xavier valencio o mez da grippe e outros livros

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VALÊNCIO XAVIER

o MEZ DA GRIPPEE OUTROS LIVROS

-~-COMPANHIA DAS LETRAS

Copyright © 1998 by Valêncio Xavier

Projeto gráfico:Hélio de Almeida,

com base em indicações do autor

Capa:Hélio de Almeida

Preparação:

Denise Pegorim

Revisão:

Eliana Antonioli

Ana Maria Barbosa

Dados Internacionais de Caralogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Xavier, Valêncio

O mez da grippe e outros livros / Valêncio Xavier.

- São Paulo: Companhia das Lerras, 1998.

Bibliografia.ISBN 85-7164-810-7

1. Contos brasileiros I. Título.

98-3379

Índices para catálogo sistemático:1. Contos: Século 20 : Literatura brasileira

2. Século 20 : Contos: Literatura brasileira

1998

CDD-869.935

869.935

869.935

Todos os direi tos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ LTDA.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 7204532-002 - São Paulo - SP

Telefone: (011) 866-0801

Fax: (011) 866-0814

e-mail: [email protected]

ÍNDICE

o mez da grippe, 7

MacÍste no inferno, 81

o minotauro, 137

O mistério da prostituta japonesa & Mimi-Nashi-Oichi, 181

13 mistérios + O mistério da porta aberta, 203

Nota bibliográfica, 323

OMEZDAGRIPPE

novella

Vê-se um sepulcro cheio de cadáveres, sobreos quais se podem observar todos os diferen­tes estados da dissolução, desde o instanteda morte até a destruição total do indivíduo.Esta macabra execução é de cera, coloridacom tanta naturalidade que a natureza nãopoderia ser, nem mais expressiva, nem maisverdadeira.

MARQUÊS DE SADE

1918

Outubro

QTTUBRO==--~--=-..::~~_~jSI!IQ9:~ I~- I I l' ~I3; -ti 6ti I ~I Ri 91~~llfl~13114: lói l():_~, !~ll!120 121!2i~3;:!4~!;:~ti27 ;~S.IiHi00131i-1-

Alguma coisa

Relatório do Sr. Dr. Trajano Reisdirector do Serviço Sanitario.

A paz está interrompidalo.~o presidente Wilson não fra.. ! D.

ta com um governo que con.. I FO~~

tinúa a commeHer toda a sor.. I~~~t==== te de crimes ==== .da. J

I de uWA,':;illN(.lTUN, 10.- O t·jX Os jornal)" ua bru" se maui-. E~

Em Paranaguá, n'aquella epocha, ia effectuar-se o casamento de uma filha do syrioBarbosa. Do Rio de Janeiro vieram assistir ás bodas alguns syrios, que estavam com omal incubado.De Antonina e Morretes seguiram para aquella cidade, com o mesmo fim dos do Rio,alguns patricios do Sr. Barbosa. Folgaram juntos e cada um dos residentes em

Antonina e Morretes trouxe com sigo o gérmen do mal, que se disseminou comrapidez entre as populações das referidas cidades. Em Paranaguá, por sua vez, oshospedes fluminenses não s6 padeceram da molestia, como também a transmitiramaos patricios e á população.

Um homem eu caminho sozinhonesta cidade sem genteas gentes estão nas casas< grippe

13

,-----------------------------_ .. -

DIA 20 DOMINGO

$

A Allemanha vae capitular

A SEMANA RIMADA

"La influenza espanoIa"Esso todo, Ia gran grita,No tiene casi que nadaNo passa, cosa esquisita IDe una ... gran espanoIada

Jeca RabecãoO COMMERCIO DO PARANÁ

ESTORES

•li

OORTIIVAS

OORTINADOS

BRIZE-BIZES•VE.RIFIQUE M OS SORTI MENTOS

QUE APRESENTA

OLOUVRBRUA QIJINZE DE NoveMBRO, 43 5. IJRAI..'N.w CI".

14

DIA 22 TERÇA

o DlRECTOR DO SERVIÇO SANITARIO MANDA AVISAR AS EMPREZASFUNERARIAS QUE FICAM PROIBIDOS OS ENTERROS Á MÃO, ENQUANTOENTENDER NECESSARIO Á BEM DA SAUDE PUBLICA E QUE OS ENTERROSDOS QUE FALLECERAM DE MOLESTIAS TRANSMISSÍVEIS SERÃO FEITOSSEM ACOMPANHAMENTO SENDO O CADAVER PROMPT AMENTE REMOVIDOPARA O NECROTERIO DO CEMITERIO MUNICIPAL.

CORITIBA, 22 DE OUTUBRO DE 1918O SECRETARIO - RICARDO NEGRÃO FILHO

- "E, era a pé. Iam carregando o caixão e as gentes a péacompanhando pela cidade inteira até o Cemitério Municipal.Tinha os muito ricos que faziam enterro com carro, cavalos depenacho, pano preto, mas eram bem poucos. A maioria a pé,por muito tempo, foi assim." DONA LÚc1A - 1976

15

UM CASO PUNGENTE

16

Quando o povo se achava agglomerado emfrente ao botequim, chegou ali MariaEsteves, noiva do assassinado, que pediapara ver o cadaver de seu noivo: pedido aque os guardas depois de muita relutanciaresolveram acceder.A infeliz, ao ver o cadaver do noivo, cahiudebulhada em lagrimas, lamentando a suatriste sorte.

COMMERCIO DO PARANÁ

~============="

IIVida Social II.~=======~Positivamente a vida humana não vale um caracol ...

COMMERCIO DO PARANÁ

B<ldac:ção • OftlciJulo'W. 15 de Yovtlmbro. lU

"'ndlM"e\o teleg. _ "Diarlo"l .•ba. do Corrttlo - O

"'E1d,,"HONEl lI08 DIARIO I-,=""""'======================.::===============- ---DiJ'cctor: Generoso nor~l'~ FOLHA DE MAIOR CIRCULAÇÃO NO PARAN,'----

Que

n s-. dr. Ch.de T~ nca. rim.,Jpgo.cf, ,1 Frail1cea com,' ítuiçlo' é

A Q."ptn1aacl(tod08 -lyt~," I~

~~osen~;:1Ilu8~~~~O

da~ PO:lu1açõe.e:.Fora.l'1, l!am~

f''''f'rci~;')Il, '\Se ~1dOrf~!l Í1'ancezeaSOllr -e Tripoli.ficou a,]dido I.f(T.vprnl);.lor mll5l

O trL'1l!1mo é'ê

inforntR':1O de (­RI-o wn I'rupo'ques di m de tera conl!a.:a. AUI

O cOl.~ula.do ~gaJ10 di wppriltchf"Qullri<e de.:exame ..t' ledico,fc3t1a um, para

Theatrosi"'A'$~'_ .

THEA'i'RO· E:anima.do; &., ir""

hontem·· Ct8&8 84da. TU&;';S, tend

delicada. 'P~I~"Chllro-,nall dal!oje ~..- 9- e

11"a.n~ -f.1m ~·Oem 4 ~;-te •.

THEA'lROMduzidUi·, Undp"'ico le,',u hOngrande- a: si'8tene

!Annun{' a.lle :pde 3.1tt!. onBl<u;1ma",

AMER:'CA Cllar clnen:""It·d& It-em, 'exh; ,)lndoobteve C1-rmdepars.hoY-. o agranrde fim -de"Protê&".

PAlA'-C: O Tader doA'UoT",Çao cine:ra&togt'com. que o PaIhontem u'n& c&

Para. h"je a.!i1m ••As ·feduzl

o gran,

A inspecção do sr. general A Syrla eBarbedo a esta cir·

cumscripção

Ul':<laçamml da. ord~l" du dia ho. Je baixadQ. pelo SI', (.'oroue-l OlavaCO!'TI'ia a se-guinte parte que se re­fer~ 11 visitl.l. tle inspeccílo dg ST, {;'C"nl2'ral J.uiz B8Tl>edo. ~omma.ndantedt'Mta rogiíi.o, A. cir'cum6Cripcli,.Q doParanA.: .

Termin:W~l a In:-lpecC;Zlo pelo ar.gcu(,l"a[ I.'ommnndunte (ll'sta l'l'giAi(,miHtar ao.!;' COI'lIO; (' f':<talH'\{'ciIHcn.

tos milit.ar€'s desla cU\lital, lendotudo 1'01' mim [l{'Om'llallh<ldo em todas as v;sita-g {jUe' fl'7., cumpro (l gra­tu deVe!' de Jlllul:('ar que me IHll'f'ceter sido a 1lI('J-hor 1l()S~lvf'1:t IllT\lJ"('Ssão rN'(>hida (1('1" mt'l'Imu ar, gC'nt'n1.lque' deve ter notado o m'uito l.l.UC setem esforçado 09 .sre.· eommal'ldantes, oMiciaes e '1,rat'l.s das div<lrsasunidades para. Que ã. i.nfltruccão militar fo~e rni·nistrada conveni-ent<·m-ente e sem embar-aços.

l..evando na de<Vlda conta. a ta.lta-de folffk.iacs e a d('[i$ipncia do ma·teria.l lll'C'~~;;sa,riopara que a instruc·çü'o vudes-;C' ser comp-le:ta" pense na .•'tla ter deixado a del'lejar ao sr, g('neral o reBultullo dos eS'[orç:C»!~IO['todos empregados,

O puseio militar no dia, 12 de 'Üil­tubro re,-elou o ass-eio, ga.roo E'_ di:;;

-ciplina das unido.de,q. parecendo tnaqllella autorld;ide ficado ~uti8felta.!com o que obseI"Vou.

Por todO<:! esses nlotiv06 apresento minhas felicitaçõE"1iI aos sr8. commandantes de unidades e dirE'e-torE'sde e8ta~leêlmento!i mj.litares, belIlcomo aos o1iri-cille8e praças, (IUC'b~-tante concorreram para os resultadoa colhidos, agradeçendoJ.hes o in"teresse sempre patente&-dono cum.primento dos seus deveres e louvando-os 'pela. carpacldade e disciplinae Que continuam~nte dão Ilobejasprovas.

Aprovoito ainda &- oppor>tunidadepa.ra. felicitar os srl!!. oi!tt'icia.el!!que,fizcra.m conferencias militares, A.8qus,ee assieti, 'J)elJ.obom exito e.l'C&n~\;;ado de seu. eetot'\;;oe.

A designação desses ofriciaes queera. feita por 80rte rooalhiu no.!!fleguintes Grs.: 1.0 t&nen-te j<"a.brlcl&nt>-do Rego Ba.IlOS, do· 4.0 R. Lj 2.0tenente Adria.no Saldanha. MazzR. easpirante â. 'O'f!tcial Ant,onlo ANCSde Magalhites, da 2,- C. M.; capiotãoJOü.o F.:rnandes Jonsen Tavares, do2.° H. A. M., e capitão Seba.stifi.o Pinto da Silva, de 2.° B. E. Devo citart<l.rnbem o sr, major dr. Olegario de

--- ••••- ••••------'Andradtl Vasconcellos, chefedoSe-r

viço de Saude e Vetel'lna.Tia. da Circumacrlpçi.o, que se encarregou doeervi(:o de con!erencl&!l 1I0bre h)'"giene, que 'Proouziu um beBo traba.lho l!!obre Q alcooliemo, declamado__._..•.._._._-. _11:,..' ~~.•• ,.I.•.•. 'JIt

CONTINUA NA 2, PAGINA

Com numero rel;"i,me-n'al. !uneet-o..U/..ül hnpt.,e •..•.••• C'--"ro"t:"- ~'J,,,:..•:.r..•• I_ ,

A influenza

17

CONSELHO

ACONSELHAMOS AOS HABITANTES DE CORITIBA QUE NÃO SE VISITEM,MESMO QUE NÃO HAJA MOLESTIA NAS CASAS QUE PRETENDEREM FRE­QUENTAR, ATÉ QUE TERMINE A EPIDEMIA NO RIO DE JANEIRO; BEMCOMO QUE NÃO CONCORRAM AOS LOGARES ONDE HOUVER AGGLOME­RAÇÕES DE PESSOAS.

SR. DR. TRAJANO REISDIRECTOR DO SERVIÇO SANITARIO DO ESTADO

22/10/1918

Entro na casaa porta sem chavearalguém que saiu para voltare não mais voltouentrou para saire não mais saiu

Não sei porqueentro entreinesta casa onde nunca entreiPássaro em água estranhaVagueio pela penumbra do corredorpela porta entreaberta vejo

18

MUSAALEGRE

DIA 23 QUARTA

fUCA VIOLA

Não há nada neste mundoQue mais possa aborrecerDo que cruel "que brade ira"Sem vintem pr'a dispender

Esteve aqui a OlonaCom Salvat - o bello par ­E não pude uma só vezOs mesmos apreceiar-p!Não vos sei tambem dizerPorque houve tal vazanteSi por andarem como euNuma lizura berrante

Ou si por cousa diversa:Por se meter na cachóla

Do povo qualquer receioDe companhia "hespanhola"

Pois que d'elln só se fallaN'outra cousa não se pensaE anda tonta, atrapalhada,A propria gente da "Imprensa"

O Lauro Lopes já disse:Quem quiser ser forte e "são"Beba limão com cachaçaSem abusar do "limão" ...

Cada coro- uma sentença!Um conselho em cada esquinaE a série de disparatesBoas risadas propina ...

Mas eu, pensando no caso,Prá não adoecerTomo o conselho do LauroE deixo o barco correr

DIÁRIO DA TARDE

Manuel Salvat

19

--~~-~-"- -- ~--

ii COMP. CINE TH[ATRAl PARAt~A, ii====::.=,~-------"-------elegante -- (]eqtral

HOJE - • lIOJE

o gl'ltllIJO ncontecÍmcnto ela Mmll,Jla :

A CAMINHO DE BERLIMCreaçi\o extl'l\I)r(i1nuri'l dI),.Ilctor "1101'1111:111 RIII('rf('IUlo:

GEORGE W ALSH

~ma na~mai~ ij~lla~~ronu~~õ~~n~r~t--'--'--~c..J~~.~'~.~"" -s_.-~--_. __....

O peeopd dos treeottds------,- ---------------DIA 24 QUINTA

NA BELGICA OS EXERCITOS

ALLIADOS VAO LEVANDO

DE VENCIDA OS ALLEMÃES

NÃO MORREU NINGUEMInforma-nos o sr. Benedicto Carrão, official do registro civi~ que hontem e hoje, nãose registrou obito algum nesta capitaL DIÁRIO DA TARDE

20

«Ccmmerrio Ido Parará»

Em virtude de terem a·

doccido al~uns dos not sos

operarfos a ultima hora, não

nos foi possivel fazrr com

que a edicção de ~oie sa·hisse com tod d a mat, ria

de redacçãD.

"Famílias inteiras. Não houve casa que não tivesse alguémdoente. Parecia a cidade dos mortos."

DONA LÚCIA - 1976

DECRETO N~ 132O PREFEITO MUNICIPAL DA CAPITAL, TENDO EM VISTA QUE ASDIRECTORIAS DE SERVIÇOS SANITARIOS DA CAPITAL DE SÃO PAULO EDESTE ESTADO, BEM COMO DA CAPITAL FEDERAL, ACONSELHAMINSISTENTEMENTE QUE SE EVITE AGGLOMERAÇÃO, PRINCIPALMENTE ÁNOITE, AFIM DE IMPEDIR A PROPAGAÇÃO DA "GRIPPE ESPANHOLA",EPIDEMIA ORA REINANTE EM DIVERSAS CAPITAIS DO PAIZ.A peste! EUa não nos visitou ainda, não nos visitará. E, se subir a serra pela linha ferrea ou pelaestrada da Graciosa, não encontrará aqui ensachas, meio favoravel á sua propagação virulenta.

(Sebastião Paraná - Commercio do Paraná)RESOLVE, COMO MEDIDA PREVENTN A CONTRA A INVASÃO DESSAEPIDEMIA, SUSPENDER O FUNCIONAMENTO DOS CINEMAS E OUTRASCASAS DE DIVERSÕES DESTA CAPITAL.

CURITYBA, 24 DE OUTUBRO DE 1918(ASSIGNADO) - JOÃO ANTONIO XAVIER

PREFEITO MUNICIPAL

21

OUSADIA BOCHE

O distinto advogado criminal sr. Napoleão Lopes effectuou hontem a prisão do ger­manophilo Roberto Thomaz que no "buffet" do Theatro Hauer teve palavras ofensi­vas às nossas instituições e ao governo da República determinadamente ao sr. presi­sente Wenceslau Braz. Ouvindo aquelle advogado palavras insultuosas á nossa Patria,deu,aquelle subdito sueco, que assim, se manifestava tão favoravel á Germania e tãohostil a nossa Republica, voz de prisão, á ordem do sr. dr. Chefe de policia, indo,immediatamente á chefatura de policia, onde, por escripto, deu essencia do seu acto.O referido germanoplhilo foi recolhido ao xadrez ... para exemplo, às 23 e 30 horas.

COMMERCIO DO PARANÁ

22

DIA 25 SEXTA

o PAPA INTERCEDE PARA QUE

A BELGICA NÃO SEJADESTRUIDA PELOS ALLEMÃES

Mãos grandes como de cavalo.A direita assentada sobre o lento respirar do seio rijo.A esquerda, a da aliança por sobre o lençol brancobranco braço nú, parca seara de louros pelos

OFFICIO DO DR. LINDOLPHO PESSOA, CHEFE DE POLICIA AO DIRECTORDE HYGIENE DO ESTADO DO PARANÁ, EM 25 DE OUTUBRO DE 1.918.

"SENDO NO MOMENTO ACTUAL DE GRANDE NECESSIDADE PARA ASAUDE PUBLICA, A HYGIENE QQUE SE DEVE MANTER NAS PRISOES DOSPOSTOS CENTRAL, DA GRACIOSA, PORTÃO E DESTA REPARTIÇÃO, SOLI­CITO A V. EXCA. AS NECESSARIAS PROVIDENCIAS AFIM DE SER FEITA,COM A POSSIVEL URGENCIA, A DESINFECÇÃO DAS REFERIDAS PRISOES.ONDE EXISTE AVULTADO NUMERO DE DETENTOS. SAUDAÇOES.

o MELHOR DESINFECTANTENeDhlUn 'recepta'àulc genulno qU<I nôo tonba o nom~ ,10 f.Lricatte

WILLIAM PEARSONEsta t..:u~a U<JO tem nada que ver com qu.:.dquer OU~j'·1 synOD)"m(i

". .A..C::U~."LT~~~. SE::das lffillaçocs, u.tKuma."l cOlltêrn meia agua. e IIt~n;\lIm J,Jod"1 'deAi/lrect:}'Lte

r.oIIMERC[A~iES SEitI ESCRUPULOS TOR~AM I. INCHEI: "JSSASLATAS; REFUSE:~ OS R~CJP!F.!lTES D'FSTA r.t\SSE.

23

NÓS E A "INFLUENZA"

A nossa edição de hontem saiu muito aquem da espectativa, devido a uma interrup­ção inesperada do trabalho em consequencia de terem adoecido operários da secçãode composição, obrigando-nos assim ao sacrificio de materia redactorial cuja inserçãofoi absolutamente impossivel.Esse facto suscitou hontem em certas rodas, commentarios ironicos em torno danossa attitude em relação á epidemia da "grippe espanhola", dizendo-se abertamenteque a molestia invadira a nossa tenda para obrigar-nos á uma formal retratação.Não obstante, continuamos firmes em nossa attitude pela razão de n[o ter sido de"gripe espanhola" verificado ainda um só caso n'esta capital, tratando-se de simplesgrippe, aliás commum na estação que atravessamos, os casos de doença existentes.

COMMERCIO DO PARANÁ

"Fiquei, sim. Mas em mim deu fraca, fiquei dias caída na camaardendo em febre, prostrada sem vontade, como num outromundo."

DONA LÚCIA - 1976

DIA 26 SA'BADO

DECRETOO SR. DR. PRESIDENTE DO ESTADO DECRETA QUE SEJA CONSIDERADO DEFERIA O DIA DE HOJE, 26 DE OUTUBRO DE 1.918, NAS REPPARTIÇÔESESTADOAES EM COMMEMORAÇÃO AO 1.0 ANNIVERSARIO DA ENTRADADO BRASIL NA GUERRA ACTUAL.

24

NA SERVIA NA BELGICA

E NA FRANÇA OS ALLIADOS

AVANCAM VITORIOSOS

"A HESPANHOLA"

De manhã abro as gazetasnenhuma nota - que bola!Limpo e relimpo as lunetasNada, nada de hespanhola. ..

A policia nos socorreToda noticia degola-Aqu~ de vez, ninguém morre,Foi p'ro xadrez, a hespanhola.

José da GaitaDT

*l["õ@:~l@l~.jl~H,*,I~

----- .•,. ,..,...~,

=.~~~~~~.Jpeito, pulmO~se garganta. I------------,

Os olhos costurados pela febreloura linhaa mesma que tece seus cabelos

AMANHÃ NÃO HAVERÁ CULTO

Attendendo aos conselhos da Inspectoria de Hygiene, a Egreja EvangelicaPresbyteriana da rua Comendador Araujo resolveu não realizar amanhã, domingo, oscultos de costume. DIÁRIO DA TARDE

25

VALlOSISSIMA OPINIAoI

Depois raciocinemos um pouco. As egrejas são templos sumptuosos de Deus. Nestascondições, irrisorio seria que se as desinfectassem, Deus vendo a creolina penetrar noseu templo certamente se sentiria diminuido em meio da radiosidade de seuprestigio ...Fechemos os cinemas, mas também abertas não continuem as egrejas.

GASTÃO FARIA - DT

"Remédios não havia. Pro pessoal da fábrica eles distribuíamgarrafas com limonada. Havia o padre Miguel que ia nas casaslevando follias de eucalipto. Mas não tinha remédio queservisse."

DONA LÚCIA - 1976

VARIAS

Phenomeno unico na vida coritibana accentuando o contraste de somente em epocade epidemia ás portas do Estado e quando se pretende espalliar o panico isto se dar:ha trez dias que não é registrado um só obito numa população de 80 mil almas.

Hontem, na rua Marechal Deodoro, no trecho entre as ruas Primeiro de Maio e Floria­

no Peixoto, estava sendo descoberta, com grande perigo para a saude publica, umaparte da rede de exgottos, pondo ao sol um lodo podre e capaz de infeccionar oambiente.

Durante a semana ultima de 14 a 20 do corrente, nasceram no districto desta Capital,39 pessoas e faleceram 19.

De molestia infecciosa houve apenas um obito, de febre typhoide.COMMERCIO DO PARANÁ

26

NOTICIAS DO PAIZO RIO COBERTO DE LUTO

RIO,26 - A peste de guerra aqui importada pelo "Demerara" e recebida gentilmentecom o carinhoso titulo de "pucha-pucha! DIÁRIO DA TARDE

DIA 27 DOMINGO

~ (I

1i Vida Social II.~========:;::====='"

SUELTO ...

A influenza hespanhola e o amor seria uma tese psychologica magnifica para serdesenvolvida por um Paul Bourget de francaria que se atormentasse num eternosonho de duquezas e condessas, pallidas e loiras, muito loiras e frias ...

COMMERCIO DO PARANÁ

Cabelos de vassouramais macios, meus dedos dizemAmarelosAo levantar o branco lençoladvinharei os outros pelos?

27

A AUDACIA DO INIMIGOPRECISAMOS SER MAIS ENERGICOSAO MENOS EM NOSSO PAIZ

É deveras para se lastimar o facto occorrido hontem á noite, nesta cidade. Umacama de allemães audaciosos, cheios de presumpção e agua benta ( ), entenderamde em pleno seio da capital desrespeitar a nossa pátria, cantando hymnos patrioticosallemães e jogando chacotas aos brasileiros praticando outras tantas imprudenciasque o atual estado de guerra em que nos achamos não permite .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. Na Repartição Central .

. " O mais exaltado era o conhecido fanfarrão Frederico Rummert que em portu­guez arrevesado gritava: "Não bode ser, nós não somos criminosos e não ha lei queobrigue a falla portuguez". "Cantamos e havemos de cantar hymnos allemães porquenão somos trahidores de nossa patria".

Esse estupido e atrevido subdito do kaiser, revoltou-se contra os guardas,procurando offendel-os com palavras asperas quando era recolhido ao xadrez".

Havendo algumas mulheres dito que "não iam para casa sozinhas" . .. oescrivão daquelle posto offereceu guardas civis para acompanhal-as. Á essa offerta,ellas responderam: "Não precisamos ir com brasileiros, preferimos ir sosinhas".

E foram ...COMMERCIO DO PARANÁ

VARIAS

Em nossa edição de antehontem noticiamos a tentativa de suicídio de d. Anna Urichi,esposa do sr. Stanislau Urichi, barbeiro á praça Zacarias 22. Hon tem visitou-nos essesr. explicando-nos ter sido desgostos por uma infermidade incuravel a causa daquelleacto de desespero, e não o receio da epidemia de grippe, como sahio na noticia ...

Com o de hontem, ha tres dias em que não se verifica um só obito nesta Capital(quadro urbano). Apenas no quarteirão das Merces se deram dois fallecimentos umpor tuberculose e outro por lepra. Praza a Deus que assim se conserve Coritiba.

COMMERCIO DO PARANÁ

28

PRECISA-SE

De uma mulher para viver com um bom homem solteiro.Rua Saldanha Marinho n. o 168 (das 5 as 6 horas da tarde)

CP

familiasProcuI'{ds comprar

Naphtuliun C)'eol, eJl\escaw{J.s, l)ois é a melholplua u. desinfecçí\o no interior das ~"sa~, queimando-se uma p(~quenaporçí\()sobre brl! Z(\8. ;

Com este metllodo pratico e C('oUQlllico. AvttR_Sfacllmen te :t lH'opIIgac;Aode quahluer EI)tdemia.

"É, folhas de eucalipto, Para queimar dentro de casa.Remédios não havia. Muito repouso, ficar deitado curtindo afebre alta, o cansaço, a dor por dentro," DONA LÚCIA - 1976

29

DIA 28 SEGUNDA

o KAISER VAI SER DEPOSTO

A SITUAÇÃO NO RIO

DECLINA LENTAMENTE

A EPIDEMIA E OS,CADAVERES JA SÃO SEPULTADOS

A PESTE RECRUDESCE

A SOPA DOS POBRES

buço parco louroencima lábios rubros do calor da febreao levantar o branco lençolencontrarei outros pelos louroscercando rubros lábios

NAS RUAS E NA POLICIA

NO QUE DEU A "HYGIENE NAS PRISÕES"

Hontem a tarde, o preso João Baptista Alves dos Santos, que se acha recluso noxadres do Posto Centra~ tentou contra a existência tomando uma forte dose de

creolina, isso por desgostos intimos. . . DIÁRIO DA TARDE

30

o; ~tJfI' 1V.l. Convitef AmAnhA serAo celebrad"slPn) duas missas, il SAo Rcqu!Ie a São S9baGtiA' , ás 8 e és8 112 hc ras, na Cathedr31-':' I Lo

afim rla que li epid@mia nAo Ino& eftlija. 510 portanto" con- t\1;

~ vidadzs todas pnssoas Quea es~e acto qU3ircrn cump' A-rtcer. /8066 A COM MiSSÃO)

) Rneumatismo, UIG~~ cancerosas MI

mirei bo ~en!Jor: qele é meu refúgio e min!Ja fortale?a. o meu meus; i.lrle confiarei

~orque qele te Iíbrará bo (aço bos caçabores e ba peste perniciolla.

qele te cobrirá com suas penall e bebaixG be suas allas te acol!Jerá: a llua

berbabe llerá teu ellcubo e broque!.

jião teráll mêbo bo terror nocturno. nem ba seta que bôa be bia.

jiem ba pellte que bagueia nas trebas; nem ba calamibabe que alISo(a ao meío·bia.

jflil cairão ao teu labo. e bn mil à tua bireita. mall não se t!Jegará a ti.

~ómente com os teuS o(!Jos tontemplarás, e brrás a paga bos prcaborell

tlorque o teu refúgio é o ~en!Jor. ao ~ltíssimo te entregallte.

~~ltjflQ!') 90

DIA 29 TER~A

o "COMMERCIO" NÃO CIRCULOU

Deixou de circular hoje o nosso apreciado collega mattutino "Commercio doParaná", em virtude de terem adoecido diversos funccionarios de suas officinas.

DIÁRIO DA TARDE

31

No jardim do Hospício tinha umas pereiras,brancos os pés, pintados de cal. Nãoadiantava, lugar úmido, sempre cheio de lesmas. O louco comia pêra com lesma.ficavahoras mastigando fruta e bicho, olhando, olhando com aqueles olhos...

COMO MEDIDA PREVENTIVA ESTÃO SUSPENSAS AS VISITAS AOS DOENTESINTERNADOS NO HOSPICIO NOSSA SENHORA DA LUZ. TODA E QUALQUERINFORMAÇÃO AO RESPEITO DOS MESMOS DEVERÁ SER DADA PELAEXMA. SRA. IRMÃ SUPERIORA E PELOS MEDICOS DO ESTABELECIMENTONAS HORAS HABITUAES DE VISITA.

CURITlBA, 29 DE OUTUBRO DE 1.918ODIRECTORDR. LEMOS

No monte de venus

parca loura penugem- como pelo de pecego ­margeando os lábios rubros do amor- fenda

virgem para mfmadvinhada por mim

"Muita gente ficou com o juizo abalado. Por causa da febreforte dias e dias. Mesmo muito tempo depois da gripeencontrava-se gente que nunca mais recuperou a razão, proresto da vida." DONA LÚCIA - 1976

32

DIÁRIO DA TARDE

DIA 30 QUARTA

AS VICTORIAS DOS ALLIADOS SE

MANIFESTAM POR TODA PARTE!~~~"";,;;eCt~ n _ ••••••.A b m 6EMia'Y9bW'(4 AiiS

.~ ~

IA Austria rende-se e quer iI a paz incondicionalmente I

95 êDglo·jjalianos avançam aíé~ do Ii (íé\Ve e capturam 12.000 ai.Isfflél(OS II e 50 canbõfs

f\ Brlgicd Vde ter a séde do seu governu

dentro dos territorios receul-libertados

A GRIPPE

Embora a censura policial tivesse varrido do noticiario da imprensa a rekltação dosfatos verificos, com relação á epidemia, o nosso dever profissional nos força a sahirdo mutismo em que nos encontravamos nesse sentido e vir dizer ao povo que todoesse preparativo que se faz não é apenas para evitar que o mal chegue até nos, massim para dar combate á enfermidade que já n?s atingiu.

"Os primeiros mortos tinham mortalha, eu mesma costureialgumas. Depois era de qualquer jeito, faltou até caixão.Vinham buscar os mortos, antes de enterrar tiravam do caixãopra servirpara outro:' DONA LÚCIA - 1976

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-,-34

ONDE IREMOS PARAR?A QUE PONTO CHEGA AINSOLENCIA DE UM BOCHE

O allemão Rodolfo André Damn, veio á rua15 de Novembro, onde praticou uma neces­sidade phisiologica na porta da redacção do"Diario da Tarde" e em seguida veioescarrar na porta da nossa redação.

COMMERCIO DO PARANÁ

o SR. PRESIDENTE DA REPUBLICA ESTARÁ COM A "MARIA IGNACIA"?Rio 30 - Encontrasse ligeiramente enfermo o sr. Wenceslau Braz, que não desceu

hontem às salas de recepção. DIÁRIO DA TARDE

A FALTA DE CINEMASTRANSFORMA CURITIBA EM

UMA CIDADE DE MORTOS DT

DIA 31 QUINTA

ReJO DO PlOPRIEDADE DA SOCIEDADE ANONVM4 "COMMEACIO DO

~~~.-- --- ----~-----~----. .. .

Coritiba _. Quinta-feira, 31 de Outubro de 1918

Visões da Guerra

~..~•.

FRANÇA .-. A biHlda de tnusira do tã') cele brc quAoglorioso 8 rc'!'hncllto de ZURVOS do exerdto francez

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36

]lini8ter;o da Justiça, e Negoci".s Interiores

Serviço ~e prophylaxia rural do Paraná

Combate á grippeConselhos á população paranaenseÉ impossivel evitar a propagação da epidemia de grippe por não existir um preventi­vo seguro capa""de evitar a infecção.Aconselhamos, com tudo, o seguinte:Tranqyilidade e confiança nas auctoridades sanitarias.Não fazer visitas e evitar o contacto com os doentes de'~ porque o contagio édirecto, de individuo doente a individuo são.fuitar. toda a fadiga ou excessos physicos.~ refeições leves e a horas certas e dormir tempo sufficente.Inmar um laxante cada 4 dias, afim de trazer o tubo digestivo sempre desembaraçadoEllgir das agglomerações, sobretudo á noite.fuitar. o uso de bebi das alcoolicas.

l..loou:...a bocca, nariz e gargarejar com agua salgada com agua salicylada a 1 por 200,de manhã e de noite, e instillar, em seguida, 5 gottas de oleo gomenolado a 5% nasnarinas, ou usar tampões de algodão com 'vaselina mentholada a 3%.Eara lavar a bocca e gargarejar é excellente a agua com um pouco de tintura de iodo.fuitar.as causas de resfriamentos, que facilitam a infecção.Sentjndo dôres de cabeça e pelo corpo, com febre, deve ir immediatamente para a.ldI1l1lI, fazer uso de purgante salino' ou de calomelanos e tomar aspirina e quinino á0,30 centigrammos para uma capsula. Tomar 3 por dia. Dieta lactea.So levantar-se quando não sentir mais nada.O repouso ao leito, o regimen lacteo e essa medicação inicial, evitam as complicaçõespulmonares gastro-intestinaes ou nervosas, que são muito graves.Só chamar o medico para os casos serios, afim de evitar que elles adoeçam pelo esfal­famento e venha a faltar no momento mais difficil, quando elles poderão prestarmaiores serviços ápopulação.Indo doente grave deve ser entregue a um enfermeiro ou enfermeira, para evitar aintervenção de pessoas da família ou extranhas, que seriam contagionadas, aggravàn­do a situação geral.QIDln!Q á desinfect;ão basta passar um panno molhado em agua com creolina pelosoalho da casa do doente e desinfectar o seu escarro, também com creolina.O mais importante é a desinfecção da roupa de corpo e de cama, do doente, diaria­mente, pela ~~ é molestia muito séria quando descuidada.~não deve receber visitas, a não ser do medico assistente.

Recommpudamos maior rigôr TUl def(>,'tI.1 CÚU

pessoas edosas e c(('Unça,li, ("(mIm a in/t'q:.tiu.

AVISO: - A homeopathia, O espiritismo e as hervas, não curam a grippe, comonenhuma outra molestia infectuosa ou parasitaria.

1918

Novembro

omez dagrippe

DONA LUCIA - 1976

DIA 1 SEXTA

HO KAISER CAPUT_"

Contra esse injustificado interesse das autoridades sanitarias, de ocultar a verdadeirasituação, foi que, em termos claros, não em entrelinhas nos manifestamosante-hontem, pois que, quasi sem homens para o trabalho, vendo hora a horacahirem os nossos companheiros enfermos, reconhecendo que outra cousa não erasinão essa epidemia que já se estende por todo o Brasil, não nos era possiveldescuidar da nossa propria vida, achando razão nas declarações de que em Coritibanão há epidemia. DIÁRIO DA TARDE

Agoraestá m~o morrendo muita gente.

Começou o mez de Novembro com um obito por grippe, no dia primeiro. Dahi emdiante, o mal tomou proporções assustadoras, espalhou-se de modo aterrador,invadiu, por assim dizer, todas as casas, todas as classes sociaes.

Relatório do Sr. Dr. Trajano Reis,director do Serviço Sanitário

não obstante, continuamos ftrmes em nossa attitude pela razão...

"Como saber quantos morreram? O governo não ia dizer onúmero verdadeiro dos mortos para não alarmar. Até hoje,ninguém sabe ao certo."

Fina loura linhanão de tecermas louro noveloninho para o pássaroasasda minha mão

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DIA 2 SA13ADO

~

I.uta 'A. no•••• officin ••da C05tur. fornecemencommend •• noprazo mal. curto po•..• Iva' por preç J' mo-

dicCl

... E assim vamos indo nessa estrada,Tristonha de amarguras e miseria,Deixando o corpo á podridão do Nada.FERREIRA LEAL - Nov. 1918

PEQUENAS NOTAS

Embora permitindo que os cinemas voltas­sem a funccionar, a directoria do ServiçoSanitario o fez sob condicção de funcio­narem somente 3 vezes por semana.

CP

A freira, na lidadeira daqueles dias, deixou a porta aberta. O louco entrou, viu a coifada freira em cima da cama. Deve ter achado bonito, colocou na cabeça e saiu daquelejeito pelos corredores: camisolão branco e coüa na cabeça, cantando:

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DIA 3 DOMINGO

Nas outras mulheresque conheci na camapreta mata cerradaescondendo o sulcomuitas vezes arado

CrreadaPrecisn-s'J com urgüllcio. de uma

cOl!inhoir~ para acompanhar uma. fa­milil\ para ·fvra dl\ Yapita1. Trata-seá r\.,'l CcmmenfÍRdor Al'RlI,io n. 51.

"Muitas famílias saíram da cidade, com medo da gripe. Quempodia, saía. Mas ir para onde? As outras cidades tambémestavam doentes."

DONA LÚCIA - 1975

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DIA 4 SEGUNDA

Kirie Eleisson, Kriste EleissonBuxeta, Buxeta, Buxeta, AllamãoAllamão Te pego allamão AhhhhhAaaaaaah Ghhaaaaaaaaa

A HOMOEOPATHIA TAMBÉM CURA

A VISO - A homoeopathia, o espiritismo e as hervas, não curam a grippe, com'nenhuma outra mo/estia infectuosa ou parasitaria.DR. HERACLIDES DE ARAUJO

Na homoeopathia está a salvação do genero humano, a segurança das sociedades, ,~saude das familias, a garantia do médico conscencioso, o complemento e a certeza dearte de curar - DR. SATURNINO SOARES DE ME/RELES - Conceitos sobre e

doutrina homoeopathica.

Zombar de uma cousa de que se não tem conhecimento, que se não sondou com cescalpello do obseroador consciencioso, não é criticar, é dar prova de leviandade"pobre idéa do proprio juizo. -ALLAN KARDEK - Livro dos Espiritos

O Altissimo creou da terra os medicamentos e o homem prudente não os desprezará.- ECCLESIASTICO - Capo 38 V.4. DIÁRIO DA TARDE

não obstante, continuamos ftrmes em nossa attitude pela razão ...

DIA 5 TER~A

"Ali naquela casa morreram sete, era o pai chegar de umenterro já tinha de levar outro ftlho para o cemitério. Elemesmo fazia os caixões. No ftm, faltou madeira."

DONA LÚCIA - 1976

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DIA 6 QUARTA

VIGOROSO ATAQUE BRITANICOMEDIDAS DA SOUTH

Luctando com a falta de pessoal devido aepidemia reinante, resolveu a South Brazi­lian Railway, suspender temporariamenteo trafego de eletricos á noite em nossaCapital.

CP - 6/11/1918

Ou então,as de pouco pelo (negro)que conheciofereciam lesmas escurasque mesmo penduradasda carne faziam parte

"Morava um casal de alemães, a mulher alta, loira, muitobonita. Clara, isso, seu nome era Clara. Não recebiam muitavisita, não se davam com a gente do bairro. Os dois caíramcom a gripe, ninguém notou. Imagine os dois, um num quarto,outro no outro, sofrendo sem assistência. Passaram muitos diasaté que uma vizinha lá entrou e encontrou os dois ... "

DONA LÚCIA - 1976

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A "BLACK LIST" ALLEMÃ

"Apesar do estado de guerra, em que nos achamos, é sabido que os subditos alie­mães que infectam a nossa capital mantêm um "jornal" escripto á machina o qualescreve telegranunas que dizem receber por intermédio da Argentina. Esse "jornalboche" passa de mIo em mão" ...

COMMERCIO DO PARANÁ - 6(11(1918

DIA 7 QUINTA

A PAZ NÃO ESTÁ TÃO PRÓXIMA

DIZ CLEMENCEAU

Nada assemelhado a issofenda estreita oferecida comolábios da febrepequeno regato demorna ácida águaonde vibram mil peixes

DEIXEMOS DISSO

· . . Imagine-se, por exemplo, um pobre enfermo a curtir 400 de febre e ouvir ::;fora, no silencio sepulchral das ruas desertas, o buzinar estridente da ambulancia é:;

Assistencia Publica que, ás vezes, passa por ahi somente porque vae levar o chal;'feur ao almoço ? ..· .. Ao ouvir o trombetear agudo do auto ambulancia tem-se a impressão doloras:;de que qualquer coisa apavorante ocorre ao nosso derredor.

COMMERCIO DO PARANÁ

As abas da coifa, asas sinistras sibilantes, corvo branco da morte, o louco homici&

~============~

IIVida Social II.~=======,\'t

· .. Mas a sra. d. Hespanhola, parece não ter vontade de deixar ninguém em paz ...COMMERCIO DO PARANÃ

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DIA 8 SEXTA

A CESSAÇÃO DA GUERRA COM

A ALLEMANHA FOI FIRMADA

o REGOSIJO PELA 1ERMINAÇÁO DA GUERRA

É ENORME FM TODAS AS CIDADES DO MUNDO

OOMMERCIO DO PAllANA .- COr",iba. 8 '•.. :-:',""nhl'o .", 1918--_.__ .._------ --,-----.--- -- ,~---., eM

1 do

PEL~ TELEGRÀPH~

-I, .. A" 'I1\ onglllae~ ""s no,'''', Irltgrammas íi­

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w_IIlIIIiI IlIl_•••••••••n.;j_mUilmi!·_ZlB •• _ ••.•

assignado hontem O armisticio entre os alHados

e a AJlemanba

RIO, 7 (Urgente)--Telegramma recebido á ultima hord._ondres, noticia que foi hoje, ás 11horas, a~signado oisticio entre os paizes alliados c o imperio allemão.l!ssa noticia sen::.acional, máo gra.do a situação lamen­:1 e doloro~a em que se ach~1o Rio, causou grandelção, tendo a cidade 5e movimentado mUlto ác; prirn\3i­horas da noite.intensificou-se ainda mais a sensação popular, quando',rnar-:s affixaram outros despad10s teleglaphicos annun·do que ás 13 horc,s de hoje foram cessadas as hoc;tili·,j~.em todas as frf1ntes dp. batalha.

A hruma, a ~evoa, a grippe. 8/11/18JAIME BALLAO JUNIOR - Caderno de um grippado

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DIA 9 SA'BADO

A "HESJ?AlliiQLK'Só se falia da epidemia. Mata se gente nos cafés, aggrava-se o estado dos enfermosnas esquinas, cream-se cifras de doentes, e só não se fazem sepultamentos por queo official do Registro reclama.Peior, pois, do que a grippe hespanhola o que está nos matando é o boato. Acabe­mos com elle e terminará a grippe que de trocadilho em trocadilho, de pilheria empilheria, está pela simples suggestão attirando com toda a gente á cama. CP

NÃO IlAVERÂ CONCERTO

Ao contrario do que foi noticiado por um jorna~ não haverá, amanhã concerto debanda de musica na Praça Tiradentes; primeiro porque a quasi totalidade dosmusicos de nossa milicia baixou hospital atacado da epidemia reinante e, segundo,porque estando a população a braços com a epidemia não seria louvavel essaorganização de diversões. DIÁRIO DA TARDE

DECRETO NO 133O EXMO. SR. CORONEL PREFEITO MUNICIPAL AUTORIZA O COMMERCIODE SECCOS E MOLHADOS E PHARMACIAS A CONSERVAREM SEUS ESTA­BELECIMENTOS ABERTOS DURANTE OS DOMINGOS E DIAS FERIADOS,ENQUANTO PERMANECER A EPIDEMIA REINANTE. CURITYBA, 9 DENOVEMBRO DE 1918.

assoJOÃO ANTONIO XAVIER - Prefeito Municipal

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DIA 10 DOMINGO

Estou de pé ao pé da camao traço de sua fenda do amor fica horizontalem relação a mim, como se os lábios fossem sua bocaonde encosto meus lábios.

MOLESTIAS DO PEITO

o MEDICO:-Então I Sente-se melhor?A DOENTE:- Muito pouco. Estou vendo, doutor, que não

ha remedio senlo appeIlar para o XAROPE DE GRINDELIA.

Se a tosse vos

persegueUSAr O

Xarope ~e

6rin~clia

de OLlVfIRA JUNIOR

UNICO QUE CURA

" ... Não, não estavam mortos, não, mas quase. Tiveram quelevar os dois para o hospital."

DONA LÚCIA - 1976

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DIA 11 SEGUNDA

o KAISER ABDICOU E

O KRONPRINZ TAMBEM NÃO QUIZ

O ARMISTICIO FOI ASSIGNADO

COM A COMPLETA

CAPITULAÇÃO DA ALLEMANHA

A REVOLUÇÃO ESTENDENDO-SE

POR TODA ALLEMANHA

Mesmo na imobilidade da febresuas coxas se entreabrem lentascomo a pedir que eu penetre sua grutacom minha Ifngua de sangue em chamas

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INFLUENZA

pelo Dr. Nilo Cairo

... 0 começo da molestia é ordinariamente brusco. Em geral os typos classicos dainfluenza começam por uma "febre" bastante forte, depoi~ de repetidos "arrepios"

de frio, violenta "dor de cabeça", grande prostação /feral, e muito frequentemente"dores" bastante intensas das "costas e das cadeiras'. A prostação é algumas vezestão profunda que pessoas bem robustas são obrigadas a se meter na cama. Outrasvezes se observam symptomas nervosos, excitação e delirio. . .Aponta-se também como symptoma caracteristico da injluenza, um "peso dolorosonos olhos", que se produz principalmente quando o doente move com os olhos.

DIARIO DA TARDE - 11.11.1918

Kirie eleysson alIamão te cuspoescarro lesma em cima de ti alIamão

alIamão cabeça de mamãoalIamão mão peluda

RECLAMAÇÕESSr. redactor do "Diario da Tarde"Um facto que deve merecer a attenção de quem de direito é esse de estarem a dobrarfinados, a todo instante, os sinos da Igreja do Rosario, em caminho do CemiterioMunicipal. Agora que o numero de mortos augmentou os sinos ali dobramconstantemente sempre que um enterro se aproxima, espalhando, esse som, aapprehensão, a magua e a tristeza.

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DIA 12 TER~A

IOR CIRCULAÇÃO NO PARANÁ - Coritibs - Terça-fsira. 12 da N

Telegrammas,!VENCEMOS Á~ GUERRi\!

 COMMUNICAÇAO OFl'ICI-. AS CONDIÇOES IMPOSTASAL DA CE8SAÇAO DA GUEB;

&A.- AI RESOLUÇOES DO PELOS ALLlADOS SAO MlGOVEBNO·lUO. l~. - O u. dr. NUo P.. llUIS HUMILHANTES PA-

Ç&Dha. IIÚIlÍAro dai &elaçõel &A A AI 1 EMANHA. IExteriores. recebeu hnnt.em i

o ex·Kaizer entre~a-sa ~p

~rlSIOneIlO ~

.\)1 "'I']';fW.\-\[, u. - U ('1- •

YARIASAS BARBAS DO VISINHO

É O caso que havendo fallecido domingo a esposa de um cidadão, foi elle a umaempresa funeraria para encomendar o indispensavel caixão mortuario. Pois bem:a empreza declarou-lhe que a sua encommenda só seria attendida hoje, terça feira,para quando teria de ser transferido o enterramento. Vendo que tal facto constituiauma anormalidade o cidadão referido dirigiu-se á policia, onde ouviu que "a policianão tem nada com isso".

COMMERCIO DO PARANÁ 12/11/1918

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AS VICTIMAS AVOLUMAM-SE

21 OBITOS SENDO 16 DE GRIPPE

OS CINEMAS FECHARAMA CRIPPE TORNA-SE CONTAGIOSASETE DIAS POR SEMANA DT

tAgora está mesmo morrendo muita gente.

DIA 13 QUARTA

ENFIM A PAZ!

ASPIRAÇÃO DOS POVOS CULTOS

7, 7J

Esta folha sempre se manteve numa attitude de calma solicitudeante os interesses publicos, abstendo-se de dar noticias que pudessemlevar terror á nossa população. . . COMMÉRCIO DO PARANÁ

A MORTANDADE CRESCE

Hoje, até rís duas horas da tarde foram registrados no Cartorio da Praça Tiradentes,22 obitos, sendo 16 causados pelo mal reinante

DIÁRIO DA TARDE

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52

DIA 14 QUINTA

,JA MORREM 24 PESSOAS

POR DIA EM CORITIBA

"Não sei bem no que o marido trabalhava, acho que era donode alguma coisa. Eles quase não falavam com os vizinhos. Omarido passava fora o dia inteiro."

DONA LÚCIA - 1976

I Ph',;f,~!~';:i~:"POii;;;;:Za I~~ItF~~'<i.."",,~~-

! Precisa-se de dois

'cocheiros na Empre­

Iza Funeraria, de P.iFalce.It ••••• __ ,iVi>hIN&:!WCf••••••• FTlp.amws:M' .l .....a::w_

I BAI~BEARIA IRiq~~;rq~ib~ial~~!:~}illlFaço issoSomente depois é que meus lábiosminhas mãospercorrerão, precorreramoutras partes de seu corpo:a boca ru bra febre,os cabelos, o bico róseo dos seios,

DIA 15 SEXTA

No dia em que não houve caixões para serem transportados os cadaveres, mandei-os

fabricar e, quando faltaram anirnaes para conduzir os carros funebres, mandei-osalugar pelo preço pedido, para que não ficassem insepultos os infelizes fallecidos.Relatorio do Sr. dr. Trajano Reis,

direetor do Serviço Sanitario.

Coifa branca, camisolão, a muleta é foice que ceifa mil milllões de cabeças. Anjoexterminador.

o movimento observado hontem nos postos de socorro e nas pharmacias,assim como os informes fornecidos por alguns medicas, nos auctorizam a affirmarque a epidemia começou a declinar, sendo já muito limitado o numero de casosnovos, nesta capital.

Queremos ganhar as alviçaras, dando aos nossos leitores tão animadora noticiaque irá restituir a calma e tranquilidade á nossa população.

COMMERCIO DO PARANÁ

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DIA 16 SA13ADO

os olhos agora semicerrados, a parteinterna das coxas, novamente o bicodos seios agora também todo o seiobranco talhado enche minha boca

r SEIOS 1

Desenvol\ idos =FOítificadGs II= Aformoseados =

iI

"O que a gente via era a mulher, no quintal, cuidando dealguma coisa. Muito branca, alta, o cabelo bem compridobrilhando mesmo quando não tinha sol. Loiro."

DONA LOCIA - 1976

DIA 17 DOMINGO

. 1. ~:u.Q.~.....,.r- _

:,;~ "CommercÍu Ir:~,rloll 11 u

:::: ~O Paraná" 11::tt;- _ 'al

rto' Por, motivo de força m:ilor, iado' fomos hoje obrigados a traIU' tr.

formar a paginação do nos•. t1j

~) 50 jornal, inserindo todos os \0Rnnuncios nas L2' e" 3°a pam. IJI••• &' Vt

.-. nas e publicando a materia nr,ltes, editorial e de collaboraçào :i;e:~nas 10 e 4.a paginas.prol ,'s~im pedimos pxc usas ao~ ri

nosso~ :1!1J'lunciante~aca:;o <.!t

ar::: prejudicados com essa tr2ns·d.- forlllhçãot Que n s f')i .irrpos llt

~; t,\ Dor circum~tancias ~l11pe· ~IitJsa~. '1'

DIA 18 SEGUNDA

a suave curva do ventre emeus dedos percorrem tremulos acopa de seus pentelhos, sugo seupescoço: uma mancha vermelha que depoisserá roxa, suas mãos os dedos se erguendocom meu forte apertar,novamente a fonte do amor.

A EPIDEMIA DECLINA OU AUGMENT A?É o povo cuja sorte está em jogo a todo o momento interroga.Ninguém lhe diz, porém. Não se publica uma nota estatistica pela qual se veja que amarcha da molestia que nos infelicita está sendo acompanhada cuidadosamente, ecom esforços empregados para debela-lu. DIÁRIO DA TARDE

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DIA 19 TER~A

MOS OBITOS DE HONTEM,

NÃO HA AUMENTO

NEM DIMINUIÇÃO

Ela geme baixinho, não mais de febreagora de gôzo?Gózo e no auge do gôzo tentoabraçar todo seu corpo que seme escapa e tenho nas mãoscomo um pássaro peixe

DIA 20 QUARTA

"A EPIDEMIA SO DECLINA

PARA ASCIENCIA OFFICIAL

Maldito pesadelo da mão peluda pulo 3 vezes O mardo mar para lá ficou

AS TROPAS ALLIADAS

CHEGAM AS MARGENS DO RHENO

ABORTOU NO RIO

UM MOVIMENTO

GREVISTA SEDICIOSO

o GOVERNO ESTÁ DISPOSTO AMANTER A ORDEM, CUSTE O QUECUSTAR

RIO 20 - Apesar da censura da imprensa,alguns jornaes noticiam que a policiadescobriu um plano de gréve com caracterpolitico, tendo surprendido agitadoresexactamente no momento de explodir omovimento. O governo está disposto amanter a ordem custe o que custar.Reina tranquilidade na cidade, estando aforça policial de promptidão. DT

EM 130BITOS,lOSÃODECREANÇAS!57

~!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!I.I!!!!~'" ,

Aviso •

58

fi €mpreza Funeraríapires ~IiCia.

i [lMticipa ao publico em geral Que, desde hoje emdiante, attenderA a er.terro~, devido a seus p: 0­

Iprietf1rlos já cc acharem restabe:ecidos da ericr·midad~ Que os obn~ou a fecharem seu estabE"ie­

I cimento, estando :l,:tos para lltten~erem SIQu{'lquC'rpeS~()J que necessItar dos servIços da me~nl1Empreza

j Coritiba, 20 de Novembro de 1918-

I J. BBrreiros Pires & Cia.

DIA 21 QUINTA

iCommuRique·se. aos pobres It este aVIso :•

o Dispensario 810 Vicente dePaulo, delicadamente, nos pedeindiquemos aqui os pontos dacidade, onde distribue, o durantedia" o caldo Já preparadopau os

ientermos pobres:. Praçi\ da Repubtica (CoUegio

ISão José) i: Praça Santos Andrade (Oolte­gio Sion)

Hua Jguass\\ n. 20õ (CollegloCoração de Jesus) ;

Rua Ractcliff n. 2 t7 (bandas

d' A~ua Verde).E para desejar que todes se

tornem junto aos pobre~, pOrta­voz dessa communíct'çào:

DIÁRIO DA TARDE

DIA 22 SEXTA

FUGlO NO DELlRlO DA FEBRE ENINGUt.,M O t.,'NCONTRA

Noticiamos ha dros que o sr. TelemacoJardim em um momento de crise neroosaoccasionada pella grippe de que estavaacommetido, fugiu de sua residencro á maCarlos de Caroalho n.8, tendo a familro doenfermo solicitado os officios da policropara descobrir-lhe o paradeiro.Entretanto, dros já se passam e nãoobstante os esforços empregados pelaInspectorro de Agentes e por pessoasamigas, o desventurado moço não éencontrado.

Concorre muito para interceptar asinvestigações o facto do poucomovimento da cidade, difficultando asinformações que poderrom ser colhidasacerca do paradeiro do sr. Telemaco.A falta de qualquer noticro sobre o pobremoço, leva a crer que se trate de umaoccurenCla maIS grave.A policia prossegue nas diligencros paradeslin(ÚJro facto." -----0

~Vida Social ~Que noitadas magnificas nos proporcionou a Companhia Salvat-Olona. .. E desaudade em saudade, como de abysmo em abysmo, chegamos até a tet saudade dotempo em que os cinemas abertos apresentavam a fita "Bigodinho vae á missa" ...ou outra coisa egualmente profunda. . . COMMERCIO DO PARANÁ

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RBCLAMAÇÕESDOPOYOPedem-nos moradores da rua Alferes Poly que intercedamos da hygiene municipalque providencie sobre uma casa da rua Silva Jardim onde residem lavadeiras que cui­dam das roupas de um hospital de grippados, estendendo-as pelas cercas. O escoa­mento da agua se faz pela valleta da rua, onde estagna, pondo em risco a saude dosmesmos moradores.

COMMERCIO DO PARANÁ

Um grito lancinante foi ouvido.

DIA 23 S~BADO

Mão peluda acuda acuda acudacuda cuda cuda cuda cudacuda mãe cuda mãe cuda mãe

Cuiàado

com a Hespanhola!Use o poderoso antiputrido

Balsamo Santa He1ena

desinfectante analgesico, ini·migv do máu cheiro !

Empreg2 do em gargarejos,pora a conservação dos den­tes, contra o mau hàlito e

affecções da garganta

Um vidro 1$500em todas as pharmaclas

Só o Balsamo 8t8. Helenll-----------:60

DIA 24 DOMINGO

POLICIAES

BAILES DE ARRELIAVISINHANÇA INCOMMODADA

Hontem, na casa n.158 da rua Silva Jardim, teve logar um barulhento baile que, dadoa agglomeração de mulheres da vida faci1 e de muitos desocupados, muitoincommodou a visinhança, onde se acham pessoas atacadas de grippe.Segundo fomos informados o baile da arrelia foi promovido pelo cabo do 4~Regimento, Manoel Candido de Almeida.Tarde da madrugada, quando a bachanal chegou ao auge, algumas pessoas pediram ápatrulha de cavallaria para acabar com a encrenca.

COMMERCIO DO PARANÁ

Pancada tão forte que saiu uma espuma de sangue da boca. Ficou ali tempo, no chãode cimento, dezenas de bolhas de sangue pegajosas, levando tempo para irestourando, uma a uma.

Quando de fadiga não puderam os coveiros abrir sepulturas, mandei gratificar aoutros individuos para que as fizessem, de modo a evitar a decomposição doscadaveres.

Relatório do Sr. dr. Trajano Reis,director do Serviço Sanitario.

Nada mais me importa agoranem a mancha do gôzo em minha calçaNem o paletó cheguei a tirarO marido?tosse que ecoa por toda a casasaio pela porta sem chavearsem a volta da chave na fechadurasaio sem me voltar ao menos

61

DIA 25 SEGUNDA

TelegrammasAs tropas francezas chegar~o_ a

Vienna esta semana" Os americanos- ----------------------------já invadiram as províncias rhenana~~~lemãs - A conferencia da paz iniciaráseus trabalhos ern ..Janeiro - Hinden~burg cornmunicou ao governo allemãoque o exercito gerrnanico não poderácombater nem um só exercito - A as·quadrra ingleza parrte papa Kiel.

DIA 26 TERÇA

o Conselheiro Rodrigues Alves vae assu..111ir a presidencia da Republica

Os holiandezes odeiam o Kaiser - O ge·~eral d'Esperay chegou a Constanti-_ncpla - O general Pers0ing será o subostituto do president~_~ilson •.Os frac~~~ze§>__estão nas rna'~gens __~_~~~~noJnuma extensão de 100 milhas - A irn----_._--------_._~_._._-~"---------------------_._-prensa allernã pede intervenção dOS ~J-=

~,?_do~J?arareorganisa~ política allemã62

DIA 27 QUARTA

o CHILE E O PERU EM

EMMINENCIA DE GUERRA

Há dias deu-se um caso que encolerizou quantos o presencearam. Uma moça,brasileira nata, moradora a rua Riachuelo, simplesmente pelo facto de ser seu paeallemão (pois sua mãe é brasileira) não tremulou dizer em frente á muitas patriciasestas palavras fllhas de uma alma entoxicada pela "Ku1tur":

"Eu preferia ser devorada pelos peixes a ser enterrada em território brasileiro"

COMMERCIO DO PARANÁ

Lá em cima se confere os pecados aqui em baixoferro e sangue allamão mão mão mão peludaLüaaahaaahhh

AGRADECIMENTOS

-o distincto cidadão, sr. João Pereira cktFonseca, no seu nome e no de sua exma.familia visitou-nos agradecendo a noticiaque estampamos sobre o passamento desua galantinha netta a pequena Diva. DT

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DIA 28 QUINTA

Um grito Iancinante foi ouvido.

Um grito lancinante foi ouvido.Um grito lancinante foi ouvido.

Não obstante, continuamos fmnes em nossa attitude pela razão ...

Não obstante, continuamos fmnes em nossa attitude pela

Não obstante, continuamos fmnes em nossa attitude

Não obstante, continuamos fmnes em nossa

Não obstante, continuamos fmnes em

Não obstante, continuamos firmes

Não obstante, continuamos

Não obstante,

Não.

Pedaço branco de miolo escorrendo pela parede. Como um verme, igual a um verm:descendo pela parede deixando uma baba de rastro, como uma lesma.

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DIÁRIO DA TARDE

DIA 29 SEXTA

o KAISER VAE ACABAR NO HOSPICIO ..

FECHAM-SE OSPOSTOSMEDICOS MAS OS NECESSITADOSDEVEM PROCURAR AREPARTIÇÃO DE HYGIENE

Por achar-se quasi extincta a epidemia da grippe nesta capita~ a Directoria doSeroiço Sanitario determinou que fossem extinctos os postos medicos que o governocreara no quadro urbano e nos suburbios providencinndo tambem para que aspharmacins que estavam autorisadas a preparar receitas gratuitamente para osnecessitados, não mais o façam. DT

JOSEPHINA - a distincta familia Jardim vem sendo curelmente ferida pelaimpiedosa epidemia que tantas lagrimas tem ao nosso povo arrumado. Dias atraz,noticiamos o fallecimento de um filho do sr. Telemaco Jardim, facto esse que oexaltou de tal forma que, no delirio da febre, quando atacado também do ma~abandonou o lar e se foi deixar morrer, abandonado e só à beira da Cascatinha deSanta Felicidade. E, implacavel, a morte paira ainda sobre o lar infeliz e arrebata agentil menina Josephina primogenita do malogrado cidadão, e que contava apenassete annos de idade.O enterro da desventurada creança realizou-se hoje ás 15 horas, saindo o feretro darua Carlos de Carvalho n. 8para o Cemitério MunicipaL

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DIA 30 SKBADO,O KAISER ESTA COM HESPANHOLA

De amanhã em diante será restabelecido o trafego dos bonds os quais circularão dE

accordo com o antigo horario. DI

Mas sempre terei diante de mima visão de eu abrindo a portaa casa vasia, seu corpo de loura plumagemSem me voltar, sem voltardiante de mim a cidade vazia, silenciosanestes dias da grippeninguém me viu nem me verá

"Ela, a mulher, nunca mais ficou com o juízo perfeito. Passavauns tempos boa, teve até um filho, criança linda. De repente,dava assim como uma tristeza nela, saía a andar sozinha pelasruas, sempre com um vidrinho de veneno nas mãos. Nuncalargava do veneno, mesmo quando estava normal, alegre com omarido e o filho ... "

DONA LÚCIA - 1976

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OS 6BITOS DE GRIPPE

NOVEMBRO DE 1.918

DIA 1DIA 2DIA 3DIA 4DIA 5DIA 6DIA 7DIA 8DIA 9DIA 10DIA 11DIA 12DIA 13DIA 14DIA 15DIA 16DIA 17DIA 18DIA 19DIA 20DIA 21DIA 22DIA 23DIA 24DIA 25DIA 26DIA 27DIA 28DIA 29DIA 30

FONTE: DIÁRIO DA TARDE

1O

1423443

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anto Deus.tQuando o ranto forte.

logio der hanto immor- Bras dirá os 5

ai livrae-nos,

guintes )ac

enhor

da Flatorias:

este,de todo

Por voss

chagas.Po

mal. Rvossa Cruz

5livrae·me d

peste DevinJusus.

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Po

JESUS E MARIA

68

1918

Dezembro

A última ktra do alfabeto

DIA 1 DOMINGO

'I)------CI

\IVida Social II.~::;o============\1

Os cinemas "in totun" abrirão amanhã,annunciando exihibiç6es novas depelli­culas attrahentes. Cp

71

DIA 2 SEGUNDA

.... "

Scena M6cahra

No H08~icioda Alie­

naU08 um louco

mata quatro pos­

suas-Desenrolou-se hontem no Hospicio N. S. da Luz uma scena terrificante que tevecomo protagonista um infeliz demente ali recluso.Manoel de Campos, de 22 annos de idade, fora recolhido áquelle estabelecimento hamuito tempo, mas desde 5 armos que não tivera accessos de loucura, vivendo porisso solto pelas alamedas dos jardins do Hospicio.Andava por ali abobado, sem que alguem pudesse um dia augurar a scena horrivelque elle foi causador hontem.

Seria 6 1/2 horas da manhã, que tivera grippe e se achava exaltado pela febre,tomado de furioso accesso, ao encontrar um dos reclusos que era aleijado e usavamolletas, de uma destas se apoderou vibrando-lhe forte pancada no craneo.Caido exanime o primeiro, o louco avançou sobre outra victima.Era esta o cosinheiro do estabelecimento, que procurou defender-se com o braço.Baldado foi seu esforço, pois qque recebendo pancada violenta, caiu também semvida.Numa aneia de matar, olhos injectados de sangue, a faiscarem, o louco, sempre coma tragica molleta já rubra e cheia de massa encephalica de suas victimas saiu embusca de outros.Em quantos que encontrava, o louco desferia pancadas.E naquelle aranzel, naquella confusão que se estabeleceu, irmãs de caridade fugiam,

velhos e mendigos ali reclusos se ocultavam-se, até que após uma lucta perigosa, oinfeliz demente foi subjugado pelos empregados Pandellis Rethis e Paulo Kopff, queo puzeram em camisa de força, recolhendo o a uma cella.Entretanto, no solo, em meio de uma profusão de sangue, jaziam cadaveres quatropessoas. . . DIÁRIO DA TARDE

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DIA 3 TER~A

U 2W1 • um ---- ••••.-••w••..••••.-=-w-- WUlI••••••• __ ••lIlIlI•••

Uma trage~ia no HospicioUma proeZa macabra da uHespanhola"-

Domingo foi nossa população cruel­mente abalada com a noticia de que noHospital de N. S. da Luz occorrera umatectrita scena de sangue, da qual era pro­tagonista um dos infelizes reclusos da­quel1e estabelecimento. No desejo de beminformar os nossos leitores, como o fazemtodos os jornais verdadeiramente moder­nos, destacámos hontem um dos nossoscompanheiros para ir até aquel1e estabele­cimento, a fIm de colher impressões sobrea horrorosa tragedia e ao mesmo temposyndicar das circunstancias do caso, aver se haveria razão em acreditar-se que odescalabro se dera por qualquer impru­dencia, ou por relaxamento em tomar asnecessarias precauções com os infelizesque habitam aquel1a casa sinistra.

Chegados que fomos á mansão dosirresponsaveis, já nos chamou a attençãoo cantar monotono de um doido, que na­quel1a coisa entoada á guisa de cançãoestá a mostrar o quanto a inconscienciatoma os irresponsaveis como que felizesimmersos na noite negra da inconsciencia.

Pelo que ouvimos, podemos maisou menos reconstruir a scena horrivel daseguinte forma:O CRIMINOSO E SEUS ANTECEDEN­TES.Chama-se Manoel de Campos o autor dahorrorosa scena de sangue; conta cercade 32 armos de edade. Foi recolhido aoasylo ha cerca de 5 annos, em 1913.

Apalermado, jamais teve el1e occaSlaode manifestar indicios de loucura furiosae quem o visitasse era até capaz de jurarque o desgraçado estava ali recolhido porexcesso de zelo. Como todo o louco tema sua mania, uns a mania de perseguição,outros a de grandezas, Manoel de Camposquando era interrogado por alguem rela­tivamente á sua identidade, respondia queera "governador" do Estado, sendo por­tanto um delirio mais democratico, poisque o infeliz não se suppunha um rei ouimperador, nem mesmo um simples presi­dente da republica: contentava-se com serGovernador do Estado ...

Ultimamente, com a invasão da pes­te hespanhola em nosso Estado, a enfer­midade fez a sua entrada tambem no Hos­picio, sendo Manoel de Campos uma desuas victimas. Teve el1e febre alta e todosos demais symptomas da terrivel enfermi­dade. Tratado, porém, com todo o cari­nho pelas religiosas daquel1e estabeleci­mento, achava-se el1e ultimamente emconvalescença e sempre apalermado, nin­guem suppunha que el1e viesse a ter umaccesso de loucura furiosa.A SCENA DE SANGUE

Pela manhã a ronda foi fazer umavisita aos diversos departamentos da ins­tituição, nada encontrando de anormalque chamasse a sua attenção. Então asirmãs preparavam-se para ir celebrar osacrifIcio da missa, talvez tendo no co-

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ração o desejo de levantar a Deus umaprece em favor dos infelizes recolhidos aoestabelecimento. Um grito lancinante foiouvido, mas ninguem deu a elle attençãoalguma, pois é natural que naquella casase ouçam frequentemente gritos dos irres­ponsaveis. E todos estavam longe de ima­ginar que era o infeliz mendigo PauloBruquikoski que tombava mortalmenteferido por uma pancada desferida comuma tranca de madeira. Com a trancatoda ensanguentada e a moleta do mendi­go ás mãos, Manoel tenta fugir e persegui­do pelo epileptico Bento dos Santos, ferea este, felizmente não o matando porqueBento tivera a boa idéa de, por instinctode conservação, levar o braço a cabeça,recebendo os ferimentos no braço. Aseguir, poz-se o infeliz a correr em deman­da do portão para se por em liberdade,sendo que a essas horas já o facto era sa-

bido de todos, correndo em sua persegui­ção muitos doentes e empregados. Seden­to de mais sangue o infeliz demen te arre­mette contra os primeiros que lhe appro­ximam, conseguindo prostrar sem vidaManoel Salathiel Domingues, FranciscoBittencourt, Nicoláo Domenico e MiguelKosmiake.

Subjugado, foi Manoel de Campospreso a uma camisola de força. Interrro­gato, foi Manoel de Campos sobre o seuacto, a sua resposta era mais ou menoslucida. Mas, hontem estando lá o dele­gado dI. J. Ribeiro, que lhe perguntou sise lembrava do que fizera, respondeu quenão. Quando lhe disseram que havia mor­to quatro pessoas e ferido uma, respon­deu: - Agora está mesmo morrendomuita gente: meu pae morreu sósinho eestes morreram logo quatro ...

COMMERCIO DO P ARAN Á

74

" ... até que, um dia, tomou o veneno na rua, morreu, acharamela já morta. Foi muito tempo depois, acho que foi lá por 30."

DONA LÚCIA - 1976

MMissa

Germano Heisler penhoradamente agradecea todas as pessoas que acompanharam osrestos mortaes atp á sua ultima morada desua pranteada e inesquecivel esposa

CLARA MARGARETH HEISLER

Aproveitando a opporrunidade convida seusparentes e pessoas de sua amirode paraassistirem á missa que manda celebmrsexta-feira, a hora 8, na egreja da Ordem.Por este acto de religião e caridade seconfessa agradecido.

"Moça bonita, solteira. Morreu na gripe. Não resistiu a febreforte. Muito branca, alta, cabelo loiro bem comprido. Morreuna gripe." DONA LÚCIA - 1976

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76

"Não, ela morreu na gripe. O marido se salvou, mas elamorreu. Vi o corpo, bonita, muito branca, cabelo branco detão loiro, mortallia branca."

DONA LÚCIA - 1976

MissaGermanQ Heisler e filhos penhoradamenteagradecem a todas as pessoas que acompa­nharam os restos mortaes até á sua ultimamorada de sua pranteada e inesquecivelesposa e mãe

CLARA MARGARETH HEISLER

Aproveitando a opporrunidade convidamseus parentes e pessoas de sua amisade paraassistirem a missa eu mandam celebrar

sexta-feira a hora 8. na egreja da Ordem. Poreste acto de religiiio e caridade confessam-seagradecidos.

"Não, na época ela não era casada. Moça bonita, solteira. Muitobranca, loira. Casou, teve fIlhos, mas nunca mais ficou certa dacabeça. Tinha períodos de lucidez, casou depois da gripe, tevefIlhos, mas nunca mais ficou certa da cabeça."

DONA LÚCIA - 1976

-...J00

OS MORTOS DA GRIPPE

ANNO DE 1918

POPULAÇÃO DE CURITYBA E SUBURBIOS = 73.000 HABITANTES

DISTRICTOSNASCI-CASA-OBITOSOBITOS POR GRIPE

MENTOSMENTOS

NOV.DEZ. TOTAL

CURITYBA1.6291371.26125467321

S. CASEMIRO DOTABOÃO24071 59729

NOVA POLONIA12716 34325

PORTÃO24859 112311849

TOTAL GERAL 2.244 283 1.466 295 89 384

DOENTES DE GRIPE = 45.249

PORCENTAGEM DE OBITOS : 0,&4%

RELATÓRIO DO SR DR. TRAJANO REIS

DIRECfOR DO SERVIÇO SANITÁRIOCURYTIBA 1919

N1FIM

MACISTENO

INFERNO

raconto

Noite de Amor. ..

Vertigem de Luxo ...

Caminho da Perdição ...

Gigolô...

Rouge e Pó de Arroz .Perdida em Paris .

Os Mysterios de Hollywood. ..Bachanal ..

Sodoma e Gomorra .

Três Noites de D. juan .Macho e Femea .

Maciste no Inferno .

"Columnas, templo, quadrigas, bastilhas depapelão, cavalleiros da Idade Média,D' artagnans de fancaria, annuncios

luminosos, projectores, lampadas, lettreiros,caretas, diálogos, versos, chronicas,

commentarios, apreciações, taboletas nosbondes e nos automóveis; latagões de feira

com estandarte e bandas de músicas;coxas nuas de girls macias, meninas cobras

deitadas sobre areias, mulheres velludoem atitudes lascivas sobre leitos ou dentro de

alcovas, mãos que agarram, lábios queprocuram, femeas que se entregam, corposem crispações, oscullos infinitos, desejos,

ancias, fremitos, espasmos ..."

Maciste, o heroe, o homem de vigor sem eguale coração generoso era tão estimado em sua

aldeia natal, onde vivia como um paladinodo bem que, um bello dia, Plutão em seuseu reino subterrâneo de treva e rancor

invejou-o e para combatel-o mandou a Terra

o demônio Barbadilha, um dos seus maisardillosos subditos, com a missão de

corromper a bella Graziella, irmã de creaçãode Maciste

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Negro como o inferno até acostumar a vistafico em pé as mãos na mureta de madeira

que separa as fileiras de cadeiras da grandeporta com cortinas de velludo que separa a

salla de exibições da salla de espera

Este vendo Grazie/la seduzida por umconquistador sem escrupulos percebe a

intervenção de Barbadilha e, ousada mente,

trava renhida lucta com o demônio queo arrasta para o inferno

Com a luz que vem da tella busco com os

olhos aquillo que quero e busco meu logara mulher Até me assegurar que é uma

mulher fico atraz da mureta de madeira as

mãos segurando suas bordas Para que osoutros espectadores não se apercebam dasminhas intenções finjo entrar na fileira de

traz com mais gente; mudo de idéia e entrona fileira da frente ameaço sentar numacadeira vazia mas sento-me ao lado della

É uma mulher

É uma mulher Fingindo attenção na tellacom o rabo dos olhos olho com coragem viro

um pouco, bem pouco, a cabeça para queella não perceba que estou olhando a ella

Nem tentei encostar meu braço no seu e ellaolha a tella tremeluz

Ora o mortal que chega ao inferno sem termorrido, pode voltar ao mundo se ao fim de

trez dias não tiver cedido à tentação de

alguma beldade d'aquelle antro

É bella e macia, estou com meus braçoscruzados e as pontas dos meus dedos

acariciam o fino tecido de sua blusa solta ellanão solta os olhos da tella cintilante nem

sente minha caricia na seda macia diferente

do áspero velludo das vermelhas cortinasÉ um fume marron nas cennas de inferno é

vermelho Um calor me sobe por todomeu corpo, frieza da seda

Ora, Proserpina, a esposa própria de Plutãotenta-o com encantos taes que Maciste

ousa beijal-a: Estava decretada sua sentençaàs pennas etternaes

Ouso, empurro meus dedos tremulos e toco

seu braço como se fosse sem querer Nãosobre a cadeira ao lado meu chapeu

esta assentado sobre meu sexo agora zona decalor EUa afasta seu braço Ouso, insisto

eUa afasta seu braço vira-se e olha firme paramim meus olhos estão na teUa

Entrectanto Barbadilha, ardiloso e revoltoso,

quer a todo transe desthronar Plutão, paratanto architeta uma revolução no inferno.

Somente por sua lealdade instinctiva,

Maciste poem sua força e destreza sem egualao serviço de Plutão e consegue debellar arevolução e castigar o pérfido Barbadilha

Acaricio o fino tecido e os dedos vão se

aproximando vagarosamente Como osbraços della estão bem postos para traz os

dedos vão chegando a parte do lado deseu seio direito, logar onde o tecido também

é solto - como nas mangas da blusa - enão encosta no seio pelo menos na partelateral Olho a tella e nada vejo Poma

macio dura vejo

Então terminada a lucta, Plutão chama o

heroe a sua ignobil presença e em lembrançaaos seus serviços auctoriza-Ihe a voltar a

Terra: Proserpina protesta contra isso, mas

em vão. Maciste prepara-se para partir,mas Proserpina arma-lhe um laço, manda-oprender e torna a beija I-o, condemnando-o

novamente à penna eterna

Latagões com estandartes e bandas de músicas,

coxas nuas de girls macias, meninascobras deitadas sobre areias, mulheres

velludos em attitudes lascivas, mãos queagarram tóco finalmente o lado de seus seios

calor, lábios que procuram, femeas que seentregam, corpos em crispações, oscullos

infinitos, desejos, ancias, fremitos,

espasmos ... No espasmo do gôzo nem sintosuas unhas vermelhas fincarem-se em

minha carne:

"Que é isso? se o senhor não ficar quieto euchamo o guarda!"

Levanto sem olhar saindo pelo outro ladodas cadeiras Disfarço sair agora sem o filme

acabar chamaria atenção; por issodirijo-me ao banheiro Letreiros homenspintado num vidro que a luz vermelha

alumia Uma pequena cortina vermelha antesda porta impede que abrindo a porta a

meia luz do logar chegue na salla deprojeção Evito olhar no espelho não há

toalha limpo a mim e a calça como possocom o papel do programa que anuncia

as próximas fitas Caminho da Perdição ...As Trez Noites de D. Juan ... Macho e

Femea... Sodoma e Gomorra ...

Entrectanto, na Terra, o seductor de

Graziella arrependido de seu acto, volta parajunto d'ella e seu filho, que já tem então

um anno e meio de edade. Na véspera doNatal,

Graziella faz esta adorável creançarezar por seu protector, o impávido col/osso

Maciste e dá-se o milagre: a prece infantilé ouvida e o Todo Poderoso liberta Maciste e

este volta à Terrapara gozar a ventura de

um novo lar, entre seus amigos

Não posso ficar neste logar muito tempochamaria a attenção sobre minha pessoa A

fita está acabando apresso-me com o chapeucubro a mancha úmida de minha calça asgentes da salla de espera me olham sou.. .

o pnmeuo a saIr

Mesmo a luz mortiça das quatro horas datarde me cega Já não escuto o piano

quando todos começam a sair da sessão jáestou escutando o barulho da cidade das

casas das vozes dos automóveis dos ruidos

Sou novamente parte da cidade e., "nmguem me ve

E9 mINE9TAURE9

novela

Para não pagar a mulher,abandonei o quarto no meio da noite.

Não que a mulher não me agradasse. Acordei, ela dormiaao meu lado, na cama do hotelzinho barato.

Uma bela fêmea, branca, loira, cabelão esparramado pelolençol, nua. Tenho pouco dinheiro, nem sei como convenci

aquela estátua de mulher a passar a noite comigo nestehotelzinho vagabundo, tão sujo, o que eu podia pagar.

O preço combinado, tudo o que eu tinha no bolso, ia me

deixar sem nada até o fim do mês. No escuro me levantei,quieto vesti minhas roupas, sem fazer barulho deschaveei a

porta e, de mansinho, saí para o corredor escuro.

Sozinho? Nessa hora da madrugada ninguém entra sozinhonaquele hotel. É um hotel de encontros e ninguém o procurapara se hospedar. Se por acaso algum desavisado procurar

um quarto para, fatigado, dormir algumas horas, seráalerta do pelo porteiro noturno sobre a real categoria doestabelecimento e dissuadido de entrar. Ao contrário,

alguém sair sozinho do hotel durante a noite é relativamente

comum: a hora certa para chegar em casa, a hora que obriga umhomem casado a deixar sua parceira noturna dormindo, os

pequenos desentendimentos amorosos, as questiúnculas porquestões de dinheiro, a insatisfação com a companhia

escolhida, o sono alcoólico que impede os prazeres do sexo,

são motivos corriqueiros para se abandonar um quarto pagoadiantadamente. E não há razão nenhuma para se entrarsozinho naquele hotel de encontros. Nunca aconteceu isso.

Excelente fêmea - e, geralmente, as loiras não são boas de

cama -, essa polacona que eu peguei. Não era mulher paraaquele ambiente, nem sei o que ela viu em mim. Também,

quando nos cruzamos na noite, estávamos meio bêbados, osdois, no bar. Geralmente as loiras são largas, aguadas, ela

não, apertadinha, pentelheira loira. Foi tocar na pele e ela searrepiou toda, foi logo beijando meu corpo: como era

quente aquela boca com o meu sexo dentro. Quando enfieinela, a mesma coisa: quentura de um pote de mel. Três vezes

seguidas e eu e ela queríamos mais, mas o sono não deixou, agente tinha bebido demais. Acordei no meio da noite,

dormindo ela era coisa morta, nada da potranca que eucavalgara três vezes. Me veio a preocupação de que se eu

ficasse até de manhã, teria de pagá-Ia, e então ia ficar sem

dinheiro até o final do mês. Encostei a porta com cuidadoe me atirei pelo corredor escuro.

- Você viu a Marilda?

- Não pintou por aqui hoje.- Porra! Será que ela ainda vem?

- E eu é que sei?- Tesão. Tem um cigarro?

-Não.

- Porra, enfia teu cigarro no eu.- Não enche o saco.

- Se a Marilda aparecer, diz que eu volto. Tchau, tesão.- Vê se me esquece.

Porque me parecia que fora por esse lado que eu chegara, meatirei para o lado direito do estreito corredor escuro.

Não enxergava nada, eu ia com as mãos nas paredes e nãopara a frente, como seria normal quando se caminha na

escuridão. Nas mãos abertas eu sentia as paredes de tábua e,de intervalo a intervalo, o relevo das mata-juntas; a

intervalos maiores, a áspera madeira das portas de inúmerosquartinhos. Me choquei de frente com uma parede de

alvenaria que fechava meu caminho. Como não sentisse com

a mão a parede do lado direito, percebi que o corredor

descambava para a direita, numa curva de noventa graus,agora parede de material. E continuei seguindo.

Quase que caio. O corredor principiava com uma escadinha.

Tropecei em imprevistos degraus, formados no vazio a partirda direita até a parede contra a qual eu me chocara. Desci

cuidadosamente, arrastando os pés, pois não sabia quantosdegraus existiriam no escuro. Continuei seguindo, arrastando

os pés, com medo de encontrar pela frente outros degraus.Com as mãos nas paredes eu sentia uma repetição do

corredor anterior, este mais curto. Logo senti um vazio namão esquerda. Parei, estendi a mão direita para a frente

e senti outra parede bloqueando o corredor, encaminhando-o

para a esquerda. Me virei e segui arrastando os pés, dei umatopada num degrau. Havia uma escada à esquerda. Ao

contrário da outra, esta escadinha era ascendente. Galguei,cuidadosamente, seus três degraus.

Para a numeração dos quartos deste hotelzinho utilizam-seplaquetas de metal de cerca de sete centímetros de

comprimento. São de formato oval, esmaltadas de branco

com os números em azul, ornadas com friso também azul,formando uma delgada moldura. Pequeno furo em cada uma das

extremidades permite a passagem de pregos, ouparafusos, para fixá-Ias nas portas dos quartos.

Algumas plaquetas estão pregadas tortas e mesmo de cabeçapara baixo, outras se acham penduradas, presas somente por

uma das pontas, e falta numeração em muitos dos quartos,numa demonstração de serviço malfeito. Apesar de muitas

estarem riscadas ou com o esmalte partido, são plaquetas deboa qualidade. Devem ter servido em estabelecimento de

mais categoria antes de seu uso aqui.

Talvez por economia, neste hotelzinho barato o acender de

uma lâmpada se faça atarrachando-a no bocal. Alcançado otopo da escada, continuei a caminhar. Qualquer coisa deabafadiço, neste novo corredor, aumentava o cheiro de

mofo, sensível em todos os quartos e corredores.Estendo as mãos para o alto e alcanço o forro baixo, que,

pelo tato, parecia ser de áspera madeira compensada, cheiade abaulamentos. Durante algum tempo continuei com as

mãos pelo teto, na esperança de encontrar uma lâmpada que,desrosqueada no bocal, estivesse provocando a escuridão.

No meu tatear pelas paredes ainda não encontrara nenhuminterruptor de luz. Talvez nem existissem. Uma luz acesa

me indicaria o caminho a seguir. Àquela hora tardia não seesperavam mais hóspedes, e para economizar certamente

o porteiro apagara todas as luzes.

- E como é que tá?- Fraco.

- E de novo?

- Uma tremenda duma peça. Uma loirona que eu nunca vi

por aqUI.- Boa mesmo?

- Coisa fina, deve ser gata de alguma boate.- E o cara com ela?

- Acho que já vi antes, um pé-de-chinelo. Olha, hoje joguei

na dezena da vaca, seco na cabeça: 25. Viu o que deu: 24.

- Em que quarto você pôs eles?- No oito.

wc

Este corredor me parece mais longo que os outros.Emanações de urina e fezes se juntam agora ao cheiro de

mofo. A mão direita encontra um vazio, a porta entreabertade um banheiro malcheiroso. Empurrei a porta e entrei.

Procurei com as mãos o interruptor da lâmpada que, semsombra de dúvida, deve existir em um banheiro. Um

cubículo. Minhas mãos percorrem todas as paredes, batono puxador da descarga, me arranho num prego onde se

espetavam ásperos papéis cortados irregularmente,com certeza pedaços de jornais velhos. E não encontrei ointerruptor. Erguendo as mãos, encontro um bocal vazio

fixado no teto baixo. A lâmpada ou havia sido retirada, oununca estivera lá. Eu não tinha mais nada a fazer neste banheiro

escuro, então saÍ.

Não tenho o hábito de fumar, por isso não carrego fósforoscomigo. A luzinha do meu relógio queimou há tempos e

de nada adiantaria mesmo, pois era muito fraquinha, mal seviam os números do mostrador. Um castiçal com uma vela

acesa me seria mais útil nesta escuridão.

S/NC}

UMA LENDA DA ANTIGA GRÉCIA. Por ser perversa etenebrosa, a rainha Parsifae, mulher do rei Minos, da ilha deCreta, foi castigada pelos deuses tendo um filho monstruoso,o Minotauro, corpo de gente, cabeça de touro e comedor de

carne humana, Vivia o Minotauro no Labirinto, enorme

construção de muitos corredores emaranhados. Impenetrável à

luz, o inextrincável Labirinto era formado de mil voltas com milcorredores arrevesados, intrincados, enredados, tortuosos,

tornando impossível para quem nele entrou achar ocaminho de volta. O rei Minos invade a Grécia e ataca Atenas,

que se rende. A condição de paz imposta à cidade é que,uma vez por ano, deveria entregar 7 moças virgens e 7 rapazes

para serem sacrificados ao Minotauro, sempre sedento de sanguehumano. Teseu, moço loiro, belo, fortÍssimo, inteligente, andava

pela Grécia eliminando bandidos e ladrões. Ao saber dasexigências do Minotauro, toma o lugar de um dos rapazes

escolhidos e segue para Creta, decidido a matar o monstro.

Ao desembarcar, é visto pela filha mais nova do rei Minos,a bela princesa Ariadne, que se apaixona perdidamente porele. Ariadne dá armas e um novelo de fio de ouro a Teseu,

para que ele encontre o caminho de volta no Labirinto. Entrandono Labirinto, após mil voltas Teseu chega ao lugar onde o esperao Minotauro, enorme com seu corpanzil de homem e caratonha

de touro. Ao ver carne fresca, o Minotauro ruge e baba de cobiçae gula. Sem perda de tempo, Teseu enfia-lhe a lança no coração e

corta-lhe a cabeçorra com a espada. Vencido o monstro,Teseu encontra facilmente o caminho de volta seguindo o fio

que desenrolara por quilômetros de escuros corredores.Na saída, Ariadne espera ansiosa por seu amado. Teseu

embarca com ela de volta à Grécia. No meio da viagem, apretexto de cansaço pela luta com o Minotauro, Teseu encosta o

navio na ilha de Nacsos. Deita-se para descansar e Ariadneadormece ao seu lado. Aproveitando o sono da bela Ariadne,

Teseu abandona-a na ilha deserta e zarpa sozinho para a Grécia.

Perdido na escuridão, percebo depois de algum tempo quedevo estar em outro corredor. Nauseado pelo mau cheiro,quando saí do banheiro devo ter caminhado em linha reta

e não para o lado. Como não bati em nenhuma parede,devo ter entrado por um desapercebido corredor que

inicia bem defronte ao pequeno banheiro. Sinto tambémuma corrente de ar frio vinda da escuridão à minha frente.

A mulher acorda no meio da noite com vontade de urinar,muita bebida. Passa as mãos pela guarda da cama, esperando

achar uma pêra de luz. Acha não. Acostumada nesses

ambientes, sem sair da cama, tateando o chão com as mãos,procura até encontrar uma bacia de metal. Se levanta, puxaa bacia para perto de si, agacha-se e solta o segurado jato de

urina, metálico ruído. Mesmo na escuridão sabe onde

encontrar: pega o rolo de papel higiênico na mesinha-de-cabeceira

e se enxuga. Ao voltar para a cama, percebe queestá sozinha.

8DEMAlOBELA LOIRA DEVORADA POR URUBUS

Na manhã de oito de maio, o lavrador Casemiro Pietroski, moradOl

do distrito de Itaqui, em Campo Largo, distante vinte e cincoquilômetros de Curitiba, atraído por nuvens de urubus sobrevoand,

um capão de mato existente no prolongamento da antiga estradaCuritiba-Campo Largo, dirigiu-se para o local e, em meio ao mau

cheiro reinante, deparou-se com uma cena tétrica. Uma mulherloira, aparentando vinte e poucos anos, encontrava-se caída de

bruços, nua, morta, servindo de repasto aos urubus. Assustado e

enojado, Casemiro Pietroski procurou logo avisar a polícia. Ao locêcompareceu uma viatura da delegacia de Campo Largo que

providenciou a remoção do corpo para o Instituto Médico Legal d,e

Curitiba. Os primeiros exames realizados não evidenciam nenhum,perfuração por projétil de arma de fogo; porém, como o corpo da

bela jovem loira se encontra bastante bicado pelos urubus, que lhrarrancaram diversos pedaços da carne já putrefata, torna-se

necessária a realização da devida autópsia, com vistas a estabelece'a causa mortis. Vasculhando cuidadosamente a região pouco

habitada, a polícia não encontrou as vestes da vítima, nem qualqurdocumento que facilitasse sua identificação. A estradinha de tern,

termina uns cinco quilômetros adiante do lugar do macabro achade tem muito pouco movimento, sendo de se supor que a bela loiratenha sido assassinada em outro local e ali jogada durante a noite

Silêncio. Eu não escutava nenhum barulho vindo dos quartos,como se esperaria num hotelzinho de encontros. Pela

pouca espessura dos tabiques de madeira, seria natural quese ouvissem barulhos: gemidos de amor, tosses noturnas,peidos, gente roncando. A loira roncava. Nada, silêncio

total. E eu devia estar bem no centro do hotelzinho,cercado de quartos dos dois lados do corredor sem nenhumajanela, pois nem os ruídos noturnos da cidade eu escutava.

Na minha frente, uma baça luminosidade retangular.Pequena, bem no centro, ao fundo. Minhas mãos tocam aplana lisura do vidro. É uma pequena janela. A noite lá

fora está tão escura quanto aqui dentro. Não há nada paraver. Em frente, bem perto, o oitão sem aberturas de um

edifício alto. De um lado, também quase encostado, o queparece ser uma das paredes do hotelzinho. Do outro, um

muro. Abaixo, a escuridão. Pequena janela sem serventia.Quatro vidros, um quebrado.

- Ninguém comentou nada?-E quem?

- Será que alguém ficou sabendo?- Só quem ficou sabendo fomos nós (nós aí incluídos os dois

interlocutores, o patrão, a mulher do patrão, o agente de políciae Shamanta, o travesti que cuida da limpeza dos quartos).Ninguém desconfiou quando tiramos para pôr no carro.

- Também, embrulhado no acolchoado do jeito que estava,parecia um monte de roupa para lavar.

- E a Shamanta lavou tudo direitinho, não deixou nenhum sinal.- Mas você não alugou para ninguém, não é?

- Estou te dizendo que está quase vazio. Deixei a portaaberta para ventilar: para saírem os maus eflúvios:

não é assim que se diz?- Parece que é.

- E a Shamanta até defumou o quarto todo: para acalmar oespírito da infeliz.

- Cadê a bichinha?

- Acho que, depois do acontecido, ficou com medo de passara noite aqui. Deve estar caçando.

Pelo vidro quebrado entrava o vento frio, que não sinto agora.Um fino ferro redondo, um pequeno pedaço reto, uma pequenacurva para cima, depois um pedaço reto maior, onde pôr a mão.

Então me veio a idéia de ir abrindo a porta de todos osquartos. Que merda, não quero ficar rondando a noite toda.Em algum quarto deve ter luz, ou alguém me empresta umisqueiro. Que se danem. Tudo fechado. Será que tem gente

dentro? Parece que esse corredor não era tão comprido:será que não estou onde pensei que estava? Uma porta aberta,

nem precisei baixar a maçaneta de ferro redondo,provavelmente enferrujada. A porta estava aberta. Vou

entrando devagar, mãos para a frente.- Tem gente aí?

Dou uma tremenda duma topada com a canela no pé dacama. Somente depois de passada a dor forte me levanto dacama e procuro no ar uma lâmpada. Como das outras vezes,

só o bocal vazio, este pendurado no teto pelo fio elétrico.

Merda. Cheiro de defumação nesse quarto. Há quanto tempoestou aqui?

(ou não?)

A mulher loira acorda durante a noite com vontade de urinar,

muita bebida. Procura seu parceiro, passa a mão pelo espaçovazio e sente, no lençol, um molhado gosmento. TSK - elafaz com a boca. Depositado pelo homem não mais ao seu

lado, o esperma deve ter escorrido de dentro dela durante o

sono, ela não se limpou. Limpou os dedos em outra parte dolençol e somente então, acostumada com esses ambientes,

sem sair da cama, tateando o chão com as mãos, procura atéencontrar uma bacia de metal.

- Em que quarto mesmo você disse?-No oito.

(ou 30-0)

Rolei escada abaixo. Braços cansados, deixei de tatear as

paredes, quando vi estava sem apoio. Os degraus dessa escadaem caracol giram partindo de um centro que é o cantodireito do patamar formado pelo final do assoalho do

corredor. Degraus de formato triangular como um pedaço depizza vão se abrindo em leque para baixo. Na escuridão,dificilmente a gente consegue caminhar em linha reta. Eu

andava quase encostado na parede direita e entrei na escada

em caracol, justamente no lado onde os degraus são maisestreitos. Perdi o equilíbrio e rolei escada abaixo, tentandoinutilmente me agarrar em algum ponto de apoio. Não memachuquei, foi mais o susto de cair girando num abismo

escuro. O barulho da minha queda não provocou nenhuma

resposta, nenhuma porta se abriu, nenhum hóspede apareceupara ver o que acontecia.

Não olhei as horas quando acordei, meu relógio está com aluzinha queimada e eu não conseguiria ver os números agora.

No escuro caminho no espaço e não no tempo, num espaçoque não compreendo. Imagino que o hotel tenha três andares,um velho casarão no centro da cidade. Bêbado, quando aqui

cheguei com a loira me lembro, embaçadamente, de tersubido escadas. Sei aonde pretendo chegar: na porta da rua.

Desci escadas, subi escadas e continuo no mesmo lugar:na escuridão.

Há um outro homem que se movimenta, na escuridão, peloscorredores do pequeno hotel. Ele conhece o caminho.

Declinou a escada ao lado da pequena portaria, antespercorreu o longo corredor retilíneo do andar térreo e

prefere subir pela estreita escada dos fundos. Conhece ochão onde pisa e sabe que, por ali, o caminho é menos cheio

de meandros para chegar aonde quer. Na hora certa, entre asinúmeras portas do hotelzinho ele

saberá qual abrir.

A porta está aberta. Saio do corredor escuro e entro noquarto escuro. Vou falando: Tem alguém aí? Desvio a cama

e vou passando as mãos pelas paredes, ora de madeira, ora dematerial. Procurando uma luz, encontro uma janela. É uma

grande janela, a vidraça abre para o lado de dentro e, por maisforça que eu faça, não consigo abrir a veneziana nunca

aberta. Espio pelas frestas e nada mais vejo além daescuridão. Não me lembro se tinha janela no quarto da

loira. Haverá outros quartos abertos.

De madrugada, na cidade, há uma hora em que parece quetudo pára. Tudo está fechado, não se escuta carro passando,

as gentes dormindo. Aquele silêncio todo e se ouve um

zumbido contínuo como um apito de navio, bem baixinho,mal se ouve. Acho que vem dos postes de luz. Aquele

zumbido continuado não é silêncio.

Ele fuma. Antes de subir a escada, no fim do corredor,

acendeu um cigarro e se deixou ficar ali parado, em pé,fumando. Talvez por mesquinharia, para não ter de

reparti-lo com o porteiro, talvez porque a maconha lheaclare a mente sobre o que fazer ou, talvez, apenas por

vontade de fumar, ele acendeu o cigarro antes de subir aescada e se deixou ficar ali parado, no fim do corredor,

sozinho no escuro, fumando.

Eu penso em fogo, chamas. Na verdade, sinto frio. Setivesse um fósforo, poria fogo nos jornais e me

aqueceria. Na verdade, não faria isso. Se eu tivesse um

fósforo e tivesse em mãos os jornais do banheiro, eu fariauma tocha, uma luz para me guiar.

Outro jornal, de menor circulação, sem nenhumafotografia na primeira página, noticiou que o assassino

(ou assassinos) havia posto fogo no cadáver para evitar aidentificação. Na notícia, o nome da localidade aparecia

grafado errado: Itaigüi.

- A Marilda já veio?- Não. Faz dias que não aparece.

- Tá gozando com a minha cara? Ainda ontem ela esteveaqui, com um velho. Eu estava com o meu.

- É tanta gente que aparece por aqui, se eu for olharpara a cara de cada puta que entra ...

- Se você não olha para a gente, como sabe que ela nãoveio hoje?

- Tá a fim de fazer hora comigo? Já disse que ela não veioe não me encha o saco.

- Tesão. Não tem mesmo um cigarro, estou louca devontade de fumar.

- Já disse que não.

Abro uma porta destrancadae vou entrando num quarto escuro.

- Onde você andava?

Só vejo a voz da loira e respondo:- Fui no banheiro.

o outro homem vê que o 27 está escancarado. Quem deixoua porta aberta? Espia para dentro do quarto e, zelosamente,

encosta a porta.

- Você tem fósforo?

- Pra que que você quer fósforo? Venha deitar logo que euestou com frio.

- É que está escuro. Não tem luz nessa porra.- Deixa de frescura e vem de uma vez.

No escuro, eu caminho na direção dela, em direção à cama.Piso na bacia de metal que entorna seu líquido em cima de

mim. O líquido gelado me entra por dentro dos sapatos.Molha a barra da minha calça, os meus pés.

A mulher loira também não sabia onde era a luz, mas tinhafósforos na bolsa. No escuro, me entregou uma caixa defósforos de papelão, preta, com o nome do inferninhoimpresso em letras douradas: Le Labirinthe. Com a

desculpa de me enxugar, saio outra vez. A caixa tinha apenastrês palitos. Um custou a riscar e queimou meu dedo

quando acendeu, atirei fora num grito. O outro me guiouaté o banheiro, onde eu sabia que encontraria papel.

- Está a fim de um programa, bonitão?O passante não responde e continua seu caminho. A outra

mulher pouco se importa, perguntou por perguntar. Sabemuito bem que, àquela hora, dificilmente encontrará um

freguês. Se deixou ficar ali, perto da pequena porta deentrada do hotel, porém num lugar onde não possa ser

vista pelo porteiro. O outro homem sobe, lentamente, pelaescada que leva ao corredor do banheiro. Quando seus olhos

chegam na altura do piso do corredor, percebeuma luminosidade alaranjada movendo-se na escuridão.

O porteiro noturno lê, mais uma vez, a notícia estampada nojornal do dia anterior. A mulher loira dorme, sem roncar.

Em preto e branco a fotografia da mulher loira caída debruços, manchetes impressas em vermelho, mas as letras

da reportagem estão em preto. O jornal se encontrabastante amassado e o fogo do terceiro palito de fósforo

começa a queimá-Io pela margem. Estou acocorado juntoao foguinho e, com outro pedaço de jornal, esfrego a

barra da calça para secá-Ia.- Qyhé bbohhar oohhô nnnohehll?

Ao mesmo tempo que escuto a voz irada que nãoentendo, em movimento vejo um sapato preto de cordão,

uma canela sem meia, uma perna metida numa calça preta.O sapato esmaga o jornal incendiado e, novamente, aescuridão. Rápido, assustado, ao levantar me choco

contra um corpo aflanelado grosso redondo que perde oequilíbrio e bate com estrondo na porta semi-aberta do

banheiro, onde cai, um barulho seco no chão cimentado.

No escuro, eu corro pelo corredor, pela escada, por outraescada e vejo, quando a outra escada termina,

luz no fim do corredor.

Trrriiiimmm.

Ao mesmo tempo, toca a campainha do relógio-despertadorcolocado na parte de dentro do pequeno balcão da

pequena portaria, precisamente quando os ponteirosmarcam cinco horas.

Agora caminho mais devagar.- A mulher fica dormindo.

Aparentando naturalidade, saio pela porta aberta e, na rua,procuro caminhar numa direção em que eu não possa mais

ser visto pelo porteiro sentado atrás do pequeno balcão.- Tá a fim de um programa, bonitão?

Nada respondo, apresso o passo e só então me dou conta deque estou ao ar livre, caminhando por uma rua estreitaladeada de construções antigas, pequenos prédios com a

mesma altura, e de que começa a amanhecer,apesar da escuridão.

A outra mulher sente frio. Depois de alguma hesitação,encaminha-se para a pequena portaria, entra e pergunta:

- A Marilda ainda não entrou?

o MIST[RIO DA

PROSTITUTA JAPON[SA&

MIMI-NASlILOIClII

.~

o quarto do hotelzinho barato, uma escadinha de trêsdegraus descendo para nele se entrar. Hotel de rendez­

vaus. A prostituta japonesa vai na minha frente. Co­nhece o caminho.

O quarto já é pequeno e, partindo do lado da porta,acompanhando os degraus, construíram uma parede que não chega

ao alto do teto baixo do pequeno quarto. Dentro do pequeno quar­to, essa parede acompanha os três degraus e termina pouco adiantede onde eles terminam. Traçando um cubículo, dentro do já cubícu­lo que é o pequeno quarto, outra parede avança, partindo da paredeoposta à parede dos três degraus. Essa parede não chega a se encon­trar com o final da parede construída a partir do lado da porta de en­

trada do pequeno quarto. Um vão sem porta. Essas duas paredes, quenão se encontram e não alcançam o teto baixo, formam um cubícu­lo sem portas. Ocupam um pequeno espaço dentro do pequeno quar­to do hotelzinho de rendez-vaus, formando um minúsculo banheiro.

Diferente do piso do pequeno quarto, piso de tacos de madeira cin­za muitas vezes lavado, nunca encerado, o chão do banheiro minús­

culo é cimentado, pintado de vermelhão.

185

Pelas dimensões do pequeno quarto, só existe uma posição pos­sível para a baixa cama de casal, coberta pela colcha de tecido bri­lhante, cor vermelha: a cabeceira encostada na parede oposta ao pe­queno banheiro.

O que facilita - um pouco - a passagem é o vão sem porta, queabre um espaço defronte à metade dos pés da baixa cama de casal.Nos dois lados da cama o espaço é um pouco maior, sobra mesmo lu­gar para uma mesinha-de-cabeceira, que foi colocada no lado diantedos degraus. Do outro lado da cama, não sobrou lugar para a outr,:

mesinha-de-cabeceira, que deve ter sido levada para outro quarto dehotelzinho barato.

A única janela do pequeno quarto fica no pequeno banheiro, exa­tamente frontal à abertura sem porta. Pequena janela basculante, vi­

dros pintados com tinta branca fosca grossa.Eu não saberia reconstituir o caminho que nos conduziu da por­

taria do hotelzinho barato até este pequeno quarto. Muitas vezes tri­lhadora do labirinto, a prostituta japonesa caminha adiante de miIrpelos caminhos escuros. Por portas fechadas, um longo corredor e5'treito, um pequeno pátio mal iluminado pela noite, uma escadaria qUe

sobe à esquerda, depois à direita, outro negro corredor cortado em cru:

por outro corredor sem luz, uma negra sala sem portas, talvez uma V2.'

randa. Como é escura esta noite sem estrelas! Um corredor de pare­des sem portas e a porta do pequeno quarto. Não sei dizer para que:parte do hotelzinho barato dá esta janela basculante.

Um olho pode estar à espreita. Deitado na cama, vejo diante L~:::

mim, através da abertura sem porta do pequeno banheiro, a janeLbasculante com falhas na pintura. Eu coloco a pequena e úmida to~.'lha de ralo tecido sobre os vidros pintados e consigo a privacidade épequeno quarto do hotel de rendez-vous. A cabeça no edredom tan ....bém coberto com o mesmo tecido brilhante da mesma cor vermelhda colcha.

Seguindo sempre adiante, com a chave na mão, a prostituta .1'cponesa me conduziu pelo labirinto cheirando a mofo. Foi ela a pLmeira a entrar no pequeno quarto às escuras e a me alertar:

186

Mesmo na escuridão, suas mãos sabiam onde encontrar o comu~

tador de luz, em forma de pêra, preso ao fio que pende do teto sobre

a baixa guarda da cama. Antes, apenas a baça luminosidade atraves~

sando os vidros pintados da janela basculante tomava o pequeno quar~

to. Agora uma pouca luz amarelada, avermelhada, fraca.

Em pé, estendendo as mãos para o alto, eu posso, se quiser, al~

cançar o teto de alvenaria, sem forro, do pequeno quarto. Mas não

quero.

As paredes, todas as paredes do pequeno quarto e do pequeno ba~

nheiro, são pintadas, até meia altura, de cor de rosa~maravilha. Daliao teto, a cor é verde~clara, cor de rosa~maravilha novamente no teto.

Tinta fosca aguada, manchada, cobrindo não sei quantas pinturas an~

teriores. Já sem roupa, eu estou deitado por cima da colcha de teci~

do brilhante, cor vermelha. Dirijo o meu olhar para a prostituta ja~

ponesa que se lava no pequeno banheiro sem porta.

Não sei se ela fala para mim ou para ela. O chuveiro elétrico fica

no espaço do pequeno banheiro visível para mim. Existe, também,

uma pequena pia bem embaixo da janela basculante. A prostituta ja~

ponesa se lava utilizando a mangueirinha do chuveiro elétrico. Pas~

sa sabão entre as coxas largas, ajuntadas, e no sexo de pouca penu~

gem. Com a mangueirinha, sem chuveirinho, dirige o jato d'água para

retirar o sabão, sem espuma.

187

E eu é que sei? Nunca estive antes neste hotel de rendez-vous. Na

parte que não posso ver do pequeno banheiro fica o vaso sanitário.

Preso por um arame, o rolo de papel higiênico, estufado, molhado pe­

los respingos do chuveiro. Impossível de usar. Melhor apanhar o rolo

que está em cima da mesinha-de-cabeceira, ao lado da cama.

A prostituta japonesa já está deitada ao meu lado, na cama, porcima da colcha de tecido brilhante, cor vermelha. Cor de chá, sua

pele lisa sem pêlos contrasta com a brancura do meu corpo peludo.

Nem moça, nem velha. Não sei dizer. Difícil dizer a idade das mu­lheres orientais. Uns trinta, talvez? Talvez.

Imóvel, silencioso o corpo ao meu lado, como uma fotografia. Não

fosse por um lento respirar, eu diria completamente imóveL Contu­

do, me parece imóvel somente na superfície visíveL Eu diria que por

dentro dele existe toda uma mobilidade - tranqüila?

Viro o corpo para o corpo nu da prostituta japonesa. Com a mão

esquerda, começo a afagar os poucos pêlos pretos macios do seu mon­te-de-vênus. Subo a mão até os seios. Primeiro acaricio, aperto, poma

total, redonda achatada como em todas as mulheres orientais. Depois,

só com a ponta dos dedos, acaricio o bico do seio, que sinto enrije­

cer. Então, beijo, sugo, somente o úmido bico, enquanto minha mão

desce, acaricia novamente a parca penugem. Meu dedo busca a gre­

ta ainda seca. Por si, sem que ela o toque, meu sexo enrijece. Não es­

tou mais beijando o seio.

Eu poderia beijar seu sexo, pequeno traço de poucos pêlos, mas

não. Deito sobre ela. Meu sexo encontra seu caminho sem que elaauxilie com a mão. Penetro-a.

Não beijo, encosto meu rosto no dela, mordisco sua orelha. Porinstantes, não sinto mais o cheiro úmido da colcha de tecido brilhan­

te, cor vermelha. O gozo me vem rápido. Mas permaneço ainda den­

tro de seu corpo. Quando retiro o meu corpo, é para deitar ao lado

dela, e meu travesseiro é o seu seio esquerdo. Ela não disse nem um

gemido, nem uma palavra. Se houve algum gemido, na hora do gozo,

foi meu, não dela. Não sei o que ela sentiu. Permaneceu, permanece

188

silenciosa e não sei para onde olha. Seu coração bate rápido e des­

compassado. Levanto a cabeça e olho para ela. Inquieto?

- Nossa, seu coração está batendo tão esquisito.

- Verdade?

- (iÁ.,c?J:

Não demonstrou. Será que ela diz a verdade? Fico só olhando. Eu

diria que ela está completamente imóvel. Imóvel somente na super­

fície visível do corpo cor de chá, pele lisa sem pêlos, suave monte­

de-vênus de parca penugem. Coração batendo forte, ela olha não sei

para onde.

Quanto tempo ficamos assim, eu não sei dizer.

Agora ela lava o sexo com mais cuidado. Dirige a mangueirinha

diretamente para a pequena fenda de pouca penugem.

Depois de vestida, pago a ela o preço combinado. Reparo que elanão conta. Mas teria mesmo gozado? Não deu nenhuma demonstra­

ção, é difícil dizer numa mulher orientaL Não conta o dinheiro, põe

as notas dobradas na bolsa. Eu é quem falo:- Vamos embora?

A luz do pequeno quarto fica acesa, a porta aberta. A prostituta

japonesa segue ria frente, conhecedora dos caminhos, corredores, es­

cadas, pátios e terraços que levam de volta à portaria do hotelzinhobarato.

189

o chinês - é um chinês? - de óculos da portaria nada respon­

de, apenas entrega uma nota amassada à prostituta japonesa. É dinhei­

ro meu, parte do que paguei pelo pequeno quarto. A comissão por ela

ter trazido um freguês para este hotel, e não para o da frente, nem

para o do lado.

Será mesmo que ela sentiu prazer? Uma prostituta? Ou disse aqui­

lo apenas para me agradar, para conquistar um freguês? Para que euvolte outras vezes?

Sou limpo, de pouca conversa, não reclamei do quarto, gozei rá­

pido. Um bom freguês. Não é comum uma prostituta sentir prazer com

um freguês. Algumas fingem, ela não deu demonstração de nada. Se

for verdade que ela gozou, quero possuí-la mais e mais vezes. Estamos

fora, na rua em frente à porta de entrada do hotelzinho barato. Eu

quero ficar mais tempo com ela:- Escuta.

- Quer tomar alguma coisa? Vamos num barzinho aqui por

perto?

Antes da resposta, sai sozinha do hotel outra prostituta. Não é

japonesa. Tem mais jeito de turca, síria, qualquer coisa assim. Meiovelhusca, formas roliças, peitos, barrigas e nádegas querendo romper

o vestido justo. Cabelos amarelos, pintados de amarelo. O freguês dela,

um velho de camisa florida, tipo havaiana, se demora na portaria dis­cutindo com o chinês de óculos. As duas se conhecem, devem ser mui­

to amigas. Riem, se tocam e falam rapidamente, risos, a voz de uma

encobrindo a da outra. Nem dá para entender o que elas conversam

e riem, na porta do hotelzinho barato. Mas interrompo:-Vamos?

- 'i>t:UD ~:,?'Lin.JJ"l =.kf(Q) Fica para outra vez ...

190

Riem muito as duas. A prostituta japonesa passa a mão no meurosto. Afaga meu rosto, como uma despedida.

Já se afastam as duas. Ainda estendo minha mão aberta.

Um gesto. Penso em alcançá-Ias. Quero segui-Ias, mas elas já to­mam um táxi que passa pela rua. Entram rindo. Essa foi a última vez

que ... O freguês da outra prostituta sai agora do hotel, afobado à catade um táxi. Sai gesticulando, nervoso, falando sozinho. Parece que­rer ir embora logo deste lugar. Entra num táxi e some de vista.

Eu fico perto da porta do hotel, parado, pensando.

Será que ela gozou mesmo?Eu voltarei outras vezes. Caminharei tantas vezes por esta mes­

ma rua, este mesmo bairro de prostituição. Quantas vezes sentirei naboca o gosto oleoso do gim que vendem por aqui. Algumas vezes fu­marei haxixe, três ou quatro vezes deitarei num catre e acenderei o

cachimbo de ópio. Uma vez comprei cocaína, não para meu uso, mas

para conseguir do traficante uma informação que, conseguida, mos­trou-se sem proveito. Muitas vezes dormi com outras prostitutas nomesmo pequeno quarto do hotelzinho barato, mas sei que nunca maisverei a prostituta japonesa, nem saberei se ela sentiu prazer comigonaquela noite escura. Às vezes, penso que sim; às vezes, penso quenão. Nunca encontrarei uma resposta que me satisfaça.

191

MIMI-NASIII-OICIII

- E você teve medo?

- Oichi, o monge sem orelhas. O jovem noviço, Oi~chi, pobrezinho, cego, ficou famoso como contadorde histórias que contava se acompanhando do biwa.

- O que é biwa?

- ...uma espécie de violão japonês, instrumento muito antigo ...como vou te explicar? ..

...contava histórias, acompanhando os versos ao som do biwa. Di~zem que à sua palavra e à sua música todos faziam silêncio e, quan~do o canto era triste, os olhos não seguravam as lágrimas. Numa noi~te de inverno, Oichi meditava no jardim do mosteiro quando escutauma voz dizer: "Ouvimos falar de seu talento como cantador de his­tórias ... ".

"Hai."

"...Meus nobres amos sabem de sua fama e ficariam muito hon­

rados se o senhor fosse contar para eles a triste história da batalha deDan-No-Ura, esta noite."

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Nesta noite ninguém podedormir:

Lua cheia.

- Oichi não pôde recusar o convite. Tomou seu biwa e seguiu os

passos daquela voz desconhecida.- Ele era cego de nascença?- Sim. Na noite escura não sabia para onde estava sendo levado.

- Eu li uma vez que os cegos não enxergam tudo preto.

Minha mão, uma nuvem

pousada no teu seio, redondocomo a Lua.

- O que eles enxergam é uma mancha esbranquiçada. Como na

televisão. Já reparou que o preto da televisão nunca é preto, é nuvembranca? Branco-cinza?

- Oichi ia seguindo os passos. Passos pesados metálicos, comoos de um samurai vestindo sua armadura de guerra. Depois de muito

caminhar, bem longe estavam do mosteiro. Quando chegaram, Oi­

chi imaginou que devia ser um lugar bem grande.- Um palácio?- Tudo fazia crer um rico palácio, porque caminharam por vá-

rias salas enormes. Apesar do silêncio reinante, Oichi sentia que mui­ta gente estava ali. Ouvia o assobio das sedas dos quimonos. Coloca­do no centro do salão, começou a evocar com seu canto os tristesversos da batalha de Dan-No-Ura.

- Que batalha é essa?- Das guerras do Japão medieval. Foi no século XII: no Ociden-

te aconteciam as cruzadas; no Japão havia entre os senhores feudais

muitas lutas pelo poder. Época de guerra civil (conduz teu cavalo so­

bre o fio duma espada, oculta-te como puderes no meio das chamas). As

famílias rivais, Taira e Minamoto, disputavam o poder. A luta entreos dois clãs durou quase duzentos anos, banhos de sangue, batalhas

196

incontáveis. Às vezes os Taira dominavam, outras vezes os Minamo~to venciam.

Exército dos Taira

estandartes vermelhos como sangue.Exército dos Minamoto

estandartes brancos como aço.

- E como foi a batalha?

- No estreito de Dan~No~Ura, a maior batalha naval que o Ja~pão assistiu, mais de mil navios em luta.

- Quem venceu, quem perdeu?- Os Taira tinham o maior número de navios, mas um senhor

feudal, Shigeyoshi, seu aliado, bandeou~se para o lado dos Minamo~to, levando seus barcos para o inimigo.

O coração vermelho de Shigeyoshi

hesitava em se passar para os

Minamo to, muitas obrigaçõesele devia aos Taira.

A batalha seguia feroz. O fogo, a fumaça dos canhões, o assobiometálico das espadas nos combates das abordagens. Os Taira aindamantinham a esperança de vitória. Nuvens, a princípio - quandoviram o branco flutuando nos céus, pensaram em nuvens. Quando per~ceberam que o branco estandarte do inimigo tremulava nos mastros

de seus próprios navios, veio a certeza da derrota.- Acende o meu cigarro.- O choro, o canto fúnebre tomou conta dos navios dos Taira.

Pela vergonha da derrota, para não cair nas mãos do inimigo, seus

guerreiros se atiram nas águas, afundando com o peso das armaduras.Os comandantes se amarram nas âncoras de seus barcos e soltam as

correntes. Os que não têm coragem de cometer suicídio são mortos

pelos companheiros de armas. Os tombadilhos das embarcações tor~

197

nam-se rubros de sangue. Os marinheiros, os servos, os cortesãos, to­

dos em lágrimas, buscam a morte. Sem ter quem as governe, as velasdos navios explodem ao vento.

- Não sobrou ninguém?

Teu corpo nu

Agora flutua no lençol

transparente como águaSal.

- Nem mesmo o menino imperador, Antoku-Tennô, de seteanos. A avó tomou-o nos braços e com ele se encaminhou para a amu­rada ...

- Como teu corpo é bom.

Aonde me levas, vovó?

Pequeno Antoku- Tennô,

O Japão é pequeno como um

grão de arroz e agora é umimenso vale de miséria

Mais abaixo das ondas há outro

país onde não existe a tristeza

É para lá que te levo.

- ...Com o menino nos braços, a avó se atira no mar tinto de

sangue e salgado de lágrimas.- Teu corpo é água onde me sustento.- Quando Oichi termina de contar os últimos versos, só escuta

o silêncio de lágrimas pressentidas. Depois de muito silêncio, a vozde uma velha aia: "De tua fama sabíamos, Oichi, da beleza de teu can­

to sequer podíamos suspeitar. Em todo o Japão não existe artista tãoperfeito. Meu amo pede que, durante o tempo em que ele permane­

cer aqui, por mais seis noites, venhas repetir o canto da batalha deDan-No-Ura. O mesmo samurai que te trouxe aqui esta noite irá te

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pegar. Mas meu amo viaja em segredo e ordena que não contes nadaa ninguém. Nunca ... E, agora, és livre para partir". Quando Oichi vol­tou ao templo, pela manhã, encontrou os monges aflitos com sua au­sência. O abade o interrogou, mas ele respondeu com reticências enada revelou sobre onde estivera. Exausto, dormiu o dia inteiro, es­

quecido de suas obrigações.

Sobre o sino do templo

repousa e dormea borboleta noturna.

Na noite seguinte, sem que ninguém veja, o mesmo samurai vembuscar Oichi, e novamente ele canta a batalha de Dan-No-Ura para

a silenciosa platéia. O abade, notando que Oichi não está em sua cela,manda que os monges o procurem. Uma longa noite de buscas. Já pela

madrugada, voltando para o templo, os monges escutam os acordesdo biwa e a voz de Oichi.

Primeira neve.

Bastante para vergar as folhas

dos junquilhos .

Aterrorizados, os monges vêem Oichi, sem sentir a neve que co­meçava a cair, sentado diante da tumba em memória do pequeno im­perador Antoku-Tennô, no cemitério de Amidaji, cantar exaltado ahistória da derrota dos Taira. Por sobre as outras tumbas, as chamas

espectrais dos fogos-fátuos, como espectadoras do canto triste. No ce­mitério de Amidaji estão sepultados os derrotados da batalha de Dan­No-Ura. Envolvido em seu cantar, Oichi não parece sentir a neve,nem ouvir os gritos dos monges, que têm de arrancá-Io do lugar ondeestá. Oichi reclama: Como ousam interromper meu canto para tãonobres senhores?!".

Arrastado de volta ao templo, Oichi é levado à presença do aba­de, que lhe revela a verdade: "Oichi, pobre Oichi, corres grande peri-

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go. Aproveitando~se de tua cegueira, os fantasmas dos mortos na ba~talha de Dan~No~Ura lançaram encantamentos sobre ti. Te enfeitiça~ram. Por duas noites, levaste teu canto para os mortos e eles agora sãodonos de ti. Ao final da sétima noite, eles te matarão, despedaçarão

teu corpo e tu passarás a penar por toda a eternidade, como um fan~tasma, escravo dos demônios".

Dos olhos cegos de Oichi correm lágrimas de medo. O abade pros~segue: "Precisamos quebrar o encantamento. Esta noite, não pode~mos ficar no templo para te vigiar, temos de atender um serviço re~ligioso na aldeia. Mas, antes de ir, protegerei teu corpo com os textosde Buda, que te farão invisível aos demônios". Os monges tiram a rou­pa de Oichi e, no corpo nu, o abade escreve com pincel os sagradostextos do Prajna- Paramita.

Tudo é mutável,

tudo aparece e desaparece;

só poderá haver

a bem~aventurada paz

quando se puder escapar

da agonia da vida e da morte.

Todo o corpo de Oichi foi coberto com as palavras de Buda, queo tornariam invisível aos demônios. Os monges partiram. Sentindo~

se protegido, Oichi sentou~se no pórtico do templo, o biwa ao seu lado,e esperou meditando sobre a vida e a morte.

Esta estrada

sem ninguém nela.Escuridão de outono.

Passos pesados, da escuridão da noite surge a voz profunda, me­tálica, chamando: "Oichi! Oichi!". Não obtém resposta: "Oichi! Oi~chi!". A voz, agora, é de ira, de ódio: "Oichi! Oichi!". A mudez de

Oichi como resposta, o samurai-fantasma não encontra o que veio

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buscar: "Vejo um biwa abandonado e não encontro o trovador. Mui­tas vezes chamei Oichi e ele não me respondeu, não está aqui, con­forme o combinado. Vejo somente suas orelhas e vou levá-Ias para

provar ao meu amo que aqui estive cumprindo minha missão".As mãos enluvadas de ferro do fantasma agarram as orelhas de

Oichi e puxam ferozmente. O sangue escorre. Oichi reza para não gri­tar de dor e revelar sua presença. Suas orelhas são arrancadas e o sa­murai-fantasma sai carregando-as, seus passos perdendo-se na noite

em direção ao cemitério de Amidaji.

Ao cobrir o corpo de Oichi com os textos sagrados, o abade es­

queceu das orelhas, foi só o que o fantasma viu e carregou para o mun­do dos mortos: duas orelhas. Quando os monges voltaram, encontramOichi se esvaindo em sangue, mas vivo. Foi medicado e se salvou, fi­

cou livre para sempre dos demônios. Tornou-se monge e viveu ain-

201

da muitos anos para poder cantar em versos sua desventura. Desdeaquela noite, o cantador cego ficou conhecido como Mimi~Nashi~Oi~chi, Oichi, o Sem Orelhas.

- E você teve medo?

- Não, medo não. Eu era muito pequena quando minha avó con~tou a história de Mimi~Nashi~Oichi, naquela noite chuvosa. Medoeu não tive, mas me deu uma tristeza grande.

Ah, o passado.

O tempo onde se acumularamos dias lentos

- Medo não tive, tristeza. Tristeza grande, era uma noite tão fria,que acho que até chorei, lágrimas.

Orvalho deste mundoorvalho deste mundo.

Sim, sem dúvida,e no entanto ...

202

13 mistéri<.)s

+() mistéri<.)

da p<.)rtaaberta

para quem foi Marlene

e para Josely Vianna Baptistae Cláudio Lacerda

Uma mentira minha vale por dez verdades tuas.

Dito por um criminoso no programa do Algaci Túlio

SUMÁRIO

o mistério da porta aberta. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 211

Mistério números 219

Mercúrio mistério. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 227

Os fantasmas do fundo de quintal- Um mistério ..... 233

O mistério teu, Sônia 241

O mistério da Sonâmbula 247

Mistério do menino morto 253

O mistério do gato preto e da gata gorda . . . . . . . . . . . .. 259

O misterioso homem-macaco - Como tudo começou .. 265

Mistério mágico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 273

A cadeira do diabo - Um mistério 281

Um mistério no trem-fantasma 293

Mistério Sapho - O amor entre as mulheres 305

O mistério dos sinais da passagem DELE pela cidade

de Curitiba 317

() mistério

da portaaberta

...na verdade entreaberta. Mas muito ou pouco aberta uma porta, fe­chada ela não está. Portanto, está aberta. Sendo assim, uma porta en­treaberta sempre será uma porta aberta.

Observe pelo tempo que julgar necessário a porta mostrada abaixo:

Pode-se argumentar que uma porta aberta não apresenta misté­rio algum, nenhuma visão de perigo que nos possa causar medo, oumesmo pânico. Através de uma porta aberta, por menor que seja aabertura, sempre conseguiremos ver o interior para o qual ela se abre.Se ali percebermos qualquer coisa estranha, simplesmente não entra­remos.

Até certo ponto essa argumentação é válida, porém sem muita con­sistência. Uma porta pode estar aberta para um recinto às escuras.Nada podemos ver em seu interior. O que nos espera lá dentro? Sen­tiremos medo, pois a escuridão sempre nos sugere um mistério queprecisa ser aclarado, antes de criarmos a necessária coragem para en­trar. Às vezes um mistério exasperadamente simples como a localiza­ção dos móveis. No escuro desconhecido nunca sabemos onde se en­contram as cadeiras, as poltronas, as mesinhas de centro e podemostropeçar nelas, nos machucando. Nem mesmo num recinto bastanteconhecido ousamos penetrar sem antes apertar o comutador da luz.

Outra hipótese: a porta se abre para um ambiente iluminado. Vi-

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sível uma ampla sala muito bem mobiliada. Sofás, poltronas, apara­dor, mesa de centro, uma pequena lareira de mármore, grandes vasoscom plantas, tapetes pelo chão brilhante; nas paredes, em grandes mol­duras douradas, quadros representando paisagens, e nos janelões, cor­tinas de veludo. Bem ao fundo, junto à lareira, apoiado em suas patasdianteiras se posta um enorme cão, um buldogue, animal conhecidopor sua ferocidade - em inglês bull-dogsignifica cão-touro. Como elenos receberá quando entrarmos na sala? Avançará sobre nós e sere­mos estraçalhados por suas presas afiadas, sem tempo de fugir? Temosmedo. Porém, talvez não seja um cão de carne, sangue e ossos. Talvezseja uma dessas estátuas de porcelana habilmente pintadas, reprodu­zindo com fidelidade a imagem do animal. A riqueza do mobiliário,a imobilidade pétrea do cão, tudo nos leva a crer que se trata de umexpensivo objeto decorativo. E se for mesmo um cão feroz, imóvel, vi­gilante, pronto para atacar o primeiro estranho que ouse penetrar nasala? É um mistério que precisaremos resolver se quisermos entrar semriscos na sala aconchegada.

Eu estou sentado numa cadeira contemplando a porta aberta (en­treaberta) para a escuridão. Vejo claramente as três velas. Uma na partede baixo da porta, com sua chama derivando para a esquerda. Outrano meio, mais ou menos na altura da maçaneta, com a chama quei­mando normal para o alto. Na parte de cima, perto da moldura, a ter­ceira vela, com a chama levemente inclinada para a direita - aden­trando, sem contudo aclarar a escuridão do local desconhecido paraonde a porta se entreabre.

Atrás de mim outra porta que dá para a rua. Esta, sim, fechada. Meassusto com barulhos fortes e continuados na porta da rua às minhascostas. Barulhos, assim como se alguém estivesse forçando a porta parainvadir a casa, com sabe-se lá qual intenção. Como é noite e estou sozi­nho nesta casa, é possível que seja alguém querendo me assaltar, e atémesmo tirar minha vida. Não tenho inimigos. Não tenho inimigos?Nestes tempos de agora nunca se sabe do que as pessoas são capazes. Obarulho ritmado da folha da porta da rua chocando-se violentamentecontra o caixilho me assusta, e me faz medo. Barulho cadenciado comoo soar de tambores.

A porta da rua fica exatamente defronte da porta das três velas.Entre as duas, uma distância de quatro a cinco metros. Estou senta­do a meio caminho e, neste ponto do vestíbulo da casa, sinto uma fortecorrente de ar circulando entre as duas portas. Por certo, a força desse

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vento é que faz a porta da rua sacudir violentamente, dando a impres­são de alguém tentando arrombá-Ia. Quando me apercebo disso, tenhouma explicação racional - científica, até - para os estranhos baru­lhos. Desfaz-se este mistério e perco o medo dos golpes. Apesar de serdifícil alguém se mostrar calmo com esse soar de atabaques, perco omedo.

Mas e a porta das três velas? A descoberta de uma forte correntede ar, vinda da porta entreaberta, aumenta para mim seu mistério. Seo sopro gelado oriundo da escuridão passa por mim para se chocarviolento contra a porta da rua, logicamente as chamas das três velasdeveriam estar todas voltadas em minha direção ou, então, apagadaspela força do vento. Porém não é isso o que acontece.

Observe novamente as três chamas: uma se volta para a esquer­da, outra para o alto, outra para a direita.

Não comprendo. E tenho medo daquilo que não posso compre­ender.

Desde tempos imemoriais, a colocação de portas obedece a umprincípio imutável: as portas sempre se abrem para o lado de dentro! A portade uma casa sempre se abre para seu interior, nunca para a rua. A deum quarto nunca se abre para o corredor, mas sempre para dentro.É como se, aberta uma porta, ela estivesse indicando a alguém inde­ciso qual o rumo a tomar. Ou estivesse dando a ordem: entre!

A exceção a essa regra universalmente estabelecida se encontrano cinema, no teatro e na televisão, artes da representação. Para es­conder o fundo, evitando a construção de novos cenários, ou para fa­cilitar o deslocamento dos atores e das câmeras, muitas vezes as por­tas dos cenários se abrem para fora. Isso somente no mundo dafantasia, na vida imaginária. A vida real, contudo, segue a regra esta­belecida: as portas se abrem sempre para o lado de dentro, num con­vite para entrarmos.

Tenho medo de atravessar a porta das três velas e penetrar na es­curidão.

O forte sopro de ar vindo da porta das três velas me provoca ca­lafrios. Não é normal. Como também não é normal as três chamas to­

marem direções diferentes. Todas deveriam estar queimando para oalto. Quando não há vento, a chama de uma vela queima para cima,sempre. E não poderia haver correntes de ar neste vestíbulo, a portada rua está fechada à chave; as vidraças dajanela estão fechadas, e tam­bém as venezianas do lado de fora, e as cortinas no interior.

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Quando se planeja a construção de uma casa, evita-se que janelase portas se localizem em pontos que possam formar correntes de ar,o que afugentaria possíveis inquilinos; isso não é segredo para nin­guém. O mistério é como três correntes de ar vindas do mesmo lugar- a escuridão atrás da porta entreaberta - podem tomar três dire­ções distintas.

Talvez esse mistério das três chamas possa ser explicado por algu­ma lei física que eu e você desconhecemos. Algo relacionado com apressão atmosférica, ou com os gases gerados pela combustão das velas.Não sei. Não estamos, nem eu nem você, familiarizados com os mis­térios da física.

A própria posição das velas flutuando no ar já é um mistério emsi. A vela de baixo parece ser a única assentada. Porém uma observa­ção mais atenta nos mostra que ela se eleva uns dois ou três dedosacima do chão. O que sustém as três velas no ar? Certamente, nenhu­ma lei física explica isso. Como estão todas quase encostadas na folhadireita da porta, podemos até pensar em algum truque. Imagino queum estilete de ferro ou arame grosso fixado no centro da vela funcio­naria como haste. Escondida atrás da folha direita da porta, uma pes­soa de mão firme sustentaria a haste dando-nos a ilusão de que a velase mantém flutuando no ar. Nem precisaria ter alguém segurando: umprego afixado na sambladura da porta serviria como haste. É lógicoque prego, arame ou estilete deveriam estar camuflados com tinta foscapreta, para não se tornarem visíveis e se confundirem com a escuridão.

É de se notar que em circos, teatros ou em qualquer casa de es­petáculos, os números de mágica são apresentados sempre com umacortina preta ou de cor escura ao fundo. Isso muito ajuda a dissimu­lar a aparelhagem e os fios utilizados nos truques.

Um truque mágico pressupõe a existência de alguém capaz de ima­giná-Io e executá-Io. Caso haja algum truque com as três velas, duas per­guntas surgem. Quem? Por quê? Para respondermos a primeira, preci­saríamos ter a resposta da segunda: por quê? Me assustar? Fazer algumabrama comigo? Induzir-me a participar involuntariamente de algumacerimônia mágica? Etc. etc. etc.? E para respondermos a segunda per­gunta, seria preciso ter a resposta da primeira. Algum amigo faria essaburla de mau gosto comigo? Para me assustar, um inimigo certamentearquitetaria algo semelhante - um susto é capaz de matar quem sofrado coração. Sem dúvida nenhuma, um estranho ligado a alguma seitaou religião aleivosa teria a ousadia de me enredar num maligno ritual

216

à luz de velas. Em sua mente doentia, um louco encontraria razões su­ficientes para invadir minha casa e armar este estranho altar.

Seja o que for, me parece que o propósito maior é impedir ou re­tardar a minha passagem pela porta aberta (entreaberta). Assim, nemeu nem ninguém ousaria entrar. E se eu ousar? Conseguirei passar comvida pela porta das três velas? E o que encontrarei na escuridão lá den­tro? Preciso de respostas para essas perguntas.

Outra coisa me inquieta. Já estou aqui há algum tempo e o tama­nho das velas mantém-se o mesmo. As chamas não consomem as velas.Talvez haja uma explicação bem simples para isso: são velas artificiais.

Tubos metálicos sem pavio, pintados de branco, contendo o gás quealimenta as chamas. Velas artificiais, como se usam agora nos velórios.Mas e se não forem?

Não sinto cheiro de gás. Por vezes, parece-me sentir um cheiroagridoce, como de ervas se queimando. Incenso, talvez, e o cheiroquente, enjoativo, persistente, de velas se queimando. As três velas sãoo bastante para provocar este odor característico de câmara mortuá­ria. Como explicar, porém, o pegajoso cheiro de ervas queimando?Durante o tempo que estou aqui não acendi nenhum cigarro. Desne­cessário olhar à minha volta para ver que a única coisa em combus­tão, nesta parte da casa, são as três velas.

Talvez da escuridão atrás da porta entreaberta se origine esse chei­ro nauseante. Sei, e você sabe, que em algumas cerimônias religiosasprimitivas costumam queimar incenso e estranhas ervas. A fumaça em­briagante e fétida assim expelida força o transe místico dos celebran­

tes e apressa sua comunicação com os espíritos. Mas quem e com qualintenção poderia estar oficiando um ritual mágico na escuridão portrás da porta entreaberta?

E eu? Como posso exorcizar o desconhecido?

O vento parou de repente. Não posso afirmar quando, assim comonão sei dizer quando começou. Velas queimando ajudam a medir otempo pelo seu lento mas inexorável desgaste. Porém as três velas ace­sas à minha frente mantêm-se intactas. É como se o tempo não passasse.

O vento parou de repente, mas isso não interfere na posição daschamas, que continuam queimando em diferentes direções. Sinto seucalor tomando conta desta peça da casa. Sinto-o em torno de mim, meabraçando entre meu corpo e minhas roupas. Pegajoso como o ca­lor abafado que sentimos em ambientes fechados com velas acesas,calor de decomposição.

217

Contudo, não estou num velório. Tampouco me encontro numtemplo de cultos primitivos. Esta é minha casa, na qual eu quis entrare entrei. Que sempre encontro ajuizada, sem mistérios. Cuja chavetrago sempre no bolso. Abri a porta da rua sabendo o que ia encon­trar, a casa que me acolhe sempre. A mesma disposição das peças, osmesmos móveis, os mesmos ambientes familiares dos quais faço parte.De dia, de noite, à hora que eu chegasse e abrisse a porta da rua estacasa me acolhia. Sem novidades, sempre a mesma, à minha espera. Ina­nimada, tomando vida somente com a minha chegada.

Não foi o que aconteceu hoje. Ao abrir a porta e adentrar nestevestíbulo, a casa me recebeu como a um estranho. Quando me depa­rei com a porta entreaberta das três velas, cheguei a dar três passospara trás, de volta à rua. E olhei bem para confirmar se eu estava namesma rua, na mesma casa.

Somente eu carrego a chave da casa. Ninguém, ninguém poderiater entrado e armado esse altar, truque, broma ou seja lá o for esta in­vasão das três velas ardentes. No entanto aí está, dentro da minha casa,esse mistério. E eu tenho de resolvê-Io.

Você não pode me ajudar. Pode?Memória da infância. Se eu me levantar desta cadeira, posso jazer como

jazia quando menino: umedecer com a língua a ponta do polegar e do indi­cador e, com eles, apertar as chamas, apagando-as. Ou, sem dar atenção àsvelas, posso penetrar na escuridão e buscar o comutador da luz, do lado direi­to - gesto tantas vezes repetido.

Com um pontapé posso abrir a porta entreaberta, arrombando-a,derrubando pelo chão as velas e tudo o mais que tiver. Posso, então,acender o isqueiro que trago no bolso e aclarar a escuridão. Muitas coi­sas posso fazer para resolver este mistério idiota. Posso e devo. Esta é aminha casa. Não é uma casa de loucos, barraca de feira, tenda de cultoou coisa que o valha. Nem sou eu um alienado espectador, basbaquedeslumbrado, aleijado. Sou o que sou. Eu sou eu.

Posso, devo e vou fazer alguma coisa. Tenho.Para isso, preciso me levantar desta cadeira imóvel. Para isso, devo

largar a caneta e o papel. Devo deixar de me comunicar com você que,já vi, em nada pode me ajudar. Sozinho tenho que aclarar este misté­rio. Depois, sim, posso retomar a caneta e o papel, e descrever paravocê aquilo que aconteceu, quando eu me levantar desta cadeira e meencaminhar em direção da porta entreaberta das três velas. Depois.

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Mistério~

numeros

1 é o estábulo santo deJerusalém onde Jesus Cristo nasceu2 são as duas tábuas em que Moisés recebeu a lei que nos governa3 são os três cravos que cravaram Jesus Cristo na cruz4 são os quatro evangelhos: São João, São Mateus, São Marcos e São

Lucas

5 são as cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo6 são os primeiros selos que o Cordeiro abriu no Apocalipse7 são as sete cartas que, no Apocalipse, São João escreveu às sete igre­

jas da Ásia8 são as oito primeiras epístolas de São João Apóstolo9 são os nove coros de anjos que para o céu subiram

10 são os dez mandamentos da Lei de Deus

11 são as onze mil virgens que desfrutam a companhia de Nosso SenhorJesus Cristo

12 eu não contei direito mas me parece que eram umas doze pes­soas que se postavam diante do altar de Nossa Senhora das Dores, quefica do lado direito, logo que se entra na igreja.

Seriam dez ou doze pessoas diante do altar. Umas são mulheres,outras são homens e três ou quatro são crianças. Nem todas estãoolhando para a imagem que encima o altar, em tamanho natural, deNossa Senhora das Dores. Umas olham para cima, outras para baixo,algumas olham para o lado. Umas trazem os olhos abertos, algumasentreabertos, outras mantêm os olhos fechados. Umas entoam cantosalegres, outras rezam tristes e algumas gemem e soluçam.

Lá no alto, em cima do altar, uma mulher está abraçada à imagemem tamanho natural de Nossa Senhora das Dores. É uma mulher nem

muito moça, nem muito velha. Como as outras mulheres do camponesta região do Paraná, traja um vestido comprido de tecido grossei­ro acinzentado, com gola, abotoado. Usa grossas meias longas de lãcinza, e calça rústicas botinas de couro cru para homens. Na cabeçatem como touca um pano branco que esconde a cor de seus cabelos.

Agarrada firme na imagem de Nossa Senhora das Dores, a mulher.Corpo colado com o da santa, abraça-a para não cair, pernas trança­das na parte inferior da imagem. Sem soltar as mãos, agarra-se firmenão só para não cair, como também para demonstrar toda a sua fé,respeito e procura de intimidade com Nossa Senhora das Dores.

Beija repetidas vezes a face da imagem. Reza a santa reza:Abraçada estou em vós, Maria Santíssima, Virgem Mãe de Nosso Senhor

Jesus Cristo.Amparada estou em vós, Nossa Senhora das Dores, que tivestes o vosso

221

puro coração transpassado sete vezes por sete espadas. Sete dores mortificaramvosso corpo virgem e santo.

Sete vezes vos peço, Nossa Senhora das Dores, guardai-me das investidasde Satanás. Guardai-me de seus agentes, visíveis ou invisíveis, que, em qual­quer lugar, em qualquer hora do dia ou da noite, possam atentar em causar­me mal, em minha pessoa, em meus parentes ou em meus bens. Em aflição vospeço: Vigiai minha casa, protegei-me, a mim e à minha família. Imploro vossaproteção contra quaisquer maleJícios, bruxedos, invocações, nigromancias, bru­xos ou bruxas e adivinhos, homens e mulheres que sejam.

Em meu socorro vinde, ó minha protetoraEu da cena me desinteressei e

Em meu auxílio vinde, ó Rainha dos Anjosvou caminhando em direção ao altar centralEm minha defesa acorrei, ó Esposa de Deusdesta igreja bastante grande e suntuosa demais para uma cidade­

zinha do interior como esta.

Há bastante gente nos bancos, uns sentados, outros ajoelhados ealguns em pé. Atravesso por uma fileira vazia e chego ao corredor cen­tral. Apesar de não ser dessas coisas, em sinal de respeito faço o sinal­da-cruz e vou me encaminhando para o altar-mar. Nem precisava terfeito o sinal-da-cruz, pois ninguém aqui parece se interessar pelo quesou e pelo que faço.

Perto dos primeiros bancos, no espaço em frente do altar-mar, seeleva um caixão de defunto apoiado sobre um estrado de madeira quenão se vê, encoberto que está por panos roxos. É caixão de certo luxo,madeira escura envernizada, aparadores de brilhante metal prateado.A tampa de madeira entalhada está apoiada num dos cantos do cada­falso, que fica ladeado por quatro candelabros de prata e tem na ca­beceira um grande crucifixo também de prata.

Me aproximo curioso para olhar o morto, que, pelo aparato aoseu redor, parece ter sido pessoa rica e influente. Em torno do esqui­fe, algumas pessoas, circunspectas, pranteiam o falecido. Chego maisperto e ergo a cabeça para ver melhor. Pela roupa o defunto era algumtipo de militar, veste o que parece ser uma espécie de uniforme, nãodá para perceber direito, tal a quantidade de flores que cobrem seucorpo, em meio a panos roxos e tecidos rendados nas paredes inter­nas do caixão. Olhando bem, não me parece ser uma pessoa que estáali sendo velada, parece um boneco. Cabeça branca e redonda de panobranco, sem orelhas nem marcas de olhos e nariz. Apenas uma peru-

222

ca encanecida dá alguma aparência humana a essa cabeça. Saindo dasmangas do uniforme, duas luvas brancas pousadas no ventre do de­funto. Duas luvas brancas, dedos entrecruzados, trespassados por umrosário de contas pretas. Pode-se presumir que não seriam mãos queenchem as luvas, pois uns dedos são mais grossos que os outros, e ca­lombos irregulares nas mãos revelam um mal executado enchimentocom algodão, serragem ou outro material qualquer.

É de muito respeito a atitude das pessoas que, em pé, velam emtorno do caixão. Algumas rezam parecendo puxar um terço em vozbaixa. Desde que entrei nesta igreja, ninguém parece ter tomado co­nhecimento de minha pessoa. Vagarosamente, caminhando com muitadificuldade, amparado por dois homens que suponho serem seus fi­lhos, um velho de cor cinza se aproxima do caixão. Depois de algunsinstantes parado, como que para recuperar o fôlego, o velho põe asmãos sobre as daquele que está no caixão e com voz rouquenha, doen­tia, quase inaudível, inicia uma oração:

Já que estás partindo para outro mundo, mundo das sombras, sem retor­no, já que estás indo embora para sempre, leva contigo esta minha doença,este meu câncer que por dentro me corroe. Leva contigo para que eu delefiquelivre e nunca mais volte a sofrer com ele ou com outra doença parecida.

O esforço para dizer essas poucas palavras foi muito para o velho,e seus filhos têm de arrastá-lo para que ele se deixe cair no banco maispróximo e ali repouse ofegante.

Começo a achar tudo isso meio sem sentido e até engraçado, essevelho doente pedir a um defunto, que nem sei se é mesmo um defun­to, para que leve aos céus ou infernos seu câncer, doença que me pa­rece vai matá-lo logo logo. Tenho vontade de rir.

- Vivente ... mais respeito ...Uma espada aponta em minha direção.- Está zombando de coisa séria!

Ameaçador, um anjo aponta sua espada dourada contra mim.- Este é um lugar sagrado!É uma menina de cabelo comprido e loiro, túnica longa e bran­

ca que deixa à mostra apenas seus pequenos pés descalços. Tem nascostas duas asas de papelão com penas brancas coladas. A espada queaponta para mim também deve ser de papelão recoberto com papellaminado dourado.

- Não se deve zombar daquilo que acontece em solo sagrado!Muito loira de olhos bem azuis, a menina-anjo. Batom vermelho

223

carregado nos lábios finos. No rosto, gotas de purpurina vermelha querebrilham à luz bruxuleante das velas. As sobrancelhas e os cílios for­

temente marcados de preto e sombra verde em torno dos olhos azuiscor do céu. A túnica é de diáfano tecido acetinado e quase antevejo,na pequena elevação, os róseos biquinhos de seus peitinhos. Como asdos seus pés, as unhas da mão que empunham a espada estão pinta­das de vermelho vivo.

Há dias que estou de viagem pelo interior, longe de casa desdeontem nesta cidade. Não sou casado e mesmo na capital, onde moro,não tenho companheira fixa. Há dias que estou sem mulher. Talvezseja por isso, talvez pelo calor aqui dentro, não sei explicar bem porque mas a visão da menina-anjo me excita. Sinto desejos por ela, a es­pada toma então outro rumo. Deixa de apontar para mim, conduzi­da pela mão do anjo movimenta-se lentamente em direção à sacris­tia. Pela porta da sacristia surge um padre e se encaminha para ondeestou.

É um padre jovem, todo paramentado de veste litúrgica branca edourada, como se fosse rezar uma missa imponente. Compenetrado,dirige-se a mim sem cuidados:

-Aqui são todos bem-vindos ... As portas da Casa de Deus têm deestar sempre abertas a todos ...

A menina-anjo se desfaz de sua expressão séria e sorri.- ...mas existem coisas que não gostamos. Que ofendem ao Se-

nhor Nosso Deus ...

Sei onde ele quer chegar e poupo suas palavras:- Eu estava mesmo de saída.- Em outra ocasião o senhor será bem-vindo aqui.- Com sua licença, padre.E me afasto caminhando pelo tapete vermelho do corredor cen-

tral em direção à porta de entrada.Silêncio SilêncioOlhai o Sacrário

O canto do coro da igreja vem lá do alto.Silêncio SilêncioOlhai o Sacrário

A menina-anjo me segue, talvez para ver se estou mesmo indo em­bora.

Silêncio SilêncioOlhai o Sacrário

224

A mulher continua pendurada na imagem de Nossa Senhora dasDores.

Silêncio SilêncioOlhai o Sacrário

É a menina-anjo quem fecha as pesadas portas de madeira escu­ra às minhas costas.

- Uma esmolinha pelo amor de Deus!Apesar da noite escura cobrindo a praça deserta, um mendigo es­

tende o chapéu para mim na escadaria da igreja. Procuro no bolso umamoeda ou nota de menor valor para dar de esmola. Acabo encontran­do a nota fiscal de uma com pra que fiz na farmácia - Novalgina parauma dor de cabeça que eu estava - e jogo no chapéu do mendigo:além de aleijado das pernas, ele é cego.

- Deus lhe pague. ,Com poucos passos chego na pensão onde me hospedo. E a única

da cidade, modesta construção térrea de madeira. Procuro pelo dono,que não está na portaria. Onde andará? Se quiser, posso apanhar achave do meu quarto pendurada no quadro. Número nove, todas asdoze chaves dos doze quartos estão no quadro. Sou o único hóspede.Posso pegar minha chave, não preciso esperar o dono da pensão. Nemmesmo preciso pedir que ele me acorde um pouco antes das seis, quan­do o único posto da cidade estará aberto e terei gasolina para seguirviagem. Não vai ser preciso, a sujeira, os mosquitos, o calor e o abafa­mento do quarto não me deixarão dormir direito e estarei acordadobem antes das seis. Não preciso esperar o dono, não mesmo, precisotalvez é ter alguém com quem conversar.

Ele surge da porta que dá para a área interna, vem ajeitando ascalças. Com toda a certeza estava na privada, na casinha de madeirano pátio interno, no migué, como se costuma dizer. É um velho gordosem dentes, arrasta uma perna. Vem sorrindo - está sempre sorrin­do - como se fosse muito engraçado aliviar-se no meio da noite naprivada escura e suja no meio do negro pátio.

- Posso pegar minha chave? E dá para o senhor me acordar ama­nhã às cinco e meia?

O velho responde como se estivesse zombando de mim, parece nãolevar muito a sério o que diz:

- A essa hora ainda não temos café feito. A mocinha só chegadepois das seis.

- Tem importância não, tomo na estrada.

225

Estou com a chave do quarto na mão, mas nem penso em arre­dar o pé dali. Ainda com jeito de zombaria, o velho me pergunta:

- Esteve passeando pela nossa bela cidade?Diz isso como quem diz: Então andou vendo que bela porcaria que é

este buraco?

- É, estive dando uma volta. Vi a igreja grande que vocês têm aqui,muito bonita.

- Acho uma feiúra, desperdício de dinheiro numa construção da­quelas: só para entronchar o cu dos padres.

E ri sem dentes, satisfeito com a grossura que disse, e segue falando:- Porcaria duma igreja numa cidade que nem hospital tem, se

alguém fica doente tem que andar trinta quilômetros até achar ummédico.

- É, sei lá, entrei porque não tinha outro lugar para ir.O velho perde o ar de gozação, não está mais achando graça:- O senhor entrou na igreja?-É.Fica me olhando sério por algum tempo:- Então o senhor entrou na nossa igreja?! Quer saber duma coisa?Me olha fixo:- Deus ... Deus, nós sabemos, é uno e indivisível. Mas também é

onipresente. Está em toda parte, em todos os lugares ao mesmo tempo,quieto sem dizer nada. Até mesmo aqui e agora nesta nossa conver­sa, ele está aqui nos escutando. Mas ... e o Diabo? Onde fica o tempotodo? Onde encontrar o Diabo?

Demoro bastante para responder:- É, não sei não. E o senhor sabe?- Também não, acho que ninguém sabe.

226

Mercúrio. ".mlsterlo

Em setembro de 1879, irmã Eglantine, do Pensionnat des Religieu­ses du Sacré-Coeur de jésus, em Bois L'Evêque, Liege, Bélgica, rece­beu o livro Pierre et Metaux, um moderno tratado escrito pelo profes­sor Arthur Mangin, químico renomado.

No livro, irmã Eglantine reencontrou conceitos que não só conhe­cia, como já transmitira às suas alunas durante o transcorrer de lon­gos anos de educadora Saudações, ó Rei dos Metais, objeto de culto servilde uns e do desprezo suspeito de outros. Ouro, o metal o mais brilhante, o maispesado e o mais imutável entre todos os metais. O ouro não é A RIQUEZA,mas, incontestavelmente, é UMA RIQUEZA. E não se pode transferir a qual­quer outro metal o honorável papel de representar, de medir e de simbolizar oVALOR irmã Eglantine bem compreendeu que o autor aqui se refe­ria somente ao valor econômico e não aos valores morais. Paciente­

mente, passou por cima de informações bastante óbvias para ela, emesmo para suas alunas Ordinariamente, o ouro é um metal opaco e ama­relo porém não pôde deixar de se admirar quando leu o que muita gentenão sabe é que reduzido a lâminas extremamente delgadas o ouro torna-se trans­parente, verde por propagação e vermelho por reflexão sentiu vontade de ternas mãos uma fina folha de ouro para ver se realmente ela tomaria acor verde, ali no jardim do pensionato de verde relvado e árvores comramagens verdes-cinza, naquele início de outono.

Pensou no prazer que sentiria ao levantar entre os dedos a finaplaca de ouro e, através dela, observar o esmaecido sol da tarde parasentir a transparência do metal e vê-lo enrubescer como um rubi e nãoé nada estranho que um metal tão precioso como o ouro tenha sido objeto deexperiências as mais perseverantes por parte dos alquimistas, que sempre sejac­taram de possuir o poder de criá-lo em seus laboratórios e com ele obter umapanacéia universal o assunto interessava sobremaneira à irmã Eglanti­ne, que, por segundos, suspendeu a leitura e pensativa deitou os olhosno pátio deserto ao seu redor: certamente não era este um tema paralevar ao conhecimento de suas alunas pour les médecins arabes e os adep­tos na Idade Média, o ouro ou o SOL possuíam propriedades sobrenaturais.Com o ouro fabricavam amuletos para fazer voltar a alegria aos melancólicos,e preservativos contra a lepra. A simples imersão do metal vermelho em brasanas tisanas era o suficiente para transformá-las emfortificante peitoral. Pararestaurar os doentes esgotados, eles prescreviam ofamoso Bouillon d 'Or, queconsistia em cozinhar uma moeda de 1ducado de ouro juntamente com umagalinha velha, ou um galo velho. Ou, simplesmente, polvilhavam os alimen­tos dos enfermos compó de ouro pequenas liberdades consentidas que irmã

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Eglantine se acha no direito de tomar, depois de tantos anos servin­do a Deus no Pensionnat des Religeuses du Sacré-Coeur deJésus: antesde dormir, mesmo passada a hora de se recolher, toma chocolate comleite na cozinha deserta. A irmã despenseira lhe deixou a chocolatei­ra esquentando sobre a adormecida chapa brilhante do grande fogãoa lenha. Un, deux, trois, quatre et pourquoi pas cinq tablettes de sucre? Bemadoçado, o chocolate ao leite torna-se mais saboroso e aquece muitomais o corpo. Nesta hora de silêncio no pensionato, irmã Eglantinereina solitária na cozinha. A vela alumia o livro O mercúrio é o único metal

que existe naturalmente em forma líquida e conserva esse estado mesmo a bai­xas temperaturas, pois que somente se solidifica a quarenta graus negativos.Esta singular propriedade, somada à sua alvura e ao seu brilho cintilante,sempre impressionou vivamente a imaginação das pessoas e fez considerar omercúrio como um metal privilegiado, quase uma substância sobrenatural. So­bretudo na Idade Média, nas teorias místicas dos alquimistas, quando se vêo mercúrio tomar uma singular importância e desempenhar um papel extraor­dinário. Para eles o mercúrio era a Água Divina, o princípio e a essência detodos os metais, a escuma de todas as formas. Eles o chamavam também, àsvezes, bizarramente, de Bile do Dragão e Leite de Uma Vaca Negra bem doce,o chocolate ao leite esquenta e relaxa o corpo. Faz frio, mãos fora dascobertas, irmã Eglantine prossegue a cativante leitura.

A pouca mobília torna a cela ainda mais fria. É necessário enro­lar o xale negro nas mãos brancas que seguram o livro. Somente maistarde fará as orações da noite O químico árabe Gerber (Yabar-Al-Koufi),que viveu no século XVIII, escreveu em seu Soma da Perfeição do Magistério:"O mercúrio se encontra nas entranhas da terra. Não adere às superfícies, sobreas quais flui livremente. Os metais a que melhor adere são o chumbo, o esta­nho e o ouro. Ele se amalgama igualmente com a prata e, muito dificilmente,com o cobre. Quanto ao ferro, a este adere somente por um artifício que é ogrande segredo da Arte. Todos os metais nadam sobre o mercúrio, exceto o ouro,que tomba ao fundo". Essas descrições são exatas e a química modernanada mais fez do que complementá-Ias.

No cesto o patê, o queijo de leite de cabra, o pão e os biscoitos- todos produtos do pensionato. Fraldas confeccionadas com esgar­cidos lençóis sem uso completam a esmola piedosa. Longa é a cami­nhada e irmã Eglantine aperta o passo. O cesto quem leva é AnneMarie, jovem noviça para todo o serviço no pensionato: preparar-seespiritualmente para o matrimônio com Jesus Cristo, varrer lavar, es­fregar arear, limpar polir, lavar passar, cozinhar servir, costurar cerzir,

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plantar colher, ouvir e rezar; vigiar e repreender as alunas e, às vezes,acompanhar irmã Eglantine em seus pequenos passeios e visitas de ca­ridade. O cesto com oferendas servirá para mitigar a miséria do casalPhilipot. Contra a vontade dos pais, Germaine Garnier casou-se como jovem Paul Philipot, camponês que não tem onde cair morto nós jáo dissemos, o mercúrio é dotado de um brilho cintilante e se parece bastantecom a prata, se bem que tenha um leve reflexo azulado. O mercúrio não pare­ce existir em grande abundância na natureza os Philipot vivem isolados,quase como um favor, numa cabana em partes afastadas das terras dobarão de Montpellier, à beira da floresta. Ajovem esposa Philipot, pres­tes a dar à luz, desprotegida pelo marido sem trabalho, desamparadapelos parentes, justifica a longa caminhada para a visita de caridade.

A cabana dos Philipot assenta-se em meio a árvores limpas, quaseum apêndice da floresta ao lado, reinado dos javalis, dos lobos e dasserpentes. A porta está aberta mas as janelas permanecem fechadascom tábuas. Irmã Eglantine pega o cesto com Anne Marie e entramas duas na cabana escura. Nu da cintura para cima, de pé estático, es­tátua de sombras, o homem Philipot. A mesa alta impede a visão doresto de seu corpo. Como para encobrir aquela visão, irmã Eglantineposta-se na frente de Anne Marie. Não está a futura mamãe em casa?Não. E não são dadas maiores explicações. Talvez ela tenha ido dar àluz em outro lugar que não aquele. Como, sozinha? Talvez. Talveztenha sido levada. Talvez o bebê já tenha nascido. Talvez. Mas o se­nhor não se interessa? Não se interessa em conhecer seu filho? E suamulher, onde está ela, afinal?

Lentamente, Philipot sai de trás da mesa e vem à frente, como paramelhor se posicionar e ver Anne Marie, até então oculta pelo negrorda cabana e por irmã Eglantine. Monsieur?! Trapos sujos cobrem-lheo sexo. Imoral! Imoral! Como se apenas esperasse ouvir essas palavraspara agir, Philipot agiliza os movimentos. Agarra a freira pelo hábito,puxa-a violentamente contra seu corpo, domina-a. Arranca rasga suasvestes de religiosa. Nua, somente com a coifa, asas a se agitarem nacabeça, irmã Eglantine grita, grita sem que nenhum som escape desua garganta. Sem largá-Ia, Philipot estende a mão livre e toma umafaca de cima da mesa. O golpe dado no ventre é tão forte que pene­tram faca, mão, punho e metade da metade do braço. A dor rasgan­te da facada só é sentida por um segundo, substituída em seguida porum amortecimento suave. Formigamento. Não a faca: o que irmãEglantine sente agora é a mão punho de Philipot revolvendo suas en-

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tranhas. A cada tentativa dela de se afastar, o braço se deixa sair um

pouco e já lhe penetra novamente o ventre. Sai em parte e volta, saiem parte e volta ... Mesmo quando caem e rolam os dois pelo chão depedra, ela nem sente o peso do corpo nu de Philipot sobre seu corponu. Sente apenas o retorcer gosmoso entrar e sair da mão punho emseu ventre líquido: Aiiiiii, vou morrer! Quando Philipot retira a mão eo punho, retira mão e punho vivos de um corpo já morto.

Morta irmã Eglantine, Anne Marie prepara-se para o sacrifício.Desveste o hábito de noviça e, deitada no chão, o corpo nu, espera,

longos cabelos loiros espalhados sobre a áspera superfície de pedras.Posse silenciosa.

Saindo do corpo da moça, Philipot mantém-se de joelhos e, incli­nando-se, limpa com beijos, boca e barba o sangue do sexo impúbe­re loiro de Anne Marie.

Onde ele arranjou tantas moedas de ouro? Ainda ajoelhado, Phi­lipot cobre com um ducado de ouro o sexo profanado de Anne Marie,pequena fenda agora selada com ouro. Outra moeda sobre o bicoróseo do seio esquerdo, outra mais sobre o direito. Deposita umamoeda sobre o lábio de sorriso curto e uma em cada pálpebra semi­cerrada da moça. Apesar de morta, irmã Eglantine está atenta e ob­serva a cena. Philipot pouco se importa com os olhares da freira. Porque se preocupar com uma freira morta, olhos esgazeados? Há maiso que fazer. Philipot retira a moeda de ouro que cobre o sexo de AnneMarie e, com as mãos em concha, lenta e cuidadosamente despeja mer­cúrio na pequena fenda oferta. O mercúrio se liberta célere pelos vãosdos dedos. Branco filete líquido oleoso que não adere às bordas ró­seas da carne e penetra doce e ágil no interior do pequeno mistérioda fenda escura. Do fundo da garganta de irmã Eglantine vem um sus­piro silencioso, prolongado e rouquenho.

No mês seguinte, outubro de 1879, irmã Eglantine sugere à madresuperiora a indicação do livro Pierre et Metaux, como prêmio de apli­cação para as alunas que, por mérito próprio, tenham alcançado asmelhores notas nas aulas de instrução religiosa dos cursos do Pension­nat des Religieuses du Sacré-Coeur de jésus, em Bois L'Évêque, Liege,Bélgica.

Em outubro de 1989, na Feira dos Livros Usados, sebo de proprie­dade de Irajá Reis, situado na rua Emiliano Perneta 325, em Curiti­ba, foi vendido um exemplar de Pierre et Metaux, encadernado e emperfeito estado de conservação.

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()s fantasmasdo fundo

de quintal

Um mistério

Ao longeo cantar abafado dos galos,

Os telhados vão amanhecer branquinhos de geada.Na noite fria

há os que dormem protegidos pelo escudo do sonoSonham? Talvez.

Há os que não.Presas da insônia,

da falta de ar, de urina solta,dos gases intestinais, das dores reumáticas,

das tosses noturnas, da bronquite,do remorso, do medo.

Atravessam as noites acordados,vítimas fáceis dos demônios do quintal dos fundos,

de onde não se vê a rua.

No limitado triângulo o Fantasma dos Quintaiscaminha pela calçadinha cimentada.

Não tem perigo dele pisar no canteiro e amassaros pés de alface, as cebolinhas e os rabanetes:

Que economia trazem para a casa!Sentado na cama em ângulo reto,

olhos abertos no escuro fitando o nada,o Velho não luta contra o esquecimento:

apenas quer lembrar e não conseguese lembrar do que quer lembrar.

Os olhos sem imagens, ocos,abertos para o vazio do quarto escuro.

Que tristeza!Milagre:

o enorme lençol branco sobrevive no varal!Não se pode deixar roupa dependurada

que os ladrões roubam tudo.Os cachorros se esquentam

enrodilhados em seus sonhos.

Ainda está longe o dia, ninguém vêmas o Fantasma do Quintal está ali,atento, preparando suas maldades.

Ninguém pode se livrar do mal, homem!Revolto na cama,

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236

o Homem não pode se livrar da memória,sem dormir sonha agitado com a Outra,

que largou dele para sempre.Cai num sonho nervoso.

Mais tarde - vocês vão ver - ao acordar,terá a imagem dela diante dos olhos

para sempre.Não adianta: ela não quer saber mais dele.

Inútil insistir.

Mas vá falar disso para um homem apaixonado!Não sei, sempre há uma esperança,

falsa ou verdadeira.

É disso que o Fantasma do Quintal se aproveitaAinda está longe o dia

e a geadajá começa a cobrir a grama.Ainda bem que não está ventando.

Na interminável noite,esperando a hora de levantar e fazer café,

a Mãe insone reza pelo filho.Tanto ela tem feito para que ele passe

essa fase ruim em que estáe volte a ser o que era antes:

um homem alegre, trabalhador.Ele está se acabando,

se con tin ua assim

não sei o que será dele.Eu tenho rezado tanto pelo meu filhinho!

O pior é que a Mãe não sabe por que ele está assim.Se soubesse talvez pudesse ajudar.Deve ser coisa de alguma mulher.

Botaram feitiço nele.Não há como se livrar disso.

Pela tessitura das cercas, os quintais do fundose ligam com os quintais de outras casas.Pelo vão da cerca a ameixeira derrama

seus melhores galhos para o lado do vizinho.As galinhas vêm ciscar na horta alheia,

lá do quintal dela a Enxerida espiona tudo,o gato da Velha mija fedido na varandinha da casa nova,

a valeta vaza suas águas fétidas para o lado de cá,vozes indesejadas atravessam as cercas de madeira.

Isso durante o dia: dentro da noite

é esse o território dos fantasmas dos quintais.A Outra dorme aninhada em seu novo namorado,

quentinha, protegida, longe dali.Pensar que o Homem pensou até em matar:

Se ela não é minha não será de ninguém,na morte será minha!

Se a Mãe soubesse que o filho criado com tanto carinhoquis tirar a vida de alguém, matou alguém.

Na sua brancurao Fantasma entreabre um sorriso de dentes amarelos.

Ahhhh, as noites frias!Debaixo do lençol úmido

a Mocinha dorme seu sono solitário.

Sem sair do quintalo Fantasma - que demônio! -

já está na cama agarrando a Mocinha por detrás.Sua mão gelada de fantasma acaricia o ventre liso dela,

depois escorrega a mão até a gretazinha miúda pulsante,calorzinho tão bom! Suspiro prolongado e um ai,

a Mocinha agora dorme tranqüiladebaixo do lençol seco.

Coitada, uma criança ainda! Isso não se faz ...Ela vai ser uma perdida na vida!

Na sala o gato preto dorme em cima da televisão.Pé ante pé, sem fazer barulho,

a sombra do Fantasma entra no quartoe observa o sonho da Mulherpara ver se ela dorme calma

sem saber das coisas que o marido aprontou.O canalha!

A madrugada vai alta, ao longepassa o ruído de um automóvel tardio.Ninguém nas ruas. Os ladrões da noite

não procuram casas com fantasmas no quintal.Com passinhos macios, o tatu busca sua toca

no terreno baldio sem cercas dentro da noite.

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Horrível! O grito de alguém morrendo.Na agonia da morte uma criança,

o grito apertado, choro prolongado de um bebê- que mortalha pode cobrir um bebê morto?

Na noite escura só o Homem escutao grito só para ele, um grito dele.

E desperta dentro de um pesadelo, olhos esbugalhadosque não vêem mais a imagem da Outra.

A imagem é outra: o rosto esborrachado do bebê morto.O filho dele.

Olhando a barriguinha da Outraninguém diria que estava de seis meses.

Dias e dias atrás do dinheiroe de um médico que aceitasse fazer o aborto.

Com seis meses já está vivo,dá pontapés na barriga da mãe.Tirar agora é matar uma vida.

O médico aceitou mas fez uma exigência:tirar eu tiro, mas vocês é que vão ter de enterrar.O Homem não tinha levado nada para cavucar.

O fusca parado num terreno pantanoso,ao longe se vê a estrada de pouco movimento.

Fez um buraco com a chave da roda

e com as mãos sujas de lama preta.Trouxe o feto embrulhado em plástico transparente.Pela cor plúmbea, textura lisa talhada, dura gelatina,

parecia um grande pedaço de fígado,rins pelas dobras prenunciandomembros, nariz, orelhas e olhos.

O rosto que ele agora tinha nos olhos.Se parecia com a mãe?

A Outra se recuperava na clínica clandestina.Não sabia rezar,

quando precisava pedia para a Mãe.O Homem cobriu de terra,

pensou em fazer uma pequena cruz.Não! Alguém vai desconfiar.

Como pôde limpou a mão numa estopa.Depois eu limpo direito.

Patinando na lama o fusca voltou para a estrada.O Homem não conseguia mais ficar deitado,

levanta com cuidado para não acordar a mulher,que dorme calma ao seu lado

e tem um ligeiro despertar: aonde você vai?Mais uma mentira das muitas: vou no banheiro.

O rosto afundado no travesseiro, a mulher volta ao sono.O Homem abre a porta que dá para o quintal,

o frio da madrugada arrepia seus pêlos.Dá três passos e o grande susto:

o Cão Negro, pêlos eriçados, dentes arreganhados,latindo avança nele.

Não de frio, o Homem treme de medo,uma eternidade de medo antes de conseguir gritar:

Passa, Sultão!Guapeca vagabundo, se fosse um ladrão não acordava.

Não vê que sou eu?!No escuro, o cão recua ainda rosnando e depois se cala.Os cães do bairro respondem num enrodilhar de latidos.

Não sei se foi o medo,o Homem não está mais dentro do seu corpo,

desassinalado, como se não existente,se enxerga parado no meio do quintal,

no meio da noite.

Tem agora toda a memória do mundoe o dia não vai nascer, nunca mais.

E o amor, para que serviu?Não poder dormir nunca mais.

Nos seus olhos a imagem da Outrase mistura com o rosto mongol do bebê.

Do Homem

sai um grito silencioso, longo.Ninguém vai ouvir seu grito,

nem os cães nos quintais.Então percebe com horror:

O Fantasma do Quintal sou eu!Passa a mão nos olhos,

com as lágrimas lava a lama preta das mãose vai procurar outros quintais,

outros mundos.

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() . ~.mlsterlo teu,

Sônia

COISAS DA VIDA .(EPISODIO N.' 2)

• •

o amigo· A SAUDE DA MULHER fará o mi·logre· é o grande remedio pora 0$ in­commodo$ dos senhoras. Compro umvidro hoje mesmo. Levarós com elJe ofelicidade de regresso ao teu lar.

Elle _ Santas palavras! Vou voando é pri­meira phormocial

Ello - Lembras-te, querido? Foz hoje um onnoque brigá mos pelo ultimo vez .. ,

EJle - Mósinhal Para que recordar?ElIa • Para abençoarmos a SAUDE DA MU·

lHER, que me restituiu 00 teu omor!. ..

A SAUDE DA MULHERO GRANDE REMEDIO DAS DOENÇAS DE SENHORAS

o ESTADO GERAL DO CARRO

Bom. Um exame mais do que superficial mostra que o carro, lan­çado há dois anos pela fábrica, ainda se encontra em bom estado. Ne­nhum amassado na carroceria, a pintura vermelha não está descasca­da, a lataria sem pontos de ferrugem e os pneus são novos. O únicosinal da viagem que acaba de fazer é a camada de pó pegajosa e leveque aderiu principalmente nas partes laterais e nos pára-lamas, o queatesta ter ele rodado em estradas de terra.

A SAÚDE DA MULHER

Seriam, seguramente, entre duas e quatro horas da madrugada.Mais certo dizer que perto das três e meia. Por essa hora o carro en­trou na cidade, vindo do Sul.

As regras apareceram por volta das oito, oito e meia da noite ante­rior, e como a Mulher não tivesse modess em casa e se avexasse de man­dar alguém buscar na farmácia do seu Benedito, improvisou uma toa­lha higiênica com um grande guardanapo branco de boa qualidade.

É uma cidade de tamanho médio, mais para pequeno, calçamen­to apenas no centro e em algumas avenidas periféricas. Seguindo aentrada sul em linha reta, dobrando à esquerda no largo do colégiodas irmãs e, mais adiante, entrando novamente pela avenida xv de No­vembro, chega-se à praça da Matriz, no centro.

O marido, que também dorme, tem entre os vãos dos dedos dopé chumaços de algodão embebidos em Vodol, para controlar as friei­ras que muito o afligem nesta época do ano.

Como o carro é de modelo recente seu motor é silencioso, nãoperturbando, portanto, o sono dos habitantes da cidade. E as ruas detraçado antigo, estreitas e curtas, obrigam que o Homem de OlhosAzuis conduza o carro em baixa velocidade, o que diminui ainda maiso barulho do motor.

No momento não podemos ver, porque no sono ela mantém aspálpebras cerradas, mas a Mulher tem uma mancha preta no brancodo olho esquerdo. Longe de ser um defeito desagradável ao olhar, essesinal de nascença, apesar de grande, dá um certo atrativo à beleza daMulher. Traz, como se diz, um certo it aos olhos esverdeados dela.

O que procura o Homem de Olhos Azuis àquela hora naquela ci-

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dade? Seja o que for, dificilmente encontrará. Ninguém pelas ruas paradar qualquer informação. E não será fácil achar o único hotel da ci­dade, o Central, pois já apagou a pequena lâmpada que alumiava suapequena placa e fechou a porta de entrada. Até a delegacia de polí­cia mantém a porta fechada e as luzes apagadas. E nenhum estabele­cimento comercial funciona até essa hora. O que fecha mais tarde, afarmácia, dependendo do dia fecha às nove, nove e meia da noite, masgeralmente funciona só até as oito. Passou disso é preciso tocar a cam­painha para chamar o farmacêutico.

Precavida, a Mulher tem sempre em casa um vidro de A Saúde daMulher, remédio antigo mas de comprovada eficácia. Foi compradona farmácia do seu Benedito e guardado no armarinho de medicamen­tos até a chegada da menstruação. Ontem à noite, logo que desceramas regras, ela tomou uma colher das de sopa do remédio, dissolvidonum copo de água açucarada.

A SAÚDE DA MULHER contém substâncias deação sedativa e antiespasmódica nas cólicasmenstruais. Não tem contra-indicações enão prejudica a amamentação. Por suas pro­priedades terapêuticas acentuadas, às vezes,A SAÚDE DA MULHER determina ligeiro abalo noorganismo. Não deve haver preocupaçãocom isso porque está agindo beneficamen­te. Prossiga com o tratamento, ou, no máxi­mo, diminua a dose.

São ruas curtas que desembocam em outras ruas curtas e trazema indagação: para que lado seguir agora? As casas, quase todas pinta-

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das de amarelo, foram construídas quase na mesma época, nos tem­pos em que a cidade florescia. A iluminação pública é bastante ruim.A obscuridade vista pelos faróis do carro dá ao Homem de Olhos Azuisa impressão de estar sempre andando em círculos pelas mesmas ruas,sem encontrar saída.

É agitado o sono da Mulher. Ela passa por suores frios e ondas decalor que, se não chegam a acordá-Ia, fazem-na gemer e revirar-se in­cessantemente na cama. É claro que não se pode adivinhar que tiposde pesadelo o mal-estar traz a ela nesta madrugada nem quente nemfria, as portas do quarto fechadas na velha casa abafada.

O Homem de Olhos Azuis no carro vermelho não tem sono. Ou

talvez tenha, mas por se manter atento em achar o caminho por ruascalçadas de paralelepípedos que parecem sempre as mesmas, entrecasas amarelas que se assemelham iguais, a concentração e a excita­ção espantaram seu sono.

Uma leve neblina envolve a cidade, um cachorro late aqui, outrosrespondem lá longe, depois de algum tempo param de latir e vão re­começar mais tarde. Fosse daqui a uma hora, talvez já se visse algumpassante andando, não pela calçada, mas apressado pelo meio da ruacomo todos os que caminham pela madrugada. Alguém que um com­promisso ou um trabalho urgente tirou da cama mais cedo.

Se encontrasse alguém, o Homem de Olhos Azuis pararia o carroe pediria informação, e talvez pudesse localizar aquilo que veio pro­curar nesta cidade que não conhece. Seja o que for, não irá encon­trar nesta hora em que todos dormem.

Em seu sono agitado, seja o que estiver sonhando, sonho bom ousonho mau, a Mulher pronuncia o nome de alguém. Quase inaudí­vel, como são as falas do sono. Mesmo se o Marido, ao lado dela nacama, não estivesse dormindo roncando, teria dificuldade para iden­tificar o nome que ela diz.

Às vezes, as luzes dos faróis do carro vermelho atravessam por entreas frinchas das venezianas fechadas e relampejam no escuro do quar­to abafado.

Tem o carro gasolina suficiente para continuar rodando pela ci­dade adormecida? Não poderá acontecer que, de repente, pare porfalta de combustível e tenha de esperar até as sete horas, quando abreo único posto da cidade? E, então, seja o que for que o Homem deOlhos Azuis esperava encontrar na madrugada desta cidade, não terásido achado.

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Mesmo durante o sono, o sangue menstrual continuará sendo ex­pelido em grandes fluxos, sujando o pano branco e marcando de ver­melho os sedosos, longos e pretos pêlos púbicos da Mulher.

o OBSERVADOR PRIVILEGIADO

o que aconteceu depois?Em relação a você, eu sou um observador privilegiado, pois par­

ticipei do início dos acontecimentos daquela madrugada, e tudo o queeu escrever aqui, mesmo que seja inventado, você tomará como o acon­tecido. Por exemplo: eu posso escrever que o Homem de Olhos Azuiscansou de procurar e, finalmente, encontrou a saída da cidade. Ace­lerou o carro vermelho, seguiu os treze quilômetros pela estrada deterra até alcançar a rodovia asfaltada e pegou o caminho de casa, de­sistindo, seja lá o que for, do que tinha vindo procurar naquela cida­dezinha pela madrugada.

Posso dizer também que, no momento em que ele partia, a Mu­lher despertou do seu agitado sono gritando o nome do Homem deOlhos Azuis. Que seus gritos acordaram o Marido, que dormia ron­cando ao lado dela. E que o Marido, voltando do sono, descobre compavor que a Mulher ainda guardava no coração o nome de outrohomem.

Tudo o que eu disser será verdade para você. Porém, tenho eu odireito de indicar finais possíveis para os acontecimentos reais que co­mecei a contar? Por acaso sou um deus com o poder de determinaro destino das pessoas? A resposta é não. Por isso, é melhor que eu mecale e deixe somente com você a tarefa de deduzir o que aconteceudepois com o Homem de Olhos Azuis, a Mulher e o Marido.

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() mistérioda Sonâmbula

Nada de gestos arrebatados, duros. Seu caminhar, eu diria, é maisum deslizar suave.

Pela noite, a Sonâmbula caminha sem se chocar com os móveisda sala. Como ninguém da casa ainda a percebeu em seu sonho desonâmbula, não se pode dizer se ela caminha de olhos fechados ouabertos ou de que maneira ela evita, no escuro, o embate com os mó­veis: a mesa ovalada com seis cadeiras, a cristaleira antiga que veio dafazenda, a cadeira de balanço com armação de palhinha, o sofá e astrês poltronas de veludo vermelho, a mesinha de centro e o pequenomóvel com assento que abriga o telefone.

O marido dorme no quarto do casal um sono pesado, ligeiramen­te alcoolizado. A irmã tem seu quarto longe da sala, no fundo do cor­redor. O irmão mais moço não se encontra na casa, viaja em férias es­colares. A velha mãe, a mesma que se queixa de nunca conseguirdormir à noite, ressona em seu quarto de portas fechadas a sete cha­ves. Na parte de baixo, a empregada dorme em seu quartinho e con­tinuará dormindo mesmo depois do despertador tocar as seis horas,e mesmo depois de se levantar, lavar o rosto e se vestir. A cozinheiraaproveitou o dia de folga e dorme na casa da filha casada. No jardimdos fundos, as dependências da criadagem masculina estão vazias. Omotorista, que, supõe-se, deveria também vigiar a propriedade duran­te a noite, não está. E o velho jardineiro dorme sob o efeito de seda­tivos, longe dali, na enfermaria do hospital.

O Ladrão ainda não invadiu a casa, espera no centro da cidadeque seu comparsa venha buscá-Io, conforme o combinado, no bar ondefazem ponto.

A Sonâmbula, em movimentos lentos flutuantes, chegou defron­te à grande porta envidraçada, limite entre a sala e o varandão. Ficaali por alguns instantes, eu não diria indecisa, pois me parece difícildenominar os atos de uma pessoa em estado de sonambulismo.

Se, no meio da noite, alguém se levanta e, caminhando, vai até aporta envidraçada que liga o interior da casa com o varandão do jar­dim da frente, podemos deduzir que se levantou porque não conse­guia dormir e, para combater a insônia, caminhou pelo corredor atéa sala, silenciosa, sem acender as luzes para não perturbar o sono dasoutras pessoas da casa. E podemos mesmo afirmar que, se ficou emfrente à grande porta envidraçada, foi por indecisão entre sair paratomar a fresca da noite ou voltar pelo corredor escuro e, no armari­nho de metal, apanhar o vidrinho de comprimidos para dormir, se­guir até a copa, só então acender as luzes, encher o copo e, após nova

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indecisão, pegar não dois mas três comprimidos e tomá-Ios com água.Muitas vezes na vida tivemos insônia e, portanto, podemos reconsti­tuir facilmente os pensamentos e ações de quem não consegue dor­mir de noite. Porém o que sabemos nós das motivações de uma pes­soa sonâmbula?

A Sonâmbula toma uma decisão: vira-se, retorna pela sala entran­do no corredor, abre a porta de seu quarto, retira da gaveta da pen­teadeira o estojo de maquiagem, senta-se e, contrapondo-se ao espe­lho, começa a se pintar no escuro, não sei se de olhos fechados ouabertos. Incomodado por alguma coisa em seu sono, o marido revi­ra-se na cama.

A três quadras dali, na casa de tijolos aparentes, o motorista saide cima da nova empregada, abre a porta do quartinho e, nu, chegaaté a borda da piscina e mija na água. Debruçada na cama, a nova em­pregada tudo vê e reclama quando ele volta:

- Ficou louco, alguém pode te ver!- Teus patrões dormem cedo. Nunca me viram.- Nunca te viram, é?! Então você já veio aqui antes, seu sem-ver-

gonho?!Não foi desta vez. Há algum tempo atrás, a Sonâmbula fritou ovos

na cozinha durante a noite. Na manhã seguinte, enquanto servia o caféa cozinheira interrogou:

- Dona Rejane, foi a senhora que fritou dois ovos ontem de noite?- Eu não, Cacilda, que idéia!- Acordei hoje e encontrei a cozinha toda bagunçada. Alguém

andou fritando ovo e deixou tudo sujo.O marido intervém:

- O que é isso, Rê? Comendo escondida de noite? Por isso essabarriguinha?

A Sonâmbula pensou logo na sua velha mãe, cheia de manias. Pen­sou e calou-se. A coisa ficou por isso mesmo, nem Rejane nem nin­guém ficou sabendo que havia uma pessoa sonâmbula na casa.

Era isso o combinado: o Ladrão pulou sozinho o muro da casa,seu companheiro ficou no carro vigiando, pronto a dar sinal caso no­tasse alguma coisa estranha. Ficou com a parte mais fácil, prerrogati­va de quem levantou o serviço, espiou a casa durante vários dias, des­vendou a disposição dos quartos, indicou o que deveriam apanhar eainda trouxe o carro roubado.

A Sonâmbula agora penteia os longos cabelos negros. Antes, com

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a tampinha do frasco passou perfume nos sovacos, atrás da orelha enos seios livres soltos cobertos pela camisola transparente, muito de­cotada. a sangue pegajoso escorre pelas suas pernas abertas.

a Ladrão é moço, ágil, e tem a coragem de dois cigarrinhos fu­mados há pouco. De acordo com as instruções do companheiro, sabeque o melhor será subir pelo varandão e arrombar a grande porta en­vidraçada.

É apenas um menino. Tem o quê? Doze anos? Sentado na camada enfermaria, balançando as pernas que não alcançam o chão sebo­so, olha e pensa no velho jardineiro deitado na cama ao lado, respi­ração gorgolejante. Está cada vez pior, parece que nem consegue maisrespirar, o ar só sai, não entra. Ele vai morrer. Esta noite, será?

a Ladrão não se assusta com a estátua, quase gente, no jardim,no meio das árvores, no gramado.

A cozinheira deitada ao lado da filha e do netinho na única cama

da meia-água não consegue pegar no sono. a genro já saiu faz tempopara seu serviço de vigilante noturno; desta vez, saiu bem alimenta­do com as comidas trazidas pela sogra da casa dos patrões, coisa fina.A cozinheira incomoda-se com aranhas, por isso não consegue dor­mir. Pensa na última vez que veio pousar na casa da filha, quando foiabrir a porta no escuro para ir na privada, meteu a mão numa ara­nhona caranguejeira que estava na maçaneta. Susto tão grande queprecisou tomar água com açúcar para se acalmar. Tenta rezar para verse dorme.

a Ladrão experimenta a grande porta envidraçada, já sabe quenão tem alarme na casa, e com a faca começa a forçá-Ia, quando vêdo lado de dentro no escuro um vulto branco quase como a estátuadojardim.

A cozinheira reza para que o genro arrume um emprego melhor,de dia. Para que o netinho sare logo daquelas grosseiras que tem norosto, tadinho. Para que a filha não seja tão luxenta, não impliquetanto com o marido, homem trabalhador mas sem sorte, preto masbom homem.

A velha mãe acorda agoniada e suspira: Ai, meu pai! Meu queri-do paizinho! Vira de lado e continua a dormir.

a companheiro se assusta com o Ladrão pulando o muro de volta:- Que que é isso? Que sangue é esse?- Vamos embora.

- Deu pra pegar alguma coisa?

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- Deu crepe, vambora!_ Tá cheio de sangue na cara, olha a tua roupa. Te pegaram?-Nada.

- Não me põe em fria. Matou alguém?- Abre essa porra de carro de uma vez!- Senta no jornal senão suja tudo.- Você não vai acreditar.

_ Não quero ter nada a ver com essa história. Sabe como anda aminha barra com os home.

- Me dá um cigarro. Me dá um cigarro.- Você matou alguém? Deixou a faca lá?_ Não dá para acreditar. Tô lá na porta que você falou, aí a porta

abre e me aparece uma puta duma mulher, uma morenaça de cami­sola transparente. Eu ia pular em cima, apagar ela. Ela me olhandoquieta e aí levanta a camisola, mesmo no escuro deu para perceberque estava sem calcinha, se oferecendo. Com ela ali o roubo já esta­va perdido mesmo. Juntei ela ali de pé mesmo. Mas aí na hora do gozoela me dá o maior grito. Me assustei, pulei fora e corri, um grito queveio assim como lá de dentro: Aaaaiiii ...

Em seu sonho, a Sonâmbula se vê deitada na banheira e sente a

água morna, quente, penetrando seu corpo adentro. Água oleosa,quentura esponjosa que vai pegando forma, entrando e saindo semnunca se largar de dentro, tomando conta de tudo, carnosa, quente,viva. No sonho, a Sonâmbula geme alto: Aaaaiiii ...

- E o sangue? Onde você arranjou essa sangueira toda?

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Mistériodo menino

morto

Quando alguém está se afogando vê passar, rapidamente comonum filme, toda a sua vida. E não é só quem morre afogado, dizemque nos segundos que antecedem a morte o mundo todo vê sua vidapassar, imagens já nem pensadas mais ou nunca registradas pela me­mória, da hora da saída do ventre materno ao indesejado instante final,tudo é lembrado. Coisas tão desimportantes quanto o sonolento vôode uma mosca na sala de aula, imagens sempre revividas como o lentoentreabrir dos ofegantes lábios úmidos da mulher amada ao dizer eute amo, logo depois do primeiro beijo. Sem explicação, imagens de todauma vida no instante mesmo da morte: não se esquece jamais e nãoimporta mais.

Fotografei o menino quando ele ainda estava vivo. Eram gansos,o avô dele tinha uma criação bem-sucedida, usava métodos própriosmuito eficientes. Quando vi aquele menino, bonito, loiro de olhinhosvivos bem azuis, achei o que eu estava precisando: o instantâneo deuma criança dando de comer aos gansos. O loirinho carregando bra­çadas de grandes folhas de couve e a gansaria toda correndo atrás egrasnando. Deu uma bela foto, bem nítida, de cores brilhantes: emprimeiro plano, o menino sorrindo mas meio assustado, cercado pelosgansos brancos de longos pescoços, quase maiores do que ele. Fuimuito feliz nessa foto.

Passou nem um mês e a mãe dele vem me procurar - o pai eunão cheguei a ver quando estive no sítio fotografando -, ela queriauma foto:

- Deve ter ficado bem bonita. Não temos nenhuma fotografiadele ... Ele morreu.

Disse isso como quem diz ele está bem. Quem sabe o que pensa umamãe?

- Mas como? Ele ...

- Foi três dias depois que o senhor esteve lá fotografando. Foide meningite, deu assim de repente. Em poucas horas estava morto.

A mulher ficou esperando que eu dissesse alguma coisa. Eu nãosabia o que dizer, nunca sei nessas horas. Eu disse:

- Meus pêsames.- Obrigada ...Era uma mulher bonita, meio judiada mas ainda inteira. Eu con­

tinuava sem saber o que falar. Ela não:- ...Ele tinha só cinco aninhos, por isso mesmo queremos a foto,

nunca pensamos em mandar tirar.

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Fiz a ampliação e mandei, nem cobrei nada, é claro. Olha comoficou bonita:

816357492

Antes de mandar entregar, eu ficava olhando a foto: coitado doguri. No que ele estava pensando quando morreu? Será que é igual agente grande? Será que também repassou a vida dele - vidinha curta- na hora da morte?

E será que tudo passou com o mesmo peso de tempo? A dor fortena nuca - palavra que talvez uma criança de cinco anos nem saibadizer, para ele devia ser atrás do pescoço. A parte da dor, da febre alta,teve a mesma duração daquela manhã dourada? Quando ele, aninha­do na cama materna, naquela manhã de verão, a mãe rodava nos dedosuma bolinha de vidro azul e encostava nos olhinhos do menino, entãoele via o mundo através do azul luminoso girante. Depois a mãe esti­cava bem o braço, a bolinha azul brilhando lá longe, reflexos doura­dos do sol. Lembrou o menino daquela história do Pedra Malazartesque a mãe contou então? Aquela do Malazartes que de preguiça nãocomia nada e estava morrendo de fome. Já iam carregando com elepara o cemitério, aí passa um homem vendendo banana. "Está des­cascada?", pergunta o preguiçoso Malazartes lá do caixão. "Não tá não",responde o vendedor, e Malazartes ordena: "Então toca o enterro!".

Na hora da morte o menino riu novamente dessa história? Na re­

lembrança, a alegria assustada de dar comida aos gansos durou omesmo tempo da imagem sem contornos, da emoção indefinÍvel da-

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quela noite na varanda ao luar, quando a moça de cabelo preto ­quem era ela? - apontava as estrelas, contava coisas da lua de SãoJorge brilhante lá longe no negro céu azul do sonho? No repassar desua vida, o menino ficou sabendo onde é que foi parar a bolinha deborracha vermelha, perdida e nunca mais achada? Difícil dizer. Namorte o menino levou a memória junto.

Não pude evitar, comecei a pensar na minha própria morte. Comoserá? Vai acontecer rapidamente num desastre de carro, eu dirigin­do? Ou na longa dor da desagregação do corpo, a podridão em vida,como a lenta agonia de meu pai? O câncer roendo pedaços dos lábiosdele que iam soltando quando se passava algodão molhado para mi­tigar sua sede. Nem água ele agüentava mais tomar.

E que lembranças vou reter na minha hora? Talvez então me ve­nham com clareza momentos passados desapercebidos da primeira vezque tive você nos meus braços. Não que eu tenha esquecido cada ins­tante, mas quero ver uma vez mais o gemido que escapou dos seus lá­bios entreabertos, sentir a cor do seu corpo colado no meu pela gosmado seu gozo, ouvir o cheiro doce que se espalha de seu prazer. E serábom lembrar. No relembrar, será que experimentarei outras vezes oprazer que tantas vezes sinto no seu corpo? Então o estar morrendovalerá a pena?

Agora você está ao meu lado, acabamos de fazer amor. Nossos cor­pos colados, o mesmo corpo, você diz todas as letras do meu nome(como se chamava o menino morto?) e eu sinto a extensão do pra­zer, um espaço infinito no tempo da minha vida: como se fosse sem­pre assim e assim sempre será. É este o sentido da minha vida, o pra­zer que você me dá? Você já existia quando eu nem conhecia você?Quando o menino via o mundo no alumbramento azul da bolinha devidro nas mãos da mãe, você já existia? Ou seria amarela e não azul?Não sei. Só saberei de fato quando, como num filme, as imagens daminha vida desfilarem nos meus olhos, na hora da minha morte. Evocê desaparecerá comigo para todo o sempre.

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() mistério

do gato pretoe da gata gorda

Eu sou um homem. Ao contrário do homem, o gato, igual a qual­quer outro animal,já nasce com o destino traçado. Vida sem surpresas.

A primeira coisa que chama a atenção nela são os cabelos corta­dos bem curtinhos, e eu brincava: "Parece um hominho". No cango­te, uma mecha mais comprida descendo um pouquinho pelo pesco­ço, um rabinho como o de um gatinho.

Gatos costumam ser altivos por natureza, não se entregam fácil.Disfarçados como eles só, querem agrado mas fingem não querer, ascoisas têm de ser do jeito que eles determinam. Não é qualquer pes­soa que consegue lidar com gatos.

Ela também era assim, queria se entregar a mim - e como que­ria - mas não dava o braço a torcer, escondia o que sentia, inventa­va mil pretextos, mil desculpas, dizia mil coisas: ''Você é um louco!".Não era a palavra que mais saía de sua boca.

A noite é território dos gatos. Mais do que as dos homens, as pu­pilas dos gatos se dilatam no escuro. Mais do que os homens, os gatossabem ver o que se esconde no negror da noite.

Debaixo das grossas sobrancelhas pretas, os negros olhos dela sãoredondos como olhos de gato. Cara branca redonda como a de umagata, com grandes olhos bem pretos, bem redondos, como que paraver no escuro.

Só gatas tem pêlos de três cores, gatos não. Gatos com pêlos deuma ou duas cores - preto e amarelo, por exemplo - tanto podemser machos como fêmeas. Porém, se os pêlos tiverem três cores sópodem ser fêmeas. Coisas da raça.

Os bicos róseos dos seios dela são rodeados de parcos pêlos pre­tos. Da primeira vez que os beijei, que chupei, a luz estava apagada eeu pensei que eram do cobertor lanhudo - fazia bastante frio naque­la noite. Foi a segunda mulher que conheci com pêlos no peito, a outrafoi uma namorada que tive quando garotão, a Danielle, uma france­sinha.

Alguns animais têm pêlos ásperos, espalhados, gatos não, seus pêlossão bem macios, fininhos, lisos, e correm todos na mesma direção.

Não que ela fosse peluda, porém tinha pêlos bem pretos espalha­dos pelo corpo bem branco, firme, pêlos macios, curtos, esparsos.Antes de vê-Ia nua eu imaginava que teria uma vasta pentelheira depêlos compridos espalhados em várias direções, como vi em outras mu­lheres.

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Que nada! Era uma pequena moita de poucos pêlos curtos bemmacios correndo em direção à sua fenda. Na hora de beijá-Ia, eu gos­tava de passar minha língua no pequeno buço que encimava seus ro­sados lábios carnudos, estriados. Buço ralo que mesmo assim ela des­coloria, vaidosa que é.

Só tem um jeito da gente dominar um gato: acariciar forte a es­pinha dele na região entre as omoplatas nas patas dianteiras. O gatofica sem ação, entregue, irritado mas sem coragem de se libertar.

A primeira parte do corpo dela que toquei foram os cabelos cur­tos bem pretos. Acariciei ao contrário do sentido em que eles corriam.Mulher que não se entrega, disfarçada, ela fingia que não estava gos­tando. E era tão bom! Como acariciar um gato, gato preto, pêlos quen­tes. O desejo me corria pela ponta dos dedos, pela palma da mão.

Gatos não gostam que a gente revire o pêlo deles. O único lugaronde você pode acariciar um gato no contrapelo é a barriga, e so­mente quando estão deitados de dorso, dengosos, se oferecendo paraagrados.

Com os dedos, com os dentes, eu revirava seus pentelhos. Ela fi­cava louca de raiva quando, na cama, eu a chamava de gatona gorda.Não era gorda, era rechonchuda, e nada de carnes moles, rija debai­xo da pele branca como nunca vi igual. Minha gatona gorda. Eu nãosou gata, não sou gorda e não sou tua! E de raiva enfiava fundo as unhasnas minhas costas, às vezes tirava sangue. Aquilo doía de gozo. Fin­gindo vingança, eu mordia as coxas dela no meio das pernas, pertodo sexo. Ela sentia grande prazer com isso, eu sei, mas fingia raiva,empurrava minha cabeça, puxava de volta, empurrava, puxava de volta.Eu sentia um grande prazer em morder as coxas dela e vê-Ia renegaro gozo que fingia não sentir. Na coxa macia de pele branca, sensível,ficava a marca dos meus dentes bastante tempo, primeiro roxa depoispreta, depois amarela.

Na hora do gozo ela exalava um cheiro tão bom, cheiro de limão esuor quente. Como gata no cio, parecia que ela gozava muitas vezes omesmo gozo. Parecia estar gozando quando eu beijava sua boca, quan­do sugava seus seios, quando minha língua acariciava seu sexo, quandomeu sexo estava dentro dela e quando, no gozo, nossas gosmas se cola­vam. Depois de fazer amor, ela se vestia sem se lavar. Numa das poucasvezes que falou coisas carinhosas para mim, disse que fazia isso paraficar mais tempo com o meu cheiro no corpo. Eu também mantinha o

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cheiro do gozo dela comigo, nem as mãos eu lavava. De noite, na cama,ao lado da minha mulher dormindo, eu ainda sentia o cheiro do pra­zer da minha gata gorda.

Gatos são animais estranhos, não gostam de mostrar dependên­cia. Quando se entregam, pode reparar, chegam de mansinho, vêmcomo se fossem para outra direção, não nos olham nos olhos, se ins­talam no nosso colo, como se ali não estivessem ou não quisessem estar.Mas se deixam ficar e sonham sonhos bem quentinhos.

Um dia, depois de fazer amor, estávamos abraçados, ela me aper­tou forte e disse: "Eu nunca tinha gozado antes. Você foi o primeirohomem que me fez gozar. Antes de você só tive o meu marido e comele eu nunca senti nada". Desvencilhou-se dos meus braços e beijoumeu sexo. Eu não sabia o que pensar, ela não era de fazer confidên­cias, nem de falar coisas de amor, mas também não era de mentir. Le­vantou-se da cama e eu continuei deitado pensando no que ela tinhadito, se fosse verdade eu amava aquela mulher, e ela me amava.

Ela veio com uma faca e enfiou na minha barriga com toda a forçaque tinha. Soltei um grito fraco da dor rasgada que senti. Com as duasmãos empurrando a faca, elajoga o peso do corpo sobre mim e a facapenetra mais fundo. O sangue mancha a mim e a ela. De dor abro aboca para engolir o ar, mas é um gemido arrastado com gosto de san­gue que desce pela minha garganta.

Meu coração pára de bater. Não sinto mais a dor. Imóvel. Não con­sigo me mexer. A morte toma conta de mim.

Meu rosto toma a forma da morte: olhos cavos, abertos, à esperade quem venha fechá-Ios, perdem o brilho. Sobre eles se cria comoque uma tela viscosa, quebradiça, eu nada vejo.

A respiração abandona meus pulmões secos.As marcas do cadáver: meu nariz torna-se mais pontiagudo do que

era, com uma orla enegrada, os pêlos das narinas cobertos de umapoeira esbranquiçada. Não sentirei mais o cheiro da mulher amada enão tenho querer.

Meus lábios pendem, a boca se abre e não se fechará mais, minhavoz não se fará ouvir e eu nada escutarei.

O sangue não circula mais nas minhas veias, o calor do meu corpose esvai para sempre. Minha pele seca e toma a cor cinza, fica desa­gradável ao tato: mas quem vai querer me tocar? Pelo sangue escor­rido, manchas negras cobrem minha pele.

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Os músculos começam a enrijecer, o que vaI dificultar quandoforem vestir meu corpo.

Meu cérebro não pensa mais. Pensa no nada.o nada

nadaada

daa

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() misteriosohomem ..macaco

Como tudo comecou•

~Eu ia sozinho cantando: i

Ta-tu PebaTatu Pe-rebaTa-tu bolaTatu en-rola

Eu ia sozinho mais o cão. Segurava uma 28 de chumbo e nas cos­tas uma Winchester 22, também pendurado o bornal com os cartu­chos dos dois calibres, a garrafa com café adoçado e pão de milho paramim e o Divino, bom veadeiro, mas também de muita serventia paraoutras caças, prestimoso que era.

De vez em quando puxava o facão da bainha presa na cinta paraabrir caminho na mata densa, fechada. Mata escura, sombreada pelascopas de muitas árvores tapadoras, de raro deixando entrever umanesga de céu muito azul sem nuvens.

Já ia por volta das desoras e eu ainda não tinha caçado nada. Ca­lorão da mata, a língua do Divino sempre de fora, também eu suava,camisa molhada grudada no corpo. Mais de uma vez tive de atorar cipócom o facão para beber a água de dentro dele e dar para o cão, tantaa sede de nós dois. Meu rosto preto daquelas abelhinhas miúdas, pre­tas que nem mosca. Ao cão não incomodavam por causa do pêlo, masem mim, que não usava barba naquele tempo, me cobriam a cara su­gando meu suor pegajoso, tirando dele alimento para fazer seu melazedo. Não adiantava espantar as bichinhas, se não picavam, tambémnão arredavam dali, máscara preta cobrindo minha cara e fazendo au­mentar o calor sentido.

Depois de muito andar chego numa clareira, que refrigério! Mesento num toco e vou tirando a garrafa do bornal, quando ouço unsguinchos ardidos. Era um bando de macacos que, lá no alto, faziama travessia de uma peroba para um ipê vizinho. Coisa até interessan­te de se ver, iam caminhando pelo galho pelado da peroba bem até apontinha, e dali um de cada vez dava um salto, braços levantados, atéo ipê. Pendurado pelo rabo num galho mais alto do ipê, um deles apa­nhava o companheiro no ar e, balangando-o, atirava-o são e salvo numgalhão grosso do ipê, de donde seguiam caminho. Se um errasse osalto, ou se o outro não o agarrasse em tempo, ele caía e ia se esbor­rachar no chão lá embaixo. Bicho danado de engenhoso, o macaco,nisso até se parece com gente.

Não sou chegado a carne de macaco, acho muito seca, musculo­sa, sabor azedo, mas como eu não tinha comido nada até aquela hora,

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catei a Winchester e me levanteijá apontando para o alto. Divino nemreparou na cena, entretido que estava com o seu descanso. Cachorroé bicho mais preocupado com as coisas da terra, o que se passa lá emcima não lhe interessa, senão já estaria latindo feito um condenado.Já o macaco, lá no alto, sempre se preocupa com aquilo que se passano chão.

Quando apontei a arma quase todos já tinham passado, sobravasó um retardatário no galho da peroba. Aquele outro que estava pen­durado pelo rabo no ipê, quando me viu, num átimo pulou para omeio das folhagens e sumiu da minha vista. Mirei então o retardatá­rio, sem o companheiro que fugira não tinha como pular para o ipê.No comprido galho onde estava não tinha ramagem para se esconder,e o tempo era pouco para ele correr até um lugar mais coberto: euatirava antes. O que fez ele quando se viu perdido? Se meteu a gritare pular de desespero. Não morreu ali na hora porque não atirei logo,me distraí, rindo que estava de suas macaquices.

Quando o bicho se tocou de que eu ia mesmo atirar, pegou das cos­tas um macaquinho bem pequeninho e o levantou nos braços para memostrar. Vi logo que era uma fêmea com sua cria recém-nascida. Gri­tou, se ajoelhou e se pôs a chorar - macaco é quase como gente -,uma mãe me pedindo para eu não matar seu filho.

A gente faz muita maldade na vida, e na hora não percebe. Eu,ali, fiz uma que fui pagar bem caro depois, caro demais. Mas na oca­sião não pensei em nada, e dei com o dedo no gatilho da Winchester,Bang. O que voou de pássaro com o barulho! Tiro certeiro: a macacadespencou lá de cima - queda demorada de tão alta - e veio se es­tatelar no chão da clareira. Só então o Divino se deu conta e correu

latindo para a caça estendida, morta. Corri junto, queria ver. Chegueiantes, e foi bom porque salvei a presa que o cão ia comer. Coisas demãe que só Deus explica: não é que mesmo morta a macaca deu umjeito de proteger a cria?! Ela caiu segurando o filho e, quando bate­ram no chão, o corpo dela amorteceu a queda. Morreu bem morti­nha, mas salvou o filho.

Quando percebi que o cão, nervoso, rosnando, ia abocanhar o fi­lhote, dei um pontapé no focinho, Passa, Divino!, e protegi o bichinhocom as minhas mãos. O cão perdeu o filho mas ganhou a mãe, e aíabriu a bocarra e, numa sentada, devorou o cadáver morto da maca­ca, só deixou pele peluda e osso grande, o resto mandou para as tri­pas e ainda ficou lambendo o sangue do chão.

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o macaquinho tremia e chorava nas minhas mãos. Magrinho emiudinho, pensei, mas vai me servir de janta. Coloquei o bichinho den­tro do bornal e com o calorzinho ele parou de tremer, aos poucos seacalmou, acho que até dormiu quieto, esquecido da morte da mãe. Eeu peguei o caminho de casa.

Na volta perdi o Divino. Caminhou uns tempos ao meu lado, nor­mal, depois parou e devolveu tudo o que tinha comido, vômito verde,fedido. Aí passou a caminhar inquieto, parando a toda hora para semijar, sem levantar a pata, que nem uma cadela. Todo nervoso, co­meçou a latir e a correr em roda tentando morder o próprio rabo. Derepente, deu uma guinada e disparou ganindo, e sumiu no mato. Cha­mei, chamei, mas ele não voltou; ainda pensei em correr atrás dele,mas a mata era muito fechada e desisti. Nessa hora o macaquinho pôsa cabecinha para fora do bornal e espiou, olhinhos bem abertos, a mimme pareceu que ele até estava dando risada. Percebi então que a quedanão o tinha afetado.

Chegado ao rancho, contei a caçada pra minha mulher e mostreio macaquinho. Seu malvado, ela me repreendeu. Isso não é coisa de cris­tão fazer. Achou bonito o bichinho: Tadinho, deve estar com fome, o pe­queno órfão!. E se tomou de dores pelo macaquinho. Foi tirar leite dacabra, e de um vidrinho com um chumaço de pano no gargalo apron­tou uma mamadeira. O danadinho se achou! Era até bonito de ver

aquele toquinho feioso, agarrado aos peitões da minha mulher, toman­do seu leitinho adoçado com rapadura, chupando a mamadeira.

E como mamava, o desgraçadinho! Não havia leite que chegasse.Não fosse, um dia depois, o cabritinho ter morrido de picada de cobra,não sei se a cabra ia ter leite suficiente para o sustento dos dois. Ma­mava tanto que dali a uns dias já estava forte e grandinho. Não sei sefoi pelo leite de cabra, mais forte do que o leite da macaca sua mãe,ou se foi pelo fortume do açúcar de rapadura, só sei que lhe caiu quasetodo o pêlo, deixando à vista sua pele enrugadinha, parda, mosquea­da. E daí ficou ainda mais parecido com gente humana.

Minha mulher andava com ele para cima e para baixo, se tomoude amores pelo bichinho. Não largava dele nem para cozinhar, enquan­to segurava o danadinho com uma das mãos, mexia nas panelas coma outra. Para cuidar da criação e trabalhar na roça, levava o macaqui­nho atado nas costas. Ele bem que gostava, ficava o tempo todo agar­rado à minha mulher, como se ela fosse a mãe dele, a falecida. Dor­mia na nossa cama, os dois abraçados como mãe e filho.

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Tinha um pintão enorme, cabeça de prego, e para esconder essavergonha minha mulher até fez umas fraldas, que trocava sempre quemolhadas. Era muito dengue para uma criaturinha da mata, mas eunão ligava. Nossa filha já andava com doze anos, viçosa, bonita, car­regava as tristezas próprias da idade, vivia ensimesmada, já não eracompanhia para a mãe. Nosso filho, Pedro, naquele tempo andava bus­cando ganhar a vida na cidade e quase nunca vinha nos visitar. Mu­lher é bicho diferente, tem suas coisas, suas manias, e desde que nãoincomode os outros o melhor é deixar. O carinho dela pelo macaqui­nho não perturbava ninguém, nem a mim nem à nossa filha. Se issotrazia alegria para ela, se diminuía sua solitude naquele rancho per­dido no meio do mato, por que se incomodar, se existem tantas ou­tras coisas para a gente se preocupar nesta vida que Deus nos deu?

Não é mesmo?

Assim foi indo até aquela noite da tempestade. Foi logo depois dajanta,já muito escuro começou um vento forte, assobiador, e despen­cou uma chuvarada forte como nunca se viu antes, um verdadeiro di­lúvio. Um frio úmido começou tão de repente que tive que me enro­lar no cobertor. Era um relâmpago atrás do outro. A mulher queimouas palmas bentas e rezava assustada para Santa Bárbara. A menina tinhapavor de raio, se abraçou a mim fechando os olhos contra o meu peito,e assim ficou. Só o macaquinho parecia não se incomodar com o tem­poral, dormia o sono dos justos bem grudadinho na minha mulher.

Foi a noite do cão. O medo não deixava ninguém dormir, nemsei como as águas não levaram embora o meu rancho, as horas forampassando e nada da chuva querer diminuir. Até que se deu o aconte­cido: na madrugada, nós três ainda acordados, assustados, molhadosaté os ossos pela chuva que caía pelos buracos do teto, e não é que derepente o macaquinho acorda, abre os olhinhos, se levanta, caminhan­do vai até o fogão, risca um fósforo e acende a lamparina? Na horaaté que a gente não estranhou esse seu ato. Afinal, macaco é bichoesperto, achamos que o que ele fez não tinha sido nada mais do queimitar um gesto que tantas vezes nos viu fazer. O de causar espantoera ver a chama da lamparina, que, naquela ventania toda, se manti­nha reta, firme, bem luminosa. O macaquinho veio se chegando pertode nós trazendo a lamparina acesa, nos olhos, bem nos olhos, e faloucom um vozelrao grosso:

- Eu me chamo João da Silva!Cruz credo, Ave Maria, te esconjuro! Já vi muito animal inteligente,

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mas nunca dantes nem eu, nem ninguém, viu bicho falar, ainda maismacaco. Foi um susto só: a menina começou a chorar de medo, o quei­xo da mulher caiu lá embaixo, os olhos arregalados, nem sei se de es­panto ou terror.

- Eu me chamo João da Silva!Dito isso, tirou o pinto para fora da fralda e, rindo de gargalhar,

mijou quase ao pé da gente no chão de terra batida, mijou tão forteque abriu um buracão.

No exato momento da mijada, caiu um raio tão forte, tão estron­doso que alumiou o mundo todo. Tão forte que a noite clareou comodia e derrubou o flamboyant que meu avô plantara na frente do ran­cho, queimando num fogo que nem a chuva conseguiu apagar, aqui­lo que talvez fosse a única beleza daquela terra.

Eu me chamo João da Silva... foi assim que tudo começou. Foinessa noite amaldiçoada que ele se revelou, que se fez homem aque­le macaco amaldiçoado que em maldita hora eu fui trazer para den­tro da minha casa. Esse macaco que fez o padre enlouquecer no diado seu batizado. Que na escola onde foi aprender as primeiras letrasatazanou tanto a professorinha que ela, coitada, abortou. Esse maca­co que sempre tratei como filho e que abusou da inocência da minhafilha, sua enteada, e fez mal para ela, matando minha mulher de des­gosto. Que, com suas artimanhas diabólicas, fez meu filho Pedra pagarpor ele, até hoje cumprindo pena na cadeia por um crime que o ma­caco cometeu. Que de tanto me judiar, me transformou no velho alei­jado que hoje eu sou. Tanta sacanagem, tanta maldade, tanta coisaruim esse João da Silva fez, e ainda faz em suas andanças pelo mundo,que se eu fosse contar levava a vida inteira e ainda não chegava ao fim.

Não gosto nem de lembrar dos crimes hediondos que esse ser ma­ligno cometeu. Mas, se você não tiver medo de ouvir e, para se preca­ver, quiser saber de toda a verdade sobre esse homem-macaco, um diaeu me armo de coragem e te conto tudo.

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Mistério~ .

maglco

Olhem fixamente esta carta!

Viram bem? É um sete de paus! Correto?

Errado! É um rei de ouros.

Óóóós de surpresa e espanto e mesmo alguns risos nervosos. So­mente algum tempo depois é que os espectadores começaram a baterpalmas assombrados: Eu via um sete e ele se transformou num rei, na fren­te dos meus olhos!. O Mágico domina sua platéia e não lhe dá folga parapensar, num gesto rápido desvira o Rei de Ouros, que tem seguro pelopolegar e o indicador, e atira-o em direção das mesas onde estão osespectadores sentados. Da ponta de seus dedos, do nada, vão surgin­do outras cartas que ele vai atirando: noves, setes, três, reis, damas,valetes ... Cartas de todos os naipes.

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o Mágico domina, esbelto, rosto anguloso, bigodinho preto bem­cuidado, cabelos pretos bem curtos esticados por brilhantina, forman­do um pequeno bico no meio da testa. Impecavelmente vestido emsua casaca preta brilhante, justa no corpo, mais elegante que muitosdos espectadores em seus smokings, summers e uniformes de gala.

O pianista tenta acelerar a música que toca, "Caravan" de DukeEllington, para colocá-Ia no ritmo em que as cartas vão surgindo dasmãos do Mágico: cravo branco na lapela de cetim da casaca preta bri­lhante, peitilho engomado liso branco brilhante, abotoaduras de ouromaciço, gravata-borboleta do mesmo cetim preto brilhante da lapela,meias pretas de seda, sapatos pretos de verniz brilhante, o rosto bran­co cortado em cima dos lábios por um bigodinho reto preto. Cortinapreta brilhante ao fundo do pequeno palco. As luzes de cena criamuma aura branca brilhante em torno da figura esguia do Mágico e ofus­cam a vista dos espectadores enlevados, surpresos, encantados, olhosfixos na ponta dos seus dedos, de onde as cartas surgem do nada. Ochão do pequeno palco e parte do salão onde estão as mesas se co­brem de cartas: setes, três, reis ...

O palco em semicírculo é uma pequena elevação ao fundo do salão.Na obscuridade, algumas mulheres ousam desviar os olhos da pontados dedos do Mágico para se fixar na assistente vestida de odalisca, co­berta de jóias douradas como o ouro do seu cabelo comprido solto,loiro natural. Que idade terá ela?, a pergunta mais perguntada. As bri­lhantes luzes do palco em seu corpo bem torneado quase despido nafantasia de odalisca, pernas longas, pele sem nódoas; a boca carnudabem traçada coberta de batom vermelho, a maquiagem acentuada, otraçado do rosto, o porte esbelto, fazem dela a mulher mais formosano salão. Talvez, fora das luzes brilhantes do palco, de roupa comum,sem os sapatos de salto alto bem fino, talvez não seja tão alta, nem tãomoça, nem tão formosa. Talvez se iguale em beleza às mulheres que ainvejam, que assistem ao espetáculo nas mesas do salão, toalhas delinho. Algumas moças, algumas velhas, todas em seus vestidos de noitedecotados, algumas com chapéus, algumas cobertas de peles legítimas,algumas com luvas. Umas ao lado dos maridos, algumas ao lado dosparentes, outras ao lado dos amantes. Figuras da sociedade, damas decaridade, debutantes, personalidades do mundo das artes, embaixado­res, industriais, oficiais das três armas, membros do governo ...

Enquanto as palmas ainda ecoam pelo número das cartas, a oda­lisca traz um grande aquário redondo e o coloca sobre a mesinha de

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longos pés de metal brilhante, no centro do palco. Três peixes dou­rados de longas barbatanas, caudas transparentes douradas, intranqüi­los na água agitada do grande aquário redondo. Na pequena pausa,enquanto o Mágico cobre o aquário com um pano preto brilhante,decorado com aplicações de meias-luas e estrelas de lantejoulas pra­teadas, garçons solícitos, em suas calças pretas paletós brancos grava­tas-borboleta vermelhas, aproveitam para servir champanhe francêstrazido em baldes de metal branco brilhante e, para algumas mesas,litros de uísque escocês e sifões em garrafas bojudas de vidro opaco,trançado com finos fios de metal prateado.

O Mágico faz gestos ondulantes com sua vare ta fina preta. Depois,entrega-a para a assistente e com as mãos suspende o aquário envol­to com o pano preto. Caminha lento para a platéia, com muito cui­dado para não entornar a água do aquário coberto, e, subitamente,num gesto brusco atira a forma do aquário que tem nas mãos em di­reção aos espectadores. Com o susto, todos jogam o corpo para trás,com medo de se molhar: o Mágico tem nas mãos apenas o pano pretodecorado com estrelas e meias-luas prateadas, o aquário desapareceu.Depois do susto, as palmas da platéia.

O Mágico não dá tempo para a platéia respirar, ainda em meio àspalmas a bela assistente loira vestida de odalisca traz sobre uma me­sinha com rodas uma grande caixa dourada. Pela frente, o Mágico abrea caixa puxando uma tampa presa por dobradiças na parte de cima.Ajuda a assistente a subir e a entrar agachada na caixa, fecha-a e passaem volta uma corrente de metal dourado, lacrando-a com um cadea­do dourado cuja chave guarda no bolso. O Filho do Presidente comen­ta com um rapaz que está ao seu lado: Já sei com quem ele se parece, como Mandrake do gibi!

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Ao lado do Filho do Presidente, a Modelo de Capa de Revista ouvee não entende a piada.

O Mágico agora segura sete espadas brilhantes e, com elas, trans­passa a caixa dourada onde está presa sua assistente. Antes, joga paracima sete véus de tule de sete cores e corta-os ainda no ar, para mos­trar que as espadas estão bem afiadas. Uma, duas, três, quatro, cinco,seis, enfia as espadas na caixa, com cuidado e muita força, fazendo aspontas saírem do outro lado. Chegou a vez da sétima espada, a caixaestá toda transpassada. Se a assistente ainda está lá dentro, já estarámorta rasgada por seis pontudas lâminas afiadas.

Quando a ponta da sétimla espada surge na frente da caixa dou­rada,já vem suja de sangue vermelho pegajoso quente. O Mágico, quese acha atrás da caixa dourada, não vê o sangue que começa a escor­rer através do buraco aberto pela espada: é pelo burburinho da pla­téia assustada que ele percebe que alguma coisa saiu errada no tru­que. Alguns espectadores nervosos se levantam e procuram chegarmais perto do palco. A música parou, o pianista também se levantapara ver o que está acontecendo.

Percebendo a agitação, o Mágico vai para a frente da caixa dou­rada e, assustado, toca com a mão direita no sangue, que agora correabundantemente. Incapaz de esboçar qualquer reação, olha horrori­zado para sua mão manchada de sangue e, como um autômato, diri­ge-se com passos inseguros para a platéia, que agora está toda em pé,sem saber o que fazer. Em seu andar cego, o Mágico choca-se com oFilho do Presidente, deixando impressa uma mão de sangue no pei­tilho branco, impecavelmente gomado, de sua camisa. Nem o rapaznem seus guarda-costas sabem como reagir.

É o próprio Mágico quem resolve a situação, voltando ligeiro parao palco. Toma a chave dourada do bolso, abre rápido o cadeado, re­tira a corrente e abre a caixa dourada, que estaria vazia não fosse umvéu azul transparente caído no chão, resto da fantasia da odalisca.

A música recomeça, o Mágico retorna rápido para a platéia e põeo véu azul sobre a mancha de sangue no peitilho da camisa do Filhodo Presidente. Alguns gestos circulares com a vare ta mágica, e quan­do ele puxa o véu azul a admiração é geral: a mancha de sangue de­sapareceu como por encanto ante os olhos de todos. Sorrindo, o Má­gico mostra a sua mão também limpa.

A platéia compreende tudo, foi apenas mais um truque, mas como

ele fez isso?, e entre exclamações de admiração, estrugem palmas que

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o Mágico agradece curvando-se num gesto de humildade, para em se­guida recolher-se aos bastidores.

Os espectadores sentam-se novamente, os garçons retomam o ser­viço trazendo bebidas, o conjunto musical assume rapidamente seulugar no palco e começa a tocar música de dança. Alguns pares se en­caminham para dançar na pequena pista, entre eles o Filho do Presi­dente com a Modelo, sua companheira de mesa. O comentário geralé sobre as habilidades do Mágico, nunca ninguém havia visto truquestão assombrosos. Porém, ninguém notou que a assistente vestida deodalisca não reapareceu para agradecer os aplausos. Foi vista pela úl­tima vez quando entrou na caixa dourada e se pôs de cócoras, enquan­to o Mágico fechava a tampa.

O Mágico dirige-se agora para o corredor no fundo do palco, ondehá quatro camarins, todos do lado direito, todos com uma estrela dou­rada na porta e identificados pelos números 1, 2,3 e 3A. Ele precisasaber, com certeza, qual das portas abrir. Uma delas se encontra cha­veada, é a do camarim onde o cantor francês, que entrará em cenalogo mais, aspira cocaína. Outra fecha um camarim às escuras que nãoserá usado esta noite. Outra, quando aberta, mostrará a assistente deroupão, esperando a volta do Mágico para, depois de um prolonga­do beijo, comentarem a repercussão do show. Finalmente, abrindo­se a última porta encontra-se a assistente ainda vestida de odalisca, es­tendida num pequeno tapete azul, morta ensangüentada pelascatorze perfurações por onde entraram e saíram as pontas das setesespadas.

O Mágico está parado no início do corredor. Ele hesita, sabe quetem que abrir uma única porta mas não sabe qual, tem que ser a docamarim onde a assistente está viva, à sua espera. Qualquer uma dastrês outras que abrir e o truque não terá dado certo, e ele terá de pres­tar contas àjustiça pelo assassinato. Iguais são as portas com a estreladourada, diferenciadas apenas pelos números de 1 a 3A , e somenteuma pode ser aberta, aquela que o levará aos braços da assistente. Aber­ta, qualquer uma das outras o conduzirá à prisão e à morte, o preçoque terá de pagar por não ter sabido usar com sabedoria seus poderesmágicos. No corredor, o Mágico hesita diante de qual porta abrir.

E você, sabe qual a porta certa? É uma mágica. Não posso revelá­Ia porque fere a ética - é vedado a um mágico revelar seus truques,pois prejudicaria os colegas: que graça teria um truque que já se sabecomo foi feito?

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Ao executar a mágica destas páginas, eu passei a você todas as in­formações para abrir a porta certa: a 1, a 2, a 3 ou a 3A. É um truqueentre eu e você. A da vida ou a da morte? Você tem que saber. De

minha parte, executei o truque bem devagar, bem à sua vista, com exa­gerado excesso de detalhes. Fiz questão de dar indicações para que vo­cê percebesse, claramente, onde está a chave do segredo. Vamos, vocêtem todas as condições de abrir a porta certa: pense, escolha, abra.

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A cadeira do diaho- Um mistério

Não vejo como isto possa interessar a você.A cena representa um laboratório de alquimista. À direita, um ar­

mário baixo de portas envidraçadas com muitos livros velhos encader­nados, tratados de magia alquímica, papéis amarelecidos com encan­tamentos, exorcismos e pentagramas desenhados, retortas, provetas,alambiques, filtros, esferas de vidro azul e outros utensílios mágicos.Ao lado desse armário, pendurada na parede do fundo, uma panó­plia com algumas armas brancas, espadas e punhais remontadas porum elmo. À esquerda, meio voltada para a platéia, uma cadeira de es­paldar com braços, estofada de veludo vermelho.

Mas como pode, alguém que vive nos dias de hoje, num país preocupado comos terríveis problemas sociais pelos quais atravessamos, se interessar por ummistério levantado pelo célebreAlexander Hermann (e, segundo alguns auto­res, pelo não menos famoso Steward Chamberlain) em Portugal, na cidade doPorto, em 1887?

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Alguém bate à porta do gabinete. O Alquimista, vasta barba bran­ca, vestido com uma longa túnica azul cerúleo brilhante onde vemos,bordados a ouro, rodeados por estrelas prateadas, todos os planetasconhecidos até então, a cabeça calva coberta por comprida e cônicamitra, das que usavam os antigos sacerdotes caldeus, abre a porta efaz o Visitante entrar. Homem de uns trinta anos, cerrada barba preta,olhos pretos perscrutadores, o Visitante revela-lhe a causa que o trazali, àquele obscuro gabinete: a busca de uma resposta, que não en­controu até agora, para um angustiante problema de ordem pessoalque muito o aflige.

Não entendo como alguém acostumado comfrases curtas, de textos ligeiros, con­segue ainda se concentrar e acompanhar longas orações que reportam feitospassados acontecidos com personagens inomináveis, dos quais a história nãoguardou registro algum e que não têm interesse aparente para os dias atuais.Você não se inclui nesse caso, não é?

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o Alquimista, sabendo que o Visitante carrega nos bolsos umagrande quantidade de dinheiro, maliciosamente procura logo conven­cê-Io a descansar e assentar-se na cadeira estofada, a fim de observaruma grandiosa e maravilhosa experiência científica que abrirá suamente para a compreensão de arcanos herméticos que muito o aju­darão na solução dos problemas que o afligem. Tão logo o Visitantese acomoda na cadeira estofada, o Alquimista degola-o com uma agu­çada espada que tomou da panóplia na parede.

Estarão todos acostumados a escritores de vocabulário parco ou a jornais e re­vistas ilustradas com textos breves de palavras fáceis? Será difícil entender o

significado de certas palavras usadas para descrever objetos de um mundo ao

qual não se pertence? Uma ajuda: panóplias são aqueles escudos nos quais secolocam diferentes armas e com os quais se adornam as paredes.

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Após a degolação, enquanto o ensangüentado corpo decapitadoainda perneia, o Alquimista toma a cabeça cortada e coloca-a em cimado armário baixo de portas envidraçadas e volta para revirar os bol­sos e roubar o dinheiro do Visitante assassinado. Nesse momento, aCabeça Cortada põe-se a vociferar, angustiada e revoltada, contra oAlquimista, seu assassino e ladrão. É bom ressaltar que, antes de con­sumar o odioso crime, o Alquimista, sob o pretexto de protegê-Io dasemanações dos produtos químicos utilizados na maravilhosa experiên­cia que mostraria dali a instantes, cobriu a roupa do Visitante com umagrande toalha branca e colocou-lhe na cabeça um elmo medieval, quetambém retirou da panóplia. Na verdade, a toalha serviu para reco­lher o sangue derramado; o elmo, viseira cerrada, para marcar o lugarcerto do corte e impedir a vítima de pressentir o golpe. De cima doarmário, a voz irada da Cabeça Cortada roga pragas contra o crimi­noso Alquimista.

.b

Não sei como pode alguém, habituado a textos jornalísticos que exaltam per­sonagens reais destes tempos de crise (povos em luta, líderes políticos, chefes deEstado, homens de negócios, artistas ... ) e acostumado a ver a imagem delesmovendo-se nas telas da televisão ou fixada em fotos coloridas nos jornais e

revistas de grande circulação, não sei como pode ainda se emocionar com umasangrenta ocorrência entre um falso mago e seu ingênuo cliente, acontecidahá mais de um século num outro país.

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o Alquimista arranca dos bolsos do ensangüentado decapitadonotas e moedas de ouro. Ao ver a alegria feroz com que o assassinosaboreia o êxito de sua criminosa aventura, a Cabeça Cortada, pelepálida graças à perda de sangue contrastando com a barba negra, lá­bios roxos da morte, vermelhos olhos abertos, exclama com voz rou­quenha, quase sem forças, de ódio:

Que Satã te carregue para o mais negro dos infernos!

Nesse momento, de súbito, numa estrondosa explosão de fuma­ça, uma grande chama negra surge do chão. Nela aparece um terrÍ­vel demônio com chifres, vestido com sua infernal roupa vermelha,e, abraçando-se ao Alquimista, some com ele pelo solo, ao som de suaestrepitosa gargalhada. Enquanto isso, o pano cai vagarosamente.

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Quem está acostumado a encontrar explicações científicas sobre o que leu, empoucas linhas, segundo a dialética do pensamento dominante, talvez espereque eu proceda de maneira semelhante aos autores de sua predileção, que nãosó explicam os acontecimentos com palavras claras, como ainda acrescentamàs explicações respostas para os angustiantes problemas que afligem a huma­nidade. Confesso que minhas capacidades não chegam aos pés desses autores.Não vou, é claro, recomendar a leitura de A propos de Ia sugestion men­tale, de Charles Richet, ou Sur les mouvements musculaires inconscientsen rapport les images, de Gley, ambos editados pela Société de Biologie, res­pectivamente em maio ejunho de 1884; e nem mesmo A cadeira de Satã, deDavid de Castro, editado em português por Lugand e Geneloux, em 1888, porserem obras há muito esgotadas e, portanto, de difícil aquisição nos dias de

hoje. Pretendo, isto sim, resolver - espero eu - alguns problemas técnicos queexpliquem os misteriosos fatos acontecidos entre o Alquimista e seu malfada­do Visitante, como se verá adiante.

Para o perfeito entendimento de A cadeira do Diabo, torna-se ne­cessário:

lº) Uma cadeira de espaldar cujas portas devem ser furadas daforma que se vê no desenho abaixo.

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Esta cadeira tem externamente as costas forradas de tecido elás­

tico pintado, a imitar o padrão do estofo geral. As costas da cadeiraassim constituídas muito auxiliam o comparsa quando precisar ocul­tar a cabeça na cavidade, a qual deve ser coberta por uma tênue ta­buinha apenas suspensa pela extremidade superior e igualmente pin­tada à imitação do estofo.

A cadeira, aparentemente, deve mostrar o aspecto do desenhoaCIma.

2º) Uma espada.

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3º) Uma esponja embebida em tinta vermelha para simular san-gue.

4º) Uma toalha branca grande.5º) Pólvora seca.6º) Dois homens parecidos (comparsas), semelhantes por natu-

reza ou por artifício.7º) Um terceiro homem para vestir a fantasia vermelha de diabo.8º) Uma bela mulher alta de lindos cabelos cor de mel; ralos pêlos

púbicos num tão volumoso monte de Vênus que só se lhe possam aca­riciar com as duas mãos em concha; boca carnuda; olhos glaucos; ancasanchas; seios bastos com bicos róseos; e pele clara. Que tão exata sejaque, caso se lhe traçasse uma linha reta ao meio de seu formoso corpo,as duas partes, a esquerda e a direita, fossem simétricas tanto que umaigual à outra seria, em sua perfeição.

9º) Um elmo aberto na parte de trás, tal como mostra o desenho,e cujo gancho serve para engatar no bordo superior das costas da ca­deira, quando estiver ele enfiado na cabeça do visitante. Este elmo deveser sempre mostrado de frente, para que ninguém veja a abertura eo gancho que tem atrás.

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lOº) Um armário com portas envidraçadas (p) e aparência regu­lar, mas encerrando ao centro um ângulo de espelhos (g), conformeplanta reproduzida abaixo, que deixa na parte de trás (H) espaço fol­gado o suficiente para esconder, desde o começo, um comparsa pa­recido com o visitante. O ângulo de espelhos reflete as prateleiras eos lados internos (K) do armário, pintados de negro de modo a man­ter ao olhar a ilusão de profundidade, e não pode ser descoberto, emvirtude da distância de quem o vê, dos muitos aparelhos (frascos, re­tortas, esferas de metal etc.) que as prateleiras contêm e da obscuri­dade reinante no gabinete do Alquimista.

B

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c

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···········__··--··r D

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Agora pratiquemos.Quando sobe o pano, o Alquimista está absorto em seus estudos

necrológicos. Batem à porta e entra o Visitante. O Alquimista conven­ce-o a se sentar na cadeira mecânica, introduz-lhe na cabeça o elmoadrede preparado e estende a toalha sobre o corpo dele. Em segui­da, cerra a viseira e busca uma espada na panóplia de onde havia ti­rado o elmo. É nesse instante que o comparsa que faz as vezes do Vi­sitante se empurra contra o pano elástico da cadeira e enfia a cabeçapelo alçapão (cuja portinhola, pelo seu peso, volta a ficar vertical),deixando-o visível apenas do pescoço (coberto pela toalha) para baixo:como o elmo está com a viseira cerrada, imagina-se que a cabeça aindaestá ali dentro. Então, o Alquimista põe a mão esquerda na beira doelmo e aplica com a direita o golpe fatal, ZÁS!, e era uma vez o Visi­tante. Usando a mão esquerda, o Alquimista espreme a esponja, queesguicha sobre a toalha como um jorro de sangue, enquanto o Visi­tante finge os estertores da morte. Em seguida, o Alquimista atira aespada ensangüentada no chão e, trêmulo, vai colocar o elmo em cimado armário. Escusado dizer que o segundo comparsa, que já estava es­condido dentro do armário, enfia a cabeça pelo alçapão apenas o Al­quimista pousa o elmo ali. Junto ao cadáver decapitado, o Alquimis­ta, exultando de contentamento com o dinheiro que roubou, é desúbito horrorizado pelas ameaças que a cabeça, de cima do armário,cavernosamente lhe dirige. Então, através da fumaça e das chamas pro­vocadas pela explosão da pólvora seca - tal como o leitor já deve tervisto nas cerimônias de umbanda -, surge, pelo alçapão do palco, oterceiro comparsa fantasiado de demônio, e, com gargalhadas sinis­tras, arrasta o Alquimista pelo mesmo alçapão. As cortinas se fecham,encerrando o espetáculo. É o fim de tudo.

FIM

E quanto ao sentido do que foi narrado, à mensagem, ao "o que quer dizerisso?". Eu, que talvez nem mesmo saiba o sentido do que escrevi, tenho quedeixar ao paciente leitor a tarefa de achar um sentido para a vida e a mortetambém dos personagens desta história.

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Um mistério notrem ..fantasma

o fato aconteceu na fria noite de sábado no Parque de DiversõesAlvorada, na mesma noite em que o homem chegou na Lua, 19 dejulho de 1969.

Por volta das dez e quinze da noite, ajovemJucélia Ramos, de 16anos de idade, embarcou no trem-fantasma em companhia de Astol­fo Dagoda, 17 anos, a quem conhecera naquela tarde no Passeio PÚ­blico. Quarenta e cinco segundos depois, o carrinho deixava o negrotúnel trazendo apenas Astolfo Dagoda: sua companheira havia desa­parecido misteriosamente durante o percurso.

Jucélia Ramos nunca mais foi encontrada, nem foi encontrada ne­nhuma explicação razoável para seu desaparecimento, constituindoo fato, até hoje, um dos grandes casos insolúveis de nossos arquivospoliciais. Além da polícia, que realizou profundas investigações, seguin­do exaustivamente todas as pistas levantadas, particulares, a impren­sa, entidades estudiosas de fenômenos paranormais e segundo algunso próprio Serviço de Informações do Exército estudaram o caso, nãochegando a nenhuma conclusão .

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Retrato falado de Jucélia Ramos

Voc~ conhece esta mo7a?

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Desde os anos 50 que o Parque de Diversões Alvorada está mon­tado no início da avenida João Gualberto, em frente do Passeio PÚ­blico de Curitiba.

O trem-fantasma é uma construção retangular de vinte metros defrente por dez metros de fundo. Sua fachada, imitando uma estaçãoferroviária, ostenta grosseiras pinturas cujo colorido berrante represen­ta cenas macabras: loiras semidespidas sendo atacadas por vampiros,lobisomens, múmias e outros monstros. Do tamanho de um homem evestido de ferroviário, um boneco mecânico de cera toca uma sineta debronze sinalizando a partida dos carrinhos de ferro, que fazem as vezesdo trem e carregam dois passageiros cada.

O trem parte, entra na escuridão das paredes de madeira pinta­das de preto e logo já vira, entrando veloz por um túnel reto em di­reção à parede do fundo, onde faz uma inesperada curva de noven­ta graus e arranca gritos de susto dos passageiros, já fazendo uma novacurva e entrando em outro túnel na direção da parede da frente. Essascurvas são a graça do negócio, pois aumentam a sensação de desequi­líbrio e velocidade. Os carrinhos circulam num monotrilho preso aochão. Em seu trajeto, vão acionando as diversas figuras fantasmagóri-

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cas e ligando, por instantes, umas pequenas luzes que iluminam essascenas macabras, nas quais aparecem bonecos de cera em forma de ca­veiras, enforcados, múmias e monstros de vários tipos, dando a impres­são de que o trem vai se espatifar contra eles.

Numa das paredes do fundo há uma teia com uma enorme e repul­siva aranha negra. No túnel desta cena ficam suspensos no escuro vá­rios fios de linha e aranhas de borracha, bem na altura da cabeça dospassageiros. Isso traz a desagradável sensação de que estamos rompen­do enormes teias com aranhas que se enroscam em nossos cabelos.Num pequeno trecho do percurso o carrinho sai do túnel, ficando porinstantes à vista do público antes de mergulhar novamente na escuri­dão. O trem-fantasma sempre atrai um grande número de curiosos,que vibram ao ver a expressão assustada dos passageiros e ao ouvir seusgritos, que mesmo o barulho dos carrinhos correndo nos trilhos nãoconsegue encobrir.

Uniformizado de chefe da estação, apenas um funcionário do par­que se encarrega de todo o serviço: recolher os bilhetes, colocar ospassageiros no trem, e fixar a barra de segurança que os impede decair do veículo em movimento. Empurra o carrinho para dar o im­pulso inicial e, terminado o tr~eto, aciona a trava que o faz parar eliberta os passageiros.

Mesmo nas horas de maior movimento, nos fins de semana, o"chefe do trem" solta apenas um carrinho de cada vez, nunca deixan­do mais de dois circulando no tr~eto, o que poria em risco a segu­rança dos passageiros. Os 45 segundos desta viagem confiável, porémcheia de sustos, sempre serão uma das maiores atrações de um par­que de diversões de qualidade.

Conforme o depoimento de Astolfo Dagoda (inquérito nº 365/69da SSP-PR), na tarde de sábado, 19 de julho de 1969, por volta das qua­tro da tarde, ele entrara no Passeio Público com a finalidade de se dis­trair e, talvez, conquistar uma namorada. Na ocasião o depoente eraauxiliar de panificação, "padeirinho", na Padaria Aurora, sita na ruaAtílio Bório 1313. Ficara olhando os animais do Passeio, detendo-sea maior parte do tempo junto da jaula dos macacos, bichinhos quelhe interessavam bastante.

Por volta das seis, seis e meia, trava conhecimento com uma moçaque lhe pareceu bonita e ajeitada. A princípio a moça, que estava so­zinha, procurou afastá-lo: "Estou esperando meu namorado. Vê se caifora!".

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Atraído pelas maneiras dela, Astolfo insistiu e, segundo ele, aospoucos ela foi cedendo à sua "boa conversa" e começaram a passearjuntos pelo parque.

Ela lhe disse chamar-se Jucélia, Jucélia Ramos. Primeiro afirmouser estudante mas depois confessou ser doméstica, trabalhando paraum família no rico bairro do Batel. Conversaram então sobre váriosassuntos; ela adorava música e disse estar vindo do auditório da TV Pa­

raná, onde fora assistir ao programa Ponto 6, para ver e ouvir o con­junto Os Vondas, de que gosta muito, principalmente quando elestocam aquela música dos Beatles "Hey,Jude".

Astolfo Dagoda afirma que pagou para ela primeiro uma paço­quinha e depois uma maçã do amor, que ela trincou com seus dentesperfeitos bem branquinhos. Abraçados, tiraram uma foto num lambe­lambe do Passeio Público (atente para este detalhe); ele pagou adian­tado e ficaram de pegar as cópias meia hora depois, mas esqueceram,entretidos que estavam um com o outro.

Escurecia rápido e havia esfriado bastante. Astolfo tirou seu pulô­ver azul-marinho e fez que ela o vestisse por cima do vestido brancode mangas curtas, pois não trouxera agasalho. Segundo ele: Foi nessemomento que senti que eu gostava dela, e ela de mim. Depois que ela vestiu opulôver, eu segurei a mão dela e disse: Nossa! Como você está com a mão fria.Ela riu e me disse: "Mão fria, coração quente!". E tirou suas mãozinhas daminha. Ela falava sempre sem tirar os olhos dos meus e eu sempre olhando paraa boca, para os lábios dela, finos cobertos de batom bem vermelho.

Segundo Astolfo, quando ela sentiu fome comeram um espetinhode um churrasqueiro que estava com o carrinho em frente ao Parquede Diversões Alvorada. Ele lembra que a fumaça do braseiro se junta­va com a neblina, que ia forte naquela hora. Nem sinal da Lua, nébu­Ia, noite escura. Ela falou com tristeza dos astronautas que iam des­cer na Lua naquela noite: "Imagine se lá tiver uma neblina assim,naquele gelado". Falou ainda que os patrões delajá estavam com a te­levisão ligada, que ia mostrar tudo quando eles chegassem na Lua. Aíeu, Astolfo Dagoda, falei: Não preciso subir tão alto, a Lua está comigo aqui,agora. Falei isso e ela me sorriu, de um jeito tão bonito.

Não sei nem quanto tempo ficamos no parque de diversões. Atiramos notiro ao alvo, não derrubei nenhum maço de cigarros, eles limam a mira dasespingardinhas de ar comprimido e a gente não acerta uma. Não, não fumo,não senhor. Entramos no palácio dos espelhos, fica tão engraçado a gente sever deformado daquele jeito. Teve uma hora que reparei que tinha um cara

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nos seguindo, olhando muito para nós. Foi ela quem me chamou a atenção.

O que ele queria? Era bem maior que eu, mas cheguei nele efalei: Que é, cara?Qual é a tua, Ô meu? Tá invocando com a minha cara?! Tá me achando bo­nito, é? O cara mixou e deu no pé.

Não sei bem a hora, depois fiquei sabendo que era lá pelas dez, resolvemosdar uma volta no tremlantasma para matar o tempo, pois tínhamos acerta­do de ir no baile da Estrela da Manhã, que começa às dez e meia. Até ali eu

não tinha tocado nela e achei que na escuridão do tremlantasma era a oca­sião de sapecar um beijinho nela. Comprei as duas entradas, 20 centavos cada,e entramos. Aí aconteceu ...

Os depoimentos são todos muito desencontrados. O padeirinhoAstolfo Dagoda insiste em afirmar que entrou no trem-fantasma juntocomJucélia Ramos e que ela desapareceu na escuridão durante o tra­jeto, não sabe explicar como. Entretido que estava com as assombra­ções no escuro, só veio a notar o desaparecimento dela quando o car­rinho completou a viagem.

Angenor de Oliveira, alcunhado Caveirinha, na ocasião encarre­

gado do trem-fantasma, disse que havia algum movimento naquelahora e não põde precisar se Astolfo Dagoda entrou sozinho ou acom­panhado. Porém se lembra muito bem que, quando travou o carrinho,Astolfo muito pálido - ele pensou que era de medo pela viagem _perguntou aflito pela moça que estava com ele. Em vista da agitaçãoe estranhando o desaparecimento, coisa que nunca acontecera desdeque ali trabalhava, Angenor de Oliveira cortou a corrente elétrica e,com uma lanterna de mão, entrou nos túneis acompanhado de Astol­fo Dagoda para ver se achavam a moça desaparecida. Percorreram todoo trajeto, examinaram tudo e nada encontraram de anormal.

Ele, Angenor de Oliveira, não acreditava que a moça tivesse pula­do ou caído do carrinho em movimento. Se isso tivesse acontecido,ela fatalmente teria sido atropelada pelo carrinho seguinte e haveriamanchas de sangue pelo chão, além do cadáver, é claro. Muitos curio­sos se aglomeraram no local. Angenor fez nova vistoria, desta vezacompanhado não só de Astolfo, mas de outras pessoas alarmadaspelo mistério. Novamente nada foi encontrado. Constatou-se que se amoça tivesse caído ou pulado e tivesse escapado com vida do atrope­lamento, não poderia ter saído por nenhuma das paredes, que se en­contravam intactas; se tivesse saído por uma das bocas dos túneis, cer­tamente teria sido vista. Disse Angenor que, ainda naquela noite,voltara a verificar o interior do trem-fantasma junto com o guarda-

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civil que viera atender a ocorrência, e, mais uma vez, nada encontra­ram de anormal. Afirmou ainda não acreditar em fantasmas e emalmas do outro mundo.

Já a depoente Cremilda Gomes, parda, 20 anos, solteira, domés­tica, testemunhou que, quando o carrinho com o casal saiu para oclaro, ela viu nitidamente o rapaz abraçado com a moça e que, de re­pente, ela sumiu como se tivesse evaporado.

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Que foi tudo tão rápido, e logo o carrinho entrou de novo notúnel, e ela não deu na ocasião muita importância ao fato, pensou quefizesse parte dos truques do trem-fantasma para atrair freguesia. Essatestemunha, que muita gente considera importante, não mais se apre­sentou, e o endereço por ela fornecido durante seu depoimento naDelegacia Central não foi localizado.

O guarda-civil nº 067, em serviço naquela noite no Parque de Di­versões Alvorada, nada acrescentou de importante, pois fora chama­do somente depois do fato ter acontecido. Nada achou de anormalquando do exame do local, porém, em vista da aglomeração de pes­soas e da polêmica que o fato estava causando, encaminhou AstolfoDagoda para apresentar queixa na Central. Com ele foram as teste­munhas Cremilda Gomes e um rapaz que não declarou o nome e dissesaber tudo sobre o desaparecimento de jucélia, mas que só falaria napresença do delegado, pois eram revelações sigilosas. No entanto esserapaz nem chegou a depor: enquanto os outros entravam na Delega­cia Central, alegando que ia pagar a corrida ele entrou no táxi e par­tiu para não mais ser visto.

O estranho comportamento de outra testemunha, Karel Stepha­novich, trouxe mais contradições ao inquérito policial. Retratista doPasseio Público, no domingo à tarde Karel foi procurado pela polí­cia, que trazia Astolfo Dagoda - o rapaz pernoitara encarcerado naCentral, até a chegada do delegado Miguel Zacarias no domingo pelamanhã. O comportamento de Karel Stephanovich foi contraditório:primeiro disse que não se lembrava de nada; depois disse que lembra­va e entrou na sua barraca para buscar as fotos que o casal esquecerade pegar. Demorou lá dentro e, quando os policiais já demonstravamimpaciência, voltou muito pálido, dizendo que se enganara, que nãotinha tirado nenhum retrato e que nada sabia da história. Irritado, As­tolfo Dagoda gritou que ele estava mentindo e que escondia algumacoisa. Os policiais acalmaram o rapaz e intimaram o fotógrafo a pres­tar depoimento na Central, segunda-feira à tarde. Contudo, segundapela manhã Karel vendeu seu negócio a toque de caixa e saiu da ci­dade, mudando-se para lugar incerto e não sabido. Ao que consta,nunca mais retornou a Curitiba.

A imprensa já fazia grande estardalhaço sobre o desaparecimen­to da moça, quando na terça-feira a polícia técnica realizou examesno trem-fantasma. Foi encontrado um pedaço de tecido branco que,a princípio, pensou-se ser um rasgão do vestido da desaparecida; sub-

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metido a exames de laboratório, constatou-se ser parte da atadura damúmia.

O Diário do Paraná,jornal dos hoje extintos Diários Associados deAssis Chateaubriand, levantou a hipótese de que jucélia teria descidodo trem e se escondera num dos caixões de defunto que, acionadospela passagem do carrinho, se abrem, deles se erguendo os bonecosameaçadores. jucélia teria ficado ali até as buscas terminarem e de­pois saíra tranqüilamente. Como a hipótese parecesse plausível, a po­lícia técnica levou os caixões para exame. Ficou constatado seremmuito pequenos para acomodar outra pessoa além dos bonecos decera, e estavam tão cobertos de poeira que qualquer anormalidadeteria ali deixado marcas.

já o jornal O Estado do Paraná, do então governador Paulo Pimen­tel, trouxe de São Paulo um grupo do Centro de Pesquisas Paranor­mais e Fenômenos Extraterrenos, chefiado pelo frei Albino Aresi, pa­rapsicólogo de renome. Frei Albino lançou a teoria de que a jovemteria sido raptada por seres extraterrestres. A coincidência do horá­rio do desaparecimento de jucélia com o da descida dos astronautasna Lua comprovaria sua teoria.

Nada foi publicado nos jornais, na época submetidos à rígida cen­sura imposta pelos governos militares, mas em Curitiba corria o boatode que o desaparecimento de jucélia Ramos estaria ligado às ativida­des da guerrilha do MR-8 no Paraná. Esses boatos aumentaram com aprisão do chefe guerrilheiro cognominado O Bom Burguês e com odesbaratamento do MR-8 alguns dias depois em Apucarana.

Contudo, sem conseguir novas pistas, a polícia começou a pres­sionar Astolfo Dagoda, achando tudo um embuste, coisa de um loucopara chamar atenção sobre sua insignificante figura. Ou coisa pior:ele matarajucélia após violentá-Ia, crime sexual que ele procurara es­conder inventando aquela história toda. O padeirinho foi detido parainterrogatórios e, apesar de estar preso e incomunicável, consta quemanteve essa versão dos fatos. O Diário do Paraná descobriu sua pri­são, que considerava ilegal, e acusou a polícia de torturar o rapaz nopau-de-arara, de lhe aplicar choques elétricos para obrigá-Io a confes­sar, exigindo portanto sua imediata libertação.

Quase um mês depois do desaparecimento surge uma nova pista:Almério da Silva, servente do Passeio Público, encontrou no lago da­quele logradouro um pulôver azul que seria o mesmo usado por ju­célia naquele sábado trágico. Imediatamente o delegado Miguel Za-

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carias procurou Astolfo Dagoda para que ele fizesse a identificação.O jovem não foi encontrado, mas seu patrão, o padeiro Lidislau Pier­ko, afirmou que Astolfo, muito assustado e aborrecido com sua pri­são e "tortura" (entre aspas porque nada foi comprovado), pedira aconta e deixara Curitiba para recomeçar a vida num lugar onde nãofosse conhecido.

Quanto aJucélia Ramos, nunca mais foi encontrada. Por mais quese procurasse alguém que trouxesse alguma luz capaz de aclarar o de­saparecimento, ninguém apareceu: nem familiares, nem patrões, nemamigos ou conhecidos. Era como se ela nunca tivesse existido, ou co­mo se sua existência nunca tivesse sido percebida pelos habitantes deCuritiba.

Hoje, passado tanto tempo, permanece o mistério do desapareci­mento deJucé1ia Ramos. O que aconteceu naquela noite no trem-fan­tasma?

O seqüestro de uma bela jovem para fins inconfessáveis, provavel­mente um crime sexual?

A ação nefasta da guerrilha do MR-8, bastante atuante no Paranánaqueles tempos?

A vingança de seres extraterrestres irritados com a chegada dohomem na Lua?

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Seria o trem-fantasma um lugar assombrado e almas do outromundo carregaramjucélia Ramos?

Foi tudo uma trama da própria polícia, armada sabe-se lá por quê?Ou tudo não passou de uma farsa hedionda do padeirinho?Perguntas até hoje sem resposta. São muitas as teorias e certamen-

te o leitor terá escolhido ou criado a sua. Talvez um dia, num futuroque esperamos não esteja muito longe, a verdade apareça. A verdadesempre aparece.

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Mistério

Sapho

() amor entre as mulheres

o cinema paranaense continua um insólito desconhecido. Con­tam-se nos dedos os estudos e pesquisas sobre o nosso cinema, apesarde alguns esforços iniciados principalmente após a criação da Cinema­teca do Museu Cuido Viaro, em 1975. Ali foram recuperados filmes, atéentão considerados perdidos, de Annibal Requião, Arthur Rogge eJoão Batista CrofE. A esses vem se juntar agora Crispim Carmoro, dequem acabam de ser encontradas partes do filme Sapho - O amor entreas mulheres. Foi encontrada uma cópia 35 mm com apenas quatro bobi­nas, as de número 1,3,5 e 8, das oito que compunham o filme.

A cópia encontrada está em péssimo estado, com partes totalmen­te meladas, necessitando urgentes trabalhos de restauro em laborató­rios especializados. Faltam diversos trechos, e a bobina 5 está inteira­mente empedrada, definitivamente perdida. Somente com os serviçosde restauração será possível a feitura de um novo negativo, permitin­do a confecção de novas cópias passíveis de serem projetadas.

Presumivelmen te Crispim Carmoro faleceu em 1928, seis anosapós ter realizado o que parece ser seu único filme. Não deixou des­cendentes. Consta que sua esposa, Josephina Bello Carmoro, após amorte do marido transferiu-se para Vitória do Espírito Santo, ondeteria parentes. Não pudemos confirmar essa informação.

O que restou de Sapho foi encontrado num galinheiro em Almi­rante Tamandaré. Ali ficara sob a guarda de Rodolpho Hertoso, amigode Crispim Carmoro. Com a morte de Hertoso, aos 85 anos, seus fa­miliares passaram as latas do filme para as minhas mãos.

Sapho - O amor entre as mulheres é um filme erótico. Pornográfi­co, se adotarmos outra nomenclatura. Desde os princípios do cinemasão feitos filmes pornôs, como Dama ao banho, de Ceorge Melies, rea­lizado em 1899. A Cinemateca do Uruguai tem em seus arquivos amaior coleção de filmes eróticos primitivos, entre eles vários de D. W.Criffith, considerado o pai da linguagem cinematográfica. Para nãofalarmos do agora, o cinema brasileiro tem vários exemplos de filmeseróticos ou pomôs: desde Lucíola (1916), da obra de José de Alencar,no qual a atriz Antônia de Negri aparece nua, dirigido por AntônioTibiriçá, que faria Vício e beleza (26) e produziria Depravação (23), deLuiz de Barros, que também dirigiria Messalina (30), até as várias ver­sões de A carne, a de 24, dirigi da por Leo Martem, e a de 26, de E. C.Kerrigan, passando pelo curioso Le film du diable (17), que, apesar donome, é brasileiro, dirigido por Vitor Ciacchi, e com a atriz que se es­condia sob o pseudônimo de Miss Ray mostrando suas carnes. Cris­pim Carmoro teve portanto a quem puxar.

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Mas quem foi esse homem e o que o levou a filmar um longa-me­tragem erótico na provinciana Curitiba de 78968 habitantes em 1922,ano em que acontecia em São Paulo a Semana de Arte Moderna?

Sabemos pouco de Crispim Carmoro, nem se era italiano ou des­cendente. Apareceu em Curitiba provavelmente logo após a Primei­ra Guerra Mundial (1914-8). Aqui passou a exercer a profissão de es­tucador. Além das decorações em gesso, fazia pinturas decorativas. Emalgumas velhas residências curitibanas encontram-se paredes com suaspinturas. Através dessa arte tornou-se conhecido, não só das famíliastradicionais da cidade mas também de pintores como Alfredo Ander­sen, Lange de Morretes e Waldemar Curt Freysleben. Pelo tema e le­treiros de Sapho, é de se supor que mantivesse relações de amizade comDario Vellozo, Emiliano Perneta e outros poetas do movimento sim­bolista, que buscavam inspiração na Grécia Antiga.

Não se sabe se Crispim Carmoro tinha algum conhecimento técni­co de cinema, nem quem o iniciou nos segredos da linguagem cinema­tográfica. Sabe-se que era amigo, ou pelo menos conhecido, de Anni­bal Requião, que lhe cedeu ou alugou o equipamento para as filmagensde Sapho. É certo que não lhe faltavam gosto artístico e conhecimentode fotografia, as imagens de Sapho têm momentos de rara beleza. Oúnico nome que aparece na ficha técnica é o de Crispim Carmorocomo realizador, mas talvez Sapho possa ter sido filmado por ele ou poralgum dos fotógrafos atuantes em Curitiba, que preferiu não assinar otrabalho em virtude do tema ousado do filme. Da mesma maneira quenenhuma das atrizes arriscou colocar seu nome nos créditos.

O filme abre com um letreiro: PARTHENON FILMS - CURITYBA 1922.As letras estão desenhadas sobre um cartão-postal com vista fotográ­fica do Partenon de Atenas. Em seguida vem o título:

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E sua complementação: O AMOR ENTRE AS MULHERES. E ainda: UMAPELICULA CRISPIM CARMORO. Todos esses créditos iniciais estão emol­

durados com ornamentos em estilo grego. Segue-se um longo textoexplicativo dividido em duas partes. Lembrar que se trata de filmemudo, realizado por quem não dominava plenamente a linguagemdo cinema. Daí a necessidade de longos letreiros para desenvolver aaçao:

Em seu resplandescente palácio na ilha de Lesbos, protegida pelo resplen­

dente azul do jirmamento vago, na lassidão cálida de uma noite de verão,

quando o aroma de nardos, excitante e lascivo, concorre para o enlace sen­

sual dos corpos, Sapho reune-se com suas amigas, sacerdotizas de Vénus,a Deusa do Amor.

Após esse longo texto introdutório, aparece uma vista de paláciogrego, claramente uma pintura filmada, e outro letreiro:

Sapho, a bella sacerdotiza pagã, de farto sangue quente, prepara o altar

para o doce sacrifício à Vénus.

Aí começa propriamente a ação do filme. Vemos meio de longea atriz que interpreta Sapho pondo incenso num turíbulo sobre umalto tripé. Há um corte para um plano mais aproximado, Sapho le­vanta os olhos em direção à câmera e se põe a falar (através de letrei­ros), como que se dirigindo aos espectadores:

o meu lugar não é em meio de vocês,Homens rudes e maus, de semblante tristonho.

Não é no meio de tanta insipidez,

Dum egoismo atroz, dum orgulho medonho.

JV1eu lugar é aqui, de amor a gemer

Entre rainhas como flor; graciosas donzelas

Entre gestos e corpos que me causam prazer.

Sapho baixa a cabeça, termina de colocar incenso no turíbulo e,em meio à fumaça, inicia grotescos movimentos de dança.

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Em sua dansa, o corpo delinquente sem pudm;Sapho invoca Venus - Deusa Pagã dos amantes ­E conclama suas bachantesPara os embates do amor.

À medida que se desenvolve a dança, são mostradas as outras ­no filme só atuam mulheres - "bachantes", sempre precedidas de umletreiro que as identifica pelo nome:

Prokné - a favorita de Sapho, no seu seioQue frescura! Que olor! Que límpido gorjeio!

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Aglaura - virgem pura, virgem bela como Vénus,Virgem de olhos glaucos e seios morenos!

Hypolita - musa pagã de basta cabeleira loura,Corpo rijo, olhos de engodo e boca sedutora!

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Euridice - angélica expressão de causas mansas,Formas tentadoras, rosto de mulher, sorriso de creança!

Fátima - escrava núbia de corpo ardente,Liso, odulante como o de uma serpente!

Esta última é a única negra que aparece no filme. Com sua ima­gem termina o primeiro rolo. É de se supor que o segundo, não en­contrado, prossiga com a apresentação das celebrantes em poses las­civas, seminuas, envoltas em véus e adornadas com bijuterias quesimulam ser jóias de valor. Os trajes, se é que podemos chamá-Ias assim,arremedam roupagens gregas ou orientais.

O cenário, representando o interior de um templo grego, nãopassa de um cortinado escondendo as paredes e um chão coberto portapetes. Almofadões, cadeiras de madeira entalhada, colunatas e al­guns vasos de gesso imitando urnas gregas completam a cenografia.Tudo lembra os cenários de gosto duvidoso utilizados nos estúdios dosretratistas da época como fundo de suas fotografias.

Não há muita ação no filme, nem cenas de sexo explícito ou denudez total. O que vemos é a repetição constante de imagens, com acâmera estática focalizando Sapho e suas "bachantes" envoltas em véus,seios à mostra, esforçando-se para fazer poses eróticas, em geral ro­lando pelo chão.

A bobina número 3 apresenta várias de suas partes meladas e fal­tam alguns trechos. Provavelmente foram cortados por alguém que,olhando os fotogramas contra a luz, queria se deliciar com as imagensdas mulheres semidespidas. Essa bobina inicia-se com um letreiro:

Sapho empina o ventre, arqueia o busto e num repenteElétrica se lança aos golpes tentadores,Difundindo luxúria e provocando ardoresComo se a carne houvera em convulsão, fremente.

As imagens que se seguem a esse letreiro são da atriz que perso­nifica Sapho dançando - o termo mais certo seria rebolando - entreas outras figurantes.

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Ei-la saracoteando, o corpo delinqüenteSemi-velado ostenta às luzes multicores,

As bachantes deliram em lúbricos jurores,Arrastam-se coleando em silvos de serpente.

Além de mostrar Sapho dançando, esta cena está entrecortada comimagens das "bachantes" sempre em poses lânguidas. Toda essa parteestá tintada de vermelho pelo sistema de viragem - tintura de anili­na usada para dar um tom de cor aos filmes da época.

Entre uivos do instinto a cupidez atuaE uníssono se escapa um grito retumbante:- Dansa outra vez, mas nua inteiramente nua!

A imagem que se seguiria a este letreiro não está na cópia encon­trada. Provavelmente seria a única imagem de nu frontal do filme; deveter sido tirada por alguém sequioso de excitar-se com a visão do belocorpo da atriz que encarna Sapho. Devemos lembrar que o filme, rea­lizado em 1922, foi reencontrado somente em 1984: sabe-se lá em quemãos andou durante todos esses anos.

Apesar de na época ser relativamente normal a exibição de filmeseróticos, nenhuma notícia da exibição de Sapho foi encontrada nos

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jornais curitibanos. Contudo, o pesquisador Jean-Claude Bernardet,em seu Filmografia do cinema brasileiro, 1900-1935, edição do governodo estado de São Paulo (1972), menciona um filme com o título deSapho no Cine Royal de São Paulo, em julho de 1923. O anúncio daexibição não diz a origem, nem mesmo se é brasileiro, e não faz refe­rência à sua ficha técnica. Diz apenas: "Os escândalos de Sapho, adeusa de Lesbos, numa grandiosa mise-en-scene em oito partes". Omesmo número de partes do filme de Crispim Carmoro.

O restante da bobina 3 é uma monótona repetição das atrizes im­provisadas - quem seriam? - a rolar pelos tapetes ou enrolando oscorpos seminus nas cortinas. Somente no final do filme, na parte oito,acontece algo mais forte: Sapho e sua favorita, Prokné, reproduzemdiante da câmera sempre imóvel a ação descrita no poema mostradono letreiro.

Quero pousar meus lábios nos teus de framboezaE neles, como a abelha liba o mel na rosa em fiar,Quero beijar, sequiosa em delírio de amor acesa,Todo teu corpo de sensual calor!Prender-me nos divinos novelos,

Aranhol dos teus fiavas cabelos,Tremerão nossas carnes no mesmo espasmo presasE nos confundiremos entre carícias ledas!

Após o poema, vemos as imagens de Sapho e Prokné enlaçadasse beijando, deitadas no chão de falsos tapetes persas. E tal como co­meçou, o filme termina com um letreiro:

Oh! Até que enfim em carícias felinasTeu busto gentil ligeiramente inclinasE te enrolas em mim e me mordes a boca!

A imagem da mordida não é mostrada. Em seu lugar vemos o le­treiro:

fiM

Assim termina SAPHO - O AMOR ENTRE AS MULHERES, mas a respei­to dele ainda ficam muitas questões: quem foram suas "estrelas"? Pros­titutas da rua Ratcliff (hoje Desembargador Westphalen), então a zona

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do meretrício de Curitiba? Ou seriam mulheres da sociedade curiti­

bana que aceitaram representar por dinheiro ou outra razão qualquer?Algum poeta curitibano escreveu o "enredo" e os poemas do filme e,pudorosamente, não quis assinar? Quem financiou a empreitada e oque se propunham os produtores com o filme? Lucro fácil ou algumoutro objetivo escuso? Por que não teve continuidade a carreira cine­matogáfica de Crispim Carmoro?

Talento e capacidade não lhe faltavam.

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() mistério dos sinais

da passagem delepela cidade de Curitiha

Indiscutivelmente são sinais da passagem DELE.

O local onde foram encontrados e fotografados é aquele grandeterreno baldio no alto da rua xv, ao lado da caixa-d'água. O mesmoonde, no dia 29 de maio de 1986, foi encontrada nua, morta com umaestaca de madeira cravada na vagina, a prostituta Márcia de Tal, de21 anos presumíveis, alcunhada de Polaca. Mais tarde descobriu-se queo assassino fora o engraxatejurandir Haus, de 48 anos, vulgo Careca,que mantinha sua cadeira instalada na praça Tiradentes.

O revoltante crime teve muita repercussão na época e a Folha deCuritiba publicou fotos do cadáver na primeira página, o que provo­cou protestos generalizados. A Tribuna do Paraná, do dr. Paulo Pimen­tel, também publicou as fotos na primeira página, porém tendo o de­coro de esconder com uma tarja preta o sexo da infeliz moça, ondeo perverso assassino enfiara o grosso galho de árvore.

Olhando assim pode parecer que se trata de uma perfeita imita­ção em barro pintado, dessas vendidas pelos camelôs e usadas parapregar peças nos amigos. Falo isso porque tal qual as imitações é umapeça inteiriça - como que expelida de uma única vez -, com dezcentímetros de grossura e cerca de trinta de comprimento desde a

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ponta arredondada até a outra ponta no alto, onde se afina como umacauda onde foi cortada pela contração do ânus.

a bolo encontra-se enrodilhado, mostrando ter saído de uma sóvez. E também que ELE se manteve de cócoras no mesmo lugar duran­te toda a defecação, caso contrário apresentaria outra forma que nãoa de um rolo.

A cerca de um palmo à frente, uma poça redonda já seca mostrao lugar onde o jato de mijo penetrou no chão.

À esquerda do bolo fecal, três pedaços amassados e sujos da Tri­buna do Paraná. Provavelmente, ELE leu esse jornal enquanto defeca­va e depois, na falta de papel higiênico, limpou-se com os pedaços querasgou, todos com mais ou menos quinze por quinze centímetros. Umdeles é a parte da primeira página onde está a chamada para a entre­vista com o ex-jogador de futebol Aladim, com a manchete O Gênioabre o jogo. E também parte da foto da mansão do milionário assalta­da no bairro das Mercês. Impressas em vermelho, as letras TRI, partedo título do jornal, e mais o cabeçalho, onde se lê: Segundaleira 2 denovembro de 1987 Ano XXXII nº 9.062/24 páginas Às segundas cz$ 15,00.Do outro lado desse pedaço, está uma parte da seção Cartas dos Leito­res, com as costumeiras reclamações contra os serviços públicos, e partede um anúncio da Prefeitura Municipal de Curitiba intitulado Procu­ra-se um fornecedor.

a outro pedaço que ELE usou para se limpar é o recorte do anún­cio da Gronau na página onze, que tem no verso parte do anúncio depágina inteira do Carrefour Pinhais. a terceiro pedaço usado pegaparte dos anúncios das Lojas HM na página nove e de Pedroso, a Reidos Tapetes, na página dez.

Nota-se que ELE teve a preocupação não só de escolher pedaçosdo jornal com bastante branco - é sabido que a tinta de impressãoprovoca irritação no ânus -, mas também de não estragar partes quetrouxessem reportagens interessantes para se ler. Examinando-se a Tri­buna do Paraná daquele dia, vê-se que foi deixado inteiro o cadernode esportes, reportando com fotos em cores a sensacional vitória doCoritiba por 3 x 2 contra o São Paulo, na Copa Brasil. A página poli­cial também não foi mexida, nada foi rasgado da reportagem sobre oassalto da mansão milionária, nem da notícia ATIROU NA RAPOSA E ACER­

TOU NA FILHA. Estão inteiras as notas da trágica morte do ancião atro­pelado por uma locomotiva, do caso do miliciano que roubou umamoto e do padeiro assaltado na saída do bailão.

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Provavelmente, ELE leu a Tribuna do Paraná enquanto defecava e,depois, levou-a consigo para terminar a leitura. Daí o cuidado de es­tragar somente as partes desimportantes do jornal.

Do lado direito, aparentemente jogados ao acaso, vêem-se três pa­litos de fósforos dobrados ao meio, formando um v sem estarem par­tidos em dois. Muitas pessoas têm o costume de fumar enquanto de­fecam, principalmente a céu aberto, porque isso ajuda a disfarçar omau cheiro e a fumaça serve para espantar mosquitos. Porém, comoos três fósforos não estão queimados e tampouco se vêem tocos de ci­garros, pode-se concluir que ELE não fuma. Tem, isso sim, um caco e­te: o de dobrar palitos de fósforos ao meio, sem parti-Ios. Durante otempo que levou para defecar no terreno baldio dobrou três palitos.Soubéssemos nós o tempo que ELE leva para dobrar cada um, e o in­tervalo entre um palito e outro, poderíamos determinar com preci­são durante quantos minutos - pois não acredito ter chegado a horas- ELE esteve defecando no terreno baldio, naquele dia de Finados.

Examinando a fotografia com os sinais que comprovam ter ELE es­tado em Curitiba no dia 2 de novembro de 1987, chegamos a uma sériede conclusões: ELE usa o corpo de um homem; fosse o de uma mu­lher, a marca da poça de urina estaria mais junto do bolo fecal - avagina fica mais perto do orifício anal do que fica o pênis. ELE não émuito alto e pesa pouco: apesar do solo arenoso do terreno baldio serbastante duro e ressecado, fosse ELE alto e pesado certamente suas pe­gadas seriam mais profundas, o que não acontece. Tem ELE o estôma­go em bom funcionamento, ou pelo menos não sofre de diarréia. ELE

tem o hábito de ler enquanto defeca, e é leitor da Tribuna do Paraná- se bem que esta última afirmação seja discutível, podendo-se argu­mentar que foi o único jornal encontrado na banca. No jornal prefe­re o "noticiário esportivo e o policial. ELE não fuma, porém carrega fós­foros e tem o sestro de, a intervalos regulares, apoiar um palito nosdedos indicador e médio para, em seguida, pressioná-Io com o pole­gar, quebrando-o ao meio sem contudo parti-Io.

Porém, essas são observações rápidas e superficiais. Você mesmodeve ter analisado o que viu na foto e certamente teria outras ponde­rações a fazer. E exames mais acurados da passagem DELE nos darãoinformações cada vez mais preciosas.

Pode parecer escusado, porém quanto mais dados tivermos sobreseu comportamento, mais aptos estaremos a saber como ELE é na rea­lidade, tanto física quanto espiritualmente. É terrível dizer, mas não

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sabemos com qual semblante ELE se mostra ao mundo: se algum diaestivermos na frente DELE, não saberemos reconhecê-Io e certamenteELE não se revelará a nós. Por esse motivo, quando surge uma opor­tunidade como esta não podemos deixá-Ia escapar, temos que nos de­bruçar atentos sobre cada sinal da passagem DELE sobre a Terra e es­tudá-Io incansavelmente. Somente agindo assim é que seremos capazesum dia - que espero não esteja longe - de o conhecermos na plenacomplexidade do seu ser e da sua obra.

Corruptio unius generatio est alteriusPUTRE

factio

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NOTA BIBLIOGRÁFICA

o mez da grippe. Novella. Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba, 1981.

Maciste no inferno. Raconto. Curitiba, Criar, 1983.

o minotauro. Novela. Curitiba, Logos, 1985.

o mistério da prostituta japonesa & Mimi-Nashi-Oichi. Curitiba, Gráfica & Editora

Módulo 3, 1986. A ação de O mistério da prostituta japonesa se passa em São

Paulo, no bairro da Liberdade. A escrita japonesa e a planta do quarto são de

autoria de Sônia Yamanouchi. A primeira versão desse conto foi publicada no

nº 117 da revista Quem, de Curitiba, em agosto de 1984. O segundo conto,

Mimi-Nashi-Oichi, passa-se num apartamento em Curitiba e teve uma primeira

versão publicada no nº 150 de Quem, em maio de 1986. Os haicais "Nestanoite ...", "Primeira neve " e "Esta estrada ..." são de Bashô; "Sob o sino do tem-

plo ..." e "Ah, o passado " são de Buson; "Orvalho deste mundo ..." é de Isa. O

poema "Tanto sonhei contigo ..." é de Robert Desnos e, como os haicais, foi tra­

duzido por Valêncio Xavier. "Conduz teu cavalo..." e "Tudo é mutável. .." são

trechos de A doutrina de Buda, edição em língua portuguesa de Bukkyo Dendo

Kyotai, Tóquio, 1982. "Tocador de biwa" é um desenho anônimo japonês do

século XIX. A "Mão com poema de Desnos" foi desenhada por Cláudia SuemiHamasaki.

13 Mistérios + O mistério da porta aberta. Contos publicados na revista Quem:

"Um mistério no trem-fantasma", nº 94, agosto de 1983; "O mistério da porta

aberta", nº 113, agosto de 1984; "Mercúrio mistério", nº 116, outubro de 1984;

"Mistério Sapho - O amor entre as mulheres", nº 118, novembro de 1984;

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"Mistério mágico", nº 152, junho de 1986; "O misterioso homem-macaco ­

Como tudo começou", nº 154, julho de 1986; "O mistério da Sonâmbula", nº

160, agosto de 1986. No jornal O Estado do Paraná foram publicados dois con­

tos: "Mistério do menino morto", 18 de junho de 1985, e "Os fantasmas do

fundo de quintal - Um mistério", 22 de julho de 1990. O conto "Mistério

números" foi publicado no nº 334 da revista Panorama, de Curitiba, emjanei­ro de 1984.

OUTRAS OBRAS DO AUTOR

Desembrulhando as balas Zéquinha. Estudo. Curitiba, Payol, 1973.

7 de amor e violência. Antologia de contos com outros autores. Curitiba, Edições

KM, 1964. Segunda edição: Curitiba, Criar, 1986.

Curitiba, de nós. Memória com Poty. Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba,

1975. Segunda edição: Curitiba, Nutrimental, 1989.

A propósito dejignrinhas. Crônicas com Poty. Curitiba, Studio Krieger, 1986.

Poty, trilhos, trilhas e traços. Biografia. Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba,1994.

Meu 7º dia. Novela-rebus. São Paulo, Edições Ciências do Acidente, 1998.

Valêncio Xavier Niculitcheff nasceu em São Paulo, em 1933, e está radicado

em Curitiba. Além dos livros mencionados, publicou inúmeras narrativas em

jornais e revistas (Nicolau, Quem, Panorama e Revista da USP, entre outros).

Como cineasta, recebeu na IX Jornada Brasileira de Curta-Metragem o prêmio

de melhor filme de ficção, por Caro signore Feline. Realizou, entre outros

vídeos, O pão negro - Um episódio da colônia Cecília e Os 11 de Curitiba, todos nós.

É consultor de imagem em cinema e roteirista e diretor de TV.

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