pesca artesanal no velho chico: da resistência do modo de vida da tradição à dissimulação dos...

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Pesca artesanal no Velho Chico: da resistência do modo de vida da tradição à dissimulação dos conflitos ambientais Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio (Departamento de Ciências Sociais/UFSCar) Introdução No contexto de globalização, no qual o Brasil se insere, as expressões do que Giddens (1997) denomina como modernidade tardia circunscrevem novas formas de organização social do espaço bem como de interações sociais. Leff (2003) refere-se a esse contexto como o de “economização do mundo”, isto é, uma circunstância histórica em que as várias dimensões da vida social são reduzidas à racionalidade de mercado. Logo, o direito à existência de extensos grupos sociais só ganha legitimidade na medida em que adiram funcionalmente aos projetos de progresso que resultam em silenciar a performatividade na qual sua identidade se expressa nos corpos, nas relações sociais e nas interações com a base biofísica. O saber-fazer de grupos tradicionais, como dos pescadores artesanais, não fica imune a tal processo: novas relações lhes são impostas a fim de que incorporem crescentemente o conhecimento perito, seja nas formas de representação do mundo, de assimilação e acomodação de novas tecnologias e de associativismo, consentindo com sua des-territorialização seja no mundo do trabalho como no seu modo de vida. A recente valorização do etnoconhecimento da pesca bem como da mobilização científica e de ong’s em torno das comunidades pesqueiras tradicionais, no interior e litoral brasileiros, não devem ser vistos, nesse processo, como um contraponto às injunções da modernidade, mas um negócio como outro qualquer que afirma os interesses modernos e remunera a peritagem que assedia, com projetos ditos sustentáveis, os lugares que insistem no “atraso”, dissimulando os conflitos em torno de direitos relativos ao acesso a uma base territorial considerada como um bem público. Uma vez que as novas arenas institucionais situam a legitimidade dos direitos territoriais e produtivos no âmbito da acumulação, a desqualificação das demandas dos pescadores artesanais é recorrente, as disputas ocorrendo em persistente assimetria de poder. Sua presença é considerada fundamental, quiçá estratégica, quando o apelo à tradição é instrumental aos setores mais dinâmicos, tal como ocorreu no âmbito da discussão sobre a transposição das águas da bacia do São Francisco.

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Pesca artesanal no Velho Chico:da resistência do modo de vida da tradiçãoà dissimulação dos conflitos ambientais- Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio

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  • Pesca artesanal no Velho Chico: da resistncia do modo de vida da tradio

    dissimulao dos conflitos ambientais

    Norma Felicidade Lopes da Silva Valencio (Departamento de Cincias Sociais/UFSCar)

    Introduo No contexto de globalizao, no qual o Brasil se insere, as expresses do que

    Giddens (1997) denomina como modernidade tardia circunscrevem novas formas de organizao social do espao bem como de interaes sociais. Leff (2003) refere-se a esse contexto como o de economizao do mundo, isto , uma circunstncia histrica em que as vrias dimenses da vida social so reduzidas racionalidade de mercado. Logo, o direito existncia de extensos grupos sociais s ganha legitimidade na medida em que adiram funcionalmente aos projetos de progresso que resultam em silenciar a performatividade na qual sua identidade se expressa nos corpos, nas relaes sociais e nas interaes com a base biofsica.

    O saber-fazer de grupos tradicionais, como dos pescadores artesanais, no fica imune a tal processo: novas relaes lhes so impostas a fim de que incorporem crescentemente o conhecimento perito, seja nas formas de representao do mundo, de assimilao e acomodao de novas tecnologias e de associativismo, consentindo com sua des-territorializao seja no mundo do trabalho como no seu modo de vida.

    A recente valorizao do etnoconhecimento da pesca bem como da mobilizao cientfica e de ongs em torno das comunidades pesqueiras tradicionais, no interior e litoral brasileiros, no devem ser vistos, nesse processo, como um contraponto s injunes da modernidade, mas um negcio como outro qualquer que afirma os interesses modernos e remunera a peritagem que assedia, com projetos ditos sustentveis, os lugares que insistem no atraso, dissimulando os conflitos em torno de direitos relativos ao acesso a uma base territorial considerada como um bem pblico.

    Uma vez que as novas arenas institucionais situam a legitimidade dos direitos territoriais e produtivos no mbito da acumulao, a desqualificao das demandas dos pescadores artesanais recorrente, as disputas ocorrendo em persistente assimetria de poder. Sua presena considerada fundamental, qui estratgica, quando o apelo tradio instrumental aos setores mais dinmicos, tal como ocorreu no mbito da discusso sobre a transposio das guas da bacia do So Francisco.

  • Pretende-se, nessa reflexo sociolgica, apontar caminhos para interpretao do fenmeno de resistncia da pesca artesanal no Alto-Mdio So Francisco frente s interaes scio-polticas modernas que ali desenham outros usos e prticas dissimulando o quanto possvel a existncia de conflitos ambientais e ameaa ao referido modo de vida tradicional.

    1. A modernidade tardia como processo de deslegitimao das identidades tradicionais

    Das muitas formas de entender a construo social das identidades em geral e das tradicionais, em particular, Giddens (1997) oferece-nos uma, que a de v-las como um processo de criao de constncia atravs do tempo, uma espcie de unio do passado com um futuro antecipado.

    No caso das identidades tradicionais, isso implicaria num cuidado de preservao e num valor intrnseco da memria social no apenas como saudosismo, como referncia persistente quilo que j se foi, mas como luz ao devir, exigindo do grupo uma relao de constncia com o espao, mantendo-o sob controle para a conservao. As prticas de trabalho, na tradio da pesca, no apenas esto associadas s dimenses extra-econmicas da vida social - como as relaes familiares, a religiosidade, as festas - mas so balizadas pela oralidade e pelas tcnicas corporais, necessitando se reproduzir e revitalizar desde a interao com tal espao, cuja singularidade define as peculiaridades do saber-fazer na interao socioambiental. A narrativa da pesca artesanal , pois, a de uma simbiose entre homem e natureza que se distingue diametralmente da narrativa da modernidade, onde o processo de trabalho tende a ser alienante, reprodutvel em qualquer espao, j que os espaos so crescentemente homogeneizados, ao mesmo tempo que precisa manter controle sobre uma natureza fragmentada.

    A modernidade tardia, para o autor, delineia um processo de destradicionalizao entendido como a mudana de status da ordem social. Comunidade locais, que representam o ambiente como um contexto interno a sua vida social, passam a ter as rotinas subordinadas sociedade macroenvolvente para quem o mundo, em toda a sua extenso, uma cadeia de oportunidades. A natureza, tal como entendida pela modernidade - numa perspectiva instrumental, como mltiplos e diversificados recursos naturais - objeto de explorao, transformao, destruio, segundo os ditames da

  • acumulao. E as prticas sociais prprias ao capital so melhores exercitadas quando a tradio que h no lugar, na interao com essa natureza, dissolvida.

    Se a tradio o que est envolvida na produo e no controle do lugar por dada comunidade, que se reafirma ativamente atravs da interpretao contnua dos significados e tcnicas do passado, para os propsitos da modernidade a trajetria do grupo precisa, ento, ser desacreditada, tomada como forma de sociabilidade anacrnica, injustificvel perante a sociedade macroenvolvente com a qual tal comunidade levada a estabelecer contato contnuo at ceder s interaes hierrquicas da nova ordem.

    Quando grupos modernos, como cientistas e ongs, partem para um tipo de interao social com as comunidades tradicionais, em geral, o status comunitrio rebaixado. Isso porque tais comunidades so pressionadas a referenciar-se por uma outra temporalidade, que no a sua. Para tornar legtimas as razes dos que o abordam - situados no mundo contemporneo, globalizado -, so indagados a respeito de sem-nmero de fenmenos naquele espao no uso de filtros discursivos, os jarges peritos, que faz crer que a comunidade seja ignorante a respeito do que se passa ali: qual o ph desse trecho do rio? como conseguem monitorar o trajeto do cardume sem fingerprint?; como a ssmica pode interferir na reproduo do Mugil brasiliensis?; qual a contribuio do nitrognio para reduo de tal estoque?; como a situao de gnero condiciona a reproduo social local?. O mecanismo discursivo de silenciamento do outro corrobora na inteno de convert-lo a um novo projeto existencial, descartando o valor da memria social como base para a interpretao de si mesmo, para a organizao do tempo e a produo social do lugar.

    A adeso da comunidade ao encaixe funcional com a sociedade macroenvolvente no apenas um processo pleno de ardis, no qual os grupos que representam ltima falseiam o rol dos beneficirios, escamoteiam suas contradies, aplainam unilinearmente os argumentos em prol das vantagens a serem alcanadas pela comunidade na cesso presso exgena, isto , na aceitao de sua des-territorializao. tambm um processo no qual a memria social da comunidade de base tradicional, mais do que passar a significar um arcabouo intil, onde j no se encontra nenhuma referncia de verdade para projetar o futuro de seus membros, torna-se razo de embarao e vergonha da comunidade perante o outro, denotando razes scio-histricas que precisam ser rompidas e lanadas fora rapidamente, sendo este

  • estgio o de culminncia da violncia simblica (cf. Bourdieu,2004) que tais interaes estabelecem.

    1.1 A pesca artesanal como modo de vida em extino A paulatina dissoluo do modo de vida da pesca artesanal pelos valores e

    prticas da modernidade pode ser caracterizada atravs da trajetria de inmeras variveis socioambientais e econmico-culturais. Dentre elas, destacamos: a) a forma de produo e de propriedade dos meios de produo; b) as relaes sociais de trabalho; c) o objeto de trabalho; e d) o processo de trabalho. Os meios de produo fundamental da pesca artesanal, visando sobrevivncia e reproduo do grupo, so os petrechos monoespecficos (como tarrafas, anzis, fisgas, caceias etc) ou multiespecficos (como redes de espera), que variam conforme a espcie de peixe que se objetiva capturar bem como as embarcaes, quase que imperiosas, embora haja pescarias de beiras e de pedras em rios que as dispensem (cf. Valencio et al, 2001). No que tange tradio das comunidades de pescadores, importa o contnuo domnio da feitura dos petrechos. Por exemplo, as tcnicas de tecer malhas com agilidade e destreza, e remend-las a cada retorno da pescaria, no considerando o estado lastimvel desse meio de trabalho como passvel de descarte, traz tona o valor dos processos de reutilizao. A tcnica pde ser mantida mesmo quando os fios crus foram substitudos pelo nylon, pois a produo das redes e tarrafas permaneceu de domnio da comunidade. A repetio do ato de tecer, como tradio, onde repousa a tcnica forte e no na matria prima, neste caso. As iscas, feitas de pequenas esculturas de misturas de comidas locais, so oferecidas pelos pescadores artesanais como iguarias sedutoras ao peixe. Os polmeros fluorescentes oferecidos, pelo mercado, como eficientes iscas, s seduziram pescadores amadores e esportistas. Tanto quanto a diversidade dos petrechos, h aquela relativo s embarcaes produzidas pelos pescadores. A utilizao de madeiras e palhas da flora local, com distintos desenhos e formas, capacidade de carga e agilidade de locomoo, tornam-nas pequenas obras de arte: as canoas do Alto-Mdio So Francisco so acompanhadas de remos como meio principal de impulso enquanto que, indo em direo ao Baixo curso deste rio, so as velas que predominam; as velas reaparecem nas jangadas ao mar dos pescadores cearenses, mas essas so planas na superfcie de onde se equilibram os homens no

  • ritmar das ondas. Mais amplas no Sul e estreitas e finas ao Norte, as canoas esto presentes como meio de locomoo comunitrio de populaes ribeirinhas/litorneas para as diversas finalidades alm do trabalho: o que viabiliza as redes sociais microrregionais a qual h a visita parentela e compadrio da comunidade vizinha, o partilhamento de formas de cura e das festas, a ida a escolas comunitrias e missas etc. A solidariedade familiar e extra-familiar est presente, na, comunidade de pescadores artesanais, seja para compartilhar a feitura dos meios de produo, seja para a execuo da atividade de trabalho. Na primeira, a feitura de uma embarcao, ainda que de propriedade de um indivduo, um processo no qual, em diferentes intensidades, os demais pescadores envolvem-se para ajudar ou observar valorizando o feitio. As praias ou barraces de colnias ou associaes so espaos pblicos no qual se estabelece uma figurao na qual os que dominam a arte do talhe fazem-se atrair pelo testemunho dos companheiros que especulam e intervm para melhorar o desempenho e a esttica da modesta nave. Da, porque quando a mesma finalizada, todo o grupo comemora e renova sua prpria habilidade de fabrico.

    Muitas so as pescarias que exigem a presena de um parceiro ou ajudante de pesca em vista tanto da necessidade tcnica, que exige fora coletiva para realizar a extrao, quanto da carncia de meios prprios de pescadores mais jovens, a qual os mais velhos so solidrios. Encontra-se, a, diversas estratgias de partio do fruto de trabalho, desde o partilhamento do pescado capturado diviso do resultado em renda monetria proveniente da venda realizada do referido pescado. No geral, o trabalho da pesca artesanal apresenta processos de lealdade pessoal e mobilidade, dos aprendizes aos mestres. A autoridade dos ltimos deriva de um misto de tempo de insero na comunidade, o primor da percia em pescar e em fazer os meios de produo, o tempo de atividade e carisma. Tais critrios, ao invs de fomentar distanciamento social dos trabalhadores, colaboram na sua coeso uma vez que os mestres ou as lideranas so legitimados quando forjam a continuidade e renovao do grupo, procurando resolver disputas e conflitos. Peixes e cardumes silvestres so os objetos de trabalho da pesca artesanal, aquilo sobre o qual o pescador lana-se em esforo e habilidade, requerendo um amplo conhecimento da estrutura e funcionamento do ecossistema aqutico ltico ou lntico, de gua doce ou marinha, incluindo a dinmica climtica interferente no comportamento da ictiofauna. Assim, aquilo que, na racionalidade cientfica, objeto de conhecimento de variadas reas das cincias exatas e da vida - ictiologia, limnologia ou oceanografia,

  • hidrologia, meteorologia - encontra-se devidamente integrado, ainda que com outras significaes, na cosmogonia da pesca artesanal.

    O processo de trabalho na pesca artesanal , em parte, um fazer objetivo, isto , visa que as tcnicas adotadas alcancem o mximo de eficincia dentro das regras de manejo prprias do grupo, ao qual no permitido extrair das guas tudo o que se queira, mas faz-lo segundo as condies de reposio natural do estoque (cf. Valencio et al, 2005). Porm, tambm um fazer ritual quando a prtica, vlida para o grupo e validada constantemente por este, coloca de lado sua autonomia espao-temporal para alicerar sua expectativa de xito no quadro referencial judaico-cristo. Na colnia de pescadores de Pirapora, Minas Gerais, o lder Pedro dizia: pescamos da mesma forma [com as mesmas tcnicas] igual ao tempo de Jesus (cf. Valencio, 2007). A manuteno do mesmo fazer o que confere um sentido de dignificao do trabalho.

    A dissoluo da tradio d-se por vrios processos, dentre os quais, o de disputa do territrio das guas e dos peixes com outros usurios. Aquilo que Ferreira (2003) denominou de aqatrio, as guas de rios e mares vistos como territrio aberto e bem pblico, vai paulatinamente sendo privatizado e manipulado com a intensificao da transformao e extrao dos recursos naturais: rios piscosos passam a ser seccionados pelas grandes barragens, a servir aos empreendimentos hidroeltricos e de irrigao; a ssmica, que rege a explorao petrolfera em mar, impacta corais e demais reas reprodutivas; ambos desencadeiam alteraes do ecossistema aqutico, para no dizer resignificam o territrio aqutico como rea de segurana e inviabilizam que a pesca artesanal permanea no uso do lugar como forma de revitalizar a identidade coletiva.

    Quando as novas formas de controle territorial retiram o pescador artesanal do tempo e do espao do rio ou mar e dos peixes - com novos padres normativos que o probe de freqentar os locais usuais de captura bem como manter as rotinas diuturnas de lanar-se s guas para extrair diretamente e indiretamente o sustento da famlia (para comer o peixe ou vend-lo, viabilizando renda para prover outras necessidades) - a carncia resultante d-se no nvel dos mnimos vitais. A fome justifica que a pesca artesanal prossiga margem da lei que, ao fim e ao cabo, lei feita para criminaliz-lo, enquadr-lo, puni-lo com a perda dos seus meios de produo (apreenso de petrechos e embarcaes) e multas mltiplas vezes maiores do que a renda mdia real da pesca possibilita. Assim, o arcabouo legal engendrado no seio das instituies da modernidade (e operacionalizado pelos rgos ambientais no nvel, federal, estadual ou

  • local) no deve ser entendido como propcio para resolver disputas de uso territorial e produo social do lugar passvel de considerar os argumentos da tradio. Ao invs de instaurar consensos de uso, tais instituies anulam a possibilidade de reproduo material da comunidade em bases tradicionais e pressionam-na para transformar-se numa coisa diferente daquilo que sempre foi.

    O modo de vida da pesca tambm vai desaparecendo quando novas geraes de pescadores desconsideram a importncia de fazer suas embarcaes e passam a terceirizar para pescadores mais velhos o fabrico desse meio de produo, um passo para a ambio posterior de adquirir a embarcao de fibra de vidro ou alumnio, com motor. Para serem mantidos, exigem alterao do esforo de pesca num ambiente j impactado por usos vrios e rumando para um colapso. A lgica de financiamento da embarcao e motor modernos (remunerando o capital a juros), bem como de manuteno da fonte de propulso (gasolina, a preos crescentes), a mesma que leva exausto os recursos naturais no geral. Quanto mais ajustados aos meios de produo da cadeia produtiva industrial, mais insuficientes parecero ao pescador as tcnicas seletivas de extrao tradicional. Onde havia regras comunitrias e prticas compartilhadas, o individualismo e a predao comeam a ser fomentadas pelos pescadores modernizados. Nesse contexto, emergem os grupos de peritos que se apresentam comunidade com frmulas quase mgicas, fugindo ao reconhecimento do conflito e introduzindo solues pacificadoras e ditas sustentveis porque aprumadas num argumento de convivncia possvel entre usurios modernos e comunidades tradicionais, basicamente, ajustando os ltimos aos primeiros atravs da inovao tecnolgica.

    Pegue-se, como ilustrao, uma das alternativas pacificadora que veiculada como a resposta moderna, no nvel federal (SEAP) ao colapso pesqueiro: a aqicultura e suas variantes. Esta exige a dissoluo da cosmogonia da pesca artesanal para a incorporao de outro esquema classificatrio com foco em molusco, crustceo, espcies estranhas de peixes (no silvestres, invasoras ou introduzidas), rotinas de horrio industrial para a lida com remdios e rao etc. E gera alteraes na identidade coletiva provocadas pela perda das tcnicas corporais relacionadas pesca e que no cabem no manejo semi-fabril, de escala. As tcnicas corporais dizem respeito aos modos pelos quais os homens, de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos como razo prtica, coletiva e individual (MAUSS,1973). Os mais velhos, ao carregarem os mais jovens como ajudantes de pesca, so os que colocam o prestgio de

  • sua experincia como modelo de destreza fsica - no equilbrio do balano da embarcao, na dignidade em partir para o mundo das guas e dele retornar como uma aventura sempre necessria, na resistncia em perseverar horas, s vezes por noites a

    fio, at alcanar o momento certo, na agilidade, preciso e fora para jogar tarrafa etc - a ser imitado no apenas como um bal sobre as guas e com as guas, sincrnico ao movimento dos cardumes, portanto, do que concebido como natureza. A ligao entre esses dois movimentos sincrnicos, do corpo, do peixe e das guas, o que retido na memria e no testemunho do aspirante como a tradio a preservar: o corpo sozinho, como meio tcnico primrio da pesca, no alcana xito se a natureza modificada numa celeridade maior que o corpo da cultura percebe e representa. A autoridade tradicional, do pescador sobre os aprendizes, se preserva em traz-los ao testemunho desse processo de trabalho que anseiam ver reproduzido na prxima gerao.

    Na circunstncia na qual o tanque-rede o que se coloca como alternativa pesca artesanal pelas polticas no setor, a autoridade sobre o grupo passa a ser constituda, em primeiro lugar, naquele que domina o processo de produo dos equipamentos (gaiolas), dos insumos (raes e remdios), do objeto de trabalho (alevinos e espcimes juvenis), sujeito este instaurado numa base industrial. Em decorrncia, a autoridade se transfere aos tcnicos que capacitam os pescadores a tornarem-se cuidadores de gaiolas(cf Valencio, 2007) que o mesmo que dizer, num desaprendizado das tcnicas corporais ensinadas pelas geraes anteriores: onde havia a necessidade do equilbrio, na canoa ou jangada, para jogar a pesada tarrafa, h o curvar paciente com o saco de rao para alimentar os peixes cultivados; onde havia a percepo aguda do movimento dos cardumes no complexo emaranhado de vida silvestre nas guas fluviais ou marinhas, e o inusitado a que o corpo deveria estar alerta, h o acompanhamento modorrento do crescimento dos mesmos espcimes no mesmo lugar, sem surpresas, tal como a lgica fabril reproduzida em meio aqutico. Nada mais h, para o pescador-operrio, que se precise saber sobre a natureza que no seja o meio ambiente da gaiola e, no mximo, de um entorno ora representado como ameaador produo: predadores que danificam as gaiolas de tilpias, como piranhas, por exemplo. Onde havia o habitus (cf. BOURDIEU,2004), isto , onde o pescador via-se envolvido na produo ou construo de estruturas, falta um meio reflexivo da ao.

    A participao cientfica na elaborao de alternativas pesca, como a aqicultura, cuja tecnologia derivada difundida a um sem-nmero de comunidades de

  • pescadores artesanais, no se d apenas como interao indireta na dissoluo da tradio. Com a ampliao do fomento a pesquisas de cunho participativo, muitos so os cientistas que se lanam a fomentar a que pescadores tenham a titularidade conjunta de projetos-piloto de tanques-redes para peixes exticos em braos de reservatrios alm de estimular carcinicultura em reas de mangues, maricultura no litoral sulino e afins. Na seleo dos pescadores de uma comunidade, que so abordados e que se dispe parceria, destacam-se, constituindo nova fonte de autoridade (secundria a do cientista), os pescadores semi-letrados, aqueles que podem minimamente entender a lgica de projetos ou assinar pela comunidade. Na medida em que o grupo enredado pelo fazer moderno, so as competncias modernas, isto , peritas, que passam a ser requeridas s novas lideranas do lugar. Os que sabem escrever, e no mais os guardadores da memria, so os contatos reforados pelas interaes com os peritos; os que sabem vender os projetos no escopo da racionalidade moderna, no mais aqueles que portam as tradies, so os preferidos; por fim, os letrados e articulados, isto , que sabem defender os projetos segundo a carncia da sociedade macroenvolvente (= precisam definitivamente dos insumos do mercado, precisam atender ao grande mercado exportador da pesca e contribuir com divisas ao pas) e no mais aqueles que lutam pelas reivindicaes do grupo segundo as carncias fundadas no valor da tradio, so os indispensveis.

    2. Os prstimos da cincia no encabulamento da tradio Quando Giddens afirma que a tradio o que integra e estabiliza os vestgios

    da memria num todo coerente, o qual alimenta a identidade coletiva e alicera uma dada rotina, vemos que as novas prticas econmicas em torno da pesca tornam esses vestgios em algo sem serventia. Ao invs das lembranas emergirem altivas (fao tal como meu av fazia), as mesmas so paulatinamente silenciadas. Reportar-se s mesmas cai em desuso, calam-se envergonhadas na memria da comunidade frente s exigncias de proclamar as alianas com o conhecimento especializado (fao tal como recomendou o cientista). Logo, o eixo orientador das prticas da pesca, isto , o poder, torna-se exterior comunidade: no meio macroenvolvente que se passa a considerar estejam situados os sujeitos e as solues que precisam renovar a produo social do lugar, isto , capazes de dar conta de pacificar os conflitos que passaram a ocorrer na transmutao do rio, ou do mar, em meio ambiente, cuja explorao decidida com base na hierarquizao que parte do usurio mais capitalizado.

  • As solues winners - bem suportadas pelo fomento das agncias de pesquisa ou rgos, nacionais e internacionais, que se interessam pelo controle moderno da informao sobre os recursos e a dinmica do espao social - dizem respeito capacidade de convencer tais comunidades a se ajustar hierarquicarmente e redefinir radicalmente seu modo de vida para viabilizar que os novos agentes no territrio tolerem a continuidade de sua presena no territrio que deixa, assim, de ser seu lugar.

    A aqicultura, que toma os reservatrios do So Francisco numa aliana do setor pesqueiro empresarial e o setor hidreltrico, prescinde inteiramente da memria dos saberes e das habilidades da pesca tradicional. Os conflitos entre usos deixariam de existir posto que as variveis tidas como fundamentais - um trabalho e uma espcie de peixe - estariam garantidos ao pescador, pouco importando se este trabalho deixasse de ser, propriamente, o de pesca, e a espcie de peixe, diversa do que as guas correntes do velho Chico outrora permitiu reproduo.

    Precedendo introduo de projetos de aqicultura, a resistncia do pescador e dissimulao do conflito em torno dos direitos territoriais so minados atravs de uma nsia em publicizar um fenmeno de colapso da pesca. Tudo se passa como se o declnio dos estoques ocorresse numa linearidade atividade de captura e no em razo da alterao dos ecossistemas aquticos pelos usos modernos que desterritorializam os modos de vida tradicionais. A linearidade cientificista - que se utiliza de pretenso rigor, em procedimentos quantitativos de pesquisa, para observar/apontar/analisar o esforo pesqueiro - parte de uma premissa simplista e subsidia um ordenamento simplrio: o nexo causal da reduo dos estoques tem relao exclusiva com o sujeito econmico que exerce a captura, o pescador, do que decorre que tal sujeito deva ter sua atividade criminalizada para permitir a reposio natural dos estoques entendidos como sobre explorados. Conforme outras anlises de Valencio et al (2001, 2005) e Valencio (2007), tal raciocnio no s deixa de fora da matriz de causalidade a complexa sinergia entre as vrias prticas que comprometem o ambiente aqutico e desfavorecem a capacidade de suporte do meio ictiofauna - e preserva a seriedade dos modelos ceteris paribus para as variveis realmente relevantes da relao social com a base biofsica (deixadas, por tal razo, fora do modelo) - como tambm orgulha-se em respaldar os marcos legais que restringem a sobrevivncia e reproduo de comunidades tradicionais. Dito de outra forma, tais estudos so financiados e/ou seus resultados orgulhosamente servem de subsdio aos rgos ambientais que, por meio de propostas ao legislativo, desejam restringir cada vez mais a continuidade da atividade. Deixa-se, assim, evidente nos

  • resultados provenientes de suas anlises: so as tais prticas arcaicas e a ignorncia dos pescadores artesanais aquilo que compromete a qualidade do meio ambiente.

    Mais perverso, como violncia simblica, do que gerar, numa certa racionalidade, argumentos para destilar o preconceito aos saberes e prticas estranhos ao moderno - relevando a intolerncia ao diferente - utilizar da fora de trabalho de pescadores artesanais para gerar os dados que visam elimin-los enquanto identidade coletiva e enquadr-los como transgressores da lei. Quando o cientista interage com os pescadores de determinada comunidade, apresentando como objeto de pesquisa a preocupao com os estoques de peixes e desejoso por conhecer mais detalhadamente as tcnicas de captura praticadas localmente, no raro, so bem recebidos porque a comunidade tradicional entende que haja afinidade de tais objetivos com suas prprias preocupaes: cuidar para que o peixe no escasseie, atravs das estratgias ancestrais de observao do comportamento das diversas espcies, no que as tcnicas empregadas se adaptam para equilibrar a captura com a reposio natural; e dar visibilidade s tcnicas em si como a tradio viva, que integra os meios de trabalho s tcnicas corporais particulares do grupo. O que permanece oculto, tambm aqui, que, na observao disciplinar do cientista, ou do ensino das tcnicas de apontamento ao pescador, informalmente contratado como ajudante de pesquisa e fazendo da sua captura um experimento cientfico, a realizao de um controle social que ajuda os pescadores a converterem-se lgica acadmica da produo de provas contra si, embora esquecidos os pescadores sejam como co-autores das publicaes que da deriva. Ento, logo aps, deparam-se os pescadores com decretos de proibio da pesca cujas autoridades proclamam sua deliberao com base nos estudos cientficos do qual eles participaram, a um s tempo, como objeto de pesquisa e apontadores de campo, duplamente envolvidos para melhor configurar a neutralidade da cincia e a culpa desses trabalhadores: foram os ltimos que sujaram suas mos para produzir o crime e a notificao do crime que a cincia apenas constatou. Assim, v-se uma figurao de estabelecidos-outsiders (cf Elias & Scotson, 2000) na qual os cientistas, agentes fiscais e operadores do direito, como grupos estabelecidos, atribuem-se uma superioridade e dignidade da qual est excluda todos os membros dos grupos tradicionais. como se o exerccio profissional dos primeiros dependesse da manuteno de um contato social com os segundos sempre partindo da suspeio de transgresso destes. A cultura da pesca , ento, tratada como subcultura indefensvel publicamente.

  • Talvez, mais violento, mas igualmente imbuda na mesma lgica, ocorre em duas situaes: na deturpao dos dados a posteriori da coleta de campo, tal como se verificou por ocasio de audincia pblica visando o fechamento da pesca em Minas Gerais, em maio de 2002, na qual os pescadores negaram a veracidade dos dados de pesquisa, por eles coletados diretamente (cf Valencio, 2007); ou, na criminalizao do pescador quando flagrado em captura em poca de piracema e que, no entanto, a est realizando como captura cientfica (quando a lei a libera em tais pocas), isto , sob as ordens/orientaes de um sujeito que no se mantm no esforo direto no lugar para dar respaldo abordagem da fiscalizao ambiental. Ainda que esclarecimentos posteriores permitam a liberao dos pescadores do flagrante - quando estes chegam a ser detidos juntamente com suas tralhas - o estigma de criminoso decorrente da figurao que o agente fiscal impe com o flagrante, na curiosidade pblica que incita no local, pode permanecer para suscitar tanto a descostura da sociabilidade corrente, pois h os que passam a evit-lo por suspeita da sua idoneidade, quanto um rigor desmesurado da fiscalizao, que passa a observ-lo com mais constncia at que o pescador reincida, como si acontecer segundo as representaes policialescas de que o Estado patrimonialista est prenhe.

    Afora isso, os peritos em torno das alternativas pesca artesanal constroem interaes em que a deferncia mnima liderana tradicional cessa logo que precisam aglutinar em torno de si as geraes mais novas dispostas a participar de experimentos cientficos. Filhos e netos de pescadores, j inseridos, ainda que precariamente, numa cultura letrada e sentindo-se valorizados pela remunerao em modestas quantias em troca de apontamentos sistemticos, so tomados pelo gosto de, paulatinamente, solapar a autoridade tradicional. Mais importante do que pescar, informar ao apontador o resultado de seu esforo e, ao apontador, a expectativa que seus dados sejam validados pelo cientista e definam um novo rumo para a comunidade, rumo que, at ento, era endogenamente construdo.

    Dito de outra forma, o modo de vida da pesca um habitus que precisa ser vigiado para no contaminar a nova estrutura social, no infringir as novas regras institucionais

    balizadas pela lgica de economizao do mundo, isto , da destruio dos lugares que se tornaram objeto de atrao do empresariado, cujo controle da base biofsica, em que tais comunidades sobrevivem e se reproduzem, exige um assdio cultura ao ponto de seu envergonhamento e sua auto-extino.

  • Para concluir Diante da globalizao, necessrio reconhecer os processos pelos quais os

    apelos da modernidade intensificam seu assdio aos lugares produzidos pelas comunidades tradicionais, tais como pelos pescadores artesanais. O processo de acumulao requer vrias estratgias de desterritorializao da tradio, num elo entre a cincia, a tcnica e o arcabouo legal que, no geral, configuram um contexto de criminalizao e eliminao da pesca tal como estabelecida por geraes.

    A geopoltica da sustentabilidade no apenas mercantiliza progressivamente a natureza, como apontado por Leff (2003), mas pede a aderncia da fora de trabalho dos pescadores, transmudada em prticas do tipo industrial que perverte a ordem simblica da relao do homem com o meio assim como as estruturas de autoridade local.

    Aquilo que, na interao de peritos com comunidades de pescadores, tratado como novas certezas que esto em partilha, so interpretaes de interesse dos circuitos macroenvolventes que, longe de serem solues sustentveis, lanam vus sobre aquilo que destroem.

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