percursos em dupla jornada: o papel da perÍcia antropolÓgica e dos antropÓlogos nas polÍticas de...

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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas DEBORAH STUCCHI __________________________________________________________ PERCURSOS EM DUPLA JORNADA: O PAPEL DA PERÍCIA ANTROPOLÓGICA E DOS ANTROPÓLOGOS NAS POLÍTICAS DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS __________________________________________________________ Tese de Doutorado em Ciências Sociais apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação da Professora Doutora Guita Grin Debert Este exemplar corresponde à versão final da tese defendida e aprovada pela Comissão Julgadora em 06 de junho de 2005. Banca Examinadora: Professora Doutora Guita Grin Debert Professora Doutora - Emília Pietrafesa de Godoi Professor Doutor - Mauro William Barbosa de Almeida Professora Doutora Lilia Katri Moritz Schwarcz Professor Doutor - José Maurício Andion Arruti Junho/2005

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Tese de Doutorado em Ciências Sociais apresentada ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação da Professora Doutora Guita Grin Debert

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  • Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    DEBORAH STUCCHI

    __________________________________________________________

    PERCURSOS EM DUPLA JORNADA: O PAPEL DA PERCIA ANTROPOLGICA E DOS ANTROPLOGOS NAS POLTICAS DE RECONHECIMENTO DE DIREITOS

    __________________________________________________________

    Tese de Doutorado em Cincias Sociais apresentada

    ao Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da

    Universidade Estadual de Campinas, sob orientao da Professora Doutora Guita Grin Debert

    Este exemplar corresponde verso final da tese defendida e aprovada pela Comisso Julgadora em 06 de junho de 2005. Banca Examinadora: Professora Doutora Guita Grin Debert Professora Doutora - Emlia Pietrafesa de Godoi Professor Doutor - Mauro William Barbosa de Almeida Professora Doutora Lilia Katri Moritz Schwarcz Professor Doutor - Jos Maurcio Andion Arruti

    Junho/2005

  • ii

    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

    Stucchi, Deborah St93p Percursos em dupla jornada: o papel da percia antropolgica e

    dos antroplogos nas polticas de reconhecimento de direitos / Deborah Stucchi. - - Campinas, SP : [s. n.], 2005.

    Orientador: Guita Grin Debert. Tese (doutorado ) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Brasil Ministrio Pblico Federal. 2. Quilombos. 3. Direitos humanos. 4. Antropologia. I. Debert, Guita Grin. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

  • iii

    DEDICATRIA __________________________________________________________

    Ao Dorival Pingim Stucchi, pai, que ainda deveria estar aqui e conferir como aquilo deu nisso.

  • iv

    AGRADECIMENTOS __________________________________________________________

    Pessoas e instituies foram importantes para que este trabalho pudesse ser realizado,

    embora no pese sobre nenhuma delas a responsabilidade pelos erros que ele poder ter e,

    certamente, ter. Os enganos e omisses so nus da autora mas, se algum mrito houver

    no trabalho, ele deve ser creditado atuao tenaz de Guita Grin Debert, que exerceu

    incansavelmente a difcil misso de orientar e nunca deixar de acreditar. Justia seja feita

    ainda segurana e competncia com que sempre conduziu minha mente quase sempre

    dividida entre muitas obrigaes.

    A Emlia Pietrafesa de Godoi e Mauro William Barbosa de Almeida, pelo interesse e

    generosidade demonstrados no exame de qualificao e cujas preciosas sugestes foram

    fundamentais para a seqncia do trabalho.

    A Jos Maurcio Andion Arruti que sempre confiou, incentivou e contribuiu comigo nos

    limites da atividade acadmica e no campo mais pragmtico da atuao profissional

    institucional, lugares por onde transita competentemente em seu elegante estilo de

    historiador e antroplogo.

    Aos colegas antroplogos Adolfo Neves de Oliveira Jnior, Mriam de Ftima Chagas e

    Sheila Brasileiro e arquiteta Maria Ignez Maricondi, com quem partilhei algumas

    apreenses e muitos aprendizados na experincia de campo no vale do Ribeira. Aos

    antroplogos no e no do Ministrio Pblico Federal, como gostamos de dizer, com

    quem tenho aprendido as mais variadas e ricas formas de fazer antropologia.

    Aos colegas do Ncleo Pericial da Procuradoria da Repblica em So Paulo e, em especial,

    ao amigo Avelino Marques da Silva, que muito tentou me ensinar sobre as flutuaes do

    mercado financeiro mas que, de verdade, revelou-se um apaixonado pela funo social do

    nosso trabalho, com quem pude compartilhar tarefas interdisciplinares e preocupaes

    genunas a respeito do nosso fazer responsvel.

  • v

    A Francisco Carlos de Oliveira Reis, colega de ofcio e amigo de literatura, com quem a

    troca sempre instigante pelo rigor de seu pensamento e pela sensibilidade de suas

    interpretaes.

    A Isabel Cristina Groba Vieira e Maria Luiza Grabner, Procuradoras hoje Regionais da

    Repblica, com quem aprendi e continuo a aprender sobre os desafios de defender direitos

    com integridade, competncia, paixo e dignidade. A Maria Luiza devo ainda

    agradecimentos por compartilhar, com amizade e refinado bom humor, o sacolejar por

    estradas empoeiradas e os meus ltimos e preciosos pedaos de damasco.

    Coordenao da 6 Cmara de Coordenao e Reviso do Ministrio Pblico Federal e

    Chefia da Procuradoria da Repblica em So Paulo, pelo apoio institucional oferecido em

    2000 quando, apesar das dificuldades, possibilitaram o licenciamento das minhas atividades

    profissionais para cuidar um pouco deste trabalho.

    A Roberto Ulisses Resende, que me ensina muito sobre o vale e a Sandra Kennedy, pela

    boa vontade em dividir o que sabe. A Amanda Barreta Almeida, pelo interesse

    compartilhado a respeito de terras e rios. A Maria Sueli Berlanga e ngela Biagioni pela

    generosidade e confiana que abriram muitas portas. A Antonio Carlos Nicomedes, Oriel,

    Dito, Jos Rodrigues, dona Elvira e demais integrantes do MOAB e do movimento

    quilombola; s famlias e aos cidados dos bairros rurais negros do vale do Ribeira, que

    sempre me receberam com afeto, sem os quais nada teria sido possvel, agradecimentos

    muito especiais.

    Contei com o acompanhamento atento e motivador do parceiro de jornada Aderbal Vieira

    Jnior, que nunca deixou de oferecer suas tradues e leituras crticas ao texto e vida. No

    campo dos afetos, por ser a principal incentivadora das minhas pretenses sobre a vida e

    por sempre lembrar que tarefa de fazer corresponde de pr um ponto final, agradeo

    agora e todos os dias ter perto minha me, Doris Stucchi.

  • vi

    RESUMO __________________________________________________________

    A tese discute o papel dos antroplogos e da atividade pericial em antropologia no processo de luta e de implantao das polticas de reconhecimento, a partir da anlise da constituio das comunidades remanescentes de quilombos como atores polticos e sujeitos de direitos territoriais e culturais. No contexto da defesa desses direitos, o Ministrio Pblico Federal assume novas funes e atribuies, sendo suas prticas judiciais e extrajudiciais, cada vez mais relacionadas e amparadas pelo saber especializado. O modo pelo qual ocorre a apropriao desse saber, sua relevncia e seus limites, considerando a participao do Ministrio Pblico Federal no cenrio das novas lutas sociais so as principais questes discutidas nesta pesquisa.

  • vii

    ABSTRACT __________________________________________________________

    This thesis discusses the role of anthropologists and anthropological expert activity in dealine with conflict situations and in the proposal and adoption of politcs of recognition, by analysing the development ok black countryside communities as political characters and bearers of land ownership and cultural rights in SoPaulo. In the context of assuring these rights, Ministrio Pblico Federal takes new roles and attributions, what makes its judicial and extrajudicial activities more and more related and supported by expert knowledge. The way by which this knowledge is acoured, its importance and boundaries, taking account the participation of Ministrio Pblico Federal in the new social conflicts scenario are the main issues discussed in this research.

  • viii

    SUMRIO

    __________________________________________________________

    PAG.

    DEDICATRIA III

    AGRADECIMENTOS IV

    RESUMO VI

    ABSTRACT VII

    SUMRIO VIII

    LISTA DE ILUSTRAES XI

    LISTA DE SIGLAS XII

    INTRODUO 15

    I. O MINISTRIO PBLICO FEDERAL E A DEFESA DOS DIREITOS COLETIVOS 43

    I.1 Novas funes, prerrogativas e garantias do Ministrio Pblico Federal 45

    I.2 A Procuradoria da Repblica no Estado de So Paulo 53

    I.2.1 Tutela Coletiva: o novo foco da demanda por direitos 57

    I.2.2 As atividades extrajudiciais 62

    I.3 As solues extrajudiciais e os novos poderes do Ministrio Pblico 68

    I.4 A demanda quilombola e o Ministrio Pblico Federal 84

    I.4.1 As comunidades remanescentes de quilombo e as demandas em So Paulo: territrio, conflito ambiental e proteo do patrimnio 84

  • ix

    ______________________________________________________

    PAG.

    II. FORMAO, PASSADO E PRESENTE DOS BAIRROS RURAIS NEGROS DO VALE DO RIO RIBEIRA DE IGUAPE 103

    II.1 A formao dos bairros 115

    II.1.1 Ivaporunduva 115 II.1.2 So Pedro 129 II.1.3 Pedro Cubas e Sapatu 133 II.1.4 Nhunguara e Andr Lopes 136 II.1.5 Piles e Maria Rosa 147

    II.2 Dinmica Populacional 159

    II.3 Economia, Estado, meio ambiente e os impactos sobre o cotidiano 162

    II.4 Atividades econmicas 169

    II.5 Organizao social 191

    III. DE POSSEIROS AMEAADOS POR BARRAGENS A REMANESCENTES DE COMUNIDADES DE QUILOMBOS: A CONSTITUIO DE NOVOS ATORES POLTICOS 211

    III.1 Fragmentos etnogrficos de uma luta 211

    III.2 Os primrdios da questo quilombola: as barragens, os atores e o debate 225

    III. 3 O vale do Ribeira como um campo de intervenes: o Estado, a igreja e os movimentos sociais 237

    III.4 O Movimento dos Ameaados por Barragens e seus embates 247

    III.5 A titulao das terras quilombolas e os papis institucionais: o cenrio dos conflitos e o reconhecimento em So Paulo 253

  • x

    __________________________________________________________

    PAG.

    IV. SABERES E SABERES: A DESCONSTRUO E A CONSTRUO DA LEGITIMIDADE 267

    IV.1 A etnografia de um conflito 267

    IV.1.1 O encontro de Cuiab e suas decorrncias preliminares 268 IV.1.2 O encontro de Santarm: uma categoria sob suspeita 273 IV. 1.3 O encontro de Florianpolis e as bases da nova percepo sobre o papel do antroplogo 276

    IV.2 O saber antropolgico e a percia como as chaves dos signos de incluso 279

    IV. 3 Os especialistas na instituio 285

    IV.4 A percia, o perito judicial e o analista pericial: os dilemas da atuao do antroplogo e as diversas formas de apropriao do seu produto 290

    V. AS POLTICAS DE RECONHECIMENTO COMO SIGNOS DE INCLUSO E EXCLUSO 315

    V.1 As polticas de reconhecimento e os direitos dos quilombos 315

    V.2 O debate em torno da execuo de procedimentos e do uso dos conceitos 331

    V.3 O Ministrio Pblico Federal e a prtica de seus novos papis 343

    PARA CONCLUIR 357

    REFERNCIAS 359

    APNDICES 377

  • xi

    LISTA DE ILUSTRAES

    __________________________________________________________

    PAG.

    Grfico 1 Procedimentos extrajudiciais 1 Ofcio 60 Grfico 2 Ofcios expedidos 63 Grfico 3 Aes judiciais / aes extrajudiciais 72 Grfico 4 Recomendaes expedidas 75

    Quadro 1 Concursos anteriores prestados 51 Quadro 2 Distribuio dos procuradores por PRM 2003 54 Quadro 3 Procuradores atuantes - SOTC - PRSP 2003 56 Quadro 4 Entrada de procedimentos extrajudiciais SOTC PRSP 57 Quadro 5 Procedimentos extrajudiciais instaurados por ofcio SOTC PRSP 58 Quadro 6 Atividades extrajudiciais SOTC PRSP 64 Quadro 7 Procedimentos extrajudiciais SOTC PRSP 71 Quadro 8 Aes judiciais SOTC PRSP 72 Quadro 9 reas de sobreposio PEI/Comunidades 88 Quadro 10 Distribuio da populao urbano-rural 105 Quadro 11 Terras de quilombo reconhecidas e tituladas 2003 263 Quadro 12 Comunidades "apontadas para identificao" MOAB 2004 263 Quadro 13 Convidados do IV Encontro Nacional da 6 CCR 276

  • xii

    LISTA DE SIGLAS

    ____________________________________________________________________

    ABA Associao Brasileira de Antropologia ABRA Associao Brasileira de Reforma Agrria ACP Ao Civil Pblica ACRQBV Associao da Comunidade Remanescente de Quilombo Boa Vista ADCT Ato das Disposies Constitucionais Transitrias ANEEL Agncia Nacional de Energia Eltrica APADEMA Assemblia Permanente das Entidades em Defesa do Meio Ambiente CBA Companhia Brasileira de Alumnio CCR Cmara de Coordenao e Reviso CEDAVAL Centro de Desenvolvimento Agrcola do Vale do Ribeira CERU Centro de Estudos Rurais e Urbanos CESP Companhia Energtica de So Paulo CETESB Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental CF Constituio Federal CODID Coordenadoria da Defesa dos Direitos Individuais e Coletivos CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente CONDEPHAAT Conselho de Defesa do Patrimnio Histrico, Arqueolgico, Artstico e Turstico CONSEMA Conselho Estadual do Meio Ambiente CPI Comisso Pr-ndio CPLA Coordenadoria de Planejamento Ambiental CPT Comisso Pastoral da Terra CUT Central nica dos Trabalhadores DAEE Departamento de guas e Energia Eltrica DAIA Departamento de Avaliao de Impacto Ambiental DEPRN Departamento de Proteo dos Recursos Naturais DNAEE Departamento Nacional de gua e Energia Eltrica DOU Dirio Oficial da Unio EAACONE Equipe de Articulao e Assessoria s Comunidades Negras EIA Estudo de Impacto Ambiental ELAE Escola Livre de Agricultura Ecolgica EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuria FAC Fraterno Auxlio Cristo FCP Fundao Cultural Palmares FF Fundao Florestal FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Servio FITESP Fundao Instituto de Terras do Estado de So Paulo FUNAI Fundao Nacional do ndio FUNRURAL Fundo de Assistncia ao Trabalhador Rural GT Grupo de Trabalho IAF Instituto de Assuntos Fundirios IAMA Instituto de Antropologia e Meio Ambiente IAP Instituto Ambiental do Paran IBAMA Instituto Nacional de Proteo dos Recursos Naturais e do Meio Ambiente IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

  • xiii

    IBRA Instituto Brasileiro de Reforma Agrria ICP Inqurito Civil Pblico IF Instituto Florestal INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria INSS Instituto Nacional de Seguridade Social IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional ISA Instituto Socioambiental LI Licena de Instalao LO Licena de Operao LP Licena Prvia MAB Movimento dos Atingidos por Barragens MEC Ministrio da Educao MEMN Movimento Ecolgico Mater Natura MNTAB Movimento Nacional dos Trabalhadores Atingidos por Barragens MOAB Movimento dos Ameaados por Barragens MP Ministrio Pblico MPDF Ministrio Pblico do Distrito Federal MPF Ministrio Pblico Federal MPT Ministrio Pblico do Trabalho MPU Ministrio Pblico da Unio ONG Organizao No Governamental PEI Parque Estadual Intervales PEJ Parque Estadual Jacupiranga PETAR Parque Estadual do Alto Ribeira PRDC Procuradoria Regional dos Direitos do Cidado PRM Procuradoria da Repblica no Municpio PR-JURIA Associao em Defesa da Juria PROTER Programa da Terra PRSP Procuradoria da Repblica em So Paulo PUC Pontifcia Universidade Catlica RIMA Relatrio de Impacto Ambiental SALVAR Sociedade Ambientalista do Litoral e Vale do Ribeira SBE Sociedade Brasileira de Espeleologia SEAC Secretaria de Atividades Scio-Culturais SMA Secretaria de Estado do Meio Ambiente SOTC Secretaria de Ofcios da Tutela Coletiva SUDELPA Superintendncia para o Desenvolvimento do Litoral Paulista TAC Termo de Ajustamento de Conduta UC Unidade de Conservao UHE Usina Hidreltrica USP Universidade de So Paulo

  • 15

    INTRODUO _________________________________________________________________________

    Este trabalho resultado das vises e das reflexes construdas a partir da ocupao de um

    duplo lugar. O interesse pela sua realizao teve origem na experincia de integrar a equipe

    de analistas periciais da Procuradoria da Repblica em So Paulo. Num certo sentido,

    refere-se possibilidade de exercer a auto-reflexo sobre a prtica antropolgica pericial a

    partir de experincias biogrficas profissionais especficas, mas apresenta-se tambm como

    oportunidade de contribuir para reflexo sobre o papel da antropologia e dos antroplogos

    no contexto das polticas de reconhecimento de direitos.

    Em janeiro de 1995, tomei posse da vaga do cargo de tcnico pericial em antropologia na

    PR em So Paulo, aprovada no primeiro concurso pblico para o cargo, realizado em 1993.

    Nomeada dois anos aps sua realizao, fui a primeira tcnica pericial concursada a

    ingressar na PR em So Paulo. Estive lotada na Secretaria de Ofcios da Tutela Coletiva e

    depois fui transferida para a Diviso de Assistncia Tcnico-Jurdica, onde servia uma

    economista transferida de outro rgo federal. A presena de uma antroploga naquela

    diviso era tolerada pela economista, que afirmava a sua vocao para acolher somente

    profissionais da rea financeira. Deparei-me com um conjunto de antroplogos e

    profissionais de formaes diversas atuantes h vrios anos em organizaes no

    governamentais1 que eram, at ento, as interlocutoras privilegiadas e praticamente

    exclusivas dos procuradores na conduo dos processos judiciais e extrajudiciais relativos a

    interesses e direitos coletivos e difusos2, em especial os ligados s questes indgena e

    1 Em So Paulo, na dcada de 1990, a Comisso Pr-ndio-SP, o Centro de Trabalho Indigenista, o Instituto Socioambiental e a Fundao SOS Mata Atlntica eram as ONG com militncia mais expressiva em temas relacionados aos direitos indgenas e s questes ambientais, que tinham interface com a atuao do MPF. 2 Por interesse coletivo entende-se aquele concernente a uma realidade coletiva, ou seja, o exerccio coletivo de direitos coletivos e no, simplesmente, aqueles interesses que so apenas coletivos na forma, permanecendo individuais quanto finalidade perseguida, o que confirmaria um exerccio coletivo de interesses individuais (Mancuso; 1997: 71). Por sua vez, difusos so interesses de grupos menos determinados de pessoas, entre as quais inexiste vnculo jurdico ou ftico muito preciso. Em sentido lato, os mais autnticos interesses difusos, como meio ambiente, podem ser includos na categoria do interesse pblico (Mazzilli; 1992:21). Para acompanhar o debate em torno da definio e da distino conceitual, ver tambm Grinover (1984); Bastos (1981); Nery Jr. (1992); Prade (1987); Souza Maia (1992).

  • 16

    ambiental3.

    Os primeiros tempos do assessoramento antropolgico no Ministrio Pblico Federal em

    So Paulo foram marcados pelo descortinamento da grande diversidade temtica que se

    distribua entre demandas fundirias, de sade, ambientais e de educao apresentadas

    principalmente por comunidades indgenas de todo o Estado. A primeira dificuldade

    relacionada a tamanha diversidade de assuntos, ainda que a maioria deles estivesse ligada a

    interesses de comunidades indgenas pertencentes a uma mesma etnia4, esbarrava na

    especificidade da histria acadmica e da experincia em pesquisa como estudante de

    antropologia, cujo percurso havia devotado etnologia indgena nfase lateral5. Mas essa

    formao era esperada, desejvel e at tida por imprescindvel pelos procuradores que

    agora passavam a contar com assessoria antropolgica no MPF, embora no fosse pr-

    requisito do concurso. A fala competente e a experincia de longo tempo de antroplogos

    ligados s ONG6, em militncia, e s universidades, em pesquisa, junto s populaes

    indgenas no Estado de So Paulo, acumuladas com a prtica anterior do MPF de obter

    assessoria por indicao da ABA, evidenciavam o contraste com a inexperincia da

    recm-nomeada antroploga PRSP, que era chamada condio de aprendiz nas mais

    diversas situaes de trabalho7. Alm disso, havia como pano de fundo, uma posio meio

    difusa no meio antropolgico, defendida, inclusive, por alguns procuradores da Repblica,

    de que:

    antroplogos no Ministrio Pblico iriam reproduzir um quadro que a gente tinha como viciado e no recomendvel de supostos antroplogos como um espcie de subcasta dentro da FUNAI. Porque tambm se tinha a idia de que, em tendo o MPF o protocolo de 3 Alm dos antroplogos ligados s universidades e ONG, que atuavam pontualmente na assessoria ao MPF, a ABA, em decorrncia de protocolo de intenes entre as duas instituies, indicava especialistas para a realizao de laudos e percias. 4 Distribudos em 19 municpios do Estado de So Paulo, predominam os grupos Guarani, embora existam Kaingang, Terena e Krenak habitando o interior (Ladeira e Matta, 2004). Alm da populao indgena que vive em aldeias, um grupo Pankararu estimado em 800 pessoas reside na zona sul do municpio de So Paulo. 5 A dissertao de mestrado resultava de pesquisa sobre os cursos de preparao para a aposentadoria, discutindo o curso da vida do trabalhador e a inveno de novos grupos etrios (Stucchi; 2004). 6 Para uma anlise da atuao dos antroplogos em organizaes no governamentais no Brasil, Almeida (1992) e Vidal (1992). 7 Durante a primeira viagem de trabalho realizada em 1995, em visita a uma aldeia guarani localizada no municpio de Canania, atuei praticamente todo o tempo na condio de assistente da antroploga que acompanhou o grupo a convite do procurador.

  • 17

    intenes com a ABA, o Ministrio Pblico tinha um instrumento adequado para lanar mo das percias e dos laudos sempre que ele quisesse. A ABA tem 1000 scios, vrios deles se preocupavam com os povos diferenciados, ento, se o MPF desejasse uma percia, bastava consultar a ABA, que ela indicaria o profissional mais adequado para aquela percia porque j teria experincia anterior com aquele grupo (Jos Augusto Laranjeira, Seminrio Nacional dos Analistas Periciais em Antropologia, 24 de abril de 2001).

    Essa discusso, mais de uma dcada depois, parece ultrapassada, mas ela reporta ao

    problema do controle do saber8 antropolgico, na medida em que refletia o temor de que a

    produo antropolgica dos profissionais no Ministrio Pblico passasse a ser controlada

    pela autoridade externa representada pelos procuradores, em vez de pelos seus prprios

    pares. Pode-se supor, desse modo, que o problema da autonomia do antroplogo e do

    controle da sua produo no esteja superado, mas tenha ganho novos coloridos expressos

    por configuraes especficas da relao dos antroplogos no MPF com seus pares atuantes

    nas universidades, nas ONG e filiados ABA.

    A maneira encontrada para lidar com os obstculos e imponderveis prprios atuao de

    quem de fora foi fomentar atitudes colaborativas, discutindo e solicitando opinies na

    conduo dos trabalhos, submetendo os textos produzidos apreciao desses profissionais

    e ressaltando a sua familiaridade e experincia com os temas sob anlise, bem como suas

    condies favorveis insero nos diversos campos de investigao. Em segundo lugar,

    foi preciso lidar com o estranhamento causado junto aos funcionrios dos prprios rgos

    pblicos - Fundao Nacional do ndio, Secretarias de Estado e IBAMA por exemplo - que

    desconheciam a existncia e as atribuies do cargo e a prpria natureza da funo. As

    apresentaes profissionais eram sempre precedidas por um resumo da atribuio, onde se

    justificava a prpria existncia do cargo no mbito do Ministrio Pblico. Esse

    8 Saber pode ser aqui entendido segundo Foucault, como aquilo de que podemos falar em uma prtica discursiva que se encontra assim especificada: o domnio constitudo pelos diferentes objetos que iro adquirir ou no um status cientfico (...); um saber , tambm, o espao em que o sujeito pode tomar posio para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso (...); um saber tambm o campo de coordenao e de subordinao dos enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam (...); finalmente, um saber se define por possibilidades de utilizao e de apropriao oferecidas pelo discurso (...). H saberes que so independentes das cincias (...) mas no h saber sem uma prtica discursiva definida, e toda prtica discursiva pode definir-se pelo saber que ela forma. (Foucault; 1987: 205-6)

  • 18

    procedimento foi adotado principalmente em decorrncia de mal estendidos ocorridos por

    ocasio de visita realizada por mim Secretaria de Estado do Meio Ambiente com o

    objetivo de me apresentar e de conhecer as pessoas responsveis pelo atendimento s

    questes indgenas naquele rgo. Na ocasio, fui confundida com a antroploga que

    prestava servios eventuais ao Ministrio Pblico antes de minha nomeao. Percebi que as

    relaes no eram pacficas quando um dos funcionrios da SMA relatou que, certa vez, a

    antroploga, falando em nome da procuradora, solicitou informaes ditas no disponveis

    pela Secretaria e afirmava, diante das ponderaes do funcionrio, que o Ministrio

    Pblico Federal no pede, manda. Esclarecido o engano, aps esse episdio elaborei um

    roteiro de apresentao e elenquei os cuidados a serem atendidos no relacionamento com

    outros agentes do campo: em primeiro lugar, a conscincia de que, ao assessorar o

    procurador, o antroplogo deve cuidar para agir dentro dos seus limites de atuao e

    autoridade, embora tais limites no estivessem muito explcitos. A valorizar a importncia

    da postura polida e formal, aprendi que solicitaes variadas podem ser feitas por telefone,

    mas devem ser encaradas como simples pedidos. Por sua vez, as requisies, formuladas na

    forma da lei, so subscritas pelo procurador ou elaboradas ordem dele e tm que ser

    atendidas. Em segundo lugar, sob certas circunstncias, logo percebi ser mais produtivo

    obter as informaes necessrias, informalmente, valorizando a independncia do analista

    em relao ao procurador, j que alguns agentes tendem estar mais vontade com o

    antroplogo do que com a autoridade.

    Os episdios acima descritos remetem questo do poder, indissocivel do exerccio da

    antropologia em instituies ligadas aos poderes institudos9. De certo modo, ao lugar do

    antroplogo no MPF est associada uma autoridade que tem claros efeitos polticos. No

    somente o seu trabalho em termos das proposies contidas em relatrios, pareceres e

    laudos pode ter e freqentemente tem resultados polticos mobilizados pela atuao do

    procurador, mas a tenso tambm se refere possibilidade de o antroplogo agir, nas

    9 Vrios trabalhos discutem a produo antropolgica no contexto das intervenes polticas, revelando situaes muito distantes da antiga iluso de neutralidade cientfica. Essa reflexo revela-se vlida no somente para situar os antroplogos no MPF e para aqueles que atuam como consultores ou designados para elaborao de percias judiciais, mas tambm para aqueles dedicados exclusivamente pesquisa acadmica. Para interessante discusso sobre as conseqncias polticas do fazer antropolgico, ver Ramos (2004).

  • 19

    instituies oficiais, como um burocrata ou como um funcionrio do setor que cria um

    cacoete de se transformar numa permanente autoridade que vai subscrever ou no a

    existncia dos relatrios de identificao10

    O perodo de aprendizagem acerca das regras de funcionamento e dos procedimentos

    formais prprios do servio pblico foi relativamente longo aps a minha nomeao. Nesse

    lapso de tempo verifiquei a resistncia de funcionrios do rgo, sobretudo os ligados

    administrao dos recursos e de transporte, quanto aceitao das necessidades de trabalho

    verificadas para a execuo do trabalho. As viagens de trabalho eram precedidas por longos

    perodos de negociao com os setores da administrao responsveis pela logstica,

    mesmo aps terem sido solicitadas pelos procuradores. A resistncia desses setores

    relacionava-se viabilizao das condies necessrias s viagens para realizao das

    visitas, das vistorias, das reunies e dos levantamentos in loco - basicamente a viatura 11,

    conforme jargo oficial, alm do motorista e das dirias correspondentes ao perodo de

    afastamento - num contexto em que o uso do carro oficial e as viagens a servio eram

    codificados como expresso de autoridade. A interpretao sobre o significado da viagem

    de trabalho em voga no ambiente do servio pblico associava essa atividade alta

    distino do servidor, ressaltado seu prestgio pela confiana de ter a seu dispor motorista,

    viatura, recebimento de dirias e, sobretudo, de escapar ao rigoroso controle de ponto

    exercido sobre o regime e o horrio de trabalho dos funcionrios do Ministrio Pblico

    Federal. As necessidades prticas decorrentes do exerccio antroplogo tendiam a ser

    interpretadas, principalmente, pelas chefias intermedirias do rgo como marca de

    privilgio em relao aos outros servidores e, por essa razo, eram motivo de resistncia.

    Foi preciso, primeiramente, identificar essa lgica e, em segundo lugar, utilizar

    instrumentos mais eficazes para o seu enfrentamento. Ao deparar-me com os fatores que

    dificultavam o exerccio do trabalho e expressavam as rgidas prticas hierrquicas 10 Joo Pacheco de Oliveira Filho, na mesa A antropologia no MPF realizada no Seminrio Nacional dos Analistas Periciais no Ministrio Pblico Federal, em 24 de abril de 2001, referia-se a experincias acumuladas no passado na relao com a FUNAI, com quem uma relao que muito boa e de cooperao, de experincias etc. muitas vezes pode se transformar numa relao truncada e complexa. 11 As viaturas so divididas em duas categorias: servio e representao. As viaturas de servio so de cor branca e utilizadas para atender s rotinas de trabalho, como carregar processos e funcionrios em servio. As viaturas de representao so de cor preta e utilizadas para o transporte dos procuradores.

  • 20

    perpetradas e, muitas vezes, personificadas na autoridade das chefias na ausncia de

    procedimentos formalizados12, adotei algumas providncias: elaborei um pequeno texto

    onde definia rapidamente as atividades desenvolvidas pelo antroplogo e explicava as

    atribuies do antroplogo no Ministrio Pblico Federal, passei a acumular os pedidos de

    viatura e de dirias com o maior nmero de documentos possvel, tratando de exibir a

    designao formal exarada pelo procurador para a execuo do trabalho.

    O ingresso de profissionais com formao universitria aps a criao dos postos

    especializados inaugurou uma nova fase do Ministrio Pblico Federal que, at ento,

    mantinha em seus quadros um staff com formao mdia. Esse fator desencadeou uma

    rearticulao da distribuio dos cargos de confiana, imprimindo um novo tipo

    competitividade, a dos ttulos. O preenchimento dos cargos de analistas - pericial,

    processual, informtica e administrativo - ampliou o leque de escolha para ocupao dos

    postos de chefia, vinham sendo exercidos por funcionrios sem formao especfica. O

    ingresso de profissionais qualificados nos quadros do Ministrio Pblico jogava novo foco

    em torno das disputas por prestgio e cargos, especialmente, considerando a carreira

    pericial, que tem como caracterstica de atuao a proximidade na relao com os

    procuradores.

    O aprendizado sobre o exerccio da funo pericial no MPF no foi unilateral: compreender

    o papel da instituio, apreender o alcance e os limites da natureza trabalho pericial,

    familiarizar-se com o universo dos instrumentos jurdicos, da linguagem, das formalidades

    e da hierarquia consumiu tempo de observao e de estudo. O trabalho pericial em

    antropologia foi inaugurado na PR em So Paulo com curiosidade que derrubava

    prateleiras. Aps a leitura integral dos processos, eram elaborados relatrios que serviam

    para esclarecer dvidas processuais da leitora e para sanar a falta de formao na rea

    jurdica. Seguiam-se pesquisas sobre legislao indigenista, Constituio Federal e sobre as

    responsabilidades dos rgos pblicos envolvidos, tudo com vistas a oferecer as sugestes

    12 As dificuldades para execuo dos trabalhos externos necessrios s atividades de assessoramento antropolgico decorriam da falta de procedimentos formais que normatizassem os pedidos de dirias e reservas de viaturas oficiais, paralelamente perplexidade da administrao diante da necessidade de disponibilizar tais recursos funcionria.

  • 21

    de encaminhamento includas nos textos, visando construo de alternativas para o

    enfrentamento da solicitao apresentada ou para a apurao da denncia formulada. Os

    trabalhos produzidos eram compostos por pesquisa acerca da produo acadmica

    disponvel sobre o tema, que era consultada e estudada. Depois do material organizado,

    eram realizadas visitas aos interessados em que procurava consolidar e, muitas vezes,

    reorientar - as impresses oferecidas pela leitura dos documentos constantes dos autos dos

    processos.

    prprio da carreira do procurador uma certa rotatividade entre as reas de atuao, em

    oposio carreira pericial, que tem maior permanncia, o que faz com que o antroplogo

    tenha contato de longa durao com os temas, as demandas e os grupos. Ao transformar-se

    em titular da nova rea de atuao, o procurador requisitava mais intensamente uma faceta

    da atuao do antroplogo, fazendo com que os relatrios, laudos e pareceres apresentados

    por escrito fossem objeto de esclarecimento em extensas conversas. Essa caracterstica da

    atividade de assessoramento antropolgico inaugurou modo diverso de relacionamento

    funcional entre o conjunto de servidores e o corpo de procuradores. Cada um dos

    procedimentos em curso propiciava, alm do contato mais direto do procurador com o texto

    antropolgico, discusses pessoais em que o momento da argumentao era visto como

    capaz de provocar ou ampliar a sua simpatia e a sensibilizao pessoal pelas causas em

    questo, elemento que se demonstrou determinante na atuao em vrios processos.

    Em certa medida, a apropriao do texto antropolgico pelo membro do MPF e, muitas

    vezes, pelo juiz como elemento a ser considerado na deciso remete ao momento em que

    o antroplogo est desafiado a produzir uma escrita convincente e capaz de produzir

    resultados. Nesse sentido, trata-se de fazer uma antropologia que seja teoricamente

    consistente, que possa ser apropriada e compreendida pelo leitor que no tenha formao

    antropolgica. O que faz antroplogo trabalhar com fatos materiais porque baseado na sua

    experincia etnogrfica, mas em grande medida ele trabalha com a construo de

    argumentos. Trata-se, tanto quanto possvel, de construir uma verdade ancorada em provas

    materiais, passvel de comprovao pela materialidade e pela objetividade dos dados,

    conforme exige o mundo jurdico, mas tambm e sobretudo de operar a construo de um

  • 22

    tipo de verdade argumentativa, denominada por Todorov (1979) de verdade-

    desvelamento, que est relacionada capacidade de ser convincente e de fazer seu

    discurso repercutir com maior abrangncia e resultado.

    Em geral, alm da construo do convencimento a partir da argumentao, era sugerida

    uma visita pessoal do procurador ao grupo interessado no pleito. Essa medida mostrou-se

    eficaz no que diz respeito permeabilidade do procurador face s demandas apresentadas

    na proporo de sua prpria sensibilidade e produziu alguns resultados surpreendentes. Era

    o momento em que o procurador poderia assumir como sua tarefa institucional a defesa e a

    representao do pedido daquele grupo face ao universo jurdico-formal. A profundidade

    com que essa tarefa era abraada relacionava-se diretamente com a consistncia interna das

    demandas apresentadas, mas tambm com a disposio do procurador mais ou menos

    sensvel s demandas. Essa sutileza presente na conduo dos processos relacionados s

    causas coletivas no pode ser tomada como nico e determinante fator a aferir o

    desempenho do procurador de maneira absoluta e objetiva. No entanto, deve ser

    considerada porque permite a expanso do modo de apreenso da realidade, ao superar o

    contato de segunda mo proporcionado pelos autos dos processos, peas

    processuais, relatrios, laudos e pareceres para mergulhar no contato direto e de primeira

    mo com os sujeitos e suas vidas, seus dramas, seus filhos, suas famlias, sua realidade,

    enfim. Na medida em que ganhavam contornos concretos, os sujeitos e suas demandas

    estabeleciam comunicao mais direta e influente com a subjetividade do procurador, o

    maior agente responsvel pela determinao do ritmo das providncias. Esse ritmo est

    vinculado ao impacto resultante das possibilidades de comunicao entre a subjetividade

    dos sujeitos e dos operadores do direito, bem como pode ser melhor delineado com a

    discusso sobre a atuao dos procuradores de fatos ou aqueles que colocam o p na

    lama, realizada no captulo 4.

    certo que nem sempre o contato de primeira mo do procurador com os sujeitos do pleito

    produz e produziu efeitos positivos para a defesa da demanda. Refiro-me oportunidade

    em que uma liderana indgena do centro-oeste brasileiro compareceu PR em So Paulo

    portando um pedido. Desejava o lder, que se apresentava como cacique, ganhar uma

  • 23

    Toyota para sua aldeia. No se tratava de um qualquer veculo automotor, mas de um

    pedido especfico: uma caminhonete com fabricante e modelo determinados que seria usada

    para o transporte dos outros ndios da aldeia. O pedido no vinha acompanhado de

    nenhum detalhamento ou, conforme prtica comum de agncias financiadoras e ONG,

    vinculado a qualquer projeto. A primeira vez, o lder indgena, que compareceu PR

    ricamente enfeitado com um adorno de cabea, foi recebido por um procurador e teve seu

    pedido reduzido a termo com o compromisso de ser encaminhado aos canais

    competentes, embora no necessariamente atendido.

    A segunda vez, alguns dias depois da primeira visita, compareceu sem os tais adereos,

    para saber quando o veculo seria entregue e foi encaminhado a mim, que esclareci ao

    impaciente visitante as atribuies do Ministrio Pblico Federal, explicitando que entre

    suas funes institucionais no estava a de doar ou viabilizar a doao de bens materiais.

    explicao seguiu-se o fornecimento de uma lista de entidades voltadas defesa de causas

    indgenas, orientando-o a procurar alguma que se dispusesse a ajudar, alertando-o, desde

    logo, que a nfase da atuao dessas entidades era a luta por direitos e o fomento a

    projetos e programas com objetivos de atendimento sade, educao e sustentabilidade

    econmica.

    Viu-se, a partir de ento, um lder indgena cada vez mais irritado e impaciente para

    continuar ouvindo minhas justificativas. Rapidamente levantou-se e saiu resmungando que

    era todo mundo igual FUNAI. Pouco tempo depois, procurador que soubera do

    episdio cuja notcia espalhou-se rapidamente, afinal no era comum a presena de

    ndios de verdade na PR - encontrou-me no elevador e indagou irnico sobre o paradeiro

    do lder indgena e a sobre a resoluo de sua demanda. Relatei o segundo encontro e o

    encaminhamento sugerido. O procurador, que nunca chegou a atuar diretamente junto ao 1

    ofcio da tutela coletiva, encontrou-me muitas outras vezes no elevador, nos corredores da

    instituio, em reunies de trabalho e nunca perdeu a oportunidade de provocar-me, de

    maneira bem humorada, repetindo que tambm gostaria de ganhar uma caminhonete.

    Desse episdio emergiu uma outra faceta da atuao antropolgica esperada, em

    determinados momentos, pelos procuradores. Trata-se de mobilizar os antroplogos a partir

  • 24

    da idia de que eles conhecem os ndios e que, portanto, esto habilitados a estabelecer as

    mediaes necessrias e a facilitar o acesso s comunidades indgenas, refletindo uma

    expectativa eminentemente instrumental de sua atuao13.

    O primeiro ano de atuao foi marcado por um estranhamento generalizado em relao ao

    universo de questes postas, aos veculos jurdicos utilizados, linguagem formalista

    empregada, s regras de hierarquia vigentes no rgo. Prevalecia a sensao de caos e a

    impresso de que no havia funo para o antroplogo pelo menos para mim - no

    Ministrio Pblico Federal. A formao acadmica parecia pouco auxiliar na compreenso

    dos problemas concretos. As instituies pblicas com quem se estabeleciam os contatos

    eram, ento, verdadeiros labirintos de nomes, cargos e atribuies legais que escapavam ao

    entendimento.

    O processo de absoro da funo pericial em antropologia no mbito da Procuradoria da

    Repblica em So Paulo envolveu ainda outros aspectos associados na construo e na

    consolidao desse lugar. Em primeiro lugar, essa posio est relacionada ao tipo de

    insero que o antroplogo obtm junto aos procuradores e ao staff de funcionrios do

    rgo, sobretudo os nveis intermedirios de chefia e aqueles responsveis por tarefas

    administrativas rotineiras do rgo, especialmente o setor de pessoal e os setores

    responsveis pelo controle dos recursos.

    O assessoramento oferecido aos procuradores no campo da antropologia talvez mais do

    que em qualquer outra rea do conhecimento - est imbudo da funo de intermedirio

    entre determinados setores da sociedade e o Ministrio Pblico Federal. A atuao

    profissional na rea do assessoramento antropolgico marcada pela construo contnua

    de relaes com os procuradores de atuao local, regional e nacional para atribuio de

    sentido a determinadas demandas apresentadas ao rgo. da natureza desse

    assessoramento, ao lidar com contextos conflituosos, decodificar processos sociais

    13 Joo Pacheco de Oliveira Filho referiu-se a essa faceta das expectativas sobre a atuao do antroplogo como mensageiro porque tido como aquele que conhece as lideranas mais srias, como uso extremamente antigo da antropologia. (Seminrio Nacional dos Analistas Periciais em Antropologia, Florianpolis, 24 de abril de 2001).

  • 25

    complexos com o objetivo de desvendar subjetividades presentes, em dilogo permanente

    com os operadores de direito, em que se movimentam noes, pr-noes, conceitos, pr-

    conceitos, preferncias e idiossincrasias pessoais, clivagens de classe social e de gnero.

    Esse conjunto de marcas indissociado do poder exercido pelo procurador e remete

    possibilidade de assumir para si a tarefa de formular juridicamente o pleito de determinado

    grupo. Objetivar subjetividades e interpretar contextos polticos, portanto, revela-se a tarefa

    do antroplogo visando a assessorar a defesa de direitos realizada pelo MPF14.

    O carter e a natureza dessa atuao esto marcados pelos limites da autonomia do

    antroplogo. Limitada pela autoridade do procurador, a posio do antroplogo dentro do

    rgo pode ser definida como perspectiva j que suas sugestes e recomendaes podem ou

    no ser consideradas e acolhidas, circunscrevendo-se aos parmetros de deciso do

    procurador. Apesar de no deter meios de deciso, o antroplogo ocupa uma posio a

    partir da qual faz-se apto a influenciar decises. A possibilidade real de que seu trabalho

    tenha efeitos polticos mais ou menos imediatos confere a ele um lugar de destaque no

    mbito da instituio, notadamente por seu saber ser considerado especial na medida em

    que chamado pelos procuradores a traduzir contextos culturais e conjuntos de

    significados, ampliando as suas possibilidades de compreenso.

    O trabalho de traduo, ou decodificao solicitado ao antroplogo no se limita,

    entretanto, interpretao de situaes sociais visando mera instruo de cada

    procedimento; espera-se seja ele capaz de transcrever os elementos do ordenamento

    jurdico vigente, de modo a torn-los claros face aos clientes externos do Ministrio Pblico

    Federal, devendo nesse movimento ressaltar os limites da atuao institucional, suas

    possibilidades de sucesso, os riscos de fracasso, o emaranhado do sistema e sua relativa

    dependncia em relao ao poder judicirio e aos outros setores do poder pblico com

    atribuio executiva. Aspecto importante da atuao do antroplogo no Ministrio Pblico

    Federal diz respeito qualidade e confiabilidade dos contatos estabelecidos com a rede de

    relaes construda com o pblico externo do rgo, composto pelos setores que 14 Acerca do papel e da responsabilidade do antroplogo na atuao em defesa de direitos sociais ver Maybury-Lewis (1992); Schlemmer (1992); Santos (2001); Cardoso de Oliveira (1996a e 1996b); Silva de

  • 26

    reivindicam direitos e seus intermedirios. Conhecer esses interlocutores, os canais para

    obteno de informaes junto s ONG, aos rgos pblicos federais, estaduais e

    municipais, bem como obter boas condies de insero parte importante da tarefa

    desempenhada pelo antroplogo no exerccio da funo pericial.

    Esse aspecto da atuao do antroplogo visto pelos procuradores como central no

    desempenho das suas atividades na medida em que sugere, ao mesmo tempo, credibilidade

    e conscincia sobre os limites prprios do campo de aes do Ministrio Pblico Federal,

    indicando a preocupao recorrente dos seus membros em no criar falsas expectativas

    junto s populaes atendidas.

    As tarefas do antroplogo no MPF, considerando as expectativas postas pelos membros em

    torno da sua atuao e o efetivo papel por eles desempenhado, como uma espcie de

    intermedirio de mo dupla entre as lgicas nativas e a lgica do mundo jurdico-formal,

    remetem clssica discusso em torno da antropologia como traduo da realidade, do

    campo de atuao e do papel dos antroplogos em vrios contextos sociais e histricos. Na

    perspectiva que coloca a antropologia como traduo est includa a possibilidade de

    penetrar no universo mental do outro, de compreender de dentro lgicas particulares

    recompondo sua coerncia interna, do modo como ensaiou Malinowski em suas pesquisas

    com os trobriandeses: a etnologia trouxe leis e ordem quilo que parecia catico e

    anmalo. Transformou o extraordinrio, inexplicvel e primitivo mundo dos selvagens

    numa srie de comunidades bem organizadas (...) agindo e pensando de acordo com

    princpios coerentes (Malinowski; 1978: 23).

    De algum modo, a idia da traduo recupera Durkheim quando afirma o papel da ento

    nascente sociologia como o de nos ensinar a tratar com respeito, mas sem fetichismo, as

    instituies histricas sejam elas quais foram, fazendo-nos sentir o que elas possuem ao

    mesmo tempo de necessrio e de provisrio, a sua capacidade de resistncia e sua infinita

    variabilidade (Durkheim; 1978: 160). A compreenso do fato social total, dependente da

    sua apreenso como coisa e como realidade vivida, deriva da especificidade do objeto

    Sousa (2001).

  • 27

    antropolgico: um objeto de mesma natureza do sujeito que , ao mesmo tempo, coisa e

    representao. O modo de conhecimento prprio das cincias do homem caracterizado

    pelo fato de que o observador, para compreender seu objeto, esfora-se para viver nele a

    experincia daquele, o que s possvel porque esse objeto , tanto quanto ele, sujeito.

    Fazer antropologia seria exercer um duplo movimento, baseado no descentramento mtuo

    de observador e de observado. Como diz Laplantine, to til a mim na tarefa de explicar o

    fazer antropolgico para no antroplogos, trata-se de no sucumbir ao dogmatismo de

    uma natureza ou de uma essncia humana sempre idntica a si mesmo que reduz o outro

    ao ocidentalismo. Trata-se ainda de evitar o risco da tentao emprica que vem da

    submisso dcil ao campo, do registro ficticiamente passivo dos fatos, que d ao

    observador a impresso de situar-se do lado das coisas, de estar junto delas. Nesse

    registro, a atividade do antroplogo no consiste em fotografar, gravar, anotar, mas em

    decidir quais so os fatos significativos, e, alm dessa descrio (mas a partir dela), em

    buscar uma compreenso das sociedades humanas. (Laplantine; 1991: 193).

    O empreendimento resultante do trabalho etnogrfico, como diz Geertz, um negcio

    enervante que s bem sucedido parcialmente como experincia pessoal; uma tentativa de

    formular a base na qual se imagina, sempre excessivamente, estar-se situado. O que se

    deve procurar no tornar-se nativos ou copi-los; o objetivo muito mais do que

    falar, conversar com eles, o que muito mais difcil, e no apenas com estranhos, do que

    se reconhece habitualmente (Geertz; 1978: 24).

    O que precisa ser ressaltado que, no exerccio de assessoramento pericial, o processo de

    construo de contextos inteligveis (Geertz, 1998) implica, necessariamente, duas mos.

    De um lado, trata-se de tornar mais compreensvel para os procuradores e para o prprio

    sistema judicial a emergncia de certas demandas e, no raramente, de determinadas

    identidades sociais. Nesse processo, deslindam-se tambm novas frentes de luta por direitos

    coletivos. Por outro lado, esperado que o antroplogo possa auxiliar a compreenso, por

    parte dos sujeitos desses direitos, das implicaes decorrentes da apresentao de suas

    demandas. E, sem dvida, esse contexto dialgico construdo em base a substratos

  • 28

    eminentemente polticos.

    certo ainda que no MPF, ainda considerando o substrato da antropologia como traduo,

    o papel do antroplogo aproxima-se do uso da definio de cultura no no seu nvel

    literal15, mas no nvel em que cultura corresponde a uma fala poltica. Nesse contexto, a

    fala poltica sobre a cultura deve ser reconhecida por antroplogos no como referncia

    a uma iluso, a invenes (tudo agora inventado), e sim como referncia externa a modos

    diferentes de conceber o que existe (...). Reconhecer isso significa, de fato, (...) trazer luz

    e respeitar as diferentes ontologias dos povos do mundo, em vez de reduzi-las a invenes e

    imaginaes (Almeida; 2004: 75).

    Por sua especificidade, entretanto, o exerccio da antropologia no MPF desenvolve-se na

    interao com sujeitos construdos de maneira diversa da operadas pelas construes

    metodolgicas clssicas16. Em contextos de pesquisa antropolgica acadmica, a escolha

    dos sujeitos, sua construo e a definio dos objetivos da pesquisa passam

    necessariamente pela relevncia terica das questes que podem suscitar. No contexto

    institucional, essas definies se impem ao antroplogo e, de certa maneira, precedem e

    determinam a abordagem da etnografia em situaes de observao altamente dirigidas

    no exclusivamente as inerentes aos levantamentos necessrios aos laudos, mas sobretudo,

    nelas que devem se realizar sob a presso do tempo comprimido e das situaes de

    conflito17. Mas, da produo antropolgica realizada no MPF espera-se consistncia,

    15 Correspondente quilo que os antroplogos tinham em mente at pouco quando chamavam de cultura algo que, embora dinmico e mutvel, informava valores e aes (Carneiro da Cunha apud Almeida, 2004: 75). 16 Mauro W. B. de Almeida mostra como antroplogos brasileiros transcenderam o estilo etnogrfico clssico representado por Boas ou Malinowski, para exercer uma antropologia em que os nativos so concidados. Tratou-se, num primeiro momento, de defender direitos de populaes indgenas ameaadas e, depois, de incluir na agenda da pesquisa os favelados, dos negros, de religies coagidas, de subculturas escorraadas, de presos, bandidos e minorias sexuais. Essa antropologia politizada, configurada entre a militncia e a carreira acadmica, independe de opes tericas e integram um campo de ativismo que se interliga com a ao jurdica, com a cooperao de gelogos e gegrafos, e com movimentos sociais. Transcendemos a noo de etnografia, enquanto relao entre observador e observado, caminhando em direo a etnografias colaborativas e coletivas, e transcendendo a separao entre especialidades acadmicas(2004: 73-4) 17 fato que as atuais condies de trabalho do antroplogo, mesmo aqueles pesquisadores dedicados carreira acadmica, esto cada vez mais distanciadas do ritmo idealizado para produo das suas pesquisas. Para Barth (2000) preciso dimensionar as conseqncias polticas do trabalho antropolgico e ajustar seu ritmo a tais conseqncias.

  • 29

    espera-se que consiga realizar-se de modo competente para permitir o dilogo com a lgica

    do poder do universo jurdico.

    A antropologia realizada nesse contexto coloca em cheque distines operadas

    classicamente entre uma antropologia pura e acadmica dirigida essencialmente para a

    pesquisa e uma outra, aplicada ou prtica. Se tipificarmos, para argumentar, essas duas

    vertentes do fazer antropolgico em dois modelos, o primeiro seria definido como o

    domnio do ensino e da pesquisa, a etnografia com preocupaes tericas claras: mapas

    locais sem guias de passagens para mapas globais (Almeida; 1992: 118). O outro modelo

    estaria dirigido por preocupaes pragmticas, em grande medida, orientadas pelo contexto

    da expanso colonial ou de situaes de guerra18: atlas da razo de estado sem suporte em

    mapas locais (Almeida; 1992: 118).

    Essa distino datada vai perdendo sua fora na medida em que um dos usos esperados do

    trabalho antropolgico no MPF que ele seja capaz de instrumentalizar a defesa de direitos

    de populaes ditas minoritrias, como as indgenas, quilombolas e, em algumas situaes,

    populaes urbanas identificadas com a orientao sexual diversa19. A noo de

    antropologia aplicada no seria adequada para designar o tipo de atuao profissional que

    se desempenha nesse contexto, vez que ela menos comprometida com as populaes s

    quais se refere. As fronteiras internas que separam o conhecimento produzido de outras

    formas de saberes aplicados tm sido rompidas mediante a noo de antropologia da

    ao, proposta por Barth (2000) em que o antroplogo carrega sua base acadmica e

    slida formao na disciplina, avaliado e reconhecido pelos seus pares da comunidade

    cientfica (O Dwyer; 2001:168).

    possvel afirmar que a atuao pericial em antropologia na Procuradoria da Repblica em

    So Paulo foi-se consolidando aos poucos, formulada a partir de um conjunto de 18 Evans-Pritchard (1976) e Ruth Benedict (1946) para restringir os exemplos. 19 A ausncia expressa da meno defesa de direitos culturais como atribuio do MPF na Constituio Federal e na Lei Complementar n. 75/93 foi, segundo Ela W. Castilho, falta de percepo do desenvolvimento dos direitos. Mas, a partir de uma interpretao normativa abrangente, o MPF tem assumido a defesa dos direitos humanos divididos entre fundamentais e coletivos (sociais e culturais)

  • 30

    expectativas variadas sobre as possibilidades e os usos do trabalho antropolgico. A

    posio do antroplogo no MPF reflete um lugar que se constri processualmente, durante

    e no mbito da relao estabelecida entre ele, o procurador e os grupos sujeitos do direito,

    portanto, exposta oscilao de circunstncias polticas mais variadas. Essa caracterstica

    ajuda a explicar a heterogeneidade das experincias relatadas por antroplogos colocados

    nas vrias sedes da Procuradoria da Repblica em todo o pas.

    A posio ocupada pelo antroplogo na instituio, ao mesmo tempo, permite e obriga

    acesso privilegiado a informaes e pessoas envolvidas nos processos de tomada de

    deciso, execuo e encaminhamento colocadas junto a rgos governamentais e no

    governamentais, possibilitando um campo de circulao e de comunicao entre os vrios

    atores do processo. Essa esfera da atuao do antroplogo parece importante j que a ela

    esto associados conjuntos de interpretaes sobre o contexto das lutas sociais e dos

    conflitos entre os atores envolvidos que o procurador pode buscar compreender por

    intermdio da assessoria antropolgica.

    A maneira pela qual a atuao antroplogo alterou a relao dos procuradores com os

    grupos sociais sujeitos de direitos pode ser verificada pelo crescimento das autuaes de

    processos extrajudiciais, como ser demonstrado no captulo I e por meio das expectativas e

    das avaliaes que fazem os procuradores, como ser discutido no captulo IV. suficiente,

    por ora, admitir que o preenchimento do cargo de analista pericial em antropologia foi

    importante para consolidar e ampliar a atuao da Procuradoria da Repblica em So Paulo

    em relao aos direitos humanos20 de uma maneira geral e, em especial, aos direitos

    coletivos reivindicados por determinados grupos sociais, entre os quais os indgenas e

    com base na idia de que so, ao mesmo tempo, universais e indivisveis. (Conferncia de Abertura do Curso Preparatrio para os Novos Antroplogos no MPF, em 28 de maro de 2005) 20 extensa a discusso sobre a formulao e a histria dos direitos humanos como categoria de pensamento, sobre os paradoxos e os conflitos decorrentes da sua imposio como conceito universal , bem como sobre a apropriao dessa categoria pelos movimentos em defesa de minorias e grupos sociais vulnerveis. Ver a coletnea organizada por Arantes, Ruben e Debert (1992); Silva de Sousa (2001); Diniz (2001); Santilli (2001); Bonetti (2001); Catela (2001); Fonseca (1999); Kant de Lima (1988); Sigaud (2001); Esteva (1998) e (1995); Souza (2003); Oliveira (1999); Cardoso de Oliveira (1992); Lopes (1987); Maia (s/d); Marquand (1994); Dienstein and Mala (1992).

  • 31

    quilombolas e, alm destes, outras populaes tradicionais21. No decorrer do trabalho,

    procurar-se- demonstrar como se articula o papel do antroplogo perante as novas

    atribuies do MPF na defesa desses direitos. As mudanas ocorridas nos papis e nas

    atribuies do Ministrio Pblico esto relacionadas a transformaes importantes que

    atingiram as relaes entre a sociedade brasileira e o direito (Silva, 2001):

    As demandas e conflitos protagonizados por movimentos sociais, junto com as presses pelo estabelecimento de um regime democrtico tornaram-se referncias na reavaliao do funcionamento e da estrutura da justia brasileira nos anos 70 e 80. As reivindicaes e diagnsticos de vrios atores alimentaram propostas para a reforma de instituies e procedimentos jurdicos. O direito de inspirao liberal passou a ser cada vez mais identificado como instrumento til ao regime autoritrio, por enfraquecer demandas coletivas, e como fator de isolamento do Poder Judicirio, incapaz de absorver as novas demandas (Silva; 2001: 128).

    Essas transformaes provocaram um redimensionamento das funes originais do

    Ministrio Pblico que, de rgo fiscal da lei, incumbido da proteo s partes processuais

    hipossuficientes, avocou para si e passou a ser visto como guardio da sociedade e do

    Estado de Direito, como rgo de proteo da sociedade democrtica, pluricultural e

    multitnica, alm de ser tambm denominado o quarto poder da Repblica em decorrncia

    da ampliao de seus poderes22. Essas diversas denominaes correspondem ao

    alargamento das suas atribuies, que incorporaram a defesa de grupos sociais que

    passaram ter direito a ter direitos23, abrangidos na conceituao geral de portadores de

    21 As definies mais ou menos consensuais acerca da noo de populao tradicional, no sentido de diferenci-la das sociedades industriais, acabaram por unific-la em torno de atributos comuns: "economia baseada na unidade domstica, destinada, em primeira instncia subsistncia e em segundo ao mercado externo" (Sanches; 2004: 54), apesar da enorme diversidade sociocultural que o termo pressupe e abrange. Sob a denominao tradicional, conforme entendida atualmente, aparecem os caipiras, os pescadores artesanais, os caboclos, os ribeirinhos, os caiaras, os seringueiros estudados por diversos autores: Martins (1981); Cndido (1971); Marclio (1986); Diegues (1983); Mussolini (1980); Almeida (1995). Por outro lado, a emergncia de grupos auto-denominados tradicionais como sujeitos de direitos perante o Estado brasileiro tem indicado que essa noo vem-se transformando numa categoria apropriada politicamente. Seu uso est, em grande medida, relacionado emergncia de direitos de populaes presentes em espaos ambientalmente protegidos. Para acompanhar o debate acerca da construo e dos diversos usos da idia de populao tradicional, Vianna (1996); Sanches (2004); Diegues (2000); Adams (2000); Murrieta (1994); Lima-Ayres (1992). 22 Para uma leitura crtica dessas transformaes ver Debert (2000); Sadek (1995a), (1995b), (1996), (1997) e (2000); Sadek e Castilho (1998); Arantes (1997); Arantes e Kerche (1999). 23 Para uma anlise da emergncia das lutas dos seringueiros pelos direitos floresta ver Almeida (2004).

  • 32

    interesses e direitos coletivos24 em razo de sua especificidade25. Uma das reas de atuao

    mais significativas do MPF, em todo o Brasil, no campo dos interesses e direitos coletivos

    est ligada luta das comunidades remanescentes de quilombos pelo reconhecimento de

    seus direitos territoriais e culturais. Em So Paulo, a histria do movimento, que se

    consolidou na dcada de 1990, est intimamente ligada atuao do MPF como agente

    importante do processo. Nos ltimos quinze anos, comunidades rurais negras26

    24 As inovaes introduzidas no campo do Direito brasileiro tm correspondncia com a tendncia especificao dos sujeitos (Bobbio, 1978), que levou ao reconhecimento e regulamentao de novos direitos para mulheres, crianas, jovens, negros e idosos (Silva, 2001). Assim, conflitos sociais adquirem cada vez mais o carter de conflitos jurdicos, em face do surgimento de movimentos sociais, da expanso dos direitos e do welfare state (Silva; 2001: 128). 25 O movimento que torna visveis para o direito grupos especficos tem sido bastante estudado pela antropologia, sobretudo sob a tica dos impasses decorrentes do universalismo que orienta seus princpios e da diversidade das "comunidades morais" (Segatto; 1998: 02). Ver tambm Debert (1999); Segatto (2004); Ramos (1991); Cardoso de Oliveira (1992) e (1996b); Souza Santos (2003). 26 O percurso da pesquisa sobre a questo racial e a etnicidade no Brasil, como temtica do pensamento social relacionada identidade nacional, est exposto de maneira competente excelente balano crtico realizado por Schwarcz (1999). Resultando incua iniciativa semelhante, deve o leitor recorrer a mencionado ensaio para conhecer o rigoroso e completo levantamento bibliogrfico a que a discusso est aludida. Limito-me a referir os momentos mais significativos em que a questo racial e a etnicidade foram objeto do interesse de pesquisadores, com foco nos estudos de base demogrfica e etnogrfica. Os primeiros momentos da questo racial no Brasil foram marcados pelo esforo de criao de uma identidade para o Brasil, diversa da identidade metropolitana, em que os objetos de estudo estariam entre ns. No perodo romntico, destacaram-se os viajantes e naturalistas descrevendo o territrio, por sua especificidade, e as gentes locais: sociedades indgenas, concentraes negras e mestias (1999: 271), em que prevalecia uma natureza edenizada com seus indgenas puros quase rousseaunianos que pareceram inspirar uma representao particular transformada em cone nacional (1999: 270). Inspirada pela especificidade do vasto material que transformava o Brasil em laboratrio racial, a produo do sculo XIX estava marcada pela preocupao de afastar a mestiagem, sobressaindo-se os estudos que nela viam o risco da degenerescncia nacional. Nesse contexto, o conceito de raa permitia naturalizar as diferenas e explicar, por meio da biologia, a prpria hierarquia social (1999: 274). Prevaleceu, no contexto do incio do sculo, a crtica ao conceito de raa, com o deslocamento para as noes de higiene e educao a influenciar a concepo de polticas culturais destinadas a reconhecer a mestiagem como a verdadeira nacionalidade. Nos anos 30 do sculo XX, a mistura foi, por um lado, retomada, principalmente por Gilberto Freyre e sua influncia culturalista, a partir da releitura positiva do mito das trs raas e, por outro lado, a partir dos anos 50, a partir de uma perspectiva sociolgica, pela reflexo crtica sobre o mito. Por mais que a tese culturalista desqualificasse o argumento biolgico como fonte explicativa das diferenas, no refletia sobre as desigualdades estabelecidas em 400 anos de convivncia entre brancos e negros. Este dado foi objeto das pesquisas entre os anos 50 e 60, em que se notava que a democracia racial ocultava a discriminao, numa diviso que no era racial ou cultural, mas sobretudo econmica (1999: 278). Nesse movimento, a pesquisa encomendada pela UNESCO no Brasil foi central para o desenvolvimento de uma vertente crtica ao conceito de raa, dado o seu uso devastador pelas polticas de extermnio do nazismo. Foram expressivas as anlises de F. Fernandes, que indicavam a tolerncia racial como resultado de um cdigo de decoro a separar os grupos sociais, bem como a prevalncia do brasileiro em ter preconceito de ter preconceito. As inovaes tericas introduzidas pelas anlises sociolgicas desse momento implicaram: 1. a superao da discusso naturalista e determinista em voga nos anos 30; 2. a maior institucionalizao das cincias sociais no Brasil; 3. a mudana de enfoque nas pesquisas etnogrficas que, at ento, dedicavam-se anlise da influncia africana sobre as populaes negras locais (1999: 283). Se esse movimento proporcionou a desmontagem terica do mito da democracia

  • 33

    habitantes no vale do rio Ribeira de Iguape27 vm-se transformando em protagonistas de

    um movimento de luta por terras ocupadas caracterizado pela reivindicao do ttulo de

    propriedade garantido no artigo n. 68 do ato das disposies constitucionais transitrias

    ADCT da Constituio Federal, aos remanescentes de comunidades de quilombo e pela

    oposio a projetos de usinas hidreltricas28 que implicariam na construo de barramentos

    racial, ele tambm fixou o tema da raa questo de classe e o afastou da cultura entendida como o modelo que permite entender universos de sociabilidade e de representaes; costumes assentados na longa durao (1999: 285). Com a entrada dos anos 70, uma nova leva de estudos destaca as particularidades do preconceito racial no Brasil, como os que analisam a discriminao em veculos de comunicao, as desigualdades de acesso educao e ao lazer e a distribuio desigual da renda. Parte da produo acadmica est voltada, nesse perodo, ao comprometimento com os movimentos sociais. Com a chegada dos anos 80 e 90, vrios estudos retomam o tema e a anlise de base demogrfica e demonstram como o preconceito de cor no estava exclusivamente atrelado a uma questo econmica e social, persistindo como um dado divisor social. A tese geral dessas investigaes era que tais desigualdades apresentavam um componente racial inequvoco, que no poderia ser diludo num gradiente de cor (1999: 287). Os estudos que resultaram da pesquisa da UNESCO sedimentaram, segundo Schwarcz, uma nova tradio representada, de um lado, pela tese de que o perfil hierarquizante da sociedade brasileira seria uma persistncia do passado, que tenderia a desaparecer com a industrializao ou com a tomada de conscincia da classe trabalhadora. Por outro lado, estudos realizados nos anos 80 se separam dessa tradio, estabelecendo diferena entre grupos de cor e classes sociais, e de grupos de cor e posio social, como critrios que levaram os pesquisadores a ampliar estudos de distribuio de renda, do acesso educao e ao emprego e a reintroduzir de nova forma a categoria raa como varivel explicativa (1999: 293). A crtica re-racializao presente nessa produo que ela no permite explicar um uso social da cor e a prpria questo da etnicidade (1999: 294). Com os estudos de etnicidade realizados, a partir dos anos 60, sobretudo por antroplogos ingleses, se ressaltaram as dimenses polticas da identidade, seu carter circunstancial e dinmico, fortalecendo uma leitura crtica da noo de cultura. So ressaltados aqui os aspectos de formao da identidade relacionados mecnica da alteridade aliada s alteridades de um passado (1999: 299). Para o interesse deste trabalho, falta ainda referir ao momento mais recente de politizao da questo racial , em que os trabalhos colaboram, de formas diversas, com todo um movimento legtimo de auto-afirmao das populaes negras aqui residentes, mas em alguns casos padecem de um certo distanciamento, necessrio, reflexo crtica (1999: 303). Trata-se da introduo da agenda das polticas em defesa das aes afirmativas no debate acadmico, representada tanto por eventos promovidos por ocasio do centenrio da abolio quanto por grupos de trabalho patrocinados pela ANPOCS. Outra vertente dessa tendncia so os estudos sobre as situaes sociais hoje designadas como quilombos (1999: 304), como se discutir mais adiante. De todo modo, a importncia do balano crtico realizado por Schwarcz reside em mostrar a contnua tentativa de descrever e entender a questo racial no Brasil (1999: 307), de maneira que raa seja, ao mesmo tempo, um problema e uma projeo (1999: 312). uma possibilidade de repensar os impasses dessa construo contnua de identidades que, se no se resumem fcil equao da democracia racial, tambm no podem ser jogadas na vala comum das uniformidades(1999: 312). 27 Os estudos rurais tambm ocupam lugar relevante na produo da antropologia brasileira. Algumas importantes abordagens sobre as formas e as noes que orientam a posse, a propriedade e o uso da terra em contextos rurais brasileiros esto em Moura (1978); (1988) e (1984); Andrade (1990); Pietrafesa de Godoi (1999); Brando (1981), (1982) e (1999); Candido (1971); Paoliello (1999). Sobre as formas de ocupao de terras por populaes rurais e sobre a emergncia dos quilombos no vale do Ribeira ver Paoliello (1992) e (1998); Queiroz (1983) e (1997); Carril (1995); Almeida (2004); Careno (1995); Crem (1999) e Mirales (1998). 28 Trs desses projetos as usinas hidreltricas de Funil, Batatal e Itaoca seriam iniciativa da CESP (Companhia Energtica de So Paulo) e um - Tijuco Alto empreendimento pleiteado pelo Grupo

  • 34

    no curso do rio Ribeira. a partir da atuao da Procuradoria da Repblica em So Paulo

    em defesa dos direitos territoriais e culturais das comunidades remanescentes de quilombo

    no Estado de So Paulo que se pretende contribuir para melhor compreenso do papel do

    saber antropolgico e dos antroplogos no desempenho das novas atribuies do MPF29.

    Os objetivos do trabalho e os procedimentos da pesquisa

    O problema mais geral que orientou a pesquisa foi compreender a maneira pela qual novos

    grupos se inserem e so inseridos na matriz de defesa de direitos sociais por meio das

    polticas de reconhecimento por parte do Estado. Compreender as formas pelas quais a

    especificidade de novos sujeitos polticos transforma-se, num cenrio complexo de

    conflitos de interesses e de regras, no diferencial que os qualifica como grupos portadores

    de direitos, capazes de mobilizar o Ministrio Pblico Federal como uma das instituies

    mais atuantes na defesa de seus interesses. O interesse desvendar os modos de atuao

    dos agentes que integram o campo de disputa por direitos das populaes rurais negras em

    So Paulo e, em que medida, o processo de luta pela posse e pela propriedade das terras de

    quilombos30 comunica-se com o conjunto de novas atribuies do Ministrio Pblico

    Federal na sociedade brasileira.

    Votorantim, de capital privado nacional, visando ao aproveitamento energtico para fins industriais. Este ltimo o nico projeto que tem tido desdobramentos efetivos para fins de licenciamento ambiental visando a sua implantao. 29 A atuao do Ministrio Pblico em defesa dos direitos territoriais dos quilombos realizada, em grande medida com base em laudos antropolgicos, est relacionada possibilidade de reconstruo dos elementos ancestrais de ocupao da terra por meio da memria, tomada como a organizao ativa das experincias vividas (Pietrafesa de Godoi; 1999:28). Acerca das possibilidades e dos limites terico-metodolgicos do uso da memria em variados contextos de pesquisa ver Pietrafesa de Godoi (1998) e (1999); Niethammer (1997); D Alessio (1998). 30 Lilia K.M. Schwarcz (1999) mostra como uma das vertentes mais recentes do trabalho nas cincias sociais tem sido a produo de conhecimentos relativos s situaes sociais hoje designadas como quilombos que revela no somente a existncia de um tema, como de uma problemtica e de um novo domnio intelectual. Nesse contexto, mais do que dado tnico (...) a dimenso social, a condio camponesa e os movimentos sociais em torno da questo da terra tem tomado o tema a partir de uma nova feio. Nesse novo campo, o termo quilombo, para alm de um tema histrico e datado vem sendo ressemantizado tanto poltica quanto juridicamente, e se transformado num novo mote de afirmao tnica e de mobilizao poltica, que se refere particularmente s chamadas terras de preto ou s situaes designadas pelo movimento negro como comunidades negras rurais (1999: 304).

  • 35

    Trata-se, especialmente de compreender de que modo esses novos atores bem como seus

    aliados relacionam-se com os procuradores da Repblica como representantes do

    Ministrio Pblico Federal, na condio de instituio que absorve e encampa as demandas

    apresentadas pelo movimento quilombola. Conhecer melhor as formas de atuao do MPF

    no mbito dessas lutas, especialmente aquelas travadas durante a dcada de 1990, uma

    chave para a compreenso dos significados atribudos aos seus novos papis e ao

    alargamento das suas funes no universo do Direito brasileiro31. Para o desenvolvimento

    do problema proposto, so trs os principais objetivos desta pesquisa:

    O primeiro identificar o modo pelo qual os agentes que compem o complexo cenrio de

    interesses e questes em jogo Estado, organizaes no governamentais, igreja e

    universidades interagem com o Ministrio Pblico Federal tendo em vista seu novo papel,

    dentro de um especial e complexo campo de atuaes. de interesse aqui compreender a

    dinmica dessas relaes, bem como revelar as especificidades do lugar a partir do qual se

    colocam esses agentes no norteamento de suas aes e na expresso de cada discurso,

    buscando identificar os processos e circunstncias a partir dos quais so estabelecidas as

    alianas e expressos os confrontos entre os interesses em questo.

    A anlise de aspectos da luta do movimento quilombola pela titulao de suas terras em

    So Paulo remete ao tema da judicializao de demandas sociais, na medida em que o

    sistema judicirio transforma-se em palco privilegiado para as disputas sociais, redefinindo

    as prprias prticas sociais e repercutindo na estrutura e organizao dos movimentos para

    o reconhecimento. No entanto, o movimento pelo reconhecimento de direitos apresenta

    outra faceta, qual seja a da politizao da justia32 e nesse campo que o Ministrio

    Pblico Federal desempenha papel significativo.

    31 Mesmo no sendo objetivo deste trabalho discutir o funcionamento da Justia e do Direito no Brasil, importante mencionar o resumo crtico realizado por Sadek (2002), em que a autora apresenta a produo nacional no somente sobre o sistema de justia, mas tambm sobre a ampliao do acesso aos direitos, marcando um campo de estudos que se diferencia daquele disseminado pela disciplina denominada Sociologia do Direito, constante dos programas curriculares dos cursos de Direito. Esta ltima definida pela autora como a repetio exaustiva de manuais, baseando-se muito mais em textos discursivos do que em qualquer compromisso efetivo com um saber cientfico (Sadek; 2002: 255). 32 Importantes trabalhos sobre o movimento de politizao da justia no Brasil foram desenvolvidos por Werneck Vianna (1999); Debert (2003); Maciel e Koerner (2002)

  • 36

    No eixo principal dessas disputas encontra-se o Ministrio Pblico Federal que,

    especialmente a partir da Constituio de 1988, apelidada de cidad, assume um novo

    papel, qual seja o da defesa dos interesses e direitos coletivos. Esse novo papel enseja

    novas prticas sociais, cujos agentes passam a considerar o Ministrio Pblico Federal um

    rgo importante para o encaminhamento de pleitos. Esse papel foi to decisivo nos ltimos

    anos que a literatura tem salientado os dilemas do Ministrio Pblico Federal na defesa

    desses interesses e direitos. O debate nesse campo gira em torno de duas posturas

    principais: os que entendem que ao rgo atribudo poder excessivo e outros que

    consideram as novas atribuies do Ministrio Pblico como a expresso da

    democratizao da sociedade brasileira33.

    Os elementos formais que operam na atuao do MPF em defesa dos interesses e direitos

    coletivos remetem fortemente atuao do antroplogo como figura que aglutinar as

    demandas dos grupos sociais e as elaborar de acordo com exigncias prprias do campo

    jurdico, oferecendo ao procurador um novo campo de inteligibilidades com vistas a

    assessorar sua atuao. a antropologia que oferece, a partir dos instrumentos produzidos

    pelo saber da disciplina, as variveis tcnicas que auxiliaro na formao do

    convencimento interno dos membros da instituio com vistas a subsidiar a sua atuao na

    esfera jurdica. O lugar do expert, os dilemas da produo e da autonomia intelectual, bem

    como a redefinio dos limites do ofcio decorrentes da extenso do campo de atuao do

    antroplogo nesse novo mercado de trabalho e cenrio de conflitos sero abordados de

    maneira a permitir melhor compreenso desse papel.

    O que quero ressaltar aqui que, no exerccio do novo papel na defesa dos direitos

    coletivos, o Ministrio Pblico Federal tem-se transformado numa instituio central para a

    democracia brasileira, e nele, assume lugar central o antroplogo. Procuro mostrar que a

    atuao do expert, no caso, o antroplogo, exerce papel central na medida em que intervm

    sobre o modo de atuao Ministrio Pblico Federal ao mesmo tempo que interfere com os

    prprios modos de atuao dos movimentos sociais. Chamo a ateno, pois, sobre o lugar

    33 Ver Arantes (1997); (2000); Arantes e Kerche (1999); Sadek, (1995a), (1995b), (1996), (1997), (2000); Sadek e Castilho (1998) e Silva (2001)

  • 37

    ocupado pelo profissional de antropologia no exerccio do trabalho de assessoria junto aos

    procuradores bem como suas influncias em relao s lutas sociais por direitos coletivos.

    O segundo objetivo compreender de que modo, nesse contexto complexo e conflituoso, a

    partir da luta contra a construo das barragens, consolidou-se o movimento rural negro em

    luta pela terra. Mais especialmente, interessa pensar os modos por meio dos quais se

    constituram e se articularam as lideranas desse movimento na relao com suas

    comunidades, com os outros agentes que atuam nesse campo e com o Ministrio Pblico

    Federal. Os lderes do movimento parecem atuar como intermedirios entre o conjunto dos

    membros das comunidades e os outros atores que, tambm, por meio de seus prprios

    intermedirios advogados, agentes pastorais, pesquisadores, assessores tcnicos e

    polticos acolhem as demandas formuladas e interagem com o Ministrio Pblico na

    apresentao de pleitos e na resposta a exigncias de tipo e graus variados. Para dentro de

    seus grupos de origem, as lideranas tm a dupla tarefa de traduzir o aparato legal, jurdico,

    informativo e poltico, definido como o discurso normativo, mobilizando a comunidade

    para os objetivos centrais do movimento e para apresentar aos outros intermedirios o

    contedo significativo que faz daquelas comunidades as legtimas beneficirias dos direitos

    pretendidos.

    Por um lado, interessa apreender o modo pelo qual o conjunto de aes, estratgias e

    mobilizao do movimento foi articulado com vistas a alcanar os objetivos da luta e,

    muito mais do que os seus resultados, interessa compreender as contradies desse

    caminho, que inova as relaes entre esses setores da sociedade e os aparatos do Estado e

    da Justia. Por outro lado, interessa compreender tambm como as inovaes nos aparatos

    do Estado e da Justia repercutem na dinmica e nos modos de atuao desses setores.

    O terceiro objetivo , a partir da etnografia da atividade pericial no Ministrio Pblico

    Federal, compreender seu lugar no processo de luta por direitos coletivos, especialmente o

    lugar e o papel dos especialistas para o movimento, que passa a deles necessitar, na medida

    em que o seu saber confere legitimidade demanda. A nova dinmica desse tipo de luta

    social gerada pela relao de dependncia relativa com um tipo de saber especializado

    difere claramente da dos movimentos oriundos nas periferias das grandes cidades por infra-

  • 38

    estrutura urbana, do movimento dos sem terra34 ou dos movimentos libertrios35, como o

    caso dos movimentos feministas que apresentam sua demanda diretamente ao poder

    pblico, sem que seja necessria a mediao do especialista.

    A partir do caso representado pela atuao do MPF na luta dos quilombos pela terra no

    Estado de So Paulo, procurei reconhecer o papel do antroplogo e de seu saber no mbito

    mesmo da atuao do MPF, suas repercusses, possibilidades e limites de contribuio para

    a construo de novos horizontes de direitos. Trata-se de comear a pensar sobre os

    significados decorrentes da abertura de um novo campo ou mercado de trabalho, que se

    refere ao exerccio da antropologia em contextos institucionais de disputas judiciais e

    extrajudiciais por demandas sociais. No curso da luta por reconhecimento de direitos

    ocorrida na ltima dcada, a mobilizao em torno da conquista da terra empreendida pelas

    comunidades negras do vale do Ribeira constituiu-se um foco de debates e intervenes

    pblicas que se consolidou como um campo de discusso jurdica, poltica e cientfica no

    qual o Ministrio Pblico, por meio de seus membros e do corpo de assessores,

    especialmente os antroplogos, transformaram-se em atores importantes. Sobre a

    especificidade e a complexidade dessas relaes recaiu o interesse central desta pesquisa.

    O trabalho est estruturado em torno de cinco captulos.

    No captulo I apresento o Ministrio Pblico Federal e descrevo suas novas atribuies,

    com nfase na defesa dos direitos coletivos, analiso o perfil das demandas localizadas na

    Procuradoria da Repblica em So Paulo, mostrando que os direitos coletivos vm

    ganhando espao no mbito da instituio como resultado da expresso de novas estratgias

    de luta poltica. Mostro que, nos anos noventa, no somente os direitos da cidadania se

    ampliaram, mas uma instituio especfica tem o dever de proteg-los. Analiso o papel de

    guardio da cidadania atribudo ao Ministrio Pblico, com nfase sobre a descrio das

    prticas de trabalho dos procuradores da Repblica, especialmente as atividades

    extrajudiciais e a soluo extrajudicial de conflitos.

    34 Ver Comparato (2001); Deere (2004); Caldar (2001); Beltrame (2002) 35 Ver Durham (2004) e Cardoso (1990).

  • 39

    Discuto como as novas funes do Ministrio Pblico Federal, sua estrutura institucional e

    a especializao dos procuradores em torno de reas de atuao tm colocado o rgo no

    cenrio das lutas coletivas em geral e, em especial, a dos quilombolas, como um dos

    principais agentes das demandas sociais. Discuto, ainda, como a atuao do Ministrio

    Pblico Federal interfere na estrutura especfica dos movimentos no sentido de que as

    aes, as lideranas e os valores prezados acabam tendo uma estreita relao com o tipo de

    ao que o Ministrio Pblico Federal privilegia e tambm com esse novo papel que

    reestrutura o rgo.

    O captulo II objetiva apresentar, de maneira rpida, o contexto socioeconmico que est

    relacionado s populaes que so a base do movimento quilombola no vale do rio Ribeira.

    So apresentados os aspectos mais relevantes sobre a formao das comunidades negras do

    vale do rio Ribeira de Iguape, especialmente considerando as particularidades da ocupao

    econmica ocorrida na regio, cuja origem remonta ao sculo XVI, bem como as

    transformaes sociais por elas vividas mais intensamente no sculo XX. Finalmente, esto

    descritos elementos de sua organizao social atual.

    No captulo III apresento a gnese e o desenvolvimento do movimento quilombola em So

    Paulo, analisando como se constituiu o processo de consolidao do pleito quilombola pela

    terra, sobretudo a partir das jornadas em oposio s barragens e dos outros movimentos de

    luta fundiria, em curso no vale desde o anos 1980. Nesse segmento, descrevo evento

    ocorrido em Perube em novembro de 2000, a partir do qual identifico as estratgias e

    alianas construdas pelo movimento, o conjunto de atores atuantes no processo, as

    implicaes polticas e formais das reivindicaes formuladas, os modos escolhidos para

    obter atendimento, os conflitos inerentes ao processo e os modos de enfrentamento.

    Identifico como os atores apropriam-se do discurso normativo e jurdico, especialmente as

    lideranas do movimento e como legitimam essa pauta junto aos membros das

    comunidades negras. O objetivo do captulo apresentar os elementos principais do

    movimento quilombola e o vale do Ribeira como campo de intervenes.

  • 40

    No captulo IV mostro como a defesa dos direitos coletivos passa a depender da atuao do

    especialista, em especial da do antroplogo, apontando como seu conhecimento visto

    como necessrio para orientar a tomada de deciso dos procuradores