatildeo enquanto fenoacutemeno sociopoliacutetico cuja meta eacute levar as coloacutenias ao

desenvolvimento cultural social econoacutemico e cientiacutefico ou seja agrave modernizaccedilatildeo do territoacuterio

ocupado Este eacute de resto o significado que decorre do entendimento filoloacutegico do conceito de

colonizaccedilatildeo cuja estrutura originaacuteria se funda em torno de dois pressupostos basilares

nomeadamente o cultivo da terra isto eacute o desenvolvimento econoacutemico e o cultivo dos

homens ou seja a promoccedilatildeo sociocultural e econoacutemica das populaccedilotildees consideradas na

posiccedilatildeo receptiva (cfr Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura nordm5 p996ss)

De salientar que o conceito de civilizaccedilatildeo emergiu e muito provavelmente antes de qualquer

outro paiacutes no contexto sociocultural francecircs e fazia referecircncia essencialmente a trecircs

dimensotildees que vale a pena enumerar a primeira era referente ao primado da vida em

comunidade sobre a vida solitaacuteria a segunda fazia alusatildeo ao primado da vida na cidade sobre

a vida no campo a uacuteltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o

selvagem isto eacute o homem moderno distinguido pela ciecircncia e pela teacutecnica sobre o baacuterbaro

(cfr Enciclopeacutedia LB da Cultura nordm5) Neste contexto teoacuterico-conceitual civilizar era de

facto sinoacutenimo de trabalhar na integraccedilatildeo dos indiacutegenas na comunidade metropolitana na

modernizaccedilatildeo da vida do campo isto eacute levando as condiccedilotildees da cidade ao campo (energia

eleacutectrica aacutegua potaacutevel educaccedilatildeo escolar assistecircncia meacutedica e medicamentosahellip) e na policcedilatildeo

do baacuterbaro pela chamada ldquoculturardquo cientiacutefica e tecnoloacutegica

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Este parece ser o entendimento mais viaacutevel para o exame a que nos propusemos da

correlaccedilatildeo destes dois vocaacutebulos O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e

sustentabilidade episteacutemica no Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea editorial

Verbo acresce ainda mais o nosso interesse por esta perspectiva (cfr 2001 p833) Segundo

o Dicionaacuterio ora referenciado a ldquocivilizaccedilatildeordquo eacute a acccedilatildeo ou o resultado de transmitir

conhecimentos comportamentos e teacutecnicas consideradas desejaacuteveis numa sociedade moderna

Por conseguinte civilizar eacute dar caracteriacutesticas proacuteprias de sociedades teacutecnicas cientiacutefica e

economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas ou ainda dar haacutebitos e ajudar a

desenvolver comportamentos desejaacuteveis numa sociedade desenvolvida Conclui-se pois que

do ponto de vista conceitual ou definicional existem razotildees para fundamentar a presumiacutevel

correlaccedilatildeo entre os conceitos de ldquocolonizaccedilatildeo e civilizaccedilatildeordquo Mas a natildeo homogeneidade de

compreensatildeo na interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo destes conceitos agrave partida polisseacutemicos e

multidisciplinares e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descriccedilotildees fanonianas

obrigam-nos a dar um passo a mais espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e

continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo

4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos agrave uma possiacutevel verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de

partida

Se eacute possiacutevel aferir do ponto de vista definicional uma certa correlaccedilatildeo analoacutegica entre os

conceitos que fundam a nossa equaccedilatildeo de partida tal como ficou patenteado no ponto

anterior do ponto de vista doutrinal e factual esta correlaccedilatildeo carece de uma anaacutelise

minuciosa que permita apurar se a propensatildeo civilizadora inerente ao conceito de colonizaccedilatildeo

pelo menos no plano teoacuterico-conceitual conseguiu vincar como aspecto norteador da acccedilatildeo

colonial ou teraacute por alguma razatildeo ficado ofuscada durante o processo colonial Impotildee-se-

nos a este niacutevel retomar o ponto de vista de Fanon para quem a colonizaccedilatildeo eacute antes de

mais uma violecircncia que se consubstancia na animalizaccedilatildeo e na aniquilaccedilatildeo dos (negros)

colonizados Para sustentar o seu argumento Fanon comeccedila por relembrar a atitude do colono

que em vaacuterias circunstacircncias fez recurso a ldquouma linguagem zooloacutegica usando expressotildees

como ldquo[hellip] hordas fedor buliacutecio [hellip] e quando os quisesse descrever com mais exatidatildeo

[hellip] recorria constantemente ao bestiaacuteriordquo para designar os negros (Fanon 1968 p 31 ou

2002 p 456) Esta animalizaccedilatildeo do colonizado eacute para Fanon a expressatildeo mais eloquente de

uma violecircncia absoluta que desenraiacuteza o aviltado de sua humanidade E para reforccedilar a sua

criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista o colono via-se na necessidade de

encontrar novos atributos que pudessem explicitar da melhor maneira possiacutevel a real

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dimensatildeo semacircntica subjacente nos conceitos de ldquoindiacutegena e selvagemrdquo que em si jaacute natildeo

eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de

Aacutefrica entre outros

demografia galopante massas histeacutericas rostos de onde fugiu qualquer traccedilo

de humanidade corpos obesos que natildeo se assemelham mais a nada corte sem

cabeccedila nem cauda crianccedilas que datildeo a impressatildeo de natildeo pertencerem a

ningueacutem preguiccedila estendida ao sol ritmo vegetalhellip (Fanon 1968 p 32 ou

Fanon 2002 p457)

A validade histoacuterica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento Eacute sensato

falar de um projecto de civilizaccedilatildeo de animais sem converter a proacutepria racionalidade

civilizadora numa irracionalidade animal Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade

animal de uma civilizaccedilatildeo cuja racionalidade eacute o epicentro da sua acccedilatildeo muitos preferiram

considerar as afirmaccedilotildees de Fanon de irresponsaacuteveis e repletas de inverdades qualificando o

proacuteprio Fanon de agitador e instigador da violecircncia ante a sua incisiva caracterizaccedilatildeo do

sistema colonial Dentre outros podemos citar Alain Finkierkraut cujo pensamento mais do

que uma antiacutetese agraves teses de Fanon eacute uma tentativa de demonstraccedilatildeo da derrota do projecto da

descolonizaccedilatildeo Piegraverre Bourdieu de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que

pesam sobre Fanon eacute paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010 p 109)

como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus Simone de

Beauvoir Germaine Tillion Jasques Amrouche e outros que como Fanon e Sartre tiveram a

ousadia de denunciar cada um agrave sua maneira a violecircncia inerente ao sistema colonial

forjando novas noccedilotildees de identidade poliacutetica que continuam a influenciar o debate poliacutetico na

actualidade

No seu ldquomarxismo encontra Bourdieurdquo Burawoy procura mostrar que apesar da enorme

distacircncia que separa o quadro teoacuterico-reflexivo de Bourdieu e Fanon nomeadamente ldquoo

marxismo terceiro-mundista de um lado e a teoria da modernizaccedilatildeo de outro ladordquo o

pensamento destes dois autores apresenta inuacutemeras similitudes sobretudo entre o Fanon do

Le Damneacutes de la terre de 1961 e o Bourdieu de Sociologie de lrsquoAlgerie de 1958 Embora

natildeo seja objecto deste debate julgamos oportuno e procedente mencionar a tiacutetulo de

exemplo algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violecircncia como uma das

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave natureza proacutepria do sistema colonial e nos termos muito

semelhantes aqueles que aparecem nas paacuteginas 26 e 30 do Le Damneacutes de la terre de Fanon

(cfr 1968) ao afirmar

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o sistema colonial enquanto tal natildeo poderaacute ser destruiacutedo senatildeo atraveacutes de

um questionamento radical Todas as mutaccedilotildees satildeo submetidas agrave lei de tudo

ou nada Este facto estaacute na consciecircncia pelo menos de forma confusa quer

entre os membros da sociedade dominante quer entre os membros da

sociedade dominada [hellip] Mas eacute preciso admitir que o primeiro e uacutenico

questionamento radical do sistema eacute aquele que o proacuteprio sistema engendrou

isto eacute a revoluccedilatildeo contra os princiacutepios que o fundaram [hellip] A situaccedilatildeo

colonial criou o despreziacutevel e ao mesmo tempo o desprezo mas criou

tambeacutem a revolta contra o desprezo Assim cresce cada vez mais a tensatildeo

que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu 1958 pp 28 e 129)

Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu numa clara aproximaccedilatildeo da

colonizaccedilatildeo agrave violecircncia De facto a violecircncia simboacutelica e real eacute depreendida em muitos

cenaacuterios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial

Vaacuterios satildeo os etnoacutelogos e ideoacutelogos que nas entrelinhas do seu pensamento conferem uma

certa razatildeo a um tal pressuposto Alfred de Vigny por exemplo faz jus a esta violecircncia

simboacutelica ao afirmar sem rodeios que o mundo natildeo europeu eacute um mundo animal mundo dos

baacuterbaros mundo da morte e consequentemente uma ameaccedila ao mundo europeu Partindo

deste postulado deduz-se que para De Vigny a colonizaccedilatildeo era um processo compulsivo de

civilizaccedilatildeo isto eacute uma opccedilatildeo para a vida e tal como diz ldquose se prefere a vida agrave morte tem de

se preferir a civilizaccedilatildeo agrave barbaridaderdquo que natildeo eacute apenas um reino animal e de morte mas

tambeacutem uma ameaccedila agrave civilizaccedilatildeo Em virtude disto conclui De Vigny ldquonenhum povo tem o

direito de permanecer baacuterbaro ao lado das naccedilotildees civilizadasrdquo Depreende-se daqui que a

uacutenica loacutegica vaacutelida eacute a disjuntiva ldquoto be or not to berdquo como diria Shakespeare ldquothat is the

questionrdquo (cfr De Vigny 2003 p87)

Esta apreciaccedilatildeo lacoacutenica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que como De

Vigny tambeacutem considera a colonizaccedilatildeo como uma obra civilizadora uma espeacutecie de direito e

dever das sociedades evoluiacutedas Folliet baseia o seu argumento nas caracteriacutesticas

heterogeacuteneas das sociedades isto eacute nos desniacuteveis existentes entre as sociedades colonizadas e

colonizadoras quer nos planos econoacutemico administrativo cultural social e poliacutetico quer nos

planos cientiacutefico e tecnoloacutegico Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizaccedilatildeo

seria possivelmente o processo de supressatildeo destes desniacuteveis sociais com o auxiacutelio das

sociedades mais desenvolvidas Pelo que a manutenccedilatildeo destes desniacuteveis como forma

hegemoacutenica de controlo ou de manutenccedilatildeo de superioridade foge do acircmbito da colonizaccedilatildeo

para desembocar no campo de acccedilatildeo do colonialismo (cfr Folliet 1932 p 75) Eacute caso para

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dizer que o entendimento teoacuterico de Folliet apresenta uma diferenccedila niacutetida entre a colonizaccedilatildeo

que seria para o autor o sinoacutenimo de civilizaccedilatildeo e o colonialismo que pode ser visto como

processo de exploraccedilatildeo e subjugaccedilatildeo das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades

desenvolvidas

Mas eacute preciso dizer que se do ponto de vista conceitual Folliet deu um tamanho salto

qualitativo propiciador de uma possiacutevel coabitaccedilatildeo paciacutefica entre o colono e o colonizador

aludindo agrave missatildeo civilizadora da colonizaccedilatildeo do ponto de vista praacutetico o discurso follietiano

deu lugar a muitas ambiguidades sobretudo quando o proacuteprio autor considera a colonizaccedilatildeo

como forma mais viaacutevel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em

territoacuterios subdesenvolvidos e valorizaacute-los para o bem-comum da humanidade sem definir as

regras nem as modalidades ou os viacutenculos contractuais para tal Com efeito Folliet considera

um dado assente que ldquoas naccedilotildees economicamente mais evoluiacutedas tecircm o direito de explorar as

riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagensrdquo (Folliet 1932 pp 101 e 268) E

para natildeo camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violecircncia Folliet

defende a necessidade da manutenccedilatildeo das desigualdades entre o colonizador e o colonizado

numa clara opccedilatildeo pelo colonialismo em detrimento da colonizaccedilatildeo contrariando a sua proacutepria

doutrina com o seguinte posicionamento

a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores de modo que o sujeito

colonizado natildeo passe numa vontade de vinganccedila a esquecer a sua

heteronomia absoluta eacute portanto uacutetil e necessaacuterio que as mais vastas

propriedades as mais ricas induacutestrias os mais frutuosos comeacutercios pertenccedilam

aos representantes da raccedila superior (Folliet 1932 p228)

Uma possiacutevel deduccedilatildeo leva-nos por um lado a aferir a inadequaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida

com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analiacuteticos da questatildeo em

estudo e a considerar por outro lado a emergecircncia da categoria de dominaccedilatildeo como outro

elemento caracteriacutestico da estrateacutegia colonial na relaccedilatildeo colonizadocolonizador Este

princiacutepio que eacute em si mesmo o elemento estruturante da tensatildeo e ao mesmo tempo

provocador da dialeacutectica do senhor e do escravo permite-nos um salto para o exame da

possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a Aacutefrica em proveito dos

africanos

5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco

Eacute possiacutevel compatibilizar o instinto de dominaccedilatildeo com a vontade de promover ou de

emancipar Guillaume Sureacutena num movimento contraacuterio ao nosso itineraacuterio apresenta um

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discurso capaz de relanccedilar a discussatildeo No seu artigo intitulado ldquoPsycanalyse et

anticolonialismerdquo Sureacutena lamenta o desperdiacutecio de uma oportunidade que teria resultado num

possiacutevel encontro inter-civilizacional frutiacutefero e que no entanto teraacute sido frustrado pela

vontade dominadora do instinto colonial Os textos surenianos insinuam que do ponto de

vista praacutetico a civilizaccedilatildeo europeia nunca teve qualquer plano de promover nem de

reconhecer as outras civilizaccedilotildees como parceiras importantes para um crescimento conjunto

A sua ambiccedilatildeo foi sempre de conhecer para dominar e subjugar como ficou explicitado nesta

passagem

este encontro de civilizaccedilotildees tatildeo diferentes poderia ter sido o momento de um

intercacircmbio fecundo e de um enriquecimento muacutetuo como lamentou o

antropoacutelogo francecircs Claude Levi-Strauss Mas para a metafiacutesica europeia

desde a Greacutecia antiga o saber foi sempre o equivalente de ldquomaitriserrdquo isto eacute

de dominar As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados

sob os conceitos com partiacuteculas latinas e gregas Os locais geograacuteficos

receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridiacuteculos por

falta de qualquer relaccedilatildeo com os espiacuteritos que os habitavam outrora (Sureacutena

1943 p 4)

Diga-se pois de passagem que foi assim na Greacutecia antiga foi assim ateacute ao seacuteculo XX e

nada justifica que natildeo continue assim nos dias que hatildeo-de vir Mas a questatildeo eacute qual o destino

que o instinto dominador das naccedilotildees pode proporcionar agrave espeacutecie humana Conveacutem recordar

que num passado mais recente da histoacuteria da Europa a colonizaccedilatildeo assumiu o caraacutecter de

dominaccedilatildeo dos povos e dos seus recursos naturais Os europeus sempre mostraram-se mais

interessados com uma partenogeacutenese profunda dos africanos para os submeter mais

facilmente e natildeo para os civilizar De facto desde o iniacutecio do seacuteculo XVII com as grandes

navegaccedilotildees e os descobrimentos das ameacutericas o interesse em explorar e conquistar novas

terras ganhou um enorme vigor na Europa e com ele emergiu tambeacutem a chamada

colonizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de povoamento A primeira forma de colonizaccedilatildeo foi o momento

no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as coloacutenias tinham uma

utilidade meramente lucrativa junto da metroacutepole A segunda acontecia de maneira

espontacircnea mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econoacutemica

com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem aiacute acorria

Muitos estudos mostram que no continente africano este tipo de colonizaccedilatildeo foi sempre

acompanhado de desterramento de zonas araacuteveis ou de pastagem dos autoacutectones bem como

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da supressatildeo dos eventuais direitos que detinham1 Embora referindo-se a um contexto muito

mais preteacuterito ao de Fanon Ceacutesaire Sartre e outros Iva Cabral traz ao de cima a ideia de

dominaccedilatildeo e de exploraccedilatildeo como elementos catalisadores do interesse europeu em Aacutefrica

ajudando assim na desconstruccedilatildeo da hipoacutetese de um possiacutevel plano colonial para o

desenvolvimento de Aacutefrica e dos africanos De facto Iva Cabral afirma que a experiecircncia

ultramarina se resumia na conquista das praccedilas do Norte de Aacutefrica e na fixaccedilatildeo de guarniccedilotildees

e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territoacuterios tropicais de

Aacutefrica natildeo pelo desejo de levar a civilizaccedilatildeo agraves terras longiacutenquas de Aacutefrica mas por causa

dos inuacutemeros privileacutegios econoacutemicos e sociais que tinham os quais incluiacuteam em alguns

casos a sociedade escravocrata de produccedilatildeo no Atlacircntico (cfr 2015 p25)

Este suporte histoacuterico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra

um reforccedilo na posiccedilatildeo de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa

anaacutelise sobre as categorias de dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo como sustentaacuteculos da acccedilatildeo

colonizadora quando num tom autocriacutetico apontando o dedo aos seus irmatildeos europeus

pinta sem complexo nem contemplaccedilotildees o verdadeiro retrato da Europa colonial permitindo

a apreensatildeo da razatildeo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opressatildeo contra os

autoacutectones em territoacuterios colonizados sobretudo em Aacutefrica nestes termos

sabeis muito bem que somos exploradores Sabeis que nos apoderamos do

ouro e dos metais e posteriormente do petroacuteleo dos continentes novos e que

os trouxemos para as velhas metroacutepoles Com excelentes resultados palaacutecios

catedrais capitais industriais [hellip] A Europa empanturrada de riquezas

concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes entre noacutes

lucramos com a exploraccedilatildeo colonial (Fanon 1968 p 17)

Se tomamos a seacuterio as diversas constataccedilotildees dos autores supra mencionados torna-se

insustentaacutevel a hipoacutetese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos

africanos e da Aacutefrica num contexto de exploraccedilatildeo no seu sentido mais radical e mais bruto do

termo isto eacute uma exploraccedilatildeo natildeo soacute de recursos naturais dos territoacuterios colonizados mas

tambeacutem do seu proacuteprio capital humano Num tal contexto aproximar a colonizaccedilatildeo da

civilizaccedilatildeo eacute admitir agrave partida uma ambiguidade semacircntica na compreensatildeo destes dois

conceitos Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade Ceacutesaire diz que a colonizaccedilatildeo natildeo

deve ser confundida com uma empresa filantroacutepica nem com uma nobre vontade de recuar as

fronteiras da ignoracircncia da doenccedila da tirania e ateacute mesmo da propagaccedilatildeo de Deus e muito

1 Cfr httpsptwikipediaogwikicolonizaccedilatildeo Enciclopeacutedia livre 15022017

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menos com uma poliacutetica de extensatildeo dos direitos do povo colonizado como pretendeu o

pedantismo cristatildeo que concebeu o referido equiacutevoco ao enunciar uma equaccedilatildeo eacutetica e

religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria tornando-se assim responsaacutevel pelas consequecircncias

abominaacuteveis decorrentes dos actos coloniais cujas viacutetimas seriam os iacutendios os amarelos e os

negros (cfr Ceacutesaire 1978 pp14-15)

Pode se depreender dos textos de Ceacutesaire que a colonizaccedilatildeo eacute a manifestaccedilatildeo sem precedente

da ganacircncia do aventureiro e do pirata do comerciante e do armador do pesquisador de ouro

e do mercado do apetite e da forccedila tendo por detraacutes a sombra maleacutefica projetada de uma

forma de civilizaccedilatildeo que a dado momento da sua histoacuteria se viu obrigada internamente a

alargar agrave escala mundial a concorrecircncia das suas economias Se natildeo como se pode perceber

que a Franccedila em particular e a Europa em geral conseguissem progressivamente tal como

alude Dino Constantini transformar os princiacutepios democraacuteticos e humanistas tatildeo-reclamados

naquela circunscriccedilatildeo do globo em instrumentos de justificaccedilatildeo de dominaccedilatildeo com regulares

violaccedilotildees nas coloacutenias dando lugar a uma degeneraccedilatildeo sem precedente de uma suposta

ldquomissatildeo civilizadorardquo da Europa em Aacutefrica (cfr Constatini 2008 pp 33 e 53) Para pocircr a nu

o paradoxo de uma civilizaccedilatildeo dita humanista mas na praacutetica contestadora da proacutepria

humanidade no ldquodiferenterdquo Constatini evoca o coacutedigo civil de 1791 que coloca as coloacutenias

fora do direito comum institucionalizando uma cisatildeo social juridicamente fundamentada

entre as populaccedilotildees brancas e negras legitimando ao mesmo tempo a violecircncia primeiro no

plano simboacutelico e posteriormente no plano concreto numa clara declaraccedilatildeo de recusa de

reconhecimento e de integraccedilatildeo dos negros na vida da metroacutepole Eacute preciso dizer que esta

fragmentaccedilatildeo social legitimada pelo coacutedigo civil supra citado serviu de base para a

consagraccedilatildeo de uma nova compreensatildeo do conceito da ldquohumanidaderdquo que reduziria os

direitos humanos a direitos de cidadania reservando-os apenas aos europeus

Eacute o paradoxo no caso da Franccedila de uma Repuacuteblica que nunca deixou de contestar contra a

violecircncia de que tinha sido viacutetima em 1871 cegamente transformada numa autecircntica maacutequina

de violecircncia contra outros humanos sem qualquer fundamento legiacutetimo (cfr Constatini 2008

p 286) Eacute a contradiccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo ocidental defensora de direitos humanos mas que

natildeo hesita de reduzir os outros humanos agrave categoria de sub-humanos eacute a estrateacutegia de um

imaginaacuterio ideoloacutegico que no plano psicoloacutegico confere legitimidade a todas as barbaacuteries dos

colonizadores sobre os colonizados eacute a ironia de uma civilizaccedilatildeo cuja linha de demarcaccedilatildeo

com a barbaridade natildeo eacute expliacutecita Nem mesmo a dignidade humana universal e abstracta

apregoada pelos moralistas desta civilizaccedilatildeo como um dos valores mais sublimes entre os

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humanos em especial pela religiatildeo cristatilde mais consagrada ao serviccedilo do imperialismo do

que de Deus na oacuteptica de Ceacutesaire conseguiu dissimular a violecircncia contra o colonizado

6 Desmistificando o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista erguida na recusa do

ldquodiferenterdquo

Parece ter ficado evidente que a colonizaccedilatildeo se identificou mais com uma dinacircmica de

exploraccedilatildeo dos povos colonizados do que com um projecto de integraccedilatildeo dos indiacutegenas na

metroacutepole Iva Cabral ajuda-nos mais uma vez a perceber como a loacutegica do lucro presidiu a

todas as estrateacutegias e legislaccedilotildees coloniais Numa perspectiva simplesmente histoacuterica a autora

apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos

enunciados de Fanon que concedem sentido e substacircncia a este trabalho Com efeito Iva

Cabral afirma que as decisotildees poliacuteticas do regime colonial criavam condiccedilotildees para que os

filhos da meacutedia e baixa nobreza portuguesa neste particular mercadores e aventureiros

vislumbrassem no territoacuterio receacutem-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto

mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as

mercadorias daiacute advindas poderiam trazer (cfr Cabral 2015 p27)

Eacute loacutegico conjecturar que num tal jogo de lucro faacutecil que natildeo podia natildeo contar com os

recursos naturais e com o capital humano africanos como meios ideais para minimizar os

custos e maximizar os lucros a preocupaccedilatildeo pela integraccedilatildeo dos africanos no clube dos

evoluiacutedos e emancipados seria uma espeacutecie de atentado ao espiacuterito de negoacutecio Este postulado

encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da

recusa do ldquooutrordquo o diferente feito uma ameaccedila para o ldquonoacutesrdquo ideologicamente construiacutedo e

consagrado como o uacutenico paradigma possiacutevel de humanidade na seguinte declaraccedilatildeo

havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se

recusaram no seacuteculo de Colombo em reconhecer seus semelhantes homens

degradados que povoavam o novo mundo [hellip] Era impossiacutevel fixar um

instante do olhar no selvagem sem ler o anaacutetema escrito natildeo digo somente na

sua alma mas ateacute na forma exterior do seu corpo (De Maistre Joseph Apud

Ceacutesaire 1978 p 33)

Esta declaraccedilatildeo deixa transparecer uma inferecircncia loacutegica quase irrefutaacutevel de que o referido

anaacutetema dos indiacutegenas soacute natildeo se consumou ao extermiacutenio na perspectiva do colono por

razotildees de iacutendole puramente utilitarista como se depreende nesta passagem do jaacute citado autor

nesta transcriccedilatildeo de Ceacutesaire

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sob o ponto de vista de selecccedilatildeo consideraria deploraacutevel o desenvolvimento

numeacuterico [hellip] dos elementos amarelos e negros que seriam de eliminaccedilatildeo

difiacutecil Se todavia a sociedade futura se organizar numa base dualista com

uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raccedila inferior confiada agrave

mais grosseira matildeo-de-obra eacute possiacutevel que este uacuteltimo papel incumba aos

elementos amarelos e negros Neste caso aliaacutes natildeo seria um embaraccedilo mas

uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre Joseph Apud Ceacutesaire

1978 p 33)

Fica desvendado nestes dizeres do De Maistre o retrato do narcismo nihilista de muitos

artistas da europa colonial consubstanciado na ideia e na pretensatildeo de uma raccedila superior que

se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contaacutegio Eacute o drama de uma Europa

feita refeacutem pelo seu proacuteprio mito de pureza civilizacional uniracial um mito enganoso

pretensioso e pernicioso que potildee em causa a aspiraccedilatildeo de uma poliacutetica enquanto exigecircncia de

construccedilatildeo de uma comunidade humana na qual a consciecircncia da diversidade dos humanos e a

necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condiccedilatildeo ldquosine qua nonrdquo da

prosperidade e da sobrevivecircncia da proacutepria espeacutecie humana Lamentavelmente este

entendimento da poliacutetica como espaccedilo intermediaacuterio onde se joga a liberdade e interacccedilatildeo dos

humanos enquanto seres iguais e autoacutenomos eacute constantemente posto em causa como diz

Martha Nussbaum pelos apologistas deste mito que em todas as sociedades alimentam uma

falsa convicccedilatildeo de pureza etnocecircntrica ou ldquoclassececircntricardquo geradora de violecircncia contra os

excluiacutedos (cfr Nussbaum 2010 p 48) comprometendo a possibilidade de fazer da poliacutetica o

lugar por excelecircncia da profundidade humana

Para compreender as mais profundas motivaccedilotildees que levam os indiviacuteduos a um tal instinto

nihilista Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi que examina a possiacutevel

conexatildeo existente entre os domiacutenios psicoloacutegico e poliacutetico Com efeito Gandhi concluiacutera que

os desejos gananciosos o instinto de agressatildeo e a ansiedade narcisista satildeo empecilhos para a

edificaccedilatildeo de uma verdadeira civilizaccedilatildeo humana Pelo que a luta poliacutetica pela construccedilatildeo de

uma civilizaccedilatildeo humana assente nos pilares da liberdade empatia e igualdade deve ser

precedida de uma luta contra o medo do outro a ganacircncia e o instinto de agressatildeo narcisista

intriacutensecos em cada indiviacuteduo (cfr Nussbaum 2010 pp 48-50) E se partimos da hipoacutetese de

que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multidotildees ao oacutedio ao genociacutedio e agrave

instrumentalizaccedilatildeo dos ldquooutrosrdquo tidos como da raccedila inferior ou sub-humana ocorre mais em

contextos de pouca capacidade criacutetica ou de uma intelectualidade materialista ou

ldquoventriacuteloquerdquo usando a expressatildeo de Fabien Eboussi Boulaga isto eacute de uma intelectualidade

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corrupta desprovida de princiacutepios eacuteticos e humanistas forccediloso eacute concluir que por mais que a

Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizaccedilatildeo dos africanos natildeo teria condiccedilotildees

efectivas de o fazer ante a sua ganacircncia e arrogacircncia eurocentristas encorajadas por uma

jactacircncia ostensiva feito veneno instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do

lucro cuja solidificaccedilatildeo se daacute com o asselvajamento dos africanos em geral e dos negros em

particular

Eacute precisamente este instinto egoiacutesta e materialista que transparece na maneira como Ernest

Renan concebe o colonialismo Para ele o colonialismo eacute uma necessidade poliacutetica de

primeira ordem eacute a conquista de um paiacutes de raccedila inferior pela raccedila superior que se instala na

coloacutenia atraveacutes de um governo Trata-se na perspectiva deste autor de algo de extrema

normalidade que nada tem de chocante A colonizaccedilatildeo soacute se torna chocante se e somente se

as conquistas forem entre raccedilas iguais Assim se por um lado estas conquistas devem ser

desencorajadas e censuradas entre raccedilas iguais elas devem ser encorajadas entre as raccedilas

desiguais porque a regeneraccedilatildeo ou degeneraccedilatildeo de raccedilas inferiores pelas raccedilas superiores

deve estar na ordem providencial da humanidade ldquoRegere imperio populosrdquo eis a nossa

vocaccedilatildeo A natureza criou uma raccedila de trabalhadores industriais ndash eacute a raccedila chinesa uma de

jornaleiros agriacutecolas ndash eacute a raccedila negra [hellip] uma raccedila de senhores e de soldados eacute raccedila

europeiardquo Nesta oacuteptica a reduccedilatildeo desta nobre raccedila agrave classe trabalhadora em condiccedilotildees

degradantes como as dos negros e dos chineses gera revolta (cfr Renan 1967 pp 69-70) O

mais perplexo em tudo isso eacute que Renan numa enorme ousadia intelectual natildeo se tenha

inibido do seu instinto de superioridade racial ao defender de forma paradoxal numa obra

intitulada ldquoLa Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la Francerdquo a seguinte convicccedilatildeo

noacutes esperamos natildeo a igualdade mas sim a dominaccedilatildeo O paiacutes de raccedila

estrangeira deveraacute voltar a ser um paiacutes de servos de jornaleiros agriacutecolas ou

de trabalhadores industriais Natildeo se trata de suprimir as desigualdades entre

os homens mas de as ampliar e as converter em lei (Renan 1967 p69-70)

Uma visatildeo demasiado materialista e narcisista que mereceu num tom iroacutenico a criacutetica de

Ceacutesaire que qualifica o colono muito distinto muito humanista e muito cristatildeo do seacuteculo XX

como uma autecircntica encarnaccedilatildeo de Hitler Eacute o retrato do colono que traz em si segundo

Ceacutesaire ldquoum Hitler que se ignora que vive nele e que eacute o seu demoacutenio e se o vitupera eacute por

falta de loacutegica ou pelo instinto de afinidade racial pois os factos atestam que o que muitos

deles natildeo perdoam a Hitler natildeo eacute o crime em si nem tatildeo-pouco o crime contra a humanidade

mas o crime contra o homem branco a humilhaccedilatildeo do homem brancordquo Assim natildeo restam

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duacutevidas de que do ponto de vista do seu desenvolvimento socio-histoacuterico a colonizaccedilatildeo eacute

uma suprema barbaacuterie um nazismo pouco expressivo por ser aplicado aos negros e aos aacuterabes

de Aacutefrica Mas na sua essecircncia um tal narcisismo constitui a negaccedilatildeo mais eloquente do

humanismo universal e formal reivindicado por Fanon e ao mesmo tempo uma clara

renuacutencia dos ideais filosoacuteficos morais e cristatildeos de uma civilizaccedilatildeo decaiacuteda (cfr Ceacutesaire

1978 pp 18-19)

Estaacute assim denunciada a patologia de uma civilizaccedilatildeo que fundou a sua filosofia de acccedilatildeo na

estigmatizaccedilatildeo do ldquodiferenterdquo e na fragmentaccedilatildeo do mundo em puro e impuro Eacute a construccedilatildeo

patoloacutegica usando a expressatildeo da Nussbaum de um ldquonoacutesrdquo que se julga imaculado e de um

ldquoelesrdquo preconceitualmente denotado vil perigoso e contagioso Esta denunciada patologia

obriga-nos a retomar algumas das questotildees supra referenciadas tais como eacute possiacutevel pensar a

missatildeo civilizadora da Europa colonial num contexto de clara recusa da alteridade ou de

reconhecimento do africano como sujeito autoacutenomo dotado de razatildeo e de humanidade

Como compreender uma missatildeo civilizadora assente numa loacutegica social do segundo excluiacutedo

isto eacute numa loacutegica social fracturante e nihilista Seraacute que Aacutefrica ao engajar-se na luta pela

descolonizaccedilatildeo teraacute efectivamente recusado o projecto de desenvolvimento que configurava

a missatildeo civilizadora da potecircncia colonial Vamos no proacuteximo ponto tentar encontrar alguns

elementos de resposta a estes questionamentos em certa medida jaacute respondidos

7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta uma antiacutetese agrave pretensatildeo colonial da emancipaccedilatildeo

da Aacutefrica dos africanos

A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta da sociedade ou seja a bipolarizaccedilatildeo social assente no

princiacutepio da desigualdade entre as cidades dos homens isto eacute dos europeus e os bairros

indiacutegenas ou dos selvagens categorias sociais criadas pelo proacuteprio colono contradiz agrave

partida qualquer pretensatildeo colonial de reconhecimento e integraccedilatildeo da Aacutefrica e dos africanos

no universalismo humano (cfr Fanon 1968 p 27 ou 2002 p 453) Aliaacutes a estrutura social

montada pelo colono determinava ldquoa priorirdquo que as relaccedilotildees entre os habitantes dos dois

mundos fossem de exploradores e explorados dominadores e dominados opressores e

oprimidos superiores e inferiores homens e sub-homens Conveacutem no entanto sublinhar que

toda a violecircncia colonial tinha como grande propoacutesito a criaccedilatildeo de um ambiente de medo e

inibiccedilatildeo do colonizado no intuito de facilitar a dinamizaccedilatildeo da exploraccedilatildeo e a pilhagem de

recursos naturais num contexto inovador de mercantilismo que muito precisava do concurso

forccedilado dos proacuteprios indiacutegenas Para dar conta do dinamismo interno de uma tal

compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta Fanon escreve

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em sua zona o colono potildee em marcha o movimento de dominaccedilatildeo de

exploraccedilatildeo e de pilhagem Na outra zona a coisa colonizada oprimida e

espoliada alimenta como pode esse movimento [hellip] as mateacuterias-primas vatildeo

e vecircm legitimando a presenccedila do colono Enquanto o acocorado mais morto

do que vivo o colonizado se eterniza num sonho [hellip] o colono faz histoacuteria

Sua vida eacute uma epopeia uma odisseia (Fanon 1968 p 38 ou 2002 p 463)

Como se pode depreender mais uma vez este maniqueiacutesmo eacute em si mesmo uma antiacutetese de

qualquer projecto civilizador natildeo soacute pelo facto de se constituir num factor provocador de

desprezo e ignomiacutenia dos colonizados mas tambeacutem e sobretudo por ser um factor

desestabilizador suscitador de oacutedio e de violecircncia entre os habitantes das duas zonas Cocircnscio

desta tensatildeo latente e subjacente a esta configuraccedilatildeo geopoliacutetica opressiva o colono interpocircs

como deduz Fanon uma estrutura fronteiriccedila forte e intimidatoacuteria capaz de assegurar a

atmosfera de submissatildeo e de inibiccedilatildeo dos explorados tal como se pode ler

o mundo colonizado eacute um mundo cindido em dois A linha divisoacuteria a

fronteira eacute indicada pelos quarteis e delegacias de poliacutecia Nas coloacutenias o

interlocutor legal e institucional do colonizado o porta-voz do colono e do

regime de opressatildeo eacute o gendarme ou o soldado Nas sociedades capitalistas o

ensino religioso ou leigo a formaccedilatildeo de reflexos morais [hellip] criam em torno

do explorado uma atmosfera de submissatildeo e inibiccedilatildeo que torna

consideravelmente mais leve a tarefa das forccedilas da ordem [hellip] O

intermediaacuterio do poder utiliza uma linguagem de pura violecircncia [hellip] natildeo

torna mais leve a opressatildeo natildeo dissimula a dominaccedilatildeo Exibe-as manifesta-

as com a boa consciecircncia das forccedilas da ordem [hellip] leva a violecircncia agrave casa e

ao ceacuterebro do colonizado (Fanon 1968 p 28 ou Fanon 2002 pp 453-454)

Este e outros cenaacuterios permitem situar a originalidade do instinto colonial no princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica e social e no de desigualdade econoacutemica entre duas espeacutecies a

branca e a negra ou aacuterabe pois a patologia narcisista de superioridade racial estruturou no

imaginaacuterio individual e colectivo do colonizador a convicccedilatildeo de que ser branco significa ser

superior e consequentemente rico e ser negro ou aacuterabe africano eacute o oposto disto (cfr Fanon

1968 p 29 ou Fanon 2002 p 455) Este maniqueiacutesmo que toma balanccedilo no plano simboacutelico

no qual o branco remete agrave noccedilatildeo do bem do belo e do bom e o negro o seu oposto

desembarca no plano concreto com reflexos inofuscaacuteveis na configuraccedilatildeo geograacutefica da

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estrutura social montada pelo regime colonial A cidade do colono eacute uma cidade vida

enquanto no bairro do colonizado se sobrevive milagrosamente a cidade do colono eacute segura

mas no bairro indiacutegena a inseguranccedila eacute o proacuteprio cartatildeo-de-visita a cidade do colono eacute uma

cidade soacutelida toda de pedra e ferro iluminada asfaltada as ruas limpas lisas sem buracos

mas o bairro indiacutegena eacute o oposto disso Na cidade do colono os habitantes estatildeo

permanentemente saciados e repletos de boas coisas Em contrapartida o bairro indiacutegena ou

negro eacute um lugar mal-afamado e povoado eacute o bairro de homens mal-afamados aiacute nasce-se

natildeo importa como nem onde e morre-se natildeo importa a onde nem de quecirc Eacute um mundo sem

intervalos ou seja os homens estatildeo uns sobre os outros eacute o mundo dos famintos dos

analfabetos e dos doentes e indigentes (cfr Fanon 1968 p 28-29 ou Fanon 2002 pp 453-

454)

O mundo colonial diz Fanon forjou um povo sem alma e sem referecircncia originaacuterias O

colono criou categorias sub-humanas para destruir a autoestima dos negros e dos aacuterabes de

Aacutefrica Fez deles uma espeacutecie de quintessecircncia do mal considerando-os como seres

impermeaacuteveis agrave moral e agrave eacutetica com ausecircncia e negaccedilatildeo de valores mal absoluto elementos

corrosivos que destroem tudo o que se aproxima deles elementos deformadores que

desfiguram tudo o que se refere agrave esteacutetica ou agrave moral depositaacuterios de forccedilas cegas (cfr

Fanon 1968 p 31 ou Fanon 2002 p 456) Esta convicccedilatildeo levou M Meyer a afirmar em

plena Assembleia Nacional Francesa que

[hellip] natildeo era necessaacuterio prostituir a Repuacuteblica fazendo penetrar nela o povo

argelino Os valores com efeito se tornam irreversivelmente envenenados e

pervertidos desde que entram em contacto com a populaccedilatildeo colonizada Os

costumes do colonizado suas tradiccedilotildees [hellip] sobretudo seus mitos satildeo a

proacutepria marca desta indigecircncia desta depravaccedilatildeo constitucional (Fanon

1968 p31 ou Fanon 2002 p 456)

Este discurso forjado no seu espaccedilo existencial levou Ceacutesaire (1978 p17) agrave conclusatildeo de que

a Europa colonial se esmerou antes de mais em descivilizar primeiro o proacuteprio colonizador

embrutececirc-lo degradaacute-lo despertaacute-lo para os instintos ocultos para a cobiccedila para a violecircncia

para o oacutedio racial e para o relativismo moral e posteriormente descivilizar o colonizado

Todo este quadro legitima sobremaneira o anseio dos africanos pela liberdade e pelo

reconhecimento da sua dignidade Para desmascarar o argumento segundo o qual o

engajamento dos africanos na luta pela descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica teraacute sido uma espeacutecie de

recusa do desenvolvimento do Continente africano pelos africanos Ceacutesaire passa em revista

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e em jeito de balanccedilo o vasto fresco dos horrores da dominaccedilatildeo colonial em particular a

francesa em Aacutefrica deixando claro que nenhum desenvolvimento vale mais do que a

dignidade humana e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos povos Apoiando

o seu raciociacutenio nos factos Com efeito Ceacutesaire afirma que a equaccedilatildeo mais ajustada agrave

realidade vivida eacute colonizaccedilatildeo igual coisificaccedilatildeo e natildeo desenvolvimento porque no fim de

contas o fiel da balanccedila pende mais para prejuiacutezos do que para ganhos tal como consta do

longo extrato que extraiacutemos do texto de Ceacutesaire

falam-me de progressos de realizaccedilotildees de doenccedilas curadas de niacuteveis de vida

elevados acima de si proacuteprios eu falo de sociedades esvaziadas de si

proacuteprias de culturas espezinhadas de instituiccedilotildees minadas de terras

confiscadas de religiotildees assassinadas de magnificecircncias artiacutesticas

aniquiladas de extraordinaacuterias possibilidades suprimidas Lanccedilam-me agrave cara

factos estatiacutesticas quilometragens de estradas de canais de caminhos-de-

ferro mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano falo

dos que no momento em que escrevo cavam agrave matildeo o porto de Abidjan falo

de milhotildees de homens arrancados aos seus deuses agrave sua terra aos seus

haacutebitos agrave sua vida agrave danccedila agrave sabedoria falo de milhotildees de homens a quem

inculcaram sabiamente o medo o complexo de inferioridade o tremor a

genuflexatildeo o desespero o servilismo Laccedilam-me em cheio aos olhos

toneladas de algodatildeo ou cacau exportado hectares de oliveiras ou de vinha

plantadas mas eu falo de economias naturais de economias harmoniosas e

viaacuteveis de economias adaptadas agrave condiccedilatildeo do homem indiacutegena

desorganizadas de culturas de subsistecircncias destruiacutedas de subalimentaccedilatildeo

instalada de desenvolvimento agriacutecola orientada unicamente para benefiacutecio

das metroacutepoles de rapinas de produtos de rapinas de mateacuterias-primas

Ufanam-se de abusos suprimidos eu tambeacutem falo de abusos mas para dizer

que aos antigos ndash muito reais ndash sobrepuseram outros muito detestaacuteveis

Falam-me de tiranos locais trazidos agrave razatildeo poreacutem constato que regra geral

eles fazem muito boa parelha com os novos e que destes aos antigos e vice-

versa se estabeleceu em detrimento dos povos um circuito de bons serviccedilos

e cumplicidade Falam-me de civilizaccedilatildeo eu falo de proletarizaccedilatildeo e de

mistificaccedilatildeo [hellip] Cada dia que passa cada negaccedilatildeo de justiccedila cada carga

policial cada reclamaccedilatildeo operaacuteria afogada em sangue cada escacircndalo

abafado cada expediccedilatildeo punitiva cada poliacutecia e cada miliciano fazem-nos

sentir o preccedilo das nossas velhas sociedadesrdquo (Ceacutesaire 1978 pp25-26)

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Disso decorre que a essecircncia do colonialismo tal como realccedilou Maacuterio Pinto de Andrade

reside em dois aspectos no ldquoregime de exploraccedilatildeo desenfreada de imensas massas humanas

que encontra a sua legitimidade e sustentabilidade na violecircnciardquo e na ldquoforma moderna de

pilhagemrdquo (cfr Ceacutesaire Aimeacute 1978 p7) Assim se os niacuteveis cientiacuteficos tecnoloacutegicos e

organizacionais ostentados pela Europa colonial lhe conferem a todos os tiacutetulos um estatuto

de uma civilizaccedilatildeo o mesmo jaacute natildeo se daacute do ponto de vista da sua relaccedilatildeo com as coloacutenias

Por esta razatildeo Ceacutesaire chamou-lhe de civilizaccedilatildeo decadente enferma e moacuterbida por se ter

revelado incapaz de resolver os grandes problemas que criou nomeadamente o do

proletariado e o colonial Ouccedilamos Ceacutesaire a respeito

ldquouma civilizaccedilatildeo que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu

funcionamento suscita eacute uma civilizaccedilatildeo decadente Uma civilizaccedilatildeo que

prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais eacute uma civilizaccedilatildeo

enferma Uma civilizaccedilatildeo que trapaceia com os seus princiacutepios eacute uma

civilizaccedilatildeo moacuterbidardquo (Ceacutesaire 1978 p13)

Teratildeo Fanon Ceacutesaire Sartre e outros exagerado na sua criacutetica do colonialismo

Possivelmente sim Contudo a larga unanimidade existente sobre o assunto permite-nos

atribuir uma certa objectividade e verdade histoacuterica a muitos dos enunciados que nos satildeo

dados a apreciar Reneacute Grousset (1954 p 76) quase duas deacutecadas antes de Ceacutesaire

analisando o percurso evolutivo das civilizaccedilotildees constatava que nenhuma civilizaccedilatildeo

apareceu logo no iniacutecio tatildeo promissora e tatildeo ameaccedilada como a civilizaccedilatildeo ocidental A sua

ameaccedila em seu entender natildeo vem apenas da espada nuclear vem tambeacutem e sobretudo do

egoiacutesmo e do materialismo que inspiram os povos que a comandam Estaacute portanto evidente

que o regime colonial europeu foi essencialmente uma conquista assente em fins de

exploraccedilatildeo dos indiacutegenas Esta ideia ceacutesairiana de uma Europa exploradora no sentido

accedilambarcador do termo aparece tambeacutem no ldquoLe geacutenociderdquo no qual Jean-Paul Sartre eacute

perentoacuterio em afirmar que a colonizaccedilatildeo natildeo eacute uma mera conquista como foi a anexaccedilatildeo de

Alsace-Lorraine pela Alemanha na sua verdadeira natureza a colonizaccedilatildeo eacute um acto de

genociacutedio cultural Numa ldquodeacutemarcherdquo fenomenoloacutegica Sartre mostra que a colonizaccedilatildeo natildeo

acontece sem a liquidaccedilatildeo sistemaacutetica de todas as caracteriacutesticas particulares de sociedades

nativas e simultaneamente sem a recusa da sua integraccedilatildeo massiva na metroacutepole e sem a

negaccedilatildeo do seu acesso agraves vantagens da metroacutepole

Concordamos assim com Sartre que a colonizaccedilatildeo eacute um sistema de negoacutecio que requer

inevitavelmente a existecircncia de um sub-proletariado nacional forccedilado a trabalhar por

miseraacuteveis salaacuterios Vale dizer que no sistema colonial a coloacutenia teve uma funccedilatildeo

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instrumental ou seja foi usada para vender as suas mateacuterias-primas e seus produtos agriacutecolas

a um preccedilo irrisoacuterio agrave metroacutepole Em retorno a metroacutepole vendeu os bens manufaturados agraves

coloacutenias a preccedilo do mercado Este negoacutecio que contou com a comparticipaccedilatildeo da burguesia

nacional condenou os africanos a viverem num submundo de miseacuteria como negros fantasmas

continuamente recordados da sua condiccedilatildeo de sub-humanos (cfr Sartre 1967 p39)

Estaacute visto que a colonizaccedilatildeo partindo da efiacutegie aqui apresentada eacute um projecto oposto aos

ideais civilizacionais tal como alude Ceacutesaire ao desmistificar a tentativa de atribuir ao

processo de colonizaccedilatildeo uma intenccedilatildeo civilizadora A maldiccedilatildeo mais comum nesta mateacuteria eacute

deixarmo-nos iludir de boa-feacute por uma hipoacutetese colectiva e haacutebil em enunciar mal os

problemas para melhor justificar as soluccedilotildees que se lhes aplicam conferindo facilmente

legitimidade a um conjunto de praacuteticas abominaacuteveis atribuindo-lhes a categoria de um mal

necessaacuterio com vista a um fim nobre ndash a civilizaccedilatildeo dos selvagens (Ceacutesaire 1978 p14)

Conclusatildeo

A reflexatildeo feita nas paacuteginas anteriores permitiu-nos deduzir a existecircncia de uma possiacutevel

analogia entre a colonizaccedilatildeo e a civilizaccedilatildeo do ponto de vista teoacuterico conceitual Mas do

ponto de vista praacutetico tudo natildeo passou de uma simples ilusatildeo Uma ilusatildeo cimentada pela

foacutermula do pedantismo cristatildeo que procurou atribuir uma presumiacutevel missatildeo civilizadora ao

fenoacutemeno de colonizaccedilatildeo ao estabelecer a equaccedilatildeo cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria A anaacutelise mostrou que do ponto de vista doutrinal e factual

uma tal equaccedilatildeo eacute insustentaacutevel porquanto a colonizaccedilatildeo se assumiu mais como violecircncia

contra os povos colonizados e exploraccedilatildeo dos seus recursos naturais e da sua forccedila de trabalho

e nunca como projecto colonial de emancipaccedilatildeo dos povos colonizados Esta conclusatildeo pode

ter sido previsiacutevel mas como foi referido no princiacutepio deste trabalho esta anaacutelise sobre o

colonialismo encontra a sua utilidade neste texto na medida em que se nos apresenta como

movimento historicizante que constitui a mateacuteria e a forma que nos permitem vislumbrar o

horizonte teleoloacutegico da descolonizaccedilatildeo enquanto proposta de emergecircncia do novo nova

realidade novos seres e novo continente uma espeacutecie de antiacutetese do mundo colonial

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Obras do autor

1 FANON Frantz Frantz Fanon Ouevres Paris Eacuteditions La Deacutecouverte 2011

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2 ----------------------- Les damneacutes de la terre Paris Eacuteditions la Deacutecouverte (Preacuteface de Jean-Paul Sartre) 1961

3 ----------------------- Os condenados da terra Rio de Janeiro ndash Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Traduccedilatildeo de Joseacute

L de Melo 1968

Outras obras

1 BOURDIEU Pierre Sociologie de lrsquoAlgerie Paris PUF 1958

2 BURAWOY Michael Marxismo encontra Bourdieu Campinas Editora Unicamp 2010

3 CABRAL Iva A Primeira Elite Colonial Atlacircntica Dos ldquohomens honrados broncosrdquo de Santiago agrave

ldquonobreza da terrardquo Finais do seacutec XV ndash iniacutecio do seacutec XVII Cabo Verde Pedro Cardoso Livraria 2015

4 CEacuteSAIRE Aimeacute Discurso sobre a colonizaccedilatildeo Lisboa Livraria Saacute da Costa Editora 1978

5 CONSTATINI Dino Mission civilisatrice le role de lrsquohistoire colonial dans la construction de lrsquoidentiteacute

politique franccedilaise Paris Eacuteditions de la Deacutecouverte 2008

6 DE VIGNY Alfred ldquoCritique des anedotes historiques sur Alger de Jean-Toussaint de Merlerdquo In Bancel

Nicolas Blanchard Pascal Verges Franccediloise La Republique colonial Paris Albin Michel Coll Pluriel 2003

7 FOLLIET Joseph Le droit de colonisation Eacutetude de morale sociale et international Lyon GNeveu 1932

8 GIRARD Reneacute La Violence et le Sacreacute Paris Grasset reacuteeacute Pluriel 1972

9 GROUSSET Reneacute Lrsquohomme et son histoire Paris Plon 1954

10 NUSSBAUM C Martha Not For Profit Why Democracy Needs The Humanities Oxford Princeton

University Press 2010

11 RENAN Ernest La Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la France Paris Union Geacuteneacuterale drsquoEacuteditions 1967

12 SARTRE Jean-Paul ldquoLe Genociderdquo In Les Temps modernes nordm259 Gallimard Decembre 1967

13 SEMELIN Jacques Purifier et Deacutetruir Usages politiques de massacres et geacutenocides Paris Seuil 2005

14 SENGHOR Leopold Sedar (1964) On African Socialism London Pall Mall Press 1964

Artigos e Dicionaacuterios

1 BOURDIEU Pierre (1987) Le Sens Commum Chose dites In Fildwork in philosophy Paris Les Eacuteditions de

Minuit

2 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea Academia das Ciecircncias de Lisboa Editorial Verbo 2001

3 Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura Editorial Verbo Lisboa nordm5

4 OLUacuteFEacuteMI Taacuteiwo (2004) ldquoPost-Independence African Political Philosophyrdquo In Kwasi Wiredu A

Companion to African Philosophy Cornwall MPG Books Ltd Bodmim 2004 pp 243-260

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PEDAGOGIA laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO

LIBERAL EM AacuteFRICA

INAacuteCIO VALENTIM a

inaciovalentim82gmailcom

Resumo

Nada eacute tatildeo enobrecedor como ensinar e aprender A nobreza reside na consciecircncia estaacute no

encontro com o outro estaacute na disponibilidade que eacute criada para si e para o outro e estaacute

sobretudo no comprometimento que se tem consigo mesmo e com o outro O outro como o

rosto como memoacuteria e como um ldquooutro eurdquo Isto eacute o que ensinar e aprender nos oferece e nos

sugere Ter a noccedilatildeo de que todo o acto de ensinar eacute essencialmente um processo de aprender

de aprendizagem e de dar a possibilidade de interrogar-se sobre o aprendido e sobre

aprendizagem O objectivo deste artigo eacute de reflectir sobre a hermenecircutica do aprender o que

chamamos aprender e como acontece

Palavras-chave aprender comprometimento inacessibilidade responsabilidade fazer e

ensinar

Abstract

Nothing is so ennobling as teaching and learning The nobility lies in its consciousness is in

the encounter with the other it is in the availability that is created for itself and to the other

and itrsquos mainly in the compromise that it has with oneself and with the other The other as the

face as memory and as other selfrdquo This is what teaching and learning offers and suggests to

us Have the notion that the whole act of teaching is essentially a process of learning learning

and giving the possibility to question them about the learned and about learning The aim of

this article is to reflect on the hermeneutics of learning what we learn and how it happens

Keywords learning commitment inaccessibility responsibility doing and teaching

a Doutor em Filosofia pela Universidade Carlos III de Madrid Professor e Investigador Titular Director Geral do

Instituto Superior Politeacutecnico Sol Nascente Huambo - Angola wwwispsnorg

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O termo laquoaprenderraquo oferece agrave primeira vista com uma leitura muito atenta uma ideia muito

escorregadia apresenta algo de inacessibilidade algo que nos passa entre os dedos como

aacutegua como liacutequido como vento como espiacuterito Enfim como algo que natildeo nos eacute dado

aprisionar fiacutesica e mentalmente No entanto acreditamos que aprendemos e acreditamos que

podemos fazer com que outras pessoas aprendam connosco ou atraveacutes de noacutes e natildeo hesitamos

muitas vezes em oferecer-nos como instrumento de aprendizagem para os outros Apesar de

ser um termo muito duro no sentido de responsabilidade esta responsabilidade acaba por estar

ou ficar diluiacuteda na confusatildeo entre o aprender e o fazer entre o aprender e o ensinar entre o

aprender e o saber porque confundimos ou fundimos as duas perspectivas antecipando

precisamente o acto do segundo que eacute dirigido ou orientado para o aprendiz Enquanto

mecanismo que conduz agrave aquisiccedilatildeo do saber a aprendizagem ldquoopotildee-se ao ensinamento ou ao

ensino cujo objectivo eacute de dispensar conhecimentos e saberesrdquo Mas esta oposiccedilatildeo natildeo eacute de

ruptura porque natildeo pode haver aprendizagem senatildeo por intermeacutedio do ensino ou de quem

ensina

O aprender-se bem eacute reflectido sobretudo a partir da acccedilatildeo enquanto resultado e resposta do

aprender natildeo obstante enquanto fenoacutemeno o aprender eacute um acto de natureza invisiacutevel e

quase que inapreensiacutevel e intocaacutevel A sua visibilidade soacute eacute passiacutevel para o proacuteprio sujeito

isto eacute para o aprendiz ou no aprendiz Dificilmente eu como promotor ou enquanto promotor

de aprendizagem posso dizer com exactidatildeo o momento da captaccedilatildeo do sujeito do elemento

aprendido posso supor atraveacutes de perguntas que faccedilo ou que tenho que responder dele mas

apenas eacute uma suposiccedilatildeo Eacute pois esta complexidade que vai tambeacutem fazer com que o acto de

aprender seja acima de tudo um acto divino um momento ou uma instacircncia do natildeo humano

Soacute aquele que diviniza-se chega a aprender consegue aprender e supera com isso a primeira

instacircncia do humano E divinizar-se significaria ter um autocontrolo sobre os impulsos do

saber os impulsos desenfreados do desejo de aprender e de assumir-se como o promotor de

aprendizagem Mas este processo soacute eacute possiacutevel com um povo ou com gente que agrave partida natildeo

rejeita preliminarmente a filosofia soacute eacute possiacutevel com gente que natildeo eacute dirigida e que natildeo eacute

paciente dos meacutedicos do povo como diria Nietzsche O aprender filosoacutefico apenas acontece

com e para gente satilde os ldquoenfermos que se contactam com a filosofia ficam ainda mais

enfermosrdquo porque de certa forma a filosofia soacute pode salvar e curar quem jaacute estaacute curado

quem reuacutene requisitos para a cura E foi assim que os gregos conseguiram fazer da filosofia a

sua proacutepria casa o seu mundo o seu lugar apesar de a filosofia vir de outros lugares virou a

casa dos gregos tornou-se ou transformou-se no elemento da definiccedilatildeo essencialmente grego

Os gregos souberam pegar naquilo que os outros povos abandonaram e fizeram dele o mais

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alto elemento do saber precisamente porque souberam utilizar laquoa arte de aprender

produtivamenteraquo utilizando para este efeito os seus saacutebios Contrariamente aos outros povos

que laquotecircm santos os gregos tecircm saacutebiosraquo diz Nietzsche e satildeo estes saacutebios que vatildeo fazer com

que a filosofia tenha um sentido profundo e original para o grego justificando assim a sua

aposta a sua protecccedilatildeo e a utilidade da sua futilidade

Apesar dos gregos terem podido trazer a filosofia das outras paradas orientais como diz

Nietzsche natildeo tiveram nenhuma moda que lhes pudesse ajudar ou facilitar as coisas Tiveram

que inventar a sua proacutepria imaginaccedilatildeo tiveram que filosofar com laquouma puberdade madura

onde brotava a fogosa alegria de uma vitoriosa e valente idade viril1raquo Em outras palavras

tiveram que superar a idade da infacircncia humana a infacircncia social e tiveram que se fazer

responsaacuteveis Esta eacute tambeacutem uma das condiccedilotildees de aprendizagem ou do aprender fazer-se

responsaacutevel emancipar-se e dar conta de si e dos outros laquopois quanto mais fazemos sobre as

coisas mais pensamos sobre elas ou mais desenvolvemos pensamentos sobre elasraquo O nosso

aprender estaacute relacionado com um espaccedilo concreto com um lugar com uma referecircncia com

um encontro-chegada-regresso No fundo o nosso aprender estaacute relacionado com uma histoacuteria

concreta ou com uma meta-histoacuteria estaacute relacionado com um padratildeo que nos vai dizer que as

condiccedilotildees para aprender exigem abc A tarefa de aprender natildeo eacute compatiacutevel com o tempo

apressado com o tempo que se assimila ao material O aprender eacute como ler um livro que estaacute

destinado a

[hellip] leitores tranquilos a homens que ainda natildeo foram arrastados pela vertiginosa pressa

da nossa agitada era e que ainda natildeo sentem o prazer idolatra quando olham para baixo das

sua rodas [hellip] quer dizer Haacute poucos homens Estes ainda natildeo estatildeo habituados a

estabelecer o valor de cada coisa segundo a poupanccedila ou os gastos do tempo estes laquoainda

tecircm temporaquo ainda lhes eacute permitido sem culpar-se de nada seleccionar e reunir as melhores

horas da jornada e os seus momentos mais fecundos e vigorosos para reflectir sobre o

futuro da nossa educaccedilatildeo estes podem ter a certeza que chegaram agrave noite de uma forma

proveitosa e digna a saber na meditation generis futuri (meditaccedilatildeo sobre o geacutenero futuro)

Um homem assim ainda natildeo se esqueceu de pensar enquanto lecirc ainda compreende o

segredo de ler entre linhas mais ainda eacute de uma natureza tatildeo prodigiosa que reflecte sobre

o lido talvez muito tempo depois de ter deixado o livro E sem duacutevidas natildeo para escrever

uma resenha ou outro livro mas simplesmente para reflectir2

O aprender seria portanto um viver sem pressa um estar sem pressa um existir sem pressa

Um ser no desconhecimento Mas sabemos que isso natildeo eacute possiacutevel Natildeo eacute possiacutevel saber sem

1Cf Friedrich Nietzsche Obras completas Vol 1 Filosofiacutea en la Eacutepoca Traacutegica de los Griegos Trad e introduc

Joan B et alt Tecnos Madrid 2011 p 574 2 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 549

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ser conotado natildeo eacute possiacutevel saber sem ser procurado natildeo eacute possiacutevel saber sem falar do que se

sabe natildeo eacute possiacutevel saber sem comunicar o sabido Mas dizemos que natildeo eacute possiacutevel e na

verdade eacute possiacutevel porque natildeo estamos a falar da mesma coisa saber natildeo eacute aprender Satildeo

duas coisas completamente distintas mas apesar de tudo uma coisa tecircm em comum a fuga da

fanfarronice e o desejo desenfreado de confrontaccedilatildeo A atestaccedilatildeo do aprendido a examinaccedilatildeo

do sabido Tecircm em comum aquilo que falta ao homem moderno o excesso de si a auto-

referecircncia desmedida O aprender conduz-nos ao desejo de estar tatildeo bem formados a tal ponto

de natildeo pensarmos mais em noacutes mesmos ou na nossa formaccedilatildeo e ateacute ao ponto de desprezarmos

a nossa proacutepria formaccedilatildeo Contrariamente ao homem moderno diz Nietzsche haacute que evitar

fazer de noacutes mesmos uma espeacutecie de homo mesura precisamente porque natildeo somos criteacuterio

seguro de nada natildeo somos criteacuterio seguro do absoluto Aqui o aprender deixa de ser um

criteacuterio e passa a ser uma meta e a meta aqui eacute que aquele que estaacute aprender se entregue

completamente com laquoa maacutexima confianccedila agrave tutela do autor de quem apenas pode falar a partir

da sua proacutepria ignoracircncia e da consciecircncia da ignoracircnciaraquo O aprendiz eacute aquele de quem

Nietzsche faz este tremendo apelo porque eacute nele que ele acredita

[hellip] Deixai-vos encontrar voacutes os isolados em cuja existecircncia acredito Voacutes

os altruiacutestas voacutes que padeceis em voacutes mesmos as dores e as perversotildees do

espiacuterito (hellip) Voacutes os contemplativos cujo olhar natildeo palpa com pressurosa

suspeita o externo das coisas mas sim sabe encontrar a entrada ao nuacutecleo da

essecircncia Eu vos convoco apenas para esta vez natildeo vos escondais nas

cavernas do vosso retiro e da vossa desconfianccedila Sejam quando menos

leitores deste livro para mais em frente com os vossos feitos acabar com ele

e deixa-lo no esquecimento Compreendeis que este livro estaacute destinado a ser

o vosso pronuacutencio quando voacutes mesmos com as vossas armas vos apresenteis

na palestra [hellip]3

Ao seu modo Nietzsche apresenta aqui a figura do aprendiz o docente o estudante e todos os

inquietos de espiacuterito como aqueles que satildeo isolados que satildeo altruiacutestas e que padecem das

dores da perversatildeo do espiacuterito O acto de aprender eacute incompatiacutevel com o tremendo de

confusatildeo eacute incompatiacutevel com o egoiacutesmo e com o egocentrismo e eacute incompatiacutevel com o

regradamente certo O aprender exige ruptura porque supotildee adaptaccedilatildeo a uma nova era a uma

nova realidade exige encontrar o outro dentro e fora de mim e exige um prestar atenccedilatildeo a

mim mesmo que natildeo seja necessariamente um narcisismo O aprender exige que sejamos uns

3 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 550

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contemplativos sem pressa de conhecer e de chegar sem pressa de afirmar ou de concluir

apenas se espera que sejamos contemplativos que admiram para melhor conhecer e trazer a

utilidade profunda mas sombria que estaacute aprisionada nas cavernas das nossas pressas O

aprender exige que a nossa contemplaccedilatildeo nos conduza ao encontro da essecircncia daquilo que

deve ser objecto do aprender Por isso cada vez que noacutes que estamos no eterno caminho de

aprender nos confrontamos com um livro com uma obra temos a possibilidade de sair dos

nossos retiros contraditoacuterios das nossas cavernas e das nossas desconfianccedilas Temos a

possibilidade de dar a conhecer a nossa opiniatildeo eacute o nosso pronuacutencio na palestra que pode

naturalmente chocar com os dois modelos do aprender propostos pela cultura educativa

moderna a saber

Por um lado a educaccedilatildeo como o espaccedilo da proposta do aprender deve ser extensiacutevel a todo o

territoacuterio por outro o laquoimpulso de reduccedilatildeo e debilitamento do mesmoraquo Desde muito cedo

quando a educaccedilatildeo comeccedilou a ser vista como um elo importante o homem apesar de alguns

constrangimentos sempre soube que seria de muito mais valia que ela fosse extensiacutevel para

todo o territoacuterio independentemente das questotildees poliacuteticas culturais econoacutemicas e religiosas

Natildeo obstante a sua extensatildeo sempre dependeraacute da vontade do Estado da disponibilidade do

Estado enfim da autorizaccedilatildeo do Estado Os gregos que fazem parte dos povos que pensaram

a educaccedilatildeo depois dos egiacutepcios e dos feniacutecios assumiram a inseparabilidade destes dois

momentos a educaccedilatildeo que deve chegar a todo o territoacuterio e a educaccedilatildeo que para ser educaccedilatildeo

tem que ser controlada pelo Estado A educaccedilatildeo deve ser controlada pelo Estado mas natildeo

necessariamente executada pelo Estado Em A Poliacutetica Aristoacuteteles foi muito bem claro em

dizer que a tarefa de educaccedilatildeo se bem eacute da comunidade natildeo obstante compete em primeiro

lugar ao Estado e soacute na impossibilidade deste de cobrir todas as partes eacute que o particular

assume tambeacutem ele a tarefa de educar Educar e por conseguinte o aprender desde este

ponto de vista nasce com um problema eacute um problema natildeo apenas no sentido de delegaccedilatildeo

de autorizaccedilatildeo mas tambeacutem no sentido da proacutepria autodestruiccedilatildeo Quem aprende destroacutei-se e

autodestroacutei-se na medida em que vai pondo de lado ou vai equacionando os fundamentos do

conhecimento anterior agrave sua formaccedilatildeo agrave sua educaccedilatildeo Como diz Fullat citado por Carlos

Francisco de Sousa Reis ldquoO acto educador especificamente humano eacute no seu nuacutecleo e fonte

entitativa confrontaccedilatildeo de duas consciecircncias confrontaccedilatildeo constitutivamente violenta4rdquo Para

Carlos Francisco Fullat procura aqui justificar a partir dos modelos de habilidades emperia a

forma como a educaccedilatildeo pode apresentar-se como acto educativo violento ou simplesmente

4Cf Carlos Francisco de Sousa Reis Educaccedilatildeo e cultura mediaacutetica Anaacutelise de implicaccedilotildees deseducativas

Acircncora editora Lisboa 2014 p 45

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como condiccedilatildeo da violecircncia Fullat segundo o nosso autor para encontrar os fundamentos da

educaccedilatildeo como condiccedilatildeo de violecircncia analisa inicialmente o surgimento ontoloacutegico da

civilizaccedilatildeo a partir de trecircs perspectivas a perpectiva do animal faber a perspectiva do animal

symbolicum e a perspectiva do animal sociale A partir destas trecircs perspectivas ele conclui

que a violecircncia eacute constitutiva de todos os actos educativos O ponto de partida da educaccedilatildeo eacute

visto portanto para Fullat desde uma perspectiva negativa desde uma antropologia negativa e

desde uma possibilidade eacutetica negativa Natildeo pode haver uma educaccedilatildeo que natildeo seja sobretudo

uma acccedilatildeo que arraste a negatividade consigo mesma Isto eacute uma acccedilatildeo que procura desfazer-

se do estado da ignoracircncia anterior O estado ou acccedilatildeo educativa eacute uma acccedilatildeo de

ldquodeplacementrdquo para um novo siacutetio um novo mundo uma nova aventura

As leituras ou melhor os textos utilizados por Fullat como exemplos patenteiam

naturalmente esta negatividade na relaccedilatildeo educativa Eacute o caso da visatildeo hobbesiana freudiana

e de Sartre das relaccedilotildees humanas que satildeo muitas vezes relaccedilotildees de poder da negatividade

isto eacute onde a manutenccedilatildeo do poder implica a perda do outro ou do espaccedilo do outro Nestes

autores destacam-se duas perspectivas inconciliaacuteveis ldquoo egoiacutesmo de ter e o sadismo de

dominarrdquo A educaccedilatildeo eacute vista como uma necessidade desenfreada de ter e ter sempre e cada

vez mais ao mesmo tempo que este desejo incontrolado eacute tambeacutem alimentado com a outra

necessidade de dominar e controlar tudo a todo custo Estas duas febres como lhe chama

Fullat resultam de uma eacutetica hedoniacutestica onde no campo hobbesiano o prazer eacute sinoacutenimo da

dominaccedilatildeo ldquoToda a eacutetica de Hobbes depende do seu pressuposto fundamental a inclinaccedilatildeo

geral da Humanidade para um desejo perpeacutetuo e sem descanso de adquirir poder e mais poder

desejo esse que soacute termina com a morte O ser humano eacute egoiacutesta (hellip) e a fim de poder estar

preparado para alcanccedilar o que deseja tem de procurar aumentar sempre cada vez mais o seu

poder5rdquo Natildeo poderia ter havido civilizaccedilatildeo se natildeo houvesse uma agressividade natural diria

Fullat de Francisco de Sousa O que noacutes consideramos como civilizaccedilatildeo teria sido aquilo que

pensadores como Hobbes ou Rousseau teriam visto como um princiacutepio do pacto natildeo pacto o

pacto simulado no caso de Rousseau A civilizaccedilatildeo nasce a partir da distorccedilatildeo de uma

realidade anterior e para permanecer deve tambeacutem continuar a distorcer esta mesma realidade

para poder construir um poder de dominaccedilatildeo e do egoiacutesmo Neste acircmbito a educaccedilatildeo aparece

como o aparelho protector do Estado manipulador e violento que utiliza as ideologias como a

praccedila da fecundaccedilatildeo das suas manipulaccedilotildees E porque o homem procura sobretudo ser feliz

diz Aristoacuteteles entatildeo muitas vezes natildeo escolhe os meios para ser feliz isto eacute natildeo estaacute

5 Cf Marques 2000 120 Apud Carlos Francisco de Sousa 2014 46

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disposto a abdicar de alguns meios que podem ser uacuteteis para a sua felicidade Eacute o caso da

felicidade pelo trabalho diraacute Francisco de Sousa mas o trabalho exerce uma forccedila contraacuteria

sobre a natureza e eacute o caso da educaccedilatildeo onde no educar

ldquoO homem exige a educaccedilatildeo mas esta implica a violecircncia da programaccedilatildeo

geneacutetica e da programaccedilatildeo social Educar eacute uma luta de consciecircncias em que

o educador sempre investe sobre o educando desde a cultura que se alimenta

da repressatildeo social imposta a Eros (o prazer) e Thanatos (a agressividade)6rdquo

Se bem podemos ver as teorias pessimistas como um exagero da negaccedilatildeo humana no sentido

do encontro pleno ainda assim nesta possiacutevel negaccedilatildeo do encontro pleno entre os humanos

nasce a possibilidade da vida do outro isto eacute o mesmo ldquosujeito que pode trazer a morte do

outro tambeacutem traz a sua vidardquo no embate do encontro entre os diferentes haacute sempre uma

possibilidade da nova vida de um novo existir e a educaccedilatildeo eacute precisamente tudo isso o

encontro dos diferentes que tem como fim ajudar a criar uma nova vida fazer nascer uma

nova existecircncia uma nova oportunidade Porque segundo autores como Fullat diz Francisco

de Sousa natildeo se pode falar de educaccedilatildeo laacute onde natildeo haacute consciecircncia Apenas haacute educaccedilatildeo

porque haacute consciecircncia porque existe consciecircncia porque haacute dois encontros e porque apesar

do embate entre os dois nenhuma delas deixa perder a outra natildeo eacute um encontro ou um

embate para desgarrar o outro antes pelo contraacuterio este embate eacute feito para estabelecer o

outro no outro sem fazer desaparecer a alteridade Mas isso soacute eacute possiacutevel justamente porque

no lugar da violecircncia que poderia ter conduzido a uma ldquorobotizaccedilatildeordquo foi introduzido o factor

de cuidado diz Carlos Francisco de Sousa Eacute portanto o cuidado que vai fazer com que haja

um encontro entre as duas consciecircncias Como diz Hegel de Morin (2005 105 Apud Carlos

Francisco de Sousa 2014 49) ldquoa consciecircncia de si soacute atinge a sua satisfaccedilatildeo numa outra

consciecircncia de sirdquo Dito de outra forma em palavras de Fullat de Carlos Francisco de Sousa

ldquosoacute depois da descoberta do eu pelo enfrentamento do tu se daacute a verdadeira relaccedilatildeo

educativardquo Portanto natildeo pode haver educaccedilatildeo na ausecircncia do outro natildeo pode haver

educaccedilatildeo na ausecircncia do interlocutor e do intermediaacuterio e natildeo pode haver educaccedilatildeo na

ausecircncia de uma situaccedilatildeo educativa

A fase educativa eacute acompanhada pelo decliacutenio paulatino de amestramento porque supotildee a

chegada da consciecircncia supotildee a responsabilidade pela capacidade de escolher e de decidir

supotildee a autenticidade do SIM e do NAtildeO supotildee uma certa comunicaccedilatildeo de intimidade no

6 Cf Francisco de Sousa cit

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dizer de Jaspers de Carlos Francisco de Sousa O sim e o natildeo do educando jaacute tem um patamar

um pouco mais alto que o sim e o natildeo daquele que estaacute na fase de amestramento A pugna jaacute

tem um caraacutecter mais real a dor eacute mais audiacutevel porque eacute vivida e sentida por aquele que tem

capacidade fiacutesica de desforrar violecircncia sobre o seu mestre sobre o seu guia ou sobre aquele

que lhe dirige Eacute diferente da dor da infacircncia que eacute vivida por e pela compaixatildeo do outro no

outro Os pais e os parentes proacuteximos podem responder pela dor da crianccedila enferma levando-a

ao meacutedico ou ao especialista Sozinha natildeo poderia fazecirc-lo eacute por isso que dizemos que a dor

da infacircncia eacute uma dor de solidariedade compassiva isto eacute precisa de um terceiro para ser

actualizada ou minimizada A do adulto tambeacutem pode precisar mas com muito menos

coerccedilatildeo que a da crianccedila ou a do adulto-crianccedila Esta simbologia tambeacutem pode ser aplicada agrave

relaccedilatildeo do educador e do educando que estatildeo quase sempre inicialmente em perspectivas

diferentes em dizibilidades diferentes talvez por isso autores como Fullat falam do caraacutecter

agoacutenico da educaccedilatildeo ou da educabilidade Assumem que natildeo eacute possiacutevel educar sem existecircncia

de um processo agoacutenico porque haacute encontro de dois tipos de saberes que podem ser

completamente diferentes sobre o mesmo saber ou sobre o mesmo tema O saber daquele que

ensina e o saber sobre o saber daquele que vai aprender ou que estaacute para aprender satildeo coisas

completamente diferentes passando ou acontecendo no mesmo espaccedilo A aprendizagem da

educabilidade exige sempre uma proposta e um tempo de adaptaccedilatildeo retroactivo para garantir a

apropriaccedilatildeo do processo da aprendizagem isto eacute para garantir o processo da refinaccedilatildeo do

conhecimento em outras palavras para atingir a compreensatildeo Esta etapa da compreensatildeo eacute

feita de uma transiccedilatildeo a outra isto eacute passamos de uma ldquocivilizaccedilatildeo de resposta a uma

civilizaccedilatildeo de perguntasrdquo porque o tempo de respostas definitivas morreu

O aprender com profundidade exige que natildeo nos contentemos apenas com as pequenas

resoluccedilotildees como diz Andreacute Giordan mas que consigamos apoderar-nos dos enunciados para

debatecirc-los e com eles transformar a relaccedilatildeo do saber atraveacutes de argumentos e contra-

argumentos Quem aprende eacute obrigado a ter argumentos insiste Giordan Quem aprende lanccedila

duras inquisiccedilotildees sobre o processo eacute um constante inquieto

laquoDe que estamos exactamente a falar O que queremos mostrar Estou

convicto de que o que estou a dizer eacute verdade eis porquecircraquo Ele descobre o

que eacute uma demostraccedilatildeo os argumentos que eacute necessaacuterio accionar para

convencer a importacircncia do raciociacutenio e o sentido preciso das palavras No

fim do ensino secundaacuterio aqueles que aprendem nem sempre tecircm

consciecircncia que uma hipoacutetese na matemaacutetica (onde ela eacute um dogma que natildeo

podemos transgredir) natildeo tem o mesmo estatuto que no resto das ciecircncias

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onde ela natildeo eacute senatildeo uma explicaccedilatildeo entre outras explicaccedilatildeo que adoptamos

e adaptamos durante o tempo em que procuramos meios para a corroborar ou

informar Controlar a polissemia de um tal vocabulaacuterio evita muitas

confusotildees7

Quem aprende predispotildee-se a ser bravado e podado predispotildee-se a ser limitado ao mesmo

tempo que rompe a proacutepria limitaccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo da teacutecnica e de habilidades

predispotildee-se a demostrar que apesar das limitaccedilotildees ainda assim pode criar pode inventar e

pode inovar saindo precisamente do seu campo de conforto Qualquer investigaccedilatildeo mesmo

sendo apenas inicial tem como fim tirar-nos do nosso campo do conforto tem que como

objectivo tirar-nos da nossa aldeia e conduzir-nos para a cidade onde corremos o risco de nos

perder implica actualizar o nosso preconceito em relaccedilatildeo a algo implica questionar as

evidecircncias laquoQuanto mais aquele que aprende reflecte sobre o tratamento de uma tarefa mais

ele referencia e repara nos erros nos limites e nos disfuncionamentos Ele torna-se

rapidamente capaz de analisar os acontecimentos em curso e explicitar a estrateacutegia utilizada e

a sua pertinecircncia Comeccedila a emergir uma eficaacutecia oacuteptima8raquo A compreensatildeo e a preensatildeo do

conhecimento natildeo nos deixa indiferentes faz de noacutes outro laquooutroraquo outra realidade que apesar

da existecircncia autoacutenoma assume que soacute pode existir se tiver possibilidade de se comparar com

as outras e se puder ser referenciada Eacute por isso que o nosso modelo de aprender tem que

acompanhar se possiacutevel o enquadramento das concepccedilotildees e tem que actualizar os conceitos

a sua marginalidade e o seu centrismo Pois haacute que ter em conta que ningueacutem aprende sem

antes fazer um trabalho profundo sobre as suas proacuteprias concepccedilotildees (diz Andreacute Giordan) e

sobre as concepccedilotildees dos outros onde ele se apresenta como porta-voz ou como mediador Eacute

por isso que em algumas situaccedilotildees vemos que eacute muito complicado ser porta-voz ou mediador

educativo porque vamos tentar transmitir algo que estaacute fora da nossa dizibilidade cultural

fora do nosso quadro referencial fora do nosso imaginaacuterio cultural Natildeo posso explicar o

rigor do Inverno se natildeo tenho experiencia do Inverno rigoroso porque natildeo disponho dos

dados fortemente caracteriacutesticos do Inverno

A minha explicaccedilatildeo deve superar a mera imagem informativa ou elucidativa da realidade A

minha informaccedilatildeo deve ser a mais real possiacutevel A imagem natildeo eacute a minha realidade eacute a

realidade daquela realidade eacute a realidade da fotografia tirada por mim ou por algueacutem Aqui a

fotografia tem mais ou menos a mesma funccedilatildeo que o vocabulaacuterio que estaacute como a porta de

entrada para a compreensatildeo oral pode ajudar ou pode complicar a compreensatildeo atraveacutes de

7 Cf Andreacute Giordan Aprender Editora Horizontes Pedagoacutegicos Lisboa 2007 p 162

8 Cf Idem

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uma falsa intermediaccedilatildeo de essecircncia da acccedilatildeo cultural A palavra vai ter um peso muito

importante nesta transiccedilatildeo porque pode permitir que cheguemos ou que fiquemos pelo

caminho pode manipular duplamente os conceitos A palavra usada na transmissatildeo deve ser

suficientemente aberta para permitir ao aluno viver a sua liberdade na hora da escolha deve

sentir-se familiarizado com o tema que quer escolher ou que quer trabalhar A obtusidade da

palavra pode tambeacutem ser um factor muito importante natildeo apenas na apreensatildeo dos conteuacutedos

mas tambeacutem na proacutepria escolha dos conteuacutedos por afinidade por gosto por paixatildeo ou ateacute por

curiosidade Quer o docente e quer discente tecircm que saber que este processo natildeo cabe num

frasco de linearidade Haacute muacuteltiplas facetas de ensinar e muacuteltiplas facetas de aprender Mas

entre ambas haacute uma faceta que eacute transversal que eacute desejaacutevel que seja transversal eacute a faceta

do ensinar honesto ou com a honestidade a de aprender honesto ou com a honestidade a de

que cada um tem que ser aquilo que eacute para dar e receber

Esta honestidade eacute muito importante para ajudar a fazer com que quer o educador quer o

educando caminhem para um espaccedilo da educaccedilatildeo liberal ldquoA educaccedilatildeo liberal eacute uma

educaccedilatildeo na cultura e para cultura9rdquo diz Leo Strauss o ldquoproduto terminado de uma educaccedilatildeo

liberal eacute um ser humano cultivadordquo insiste Strauss Uma educaccedilatildeo na cultura e para cultura

que nos conduza agrave formaccedilatildeo de um ser humano cultivado soacute pode ser feita inicialmente com

um fundamento muito forte da honestidade do cuidado e de autocuidado Strauss vai buscar a

explicaccedilatildeo do termo cultura a partir da sua origem latina (cultura) que se refere em primeiro

lugar agrave agricultura diz ele e no seu sentido derivado e actual (insiste ele) quer dizer ou

refere-se ao cultivo da mente Ora insiste o nosso autor assim como a terra precisa de

lavradores a mente precisa de mestres mas estes mestres soacute podem ser mestres ou

reconhecidos como mestres porque para aleacutem da sua periacutecia satildeo acima de tudo honestos

iacutentegros rectos e raros Eacute por isso que eacute mais faacutecil encontrar agricultores do que os mestres

diz Strauss sobretudo os mestres que natildeo satildeo disciacutepulos isto eacute os livros os grandes livros

No acircmbito da educaccedilatildeo liberal o estudante natildeo pode portanto estar separado dos livros dos

grandes livros e porque natildeo pode estar separado dos livros ele vai adonar-se deles e vai criar

condiccedilotildees para poder ajudar os outros estudantes menos experimentados remata Strauss

Tudo isso eacute um processo de honestidade Dedicar-se a estudar com profundidade as grandes

obras os grandes livros que muitas vezes dizem coisas completamente desconcertantes com a

sua eacutepoca o seu espaccedilo ou o seu meio cultural poliacutetico ou religioso Eacute por isso que a

educaccedilatildeo liberal natildeo pode ser entendida como um simples doutrinamento10 Eu natildeo posso

9 Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Katz editores Buenos Aires 2007 p 13

10 Cf Cit p 14

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pretender ou achar que estou a educar simplesmente porque estou a ideologizar as pessoas as

crianccedilas os jovens etc vou educar se crio cultura e se transformo as pessoas em cultura e na

cultura verdadeiramente adquirida com a honestidade

Strauss abre a possibilidade para que o termo cultura tambeacutem seja discutida porque cada

regiatildeo de planeta tem a sua proacutepria cultura Noacutes temos a nossa cultura enquanto africanos e

dentro do africano tambeacutem haacute vaacuterias culturas e subculturas (mesmo sabendo que um

socioacutelogo apressado emitiria imediatamente a sua reclamaccedilatildeo sobre subculturas11) O ideal na

educaccedilatildeo liberal eacute que a cultura natildeo seja uma pequena janela que natildeo seja apenas um

singulare tantum diz Strauss mas que seja e que procure ser utilizada no plural que aceite e

assuma o sentido relativo que lhe permite ser discutida Com a excepccedilatildeo dos loucos todos

somos seres de cultura insiste Strauss apesar da maacute compreensatildeo e da maacute interpretaccedilatildeo que

isso causa agraves vezes Natildeo obstante as maacutes interpretaccedilotildees e as maacutes compreensotildees fazem parte

do preccedilo que uma educaccedilatildeo liberal tem que pagar e tem que correr A educaccedilatildeo democraacutetica eacute

um preccedilo caro no acircmbito da educaccedilatildeo liberal natildeo apenas para o acircmbito acadeacutemico mas

sobretudo para o acircmbito poliacutetico onde o poliacutetico tem que justificar e merecer o voto dos

eleitores No nosso caso concreto o caso africano e de maneira particular a Aacutefrica lusoacutefona a

democracia natildeo se fez muito sentir natildeo estaacute a ser muito acompanhada pela educaccedilatildeo A

proacutepria expressatildeo democracia eacute vista e usada com ambiguidade Mas voltaremos a esta

anaacutelise num outro momento

A Democracia e Educaccedilatildeo

O termo democracia deve ser dos termos ou das expressotildees mais utilizadas a niacutevel poliacutetico e

fora do campo poliacutetico Eacute tambeacutem provavelmente dos termos poliacutetico-sociais mais ingratos

mais incompreensiacuteveis cujo uso eacute muitas vezes inadequado O saacutebio fala de democracia o

especialista tambeacutem mas natildeo eacute por isso que quem natildeo sabe da democracia deixa de falar dela

e isso faz com que ela seja um campo de todos e de ningueacutem Um campo do saacutebio do

especialista e do analfabeto

E eacute sobretudo com este uacuteltimo que vamos trabalhar e falar na democracia moderna Os paiacuteses

lusoacutefonos como muitos paiacuteses de Aacutefrica foram apanhados numa encruzilhada forccedilada da

virada do mundo Do mundo econoacutemico do mundo poliacutetico que tem que obedecer ao mundo

econoacutemico e tal como acontece nas regras e jogos de poderes tiveram que aceitar e entrar

para um jogo e uma regra que natildeo lhes era de todo favoraacutevel Tinham que dar espaccedilo real aos

11

Cf Cit p 14 laquoEacute todo o padratildeo comum de conduta proacutepria de um grupo humanoraquo

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partidos que estavam na oposiccedilatildeo e natildeo era possiacutevel fazecirc-lo realisticamente porque natildeo se

deixa de ser um Partido-Estado de um dia para outro e tinham que lutar contra a pobreza e

contra o analfabetismo as duas inimigas principais da democracia moderna e natildeo havia

garantia de que pudessem fazecirc-los nos termos que a democracia pensada pelos outros

propunha

Portanto a leitura que se deve fazer destes 25 anos da democracia nestes paiacuteses natildeo seria

naturalmente uma leitura triunfalista mas antes pelo contraacuterio uma leitura analiacutetica

Perguntar-se se o que chamamos democracia desde o iniacutecio foi verdadeiramente democracia

A leitura triunfalista eacute uma leitura de auto-regozijo de auto-suficiecircncia e de triunfalismo

nacionalista que faz uma espeacutecie de apagatildeo naquilo que eacute ou sobre aquilo que eacute a memoacuteria do

difiacutecil que roccedila ao fracasso e se esquece que a democracia eacute um regime que eacute feito para

triunfar perdendo ou fracassando Natildeo se pode esperar outra coisa da democracia senatildeo o

triunfo porque aparentemente eacute um regime onde todo o mundo tem a possibilidade e a

oportunidade de decidir de decidir sobre si mesmo e de decidir com o uso da influecircncia sobre

os outros E eacute precisamente na eventualidade de que esta influecircncia sobre os outros venha a

concretizar-se que fez com que os grandes teoacutericos do poder na antiguidade tivessem medo

da democracia laquoO que eacute que seria daquele regime onde o povo eacute quem mandaraquo

Perguntavam eles O que eacute que seria dos ricos da elite dos intelectuais da induacutestria etc Uma

seacuterie de questotildees do acircmbito de interesse particular se punha para chamar a atenccedilatildeo dos

particulares para natildeo aderir a algo que lhes podia fazer mal e fazer mal aos seus negoacutecios Eacute

por isso que a democracia natildeo eacute um poder do povo mas um poder de elite que eacute criado dentro

do povo sem que para isso o povo se decirc conta Os criacuteticos como Platatildeo sempre olharam para

esta elite que vem do povo como algo que sempre seraacute mal preparada para assumir com

distinccedilatildeo algo que eacute muito importante para o destino do paiacutes por isso nunca apoiaraacute um

regime democraacutetico Mas a democracia que eacute um regime triunfalista eacute uma democracia

falaciosa porque natildeo se pode esperar um triunfo na maioria ou da maioria uma vez que a

verdadeira maioria natildeo negocia natildeo dialoga apenas remete para o ponto de partida para a

regra do jogo inicial ainda que esta regra do jogo seja escrita e feita por ela de forma

maliciosa Eacute por isso que quando se fala da vitoacuteria da democracia no sentido da maioria

democraacutetica temos que olhar para esta maioria como aquela que mesmo sendo a maioria

deixou de secirc-la voluntariamente para se revestir do risco de ter que dar explicaccedilotildees de ter que

justificar-se de ter que sujeitar-se a ouvir quem perdeu quem o povo natildeo quer natildeo escolheu

e natildeo conta com ele de forma expliacutecita

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O triunfo da democracia maioritaacuteria natildeo eacute um triunfo numeacuterico mas sim um triunfo da

gestatildeo das emoccedilotildees e dos egos do poder e da poliacutetica daqueles que o povo indicou para

fracassar e aqueles que indicou para o sucesso um certo sucesso de insucesso porque tudo eacute

aprazo e eacute o proacuteprio povo que em primeiro plano natildeo respeita e nunca respeitou o prazo

Exige as contas antes do fim do prazo que ele estipulou e natildeo aceita justificaccedilotildees que natildeo

satisfaccedilam a sua proacutepria demanda os outros se transformam para ele em indiviacuteduos e ele em

Estado que tem que fazer com que a lei seja cumprida Uma tentativa de saiacuteda para esta

realidade para esta situaccedilatildeo tem que passar necessariamente pela Educaccedilatildeo eacute por isso que

alguns pensadores da democracia como eacute o caso de Gianfraco Pasquino defendem que a luta

da democracia moderna eacute uma luta que consiste em satisfazer a educaccedilatildeo e eliminar a

pobreza Natildeo se pode falar de uma democracia triunfalista quando se tem medo de olhar para

a memoacuteria que apresenta um nuacutemero insustentaacutevel do analfabetismo e de pobreza O triunfo

da democracia moderna eacute um triunfo que passa pela lucidez e um sono tranquilo de barriga

cheia natildeo da elite mas daqueles que sem ser elite sentem que algueacutem cumpriu com um

direito deles o direito de natildeo passar fome e de natildeo morrer analfabeto E esta expectativa

corresponde com a democracia moderna em alguns momentos porque eacute uma expectativa que

soacute pode ser realizada pela virtude por um regime virtuoso Em algum momento acreditamos

ou se diz que a democracia eacute um regime que depende da virtude diz Strauss Um regime onde

todos ou a maioria dos homens satildeo saacutebios uma sociedade onde todos os adultos satildeo saacutebios e

virtuosos uma sociedade aristocraacutetica uma democracia aristocraacutetica No fundo um grande

mal-entendido Aparentemente eacute o que nos teraacute acontecido em alguns momentos quando

recebemos a democracia Olhamos para ela como o estado de realizaccedilatildeo perfeita de todos e

para todos Olhamos para ela quase como que uma espeacutecie de governo dos deuses Com

efeito Aristoacuteteles tinha razatildeo quando alertou que a natureza humana natildeo permite que

olhemos para nenhum governo como lugar de possiacutevel perfeiccedilatildeo como lugar seguro porque eacute

a gestatildeo humana que vai fazer com que um lugar um governo ou um Estado seja tido como

seguro ou natildeo A gestatildeo humana das coisas eacute volaacutetil

Quando Aristoacuteteles e outros teoacutericos pensaram no indiviacuteduo viram nas instituiccedilotildees condiccedilatildeo

indispensaacutevel para responder aos anseios deste mesmo indiviacuteduo eacute por isso que criaram

maneiras formas instacircncias e institutos para permitir uma salvaguarda real do indiviacuteduo A

cidade natildeo eacute um espaccedilo natural do indiviacuteduo diz Aristoacuteteles porque implica regras

completamente diferentes das regras individuais das regras da arbitrariedade das regras da

autonomia ilimitada e das regras da natildeo obediecircncia A cidade surge portanto para dar corpo a

todo este mosaico de regras de normas de paixatildeo mas com ordem e comando unificado num

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basanos num basileus que soacute eacute independente porque obedece agraves leis porque cumpre as leis

Este propoacutesito escapou-nos enquanto africanos que festejaram a chegada da democracia e

enquanto africanos que ensinam e dirigem o (s) paiacutes (es) Olhamos para democracia tal como

olhaacutevamos para a independecircncia sempre com total ausecircncia de prestaccedilatildeo de contas e sempre

com a expectativa irreal da igualdade Mas a realidade eacute um fenoacutemeno que se justifica por si

mesmo e eacute nesta perspectiva que a Ciecircncia Poliacutetica se debate diz Strauss entre tentar

encontrar a democracia na sua geacutenese e a democracia tal como a realidade se lhe apresenta A

nossa luta eacute perceber a democracia tal como a realidade a apresenta naturalmente fazendo

uma leitura histoacuterica daquilo que ela foi de como surgiu mas sobretudo ter em conta que ela

tem uma aplicaccedilatildeo e uma aplicabilidade epocal Cada eacutepoca cultiva a sua proacutepria democracia

diz a sua proacutepria democracia e interpreta a sua proacutepria democracia A sua epocalidade renova-

se diariamente constroacutei-se na sua proacutepria construccedilatildeo-autodestruiccedilatildeo em nome da proacutepria

democracia e da correspondecircncia epocal

Somos da opiniatildeo de que Aacutefrica deve criar um estilo proacuteprio para a sua democracia Deve

criar a sua proacutepria democracia que se enraiacuteza nas suas culturas que tem em conta a sua

proacutepria particularidade e multiplicidade que tem em conta o papel das autoridades

tradicionais que muitas vezes sentem-se completamente perdidas no acircmbito do

enquadramento democraacutetico deve ter em conta o papel fulcral da mulher de todas as esferas

em Aacutefrica

No nosso contexto sabemos que ldquoa mulher africana eacute a porta de todas as entradas e a saiacuteda

de nenhuma saiacuteda natildeo autorizada A mulher africana eacute alegria de um continente com as suas

vaacuterias naccedilotildees e a sua uacutenica raccedila ela eacute o fracasso da poliacutetica e do poder quando se faz machista

e eacute a vitoacuteria da poliacutetica e do poder quando se faz humana quando se torna ouvinte e se

capitaliza como espaccedilo de confianccedila e de reconhecimento de todos Natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel

sem estes atributos da mulher natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel sem uma poliacutetica que escuta a mulher e

que permita que a sua opiniatildeo natildeo seja apenas um mero disfarce do politicamente correcto e

do eticamente aceitaacutevel A Aacutefrica possiacutevel eacute a Aacutefrica madrugadora como a preocupaccedilatildeo da

mulher para com o seu lar os seus filhosas o seu marido e toda a famiacutelia alargada A Aacutefrica

possiacutevel eacute a Aacutefrica da ternura e do pragmatismo encarnado pela mulher atraveacutes dos diversos

cuidados que presta ao seu lar e agrave comunidade no seu dia-a-dia Natildeo poderemos amar

verdadeiramente Aacutefrica se continuarmos a desprezar as suas mulheres e suas crianccedilas se a

opiniatildeo da mulher continuar a ser uma espeacutecie de favor que a comunidade lhe faz porque natildeo

quer contar com ela em termos objectivos porque lhe pintou com preconceitos de

instabilidade de inseguranccedila e de fragilidade Porque olha para ela como o problema de todos

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os problemas o mal de todos os males e portanto aquela com quem natildeo se pode nem se deve

contar na primeira hora das tomadas das decisotildees Eacute a invenccedilatildeo dos preconceitos e da

prostituiccedilatildeo ideoloacutegica que depois acaba por ser direccionada agrave mulher atraveacutes dos

mecanismos do ldquopoder positivo natildeo legisladordquo o direito criado ou assumido a partir dos actos

de todos os dias

Se tivermos em conta que em Aacutefrica as mulheres satildeo mais de metade da populaccedilatildeo do

continente e a niacutevel global as mulheres de todo o mundo satildeo a metade de toda a populaccedilatildeo

mundial entatildeo poderemos com maior propriedade dar valor agrave figura da mulher natildeo soacute para o

nosso continente mas a niacutevel global Sabemos que de cada vez que a mulher ganha um

direito conquista um direito os seus ganhos e as suas conquistas cimentam a estabilidade

local e regional para a paz e para o desenvolvimento geopoliacutetico porque a mulher no seu

exerciacutecio de responsabilidade eacute muito mais persuasiva e honra com brilho o seu compromisso

Sabemos graccedilas agrave histoacuteria etnograacutefica e histoacuteria dos acontecimentos que muitas das

reivindicaccedilotildees das mulheres africanas antecederam uma boa parte das reivindicaccedilotildees

femininas no Ocidente moderno e contemporacircneo A descoberta do continente africano pelos

europeus tambeacutem conheceu a resistecircncia feminina ao lado dos homens africanos e isto

antecede a luta feminista e a luta a auto-afirmaccedilatildeo do geacutenero no Ocidente O fracasso da

Aacutefrica reside na ldquoahistorizaccedilatildeordquo do papel das suas mulheres reside na negaccedilatildeo da histoacuteria

positiva das suas mulheres reside no facto de encurtar as epopeias femininas das suas

heroiacutenas Paiacuteses como Ruanda demostram isso todos os dias Ruanda poacutes genociacutedio teve 56

das mulheres nos seus respectivos governos e todos noacutes temos notiacutecias e conhecimento da

solidez da economia e da poliacutetica de Ruanda

Temos consciecircncia de que apesar do brilho do bem-fazer e do saber-fazer da mulher africana

ainda assim haacute muitos obstaacuteculos que ela tem que superar entre eles o proacuteprio preconceito

machista Mas mesmo sabendo do preconceito machista cremos que o preconceito maior

com o qual ela se debate eacute o preconceito cultural e religioso para uma boa parte de Aacutefrica que

tem a ver com a tradiccedilatildeo negativa Estamos por exemplo a pensar na questatildeo da mutilaccedilatildeo

genital nos casamentos forccedilados e de conveniecircncia clacircnica o traacutefico das crianccedilas do sexo

feminino e o preconceito sobre a mulher que padece de viacuterus de VIH Estes males e

preconceitos satildeo mais prejudiciais agrave condiccedilatildeo feminina da mulher africana do que qualquer

mal que possa abater sobre ela Natildeo haacute um mal pior que o mal do preconceito e natildeo haacute cultura

mais enferma que a cultura preconceituosa

Aacutefrica soacute pode resgatar a sua cultura se lutar contra os seus preconceitos negativos elevando a

condiccedilatildeo da mulher e criando-lhe instrumentos e condiccedilotildees para lutar contra o mal que a

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cultura e tradiccedilatildeo criaram para ela e contra ela muitas vezes sem pedir a sua opiniatildeo O

horizonte possiacutevel para Aacutefrica eacute aquele de destruiccedilatildeo positiva dos preconceitos culturais

prejudiciais para as suas mulheres e crianccedilas Haacute que possibilitar que os dogmas culturais

intelectuais e religiosos sejam questionados para o bem da salvaguarda da proacutepria cultura da

proacutepria religiosidade e da proacutepria intelectualidade A poliacutetica e os poliacuteticos que tomarem isso

como uma iniciativa singular salvaratildeo todo o continente africano12

rdquo

A democracia que pensa a sua proacutepria realidade natildeo pode natildeo ter em conta estas necessidades

e particularidades Eacute por isso que o novo enfoque democraacutetico em Aacutefrica e nos paiacuteses

lusoacutefonos em particular deveria incluir na escolaridade preacute-universitaacuteria a disciplina da

EDUCACcedilAtildeO PARA A DEMOCRACIA assim como pensar a possibilidade de cadeiras

como ldquoLITERATURA E INSTRUCcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeOrdquo tambeacutem no preacute-

universitaacuterio Uma educaccedilatildeo para a democracia e uma literatura e instruccedilatildeo para a

democracia evitariam que caiacutessemos naquilo que Strauss chama ou designa por ldquofalta de

espiacuterito puacuteblico13

rdquo nas democracias modernas isto eacute a criaccedilatildeo de cidadatildeos que soacute se

interessam em ler as paacuteginas desportivas dos jornais e as paacuteginas das pequenas histoacuterias e

mais nada Pensar num ensino da democracia que possa ser cimentado com apoio das nossas

tradiccedilotildees orais ajudaria natildeo soacute a ter a qualidade viva dos nossos debates democraacuteticos como

tambeacutem a fundar uma democracia de raiacutezes africanas que bebem das outras culturas mas que

tambeacutem podem reivindicar a sua originalidade poliacutetica Os diversos tipos de ONDJANGO

que existem nas culturas africanas podem ser exploradas desde o ponto de vista democraacutetico

ondjango como espaccedilo de concertaccedilatildeo de ideias como espaccedilo de recepccedilatildeo do ensinamento

dos mais velhos se aproximaria ao conceito grego de aacutegora Uma educaccedilatildeo para a democracia

em Aacutefrica deveria ter em conta tambeacutem os nossos proveacuterbios adaacutegios e aforismos com uma

acentuada moralidade onde podemos encontrar a profundidade do ser africano do espiacuterito

africano e da sua consciecircncia moral e eacutetica Neles encontramos uma insondaacutevel e inesgotaacutevel

sabedoria praacutetica transversal a todo o continente O que em Angola se designa como

ondjango na Guineacute-Bissau aparece com o nome de Djembereacutem e em algumas circunstacircncias

com o nome de Bantaba de djumbai Ambos satildeo espaccedilos de confraternizaccedilatildeo de caraacutecter

educativo desde o ponto de vista da recepccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo da cultura e do pensamento

tradicional Quer a expressatildeo djembereacutem quer a expressatildeo bantaba designam um espaccedilo

circular de modo geral coberto de capim ou chapa de zinco podendo ser usados pelas pessoas

12

Cf Este trecho faz parte de um texto escrito a 31 de Julho de 2017 para um discurso ldquoencomendadordquo para o

dia internacional da mulher africana 13

Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Ed Katz Buenos Aires 2007 p 17

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de todas as idades mas em circunstacircncias diferentes Eacute um espaccedilo de reuniotildees e de encontro

de caraacutecter familiar da aldeia ou do grupo onde muitas vezes saem as decisotildees que dizem

respeito agrave comunidade eacute um espaccedilo legislativo da lei natildeo escrita da comunidade A palavra

djumbai significa divertir-se brincar daiacute que se bem o bantabaacute tem este caraacutecter seacuterio das

tomadas de decisotildees natildeo obstante esta seriedade eacute fundada na proximidade e na

familiaridade comunidade o que faz com que o poder natildeo seja algo estranho algo longiacutenquo e

tambeacutem faz com que o ensinamento e a transmissatildeo natildeo sejam vistos com a desmesura da

grandiosidade Contrariamente aos gregos e aos povos da Mesopotacircmia o lugar onde se

ensina e onde se toma as decisotildees eacute frequentado por todos pelas mulheres e crianccedilas pelos

doentes e saudaacuteveis

Conforme vimos o ondjango nos remete para a realidade da casa (NUNES

1991 159) Mas de que casa se trata Trata-se da casa de conversa de

reuniatildeo de hospedagem de partilha de bensrefeiccedilatildeoserviccedilos de

educaccedilatildeoiniciaccedilatildeo sociocultural de entretenimento eou de fazer justiccedila

Antes de tudo se trata de uma casa ponto de partida e ponto de confluecircncia

de uma casa com as condiccedilotildees de se poder sentar reunir junto de alguns

mais-velhos trata-se de um lugar de encontro14

Esta aproximaccedilatildeo de ondjango com a comunicaccedilatildeo e gestatildeo da casa permite-nos criar aqui

uma relaccedilatildeo comparativa com oikos nomoi xenofontino-aristoteacutelico Isto eacute podemos

reivindicar para o ondjango africano as mesmas capacidades os mesmos papeacuteis ou funccedilotildees

institucionais que tinha o oikos a partir da sua visatildeo da ldquofamiacutelia da propriedade da famiacutelia e

da casardquo Tal como vemos neste texto de Nunes citado por Martinho Kavaya este ondjango eacute

pluridisciplinar baseado em vaacuterias meacutetricas sociais o que de certa forma tambeacutem corresponde

com aquilo que podemos encontrar na concepccedilatildeo da palavra grega oikos A educaccedilatildeo do

ondjango do djembereacutem ou do djumbai satildeo portadoras do espaccedilo familiar da propriedade da

famiacutelia e da reflexatildeo sobre a casa sobre as coisas da casa e isso permite fazer com que o que

se discute neste espaccedilo seja efectivamente aquilo que importa agrave cidade aquilo que importaraacute agrave

cidade um dia E o que eacute pode importar profundamente agrave cidade Naturalmente as pessoas a

sua gente os homens e mulheres crianccedilas e velhos animais e plantas No fundo tudo que diz

respeito ao homem e ao seu envolvimento social e espiritual e eacute isso que o ondjango africano

14

Cf Martinho Kavaya Freire e o Ondjango podem dialogar Reflexotildees sobre o diaacutelogo de Freire com o

ondjango africano Angolano GT Educaccedilatildeo Popular n06 p 2 consultado em 30 de Outubro de 2017

httpwwwanpedorgbrsitesdefaultfilesgt06-2805-intpdf

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pretende passar atraveacutes dos seus diferentes status e fases do mais novo ao mais velho e do

mais velho ao mais novo

Toda a vida parte do ondjango e laacute encontra seu aacutepice Aiacute segundo a

pertinecircncia do vivenciado o ohango (conversadiaacutelogo) tomava vaacuterios

significados ldquoondjangordquo enquanto ldquoulongardquo (relato da vida desde o encontro

anterior) ldquoelongisordquo (ensinamento e aprendizado) ldquoekutardquo (partilha de bens

alimentares) ldquoekongelordquo (reuniatildeo de caraacuteter deliberativo)

ldquoekangaokusombaokusombisardquo (reuniatildeo para fazer justiccedila e sentenciar para

punir ou absolver o arguumlido) ldquookupapalardquo (encontro de entretenimento festas

e danccedilas culturais e tradicionais conforme a situaccedilatildeo vivida no momento

morte caccedila casamento iniciaccedilatildeo sociocultural e comunitaacuteria acolhimento

de uma visita etc) ldquoondjulukardquo (encontro para organizar um mutiratildeo

comunitaacuterio a favor de algum da comunidade em situaccedilatildeo de doenccedila

problema socioeconocircmico intervenccedilatildeo de ajuda na sua lavoura etc)

(KAVAYA 2006 p147) Afinal o ondjango eacute o habitat comunal e vital

onde se desenham as relaccedilotildees de conviacutevio geo-histoacuterico econocircmico

sociocultural poliacutetico etc em vista o bem comunitaacuterio15

Educar para a conservaccedilatildeo destes valores eacute tambeacutem educar para a democracia e eacute educar para

a manutenccedilatildeo da cultura e dos preconceitos positivos A democracia em todo o sentido e em

toda a sua histoacuteria sempre conteve um elemento educativo muito forte e quase indissociaacutevel

de si mesma eacute o diaacutelogo para gerar a cultura e a cultura para gerar diaacutelogo Natildeo pode haver

uma verdadeira democracia que dispense este binoacutemio O erro de pensadores como Platatildeo em

relaccedilatildeo agrave sua recusa agrave democracia reside no facto de desprezarem excessivamente qualquer

tipo de possibilidade para educaccedilatildeo viaacutevel do homem democraacutetico reside no facto de natildeo

acreditarem que a democracia pode educar um poloi e fazer dele um aristoacuteis agrave sua maneira

ou ainda este erro pode residir no facto de que estes pensadores natildeo tiveram em conta que o

poloi apenas pode querer ser simplesmente e eternamente um poloi mesmo sendo democrata

O erro consistiu em pensar que os que podem e devem governar a cidade deviam deixar de ser

das suas respectivas camadas e passar a ser aristocratas Eacute um erro que ainda vemos hoje

15

Cf Ibid p 3

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EDUCACcedilAtildeO CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO

UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS

ABEL JOSEacute DA SILVA a

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS b

adasilva00gmailcom

ireneinakulomoisesgmailcom

Resumo

A presente comunicaccedilatildeo faz uma caracterizaccedilatildeo do Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo

Universitaacuterio com ecircnfase nos seus desafios e perspectivas Analisa este processo a partir da

interpretaccedilatildeo sistecircmica que decorre dos pressupostos legais da Educaccedilatildeo e Ensino em Angola

Como meacutetodo usa a revisatildeo bibliograacutefica e a interpretaccedilatildeo e fundamenta a caracterizaccedilatildeo do

referido processo como variaacutevel baacutesica para a anaacutelise da qualidade do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola idealizado com base nos princiacutepios da legalidade da integridade da

laicidade da universalidade da democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da

intervenccedilatildeo do Estado da qualidade de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais

ciacutevicos e patrioacuteticos Tem como objectivo reflectir sobre os aspectos que o caracterizam e que

interferem na sua qualidade Apresenta a missatildeo do processo integrada ao Sistema em que

todos os agentes educativos participam da sua funcionalidade

Palavas-Chave Processo Ensino Aprendizagem Sistema

Abstract

This scientific paper characterizes the Non-University Teaching and Learning Process with an

emphasis on its challenges and perspectives It analyzes this process from the systemic

interpretation that arises from the legal presuppositions of Education and Teaching in Angola

As method uses the literature review and the interpretation and founded the characterization

of this process as basic variable for the analysis of the quality of the system of Education and

Teaching in Angola Idealized on the basis of the principles of legality integrity secularity

universality democracy gratuitousness obligation compulsion State intervention quality of

services education and promotion of moral civic and patriotic values It aims to reflect on the

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aspects that characterize and that interfere in its quality Has the mission of the process

integrated into the System in which all educational agents participate in its functionality

Key-words Process Teaching Learning System

Introduccedilatildeo

O Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo Universitaacuterio (PEANU) eacute uma importante variaacutevel

para a anaacutelise do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino em Angola (SEEA) sistema perspectivado

com base nos ldquoprinciacutepios da legalidade da integridade da laicidade da universalidade da

democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da intervenccedilatildeo do Estado da qualidade

de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticosrdquo (Lei no 1716

art 5ordm)1

A caracterizaccedilatildeo do PEANU pressupotildee assumir um posicionamento holiacutestico que analise o

mesmo como um processo natildeo isolado do todo porque o SEEA eacute estruturalmente unitaacuterio e a

sua realizaccedilatildeo na situaccedilatildeo especiacutefica da anaacutelise tem influecircncia no funcionamento da totalidade

(princiacutepio da integridade art 7ordm e art 17ordm)

Os desafios e perspectivas como outra dimensatildeo importante derivada do processo de

parametrizaccedilatildeo do assunto ndash objecto de anaacutelise justificam-se a partir da consideraccedilatildeo dos

princiacutepios da universalidade democraticidade gratuitidade obrigatoriedade intervenccedilatildeo do

Estado qualidade de serviccedilos e da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais pois que se a

Lei tipifica o que idealmente eacute o correcto a necessidade de confrontar com a realidade agrave luz

da pesquisa bibliograacutefica eacute inadiaacutevel para o alinhamento do agir educativo com os princiacutepios

legais

A partir destes princiacutepios infere-se que a Educaccedilatildeo e o Ensino satildeo natildeo apenas um direito mas

tambeacutem um dever que se deve realizar com a qualidade requerida para que a construccedilatildeo de

uma nova sociedade assente na democracia esclarecida seja possiacutevel Para isso agrave Escola

atraveacutes do Processo de Ensino e Aprendizagem (PEA) em todos os niacuteveis de ensino e

especialmente nos natildeo universitaacuterios impende a tarefa de formar personalidades capazes de

influenciar com o seu saber e suas qualidades o curso da histoacuteria concreta do seu contexto

Deste modo o Processo tem de ser significativo2 Para que o processo seja significativo eacute

1 Lei de Bases do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino que estabelece os princiacutepios e bases do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola de 7 de Outubro de 2016 Esta Lei revoga a Lei 1301 de 31 de Dezembro de 2001 2 O PEANU eacute significativo quando assegure o cumprimento da sua finalidade tal como se institui no art 25ordm da

Lei 1716 referente aos Objectivos Gerais do Subsistema do Ensino Geral Desta significatividade resulta em

consequecircncia a eficaacutecia do Sistema

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necessaacuterio caracterizaacute-lo com a finalidade de que se conheccedilam natildeo soacute os seus pontos fortes

mas tambeacutem os fracos aspecto que se aborda seguidamente

Por isso o objectivo deste trabalho consiste em reflectir sobre os aspectos do SEEA que o

caracterizam e que interferem na qualidade do PEANU

1 Estrutura do Seea Ponto de partida para a caracterizaccedilatildeo do Peanu

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento ldquoad intrardquo da

realidade educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento (Cfr

Silva 2016) Por isso a anaacutelise estrutural do SEEA baseada nas proposiccedilotildees da Lei 1716 e

fundamentada pela revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura criacutetico-contextual eacute uma

tarefa basilar para esta caracterizaccedilatildeo

A caracterizaccedilatildeo do Sistema Educativo numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional de

acordo com Ngaba ( 2012) e Liberato (2014) permite concluir que existem avanccedilos e

retrocessos no processo educativo angolano que em termos de poliacutetica educativa

condicionaram a sua evoluccedilatildeo positiva bem como a sua afirmaccedilatildeo no cenaacuterio internacional e

ateacute mesmo regional3

A partir desta ideia geral sobre o estado do SEEA que de modo especial se realiza por meio

do PEANU eacute possiacutevel compreender que estruturalmente estaacute bem concebido se se analisam

todos os factores intencionais de entrada e saiacuteda de um niacutevel de ensino para outro Entretanto

o aspecto funcional real fica aqueacutem do desejado se se avaliam com visatildeo criacutetico-acadeacutemica

os resultados do processo e os discursos oficiais que asseguram a Poliacutetica do Sistema

Educativo

Contrariamente agrave 1ordf Repuacuteblica (Cfr Ngaba 2012) que natildeo se fez reger por um documento

base tanto a 2ordf como a 3ordf Repuacuteblicas de Angola tecircm como fundamento a Lei de Bases do

SEEA que estabelece a criaccedilatildeo de condiccedilotildees mais adequadas para a aplicaccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas e dos programas nacionais com o objectivo de continuar a assegurar o

3 Este momento criacutetico do SEEA eacute tambeacutem hoje reconhecido oficialmente pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo do Paiacutes

na voz da sua titular no encerramento da Semana Nacional sobre Educaccedilatildeo em Angola realizada em Luanda Por

isso para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo actual do Sistema Educativo e do PEANU especificamente eacute criteacuterio dos

autores deste trabalho que os problemas fracturantes que colocam em causa a qualidade do Sistema natildeo podem

ser analisados unilateralmente sob pena de se incorrer num reducionismo indevido pois estatildeo em causa

muacuteltiplas variaacuteveis que chocam com diversos princiacutepios e disposiccedilotildees legais em que assenta o Sistema

infraestruturas precaacuterias insuficiecircncia dos materiais e meios didaacutecticos factos que se agravam ainda mais com a

falta de preparaccedilatildeo adequada dos professores de tal modo que possam responder aos desafios do Sistema

idealizados pela Reforma Educativa Essa visatildeo geral estrutural e conjuntural pode reflectir-se e explicar-se

melhor por meio do seguinte exemplo em relaccedilatildeo agrave indisciplina na aula espaccedilo privilegiado em que se

desenvolve o PEA Estrela (1983) citada por Lopes (2005) identificou um conjunto de variaacuteveis que vatildeo desde o

proacuteprio aluno passando pelo professor pela instituiccedilatildeo escolar ateacute agrave proacutepria sociedade Estes satildeo dados

suficientes para pensar na qualidade educativa como multideterminada

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desenvolvimento humano com base numa educaccedilatildeo e aprendizagem ao longo da vida para

todos os indiviacuteduos que permita assegurar o aumento dos niacuteveis de qualidade de ensino

Considerando a anaacutelise da estrutura do Sistema estabelecido pela Lei 1716 conclui-se que as

principais alteraccedilotildees agrave antiga Lei relacionam-se entre outras com a gratuitidade e

obrigatoriedade do ensino que passa a compreender as classes da Iniciaccedilatildeo do Ensino

Primaacuterio e do Primeiro Ciclo do Ensino Secundaacuterio bem como a nomenclatura das

instituiccedilotildees

Nesta vertente assume-se que o Subsistema de Ensino Geral eacute o fundamento do SEEA (Lei

no 1716 art 24ordm) que visa de acordo com o artigo em referecircncia assegurar uma formaccedilatildeo

integral harmoniosa e soacutelida necessaacuteria para uma boa inserccedilatildeo no mercado de trabalho e na

sociedade bem como para o acesso aos niacuteveis de ensino subsequentes

Como se pode apreciar existe uma relaccedilatildeo de determinaccedilatildeo entre o processo de ensino e

aprendizagem que se realiza no Subsistema do Ensino Geral e o trabalho bem como com a

Sociedade e com os niacuteveis de ensino posteriores o que significa o reconhecimento da

importacircncia deste niacutevel que deve permitir a aquisiccedilatildeo de ferramentas fundamentais para a

compreensatildeo da vida e do mundo Entre os seus objectivos de acordo com Ngaba (2012 p

158) constam os do desenvolvimento ldquodos conhecimentos e as capacidades que favoreccedilam

uma auto-formaccedilatildeo educar para a cidadaniardquo A educaccedilatildeo vista a partir da oacuteptica deste niacutevel

de ensino eacute um factor de integraccedilatildeo social

Por isso o questionamento da qualidade do PEANU eacute no fundo o questionamento da

qualidade do Sistema em si uma vez que estudando Poliacuteticas Educativas em Angola (1975-

2005) o autor antes referenciado e alinhado com Liberato afirma

ldquoEm termos gerais fica a ideia de estarmos perante um processo evolutivo que em periacuteodos

diferentes se foi deparando com os mesmos problemas e optando pelas mesmas soluccedilotildeesrdquo

No entanto de acordo com o mesmo autor ldquoquase quatro deacutecadas depois das primeiras

mudanccedilas ldquosignificativasrdquo no sector da educaccedilatildeo deacutecadas essas caraterizadas por sucessivos

estudos e mudanccedilas o paiacutes (hellip) carece de soluccedilotildees radicais que possam corrigir de uma vez

por todas os factores relacionados com o baixo coeficiente do sistema angolanordquo (Ngaba

2012 p 173)

De acordo com a ideia anterior a questatildeo da qualidade de ensino em Angola natildeo deve ser

vista como uma questatildeo da responsabilidade exclusiva de um ou de outro niacutevel de ensino

mas como uma questatildeo transversal do SEEA considerando entre outros princiacutepios gerais o

da integralidade estatuiacutedo no artigo 7o da Lei 1716 Por isso a anaacutelise desta questatildeo implica

um posicionamento multifactorial

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Com base nessa posiccedilatildeo o Sistema possui potencialidades capazes de proporcionar um PEA

motivador que permita a construccedilatildeo das aprendizagens dos alunos e que transforme o saber

em saber fazer e em saber ser na base de uma visatildeo axioloacutegica pois atendendo agrave

complexidade da acccedilatildeo educativa a UNESCO no Relatoacuterio DELORS (2003 p 11) sustenta

que para concretizar a sua meta a educaccedilatildeo deve organizar-se em quatro tipos fundamentais

de aprendizagens que ao longo da vida do indiviacuteduo seratildeo os pilares do conhecimento

Aprender a conhecer isto eacute adquirir os instrumentos para a compeensatildeo

aprender a fazer de modo a ser capaz de agir criativamente no proacuteprio

ambiente aprender a viver juntos de modo a participar e a colaborar com os

outros em todas as actividades humanas aprender a ser isto eacute um progresso

essencial que deriva dos trecircs precedentes

Para tornar este sonho real eacute necessaacuterio que o processo seja significativo e em si mesmo

motivador formando os professores de acordo com as necessidades da realidade objectiva

Trata-se de prover os recursos necessaacuterios a um processo que desafie os limites da situaccedilatildeo

actual pois se o professor eacute indispensaacutevel natildeo eacute menos verdade que os recursos educativos

tambeacutem o sejam (Lei 1716 art 97ordm)4

Tendo em conta os pressupostos legais da Repuacuteblica de Angola (Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e

Lei 1716) e os pilares da educaccedilatildeo propostos pela UNESCO considera-se que o ideal

educativo estaacute devidamente delineado Contudo eacute necessaacuterio que de acordo com Nanni

(2005 p81) citado por Fernando (2010 p 17) no ldquoacircmbito educativo o fim uacuteltimo ndash o

horizonte para o qual deve tender toda a acccedilatildeo educativa ndash natildeo deve fazer com que os fins

intermeacutedios ndash que o tornam possiacutevel e factiacutevel ndash sejam esquecidosrdquo Daiacute a relaccedilatildeo entre fins

meios e procedimentos educativos

A distinccedilatildeo entre fins uacuteltimos da educaccedilatildeo meios e procedimentos educativos eacute fundamental

porque de acordo com Fernando (2010 p 18)

Impele agrave procura e a determinar os recursos o tempo as modalidades e as estrateacutegias para a

realizaccedilatildeo do objectivo educativo que se pretende e permite de certo modo natildeo esquecer que

se natildeo se fizer a diferenccedila entre ideal e real entre fim uacuteltimo e limite da acccedilatildeo humana entre o

horizonte e o limite concreto das coisas e da existecircncia entre o itineraacuterio projectado e a

complexidade do percurso e da vida das pessoas corre-se o risco de se ser desumano e de cair

4 No artigo 97ordm a Lei 1716 define recursos educativos como os meios que contribuem para o desenvolvimento

do SEEA tais como a) Guias e programas pedagoacutegicos b) Manuais escolares C) Meios teacutecnicos e

tecnoloacutegicos de ensino d) Bibliotecas e) Equipamentos f) Laboratoacuterios g) Oficinas h) Instalaccedilotildees e

material desportivo e cultural i) Campos de ensaios treinamento e experimentaccedilatildeo j) Auditoacuterios e salas

especializadas

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no perfeccionismo ou de se desencorajar cansar e por fim de se sentir insatisfeito com aquilo

que se faz

Em consequecircncia nos nossos dias a questatildeo do discurso pedagoacutegico sobre a ldquofinalidaderdquo da

educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU natildeo eacute faacutecil porque a educaccedilatildeo eacute caracterizada hoje por

certa crise pela necessidade de inovaccedilatildeo e pelo pluralismo de ideias de valor e de cultura do

momento histoacuterico actual (Cfr Fernando 2010 Ngaba 2012 Liberato 2014)

Na continuidade da anaacutelise sobre a finalidade da educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU os

autores concordam com Fernando (2010 p 19) ao distinguir dois tipos de tendecircncias

educativas

1 A tendecircncia redutora que ldquoprocura ver a aprendizagem em funccedilatildeo das necessidades da

economia que com as suas solicitaccedilotildees convida a rever os conteuacutedos do ensino e sua

organizaccedilatildeo Esta eacute a linha ou corrente mais seguida nos nossos diasrdquo

2 A tendecircncia aberta que ldquoprocura integrar no conceito de aprendizagem outros elementos

significativos mais ligados agraves dimensotildees psicoloacutegicas sociais e culturais das experiecircncias do

indiviacuteduo enquanto protagonista da aprendizagemrdquo

Para os autores embora a primeira tendecircncia seja a mais seguida actualmente a segunda

parece melhor corresponder agrave dignidade do homem responsaacutevel porque de acordo com a Lei

1716 (art 15ordm) o SEEA deve promover natildeo soacute o cultivo da intelectualidade mas tambeacutem

dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticos

Assim a primeira reduz a finalidade da escola agrave instruccedilatildeo e a segunda supera esta visatildeo

sustentando que a finalidade primaacuteria da actividade pedagoacutegica escolar eacute a de educar sem

contudo deixar de parte a sua funccedilatildeo instrutiva Neste sentido a finalidade da educaccedilatildeo como

instituiccedilatildeo social deve coincidir com a finalidade da escola enquanto instituiccedilatildeo formal e

socialmente mandatada para educar isto eacute para possibilitar o desenvolvimento permanente da

qualidade da pessoa humana com dignidade e integridade

2 Desafios e Perspectivas da Educaccedilatildeo

Nas paacuteginas anteriores ficou clara a ideia de que os resultados qualitativos do SEEA

fundamentalmente relacionados com o PEANU satildeo e devem ser processo-produto de um

funcionamento integral do Sistema Por isso o maior desafio da educaccedilatildeo em Angola hoje eacute o

de vencer a contradiccedilatildeo existente em que satildeo atribuiacutedas culpas isoladas ou ao aluno que natildeo

estuda ou ao professor que natildeo estaacute preparado e natildeo motiva ou agraves mateacuterias que natildeo satildeo

atractivas e adaptadas agrave realidade profissional e do contexto de vida dos alunos ou aos pais

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que natildeo acompanham suficientemente os filhos ou ainda ao proacuteprio Sistema Educativo de

maneira geral

De acordo com a ideia anterior e tendo em conta a revisatildeo bibliograacutefica realizada5 os autores

consideram que os desafios para a melhoria das falhas devem ser enfrentados de forma

sistecircmica porque cada uma das variaacuteveis antes mencionadas eacute importante para o

funcionamento normal ou natildeo do PEA natildeo apenas no niacutevel referenciado mas em todos os

niacuteveis em atenccedilatildeo aos princiacutepios de integridade do Sistema e da obrigatoriedade e qualidade

dos serviccedilos educativos Isto pressupotildee uma poliacutetica educativa ajustada agrave realidade que

incentive a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores e garanta os meios materiais indispensaacuteveis

ao processo

Trata-se de construir uma verdadeira comunidade educativa em que todos os agentes

educativos como a famiacutelia a escola e a comunidade na sua dimensatildeo mais alargada

participem Por isso eacute necessaacuterio repensar a educaccedilatildeo para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de

um paiacutes novo como afirmara Joseacute Eduardo dos Santos (2008) nos seguintes termos ldquoum

novo paiacutes estaacute a nascer e com ele haacute-de florescer tambeacutem um cidadatildeo novordquo Quando

Considerando a perspectiva temporal como resposta os autores acreditam que isso se

realizaraacute agrave medida que a educaccedilatildeo se assuma antes de tudo como uma condiccedilatildeo de verdadeira

cidadania e natildeo de mera transmissatildeo de receitas importadas do exterior e enxertadas no nosso

contexto quando todos os agentes educativos tiverem presente que o educar eacute na verdade

um verbo ldquoque exige uma acccedilatildeo com atitude transformadorardquo (Pereira e Silva 2008 p 24)

Eacute neste sentido que Joseacute Eduardo dos Santos na sua alocuccedilatildeo agrave Naccedilatildeo referia-se ao papel dos

pais dos professores e de todos os actores sociais como verdadeiros agentes educativos da

juventude Trata-se do desafio de construir uma verdadeira sociedade educativa

Na construccedilatildeo dessa sociedade educativa a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores para o SEEA

e sobretudo para o PEANU deve ser entendida como uma consequecircncia de uma formaccedilatildeo

inicial que seja adequada agraves necessidades reais da sociedade para a qual se educa Isso implica

que os professores devem ser formados com base nos desafios da nova Repuacuteblica (Ngaba

2012)

5 Em Ofiacuteco de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Perrenoud (1995) denuncia uma dupla evidecircncia por um

lado haacute alunos que natildeo aprendem e por outro professores que natildeo formam porque ambos se contentam em

exercer manualmente os oacutecios do ofiacutecio enquanto a cabeccedila estaacute ausente Na mesma linha Grilo (2002) entende

que na ldquoNa sociedade do conhecimento hoje aprende-se e ensina-se em circunstacircncias e contextos muito

diversos embora por vezes se ensine mas natildeo se aprenda como ocorre por exemplo em algumas das escolas

Mas partindo do princiacutepio de que quando se ensina haacute sempre algueacutem que aprende o ensino (hellip) eacute um

mecanismo muito importante e uma peccedila fundamental desta sociedaderdquo (p 121)

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A formaccedilatildeo inicial que serve de base para a formaccedilatildeo contiacutenua de professores de acordo com

a Lei 1716 eacute assegurada pelo Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores que estaacute estruturado

em Ensino Secundaacuterio Pedagoacutegico e Ensino Superior Pedagoacutegico O primeiro constitui o

ldquoprocesso atraveacutes do qual os indiviacuteduos adquirem e desenvolvem conhecimentos haacutebitos

habilidades capacidades e atitudes que os capacite para o exerciacutecio da profissatildeo docente na

Educaccedilatildeo Preacute-escolar no Ensino Primaacuterio e no I Ciclo do Ensino Secundaacuterio Regular de

adultos e na Educaccedilatildeo Especial e mediante criteacuterios o acesso ao Ensino Superior

Pedagoacutegicordquo (Art 46)

Por outro lado e de acordo com a mesma Lei um dos fundamentos do SEEA o ldquoEnsino

Superior Pedagoacutegico eacute um conjunto de processos desenvolvidos em Instituiccedilotildees de Ensino

Superior vocacionados agrave formaccedilatildeo de professores e demais agentes de educaccedilatildeo habilitando-

os para o exerciacutecio da actividade docente e de apoio agrave docecircncia em todos os niacuteveis e

subsistemas de ensinordquo (Art 49)

Em correspondecircncia com os estes dois artigos da Lei 1716 compreende-se a relaccedilatildeo

intriacutenseca entre o Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores e os diferentes niacuteveis de ensino do

SEEA

A educaccedilatildeo em Angola vista na oacuteptica dos seus fundamentos legais constitui-se assim numa

ldquoforma de poder porque a educabilidade eacute um poder-ser humano mediado pela educaccedilatildeo

como poder sobre o ser humano que decide sobre o dever-ser humano Eacute um poder ser

porque o ser humano eacute um ser biologicamente aberto agrave criaccedilatildeo de uma segunda naturezardquo

(Monteiro 2004 p 12)

De acordo com o autor referenciado com antecedecircncia todas as formas de poder do ser

humano sobre o outro suscitam a questatildeo da sua legitimidade Esta questatildeo eacute no fundo a do

fundamento e controlo do poder que o professor exerce atraveacutes dos conteuacutedos e formas da

comunicaccedilatildeo que realiza ante o aluno Assim sendo

A ldquolegitimidade pedagoacutegica eacute de natureza social porque ser profissional da

educaccedilatildeo implica um mandato da sociedade atraveacutes do Estado que regula o

exerciacutecio da funccedilatildeo Eacute tambeacutem de natureza individual na medida em que a

competecircncia pessoal tem um efeito de auto-legitimaccedilatildeo junto dos educandos

Mas tem de ser problematizada com mais radicalidade porque a educaccedilatildeo eacute

afinal uma forma de poder do homem sobre o homemrdquo (Monteiro 2004 p

12)

Daiacute que se a educaccedilatildeo eacute uma forma de poder eacute necessaacuterio que se exerccedila tal poder na justa

medida tendo como princiacutepio e limite a Lei que estabelece entre outros aspectos importantes

natildeo soacute a formaccedilatildeo inicial mas tambeacutem a contiacutenua dos professores para que respondam agraves

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necessidades da sociedade angolana

Portanto a anaacutelise da qualidade da educaccedilatildeo como um fenoacutemeno multideterminado que

possibilita caracterizar o Sistema justifica que a formaccedilatildeo contiacutenua de professores variaacutevel

importante para esta caracterizaccedilatildeo natildeo deve ser vista como um simples adereccedilo mas sim

como parte importante de uma cultura institucionalmente legal onde a articulaccedilatildeo entre as

instituiccedilotildees de Ensino Superior (pedagoacutegicas ou natildeo) e as do ensino geral seja

dialecticamente um facto

CONCLUSAtildeO

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento da realidade

educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento que tem como

fundamento a interpretaccedilatildeo da Lei e a revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura

criacutetico-contextual

A revisatildeo bibliograacutefica assente numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional permite

concluir que existem avanccedilos e retrocessos no processo educativo angolano que em termos

de poliacutetica educativa condicionaram sua evoluccedilatildeo positiva bem como sua afirmaccedilatildeo no

cenaacuterio internacional e ateacute mesmo regional

Esta constataccedilatildeo impotildee desafios a vencer na perspectiva da construccedilatildeo de uma sociedade

educativa em que cada agente participe reconhecendo a necessidade contiacutenua da formaccedilatildeo

dos professores para o PEANU como fundamento do SEEA

Referecircncias Bibliograacuteficas

Delors J etal (2006) EDUCACcedilAtildeO Um tesouro a descobrir Relatoacuterio para a UNESCO da Comissatildeo

Internacional sobre Educaccedilatildeo para o seacuteculo XXI 10ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez Editora

Eliana Alves Leite Pereira e Eloi Lopes da Silva (2008) Educaccedilatildeo Eacutetica e Cidadania A contribuiccedilatildeo da actual

instituiccedilatildeo escolar sc sce

FULLAT O (2000) Filosofia da Educaccedilatildeo Madrid Editorial Sintesis Educacioacuten

FREIRE P (sd) Educaccedilatildeo como Praacutetica da Liberdade 5ordf ediccedilatildeo Lisboa Dinalivro Lda

GOTZENS C (2003) A Disciplina Escolar Prevenccedilatildeo e intervenccedilatildeo nos problemas de comportamento 2ordf

ediccedilatildeo Trad de Faacutetima Murad Satildeo Paulo Artmedd Editora

Grilo M (2002) Desafios da Educaccedilatildeo - Ideiasb para uma poliacutetica educativa no seacuteculo XXI Lisboa Oficina

do Livro

Liberato E (2014) Avanccedilos e retrocessos da educaccedilatildeo em Angola Revista Brasileira de Educaccedilatildeo 1003

Lopes C d (2005) Caracterizar a Acccedilatildeo Educativa para ensinar a partir do Aluno SC Ediccedilotildees Cosmos

Morin E (2002) Os Sete Saberes Para a Educaccedilatildeo do Futuro Trad de Ana Paula de Viveiros Lisboa

Instituto Piaget

Paacutegina 71 de 74

Ngaba A V (2012) Poliacuteticas Educativas em Angola - Entre o global e o local o sistema educatuivo mundial

Mbanza-Kongo SEDIECA

Ngula A (2003) A escolarizaccedilatildeo em Aacutefrica Das grandes ilusotildees agrave pedagogia do projecto Roma Edizioni

Vivere i

Perrenoud P (1995) Ofiacutecio de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Porto Porto Editora

Perrenoud P (2002) A Escola e a aprendizagem da democracia Porto Asa

Silva A J (2016) La superacioacuten psicopedagoacutegica de los docentes de unversidad `Joseacute Eduardo dos Santosacute de

la Repuacuteblica de Angola Tesis doctoral La Habana Universidade de Ciencias Pedagoacutegicas `Enrique Joseacute

Varonaacute

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Paacutegina 73 de 74

1 Os artigos podem ser escritos em portuguecircs inglecircs espanhol e francecircs

2 Tecircm que ser ineacuteditos e natildeo mais de 20 paacuteginas notas de peacute de paacuteginas incluiacutedas

3 As resenhas submetidas natildeo devem superar 6 paacuteginas

4 O envio de artigo deveraacute ser acompanhado por um abstract no idioma original do artigo e

em inglecircs e no miacutenimo com trecircs palavras-chave

5 O formato das letras eacute Times New Roman 12 justificado e com 15 de espaccedilo

6 Os textos devem ser enviados em formato Word Perfect ou em Word para o PC

7 Os artigos enviados devem ser assinados pelos autores que tambeacutem deveratildeo indicar os

seus graus acadeacutemicos e filiaccedilatildeo institucional

8 A redacccedilatildeo da revista reserva o direito de publicar ou natildeo

9 Haveraacute sempre um comiteacute externo para avaliaccedilatildeo dos artigos

10 Os tiacutetulos dos artigos devem estar na liacutengua original e em caso de necessidade em inglecircs

11 As referecircncias bibliograacuteficas e notas de peacute de paacuteginas devem ser numeradas As

referecircncias bibliograacuteficas devem ser completas na primeira cita utilizando a norma

claacutessica para as Ciecircncias Sociais e Humanas e Vancouver ou AMA para as Ciecircncias de

Sauacutede

12 Aceitam-se os projectos de investigaccedilatildeo que natildeo superam 8 paacuteginas

LIVROS ELECTROacuteNICOS

As citas devem comeccedilar com o primeiro e uacuteltimo nome do (s) autor (es) tiacutetulo do livro

electroacutenico (em itaacutelico) editor data de publicaccedilatildeo nuacutemero da paacutegina citada Endereccedilo Web

(Disponiacutevel a data da consulta)

PROCESSO DE AVALIACcedilAtildeO E DE SELECcedilAtildeO DOS ARTIGOS

1 Os artigos devem ser enviados para o e-mail da revista ou do Director nos prazos

indicados

2 A Direcccedilatildeo acusaraacute a recepccedilatildeo do trabalho sem necessariamente manter contacto com o

autor antes da decisatildeo final de publicar ou natildeo

3 Os autores dos artigos satildeo responsaacuteveis pela sua revisatildeo ortograacutefica e gramatical

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Page 10: Página 1 de 74 - Início | ISPSN · 2019. 5. 3. · Página 5 de 74 que traz um começo, que “cria um começo” e que reinventa um começo a partir da dor e da cura. A cidade

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do seu ser buscando como faziam os gregos um instrumento fundamental e o uacutenico

racionalmente possiacutevel para a soluccedilatildeo dos problemas da vida

A confusatildeo com relaccedilatildeo agrave filosofia e a desinformaccedilatildeo geral que permeia mesmo o meio

acadeacutemico chega a ponto de permitir o surgimento de propostas quimeacutericas no sentido de se

eliminar a Filosofia Entretanto ciecircncia alguma pode se ocupar da macro realidade O

empirismo natildeo pode ser aplicado agrave civilizaccedilatildeo humana agrave mente ao total Quem estabelece a

comunicaccedilatildeo entre todos os segmentos do conhecimento continua a ser a filosofia Cremos ser

este o quadro em que se deve inserir a reflexatildeo sobre a unidade africana que aqui fazemos

partindo da metafiacutesica do termo pessoa

Tal reflexatildeo se torna urgente sobretudo se olharmos para os problemas que cada vez mais vatildeo

desafiando a unidade do continente africano Haacute uma verdade hoje admitida por quase todos

e ateacute pelos mais preconceituosos arqueoacutelogos de que a humanidade e a civilizaccedilatildeo

desenvolveram-se na noite dos tempos no berccedilo deste continente gigantesco chamado Aacutefrica3

Temos consciecircncia de que a Aacutefrica eacute um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas Embora esta imensidatildeo nos aconselhe a natildeo fazer

generalizaccedilotildees na avaliaccedilatildeo dos problemas natildeo nos impede de buscar e propor soluccedilotildees aos

problemas inerentes agrave falta de unidade que a nosso ver pode podem assentar sobre o conceito

de pessoa

1 Breve excursus histoacuterico-filosoacutefico do conceito de pessoa

11 A densidade semacircntico-etimoloacutegica do termo pessoa

A densidade semacircntica do termo pessoa formou-se no tempo graccedilas ao contributo cultural de

muitos filotildees de reflexatildeo O conceito de pessoa tem pois um percurso rico quanto complexo

De recordar que na antiguidade greco-romana natildeo se encontra bem claro o conceito de pessoa

Todavia seria incorrecto pensar que o conceito de pessoa tenha nascido nos nossos dias

Etimologicamente e segundo algumas pesquisas atentas os primeiros indiacutecios do termo

pessoa encontram-se no acircmbito da cultura etrusca De facto o termo phersu utilizado nos

ritos em honra de Phersepona e que significaria maacutescara4 passou a significar o indiviacuteduo

3 Cf Carlos SERRANO ndash Mauriacutecio WALDMAN Memoacuteria drsquoAacutefrica A temaacutetica africana em sala de aula

Cortez Editora Satildeo Paulo 20082 p 75 Cf Tambeacutem Luigi TRANFO Africa La transizione Tra sfruttamento e

indifferenza EMI Bologna 1995 p 269 Pedro F MIGUEL Aacutefrica Uma visatildeo global Viverein Roma 2013

p 11 4 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique in

laquoRevue des sciences religieusesraquo XXII (1948) 277-299 A MILANO Persona in teologia Dehoniane Napoli

1984 pp 16-71

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mascarado a personagem que o actor representa no drama ou seja o indiviacuteduo humano

moral e social5

Nesta senda do indiviacuteduo mascarado Edith Stein observa que visto que nas comeacutedias e nas

trageacutedias se representavam personagens famosos o nome pessoa foi imposto para significar

sujeitos que tinham um papel na sociedade por isso alguns definem a pessoa como laquouma

hipoacutestase marcada por uma qualificada conexatildeo com a sua dignidaderaquo 6

Natildeo encontra fundamento adequado a etimologia proposta por Boeacutecio que liga pessoa ao

verbo personare aludindo agrave amplificaccedilatildeo da voz de quem fala por detraacutes da maacutescara Assim

pessoa eacute segundo Boeacutecio laquodecta est volvatur sonusraquo 7 Tambeacutem natildeo eacute correcto afirmar que

pessoa seja a contracccedilatildeo de per se una como quereria a proposta de Alano di Lilla8

12 O percurso evolutivo do conceito de pessoa

Com Ciacutecero e Seacuteneca a evoluccedilatildeo do conceito de pessoa deu passos importantes sem

contudo chegar agrave definiccedilatildeo hodierna

Do segundo seacuteculo em diante o conceito de pessoa entra no uso corrente na onda do esforccedilo

de clarificaccedilatildeo exigida pelas controveacutersias teoloacutegicas sobre o dogma trinitaacuterio Poreacutem foi

com Boeacutecio que o conceito de pessoa adquire o actual conteuacutedo teoacuterico E isto no contexto da

clarificaccedilatildeo conceitual sobre as questotildees teoreacuteticas que emergiam da doutrina sobre a

Trindade

Segundo Boeacutecio laquopersona est rationalis naturae individua substantiaraquo (pessoa eacute substacircncia

individual de natureza racional) 9 Boeacutecio elabora esta definiccedilatildeo servindo-se do patrimoacutenio

filosoacutefico grego e latino De facto ele sistematiza os conceitos latinos de persona natura e

substantia estabelecendo uma equivalecircncia com os vocaacutebulos gregos πρόσωπον ούσία

ύπόστασις que na oscilaccedilatildeo terminoloacutegica do tempo eram usados de maneira equiacutevoca e

confusa

Com Boeacutecio a natura toma definitivamente o lugar de ούσία entendida como essecircncia e

substantia passa a traduzir o grego ύπόστασις10

Satildeo poucos os filoacutesofos que no medievo natildeo

5 Cf Maurice NEacuteDONCELLE Prosopon et persona dans lrsquoantiquiteacute classique Essai de bilan linguistique op

cit pp 298-299 6 Edith STEIN Essere finito e essere eterno Per una elevavazione al senso dellrsquoessere Cittagrave Nuova Roma

1988 p 380 7 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1344

8 Cf Enrico BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico in AAVV Persona e

personalismo Aspetti filosofici e teologici Fondazione Lanza Padova 1992 p 43 9 S BOEZIO Liber de duabus naturis III PL 64 1343

10 Cf Claudio MICAELLI ldquoNaturardquo e ldquoPersonardquo nel ldquoContra Eutychen et Nestoriumrdquo di Boezio Osservazioni

su alcuni problemi filosofici e linguistici in Luca OBERTELLO (a cura di) Atti del Congresso Internazionale di

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tinham encontrado a definiccedilatildeo de Boeacutecio satisfatoacuteria porque essa interpretava a realidade que

se tentava definir precisando-lhe o significado

Esta definiccedilatildeo pessoa eacute substacircncia individual de natureza racional que durante o medievo

faz cultura e caracteriza a tradiccedilatildeo teoloacutegica latina surge sob o impulso das disputas contra os

nestorianos os quais sustentavam que em Cristo havia duas naturezas e duas pessoas em

uniatildeo permanente e moral e contra os monofisistas que sustentavam a existecircncia em Cristo de

uma soacute natureza a divina11

Na definiccedilatildeo de Boeacutecio o termo pessoa tem um sentido mais especiacutefico e refere-se agrave estrutura

fundamental e metafiacutesica do indiviacuteduo ou seja agrave substacircncia individual dotada de uma

natureza racional Quer dizer nem todos os seres naturais satildeo pessoas mas apenas aqueles

substanciais

Por isso a pessoa eacute substacircncia individual Eacute individual porque tem caracteriacutesticas que a

distinguem dos outros indiviacuteduos da mesma espeacutecie caracteriacutesticas que natildeo satildeo definiacuteveis

nem comunicaacuteveis aos outros Eacute substacircncia porque eacute existente em si por si e em nenhum

outro Dizer substacircncia individual significa portanto dizer que a pessoa natildeo tem necessidade

para existir de aderir a um outro ser e conteacutem no seu quid alguma coisa de

incomunicabilidade que divide com nenhum outro12

A pessoa eacute igualmente de natureza racional O seu conhecer natildeo eacute impresso na mateacuteria nem eacute

limitado por essa Dizer natureza racional significa por isso que a pessoa natildeo soacute exerce as

actividades conexas agrave natureza mas tem a capacidade de desenvolvecirc-las capacidade possuiacuteda

por natureza ou seja com o nascimento13

A pessoa eacute pois o gau mais elevado de ser

substancial porque essa eacute consciente do seu ser substacircncia individual

Toda a pessoa eacute portanto antes de mais um indiviacuteduo Mas ao mesmo tempo muito mais que

indiviacuteduo porque natildeo eacute uma personagem mas uma substacircncia individual que possui em si

uma certa dignidade em razatildeo da sua racionalidade Por isso natildeo basta afirmar que a pessoa eacute

Studi Boeziani (Pavia 5-8 ott 1980) Herder Roma 1981 p 336 11

Fruto destas disputas eacute a obra de Boeacutecio Liber de persona et duabus naturis contra Eutychen et Nestorium

cujo objectivo imediato foi aquele de combater as heresias de Eutique e Nestoacuterio De recordar poreacutem que desde

os primeiros seacuteculos do cristianismo o conceito de pessoa oferece grande importacircncia ndashcom Tertuliano os Padres

Capadoacutecios S Agostinho e S Joatildeo Damasceno ndash nos interrogativos teoreacuteticos que emergiam da Revelaccedilatildeo e nas

controveacutersias teoloacutegicas acerca do dogma trinitaacuterio Tais controveacutersias se concluiacuteram com a foacutermula das trecircs

pessoas ou hipoacutestases na uacutenica substacircncia ούσία ou natureza divina Os Padres da Igreja separando de maneira

definitiva o conceito de πρόσωπον da referencia agrave personagem

traacutegica ou coacutemica deram focirclego a um aprofundamento do

conceito de pessoa tambeacutem na reflexatildeo filosoacutefica (cf Gregorio DI NISSA La grande catechesi CIttagrave Nuova

Roma 1982 p 51 Gregorio NAZIANZENO I cinque discorsi teologici CIttagrave Nuova Roma 1986 p 175)

12 Cf San Tommaso DrsquoAQUINO Questiones disputatae De potentia q 9 a 2 ID Summa Theologiae I q

29 a 13

Cf E BERTI Il concetto di persona nella storia del pensiero filosofico op cit p 48

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algo de individual e nem mesmo que eacute uma substacircncia ou uma natureza para defini-la do

ponto de vista metafiacutesico

Visto que a individualidade eacute acidente isto eacute pertence agravequilo que existe como perfeiccedilatildeo e eacute

caracteriacutestica de um sujeito e enquanto a substacircncia e a natureza indicam o que eacute proacuteprio da

espeacutecie ocorre a substacircncia individual de uma natureza racional para que exista pessoa

Ocorre portanto que se refira a uma substacircncia individualizada de um ser racional para que

exista pessoa do ponto de vista metafiacutesico Somente um ser racional pode corresponder agrave

dignidade de pessoa porque pessoa eacute enfim um ser em si que natildeo pode ser substituiacutedo por

um outro e que eacute capaz de operaccedilotildees proacuteprias e racionais

Revisitando o pensamento precedente e partindo do esquema e da foacutermula de Boeacutecio Satildeo

Tomaacutes elabora a sua definiccedilatildeo de pessoa como laquosubsistens in rationali naturaraquo 14

Com a foacutermula subsistens in rationali natura Satildeo Tomaacutes evidencia natildeo soacute o aspecto comum ndash

pressuposto universalmente aceite da pessoa ndash assim como expresso pela substacircncia

individual da definiccedilatildeo de Boeacutecio mas evidencia sobretudo aquele individual isto eacute o

existente considerado na acepccedilatildeo mais proacutepria ou seja o seu ser uacutenico e irrepetiacutevel De facto

na definiccedilatildeo de Boeacutecio a substacircncia individual parece ser concebida como individualidade A

individualidade poreacutem eacute determinaccedilatildeo da coisa e natildeo ainda do quem eacute uma conotaccedilatildeo

natural da pessoa e natildeo da mesma pessoa

Satildeo Tomaacutes condensa o conceito de pessoa nos termos subsistente e racional para indicar o

que de mais nobre e perfeito haacute no universo e por isso afirma laquopersona significat id quod est

perfectissimum in tota natura scilicet subsistens in rationali naturaraquo 15

Pessoa eacute a natureza racional que existe num indiviacuteduo concreto Por isso somente aquilo que

eacute subsistente numa natureza racional pode ser chamado pessoa E eacute o subsistir de maneira

individual na natureza racional que confere a dignidade agrave pessoa ou seja laquoquia magnae

dignitatis est in rationali natura subsistens ideo omne individuum rationalis naturae dicitur

personaraquo 16

De tudo isto emerge que a nobreza da pessoa humana natildeo eacute a abstracta razatildeo ndash como parece

indicar a natureza racional da definiccedilatildeo de Boeacutecio ndash mas a racionalidade possuiacuteda por um

subsistente ou seja de um ser concreto E este em virtude de um actus essendi proacuteprio que

confere actualidade agrave substacircncia e agraves suas determinaccedilotildees Tudo isto que a pessoa sabe quer e

faz brota do proacuteprio acto em virtude do qual eacute aquilo que eacute

14

Cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 29 a 3 c 15

Ibidem 16

Ibidem

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Da elaboraccedilatildeo de Satildeo Tomaacutes compreende-se essencialmente o caraacutecter racional da pessoa

racional enquanto capaz de ser consciente do proacuteprio ser17

A pessoa eacute todo o indiviacuteduo de

natureza racional livre atravessado por tradiccedilotildees e culturas responsaacutevel relacional

inteligente volitivo dialogante e por isso fundamento de unidade entre indiviacuteduos e povos

2 Do conceito da pessoa agrave construccedilatildeo da unidade africana

Antes da conquista das independecircncias os colonos procuravam inflamar as diferenccedilas

fechando as coloacutenias em si mesmas num clima de reserva ciumenta de distacircncia e quase de

desconfianccedila Com as independecircncias os encontros entre paiacuteses antigamente colonizados se

multiplicaram e o clima tornou-se de abertura e de colaboraccedilatildeo E com a criaccedilatildeo da

Organizaccedilatildeo da Unidade Africana (OUA) que veio desempenhar o papel extremamente

precioso de lugar de encontros de oacutergatildeo de diaacutelogo e de troca de experiecircncias entre Chefes de

Estado e de Governo africanos o esforccedilo para a unidade se exprimiu de modo mais visiacutevel

Contudo a vocaccedilatildeo agrave unidade eacute uma caracteriacutestica natural da pessoa humana porquanto esta eacute

essencialmente livre relacional e dialogante E enquanto essencialmente relacionais e

dialogantes existem nos homens aqueles elementos comuns que constituem a sua natureza e

que os distinguem das outras espeacutecies de seres Todos os homens tecircm as mesmas tendecircncias e

exigecircncias fundamentais quanto ao aneacutelito da unidade Todo o homem eacute chamado agrave comunhatildeo

e estaacute aberto agrave comunicaccedilatildeo e ao diaacutelogo

O homem eacute capaz pois de intercacircmbio de dar-se aos outros e deles receber porque a sua

natureza o abre agrave comunhatildeo agrave comunicaccedilatildeo e agrave unidade A sua natureza relacional e

dialogante natildeo eacute apenas uma necessidade mas eacute sobretudo um dom que o ambiente que o

impede de continuar fechado e isolado no egoiacutesmo e aberto aos conflitos De facto o homem

eacute aquilo que eacute pela sua inconfundiacutevel individualidade mas tambeacutem pelo seu ser aberto ao

outro e agraves realidades extriacutensecas por causa da sua sociabilidade A sociabilidade eacute pois uma

expressatildeo da sua humanidade e a unidade uma sua actuaccedilatildeo

Por isso a unidade africana pressupotildee a uniatildeo consciente entre africanos e o comum e

orgacircnico esforccedilo para conseguir o bem humano integral A unidade africana na base da

descoberta da comum humanidade articula-se na corresponsabilidade generosa de todos para

com todos e em cada povo africano tomar sobre si as dificuldades e os problemas dos outros

17

Muitas vezes o termo racional eacute confuso com o termo intelectual Na verdade intelecto e razatildeo diferem O

intelectual eacute um conhecimento simples e imediato enquanto o racional passa de um conhecimento simples para

um mais complexo (cf S Tommaso DrsquoAQUINO Summa Theologiae I q 59 a 1)

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povos do continente para alcanccedilar o bem comum18

Enfim a unidade encontra a sua raiz na essecircncia metafiacutesica da pessoa humana e exprime por

conseguinte a estrutura ontoloacutegica dos africanos e diz respeito agrave proacutepria possibilidade da sua

realizaccedilatildeo Por isso as divisotildees e os conflitos lupescos natildeo fazem parte da normalidade

africana

Portanto apesar de Aacutefrica ser um imenso continente com situaccedilotildees muito diversas um

complexo e heterogeacuteneo mosaico de povos liacutenguas raccedilas culturas etnias e religiotildees mesmo

dentro das mesmas fronteiras poliacuteticas o continente africano explica-se como unidade na

diversidade E enquanto africanos reconhecemos que a unidade nos eacute garantida

metafisicamente pela origem pelo facto mesmo de sermos africanos ndash do Cabo ao Cairo de

Dar es-Salaam a Dakar ndash mas sobretudo pelo facto de sermos pessoas humanas

O fundamento metafiacutesico de origem representa uma unidade indivisiacutevel na realidade histoacuterica

uma forccedila inspiradora e enriquecedora para os africanos que pode mesmo superar as

diversidades presentes nos Estados africanos a incomunicabilidade geograacutefica a hipocrisia

as tensotildees e os desejos separatistas e conduzir a um compromisso claro entre os africanos

respeitando as suas diversidades e os seus interesses reciacuteprocos empenhando num projecto

comum para uma Aacutefrica mais humana e mais social em que reinem sempre o respeito muacutetuo

o reconhecimento e a protecccedilatildeo dos direitos humanos fundamentais e se faccedila valer o lado

melhor dos africanos os valores basilares da paz da justiccedila da liberdade da toleracircncia da

participaccedilatildeo e da solidariedade Este fundamento metafiacutesico de origem eacute importante

porquanto em todos os campos tudo o que une os seres humanos eacute mais forte do que o que os

separa

Contudo a unidade africana deve ser construiacuteda e aprofundada de forma dinacircmica e

incessante porque os pressupostos da uniatildeo representados pelos factores geograacuteficos pela

multiplicidade das tradiccedilotildees regionais nacionais culturais e religiosas pelos interesses

econoacutemicos trocas econoacutemicas paciacuteficas e seguras pela heranccedila e tradiccedilotildees socioculturais

africanas mais autecircnticas em si natildeo bastam para criar a uniatildeo poliacutetica Eacute necessaacuterio voltarmos

agrave metafiacutesica da unidade e reelaborar juntos a histoacuteria da Aacutefrica que aleacutem das muito boas

experiecircncias de unidade eacute ainda caracterizada nalguns casos por desentendimentos lutas

fratricidas entre etnias e ateacute por conflitos beacutelicos

Com razatildeo Kwame Nkrumah apelava na sua obra A Aacutefrica deve unir-se agrave unidade natildeo

tanto para indicar a necessidade ou condiccedilatildeo de estar unidos mas sobretudo o acto de se unir

18

Cf L F KAMBALU A democracia personalista Os fundamentos onto-antropoloacutegicos da poliacutetica agrave luz de

Pietro Pavan Paulinas Lisboa 2012 pp 51-64

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porque os pressupostos geograacuteficos e econoacutemicos por si soacute natildeo bastam para criar a uniatildeo

Ocorrem instituiccedilotildees vinculativas bem como vontade e consciecircncia de pertenccedila a um mesmo

continente chamado Aacutefrica A consciecircncia deve preceder agrave formaccedilatildeo poliacutetica da unidade

africana que natildeo se poderaacute alcanccedilar de forma duradoira sem valores comuns Outrossim

ocorre recordar que a unidade eacute em si um bem somente quando eacute ordenada quando responde

agrave razatildeo objectiva da verdade da justiccedila e do bem O mesmo eacute dizer que a unidade eacute um bem

que vale tanto quanto respeita o que haacute de valor nas partes que a compotildeem

A unidade perde valor quando se realiza de modo maciccedilo esmagador absoluto destruidor e

totalitaacuterio abolindo o espaccedilo que permite o diaacutelogo destruindo desta forma a esfera em que os

homens agem tomam decisotildees comuns e operam colaborando Por isso sem liberdade nem

diaacutelogo a unidade africana seria impossiacutevel porque a Aacutefrica natildeo seria mais o espaccedilo onde cada

indiviacuteduo aos outros as proacuteprias capacidades em vista do bem comum segundo princiacutepios de

igualdade substancial Neste sentido a Aacutefrica seria um conjunto de indiviacuteduos e por

conseguinte um conjunto de Estados sem laccedilos entre si Cada um veria o outro natildeo como um

semelhante com quem eacute chamado a relacionar-se e tomar iniciativas mas um inimigo de

quem se defender

Enfim para reconstruir a unidade africana deve-se partir da pessoa humana e ocorre uma

poliacutetica que envolva todas as pessoas e forccedilas a todos os niacuteveis na busca do bem comum ou

seja na busca daquele conjunto de elementos essenciais que respondem agraves exigecircncias

intriacutensecas e imutaacuteveis da natureza humana Trata-se pois de condiccedilotildees econoacutemicas

juriacutedicas morais e religiosas que tornam possiacutevel e favorecem o conseguimento pleno e faacutecil

do desenvolvimento integral das pessoas

As exigecircncias histoacutericas e os significados de unidade satildeo sempre mutaacuteveis Mudam conforme

se entenda o que leva os homens a unirem-se a niacutevel ontoloacutegico e histoacuterico ou seja

consoante a efectiva existecircncia daquele princiacutepio originaacuterio em cada homem e povo ou

consoante o plano social poliacutetico religioso e cultural em que se actua a unidade De facto

natildeo poucas vezes os proacuteprios acontecimentos histoacutericos e as proacuteprias diferenccedilas exigem que

se redefinam os instrumentos poliacuteticos para construir uma nova ordem inspirada numa nova

filosofia de relaccedilotildees entre povos e Estados que vatildeo aleacutem do que no passado natildeo foi possiacutevel

Tais diferenccedilas podem provir de uma profunda oposiccedilatildeo e de uma divergecircncia quanto ao fim

As diferenccedilas podem provir tambeacutem de uma dupla visatildeo de um mesmo objectivo Seja qual

for a origem das diferenccedilas a atitude sadia eacute compreender as realidades e promover o diaacutelogo

e ver como as proacuteprias diferenccedilas permitem situar melhor o objecto

Por isso eacute mister que nos diversos acircmbitos questotildees e temas sobre os quais incumbe o risco

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da divisatildeo os africanos usem a mesma linguagem e falem a uma soacute voz cultivando e

empenhando-se intensa livre e conscientemente ao diaacutelogo

O diaacutelogo eacute fundamental para a vida poliacutetica sobretudo quando exerce a funccedilatildeo da busca da

verdade e do bem No caso da Aacutefrica o diaacutelogo torna-se uma exigecircncia insubstituiacutevel para

superar as divisotildees intoleracircncias e fundamentalismos que infelizmente se vatildeo intensificando

na actualidade O diaacutelogo eacute igualmente fundamental para superar os preconceitos e

desentendimentos histoacutericos culturais raciais sociais e religiosos e promover e concretizar a

unidade a justiccedila e a paz natildeo soacute por causa do pluralismo eacutetnico cultural racial social e

religioso do continente mas sobretudo por causa do seu pluralismo poliacutetico pois atraveacutes do

diaacutelogo cada indiviacuteduo ou povo enriquece o proacuteprio ponto de vista e converge para as noccedilotildees

de verdade e de bem humano e se empenha a potenciaacute-las corresponsavelmente para a

unidade

O diaacutelogo eacute tambeacutem essencial para a unidade poliacutetica social e econoacutemica e o

desenvolvimento integral dos povos e dos Estados africanos pois tal como os povos tambeacutem

os Estados tecircm necessidade uns dos outros para se encontrarem a si proacuteprios e no encontro

com os outros se realizarem plenamente Por isso o isolamento seria um impedimento

insuperaacutevel para a unidade e a realizaccedilatildeo do proacuteprio continente africano

Tal diaacutelogo deve basear-se em valores princiacutepios e normas aceites e deve ser assegurado por

um sistema constitucional e de direito pela promoccedilatildeo da justiccedila da paz e da liberdade para o

continente africano pela experiecircncia da verdade e pela busca constante de compreensatildeo dos

fundamentos que tecircm plasmado a Uniatildeo Africana

O diaacutelogo natildeo se processa sem dificuldades e eacute alcanccedilaacutevel atraveacutes da discussatildeo e

argumentaccedilatildeo eacute reconheciacutevel por todos a partir de um comum confronto que se funda sobre a

dignidade pessoa humana e eacute possiacutevel a diversos niacuteveis no plano da experiecircncia quotidiana

para as questotildees sociais comunitaacuterias familiares eacuteticas e ecoloacutegicas no plano do encontro

das culturas para o respeito e o melhor conhecimento reciacuteproco no plano desportivo para o

cultivo do sentimento de pertenccedila a um todo continental no plano poliacutetico para questotildees que

dizem respeito agrave seguranccedila econoacutemica cultural e juriacutedica no plano militar para questotildees que

dizem respeito agrave garantia da seguranccedila e integridade territorial bem como agrave erradicaccedilatildeo de

conflitos em Aacutefrica

Trata-se de um diaacutelogo gradual e sempre pronto a recomeccedilar Um diaacutelogo que natildeo obriga mas

se move no respeito da liberdade pessoal e civil e da soberania de cada Estado trata-se de um

diaacutelogo que natildeo eacute apenas instrumental nem nasce de taacutecticas ou de interesses mas um diaacutelogo

sincero e fecundo que reconhecendo toda a legiacutetima diversidade promove o respeito a

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concoacuterdia e a colaboraccedilatildeo

Enfim trata-se de uma actividade que apresenta motivaccedilotildees exigecircncias e dignidade proacutepria e

implica um muacutetuo esforccedilo de compreensatildeo por parte dos interlocutores que se compreendem

verdadeiramente quando descobrem aleacutem dos laccedilos que os unem e os integram uns aos outros

e dos valores a eles comuns as razotildees ideais em que cada um deles se inspira para realizaacute-los

Outrossim tal diaacutelogo destina-se a produzir efeitos extraordinariamente beneacuteficos como o

aumento da maturidade dos africanos ndash numa penetraccedilatildeo mais autecircntica da complexa

realidade do mundo hodierno em que a Aacutefrica se move ndash a resoluccedilatildeo dos problemas a

superaccedilatildeo dos desafios relacionados com a unidade e a luta pela prosperidade e felicidade de

todas as naccedilotildees bem como pela seguranccedila e bem-estar do continente africano

Tudo isso levanta muitos e difiacuteceis problemas de ordem econoacutemica social e poliacutetica Poreacutem

estaacute de facto que diante das diferenccedilas e dos antagonismos que o continente africano vive

actualmente soacute a consciecircncia da comum humanidade e o diaacutelogo franco luacutecido e proveitoso

pode permitir construir um caminho de toleracircncia e aceitaccedilatildeo muacutetuas para a realizaccedilatildeo de uma

convivecircncia respeitosa e articulada na reciprocidade sobre o fundamento da dignidade da

pessoa humana da mobilidade interna da integraccedilatildeo soacutecio-econoacutemica do continente e do

florescimento de um mercado interno Isto faraacute tambeacutem com que os africanos natildeo sejam

meros fornecedores de mateacuterias-primas aos outros continentes e consumidores de produtos

estrangeiros mas produtores e consumidores de produtos do seu proacuteprio continente

Um diaacutelogo natildeo inibido por complexos de superioridade ou de inferioridade mas um diaacutelogo

franco na base da consciecircncia de pessoas humanas e do respeito reciacuteproco De facto sem

diaacutelogo franco natildeo haacute progresso porquanto o progresso eacute liberdade e somente a verdade que

pode exprimir-se nos torna livres

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HISTOacuteRIA A COLONIZACcedilAtildeO UMA REFEREcircNCIA HISTORICIZANTE DO DISCURSO

SOBRE A DESCOLONIZACcedilAtildeO DE AacuteFRICA UMA PROVOCACcedilAtildeO FILOSOacuteFICA

A PARTIR DE FRANTZ FANON

NLANDU MATONDO FAUSTINO a

Resumo

O presente trabalho procurou desconstruir a partir das teses de Frantz Fanon sobretudo

aquelas formuladas nos ldquoCondenados da Terrardquo a ideia de uma suposta missatildeo civilizadora

subjacente na intenccedilatildeo colonizadora consubstanciada na equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual a

civilizaccedilatildeo e paganismo igual a selvageriardquo Partindo de uma indagaccedilatildeo da validade criticaacutevel

da equaccedilatildeo em epiacutegrafe cruzou os factos agraves doutrinas que versam sobre o fenoacutemeno da

colonizaccedilatildeo de Aacutefrica e chegou a depreender com uma certa objectividade de que a

colonizaccedilatildeo em Aacutefrica tal ficou visto por Fanon foi mais um movimento de

despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeo dos africanos em geral e dos negros em particular do que

um projecto de humanizaccedilatildeo e de emancipaccedilatildeo dos indiacutegenas de Aacutefrica negra Ficou portanto

evidente ao longo deste trabalho de que a colonizaccedilatildeo foi uma violecircncia que extraiu a sua

originalidade na substantivaccedilatildeo do colonizado Uma violecircncia que natildeo soacute presidiu ao arranjo

do mundo colonial como tambeacutem ritmou e alimentou a destruiccedilatildeo antropoloacutegica e ontoloacutegica

do negro-africano incluindo todas as suas formas sociais arrasou completamente os seus

sistemas de referecircncias econoacutemicas os seus modos ldquoessendi et operandirdquo e decretou a crise

soacutecio-cultural dos povos negros de Aacutefrica

Palavras-chaves colonizaccedilatildeo civilizaccedilatildeo violecircncia despersonalizaccedilatildeo descolonizaccedilatildeo

emancipaccedilatildeo

Abstract

The present study sought to deconstruct from the theses of Frantz Fanon especially those

formulated in The Wretched of the Earthrdquo the idea of a supposed civilizing mission

underlying the colonizing intention embodied in the equation colonization equal to

civilization and paganism equal to savageryrdquo Crossed the facts to the doctrines that focus on

a Doutorando em Filosofia na Universidade de Eacutevora Mestre em Ciecircncias da Educaccedilatildeo pela mesma

Universidade Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana e Docente na Universidade Catoacutelica de

Angola

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the phenomenon of colonisation of Africa this was seen by Fanon was more a movement of

depersonalization of Africans in general and the negroes in particular than a draft of

humanization and emancipation of the peoples of black Africa Therefore became evident

throughout this work that the colonization was a violence that drew its originality of the

colonized

A violence that not only presided over the arrangement of the colonial world as well as

marked and fed the anthropological and ontological destruction of black African including all

its social forms wiped out completely their systems of economic references their modes

essendi et operandi and decreed the socio-cultural crisis of the black people of Africa

Key words colonization civilization violence depersonalization decolonisation

emancipation

Introduccedilatildeo

A reflexatildeo em torno dos desafios da descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica continua actual e actuante em

qualquer discurso intelectual ou poliacutetico sobre o estado da naccedilatildeo de muitos Estados africanos

passados que satildeo aproximadamente seis deacutecadas desde que muitos deles se tornaram

independentes Esta actualidade pode todavia natildeo parecer evidente quando o enfoque do

discurso for a colonizaccedilatildeo De facto pode parecer anacroacutenico e mesmo sintomaacutetico falar da

colonizaccedilatildeo para tentar justificar a qualquer preccedilo o subdesenvolvimento e a instabilidade

sociopoliacutetica na actualidade de muitos Estados africanos independentes Bom ou malgrado

essa sensaccedilatildeo de anacronismo que sugere uma espeacutecie de eacutepokeacute em torno do fenoacutemeno

colonial perde a sua legitimidade na medida em que a pertinecircncia do discurso sobre a

descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica torna ldquoipsis verbirdquo procedente o discurso sobre a colonizaccedilatildeo Ou

seja toda a fala em torno da descolonizaccedilatildeo sugere de uma ou de outra forma uma incursatildeo

sobre a colonizaccedilatildeo Vamos ao longo deste trabalho procurar descortinar o conceito de

colonizaccedilatildeo na tentativa de perceber as diversas nuances que encerra e a natureza do

trampolim que pode sugerir agrave nossa cogitaccedilatildeo sobre a descolonizaccedilatildeo Para o efeito

propomos a seguinte estrutura 1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a

partir da analiacutetica de Fanon 2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo

igual a civilizaccedilatildeo 3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel

deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo 4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos a uma possiacutevel

verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida 5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de

Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco 6 Desconstruindo o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista

erguida na recusa do humano enquanto diferente 7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta do

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mundo colonial uma antiacutetese agrave pretensatildeo de uma suposta missatildeo emancipadora dos

africanos subjacente na intenccedilatildeo colonizadora

1 Em busca do justo significado do conceito de colonizaccedilatildeo a partir da sua analiacutetica

em Fanon

Natildeo eacute possiacutevel falar da descolonizaccedilatildeo em Fanon sem falar da colonizaccedilatildeo enquanto

referecircncia inofuscaacutevel e movimento historicizante que confere corpo e sentido mateacuteria e

forma a qualquer anaacutelise criacutetica do projecto de descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica Esta eacute de resto a

loacutegica que suporta o argumento de Fanon que passamos a transcrever

a descolonizaccedilatildeo [hellip] eacute um processo histoacuterico [hellip] natildeo pode ser

compreendida natildeo encontra a sua inteligibilidade natildeo se torna transparente

para si mesma senatildeo na exacta medida em que se faz discerniacutevel o

movimento historicizante que lhe daacute forma e conteuacutedo ndash a opressatildeo colonial

(Fanon 1968 p 26 ou Fanon 2002 p 452)

Desde esta perspectiva a anaacutelise sobre a colonizaccedilatildeo ganha uma particular relevacircncia na

medida em que se nos apresenta natildeo soacute como fundamento a partir do qual se pode erguer

qualquer avaliaccedilatildeo sobre as metas e objectivos que configuram o horizonte teleoloacutegico da luta

dos africanos rumo agrave sua efectiva emancipaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo no universalismo humano

mas tambeacutem como pretexto para (re) pensar o caminho de superaccedilatildeo das novas formas de

colonizaccedilatildeo que grassam ainda Aacutefrica e que em si constituem um verdadeiro impasse para

uma descolonizaccedilatildeo efectiva do continente africano Importa desde jaacute sublinhar que esta

reflexatildeo de tipo histoacuterico natildeo encontra o seu real significado na descriccedilatildeo dos factos que ela

encerra nem na narraccedilatildeo histoacuterica que a constitui O seu real alcance reside na sua capacidade

de sugerir um conjunto de questionamentos em torno deste grande desiderato a

descolonizaccedilatildeo vislumbrado pelos africanos passados que satildeo cinquenta e sete anos apoacutes a

morte de Fanon

Tem-se com efeito e natildeo poucas vezes associado a colonizaccedilatildeo de Aacutefrica a um projecto

civilizador ou modernizador que teraacute sido frustrado ou interrompido por uma espeacutecie de

ambiccedilatildeo irracional dos africanos admitindo-se deste modo a hipoacutetese segundo a qual a

colonizaccedilatildeo teraacute sido um ldquoprojecto interrompidordquo de civilizaccedilatildeo (modernizaccedilatildeo) da Aacutefrica e

dos africanos De recordar que o ldquodiscurso sobre o colonialismordquo de Aimeacute Ceacutesaire resulta

precisamente da necessidade de dissertar sobre uma possiacutevel analogia entre a ldquocolonizaccedilatildeo e

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a civilizaccedilatildeordquo Provocaccedilatildeo ou natildeo mas o simples facto de lhe ter sido solicitado discorrer

sobre o binocircmio colonizaccedilatildeo-civilizaccedilatildeo pelo Franco-Senegalecircs Alioune Diop fundador e

Director da Revista ldquoPreacutesence Africainerdquo em Paris 1950 insinua a existecircncia de tendecircncias

que aproximavam a colonizaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo Esta provocaccedilatildeo tal como nos parece ser natildeo

deixa de ser no plano metodoloacutegico um bom ponto de partida para uma discussatildeo mais

objectiva e criacutetica da concepccedilatildeo fanoniana do colonialismo porquanto nos permite lanccedilar a

discussatildeo levantando uma seacuterie de perguntas tais como 1 Eacute possiacutevel sustentar por via de

argumentaccedilatildeo uma provaacutevel analogia entre os dois conceitos em anaacutelise a saber colonizaccedilatildeo

e civilizaccedilatildeo 2 Teraacute havido realmente um plano colonial de civilizar ou modernizar a

Aacutefrica em proveito dos africanos 3 Era sensato legitimar a opressatildeo colonial a partir dos

progressos alcanccedilados nas coloacutenias de Aacutefrica durante a administraccedilatildeo colonial Dito de outro

modo Seraacute que os niacuteveis de desenvolvimento conseguidos em vaacuterios domiacutenios social

administrativo tecnoloacutegico e poliacutetico sob o regime colonial conferiam efectivamente a

merecida dignidade a Aacutefrica e aos africanos 4 Teraacute a Aacutefrica realmente recusado o

desenvolvimento como diria Axel Kabu ao engajar-se na luta pela descolonizaccedilatildeo 5 E hoje

em plena era poacutes-colonial poderatildeo os africanos afirmar com realismo franqueza e

frontalidade que os ideais que nortearam o projecto da descolonizaccedilatildeo foram alcanccedilados 6

Teraacute alguma razatildeo de ser o postulado segundo o qual o projecto de descolonizaccedilatildeo teraacute sido

abortado na sua menor idade admitindo-se deste modo um possiacutevel equiacutevoco entre os

liacutederes e os intelectuais africanos que teratildeo confundido as independecircncias (enquanto meio)

com a descolonizaccedilatildeo (enquanto fim da longa marcha usando a expressatildeo de Reneacute Dumont

rumo a um continente mais humano mais livre mais autoacutenomo mais justo e mais proacutespero)

Ao longo desta reflexatildeo tentaremos identificar alguns elementos de resposta a estas

perguntas tendo como principal suporte a obra de Frantz Fanon

2 Indagando sobre a validade criticaacutevel da equaccedilatildeo colonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeo

Qual teraacute sido o verdadeiro retrato do colonialismo um processo de civilizaccedilatildeo dos

chamados indiacutegenas ou um ldquomovimento de despersonalizaccedilatildeo e de coisificaccedilatildeordquo dos povos

africanos Eacute evidente que para Fanon esta questatildeo nem sequer merece ser colocada De

facto o jovem martinicano eacute bastante incisivo e objectivo na sua anaacutelise Para ele a

colonizaccedilatildeo eacute antes de mais uma ldquoviolecircnciardquo conceito que de resto daacute tiacutetulo ao Iordm capiacutetulo

do Les Damneacutes de la Terre (Fanon 1968 p23 ou 2002 p448) Na sua oacuteptica a violecircncia foi

precisamente o elemento estrateacutegico e estruturante da loacutegica colonial Trata-se de uma

violecircncia que extrai sua originalidade na substantificaccedilatildeo do colonizado que a proacutepria

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situaccedilatildeo colonial segrega e alimenta Aliaacutes o encontro entre o colonizador e o colonizado diz

Fanon teve sempre o retrato de violecircncia e nunca foi expressatildeo de uma vontade civilizadora

ou humanizadora Pode se ler em Fanon que a colonizaccedilatildeo eacute a categorizaccedilatildeo de um encontro

que

se desenrolou sob o signo da violecircncia e sua coabitaccedilatildeo ndash ou melhor

a exploraccedilatildeo do colonizado pelo colono ndash foi levada a cabo com

grande reforccedilo de baionetas e canhotildees [hellip] A violecircncia [hellip] presidiu

ao arranjo do mundo colonial [hellip] ritmou incansavelmente a

destruiccedilatildeo das formas sociais indiacutegenas [hellip] arrasou completamente

os sistemas de referecircncias da economia os modos da aparecircncia e do

vestuaacuterio do colonizado (Fanon 1968 pp 26 e 30)

Eacute possiacutevel aproximar em boa verdade uma situaccedilatildeo de uma clara alienaccedilatildeo antropoloacutegica

fazendo feacute agrave descriccedilatildeo de Fanon a um projecto de civilizaccedilatildeo sem cair em sofismas que

desemboquem numa contradiccedilatildeo De notar que este mesmo entendimento de Fanon eacute

corroborado pelo seu antigo mestre Aimeacute Ceacutesaire que parafraseamos nos seguintes termos a

colonizaccedilatildeo enquanto violecircncia no sentido mais bruto da palavra eacute uma autecircntica antiacutetese da

civilizaccedilatildeo ela por natureza desciviliza simultaneamente o colonizador e o colonizado A

colonizaccedilatildeo legitima o ilegiacutetimo e normaliza o anormal pode-se matar agrave vontade na

Indochina torturar em Madagaacutescar prender na Aacutefrica negra seviciar nas Antilhashellip (cfr

Ceacutesaire 1978 pp 7 e 14) Natildeo eacute preciso muita hermenecircutica para apreender nos dizeres de

Sartre de que a violecircncia constitui o ldquomodus operandirdquo proacuteprio do sistema colonial que nem

as suas geniais trapaccedilas conseguem disfarccedilar A peculiaridade do agir colonial distancia a

colonizaccedilatildeo da civilizaccedilatildeo E para deixar tudo a nu Sartre faz a seguinte inconfidecircncia

ldquonossos soldados no ultramar rechaccedilam o universalismo metropolitano

aplicam ao geacutenero humano o numerus clausus uma vez que ningueacutem pode

sem crime espoliar seu semelhante escravizaacute-lo ou mataacute-lo eles datildeo por

assente que o colonizado natildeo eacute o semelhante do homem Nossa tropa de

choque recebeu a missatildeo de transformar essa certeza abstrata em realidade a

ordem eacute rebaixar os habitantes do territoacuterio anexado ao niacutevel do macaco

superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga [hellip] nada

deve ser poupado para liquidar as suas tradiccedilotildees para substituir a liacutengua deles

pela nossa para destruir a sua cultura sem lhes dar a nossahelliprdquo (Sartre Les

Damneacutes 1961 p 9)

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Esta violecircncia que parte do plano simboacutelico conceitual atingiu o seu ponto auge com

desterramento dos indiacutegenas feitos estrangeiros na sua proacutepria terra como foi o caso do

coacutedigo civil imposto aos argelinos visando regular o direito agrave propriedade e agrave heranccedila com a

uacutenica finalidade de desterrar os autoacutectones tirando-lhes o que de mais precioso tinha ndash a sua

proacutepria terra De realccedilar que o referido coacutedigo tinha aprovado a titularidade comum de terras

entre a classe-meacutedia francesa e a sociedade tribal como estrateacutegia de expropriaccedilatildeo de terras

aos autoacutectones atraveacutes de poliacuteticas especulativas (cfr Sartre 1967 p39)

Desde este ponto de vista pode-se aferir que os ldquomodus essendi et operandirdquo do colonialismo

configuravam em certa medida aquilo que Sartre chamou de ldquoimoralidade narcisistardquo da

ambiccedilatildeo ocidental da qual emerge o impulso que modifica inevitavelmente qualquer

indiviacuteduo que adere agrave dinacircmica colonial dando-lhe boa consciecircncia e boas razotildees de ver no

outro (natildeo branco) um simples animal Esta constataccedilatildeo sartriana valida sem qualquer

sombra de duacutevida a convicccedilatildeo de Ceacutesaire para quem o colonialismo eacute brutalidade

intimidaccedilatildeo crueldade sadismo choque violaccedilatildeo roubo desprezo culturas obrigatoacuterias

desconfianccedila massas aviltadas ausecircncia de contacto humano relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e de

submissatildeo que transformam o negro colonizado em criado ajudante comitre e instrumento de

produccedilatildeo (cfr Ceacutesaire 1978 p25) A partir destes pressupostos torna-se de facto forccediloso

concluir que natildeo existe tal como defende Fanon qualquer sustentabilidade quer

argumentacional quer factual para a validaccedilatildeo da equaccedilatildeo ldquocolonizaccedilatildeo igual agrave civilizaccedilatildeordquo

pois os factos atestam que colonizaccedilatildeo eacute o oposto de civilizaccedilatildeo Mas uma deacutemarche

etimoloacutegica dos conceitos pode sugerir um outro entendimento que no plano teoacuterico

conceitual aproxima os dois conceitos em abordagem

3 Do entendimento teoacuterico dos conceitos em anaacutelise a uma possiacutevel deduccedilatildeo da sua correlaccedilatildeo

Para fundamentar com maior objectividade o alcance da deduccedilatildeo decorrente da narrativa de

Fanon em relaccedilatildeo a conjecturada correlaccedilatildeo entre os dois conceitos em anaacutelise pareceu-nos

mister recorrer ao estudo definicional dos referidos conceitos no sentido de os tornar mais

inteligiacuteveis para daiacute depreender o seu justo significado e consequentemente confirmar ou

infirmar a suposta correlaccedilatildeo entre ambas Conveacutem no entanto sublinhar que o caraacutecter

polisseacutemico dos conceitos em epiacutegrafe natildeo nos permite ignorar o facto de que natildeo eacute tatildeo faacutecil

quer do ponto de vista conceitual quer do ponto de vista factual traccedilar a linha de

convergecircncia ou de divergecircncia entre eles pois o proacuteprio caraacutecter multidisciplinar que o

conceito de civilizaccedilatildeo envolve hoje confere-lhe uma enorme complexidade que dificulta

qualquer entendimento homogeacuteneo linear e conclusivo Acresce-se a este dado o facto de

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que nos dias que correm o conceito de civilizaccedilatildeo eacute reivindicado como objeto de estudo da

antropologia da ciecircncia da cultura do direito da histoacuteria da filosofia poliacutetica da sociologia

poliacutetica da religiatildeo etc proporcionando-lhe um enquadramento episteacutemico bastante

complexo que recusa qualquer unicidade semacircntica No entanto um recuo estrateacutegico e

metodoloacutegico ao seacuteculo das luzes onde o significado do termo ldquocivilizaccedilatildeordquo emergiu da

proacutepria raiz etimoloacutegica do conceito ldquocivilisrdquo ldquocivisrdquo cujo entendimento remetia agrave acccedilatildeo

de tornar civil ou urbano pode permitir uma espeacutecie de unidade de sentido a partir do qual se

pode fundamentar a possiacutevel analogia conceitual destes dois termos

A Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura natildeo foge muito desta percepccedilatildeo quando define a

colonizaccedilatildeo como um fenoacutemeno sociopoliacutetico baseado na dependecircncia de um grupo humano

ou de um territoacuterio a um outro que exerce nele influecircncias demograacuteficas econoacutemicas

culturais sociais ou poliacuteticas Entendimento agrave luz do qual alguns teoacutericos nos seacuteculos XIX e

XX basearam a sua definiccedilatildeo de colonizaccedilatildeo como atividade pela qual um povo de cultura

superior ocupa e organiza por conta proacutepria um territoacuterio habitado por povos de cultura

inferior estendendo a sua soberania desfrutando do solo e organizando as terras ocupadas

segundo o princiacutepio da civilizaccedilatildeo Observa-se aqui a missatildeo civilizadora subjacente ao

conceito da colonizaccedilatildeo enquanto fenoacutemeno sociopoliacutetico cuja meta eacute levar as coloacutenias ao

desenvolvimento cultural social econoacutemico e cientiacutefico ou seja agrave modernizaccedilatildeo do territoacuterio

ocupado Este eacute de resto o significado que decorre do entendimento filoloacutegico do conceito de

colonizaccedilatildeo cuja estrutura originaacuteria se funda em torno de dois pressupostos basilares

nomeadamente o cultivo da terra isto eacute o desenvolvimento econoacutemico e o cultivo dos

homens ou seja a promoccedilatildeo sociocultural e econoacutemica das populaccedilotildees consideradas na

posiccedilatildeo receptiva (cfr Enciclopeacutedia Luso Brasileira da Cultura nordm5 p996ss)

De salientar que o conceito de civilizaccedilatildeo emergiu e muito provavelmente antes de qualquer

outro paiacutes no contexto sociocultural francecircs e fazia referecircncia essencialmente a trecircs

dimensotildees que vale a pena enumerar a primeira era referente ao primado da vida em

comunidade sobre a vida solitaacuteria a segunda fazia alusatildeo ao primado da vida na cidade sobre

a vida no campo a uacuteltima reportava-se ao primado do homem polido pela cultura sobre o

selvagem isto eacute o homem moderno distinguido pela ciecircncia e pela teacutecnica sobre o baacuterbaro

(cfr Enciclopeacutedia LB da Cultura nordm5) Neste contexto teoacuterico-conceitual civilizar era de

facto sinoacutenimo de trabalhar na integraccedilatildeo dos indiacutegenas na comunidade metropolitana na

modernizaccedilatildeo da vida do campo isto eacute levando as condiccedilotildees da cidade ao campo (energia

eleacutectrica aacutegua potaacutevel educaccedilatildeo escolar assistecircncia meacutedica e medicamentosahellip) e na policcedilatildeo

do baacuterbaro pela chamada ldquoculturardquo cientiacutefica e tecnoloacutegica

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Este parece ser o entendimento mais viaacutevel para o exame a que nos propusemos da

correlaccedilatildeo destes dois vocaacutebulos O facto desta mesma perspectiva encontrar suporte e

sustentabilidade episteacutemica no Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa Contemporacircnea editorial

Verbo acresce ainda mais o nosso interesse por esta perspectiva (cfr 2001 p833) Segundo

o Dicionaacuterio ora referenciado a ldquocivilizaccedilatildeordquo eacute a acccedilatildeo ou o resultado de transmitir

conhecimentos comportamentos e teacutecnicas consideradas desejaacuteveis numa sociedade moderna

Por conseguinte civilizar eacute dar caracteriacutesticas proacuteprias de sociedades teacutecnicas cientiacutefica e

economicamente desenvolvidas a sociedades primitivas ou ainda dar haacutebitos e ajudar a

desenvolver comportamentos desejaacuteveis numa sociedade desenvolvida Conclui-se pois que

do ponto de vista conceitual ou definicional existem razotildees para fundamentar a presumiacutevel

correlaccedilatildeo entre os conceitos de ldquocolonizaccedilatildeo e civilizaccedilatildeordquo Mas a natildeo homogeneidade de

compreensatildeo na interpretaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo destes conceitos agrave partida polisseacutemicos e

multidisciplinares e o seu claro antagonismo factual evidenciado nas descriccedilotildees fanonianas

obrigam-nos a dar um passo a mais espreitando algumas doutrinas e factos que marcaram e

continuam a marcar o discurso sobre o colonialismo

4 Da anaacutelise de algumas doutrinas e factos agrave uma possiacutevel verificaccedilatildeo da equaccedilatildeo de

partida

Se eacute possiacutevel aferir do ponto de vista definicional uma certa correlaccedilatildeo analoacutegica entre os

conceitos que fundam a nossa equaccedilatildeo de partida tal como ficou patenteado no ponto

anterior do ponto de vista doutrinal e factual esta correlaccedilatildeo carece de uma anaacutelise

minuciosa que permita apurar se a propensatildeo civilizadora inerente ao conceito de colonizaccedilatildeo

pelo menos no plano teoacuterico-conceitual conseguiu vincar como aspecto norteador da acccedilatildeo

colonial ou teraacute por alguma razatildeo ficado ofuscada durante o processo colonial Impotildee-se-

nos a este niacutevel retomar o ponto de vista de Fanon para quem a colonizaccedilatildeo eacute antes de

mais uma violecircncia que se consubstancia na animalizaccedilatildeo e na aniquilaccedilatildeo dos (negros)

colonizados Para sustentar o seu argumento Fanon comeccedila por relembrar a atitude do colono

que em vaacuterias circunstacircncias fez recurso a ldquouma linguagem zooloacutegica usando expressotildees

como ldquo[hellip] hordas fedor buliacutecio [hellip] e quando os quisesse descrever com mais exatidatildeo

[hellip] recorria constantemente ao bestiaacuteriordquo para designar os negros (Fanon 1968 p 31 ou

2002 p 456) Esta animalizaccedilatildeo do colonizado eacute para Fanon a expressatildeo mais eloquente de

uma violecircncia absoluta que desenraiacuteza o aviltado de sua humanidade E para reforccedilar a sua

criatividade narcisista e alimentar o seu instinto nihilista o colono via-se na necessidade de

encontrar novos atributos que pudessem explicitar da melhor maneira possiacutevel a real

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dimensatildeo semacircntica subjacente nos conceitos de ldquoindiacutegena e selvagemrdquo que em si jaacute natildeo

eram suficientes para exprimir a mesquinhez que representavam os selvagens negros de

Aacutefrica entre outros

demografia galopante massas histeacutericas rostos de onde fugiu qualquer traccedilo

de humanidade corpos obesos que natildeo se assemelham mais a nada corte sem

cabeccedila nem cauda crianccedilas que datildeo a impressatildeo de natildeo pertencerem a

ningueacutem preguiccedila estendida ao sol ritmo vegetalhellip (Fanon 1968 p 32 ou

Fanon 2002 p457)

A validade histoacuterica desta narrativa fanoniana suscita o seguinte questionamento Eacute sensato

falar de um projecto de civilizaccedilatildeo de animais sem converter a proacutepria racionalidade

civilizadora numa irracionalidade animal Para tentar justificar a paradoxal irracionalidade

animal de uma civilizaccedilatildeo cuja racionalidade eacute o epicentro da sua acccedilatildeo muitos preferiram

considerar as afirmaccedilotildees de Fanon de irresponsaacuteveis e repletas de inverdades qualificando o

proacuteprio Fanon de agitador e instigador da violecircncia ante a sua incisiva caracterizaccedilatildeo do

sistema colonial Dentre outros podemos citar Alain Finkierkraut cujo pensamento mais do

que uma antiacutetese agraves teses de Fanon eacute uma tentativa de demonstraccedilatildeo da derrota do projecto da

descolonizaccedilatildeo Piegraverre Bourdieu de quem procedem muitos dos adjectivos qualificativos que

pesam sobre Fanon eacute paradoxalmente considerado por Micheal Burawoy (2010 p 109)

como um dos autores que figuram da lista dos intelectuais como Albert Camus Simone de

Beauvoir Germaine Tillion Jasques Amrouche e outros que como Fanon e Sartre tiveram a

ousadia de denunciar cada um agrave sua maneira a violecircncia inerente ao sistema colonial

forjando novas noccedilotildees de identidade poliacutetica que continuam a influenciar o debate poliacutetico na

actualidade

No seu ldquomarxismo encontra Bourdieurdquo Burawoy procura mostrar que apesar da enorme

distacircncia que separa o quadro teoacuterico-reflexivo de Bourdieu e Fanon nomeadamente ldquoo

marxismo terceiro-mundista de um lado e a teoria da modernizaccedilatildeo de outro ladordquo o

pensamento destes dois autores apresenta inuacutemeras similitudes sobretudo entre o Fanon do

Le Damneacutes de la terre de 1961 e o Bourdieu de Sociologie de lrsquoAlgerie de 1958 Embora

natildeo seja objecto deste debate julgamos oportuno e procedente mencionar a tiacutetulo de

exemplo algum extracto da obra de Bourdieu que descreve a violecircncia como uma das

caracteriacutesticas intriacutensecas agrave natureza proacutepria do sistema colonial e nos termos muito

semelhantes aqueles que aparecem nas paacuteginas 26 e 30 do Le Damneacutes de la terre de Fanon

(cfr 1968) ao afirmar

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o sistema colonial enquanto tal natildeo poderaacute ser destruiacutedo senatildeo atraveacutes de

um questionamento radical Todas as mutaccedilotildees satildeo submetidas agrave lei de tudo

ou nada Este facto estaacute na consciecircncia pelo menos de forma confusa quer

entre os membros da sociedade dominante quer entre os membros da

sociedade dominada [hellip] Mas eacute preciso admitir que o primeiro e uacutenico

questionamento radical do sistema eacute aquele que o proacuteprio sistema engendrou

isto eacute a revoluccedilatildeo contra os princiacutepios que o fundaram [hellip] A situaccedilatildeo

colonial criou o despreziacutevel e ao mesmo tempo o desprezo mas criou

tambeacutem a revolta contra o desprezo Assim cresce cada vez mais a tensatildeo

que divide a sociedade no seu conjunto (Bourdieu 1958 pp 28 e 129)

Fica aqui o retrato de tanta similitude entre Fanon e Bourdieu numa clara aproximaccedilatildeo da

colonizaccedilatildeo agrave violecircncia De facto a violecircncia simboacutelica e real eacute depreendida em muitos

cenaacuterios e discursos sobre o colonialismo como uma marca distintiva do sistema colonial

Vaacuterios satildeo os etnoacutelogos e ideoacutelogos que nas entrelinhas do seu pensamento conferem uma

certa razatildeo a um tal pressuposto Alfred de Vigny por exemplo faz jus a esta violecircncia

simboacutelica ao afirmar sem rodeios que o mundo natildeo europeu eacute um mundo animal mundo dos

baacuterbaros mundo da morte e consequentemente uma ameaccedila ao mundo europeu Partindo

deste postulado deduz-se que para De Vigny a colonizaccedilatildeo era um processo compulsivo de

civilizaccedilatildeo isto eacute uma opccedilatildeo para a vida e tal como diz ldquose se prefere a vida agrave morte tem de

se preferir a civilizaccedilatildeo agrave barbaridaderdquo que natildeo eacute apenas um reino animal e de morte mas

tambeacutem uma ameaccedila agrave civilizaccedilatildeo Em virtude disto conclui De Vigny ldquonenhum povo tem o

direito de permanecer baacuterbaro ao lado das naccedilotildees civilizadasrdquo Depreende-se daqui que a

uacutenica loacutegica vaacutelida eacute a disjuntiva ldquoto be or not to berdquo como diria Shakespeare ldquothat is the

questionrdquo (cfr De Vigny 2003 p87)

Esta apreciaccedilatildeo lacoacutenica de Alfred de Vigny ganha maior clareza com Folliet que como De

Vigny tambeacutem considera a colonizaccedilatildeo como uma obra civilizadora uma espeacutecie de direito e

dever das sociedades evoluiacutedas Folliet baseia o seu argumento nas caracteriacutesticas

heterogeacuteneas das sociedades isto eacute nos desniacuteveis existentes entre as sociedades colonizadas e

colonizadoras quer nos planos econoacutemico administrativo cultural social e poliacutetico quer nos

planos cientiacutefico e tecnoloacutegico Daqui resulta o entendimento segundo o qual a colonizaccedilatildeo

seria possivelmente o processo de supressatildeo destes desniacuteveis sociais com o auxiacutelio das

sociedades mais desenvolvidas Pelo que a manutenccedilatildeo destes desniacuteveis como forma

hegemoacutenica de controlo ou de manutenccedilatildeo de superioridade foge do acircmbito da colonizaccedilatildeo

para desembocar no campo de acccedilatildeo do colonialismo (cfr Folliet 1932 p 75) Eacute caso para

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dizer que o entendimento teoacuterico de Folliet apresenta uma diferenccedila niacutetida entre a colonizaccedilatildeo

que seria para o autor o sinoacutenimo de civilizaccedilatildeo e o colonialismo que pode ser visto como

processo de exploraccedilatildeo e subjugaccedilatildeo das sociedades subdesenvolvidas pelas sociedades

desenvolvidas

Mas eacute preciso dizer que se do ponto de vista conceitual Folliet deu um tamanho salto

qualitativo propiciador de uma possiacutevel coabitaccedilatildeo paciacutefica entre o colono e o colonizador

aludindo agrave missatildeo civilizadora da colonizaccedilatildeo do ponto de vista praacutetico o discurso follietiano

deu lugar a muitas ambiguidades sobretudo quando o proacuteprio autor considera a colonizaccedilatildeo

como forma mais viaacutevel de se tirar o melhor proveito dos recursos naturais mal parados em

territoacuterios subdesenvolvidos e valorizaacute-los para o bem-comum da humanidade sem definir as

regras nem as modalidades ou os viacutenculos contractuais para tal Com efeito Folliet considera

um dado assente que ldquoas naccedilotildees economicamente mais evoluiacutedas tecircm o direito de explorar as

riquezas ignoradas ou desprezadas pelos povos selvagensrdquo (Folliet 1932 pp 101 e 268) E

para natildeo camuflar a sua veia colonial consubstanciada no instinto de violecircncia Folliet

defende a necessidade da manutenccedilatildeo das desigualdades entre o colonizador e o colonizado

numa clara opccedilatildeo pelo colonialismo em detrimento da colonizaccedilatildeo contrariando a sua proacutepria

doutrina com o seguinte posicionamento

a desigualdade deve reinar a favor dos colonizadores de modo que o sujeito

colonizado natildeo passe numa vontade de vinganccedila a esquecer a sua

heteronomia absoluta eacute portanto uacutetil e necessaacuterio que as mais vastas

propriedades as mais ricas induacutestrias os mais frutuosos comeacutercios pertenccedilam

aos representantes da raccedila superior (Folliet 1932 p228)

Uma possiacutevel deduccedilatildeo leva-nos por um lado a aferir a inadequaccedilatildeo da equaccedilatildeo de partida

com os aspectos doutrinais e factuais tomados como pressupostos analiacuteticos da questatildeo em

estudo e a considerar por outro lado a emergecircncia da categoria de dominaccedilatildeo como outro

elemento caracteriacutestico da estrateacutegia colonial na relaccedilatildeo colonizadocolonizador Este

princiacutepio que eacute em si mesmo o elemento estruturante da tensatildeo e ao mesmo tempo

provocador da dialeacutectica do senhor e do escravo permite-nos um salto para o exame da

possibilidade de um plano colonial de civilizar ou de modernizar a Aacutefrica em proveito dos

africanos

5 A colonizaccedilatildeo como projecto de modernizaccedilatildeo de Aacutefrica clarividecircncia ou equiacutevoco

Eacute possiacutevel compatibilizar o instinto de dominaccedilatildeo com a vontade de promover ou de

emancipar Guillaume Sureacutena num movimento contraacuterio ao nosso itineraacuterio apresenta um

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discurso capaz de relanccedilar a discussatildeo No seu artigo intitulado ldquoPsycanalyse et

anticolonialismerdquo Sureacutena lamenta o desperdiacutecio de uma oportunidade que teria resultado num

possiacutevel encontro inter-civilizacional frutiacutefero e que no entanto teraacute sido frustrado pela

vontade dominadora do instinto colonial Os textos surenianos insinuam que do ponto de

vista praacutetico a civilizaccedilatildeo europeia nunca teve qualquer plano de promover nem de

reconhecer as outras civilizaccedilotildees como parceiras importantes para um crescimento conjunto

A sua ambiccedilatildeo foi sempre de conhecer para dominar e subjugar como ficou explicitado nesta

passagem

este encontro de civilizaccedilotildees tatildeo diferentes poderia ter sido o momento de um

intercacircmbio fecundo e de um enriquecimento muacutetuo como lamentou o

antropoacutelogo francecircs Claude Levi-Strauss Mas para a metafiacutesica europeia

desde a Greacutecia antiga o saber foi sempre o equivalente de ldquomaitriserrdquo isto eacute

de dominar As coisas e os animais foram desbatizados para serem mutilados

sob os conceitos com partiacuteculas latinas e gregas Os locais geograacuteficos

receberam nomes que evocam a velha Europa e que os tornam ridiacuteculos por

falta de qualquer relaccedilatildeo com os espiacuteritos que os habitavam outrora (Sureacutena

1943 p 4)

Diga-se pois de passagem que foi assim na Greacutecia antiga foi assim ateacute ao seacuteculo XX e

nada justifica que natildeo continue assim nos dias que hatildeo-de vir Mas a questatildeo eacute qual o destino

que o instinto dominador das naccedilotildees pode proporcionar agrave espeacutecie humana Conveacutem recordar

que num passado mais recente da histoacuteria da Europa a colonizaccedilatildeo assumiu o caraacutecter de

dominaccedilatildeo dos povos e dos seus recursos naturais Os europeus sempre mostraram-se mais

interessados com uma partenogeacutenese profunda dos africanos para os submeter mais

facilmente e natildeo para os civilizar De facto desde o iniacutecio do seacuteculo XVII com as grandes

navegaccedilotildees e os descobrimentos das ameacutericas o interesse em explorar e conquistar novas

terras ganhou um enorme vigor na Europa e com ele emergiu tambeacutem a chamada

colonizaccedilatildeo de exploraccedilatildeo e de povoamento A primeira forma de colonizaccedilatildeo foi o momento

no qual prevaleceram os interesses mercantis no quadro em que as coloacutenias tinham uma

utilidade meramente lucrativa junto da metroacutepole A segunda acontecia de maneira

espontacircnea mas tendo como factor motivacional o surgimento de uma actividade econoacutemica

com garantias de melhorar a qualidade de vida de quem aiacute acorria

Muitos estudos mostram que no continente africano este tipo de colonizaccedilatildeo foi sempre

acompanhado de desterramento de zonas araacuteveis ou de pastagem dos autoacutectones bem como

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da supressatildeo dos eventuais direitos que detinham1 Embora referindo-se a um contexto muito

mais preteacuterito ao de Fanon Ceacutesaire Sartre e outros Iva Cabral traz ao de cima a ideia de

dominaccedilatildeo e de exploraccedilatildeo como elementos catalisadores do interesse europeu em Aacutefrica

ajudando assim na desconstruccedilatildeo da hipoacutetese de um possiacutevel plano colonial para o

desenvolvimento de Aacutefrica e dos africanos De facto Iva Cabral afirma que a experiecircncia

ultramarina se resumia na conquista das praccedilas do Norte de Aacutefrica e na fixaccedilatildeo de guarniccedilotildees

e que os europeus arriscavam viver por tempo indeterminado nos territoacuterios tropicais de

Aacutefrica natildeo pelo desejo de levar a civilizaccedilatildeo agraves terras longiacutenquas de Aacutefrica mas por causa

dos inuacutemeros privileacutegios econoacutemicos e sociais que tinham os quais incluiacuteam em alguns

casos a sociedade escravocrata de produccedilatildeo no Atlacircntico (cfr 2015 p25)

Este suporte histoacuterico que Iva Cabral empresta ao nosso argumento de tipo dedutivo encontra

um reforccedilo na posiccedilatildeo de Sartre que introduz um outro elemento de enorme utilidade na nossa

anaacutelise sobre as categorias de dominaccedilatildeo e exploraccedilatildeo como sustentaacuteculos da acccedilatildeo

colonizadora quando num tom autocriacutetico apontando o dedo aos seus irmatildeos europeus

pinta sem complexo nem contemplaccedilotildees o verdadeiro retrato da Europa colonial permitindo

a apreensatildeo da razatildeo mais profunda e mobilizadora de toda a ofensiva opressatildeo contra os

autoacutectones em territoacuterios colonizados sobretudo em Aacutefrica nestes termos

sabeis muito bem que somos exploradores Sabeis que nos apoderamos do

ouro e dos metais e posteriormente do petroacuteleo dos continentes novos e que

os trouxemos para as velhas metroacutepoles Com excelentes resultados palaacutecios

catedrais capitais industriais [hellip] A Europa empanturrada de riquezas

concedeu de jure a humanidade a todos os seus habitantes entre noacutes

lucramos com a exploraccedilatildeo colonial (Fanon 1968 p 17)

Se tomamos a seacuterio as diversas constataccedilotildees dos autores supra mencionados torna-se

insustentaacutevel a hipoacutetese de um suposto projecto de desenvolvimento colonial a favor dos

africanos e da Aacutefrica num contexto de exploraccedilatildeo no seu sentido mais radical e mais bruto do

termo isto eacute uma exploraccedilatildeo natildeo soacute de recursos naturais dos territoacuterios colonizados mas

tambeacutem do seu proacuteprio capital humano Num tal contexto aproximar a colonizaccedilatildeo da

civilizaccedilatildeo eacute admitir agrave partida uma ambiguidade semacircntica na compreensatildeo destes dois

conceitos Reagindo a respeito de uma tal ambiguidade Ceacutesaire diz que a colonizaccedilatildeo natildeo

deve ser confundida com uma empresa filantroacutepica nem com uma nobre vontade de recuar as

fronteiras da ignoracircncia da doenccedila da tirania e ateacute mesmo da propagaccedilatildeo de Deus e muito

1 Cfr httpsptwikipediaogwikicolonizaccedilatildeo Enciclopeacutedia livre 15022017

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menos com uma poliacutetica de extensatildeo dos direitos do povo colonizado como pretendeu o

pedantismo cristatildeo que concebeu o referido equiacutevoco ao enunciar uma equaccedilatildeo eacutetica e

religiosamente desonesta e politicamente pretensiosa cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria tornando-se assim responsaacutevel pelas consequecircncias

abominaacuteveis decorrentes dos actos coloniais cujas viacutetimas seriam os iacutendios os amarelos e os

negros (cfr Ceacutesaire 1978 pp14-15)

Pode se depreender dos textos de Ceacutesaire que a colonizaccedilatildeo eacute a manifestaccedilatildeo sem precedente

da ganacircncia do aventureiro e do pirata do comerciante e do armador do pesquisador de ouro

e do mercado do apetite e da forccedila tendo por detraacutes a sombra maleacutefica projetada de uma

forma de civilizaccedilatildeo que a dado momento da sua histoacuteria se viu obrigada internamente a

alargar agrave escala mundial a concorrecircncia das suas economias Se natildeo como se pode perceber

que a Franccedila em particular e a Europa em geral conseguissem progressivamente tal como

alude Dino Constantini transformar os princiacutepios democraacuteticos e humanistas tatildeo-reclamados

naquela circunscriccedilatildeo do globo em instrumentos de justificaccedilatildeo de dominaccedilatildeo com regulares

violaccedilotildees nas coloacutenias dando lugar a uma degeneraccedilatildeo sem precedente de uma suposta

ldquomissatildeo civilizadorardquo da Europa em Aacutefrica (cfr Constatini 2008 pp 33 e 53) Para pocircr a nu

o paradoxo de uma civilizaccedilatildeo dita humanista mas na praacutetica contestadora da proacutepria

humanidade no ldquodiferenterdquo Constatini evoca o coacutedigo civil de 1791 que coloca as coloacutenias

fora do direito comum institucionalizando uma cisatildeo social juridicamente fundamentada

entre as populaccedilotildees brancas e negras legitimando ao mesmo tempo a violecircncia primeiro no

plano simboacutelico e posteriormente no plano concreto numa clara declaraccedilatildeo de recusa de

reconhecimento e de integraccedilatildeo dos negros na vida da metroacutepole Eacute preciso dizer que esta

fragmentaccedilatildeo social legitimada pelo coacutedigo civil supra citado serviu de base para a

consagraccedilatildeo de uma nova compreensatildeo do conceito da ldquohumanidaderdquo que reduziria os

direitos humanos a direitos de cidadania reservando-os apenas aos europeus

Eacute o paradoxo no caso da Franccedila de uma Repuacuteblica que nunca deixou de contestar contra a

violecircncia de que tinha sido viacutetima em 1871 cegamente transformada numa autecircntica maacutequina

de violecircncia contra outros humanos sem qualquer fundamento legiacutetimo (cfr Constatini 2008

p 286) Eacute a contradiccedilatildeo de uma civilizaccedilatildeo ocidental defensora de direitos humanos mas que

natildeo hesita de reduzir os outros humanos agrave categoria de sub-humanos eacute a estrateacutegia de um

imaginaacuterio ideoloacutegico que no plano psicoloacutegico confere legitimidade a todas as barbaacuteries dos

colonizadores sobre os colonizados eacute a ironia de uma civilizaccedilatildeo cuja linha de demarcaccedilatildeo

com a barbaridade natildeo eacute expliacutecita Nem mesmo a dignidade humana universal e abstracta

apregoada pelos moralistas desta civilizaccedilatildeo como um dos valores mais sublimes entre os

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humanos em especial pela religiatildeo cristatilde mais consagrada ao serviccedilo do imperialismo do

que de Deus na oacuteptica de Ceacutesaire conseguiu dissimular a violecircncia contra o colonizado

6 Desmistificando o mito de uma civilizaccedilatildeo humanista erguida na recusa do

ldquodiferenterdquo

Parece ter ficado evidente que a colonizaccedilatildeo se identificou mais com uma dinacircmica de

exploraccedilatildeo dos povos colonizados do que com um projecto de integraccedilatildeo dos indiacutegenas na

metroacutepole Iva Cabral ajuda-nos mais uma vez a perceber como a loacutegica do lucro presidiu a

todas as estrateacutegias e legislaccedilotildees coloniais Numa perspectiva simplesmente histoacuterica a autora

apresenta alguns dados que nos permitem conferir uma certa validade a muitos dos

enunciados de Fanon que concedem sentido e substacircncia a este trabalho Com efeito Iva

Cabral afirma que as decisotildees poliacuteticas do regime colonial criavam condiccedilotildees para que os

filhos da meacutedia e baixa nobreza portuguesa neste particular mercadores e aventureiros

vislumbrassem no territoacuterio receacutem-descoberto uma oportunidade e um trampolim para o vasto

mercado africano cujo acesso se abria na costa ocidental do continente e para os lucros que as

mercadorias daiacute advindas poderiam trazer (cfr Cabral 2015 p27)

Eacute loacutegico conjecturar que num tal jogo de lucro faacutecil que natildeo podia natildeo contar com os

recursos naturais e com o capital humano africanos como meios ideais para minimizar os

custos e maximizar os lucros a preocupaccedilatildeo pela integraccedilatildeo dos africanos no clube dos

evoluiacutedos e emancipados seria uma espeacutecie de atentado ao espiacuterito de negoacutecio Este postulado

encontra a sua sustentabilidade no discurso de Joseph de Maistre que radicaliza a atitude da

recusa do ldquooutrordquo o diferente feito uma ameaccedila para o ldquonoacutesrdquo ideologicamente construiacutedo e

consagrado como o uacutenico paradigma possiacutevel de humanidade na seguinte declaraccedilatildeo

havia uma extrema verdade neste primeiro movimento dos europeus que se

recusaram no seacuteculo de Colombo em reconhecer seus semelhantes homens

degradados que povoavam o novo mundo [hellip] Era impossiacutevel fixar um

instante do olhar no selvagem sem ler o anaacutetema escrito natildeo digo somente na

sua alma mas ateacute na forma exterior do seu corpo (De Maistre Joseph Apud

Ceacutesaire 1978 p 33)

Esta declaraccedilatildeo deixa transparecer uma inferecircncia loacutegica quase irrefutaacutevel de que o referido

anaacutetema dos indiacutegenas soacute natildeo se consumou ao extermiacutenio na perspectiva do colono por

razotildees de iacutendole puramente utilitarista como se depreende nesta passagem do jaacute citado autor

nesta transcriccedilatildeo de Ceacutesaire

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sob o ponto de vista de selecccedilatildeo consideraria deploraacutevel o desenvolvimento

numeacuterico [hellip] dos elementos amarelos e negros que seriam de eliminaccedilatildeo

difiacutecil Se todavia a sociedade futura se organizar numa base dualista com

uma classe dolico-loira dirigente e uma classe de raccedila inferior confiada agrave

mais grosseira matildeo-de-obra eacute possiacutevel que este uacuteltimo papel incumba aos

elementos amarelos e negros Neste caso aliaacutes natildeo seria um embaraccedilo mas

uma vantagem para os dolico-loiros (De Maistre Joseph Apud Ceacutesaire

1978 p 33)

Fica desvendado nestes dizeres do De Maistre o retrato do narcismo nihilista de muitos

artistas da europa colonial consubstanciado na ideia e na pretensatildeo de uma raccedila superior que

se julga no direito de combater todo o tipo de risco de contaacutegio Eacute o drama de uma Europa

feita refeacutem pelo seu proacuteprio mito de pureza civilizacional uniracial um mito enganoso

pretensioso e pernicioso que potildee em causa a aspiraccedilatildeo de uma poliacutetica enquanto exigecircncia de

construccedilatildeo de uma comunidade humana na qual a consciecircncia da diversidade dos humanos e a

necessidade da reciprocidade entre os diferentes se tornam uma condiccedilatildeo ldquosine qua nonrdquo da

prosperidade e da sobrevivecircncia da proacutepria espeacutecie humana Lamentavelmente este

entendimento da poliacutetica como espaccedilo intermediaacuterio onde se joga a liberdade e interacccedilatildeo dos

humanos enquanto seres iguais e autoacutenomos eacute constantemente posto em causa como diz

Martha Nussbaum pelos apologistas deste mito que em todas as sociedades alimentam uma

falsa convicccedilatildeo de pureza etnocecircntrica ou ldquoclassececircntricardquo geradora de violecircncia contra os

excluiacutedos (cfr Nussbaum 2010 p 48) comprometendo a possibilidade de fazer da poliacutetica o

lugar por excelecircncia da profundidade humana

Para compreender as mais profundas motivaccedilotildees que levam os indiviacuteduos a um tal instinto

nihilista Nussbaum recorre ao pensamento de Mahatma Gandhi que examina a possiacutevel

conexatildeo existente entre os domiacutenios psicoloacutegico e poliacutetico Com efeito Gandhi concluiacutera que

os desejos gananciosos o instinto de agressatildeo e a ansiedade narcisista satildeo empecilhos para a

edificaccedilatildeo de uma verdadeira civilizaccedilatildeo humana Pelo que a luta poliacutetica pela construccedilatildeo de

uma civilizaccedilatildeo humana assente nos pilares da liberdade empatia e igualdade deve ser

precedida de uma luta contra o medo do outro a ganacircncia e o instinto de agressatildeo narcisista

intriacutensecos em cada indiviacuteduo (cfr Nussbaum 2010 pp 48-50) E se partimos da hipoacutetese de

que o sucesso destas propagandas narcisistas que arrastam multidotildees ao oacutedio ao genociacutedio e agrave

instrumentalizaccedilatildeo dos ldquooutrosrdquo tidos como da raccedila inferior ou sub-humana ocorre mais em

contextos de pouca capacidade criacutetica ou de uma intelectualidade materialista ou

ldquoventriacuteloquerdquo usando a expressatildeo de Fabien Eboussi Boulaga isto eacute de uma intelectualidade

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corrupta desprovida de princiacutepios eacuteticos e humanistas forccediloso eacute concluir que por mais que a

Europa colonial quisesse apostar num projeto de civilizaccedilatildeo dos africanos natildeo teria condiccedilotildees

efectivas de o fazer ante a sua ganacircncia e arrogacircncia eurocentristas encorajadas por uma

jactacircncia ostensiva feito veneno instalado na veia de muitos europeus cegos pela avidez do

lucro cuja solidificaccedilatildeo se daacute com o asselvajamento dos africanos em geral e dos negros em

particular

Eacute precisamente este instinto egoiacutesta e materialista que transparece na maneira como Ernest

Renan concebe o colonialismo Para ele o colonialismo eacute uma necessidade poliacutetica de

primeira ordem eacute a conquista de um paiacutes de raccedila inferior pela raccedila superior que se instala na

coloacutenia atraveacutes de um governo Trata-se na perspectiva deste autor de algo de extrema

normalidade que nada tem de chocante A colonizaccedilatildeo soacute se torna chocante se e somente se

as conquistas forem entre raccedilas iguais Assim se por um lado estas conquistas devem ser

desencorajadas e censuradas entre raccedilas iguais elas devem ser encorajadas entre as raccedilas

desiguais porque a regeneraccedilatildeo ou degeneraccedilatildeo de raccedilas inferiores pelas raccedilas superiores

deve estar na ordem providencial da humanidade ldquoRegere imperio populosrdquo eis a nossa

vocaccedilatildeo A natureza criou uma raccedila de trabalhadores industriais ndash eacute a raccedila chinesa uma de

jornaleiros agriacutecolas ndash eacute a raccedila negra [hellip] uma raccedila de senhores e de soldados eacute raccedila

europeiardquo Nesta oacuteptica a reduccedilatildeo desta nobre raccedila agrave classe trabalhadora em condiccedilotildees

degradantes como as dos negros e dos chineses gera revolta (cfr Renan 1967 pp 69-70) O

mais perplexo em tudo isso eacute que Renan numa enorme ousadia intelectual natildeo se tenha

inibido do seu instinto de superioridade racial ao defender de forma paradoxal numa obra

intitulada ldquoLa Reacuteforme Intellectuelle et Morale de la Francerdquo a seguinte convicccedilatildeo

noacutes esperamos natildeo a igualdade mas sim a dominaccedilatildeo O paiacutes de raccedila

estrangeira deveraacute voltar a ser um paiacutes de servos de jornaleiros agriacutecolas ou

de trabalhadores industriais Natildeo se trata de suprimir as desigualdades entre

os homens mas de as ampliar e as converter em lei (Renan 1967 p69-70)

Uma visatildeo demasiado materialista e narcisista que mereceu num tom iroacutenico a criacutetica de

Ceacutesaire que qualifica o colono muito distinto muito humanista e muito cristatildeo do seacuteculo XX

como uma autecircntica encarnaccedilatildeo de Hitler Eacute o retrato do colono que traz em si segundo

Ceacutesaire ldquoum Hitler que se ignora que vive nele e que eacute o seu demoacutenio e se o vitupera eacute por

falta de loacutegica ou pelo instinto de afinidade racial pois os factos atestam que o que muitos

deles natildeo perdoam a Hitler natildeo eacute o crime em si nem tatildeo-pouco o crime contra a humanidade

mas o crime contra o homem branco a humilhaccedilatildeo do homem brancordquo Assim natildeo restam

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duacutevidas de que do ponto de vista do seu desenvolvimento socio-histoacuterico a colonizaccedilatildeo eacute

uma suprema barbaacuterie um nazismo pouco expressivo por ser aplicado aos negros e aos aacuterabes

de Aacutefrica Mas na sua essecircncia um tal narcisismo constitui a negaccedilatildeo mais eloquente do

humanismo universal e formal reivindicado por Fanon e ao mesmo tempo uma clara

renuacutencia dos ideais filosoacuteficos morais e cristatildeos de uma civilizaccedilatildeo decaiacuteda (cfr Ceacutesaire

1978 pp 18-19)

Estaacute assim denunciada a patologia de uma civilizaccedilatildeo que fundou a sua filosofia de acccedilatildeo na

estigmatizaccedilatildeo do ldquodiferenterdquo e na fragmentaccedilatildeo do mundo em puro e impuro Eacute a construccedilatildeo

patoloacutegica usando a expressatildeo da Nussbaum de um ldquonoacutesrdquo que se julga imaculado e de um

ldquoelesrdquo preconceitualmente denotado vil perigoso e contagioso Esta denunciada patologia

obriga-nos a retomar algumas das questotildees supra referenciadas tais como eacute possiacutevel pensar a

missatildeo civilizadora da Europa colonial num contexto de clara recusa da alteridade ou de

reconhecimento do africano como sujeito autoacutenomo dotado de razatildeo e de humanidade

Como compreender uma missatildeo civilizadora assente numa loacutegica social do segundo excluiacutedo

isto eacute numa loacutegica social fracturante e nihilista Seraacute que Aacutefrica ao engajar-se na luta pela

descolonizaccedilatildeo teraacute efectivamente recusado o projecto de desenvolvimento que configurava

a missatildeo civilizadora da potecircncia colonial Vamos no proacuteximo ponto tentar encontrar alguns

elementos de resposta a estes questionamentos em certa medida jaacute respondidos

7 A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta uma antiacutetese agrave pretensatildeo colonial da emancipaccedilatildeo

da Aacutefrica dos africanos

A compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta da sociedade ou seja a bipolarizaccedilatildeo social assente no

princiacutepio da desigualdade entre as cidades dos homens isto eacute dos europeus e os bairros

indiacutegenas ou dos selvagens categorias sociais criadas pelo proacuteprio colono contradiz agrave

partida qualquer pretensatildeo colonial de reconhecimento e integraccedilatildeo da Aacutefrica e dos africanos

no universalismo humano (cfr Fanon 1968 p 27 ou 2002 p 453) Aliaacutes a estrutura social

montada pelo colono determinava ldquoa priorirdquo que as relaccedilotildees entre os habitantes dos dois

mundos fossem de exploradores e explorados dominadores e dominados opressores e

oprimidos superiores e inferiores homens e sub-homens Conveacutem no entanto sublinhar que

toda a violecircncia colonial tinha como grande propoacutesito a criaccedilatildeo de um ambiente de medo e

inibiccedilatildeo do colonizado no intuito de facilitar a dinamizaccedilatildeo da exploraccedilatildeo e a pilhagem de

recursos naturais num contexto inovador de mercantilismo que muito precisava do concurso

forccedilado dos proacuteprios indiacutegenas Para dar conta do dinamismo interno de uma tal

compartimentaccedilatildeo maniqueiacutesta Fanon escreve

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em sua zona o colono potildee em marcha o movimento de dominaccedilatildeo de

exploraccedilatildeo e de pilhagem Na outra zona a coisa colonizada oprimida e

espoliada alimenta como pode esse movimento [hellip] as mateacuterias-primas vatildeo

e vecircm legitimando a presenccedila do colono Enquanto o acocorado mais morto

do que vivo o colonizado se eterniza num sonho [hellip] o colono faz histoacuteria

Sua vida eacute uma epopeia uma odisseia (Fanon 1968 p 38 ou 2002 p 463)

Como se pode depreender mais uma vez este maniqueiacutesmo eacute em si mesmo uma antiacutetese de

qualquer projecto civilizador natildeo soacute pelo facto de se constituir num factor provocador de

desprezo e ignomiacutenia dos colonizados mas tambeacutem e sobretudo por ser um factor

desestabilizador suscitador de oacutedio e de violecircncia entre os habitantes das duas zonas Cocircnscio

desta tensatildeo latente e subjacente a esta configuraccedilatildeo geopoliacutetica opressiva o colono interpocircs

como deduz Fanon uma estrutura fronteiriccedila forte e intimidatoacuteria capaz de assegurar a

atmosfera de submissatildeo e de inibiccedilatildeo dos explorados tal como se pode ler

o mundo colonizado eacute um mundo cindido em dois A linha divisoacuteria a

fronteira eacute indicada pelos quarteis e delegacias de poliacutecia Nas coloacutenias o

interlocutor legal e institucional do colonizado o porta-voz do colono e do

regime de opressatildeo eacute o gendarme ou o soldado Nas sociedades capitalistas o

ensino religioso ou leigo a formaccedilatildeo de reflexos morais [hellip] criam em torno

do explorado uma atmosfera de submissatildeo e inibiccedilatildeo que torna

consideravelmente mais leve a tarefa das forccedilas da ordem [hellip] O

intermediaacuterio do poder utiliza uma linguagem de pura violecircncia [hellip] natildeo

torna mais leve a opressatildeo natildeo dissimula a dominaccedilatildeo Exibe-as manifesta-

as com a boa consciecircncia das forccedilas da ordem [hellip] leva a violecircncia agrave casa e

ao ceacuterebro do colonizado (Fanon 1968 p 28 ou Fanon 2002 pp 453-454)

Este e outros cenaacuterios permitem situar a originalidade do instinto colonial no princiacutepio de

diferenciaccedilatildeo ontoloacutegica e social e no de desigualdade econoacutemica entre duas espeacutecies a

branca e a negra ou aacuterabe pois a patologia narcisista de superioridade racial estruturou no

imaginaacuterio individual e colectivo do colonizador a convicccedilatildeo de que ser branco significa ser

superior e consequentemente rico e ser negro ou aacuterabe africano eacute o oposto disto (cfr Fanon

1968 p 29 ou Fanon 2002 p 455) Este maniqueiacutesmo que toma balanccedilo no plano simboacutelico

no qual o branco remete agrave noccedilatildeo do bem do belo e do bom e o negro o seu oposto

desembarca no plano concreto com reflexos inofuscaacuteveis na configuraccedilatildeo geograacutefica da

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estrutura social montada pelo regime colonial A cidade do colono eacute uma cidade vida

enquanto no bairro do colonizado se sobrevive milagrosamente a cidade do colono eacute segura

mas no bairro indiacutegena a inseguranccedila eacute o proacuteprio cartatildeo-de-visita a cidade do colono eacute uma

cidade soacutelida toda de pedra e ferro iluminada asfaltada as ruas limpas lisas sem buracos

mas o bairro indiacutegena eacute o oposto disso Na cidade do colono os habitantes estatildeo

permanentemente saciados e repletos de boas coisas Em contrapartida o bairro indiacutegena ou

negro eacute um lugar mal-afamado e povoado eacute o bairro de homens mal-afamados aiacute nasce-se

natildeo importa como nem onde e morre-se natildeo importa a onde nem de quecirc Eacute um mundo sem

intervalos ou seja os homens estatildeo uns sobre os outros eacute o mundo dos famintos dos

analfabetos e dos doentes e indigentes (cfr Fanon 1968 p 28-29 ou Fanon 2002 pp 453-

454)

O mundo colonial diz Fanon forjou um povo sem alma e sem referecircncia originaacuterias O

colono criou categorias sub-humanas para destruir a autoestima dos negros e dos aacuterabes de

Aacutefrica Fez deles uma espeacutecie de quintessecircncia do mal considerando-os como seres

impermeaacuteveis agrave moral e agrave eacutetica com ausecircncia e negaccedilatildeo de valores mal absoluto elementos

corrosivos que destroem tudo o que se aproxima deles elementos deformadores que

desfiguram tudo o que se refere agrave esteacutetica ou agrave moral depositaacuterios de forccedilas cegas (cfr

Fanon 1968 p 31 ou Fanon 2002 p 456) Esta convicccedilatildeo levou M Meyer a afirmar em

plena Assembleia Nacional Francesa que

[hellip] natildeo era necessaacuterio prostituir a Repuacuteblica fazendo penetrar nela o povo

argelino Os valores com efeito se tornam irreversivelmente envenenados e

pervertidos desde que entram em contacto com a populaccedilatildeo colonizada Os

costumes do colonizado suas tradiccedilotildees [hellip] sobretudo seus mitos satildeo a

proacutepria marca desta indigecircncia desta depravaccedilatildeo constitucional (Fanon

1968 p31 ou Fanon 2002 p 456)

Este discurso forjado no seu espaccedilo existencial levou Ceacutesaire (1978 p17) agrave conclusatildeo de que

a Europa colonial se esmerou antes de mais em descivilizar primeiro o proacuteprio colonizador

embrutececirc-lo degradaacute-lo despertaacute-lo para os instintos ocultos para a cobiccedila para a violecircncia

para o oacutedio racial e para o relativismo moral e posteriormente descivilizar o colonizado

Todo este quadro legitima sobremaneira o anseio dos africanos pela liberdade e pelo

reconhecimento da sua dignidade Para desmascarar o argumento segundo o qual o

engajamento dos africanos na luta pela descolonizaccedilatildeo de Aacutefrica teraacute sido uma espeacutecie de

recusa do desenvolvimento do Continente africano pelos africanos Ceacutesaire passa em revista

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e em jeito de balanccedilo o vasto fresco dos horrores da dominaccedilatildeo colonial em particular a

francesa em Aacutefrica deixando claro que nenhum desenvolvimento vale mais do que a

dignidade humana e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos povos Apoiando

o seu raciociacutenio nos factos Com efeito Ceacutesaire afirma que a equaccedilatildeo mais ajustada agrave

realidade vivida eacute colonizaccedilatildeo igual coisificaccedilatildeo e natildeo desenvolvimento porque no fim de

contas o fiel da balanccedila pende mais para prejuiacutezos do que para ganhos tal como consta do

longo extrato que extraiacutemos do texto de Ceacutesaire

falam-me de progressos de realizaccedilotildees de doenccedilas curadas de niacuteveis de vida

elevados acima de si proacuteprios eu falo de sociedades esvaziadas de si

proacuteprias de culturas espezinhadas de instituiccedilotildees minadas de terras

confiscadas de religiotildees assassinadas de magnificecircncias artiacutesticas

aniquiladas de extraordinaacuterias possibilidades suprimidas Lanccedilam-me agrave cara

factos estatiacutesticas quilometragens de estradas de canais de caminhos-de-

ferro mas eu falo de milhares de homens sacrificados no Congo-Oceano falo

dos que no momento em que escrevo cavam agrave matildeo o porto de Abidjan falo

de milhotildees de homens arrancados aos seus deuses agrave sua terra aos seus

haacutebitos agrave sua vida agrave danccedila agrave sabedoria falo de milhotildees de homens a quem

inculcaram sabiamente o medo o complexo de inferioridade o tremor a

genuflexatildeo o desespero o servilismo Laccedilam-me em cheio aos olhos

toneladas de algodatildeo ou cacau exportado hectares de oliveiras ou de vinha

plantadas mas eu falo de economias naturais de economias harmoniosas e

viaacuteveis de economias adaptadas agrave condiccedilatildeo do homem indiacutegena

desorganizadas de culturas de subsistecircncias destruiacutedas de subalimentaccedilatildeo

instalada de desenvolvimento agriacutecola orientada unicamente para benefiacutecio

das metroacutepoles de rapinas de produtos de rapinas de mateacuterias-primas

Ufanam-se de abusos suprimidos eu tambeacutem falo de abusos mas para dizer

que aos antigos ndash muito reais ndash sobrepuseram outros muito detestaacuteveis

Falam-me de tiranos locais trazidos agrave razatildeo poreacutem constato que regra geral

eles fazem muito boa parelha com os novos e que destes aos antigos e vice-

versa se estabeleceu em detrimento dos povos um circuito de bons serviccedilos

e cumplicidade Falam-me de civilizaccedilatildeo eu falo de proletarizaccedilatildeo e de

mistificaccedilatildeo [hellip] Cada dia que passa cada negaccedilatildeo de justiccedila cada carga

policial cada reclamaccedilatildeo operaacuteria afogada em sangue cada escacircndalo

abafado cada expediccedilatildeo punitiva cada poliacutecia e cada miliciano fazem-nos

sentir o preccedilo das nossas velhas sociedadesrdquo (Ceacutesaire 1978 pp25-26)

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Disso decorre que a essecircncia do colonialismo tal como realccedilou Maacuterio Pinto de Andrade

reside em dois aspectos no ldquoregime de exploraccedilatildeo desenfreada de imensas massas humanas

que encontra a sua legitimidade e sustentabilidade na violecircnciardquo e na ldquoforma moderna de

pilhagemrdquo (cfr Ceacutesaire Aimeacute 1978 p7) Assim se os niacuteveis cientiacuteficos tecnoloacutegicos e

organizacionais ostentados pela Europa colonial lhe conferem a todos os tiacutetulos um estatuto

de uma civilizaccedilatildeo o mesmo jaacute natildeo se daacute do ponto de vista da sua relaccedilatildeo com as coloacutenias

Por esta razatildeo Ceacutesaire chamou-lhe de civilizaccedilatildeo decadente enferma e moacuterbida por se ter

revelado incapaz de resolver os grandes problemas que criou nomeadamente o do

proletariado e o colonial Ouccedilamos Ceacutesaire a respeito

ldquouma civilizaccedilatildeo que se revela incapaz de resolver os problemas que o seu

funcionamento suscita eacute uma civilizaccedilatildeo decadente Uma civilizaccedilatildeo que

prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais eacute uma civilizaccedilatildeo

enferma Uma civilizaccedilatildeo que trapaceia com os seus princiacutepios eacute uma

civilizaccedilatildeo moacuterbidardquo (Ceacutesaire 1978 p13)

Teratildeo Fanon Ceacutesaire Sartre e outros exagerado na sua criacutetica do colonialismo

Possivelmente sim Contudo a larga unanimidade existente sobre o assunto permite-nos

atribuir uma certa objectividade e verdade histoacuterica a muitos dos enunciados que nos satildeo

dados a apreciar Reneacute Grousset (1954 p 76) quase duas deacutecadas antes de Ceacutesaire

analisando o percurso evolutivo das civilizaccedilotildees constatava que nenhuma civilizaccedilatildeo

apareceu logo no iniacutecio tatildeo promissora e tatildeo ameaccedilada como a civilizaccedilatildeo ocidental A sua

ameaccedila em seu entender natildeo vem apenas da espada nuclear vem tambeacutem e sobretudo do

egoiacutesmo e do materialismo que inspiram os povos que a comandam Estaacute portanto evidente

que o regime colonial europeu foi essencialmente uma conquista assente em fins de

exploraccedilatildeo dos indiacutegenas Esta ideia ceacutesairiana de uma Europa exploradora no sentido

accedilambarcador do termo aparece tambeacutem no ldquoLe geacutenociderdquo no qual Jean-Paul Sartre eacute

perentoacuterio em afirmar que a colonizaccedilatildeo natildeo eacute uma mera conquista como foi a anexaccedilatildeo de

Alsace-Lorraine pela Alemanha na sua verdadeira natureza a colonizaccedilatildeo eacute um acto de

genociacutedio cultural Numa ldquodeacutemarcherdquo fenomenoloacutegica Sartre mostra que a colonizaccedilatildeo natildeo

acontece sem a liquidaccedilatildeo sistemaacutetica de todas as caracteriacutesticas particulares de sociedades

nativas e simultaneamente sem a recusa da sua integraccedilatildeo massiva na metroacutepole e sem a

negaccedilatildeo do seu acesso agraves vantagens da metroacutepole

Concordamos assim com Sartre que a colonizaccedilatildeo eacute um sistema de negoacutecio que requer

inevitavelmente a existecircncia de um sub-proletariado nacional forccedilado a trabalhar por

miseraacuteveis salaacuterios Vale dizer que no sistema colonial a coloacutenia teve uma funccedilatildeo

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instrumental ou seja foi usada para vender as suas mateacuterias-primas e seus produtos agriacutecolas

a um preccedilo irrisoacuterio agrave metroacutepole Em retorno a metroacutepole vendeu os bens manufaturados agraves

coloacutenias a preccedilo do mercado Este negoacutecio que contou com a comparticipaccedilatildeo da burguesia

nacional condenou os africanos a viverem num submundo de miseacuteria como negros fantasmas

continuamente recordados da sua condiccedilatildeo de sub-humanos (cfr Sartre 1967 p39)

Estaacute visto que a colonizaccedilatildeo partindo da efiacutegie aqui apresentada eacute um projecto oposto aos

ideais civilizacionais tal como alude Ceacutesaire ao desmistificar a tentativa de atribuir ao

processo de colonizaccedilatildeo uma intenccedilatildeo civilizadora A maldiccedilatildeo mais comum nesta mateacuteria eacute

deixarmo-nos iludir de boa-feacute por uma hipoacutetese colectiva e haacutebil em enunciar mal os

problemas para melhor justificar as soluccedilotildees que se lhes aplicam conferindo facilmente

legitimidade a um conjunto de praacuteticas abominaacuteveis atribuindo-lhes a categoria de um mal

necessaacuterio com vista a um fim nobre ndash a civilizaccedilatildeo dos selvagens (Ceacutesaire 1978 p14)

Conclusatildeo

A reflexatildeo feita nas paacuteginas anteriores permitiu-nos deduzir a existecircncia de uma possiacutevel

analogia entre a colonizaccedilatildeo e a civilizaccedilatildeo do ponto de vista teoacuterico conceitual Mas do

ponto de vista praacutetico tudo natildeo passou de uma simples ilusatildeo Uma ilusatildeo cimentada pela

foacutermula do pedantismo cristatildeo que procurou atribuir uma presumiacutevel missatildeo civilizadora ao

fenoacutemeno de colonizaccedilatildeo ao estabelecer a equaccedilatildeo cristianismo igual a civilizaccedilatildeo e

paganismo igual a selvajaria A anaacutelise mostrou que do ponto de vista doutrinal e factual

uma tal equaccedilatildeo eacute insustentaacutevel porquanto a colonizaccedilatildeo se assumiu mais como violecircncia

contra os povos colonizados e exploraccedilatildeo dos seus recursos naturais e da sua forccedila de trabalho

e nunca como projecto colonial de emancipaccedilatildeo dos povos colonizados Esta conclusatildeo pode

ter sido previsiacutevel mas como foi referido no princiacutepio deste trabalho esta anaacutelise sobre o

colonialismo encontra a sua utilidade neste texto na medida em que se nos apresenta como

movimento historicizante que constitui a mateacuteria e a forma que nos permitem vislumbrar o

horizonte teleoloacutegico da descolonizaccedilatildeo enquanto proposta de emergecircncia do novo nova

realidade novos seres e novo continente uma espeacutecie de antiacutetese do mundo colonial

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Obras do autor

1 FANON Frantz Frantz Fanon Ouevres Paris Eacuteditions La Deacutecouverte 2011

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L de Melo 1968

Outras obras

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2 BURAWOY Michael Marxismo encontra Bourdieu Campinas Editora Unicamp 2010

3 CABRAL Iva A Primeira Elite Colonial Atlacircntica Dos ldquohomens honrados broncosrdquo de Santiago agrave

ldquonobreza da terrardquo Finais do seacutec XV ndash iniacutecio do seacutec XVII Cabo Verde Pedro Cardoso Livraria 2015

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politique franccedilaise Paris Eacuteditions de la Deacutecouverte 2008

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Nicolas Blanchard Pascal Verges Franccediloise La Republique colonial Paris Albin Michel Coll Pluriel 2003

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4 OLUacuteFEacuteMI Taacuteiwo (2004) ldquoPost-Independence African Political Philosophyrdquo In Kwasi Wiredu A

Companion to African Philosophy Cornwall MPG Books Ltd Bodmim 2004 pp 243-260

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PEDAGOGIA laquoO QUE Eacute APRENDERraquo E COM QUEM APRENDER NUMA EDUCACcedilAtildeO

LIBERAL EM AacuteFRICA

INAacuteCIO VALENTIM a

inaciovalentim82gmailcom

Resumo

Nada eacute tatildeo enobrecedor como ensinar e aprender A nobreza reside na consciecircncia estaacute no

encontro com o outro estaacute na disponibilidade que eacute criada para si e para o outro e estaacute

sobretudo no comprometimento que se tem consigo mesmo e com o outro O outro como o

rosto como memoacuteria e como um ldquooutro eurdquo Isto eacute o que ensinar e aprender nos oferece e nos

sugere Ter a noccedilatildeo de que todo o acto de ensinar eacute essencialmente um processo de aprender

de aprendizagem e de dar a possibilidade de interrogar-se sobre o aprendido e sobre

aprendizagem O objectivo deste artigo eacute de reflectir sobre a hermenecircutica do aprender o que

chamamos aprender e como acontece

Palavras-chave aprender comprometimento inacessibilidade responsabilidade fazer e

ensinar

Abstract

Nothing is so ennobling as teaching and learning The nobility lies in its consciousness is in

the encounter with the other it is in the availability that is created for itself and to the other

and itrsquos mainly in the compromise that it has with oneself and with the other The other as the

face as memory and as other selfrdquo This is what teaching and learning offers and suggests to

us Have the notion that the whole act of teaching is essentially a process of learning learning

and giving the possibility to question them about the learned and about learning The aim of

this article is to reflect on the hermeneutics of learning what we learn and how it happens

Keywords learning commitment inaccessibility responsibility doing and teaching

a Doutor em Filosofia pela Universidade Carlos III de Madrid Professor e Investigador Titular Director Geral do

Instituto Superior Politeacutecnico Sol Nascente Huambo - Angola wwwispsnorg

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O termo laquoaprenderraquo oferece agrave primeira vista com uma leitura muito atenta uma ideia muito

escorregadia apresenta algo de inacessibilidade algo que nos passa entre os dedos como

aacutegua como liacutequido como vento como espiacuterito Enfim como algo que natildeo nos eacute dado

aprisionar fiacutesica e mentalmente No entanto acreditamos que aprendemos e acreditamos que

podemos fazer com que outras pessoas aprendam connosco ou atraveacutes de noacutes e natildeo hesitamos

muitas vezes em oferecer-nos como instrumento de aprendizagem para os outros Apesar de

ser um termo muito duro no sentido de responsabilidade esta responsabilidade acaba por estar

ou ficar diluiacuteda na confusatildeo entre o aprender e o fazer entre o aprender e o ensinar entre o

aprender e o saber porque confundimos ou fundimos as duas perspectivas antecipando

precisamente o acto do segundo que eacute dirigido ou orientado para o aprendiz Enquanto

mecanismo que conduz agrave aquisiccedilatildeo do saber a aprendizagem ldquoopotildee-se ao ensinamento ou ao

ensino cujo objectivo eacute de dispensar conhecimentos e saberesrdquo Mas esta oposiccedilatildeo natildeo eacute de

ruptura porque natildeo pode haver aprendizagem senatildeo por intermeacutedio do ensino ou de quem

ensina

O aprender-se bem eacute reflectido sobretudo a partir da acccedilatildeo enquanto resultado e resposta do

aprender natildeo obstante enquanto fenoacutemeno o aprender eacute um acto de natureza invisiacutevel e

quase que inapreensiacutevel e intocaacutevel A sua visibilidade soacute eacute passiacutevel para o proacuteprio sujeito

isto eacute para o aprendiz ou no aprendiz Dificilmente eu como promotor ou enquanto promotor

de aprendizagem posso dizer com exactidatildeo o momento da captaccedilatildeo do sujeito do elemento

aprendido posso supor atraveacutes de perguntas que faccedilo ou que tenho que responder dele mas

apenas eacute uma suposiccedilatildeo Eacute pois esta complexidade que vai tambeacutem fazer com que o acto de

aprender seja acima de tudo um acto divino um momento ou uma instacircncia do natildeo humano

Soacute aquele que diviniza-se chega a aprender consegue aprender e supera com isso a primeira

instacircncia do humano E divinizar-se significaria ter um autocontrolo sobre os impulsos do

saber os impulsos desenfreados do desejo de aprender e de assumir-se como o promotor de

aprendizagem Mas este processo soacute eacute possiacutevel com um povo ou com gente que agrave partida natildeo

rejeita preliminarmente a filosofia soacute eacute possiacutevel com gente que natildeo eacute dirigida e que natildeo eacute

paciente dos meacutedicos do povo como diria Nietzsche O aprender filosoacutefico apenas acontece

com e para gente satilde os ldquoenfermos que se contactam com a filosofia ficam ainda mais

enfermosrdquo porque de certa forma a filosofia soacute pode salvar e curar quem jaacute estaacute curado

quem reuacutene requisitos para a cura E foi assim que os gregos conseguiram fazer da filosofia a

sua proacutepria casa o seu mundo o seu lugar apesar de a filosofia vir de outros lugares virou a

casa dos gregos tornou-se ou transformou-se no elemento da definiccedilatildeo essencialmente grego

Os gregos souberam pegar naquilo que os outros povos abandonaram e fizeram dele o mais

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alto elemento do saber precisamente porque souberam utilizar laquoa arte de aprender

produtivamenteraquo utilizando para este efeito os seus saacutebios Contrariamente aos outros povos

que laquotecircm santos os gregos tecircm saacutebiosraquo diz Nietzsche e satildeo estes saacutebios que vatildeo fazer com

que a filosofia tenha um sentido profundo e original para o grego justificando assim a sua

aposta a sua protecccedilatildeo e a utilidade da sua futilidade

Apesar dos gregos terem podido trazer a filosofia das outras paradas orientais como diz

Nietzsche natildeo tiveram nenhuma moda que lhes pudesse ajudar ou facilitar as coisas Tiveram

que inventar a sua proacutepria imaginaccedilatildeo tiveram que filosofar com laquouma puberdade madura

onde brotava a fogosa alegria de uma vitoriosa e valente idade viril1raquo Em outras palavras

tiveram que superar a idade da infacircncia humana a infacircncia social e tiveram que se fazer

responsaacuteveis Esta eacute tambeacutem uma das condiccedilotildees de aprendizagem ou do aprender fazer-se

responsaacutevel emancipar-se e dar conta de si e dos outros laquopois quanto mais fazemos sobre as

coisas mais pensamos sobre elas ou mais desenvolvemos pensamentos sobre elasraquo O nosso

aprender estaacute relacionado com um espaccedilo concreto com um lugar com uma referecircncia com

um encontro-chegada-regresso No fundo o nosso aprender estaacute relacionado com uma histoacuteria

concreta ou com uma meta-histoacuteria estaacute relacionado com um padratildeo que nos vai dizer que as

condiccedilotildees para aprender exigem abc A tarefa de aprender natildeo eacute compatiacutevel com o tempo

apressado com o tempo que se assimila ao material O aprender eacute como ler um livro que estaacute

destinado a

[hellip] leitores tranquilos a homens que ainda natildeo foram arrastados pela vertiginosa pressa

da nossa agitada era e que ainda natildeo sentem o prazer idolatra quando olham para baixo das

sua rodas [hellip] quer dizer Haacute poucos homens Estes ainda natildeo estatildeo habituados a

estabelecer o valor de cada coisa segundo a poupanccedila ou os gastos do tempo estes laquoainda

tecircm temporaquo ainda lhes eacute permitido sem culpar-se de nada seleccionar e reunir as melhores

horas da jornada e os seus momentos mais fecundos e vigorosos para reflectir sobre o

futuro da nossa educaccedilatildeo estes podem ter a certeza que chegaram agrave noite de uma forma

proveitosa e digna a saber na meditation generis futuri (meditaccedilatildeo sobre o geacutenero futuro)

Um homem assim ainda natildeo se esqueceu de pensar enquanto lecirc ainda compreende o

segredo de ler entre linhas mais ainda eacute de uma natureza tatildeo prodigiosa que reflecte sobre

o lido talvez muito tempo depois de ter deixado o livro E sem duacutevidas natildeo para escrever

uma resenha ou outro livro mas simplesmente para reflectir2

O aprender seria portanto um viver sem pressa um estar sem pressa um existir sem pressa

Um ser no desconhecimento Mas sabemos que isso natildeo eacute possiacutevel Natildeo eacute possiacutevel saber sem

1Cf Friedrich Nietzsche Obras completas Vol 1 Filosofiacutea en la Eacutepoca Traacutegica de los Griegos Trad e introduc

Joan B et alt Tecnos Madrid 2011 p 574 2 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 549

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ser conotado natildeo eacute possiacutevel saber sem ser procurado natildeo eacute possiacutevel saber sem falar do que se

sabe natildeo eacute possiacutevel saber sem comunicar o sabido Mas dizemos que natildeo eacute possiacutevel e na

verdade eacute possiacutevel porque natildeo estamos a falar da mesma coisa saber natildeo eacute aprender Satildeo

duas coisas completamente distintas mas apesar de tudo uma coisa tecircm em comum a fuga da

fanfarronice e o desejo desenfreado de confrontaccedilatildeo A atestaccedilatildeo do aprendido a examinaccedilatildeo

do sabido Tecircm em comum aquilo que falta ao homem moderno o excesso de si a auto-

referecircncia desmedida O aprender conduz-nos ao desejo de estar tatildeo bem formados a tal ponto

de natildeo pensarmos mais em noacutes mesmos ou na nossa formaccedilatildeo e ateacute ao ponto de desprezarmos

a nossa proacutepria formaccedilatildeo Contrariamente ao homem moderno diz Nietzsche haacute que evitar

fazer de noacutes mesmos uma espeacutecie de homo mesura precisamente porque natildeo somos criteacuterio

seguro de nada natildeo somos criteacuterio seguro do absoluto Aqui o aprender deixa de ser um

criteacuterio e passa a ser uma meta e a meta aqui eacute que aquele que estaacute aprender se entregue

completamente com laquoa maacutexima confianccedila agrave tutela do autor de quem apenas pode falar a partir

da sua proacutepria ignoracircncia e da consciecircncia da ignoracircnciaraquo O aprendiz eacute aquele de quem

Nietzsche faz este tremendo apelo porque eacute nele que ele acredita

[hellip] Deixai-vos encontrar voacutes os isolados em cuja existecircncia acredito Voacutes

os altruiacutestas voacutes que padeceis em voacutes mesmos as dores e as perversotildees do

espiacuterito (hellip) Voacutes os contemplativos cujo olhar natildeo palpa com pressurosa

suspeita o externo das coisas mas sim sabe encontrar a entrada ao nuacutecleo da

essecircncia Eu vos convoco apenas para esta vez natildeo vos escondais nas

cavernas do vosso retiro e da vossa desconfianccedila Sejam quando menos

leitores deste livro para mais em frente com os vossos feitos acabar com ele

e deixa-lo no esquecimento Compreendeis que este livro estaacute destinado a ser

o vosso pronuacutencio quando voacutes mesmos com as vossas armas vos apresenteis

na palestra [hellip]3

Ao seu modo Nietzsche apresenta aqui a figura do aprendiz o docente o estudante e todos os

inquietos de espiacuterito como aqueles que satildeo isolados que satildeo altruiacutestas e que padecem das

dores da perversatildeo do espiacuterito O acto de aprender eacute incompatiacutevel com o tremendo de

confusatildeo eacute incompatiacutevel com o egoiacutesmo e com o egocentrismo e eacute incompatiacutevel com o

regradamente certo O aprender exige ruptura porque supotildee adaptaccedilatildeo a uma nova era a uma

nova realidade exige encontrar o outro dentro e fora de mim e exige um prestar atenccedilatildeo a

mim mesmo que natildeo seja necessariamente um narcisismo O aprender exige que sejamos uns

3 Cf Opus cit Pensamientos sobre el Futuro de nuestras Instituciones Educativas p 550

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contemplativos sem pressa de conhecer e de chegar sem pressa de afirmar ou de concluir

apenas se espera que sejamos contemplativos que admiram para melhor conhecer e trazer a

utilidade profunda mas sombria que estaacute aprisionada nas cavernas das nossas pressas O

aprender exige que a nossa contemplaccedilatildeo nos conduza ao encontro da essecircncia daquilo que

deve ser objecto do aprender Por isso cada vez que noacutes que estamos no eterno caminho de

aprender nos confrontamos com um livro com uma obra temos a possibilidade de sair dos

nossos retiros contraditoacuterios das nossas cavernas e das nossas desconfianccedilas Temos a

possibilidade de dar a conhecer a nossa opiniatildeo eacute o nosso pronuacutencio na palestra que pode

naturalmente chocar com os dois modelos do aprender propostos pela cultura educativa

moderna a saber

Por um lado a educaccedilatildeo como o espaccedilo da proposta do aprender deve ser extensiacutevel a todo o

territoacuterio por outro o laquoimpulso de reduccedilatildeo e debilitamento do mesmoraquo Desde muito cedo

quando a educaccedilatildeo comeccedilou a ser vista como um elo importante o homem apesar de alguns

constrangimentos sempre soube que seria de muito mais valia que ela fosse extensiacutevel para

todo o territoacuterio independentemente das questotildees poliacuteticas culturais econoacutemicas e religiosas

Natildeo obstante a sua extensatildeo sempre dependeraacute da vontade do Estado da disponibilidade do

Estado enfim da autorizaccedilatildeo do Estado Os gregos que fazem parte dos povos que pensaram

a educaccedilatildeo depois dos egiacutepcios e dos feniacutecios assumiram a inseparabilidade destes dois

momentos a educaccedilatildeo que deve chegar a todo o territoacuterio e a educaccedilatildeo que para ser educaccedilatildeo

tem que ser controlada pelo Estado A educaccedilatildeo deve ser controlada pelo Estado mas natildeo

necessariamente executada pelo Estado Em A Poliacutetica Aristoacuteteles foi muito bem claro em

dizer que a tarefa de educaccedilatildeo se bem eacute da comunidade natildeo obstante compete em primeiro

lugar ao Estado e soacute na impossibilidade deste de cobrir todas as partes eacute que o particular

assume tambeacutem ele a tarefa de educar Educar e por conseguinte o aprender desde este

ponto de vista nasce com um problema eacute um problema natildeo apenas no sentido de delegaccedilatildeo

de autorizaccedilatildeo mas tambeacutem no sentido da proacutepria autodestruiccedilatildeo Quem aprende destroacutei-se e

autodestroacutei-se na medida em que vai pondo de lado ou vai equacionando os fundamentos do

conhecimento anterior agrave sua formaccedilatildeo agrave sua educaccedilatildeo Como diz Fullat citado por Carlos

Francisco de Sousa Reis ldquoO acto educador especificamente humano eacute no seu nuacutecleo e fonte

entitativa confrontaccedilatildeo de duas consciecircncias confrontaccedilatildeo constitutivamente violenta4rdquo Para

Carlos Francisco Fullat procura aqui justificar a partir dos modelos de habilidades emperia a

forma como a educaccedilatildeo pode apresentar-se como acto educativo violento ou simplesmente

4Cf Carlos Francisco de Sousa Reis Educaccedilatildeo e cultura mediaacutetica Anaacutelise de implicaccedilotildees deseducativas

Acircncora editora Lisboa 2014 p 45

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como condiccedilatildeo da violecircncia Fullat segundo o nosso autor para encontrar os fundamentos da

educaccedilatildeo como condiccedilatildeo de violecircncia analisa inicialmente o surgimento ontoloacutegico da

civilizaccedilatildeo a partir de trecircs perspectivas a perpectiva do animal faber a perspectiva do animal

symbolicum e a perspectiva do animal sociale A partir destas trecircs perspectivas ele conclui

que a violecircncia eacute constitutiva de todos os actos educativos O ponto de partida da educaccedilatildeo eacute

visto portanto para Fullat desde uma perspectiva negativa desde uma antropologia negativa e

desde uma possibilidade eacutetica negativa Natildeo pode haver uma educaccedilatildeo que natildeo seja sobretudo

uma acccedilatildeo que arraste a negatividade consigo mesma Isto eacute uma acccedilatildeo que procura desfazer-

se do estado da ignoracircncia anterior O estado ou acccedilatildeo educativa eacute uma acccedilatildeo de

ldquodeplacementrdquo para um novo siacutetio um novo mundo uma nova aventura

As leituras ou melhor os textos utilizados por Fullat como exemplos patenteiam

naturalmente esta negatividade na relaccedilatildeo educativa Eacute o caso da visatildeo hobbesiana freudiana

e de Sartre das relaccedilotildees humanas que satildeo muitas vezes relaccedilotildees de poder da negatividade

isto eacute onde a manutenccedilatildeo do poder implica a perda do outro ou do espaccedilo do outro Nestes

autores destacam-se duas perspectivas inconciliaacuteveis ldquoo egoiacutesmo de ter e o sadismo de

dominarrdquo A educaccedilatildeo eacute vista como uma necessidade desenfreada de ter e ter sempre e cada

vez mais ao mesmo tempo que este desejo incontrolado eacute tambeacutem alimentado com a outra

necessidade de dominar e controlar tudo a todo custo Estas duas febres como lhe chama

Fullat resultam de uma eacutetica hedoniacutestica onde no campo hobbesiano o prazer eacute sinoacutenimo da

dominaccedilatildeo ldquoToda a eacutetica de Hobbes depende do seu pressuposto fundamental a inclinaccedilatildeo

geral da Humanidade para um desejo perpeacutetuo e sem descanso de adquirir poder e mais poder

desejo esse que soacute termina com a morte O ser humano eacute egoiacutesta (hellip) e a fim de poder estar

preparado para alcanccedilar o que deseja tem de procurar aumentar sempre cada vez mais o seu

poder5rdquo Natildeo poderia ter havido civilizaccedilatildeo se natildeo houvesse uma agressividade natural diria

Fullat de Francisco de Sousa O que noacutes consideramos como civilizaccedilatildeo teria sido aquilo que

pensadores como Hobbes ou Rousseau teriam visto como um princiacutepio do pacto natildeo pacto o

pacto simulado no caso de Rousseau A civilizaccedilatildeo nasce a partir da distorccedilatildeo de uma

realidade anterior e para permanecer deve tambeacutem continuar a distorcer esta mesma realidade

para poder construir um poder de dominaccedilatildeo e do egoiacutesmo Neste acircmbito a educaccedilatildeo aparece

como o aparelho protector do Estado manipulador e violento que utiliza as ideologias como a

praccedila da fecundaccedilatildeo das suas manipulaccedilotildees E porque o homem procura sobretudo ser feliz

diz Aristoacuteteles entatildeo muitas vezes natildeo escolhe os meios para ser feliz isto eacute natildeo estaacute

5 Cf Marques 2000 120 Apud Carlos Francisco de Sousa 2014 46

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disposto a abdicar de alguns meios que podem ser uacuteteis para a sua felicidade Eacute o caso da

felicidade pelo trabalho diraacute Francisco de Sousa mas o trabalho exerce uma forccedila contraacuteria

sobre a natureza e eacute o caso da educaccedilatildeo onde no educar

ldquoO homem exige a educaccedilatildeo mas esta implica a violecircncia da programaccedilatildeo

geneacutetica e da programaccedilatildeo social Educar eacute uma luta de consciecircncias em que

o educador sempre investe sobre o educando desde a cultura que se alimenta

da repressatildeo social imposta a Eros (o prazer) e Thanatos (a agressividade)6rdquo

Se bem podemos ver as teorias pessimistas como um exagero da negaccedilatildeo humana no sentido

do encontro pleno ainda assim nesta possiacutevel negaccedilatildeo do encontro pleno entre os humanos

nasce a possibilidade da vida do outro isto eacute o mesmo ldquosujeito que pode trazer a morte do

outro tambeacutem traz a sua vidardquo no embate do encontro entre os diferentes haacute sempre uma

possibilidade da nova vida de um novo existir e a educaccedilatildeo eacute precisamente tudo isso o

encontro dos diferentes que tem como fim ajudar a criar uma nova vida fazer nascer uma

nova existecircncia uma nova oportunidade Porque segundo autores como Fullat diz Francisco

de Sousa natildeo se pode falar de educaccedilatildeo laacute onde natildeo haacute consciecircncia Apenas haacute educaccedilatildeo

porque haacute consciecircncia porque existe consciecircncia porque haacute dois encontros e porque apesar

do embate entre os dois nenhuma delas deixa perder a outra natildeo eacute um encontro ou um

embate para desgarrar o outro antes pelo contraacuterio este embate eacute feito para estabelecer o

outro no outro sem fazer desaparecer a alteridade Mas isso soacute eacute possiacutevel justamente porque

no lugar da violecircncia que poderia ter conduzido a uma ldquorobotizaccedilatildeordquo foi introduzido o factor

de cuidado diz Carlos Francisco de Sousa Eacute portanto o cuidado que vai fazer com que haja

um encontro entre as duas consciecircncias Como diz Hegel de Morin (2005 105 Apud Carlos

Francisco de Sousa 2014 49) ldquoa consciecircncia de si soacute atinge a sua satisfaccedilatildeo numa outra

consciecircncia de sirdquo Dito de outra forma em palavras de Fullat de Carlos Francisco de Sousa

ldquosoacute depois da descoberta do eu pelo enfrentamento do tu se daacute a verdadeira relaccedilatildeo

educativardquo Portanto natildeo pode haver educaccedilatildeo na ausecircncia do outro natildeo pode haver

educaccedilatildeo na ausecircncia do interlocutor e do intermediaacuterio e natildeo pode haver educaccedilatildeo na

ausecircncia de uma situaccedilatildeo educativa

A fase educativa eacute acompanhada pelo decliacutenio paulatino de amestramento porque supotildee a

chegada da consciecircncia supotildee a responsabilidade pela capacidade de escolher e de decidir

supotildee a autenticidade do SIM e do NAtildeO supotildee uma certa comunicaccedilatildeo de intimidade no

6 Cf Francisco de Sousa cit

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dizer de Jaspers de Carlos Francisco de Sousa O sim e o natildeo do educando jaacute tem um patamar

um pouco mais alto que o sim e o natildeo daquele que estaacute na fase de amestramento A pugna jaacute

tem um caraacutecter mais real a dor eacute mais audiacutevel porque eacute vivida e sentida por aquele que tem

capacidade fiacutesica de desforrar violecircncia sobre o seu mestre sobre o seu guia ou sobre aquele

que lhe dirige Eacute diferente da dor da infacircncia que eacute vivida por e pela compaixatildeo do outro no

outro Os pais e os parentes proacuteximos podem responder pela dor da crianccedila enferma levando-a

ao meacutedico ou ao especialista Sozinha natildeo poderia fazecirc-lo eacute por isso que dizemos que a dor

da infacircncia eacute uma dor de solidariedade compassiva isto eacute precisa de um terceiro para ser

actualizada ou minimizada A do adulto tambeacutem pode precisar mas com muito menos

coerccedilatildeo que a da crianccedila ou a do adulto-crianccedila Esta simbologia tambeacutem pode ser aplicada agrave

relaccedilatildeo do educador e do educando que estatildeo quase sempre inicialmente em perspectivas

diferentes em dizibilidades diferentes talvez por isso autores como Fullat falam do caraacutecter

agoacutenico da educaccedilatildeo ou da educabilidade Assumem que natildeo eacute possiacutevel educar sem existecircncia

de um processo agoacutenico porque haacute encontro de dois tipos de saberes que podem ser

completamente diferentes sobre o mesmo saber ou sobre o mesmo tema O saber daquele que

ensina e o saber sobre o saber daquele que vai aprender ou que estaacute para aprender satildeo coisas

completamente diferentes passando ou acontecendo no mesmo espaccedilo A aprendizagem da

educabilidade exige sempre uma proposta e um tempo de adaptaccedilatildeo retroactivo para garantir a

apropriaccedilatildeo do processo da aprendizagem isto eacute para garantir o processo da refinaccedilatildeo do

conhecimento em outras palavras para atingir a compreensatildeo Esta etapa da compreensatildeo eacute

feita de uma transiccedilatildeo a outra isto eacute passamos de uma ldquocivilizaccedilatildeo de resposta a uma

civilizaccedilatildeo de perguntasrdquo porque o tempo de respostas definitivas morreu

O aprender com profundidade exige que natildeo nos contentemos apenas com as pequenas

resoluccedilotildees como diz Andreacute Giordan mas que consigamos apoderar-nos dos enunciados para

debatecirc-los e com eles transformar a relaccedilatildeo do saber atraveacutes de argumentos e contra-

argumentos Quem aprende eacute obrigado a ter argumentos insiste Giordan Quem aprende lanccedila

duras inquisiccedilotildees sobre o processo eacute um constante inquieto

laquoDe que estamos exactamente a falar O que queremos mostrar Estou

convicto de que o que estou a dizer eacute verdade eis porquecircraquo Ele descobre o

que eacute uma demostraccedilatildeo os argumentos que eacute necessaacuterio accionar para

convencer a importacircncia do raciociacutenio e o sentido preciso das palavras No

fim do ensino secundaacuterio aqueles que aprendem nem sempre tecircm

consciecircncia que uma hipoacutetese na matemaacutetica (onde ela eacute um dogma que natildeo

podemos transgredir) natildeo tem o mesmo estatuto que no resto das ciecircncias

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onde ela natildeo eacute senatildeo uma explicaccedilatildeo entre outras explicaccedilatildeo que adoptamos

e adaptamos durante o tempo em que procuramos meios para a corroborar ou

informar Controlar a polissemia de um tal vocabulaacuterio evita muitas

confusotildees7

Quem aprende predispotildee-se a ser bravado e podado predispotildee-se a ser limitado ao mesmo

tempo que rompe a proacutepria limitaccedilatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo da teacutecnica e de habilidades

predispotildee-se a demostrar que apesar das limitaccedilotildees ainda assim pode criar pode inventar e

pode inovar saindo precisamente do seu campo de conforto Qualquer investigaccedilatildeo mesmo

sendo apenas inicial tem como fim tirar-nos do nosso campo do conforto tem que como

objectivo tirar-nos da nossa aldeia e conduzir-nos para a cidade onde corremos o risco de nos

perder implica actualizar o nosso preconceito em relaccedilatildeo a algo implica questionar as

evidecircncias laquoQuanto mais aquele que aprende reflecte sobre o tratamento de uma tarefa mais

ele referencia e repara nos erros nos limites e nos disfuncionamentos Ele torna-se

rapidamente capaz de analisar os acontecimentos em curso e explicitar a estrateacutegia utilizada e

a sua pertinecircncia Comeccedila a emergir uma eficaacutecia oacuteptima8raquo A compreensatildeo e a preensatildeo do

conhecimento natildeo nos deixa indiferentes faz de noacutes outro laquooutroraquo outra realidade que apesar

da existecircncia autoacutenoma assume que soacute pode existir se tiver possibilidade de se comparar com

as outras e se puder ser referenciada Eacute por isso que o nosso modelo de aprender tem que

acompanhar se possiacutevel o enquadramento das concepccedilotildees e tem que actualizar os conceitos

a sua marginalidade e o seu centrismo Pois haacute que ter em conta que ningueacutem aprende sem

antes fazer um trabalho profundo sobre as suas proacuteprias concepccedilotildees (diz Andreacute Giordan) e

sobre as concepccedilotildees dos outros onde ele se apresenta como porta-voz ou como mediador Eacute

por isso que em algumas situaccedilotildees vemos que eacute muito complicado ser porta-voz ou mediador

educativo porque vamos tentar transmitir algo que estaacute fora da nossa dizibilidade cultural

fora do nosso quadro referencial fora do nosso imaginaacuterio cultural Natildeo posso explicar o

rigor do Inverno se natildeo tenho experiencia do Inverno rigoroso porque natildeo disponho dos

dados fortemente caracteriacutesticos do Inverno

A minha explicaccedilatildeo deve superar a mera imagem informativa ou elucidativa da realidade A

minha informaccedilatildeo deve ser a mais real possiacutevel A imagem natildeo eacute a minha realidade eacute a

realidade daquela realidade eacute a realidade da fotografia tirada por mim ou por algueacutem Aqui a

fotografia tem mais ou menos a mesma funccedilatildeo que o vocabulaacuterio que estaacute como a porta de

entrada para a compreensatildeo oral pode ajudar ou pode complicar a compreensatildeo atraveacutes de

7 Cf Andreacute Giordan Aprender Editora Horizontes Pedagoacutegicos Lisboa 2007 p 162

8 Cf Idem

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uma falsa intermediaccedilatildeo de essecircncia da acccedilatildeo cultural A palavra vai ter um peso muito

importante nesta transiccedilatildeo porque pode permitir que cheguemos ou que fiquemos pelo

caminho pode manipular duplamente os conceitos A palavra usada na transmissatildeo deve ser

suficientemente aberta para permitir ao aluno viver a sua liberdade na hora da escolha deve

sentir-se familiarizado com o tema que quer escolher ou que quer trabalhar A obtusidade da

palavra pode tambeacutem ser um factor muito importante natildeo apenas na apreensatildeo dos conteuacutedos

mas tambeacutem na proacutepria escolha dos conteuacutedos por afinidade por gosto por paixatildeo ou ateacute por

curiosidade Quer o docente e quer discente tecircm que saber que este processo natildeo cabe num

frasco de linearidade Haacute muacuteltiplas facetas de ensinar e muacuteltiplas facetas de aprender Mas

entre ambas haacute uma faceta que eacute transversal que eacute desejaacutevel que seja transversal eacute a faceta

do ensinar honesto ou com a honestidade a de aprender honesto ou com a honestidade a de

que cada um tem que ser aquilo que eacute para dar e receber

Esta honestidade eacute muito importante para ajudar a fazer com que quer o educador quer o

educando caminhem para um espaccedilo da educaccedilatildeo liberal ldquoA educaccedilatildeo liberal eacute uma

educaccedilatildeo na cultura e para cultura9rdquo diz Leo Strauss o ldquoproduto terminado de uma educaccedilatildeo

liberal eacute um ser humano cultivadordquo insiste Strauss Uma educaccedilatildeo na cultura e para cultura

que nos conduza agrave formaccedilatildeo de um ser humano cultivado soacute pode ser feita inicialmente com

um fundamento muito forte da honestidade do cuidado e de autocuidado Strauss vai buscar a

explicaccedilatildeo do termo cultura a partir da sua origem latina (cultura) que se refere em primeiro

lugar agrave agricultura diz ele e no seu sentido derivado e actual (insiste ele) quer dizer ou

refere-se ao cultivo da mente Ora insiste o nosso autor assim como a terra precisa de

lavradores a mente precisa de mestres mas estes mestres soacute podem ser mestres ou

reconhecidos como mestres porque para aleacutem da sua periacutecia satildeo acima de tudo honestos

iacutentegros rectos e raros Eacute por isso que eacute mais faacutecil encontrar agricultores do que os mestres

diz Strauss sobretudo os mestres que natildeo satildeo disciacutepulos isto eacute os livros os grandes livros

No acircmbito da educaccedilatildeo liberal o estudante natildeo pode portanto estar separado dos livros dos

grandes livros e porque natildeo pode estar separado dos livros ele vai adonar-se deles e vai criar

condiccedilotildees para poder ajudar os outros estudantes menos experimentados remata Strauss

Tudo isso eacute um processo de honestidade Dedicar-se a estudar com profundidade as grandes

obras os grandes livros que muitas vezes dizem coisas completamente desconcertantes com a

sua eacutepoca o seu espaccedilo ou o seu meio cultural poliacutetico ou religioso Eacute por isso que a

educaccedilatildeo liberal natildeo pode ser entendida como um simples doutrinamento10 Eu natildeo posso

9 Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Katz editores Buenos Aires 2007 p 13

10 Cf Cit p 14

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pretender ou achar que estou a educar simplesmente porque estou a ideologizar as pessoas as

crianccedilas os jovens etc vou educar se crio cultura e se transformo as pessoas em cultura e na

cultura verdadeiramente adquirida com a honestidade

Strauss abre a possibilidade para que o termo cultura tambeacutem seja discutida porque cada

regiatildeo de planeta tem a sua proacutepria cultura Noacutes temos a nossa cultura enquanto africanos e

dentro do africano tambeacutem haacute vaacuterias culturas e subculturas (mesmo sabendo que um

socioacutelogo apressado emitiria imediatamente a sua reclamaccedilatildeo sobre subculturas11) O ideal na

educaccedilatildeo liberal eacute que a cultura natildeo seja uma pequena janela que natildeo seja apenas um

singulare tantum diz Strauss mas que seja e que procure ser utilizada no plural que aceite e

assuma o sentido relativo que lhe permite ser discutida Com a excepccedilatildeo dos loucos todos

somos seres de cultura insiste Strauss apesar da maacute compreensatildeo e da maacute interpretaccedilatildeo que

isso causa agraves vezes Natildeo obstante as maacutes interpretaccedilotildees e as maacutes compreensotildees fazem parte

do preccedilo que uma educaccedilatildeo liberal tem que pagar e tem que correr A educaccedilatildeo democraacutetica eacute

um preccedilo caro no acircmbito da educaccedilatildeo liberal natildeo apenas para o acircmbito acadeacutemico mas

sobretudo para o acircmbito poliacutetico onde o poliacutetico tem que justificar e merecer o voto dos

eleitores No nosso caso concreto o caso africano e de maneira particular a Aacutefrica lusoacutefona a

democracia natildeo se fez muito sentir natildeo estaacute a ser muito acompanhada pela educaccedilatildeo A

proacutepria expressatildeo democracia eacute vista e usada com ambiguidade Mas voltaremos a esta

anaacutelise num outro momento

A Democracia e Educaccedilatildeo

O termo democracia deve ser dos termos ou das expressotildees mais utilizadas a niacutevel poliacutetico e

fora do campo poliacutetico Eacute tambeacutem provavelmente dos termos poliacutetico-sociais mais ingratos

mais incompreensiacuteveis cujo uso eacute muitas vezes inadequado O saacutebio fala de democracia o

especialista tambeacutem mas natildeo eacute por isso que quem natildeo sabe da democracia deixa de falar dela

e isso faz com que ela seja um campo de todos e de ningueacutem Um campo do saacutebio do

especialista e do analfabeto

E eacute sobretudo com este uacuteltimo que vamos trabalhar e falar na democracia moderna Os paiacuteses

lusoacutefonos como muitos paiacuteses de Aacutefrica foram apanhados numa encruzilhada forccedilada da

virada do mundo Do mundo econoacutemico do mundo poliacutetico que tem que obedecer ao mundo

econoacutemico e tal como acontece nas regras e jogos de poderes tiveram que aceitar e entrar

para um jogo e uma regra que natildeo lhes era de todo favoraacutevel Tinham que dar espaccedilo real aos

11

Cf Cit p 14 laquoEacute todo o padratildeo comum de conduta proacutepria de um grupo humanoraquo

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partidos que estavam na oposiccedilatildeo e natildeo era possiacutevel fazecirc-lo realisticamente porque natildeo se

deixa de ser um Partido-Estado de um dia para outro e tinham que lutar contra a pobreza e

contra o analfabetismo as duas inimigas principais da democracia moderna e natildeo havia

garantia de que pudessem fazecirc-los nos termos que a democracia pensada pelos outros

propunha

Portanto a leitura que se deve fazer destes 25 anos da democracia nestes paiacuteses natildeo seria

naturalmente uma leitura triunfalista mas antes pelo contraacuterio uma leitura analiacutetica

Perguntar-se se o que chamamos democracia desde o iniacutecio foi verdadeiramente democracia

A leitura triunfalista eacute uma leitura de auto-regozijo de auto-suficiecircncia e de triunfalismo

nacionalista que faz uma espeacutecie de apagatildeo naquilo que eacute ou sobre aquilo que eacute a memoacuteria do

difiacutecil que roccedila ao fracasso e se esquece que a democracia eacute um regime que eacute feito para

triunfar perdendo ou fracassando Natildeo se pode esperar outra coisa da democracia senatildeo o

triunfo porque aparentemente eacute um regime onde todo o mundo tem a possibilidade e a

oportunidade de decidir de decidir sobre si mesmo e de decidir com o uso da influecircncia sobre

os outros E eacute precisamente na eventualidade de que esta influecircncia sobre os outros venha a

concretizar-se que fez com que os grandes teoacutericos do poder na antiguidade tivessem medo

da democracia laquoO que eacute que seria daquele regime onde o povo eacute quem mandaraquo

Perguntavam eles O que eacute que seria dos ricos da elite dos intelectuais da induacutestria etc Uma

seacuterie de questotildees do acircmbito de interesse particular se punha para chamar a atenccedilatildeo dos

particulares para natildeo aderir a algo que lhes podia fazer mal e fazer mal aos seus negoacutecios Eacute

por isso que a democracia natildeo eacute um poder do povo mas um poder de elite que eacute criado dentro

do povo sem que para isso o povo se decirc conta Os criacuteticos como Platatildeo sempre olharam para

esta elite que vem do povo como algo que sempre seraacute mal preparada para assumir com

distinccedilatildeo algo que eacute muito importante para o destino do paiacutes por isso nunca apoiaraacute um

regime democraacutetico Mas a democracia que eacute um regime triunfalista eacute uma democracia

falaciosa porque natildeo se pode esperar um triunfo na maioria ou da maioria uma vez que a

verdadeira maioria natildeo negocia natildeo dialoga apenas remete para o ponto de partida para a

regra do jogo inicial ainda que esta regra do jogo seja escrita e feita por ela de forma

maliciosa Eacute por isso que quando se fala da vitoacuteria da democracia no sentido da maioria

democraacutetica temos que olhar para esta maioria como aquela que mesmo sendo a maioria

deixou de secirc-la voluntariamente para se revestir do risco de ter que dar explicaccedilotildees de ter que

justificar-se de ter que sujeitar-se a ouvir quem perdeu quem o povo natildeo quer natildeo escolheu

e natildeo conta com ele de forma expliacutecita

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O triunfo da democracia maioritaacuteria natildeo eacute um triunfo numeacuterico mas sim um triunfo da

gestatildeo das emoccedilotildees e dos egos do poder e da poliacutetica daqueles que o povo indicou para

fracassar e aqueles que indicou para o sucesso um certo sucesso de insucesso porque tudo eacute

aprazo e eacute o proacuteprio povo que em primeiro plano natildeo respeita e nunca respeitou o prazo

Exige as contas antes do fim do prazo que ele estipulou e natildeo aceita justificaccedilotildees que natildeo

satisfaccedilam a sua proacutepria demanda os outros se transformam para ele em indiviacuteduos e ele em

Estado que tem que fazer com que a lei seja cumprida Uma tentativa de saiacuteda para esta

realidade para esta situaccedilatildeo tem que passar necessariamente pela Educaccedilatildeo eacute por isso que

alguns pensadores da democracia como eacute o caso de Gianfraco Pasquino defendem que a luta

da democracia moderna eacute uma luta que consiste em satisfazer a educaccedilatildeo e eliminar a

pobreza Natildeo se pode falar de uma democracia triunfalista quando se tem medo de olhar para

a memoacuteria que apresenta um nuacutemero insustentaacutevel do analfabetismo e de pobreza O triunfo

da democracia moderna eacute um triunfo que passa pela lucidez e um sono tranquilo de barriga

cheia natildeo da elite mas daqueles que sem ser elite sentem que algueacutem cumpriu com um

direito deles o direito de natildeo passar fome e de natildeo morrer analfabeto E esta expectativa

corresponde com a democracia moderna em alguns momentos porque eacute uma expectativa que

soacute pode ser realizada pela virtude por um regime virtuoso Em algum momento acreditamos

ou se diz que a democracia eacute um regime que depende da virtude diz Strauss Um regime onde

todos ou a maioria dos homens satildeo saacutebios uma sociedade onde todos os adultos satildeo saacutebios e

virtuosos uma sociedade aristocraacutetica uma democracia aristocraacutetica No fundo um grande

mal-entendido Aparentemente eacute o que nos teraacute acontecido em alguns momentos quando

recebemos a democracia Olhamos para ela como o estado de realizaccedilatildeo perfeita de todos e

para todos Olhamos para ela quase como que uma espeacutecie de governo dos deuses Com

efeito Aristoacuteteles tinha razatildeo quando alertou que a natureza humana natildeo permite que

olhemos para nenhum governo como lugar de possiacutevel perfeiccedilatildeo como lugar seguro porque eacute

a gestatildeo humana que vai fazer com que um lugar um governo ou um Estado seja tido como

seguro ou natildeo A gestatildeo humana das coisas eacute volaacutetil

Quando Aristoacuteteles e outros teoacutericos pensaram no indiviacuteduo viram nas instituiccedilotildees condiccedilatildeo

indispensaacutevel para responder aos anseios deste mesmo indiviacuteduo eacute por isso que criaram

maneiras formas instacircncias e institutos para permitir uma salvaguarda real do indiviacuteduo A

cidade natildeo eacute um espaccedilo natural do indiviacuteduo diz Aristoacuteteles porque implica regras

completamente diferentes das regras individuais das regras da arbitrariedade das regras da

autonomia ilimitada e das regras da natildeo obediecircncia A cidade surge portanto para dar corpo a

todo este mosaico de regras de normas de paixatildeo mas com ordem e comando unificado num

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basanos num basileus que soacute eacute independente porque obedece agraves leis porque cumpre as leis

Este propoacutesito escapou-nos enquanto africanos que festejaram a chegada da democracia e

enquanto africanos que ensinam e dirigem o (s) paiacutes (es) Olhamos para democracia tal como

olhaacutevamos para a independecircncia sempre com total ausecircncia de prestaccedilatildeo de contas e sempre

com a expectativa irreal da igualdade Mas a realidade eacute um fenoacutemeno que se justifica por si

mesmo e eacute nesta perspectiva que a Ciecircncia Poliacutetica se debate diz Strauss entre tentar

encontrar a democracia na sua geacutenese e a democracia tal como a realidade se lhe apresenta A

nossa luta eacute perceber a democracia tal como a realidade a apresenta naturalmente fazendo

uma leitura histoacuterica daquilo que ela foi de como surgiu mas sobretudo ter em conta que ela

tem uma aplicaccedilatildeo e uma aplicabilidade epocal Cada eacutepoca cultiva a sua proacutepria democracia

diz a sua proacutepria democracia e interpreta a sua proacutepria democracia A sua epocalidade renova-

se diariamente constroacutei-se na sua proacutepria construccedilatildeo-autodestruiccedilatildeo em nome da proacutepria

democracia e da correspondecircncia epocal

Somos da opiniatildeo de que Aacutefrica deve criar um estilo proacuteprio para a sua democracia Deve

criar a sua proacutepria democracia que se enraiacuteza nas suas culturas que tem em conta a sua

proacutepria particularidade e multiplicidade que tem em conta o papel das autoridades

tradicionais que muitas vezes sentem-se completamente perdidas no acircmbito do

enquadramento democraacutetico deve ter em conta o papel fulcral da mulher de todas as esferas

em Aacutefrica

No nosso contexto sabemos que ldquoa mulher africana eacute a porta de todas as entradas e a saiacuteda

de nenhuma saiacuteda natildeo autorizada A mulher africana eacute alegria de um continente com as suas

vaacuterias naccedilotildees e a sua uacutenica raccedila ela eacute o fracasso da poliacutetica e do poder quando se faz machista

e eacute a vitoacuteria da poliacutetica e do poder quando se faz humana quando se torna ouvinte e se

capitaliza como espaccedilo de confianccedila e de reconhecimento de todos Natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel

sem estes atributos da mulher natildeo haacute Aacutefrica possiacutevel sem uma poliacutetica que escuta a mulher e

que permita que a sua opiniatildeo natildeo seja apenas um mero disfarce do politicamente correcto e

do eticamente aceitaacutevel A Aacutefrica possiacutevel eacute a Aacutefrica madrugadora como a preocupaccedilatildeo da

mulher para com o seu lar os seus filhosas o seu marido e toda a famiacutelia alargada A Aacutefrica

possiacutevel eacute a Aacutefrica da ternura e do pragmatismo encarnado pela mulher atraveacutes dos diversos

cuidados que presta ao seu lar e agrave comunidade no seu dia-a-dia Natildeo poderemos amar

verdadeiramente Aacutefrica se continuarmos a desprezar as suas mulheres e suas crianccedilas se a

opiniatildeo da mulher continuar a ser uma espeacutecie de favor que a comunidade lhe faz porque natildeo

quer contar com ela em termos objectivos porque lhe pintou com preconceitos de

instabilidade de inseguranccedila e de fragilidade Porque olha para ela como o problema de todos

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os problemas o mal de todos os males e portanto aquela com quem natildeo se pode nem se deve

contar na primeira hora das tomadas das decisotildees Eacute a invenccedilatildeo dos preconceitos e da

prostituiccedilatildeo ideoloacutegica que depois acaba por ser direccionada agrave mulher atraveacutes dos

mecanismos do ldquopoder positivo natildeo legisladordquo o direito criado ou assumido a partir dos actos

de todos os dias

Se tivermos em conta que em Aacutefrica as mulheres satildeo mais de metade da populaccedilatildeo do

continente e a niacutevel global as mulheres de todo o mundo satildeo a metade de toda a populaccedilatildeo

mundial entatildeo poderemos com maior propriedade dar valor agrave figura da mulher natildeo soacute para o

nosso continente mas a niacutevel global Sabemos que de cada vez que a mulher ganha um

direito conquista um direito os seus ganhos e as suas conquistas cimentam a estabilidade

local e regional para a paz e para o desenvolvimento geopoliacutetico porque a mulher no seu

exerciacutecio de responsabilidade eacute muito mais persuasiva e honra com brilho o seu compromisso

Sabemos graccedilas agrave histoacuteria etnograacutefica e histoacuteria dos acontecimentos que muitas das

reivindicaccedilotildees das mulheres africanas antecederam uma boa parte das reivindicaccedilotildees

femininas no Ocidente moderno e contemporacircneo A descoberta do continente africano pelos

europeus tambeacutem conheceu a resistecircncia feminina ao lado dos homens africanos e isto

antecede a luta feminista e a luta a auto-afirmaccedilatildeo do geacutenero no Ocidente O fracasso da

Aacutefrica reside na ldquoahistorizaccedilatildeordquo do papel das suas mulheres reside na negaccedilatildeo da histoacuteria

positiva das suas mulheres reside no facto de encurtar as epopeias femininas das suas

heroiacutenas Paiacuteses como Ruanda demostram isso todos os dias Ruanda poacutes genociacutedio teve 56

das mulheres nos seus respectivos governos e todos noacutes temos notiacutecias e conhecimento da

solidez da economia e da poliacutetica de Ruanda

Temos consciecircncia de que apesar do brilho do bem-fazer e do saber-fazer da mulher africana

ainda assim haacute muitos obstaacuteculos que ela tem que superar entre eles o proacuteprio preconceito

machista Mas mesmo sabendo do preconceito machista cremos que o preconceito maior

com o qual ela se debate eacute o preconceito cultural e religioso para uma boa parte de Aacutefrica que

tem a ver com a tradiccedilatildeo negativa Estamos por exemplo a pensar na questatildeo da mutilaccedilatildeo

genital nos casamentos forccedilados e de conveniecircncia clacircnica o traacutefico das crianccedilas do sexo

feminino e o preconceito sobre a mulher que padece de viacuterus de VIH Estes males e

preconceitos satildeo mais prejudiciais agrave condiccedilatildeo feminina da mulher africana do que qualquer

mal que possa abater sobre ela Natildeo haacute um mal pior que o mal do preconceito e natildeo haacute cultura

mais enferma que a cultura preconceituosa

Aacutefrica soacute pode resgatar a sua cultura se lutar contra os seus preconceitos negativos elevando a

condiccedilatildeo da mulher e criando-lhe instrumentos e condiccedilotildees para lutar contra o mal que a

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cultura e tradiccedilatildeo criaram para ela e contra ela muitas vezes sem pedir a sua opiniatildeo O

horizonte possiacutevel para Aacutefrica eacute aquele de destruiccedilatildeo positiva dos preconceitos culturais

prejudiciais para as suas mulheres e crianccedilas Haacute que possibilitar que os dogmas culturais

intelectuais e religiosos sejam questionados para o bem da salvaguarda da proacutepria cultura da

proacutepria religiosidade e da proacutepria intelectualidade A poliacutetica e os poliacuteticos que tomarem isso

como uma iniciativa singular salvaratildeo todo o continente africano12

rdquo

A democracia que pensa a sua proacutepria realidade natildeo pode natildeo ter em conta estas necessidades

e particularidades Eacute por isso que o novo enfoque democraacutetico em Aacutefrica e nos paiacuteses

lusoacutefonos em particular deveria incluir na escolaridade preacute-universitaacuteria a disciplina da

EDUCACcedilAtildeO PARA A DEMOCRACIA assim como pensar a possibilidade de cadeiras

como ldquoLITERATURA E INSTRUCcedilAtildeO PARA A EDUCACcedilAtildeOrdquo tambeacutem no preacute-

universitaacuterio Uma educaccedilatildeo para a democracia e uma literatura e instruccedilatildeo para a

democracia evitariam que caiacutessemos naquilo que Strauss chama ou designa por ldquofalta de

espiacuterito puacuteblico13

rdquo nas democracias modernas isto eacute a criaccedilatildeo de cidadatildeos que soacute se

interessam em ler as paacuteginas desportivas dos jornais e as paacuteginas das pequenas histoacuterias e

mais nada Pensar num ensino da democracia que possa ser cimentado com apoio das nossas

tradiccedilotildees orais ajudaria natildeo soacute a ter a qualidade viva dos nossos debates democraacuteticos como

tambeacutem a fundar uma democracia de raiacutezes africanas que bebem das outras culturas mas que

tambeacutem podem reivindicar a sua originalidade poliacutetica Os diversos tipos de ONDJANGO

que existem nas culturas africanas podem ser exploradas desde o ponto de vista democraacutetico

ondjango como espaccedilo de concertaccedilatildeo de ideias como espaccedilo de recepccedilatildeo do ensinamento

dos mais velhos se aproximaria ao conceito grego de aacutegora Uma educaccedilatildeo para a democracia

em Aacutefrica deveria ter em conta tambeacutem os nossos proveacuterbios adaacutegios e aforismos com uma

acentuada moralidade onde podemos encontrar a profundidade do ser africano do espiacuterito

africano e da sua consciecircncia moral e eacutetica Neles encontramos uma insondaacutevel e inesgotaacutevel

sabedoria praacutetica transversal a todo o continente O que em Angola se designa como

ondjango na Guineacute-Bissau aparece com o nome de Djembereacutem e em algumas circunstacircncias

com o nome de Bantaba de djumbai Ambos satildeo espaccedilos de confraternizaccedilatildeo de caraacutecter

educativo desde o ponto de vista da recepccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo da cultura e do pensamento

tradicional Quer a expressatildeo djembereacutem quer a expressatildeo bantaba designam um espaccedilo

circular de modo geral coberto de capim ou chapa de zinco podendo ser usados pelas pessoas

12

Cf Este trecho faz parte de um texto escrito a 31 de Julho de 2017 para um discurso ldquoencomendadordquo para o

dia internacional da mulher africana 13

Cf Leo Strauss Liberalismo antiacuteguo y moderno Ed Katz Buenos Aires 2007 p 17

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de todas as idades mas em circunstacircncias diferentes Eacute um espaccedilo de reuniotildees e de encontro

de caraacutecter familiar da aldeia ou do grupo onde muitas vezes saem as decisotildees que dizem

respeito agrave comunidade eacute um espaccedilo legislativo da lei natildeo escrita da comunidade A palavra

djumbai significa divertir-se brincar daiacute que se bem o bantabaacute tem este caraacutecter seacuterio das

tomadas de decisotildees natildeo obstante esta seriedade eacute fundada na proximidade e na

familiaridade comunidade o que faz com que o poder natildeo seja algo estranho algo longiacutenquo e

tambeacutem faz com que o ensinamento e a transmissatildeo natildeo sejam vistos com a desmesura da

grandiosidade Contrariamente aos gregos e aos povos da Mesopotacircmia o lugar onde se

ensina e onde se toma as decisotildees eacute frequentado por todos pelas mulheres e crianccedilas pelos

doentes e saudaacuteveis

Conforme vimos o ondjango nos remete para a realidade da casa (NUNES

1991 159) Mas de que casa se trata Trata-se da casa de conversa de

reuniatildeo de hospedagem de partilha de bensrefeiccedilatildeoserviccedilos de

educaccedilatildeoiniciaccedilatildeo sociocultural de entretenimento eou de fazer justiccedila

Antes de tudo se trata de uma casa ponto de partida e ponto de confluecircncia

de uma casa com as condiccedilotildees de se poder sentar reunir junto de alguns

mais-velhos trata-se de um lugar de encontro14

Esta aproximaccedilatildeo de ondjango com a comunicaccedilatildeo e gestatildeo da casa permite-nos criar aqui

uma relaccedilatildeo comparativa com oikos nomoi xenofontino-aristoteacutelico Isto eacute podemos

reivindicar para o ondjango africano as mesmas capacidades os mesmos papeacuteis ou funccedilotildees

institucionais que tinha o oikos a partir da sua visatildeo da ldquofamiacutelia da propriedade da famiacutelia e

da casardquo Tal como vemos neste texto de Nunes citado por Martinho Kavaya este ondjango eacute

pluridisciplinar baseado em vaacuterias meacutetricas sociais o que de certa forma tambeacutem corresponde

com aquilo que podemos encontrar na concepccedilatildeo da palavra grega oikos A educaccedilatildeo do

ondjango do djembereacutem ou do djumbai satildeo portadoras do espaccedilo familiar da propriedade da

famiacutelia e da reflexatildeo sobre a casa sobre as coisas da casa e isso permite fazer com que o que

se discute neste espaccedilo seja efectivamente aquilo que importa agrave cidade aquilo que importaraacute agrave

cidade um dia E o que eacute pode importar profundamente agrave cidade Naturalmente as pessoas a

sua gente os homens e mulheres crianccedilas e velhos animais e plantas No fundo tudo que diz

respeito ao homem e ao seu envolvimento social e espiritual e eacute isso que o ondjango africano

14

Cf Martinho Kavaya Freire e o Ondjango podem dialogar Reflexotildees sobre o diaacutelogo de Freire com o

ondjango africano Angolano GT Educaccedilatildeo Popular n06 p 2 consultado em 30 de Outubro de 2017

httpwwwanpedorgbrsitesdefaultfilesgt06-2805-intpdf

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pretende passar atraveacutes dos seus diferentes status e fases do mais novo ao mais velho e do

mais velho ao mais novo

Toda a vida parte do ondjango e laacute encontra seu aacutepice Aiacute segundo a

pertinecircncia do vivenciado o ohango (conversadiaacutelogo) tomava vaacuterios

significados ldquoondjangordquo enquanto ldquoulongardquo (relato da vida desde o encontro

anterior) ldquoelongisordquo (ensinamento e aprendizado) ldquoekutardquo (partilha de bens

alimentares) ldquoekongelordquo (reuniatildeo de caraacuteter deliberativo)

ldquoekangaokusombaokusombisardquo (reuniatildeo para fazer justiccedila e sentenciar para

punir ou absolver o arguumlido) ldquookupapalardquo (encontro de entretenimento festas

e danccedilas culturais e tradicionais conforme a situaccedilatildeo vivida no momento

morte caccedila casamento iniciaccedilatildeo sociocultural e comunitaacuteria acolhimento

de uma visita etc) ldquoondjulukardquo (encontro para organizar um mutiratildeo

comunitaacuterio a favor de algum da comunidade em situaccedilatildeo de doenccedila

problema socioeconocircmico intervenccedilatildeo de ajuda na sua lavoura etc)

(KAVAYA 2006 p147) Afinal o ondjango eacute o habitat comunal e vital

onde se desenham as relaccedilotildees de conviacutevio geo-histoacuterico econocircmico

sociocultural poliacutetico etc em vista o bem comunitaacuterio15

Educar para a conservaccedilatildeo destes valores eacute tambeacutem educar para a democracia e eacute educar para

a manutenccedilatildeo da cultura e dos preconceitos positivos A democracia em todo o sentido e em

toda a sua histoacuteria sempre conteve um elemento educativo muito forte e quase indissociaacutevel

de si mesma eacute o diaacutelogo para gerar a cultura e a cultura para gerar diaacutelogo Natildeo pode haver

uma verdadeira democracia que dispense este binoacutemio O erro de pensadores como Platatildeo em

relaccedilatildeo agrave sua recusa agrave democracia reside no facto de desprezarem excessivamente qualquer

tipo de possibilidade para educaccedilatildeo viaacutevel do homem democraacutetico reside no facto de natildeo

acreditarem que a democracia pode educar um poloi e fazer dele um aristoacuteis agrave sua maneira

ou ainda este erro pode residir no facto de que estes pensadores natildeo tiveram em conta que o

poloi apenas pode querer ser simplesmente e eternamente um poloi mesmo sendo democrata

O erro consistiu em pensar que os que podem e devem governar a cidade deviam deixar de ser

das suas respectivas camadas e passar a ser aristocratas Eacute um erro que ainda vemos hoje

15

Cf Ibid p 3

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EDUCACcedilAtildeO CARACTERIZACcedilAtildeO DO PROCESSO DE ENSINO E APRENDIZAGEM NAtildeO

UNIVERSITAacuteRIO ANGOLANO DESAFIOS E PERSPECTIVAS

ABEL JOSEacute DA SILVA a

IRENE JAMBA INAKULO MOISEacuteS b

adasilva00gmailcom

ireneinakulomoisesgmailcom

Resumo

A presente comunicaccedilatildeo faz uma caracterizaccedilatildeo do Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo

Universitaacuterio com ecircnfase nos seus desafios e perspectivas Analisa este processo a partir da

interpretaccedilatildeo sistecircmica que decorre dos pressupostos legais da Educaccedilatildeo e Ensino em Angola

Como meacutetodo usa a revisatildeo bibliograacutefica e a interpretaccedilatildeo e fundamenta a caracterizaccedilatildeo do

referido processo como variaacutevel baacutesica para a anaacutelise da qualidade do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola idealizado com base nos princiacutepios da legalidade da integridade da

laicidade da universalidade da democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da

intervenccedilatildeo do Estado da qualidade de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais

ciacutevicos e patrioacuteticos Tem como objectivo reflectir sobre os aspectos que o caracterizam e que

interferem na sua qualidade Apresenta a missatildeo do processo integrada ao Sistema em que

todos os agentes educativos participam da sua funcionalidade

Palavas-Chave Processo Ensino Aprendizagem Sistema

Abstract

This scientific paper characterizes the Non-University Teaching and Learning Process with an

emphasis on its challenges and perspectives It analyzes this process from the systemic

interpretation that arises from the legal presuppositions of Education and Teaching in Angola

As method uses the literature review and the interpretation and founded the characterization

of this process as basic variable for the analysis of the quality of the system of Education and

Teaching in Angola Idealized on the basis of the principles of legality integrity secularity

universality democracy gratuitousness obligation compulsion State intervention quality of

services education and promotion of moral civic and patriotic values It aims to reflect on the

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aspects that characterize and that interfere in its quality Has the mission of the process

integrated into the System in which all educational agents participate in its functionality

Key-words Process Teaching Learning System

Introduccedilatildeo

O Processo de Ensino e Aprendizagem natildeo Universitaacuterio (PEANU) eacute uma importante variaacutevel

para a anaacutelise do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino em Angola (SEEA) sistema perspectivado

com base nos ldquoprinciacutepios da legalidade da integridade da laicidade da universalidade da

democraticidade da gratuitidade da obrigatoriedade da intervenccedilatildeo do Estado da qualidade

de serviccedilos da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticosrdquo (Lei no 1716

art 5ordm)1

A caracterizaccedilatildeo do PEANU pressupotildee assumir um posicionamento holiacutestico que analise o

mesmo como um processo natildeo isolado do todo porque o SEEA eacute estruturalmente unitaacuterio e a

sua realizaccedilatildeo na situaccedilatildeo especiacutefica da anaacutelise tem influecircncia no funcionamento da totalidade

(princiacutepio da integridade art 7ordm e art 17ordm)

Os desafios e perspectivas como outra dimensatildeo importante derivada do processo de

parametrizaccedilatildeo do assunto ndash objecto de anaacutelise justificam-se a partir da consideraccedilatildeo dos

princiacutepios da universalidade democraticidade gratuitidade obrigatoriedade intervenccedilatildeo do

Estado qualidade de serviccedilos e da educaccedilatildeo e promoccedilatildeo dos valores morais pois que se a

Lei tipifica o que idealmente eacute o correcto a necessidade de confrontar com a realidade agrave luz

da pesquisa bibliograacutefica eacute inadiaacutevel para o alinhamento do agir educativo com os princiacutepios

legais

A partir destes princiacutepios infere-se que a Educaccedilatildeo e o Ensino satildeo natildeo apenas um direito mas

tambeacutem um dever que se deve realizar com a qualidade requerida para que a construccedilatildeo de

uma nova sociedade assente na democracia esclarecida seja possiacutevel Para isso agrave Escola

atraveacutes do Processo de Ensino e Aprendizagem (PEA) em todos os niacuteveis de ensino e

especialmente nos natildeo universitaacuterios impende a tarefa de formar personalidades capazes de

influenciar com o seu saber e suas qualidades o curso da histoacuteria concreta do seu contexto

Deste modo o Processo tem de ser significativo2 Para que o processo seja significativo eacute

1 Lei de Bases do Sistema de Educaccedilatildeo e Ensino que estabelece os princiacutepios e bases do Sistema de Educaccedilatildeo e

Ensino em Angola de 7 de Outubro de 2016 Esta Lei revoga a Lei 1301 de 31 de Dezembro de 2001 2 O PEANU eacute significativo quando assegure o cumprimento da sua finalidade tal como se institui no art 25ordm da

Lei 1716 referente aos Objectivos Gerais do Subsistema do Ensino Geral Desta significatividade resulta em

consequecircncia a eficaacutecia do Sistema

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necessaacuterio caracterizaacute-lo com a finalidade de que se conheccedilam natildeo soacute os seus pontos fortes

mas tambeacutem os fracos aspecto que se aborda seguidamente

Por isso o objectivo deste trabalho consiste em reflectir sobre os aspectos do SEEA que o

caracterizam e que interferem na qualidade do PEANU

1 Estrutura do Seea Ponto de partida para a caracterizaccedilatildeo do Peanu

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento ldquoad intrardquo da

realidade educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento (Cfr

Silva 2016) Por isso a anaacutelise estrutural do SEEA baseada nas proposiccedilotildees da Lei 1716 e

fundamentada pela revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura criacutetico-contextual eacute uma

tarefa basilar para esta caracterizaccedilatildeo

A caracterizaccedilatildeo do Sistema Educativo numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional de

acordo com Ngaba ( 2012) e Liberato (2014) permite concluir que existem avanccedilos e

retrocessos no processo educativo angolano que em termos de poliacutetica educativa

condicionaram a sua evoluccedilatildeo positiva bem como a sua afirmaccedilatildeo no cenaacuterio internacional e

ateacute mesmo regional3

A partir desta ideia geral sobre o estado do SEEA que de modo especial se realiza por meio

do PEANU eacute possiacutevel compreender que estruturalmente estaacute bem concebido se se analisam

todos os factores intencionais de entrada e saiacuteda de um niacutevel de ensino para outro Entretanto

o aspecto funcional real fica aqueacutem do desejado se se avaliam com visatildeo criacutetico-acadeacutemica

os resultados do processo e os discursos oficiais que asseguram a Poliacutetica do Sistema

Educativo

Contrariamente agrave 1ordf Repuacuteblica (Cfr Ngaba 2012) que natildeo se fez reger por um documento

base tanto a 2ordf como a 3ordf Repuacuteblicas de Angola tecircm como fundamento a Lei de Bases do

SEEA que estabelece a criaccedilatildeo de condiccedilotildees mais adequadas para a aplicaccedilatildeo das poliacuteticas

puacuteblicas e dos programas nacionais com o objectivo de continuar a assegurar o

3 Este momento criacutetico do SEEA eacute tambeacutem hoje reconhecido oficialmente pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo do Paiacutes

na voz da sua titular no encerramento da Semana Nacional sobre Educaccedilatildeo em Angola realizada em Luanda Por

isso para a caracterizaccedilatildeo da situaccedilatildeo actual do Sistema Educativo e do PEANU especificamente eacute criteacuterio dos

autores deste trabalho que os problemas fracturantes que colocam em causa a qualidade do Sistema natildeo podem

ser analisados unilateralmente sob pena de se incorrer num reducionismo indevido pois estatildeo em causa

muacuteltiplas variaacuteveis que chocam com diversos princiacutepios e disposiccedilotildees legais em que assenta o Sistema

infraestruturas precaacuterias insuficiecircncia dos materiais e meios didaacutecticos factos que se agravam ainda mais com a

falta de preparaccedilatildeo adequada dos professores de tal modo que possam responder aos desafios do Sistema

idealizados pela Reforma Educativa Essa visatildeo geral estrutural e conjuntural pode reflectir-se e explicar-se

melhor por meio do seguinte exemplo em relaccedilatildeo agrave indisciplina na aula espaccedilo privilegiado em que se

desenvolve o PEA Estrela (1983) citada por Lopes (2005) identificou um conjunto de variaacuteveis que vatildeo desde o

proacuteprio aluno passando pelo professor pela instituiccedilatildeo escolar ateacute agrave proacutepria sociedade Estes satildeo dados

suficientes para pensar na qualidade educativa como multideterminada

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desenvolvimento humano com base numa educaccedilatildeo e aprendizagem ao longo da vida para

todos os indiviacuteduos que permita assegurar o aumento dos niacuteveis de qualidade de ensino

Considerando a anaacutelise da estrutura do Sistema estabelecido pela Lei 1716 conclui-se que as

principais alteraccedilotildees agrave antiga Lei relacionam-se entre outras com a gratuitidade e

obrigatoriedade do ensino que passa a compreender as classes da Iniciaccedilatildeo do Ensino

Primaacuterio e do Primeiro Ciclo do Ensino Secundaacuterio bem como a nomenclatura das

instituiccedilotildees

Nesta vertente assume-se que o Subsistema de Ensino Geral eacute o fundamento do SEEA (Lei

no 1716 art 24ordm) que visa de acordo com o artigo em referecircncia assegurar uma formaccedilatildeo

integral harmoniosa e soacutelida necessaacuteria para uma boa inserccedilatildeo no mercado de trabalho e na

sociedade bem como para o acesso aos niacuteveis de ensino subsequentes

Como se pode apreciar existe uma relaccedilatildeo de determinaccedilatildeo entre o processo de ensino e

aprendizagem que se realiza no Subsistema do Ensino Geral e o trabalho bem como com a

Sociedade e com os niacuteveis de ensino posteriores o que significa o reconhecimento da

importacircncia deste niacutevel que deve permitir a aquisiccedilatildeo de ferramentas fundamentais para a

compreensatildeo da vida e do mundo Entre os seus objectivos de acordo com Ngaba (2012 p

158) constam os do desenvolvimento ldquodos conhecimentos e as capacidades que favoreccedilam

uma auto-formaccedilatildeo educar para a cidadaniardquo A educaccedilatildeo vista a partir da oacuteptica deste niacutevel

de ensino eacute um factor de integraccedilatildeo social

Por isso o questionamento da qualidade do PEANU eacute no fundo o questionamento da

qualidade do Sistema em si uma vez que estudando Poliacuteticas Educativas em Angola (1975-

2005) o autor antes referenciado e alinhado com Liberato afirma

ldquoEm termos gerais fica a ideia de estarmos perante um processo evolutivo que em periacuteodos

diferentes se foi deparando com os mesmos problemas e optando pelas mesmas soluccedilotildeesrdquo

No entanto de acordo com o mesmo autor ldquoquase quatro deacutecadas depois das primeiras

mudanccedilas ldquosignificativasrdquo no sector da educaccedilatildeo deacutecadas essas caraterizadas por sucessivos

estudos e mudanccedilas o paiacutes (hellip) carece de soluccedilotildees radicais que possam corrigir de uma vez

por todas os factores relacionados com o baixo coeficiente do sistema angolanordquo (Ngaba

2012 p 173)

De acordo com a ideia anterior a questatildeo da qualidade de ensino em Angola natildeo deve ser

vista como uma questatildeo da responsabilidade exclusiva de um ou de outro niacutevel de ensino

mas como uma questatildeo transversal do SEEA considerando entre outros princiacutepios gerais o

da integralidade estatuiacutedo no artigo 7o da Lei 1716 Por isso a anaacutelise desta questatildeo implica

um posicionamento multifactorial

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Com base nessa posiccedilatildeo o Sistema possui potencialidades capazes de proporcionar um PEA

motivador que permita a construccedilatildeo das aprendizagens dos alunos e que transforme o saber

em saber fazer e em saber ser na base de uma visatildeo axioloacutegica pois atendendo agrave

complexidade da acccedilatildeo educativa a UNESCO no Relatoacuterio DELORS (2003 p 11) sustenta

que para concretizar a sua meta a educaccedilatildeo deve organizar-se em quatro tipos fundamentais

de aprendizagens que ao longo da vida do indiviacuteduo seratildeo os pilares do conhecimento

Aprender a conhecer isto eacute adquirir os instrumentos para a compeensatildeo

aprender a fazer de modo a ser capaz de agir criativamente no proacuteprio

ambiente aprender a viver juntos de modo a participar e a colaborar com os

outros em todas as actividades humanas aprender a ser isto eacute um progresso

essencial que deriva dos trecircs precedentes

Para tornar este sonho real eacute necessaacuterio que o processo seja significativo e em si mesmo

motivador formando os professores de acordo com as necessidades da realidade objectiva

Trata-se de prover os recursos necessaacuterios a um processo que desafie os limites da situaccedilatildeo

actual pois se o professor eacute indispensaacutevel natildeo eacute menos verdade que os recursos educativos

tambeacutem o sejam (Lei 1716 art 97ordm)4

Tendo em conta os pressupostos legais da Repuacuteblica de Angola (Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica e

Lei 1716) e os pilares da educaccedilatildeo propostos pela UNESCO considera-se que o ideal

educativo estaacute devidamente delineado Contudo eacute necessaacuterio que de acordo com Nanni

(2005 p81) citado por Fernando (2010 p 17) no ldquoacircmbito educativo o fim uacuteltimo ndash o

horizonte para o qual deve tender toda a acccedilatildeo educativa ndash natildeo deve fazer com que os fins

intermeacutedios ndash que o tornam possiacutevel e factiacutevel ndash sejam esquecidosrdquo Daiacute a relaccedilatildeo entre fins

meios e procedimentos educativos

A distinccedilatildeo entre fins uacuteltimos da educaccedilatildeo meios e procedimentos educativos eacute fundamental

porque de acordo com Fernando (2010 p 18)

Impele agrave procura e a determinar os recursos o tempo as modalidades e as estrateacutegias para a

realizaccedilatildeo do objectivo educativo que se pretende e permite de certo modo natildeo esquecer que

se natildeo se fizer a diferenccedila entre ideal e real entre fim uacuteltimo e limite da acccedilatildeo humana entre o

horizonte e o limite concreto das coisas e da existecircncia entre o itineraacuterio projectado e a

complexidade do percurso e da vida das pessoas corre-se o risco de se ser desumano e de cair

4 No artigo 97ordm a Lei 1716 define recursos educativos como os meios que contribuem para o desenvolvimento

do SEEA tais como a) Guias e programas pedagoacutegicos b) Manuais escolares C) Meios teacutecnicos e

tecnoloacutegicos de ensino d) Bibliotecas e) Equipamentos f) Laboratoacuterios g) Oficinas h) Instalaccedilotildees e

material desportivo e cultural i) Campos de ensaios treinamento e experimentaccedilatildeo j) Auditoacuterios e salas

especializadas

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no perfeccionismo ou de se desencorajar cansar e por fim de se sentir insatisfeito com aquilo

que se faz

Em consequecircncia nos nossos dias a questatildeo do discurso pedagoacutegico sobre a ldquofinalidaderdquo da

educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU natildeo eacute faacutecil porque a educaccedilatildeo eacute caracterizada hoje por

certa crise pela necessidade de inovaccedilatildeo e pelo pluralismo de ideias de valor e de cultura do

momento histoacuterico actual (Cfr Fernando 2010 Ngaba 2012 Liberato 2014)

Na continuidade da anaacutelise sobre a finalidade da educaccedilatildeo para caracterizar o PEANU os

autores concordam com Fernando (2010 p 19) ao distinguir dois tipos de tendecircncias

educativas

1 A tendecircncia redutora que ldquoprocura ver a aprendizagem em funccedilatildeo das necessidades da

economia que com as suas solicitaccedilotildees convida a rever os conteuacutedos do ensino e sua

organizaccedilatildeo Esta eacute a linha ou corrente mais seguida nos nossos diasrdquo

2 A tendecircncia aberta que ldquoprocura integrar no conceito de aprendizagem outros elementos

significativos mais ligados agraves dimensotildees psicoloacutegicas sociais e culturais das experiecircncias do

indiviacuteduo enquanto protagonista da aprendizagemrdquo

Para os autores embora a primeira tendecircncia seja a mais seguida actualmente a segunda

parece melhor corresponder agrave dignidade do homem responsaacutevel porque de acordo com a Lei

1716 (art 15ordm) o SEEA deve promover natildeo soacute o cultivo da intelectualidade mas tambeacutem

dos valores morais ciacutevicos e patrioacuteticos

Assim a primeira reduz a finalidade da escola agrave instruccedilatildeo e a segunda supera esta visatildeo

sustentando que a finalidade primaacuteria da actividade pedagoacutegica escolar eacute a de educar sem

contudo deixar de parte a sua funccedilatildeo instrutiva Neste sentido a finalidade da educaccedilatildeo como

instituiccedilatildeo social deve coincidir com a finalidade da escola enquanto instituiccedilatildeo formal e

socialmente mandatada para educar isto eacute para possibilitar o desenvolvimento permanente da

qualidade da pessoa humana com dignidade e integridade

2 Desafios e Perspectivas da Educaccedilatildeo

Nas paacuteginas anteriores ficou clara a ideia de que os resultados qualitativos do SEEA

fundamentalmente relacionados com o PEANU satildeo e devem ser processo-produto de um

funcionamento integral do Sistema Por isso o maior desafio da educaccedilatildeo em Angola hoje eacute o

de vencer a contradiccedilatildeo existente em que satildeo atribuiacutedas culpas isoladas ou ao aluno que natildeo

estuda ou ao professor que natildeo estaacute preparado e natildeo motiva ou agraves mateacuterias que natildeo satildeo

atractivas e adaptadas agrave realidade profissional e do contexto de vida dos alunos ou aos pais

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que natildeo acompanham suficientemente os filhos ou ainda ao proacuteprio Sistema Educativo de

maneira geral

De acordo com a ideia anterior e tendo em conta a revisatildeo bibliograacutefica realizada5 os autores

consideram que os desafios para a melhoria das falhas devem ser enfrentados de forma

sistecircmica porque cada uma das variaacuteveis antes mencionadas eacute importante para o

funcionamento normal ou natildeo do PEA natildeo apenas no niacutevel referenciado mas em todos os

niacuteveis em atenccedilatildeo aos princiacutepios de integridade do Sistema e da obrigatoriedade e qualidade

dos serviccedilos educativos Isto pressupotildee uma poliacutetica educativa ajustada agrave realidade que

incentive a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores e garanta os meios materiais indispensaacuteveis

ao processo

Trata-se de construir uma verdadeira comunidade educativa em que todos os agentes

educativos como a famiacutelia a escola e a comunidade na sua dimensatildeo mais alargada

participem Por isso eacute necessaacuterio repensar a educaccedilatildeo para que seja possiacutevel a construccedilatildeo de

um paiacutes novo como afirmara Joseacute Eduardo dos Santos (2008) nos seguintes termos ldquoum

novo paiacutes estaacute a nascer e com ele haacute-de florescer tambeacutem um cidadatildeo novordquo Quando

Considerando a perspectiva temporal como resposta os autores acreditam que isso se

realizaraacute agrave medida que a educaccedilatildeo se assuma antes de tudo como uma condiccedilatildeo de verdadeira

cidadania e natildeo de mera transmissatildeo de receitas importadas do exterior e enxertadas no nosso

contexto quando todos os agentes educativos tiverem presente que o educar eacute na verdade

um verbo ldquoque exige uma acccedilatildeo com atitude transformadorardquo (Pereira e Silva 2008 p 24)

Eacute neste sentido que Joseacute Eduardo dos Santos na sua alocuccedilatildeo agrave Naccedilatildeo referia-se ao papel dos

pais dos professores e de todos os actores sociais como verdadeiros agentes educativos da

juventude Trata-se do desafio de construir uma verdadeira sociedade educativa

Na construccedilatildeo dessa sociedade educativa a formaccedilatildeo contiacutenua dos professores para o SEEA

e sobretudo para o PEANU deve ser entendida como uma consequecircncia de uma formaccedilatildeo

inicial que seja adequada agraves necessidades reais da sociedade para a qual se educa Isso implica

que os professores devem ser formados com base nos desafios da nova Repuacuteblica (Ngaba

2012)

5 Em Ofiacuteco de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Perrenoud (1995) denuncia uma dupla evidecircncia por um

lado haacute alunos que natildeo aprendem e por outro professores que natildeo formam porque ambos se contentam em

exercer manualmente os oacutecios do ofiacutecio enquanto a cabeccedila estaacute ausente Na mesma linha Grilo (2002) entende

que na ldquoNa sociedade do conhecimento hoje aprende-se e ensina-se em circunstacircncias e contextos muito

diversos embora por vezes se ensine mas natildeo se aprenda como ocorre por exemplo em algumas das escolas

Mas partindo do princiacutepio de que quando se ensina haacute sempre algueacutem que aprende o ensino (hellip) eacute um

mecanismo muito importante e uma peccedila fundamental desta sociedaderdquo (p 121)

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A formaccedilatildeo inicial que serve de base para a formaccedilatildeo contiacutenua de professores de acordo com

a Lei 1716 eacute assegurada pelo Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores que estaacute estruturado

em Ensino Secundaacuterio Pedagoacutegico e Ensino Superior Pedagoacutegico O primeiro constitui o

ldquoprocesso atraveacutes do qual os indiviacuteduos adquirem e desenvolvem conhecimentos haacutebitos

habilidades capacidades e atitudes que os capacite para o exerciacutecio da profissatildeo docente na

Educaccedilatildeo Preacute-escolar no Ensino Primaacuterio e no I Ciclo do Ensino Secundaacuterio Regular de

adultos e na Educaccedilatildeo Especial e mediante criteacuterios o acesso ao Ensino Superior

Pedagoacutegicordquo (Art 46)

Por outro lado e de acordo com a mesma Lei um dos fundamentos do SEEA o ldquoEnsino

Superior Pedagoacutegico eacute um conjunto de processos desenvolvidos em Instituiccedilotildees de Ensino

Superior vocacionados agrave formaccedilatildeo de professores e demais agentes de educaccedilatildeo habilitando-

os para o exerciacutecio da actividade docente e de apoio agrave docecircncia em todos os niacuteveis e

subsistemas de ensinordquo (Art 49)

Em correspondecircncia com os estes dois artigos da Lei 1716 compreende-se a relaccedilatildeo

intriacutenseca entre o Subsistema de Formaccedilatildeo de Professores e os diferentes niacuteveis de ensino do

SEEA

A educaccedilatildeo em Angola vista na oacuteptica dos seus fundamentos legais constitui-se assim numa

ldquoforma de poder porque a educabilidade eacute um poder-ser humano mediado pela educaccedilatildeo

como poder sobre o ser humano que decide sobre o dever-ser humano Eacute um poder ser

porque o ser humano eacute um ser biologicamente aberto agrave criaccedilatildeo de uma segunda naturezardquo

(Monteiro 2004 p 12)

De acordo com o autor referenciado com antecedecircncia todas as formas de poder do ser

humano sobre o outro suscitam a questatildeo da sua legitimidade Esta questatildeo eacute no fundo a do

fundamento e controlo do poder que o professor exerce atraveacutes dos conteuacutedos e formas da

comunicaccedilatildeo que realiza ante o aluno Assim sendo

A ldquolegitimidade pedagoacutegica eacute de natureza social porque ser profissional da

educaccedilatildeo implica um mandato da sociedade atraveacutes do Estado que regula o

exerciacutecio da funccedilatildeo Eacute tambeacutem de natureza individual na medida em que a

competecircncia pessoal tem um efeito de auto-legitimaccedilatildeo junto dos educandos

Mas tem de ser problematizada com mais radicalidade porque a educaccedilatildeo eacute

afinal uma forma de poder do homem sobre o homemrdquo (Monteiro 2004 p

12)

Daiacute que se a educaccedilatildeo eacute uma forma de poder eacute necessaacuterio que se exerccedila tal poder na justa

medida tendo como princiacutepio e limite a Lei que estabelece entre outros aspectos importantes

natildeo soacute a formaccedilatildeo inicial mas tambeacutem a contiacutenua dos professores para que respondam agraves

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necessidades da sociedade angolana

Portanto a anaacutelise da qualidade da educaccedilatildeo como um fenoacutemeno multideterminado que

possibilita caracterizar o Sistema justifica que a formaccedilatildeo contiacutenua de professores variaacutevel

importante para esta caracterizaccedilatildeo natildeo deve ser vista como um simples adereccedilo mas sim

como parte importante de uma cultura institucionalmente legal onde a articulaccedilatildeo entre as

instituiccedilotildees de Ensino Superior (pedagoacutegicas ou natildeo) e as do ensino geral seja

dialecticamente um facto

CONCLUSAtildeO

A caracterizaccedilatildeo do PEANU eacute um processo que permite um conhecimento da realidade

educativa que se projecta como ponto de partida para o seu melhoramento que tem como

fundamento a interpretaccedilatildeo da Lei e a revisatildeo bibliograacutefica com procedimento de leitura

criacutetico-contextual

A revisatildeo bibliograacutefica assente numa perspectiva histoacuterico-evolutiva e funcional permite

concluir que existem avanccedilos e retrocessos no processo educativo angolano que em termos

de poliacutetica educativa condicionaram sua evoluccedilatildeo positiva bem como sua afirmaccedilatildeo no

cenaacuterio internacional e ateacute mesmo regional

Esta constataccedilatildeo impotildee desafios a vencer na perspectiva da construccedilatildeo de uma sociedade

educativa em que cada agente participe reconhecendo a necessidade contiacutenua da formaccedilatildeo

dos professores para o PEANU como fundamento do SEEA

Referecircncias Bibliograacuteficas

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Internacional sobre Educaccedilatildeo para o seacuteculo XXI 10ordf ediccedilatildeo Satildeo Paulo Cortez Editora

Eliana Alves Leite Pereira e Eloi Lopes da Silva (2008) Educaccedilatildeo Eacutetica e Cidadania A contribuiccedilatildeo da actual

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FULLAT O (2000) Filosofia da Educaccedilatildeo Madrid Editorial Sintesis Educacioacuten

FREIRE P (sd) Educaccedilatildeo como Praacutetica da Liberdade 5ordf ediccedilatildeo Lisboa Dinalivro Lda

GOTZENS C (2003) A Disciplina Escolar Prevenccedilatildeo e intervenccedilatildeo nos problemas de comportamento 2ordf

ediccedilatildeo Trad de Faacutetima Murad Satildeo Paulo Artmedd Editora

Grilo M (2002) Desafios da Educaccedilatildeo - Ideiasb para uma poliacutetica educativa no seacuteculo XXI Lisboa Oficina

do Livro

Liberato E (2014) Avanccedilos e retrocessos da educaccedilatildeo em Angola Revista Brasileira de Educaccedilatildeo 1003

Lopes C d (2005) Caracterizar a Acccedilatildeo Educativa para ensinar a partir do Aluno SC Ediccedilotildees Cosmos

Morin E (2002) Os Sete Saberes Para a Educaccedilatildeo do Futuro Trad de Ana Paula de Viveiros Lisboa

Instituto Piaget

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Ngaba A V (2012) Poliacuteticas Educativas em Angola - Entre o global e o local o sistema educatuivo mundial

Mbanza-Kongo SEDIECA

Ngula A (2003) A escolarizaccedilatildeo em Aacutefrica Das grandes ilusotildees agrave pedagogia do projecto Roma Edizioni

Vivere i

Perrenoud P (1995) Ofiacutecio de Aluno e Sentido do Trabalho Escolar Porto Porto Editora

Perrenoud P (2002) A Escola e a aprendizagem da democracia Porto Asa

Silva A J (2016) La superacioacuten psicopedagoacutegica de los docentes de unversidad `Joseacute Eduardo dos Santosacute de

la Repuacuteblica de Angola Tesis doctoral La Habana Universidade de Ciencias Pedagoacutegicas `Enrique Joseacute

Varonaacute

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1 Os artigos podem ser escritos em portuguecircs inglecircs espanhol e francecircs

2 Tecircm que ser ineacuteditos e natildeo mais de 20 paacuteginas notas de peacute de paacuteginas incluiacutedas

3 As resenhas submetidas natildeo devem superar 6 paacuteginas

4 O envio de artigo deveraacute ser acompanhado por um abstract no idioma original do artigo e

em inglecircs e no miacutenimo com trecircs palavras-chave

5 O formato das letras eacute Times New Roman 12 justificado e com 15 de espaccedilo

6 Os textos devem ser enviados em formato Word Perfect ou em Word para o PC

7 Os artigos enviados devem ser assinados pelos autores que tambeacutem deveratildeo indicar os

seus graus acadeacutemicos e filiaccedilatildeo institucional

8 A redacccedilatildeo da revista reserva o direito de publicar ou natildeo

9 Haveraacute sempre um comiteacute externo para avaliaccedilatildeo dos artigos

10 Os tiacutetulos dos artigos devem estar na liacutengua original e em caso de necessidade em inglecircs

11 As referecircncias bibliograacuteficas e notas de peacute de paacuteginas devem ser numeradas As

referecircncias bibliograacuteficas devem ser completas na primeira cita utilizando a norma

claacutessica para as Ciecircncias Sociais e Humanas e Vancouver ou AMA para as Ciecircncias de

Sauacutede

12 Aceitam-se os projectos de investigaccedilatildeo que natildeo superam 8 paacuteginas

LIVROS ELECTROacuteNICOS

As citas devem comeccedilar com o primeiro e uacuteltimo nome do (s) autor (es) tiacutetulo do livro

electroacutenico (em itaacutelico) editor data de publicaccedilatildeo nuacutemero da paacutegina citada Endereccedilo Web

(Disponiacutevel a data da consulta)

PROCESSO DE AVALIACcedilAtildeO E DE SELECcedilAtildeO DOS ARTIGOS

1 Os artigos devem ser enviados para o e-mail da revista ou do Director nos prazos

indicados

2 A Direcccedilatildeo acusaraacute a recepccedilatildeo do trabalho sem necessariamente manter contacto com o

autor antes da decisatildeo final de publicar ou natildeo

3 Os autores dos artigos satildeo responsaacuteveis pela sua revisatildeo ortograacutefica e gramatical

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