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PENSAMENTO E LINGUAGEM

Lev Semenovich Vygotsky—Ridendo Castigat Mores—

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Pensamento e LinguagemLev Semenovich Vygotsky (1896-1934)

EdiçãoRidendo Castigat Mores

Versão para eBookeBooksBrasil.org

Fonte Digitalwww.jahr.org

“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudeisempre por conta do Estado, ou melhor, da

Sociedade que paga impostos; tenho a obrigaçãode retribuir ao menos uma gota do que ela meproporcionou.” — Nélson Jahr Garcia (1947-

2002)

Copyright:Autor: Lev S. Vygotsky

Edição eletrônica: Ed Ridendo Castigat Mores(www.jahr.org)

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ÍNDICEApresentação Nélson Jahr GarciaBiografia do autor Prefácio 1. O problema e a abordagem 2. A teoria de Piaget sobre a linguagem e opensamento das crianças 3. A teoria de Stern sobre o desenvolvimento dalinguagem 4. As raízes genéticas do pensamento e dalinguagem 5. Gênese e estudo experimental da formaçãodos conceitos 6. O desenvolvimento dos conceitos científicosna infância 7. Pensamento e linguagem Notas Bibliografia (notas biliográficas)

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PENSAMENTOE LINGUAGEM

Lev Semenovich Vygotsky

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APRESENTAÇÃONélson Jahr Garcia

Vygotsky, um gênio da Psicologia. Quanto

não poderia legar-nos se não tivesse partido tãojovem?

Agradeço ao Odair Furtado, professor dePsicologia da PUC-SP que, há vários anos,indicou-me esta obra como de leitura quaseobrigatória. Aprendi a entender minha filha,criança ainda, compreendi melhor os adultos e amim próprio inclusive.

Vygotsky estava preocupado em entendera relação entre as idéias que as pessoasdesenvolvem e o que dizem ou escrevem. Não ofez apenas especulando em uma mesa deescritório, mas foi a campo, pesquisou, fezexperiências. Extraiu conclusões como:

“A estrutura da língua que uma pessoafala influencia a maneira com que esta pessoapercebe o universo ...”

Para aqueles que vêem na linguagemapenas um código aleatório, o autor responderia:

“Uma palavra que não representa umaidéia é uma coisa morta, da mesma forma queuma idéia não incorporada em palavras nãopassa de uma sombra.”

Vygotsky desenvolveu inúmeros conceitosfundamentais para que compreendamos aorigem de nossas concepções e a forma como asexprimimos: “pensamento egocêntrico”,

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“pensamento socializado”, “conceitoespontâneo”, “conceito científico”, “discursointerior”, “discurso exteriorizado”, e tantosoutros.

Para quem se interessa por entender asideologias, comunicação, aprendizagem,doutrinação, persuasão esta é uma obra básica eindispensável.

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Biografia do autor

Lev Semenovich Vygotsky (1896–1934) fez

seus estudos na Universidade de Moscou paratornar-se professor de literatura. O objetivo desuas pesquisas iniciais foi criação artística. Foisó a partir de 1924 que sua carreira mudoudrasticamente, passando Vygotsky a dedicar-sea psicologia evolutiva, educação e psicopatologia.A partir daí ele concentrou-se nessas área eproduziu obras em ritmo intenso até sua morteprematura em 1934, devido a tuberculose.Devido a vários fatores, inclusive a tensãopolítica entre os Estados Unidos e a UniãoSoviética após a última guerra, o trabalho deVygotsky permaneceu desconhecido a grandeparte do mundo ocidental durante décadas.Quando a Guerra Fria acabou, este incrívelpatrimônio de conhecimento deixado porVygotsky começou a ser revelado. O nome deVygotsky hoje dificilmente deixa de aparecer emqualquer discussão séria sobre processos deaprendizado.

Origens do pensamento e da língua de acordo com Vygotsky

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Assim como no reino animal, para o serhumano pensamento e linguagem têm origensdiferentes. Inicialmente o pensamento não éverbal e a linguagem não é intelectual. Suastrajetórias de desenvolvimento, entretanto, nãosão paralelas - elas cruzam-se. Em dadomomento, a cerca de dois anos de idade, ascurvas de desenvolvimento do pensamento e dalinguagem, até então separadas, encontram-separa, a partir daí, dar início a uma nova formade comportamento. É a partir deste ponto que opensamento começa a se tornar verbal e alinguagem racional. Inicialmente a criançaaparenta usar linguagem apenas para interaçãosuperficial em seu convívio, mas, a partir decerto ponto, esta linguagem penetra nosubconsciente para se constituir na estrutura dopensamento da criança.

O significado das palavras e a formação de conceitos... um problema deve surgir, que não possa ser solucionado a não ser que pela formação de um novo conceito

(Vygotsky, 1962:55) A partir do momento que a criança

descobre que tudo tem um nome, cada novoobjeto que surge representa um problema que acriança resolve atribuindo-lhe um nome.Quando lhe falta a palavra para nomear estenovo objeto, a criança recorre ao adulto. Essessignificados básicos de palavras assimadquiridos funcionarão como embriões para aformação de novos e mais complexos conceitos.

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Pensamento, linguagem e desenvolvimento intelectualDe acordo com Vygotsky, todas as

atividades cognitivas básicas do indivíduoocorrem de acordo com sua história social eacabam se constituindo no produto dodesenvolvimento histórico-social de suacomunidade (Luria, 1976). Portanto, ashabilidades cognitivas e as formas de estruturaro pensamento do indivíduo não sãodeterminadas por fatores congênitos. São, istosim, resultado das atividades praticadas deacordo com os hábitos sociais da cultura em queo indivíduo se desenvolve. Conseqüentemente, ahistória da sociedade na qual a criança sedesenvolve e a história pessoal desta criança sãofatores cruciais que vão determinar sua forma depensar. Neste processo de desenvolvimentocognitivo, a linguagem tem papel crucial nadeterminação de como a criança vai aprender apensar, uma vez que formas avançadas depensamento são transmitidas à criança atravésde palavras (Murray Thomas, 1993).

Para Vygotsky, um claro entendimento dasrelações entre pensamento e língua é necessáriopara que se entenda o processo dedesenvolvimento intelectual. Linguagem não éapenas uma expressão do conhecimentoadquirido pela criança. Existe uma inter-relaçãofundamental entre pensamento e linguagem, umproporcionando recursos ao outro. Desta formaa linguagem tem um papel essencial naformação do pensamento e do caráter doindivíduo.

Zona de desenvolvimento próximoUm dos princípios básicos da teoria de

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Vygotsky é o conceito de "zona dedesenvolvimento próximo". Zona dedesenvolvimento próximo representa a diferençaentre a capacidade da criança de resolverproblemas por si própria e a capacidade deresolvê-los com ajuda de alguém. Em outraspalavras, teríamos uma "zona dedesenvolvimento auto-suficiente" que abrangetodas as funções e atividades que a criançaconsegue desempenhar por seus próprios meios,sem ajuda externa. Zona de desenvolvimentopróximo, por sua vez, abrange todas as funçõese atividades que a criança ou o aluno conseguedesempenhar apenas se houver ajuda dealguém. Esta pessoa que intervém para orientara criança pode ser tanto um adulto (pais,professor, responsável, instrutor de línguaestrangeira) quanto um colega que já tenhadesenvolvido a habilidade requerida.

Uma analogia interessante nos vem àmente quando pensamos em zona dedesenvolvimento próximo. Em mecânica, quandoregula-se o ponto de um motor a explosão, estedeve ser ajustado ligeiramente à frente domomento de máxima compressão dentro docilindro, para maximizar a potência e odesempenho.

A idéia de zona de desenvolvimentopróximo é de grande relevância em todas asáreas educacionais. Uma implicação importanteé a de que o aprendizado humano é de naturezasocial e é parte de um processo em que a criançadesenvolve seu intelecto dentro daintelectualidade daqueles que a cercam

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(Vygotsky, 1978). De acordo com Vygotsky, umacaracterística essencial do aprendizado é que eledesperta vários processos de desenvolvimentointernamente, os quais funcionam apenasquando a criança interage em seu ambiente deconvívio.

A influência de Vygotsky na teoria de Krashensobre aprendizado de línguas estrangeiras

O conceito de zona de desenvolvimentopróximo tem clara semelhança com a hipóteseinput de Krashen, segundo a qual o aprendizadoideal ocorre quando o aluno recebe inputlingüístico de nível imediatamente superior aoseu. Por exemplo, se o aluno estiver num estágio‘i’, assimilação máxima ocorrerá se ele receberinput inteligível correspondendo a um nível ‘i +1’.

A hipótese acquisition-learning deKrashen também parece ter sido diretamenteinfluenciada por Vygotsky. O conceito deacquisition delineado por Krashen mostra-seuma aplicação perfeita da teoria dedesenvolvimento cognitivo como fruto da históriada experiência social do indivíduo de Vygotsky.

O trabalho de Vygotsky ajuda a explicar odesenvolvimento cognitivo do ser humano etambém serve como base das recentestendências na lingüística aplicada em direção ametodologias de ensino de línguas estrangeirasmenos planificadas e mais naturais e humanas,mais comunicativas e baseadas na experiênciaprática em ambientes multiculturais de convívio.

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Prefácio Este livro aborda o estudo de um dos mais

complexos problemas da psicologia — a inter-relação entre o pensamento e a linguagem.Tanto quanto sabemos esta questão não foiainda estudada experimentalmente de formasistemática. Tentamos operar, pelo menos, umaprimeira abordagem desta tarefa, levando a caboestudos experimentais sobre um certo númerode aspectos isolados do problema de conjunto.Os resultados conseguidos fornecem-nos umaparte do material sobre que se baseiam asnossas análises.

As análises teóricas e críticas são umacondição prévia necessária e um complementoda parte experimental e, por isso, ocupam umagrande parte do nosso livro. Houve que basearas hipóteses de trabalho que serviram de pontode partida ao nosso estudo nas raízes genéticasdo pensamento e da linguagem. Com vista adesenvolvermos este quadro teórico, revimos eanalisamos acuradamente os dados existentesna literatura psicológica pertinentes para oestudo. Simultaneamente, sujeitamos a umaanálise crítica as teorias mais avançadas dopensamento e da linguagem, na esperança desuperarmos as suas insuficiências e evitarmosos seus pontos fracos na nossa busca de umcaminho teórico por onde enveredar.

Como seria inevitável, a nossa análiseinvadiu alguns domínios que lhe eram chegados,

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tais como a lingüística e a psicologia daeducação Na análise que realizamos dodesenvolvimento dos conceitos científicos nascrianças, utilizamos a hipótese de trabalhorelativa à relação entre o processo educacional eo desenvolvimento mental que havíamoselaborado noutra oportunidade fazendo uso deum corpo de dados diferente.

A estrutura deste livro é forçosamentecomplexa e multifacetada. No entanto, todas assuas partes se orientam para uma tarefa central:a análise genética das relações entre opensamento e a palavra falada. O primeirocapitulo põe o problema e discute o método. Ossegundo e terceiro capítulos são análises críticasdas duas mais influentes teorias da linguagem edo pensamento, a de Piaget e a de Stern. Noquarto capítulo tenta-se detectar as raízesgenéticas do pensamento e da linguagem; estecapítulo serve de introdução teórica à parteprincipal do livro, as duas investigaçõesexperimentais descritas nos dois capítulosseguintes. O primeiro estudo (capítulo 5o.) tratada evolução genérica geral dos significadosdurante a infância; o segundo (capítulo 6o.) éum estudo comparativo do desenvolvimento dosconceitos “científicos” e espontâneos da criança.O último capítulo tenta congregar os fios dasnossas investigações e apresentar o processototal do pensamento verbal tal como surge à luzdos nossos dados.

Pode ser útil enumerar brevemente osaspectos da nossa obra que julgamos seremnovos, exigindo, por conseguinte, uma nova e

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mais cuidada verificação. Além da novaformulação que demos ao problema e da parcialnovidade do nosso método, o nosso contributopode ser resumido como se segue:

(1) fornecemos provas experimentais deque os significados das palavras sofrem umaevolução durante a infância e definimos ospassos fundamentais dessa evolução;

(2) descobrimos a forma singular como sedesenvolvem os conceitos “científicos” dascrianças, em comparação com os conceitosespontâneos e formulamos as leis que regem oseu desenvolvimento,

(3) demonstramos a natureza psicológicaespecífica e a função lingüística do discursoescrito na sua relação com o pensamento e

(4) clarificamos por via experimental anatureza do discurso interior e as suas relaçõescom o pensamento.

Não é do pelouro do autor fazer umaavaliação das suas próprias descobertas e daforma como as interpretou: isso caberá aosleitores e aos críticos.

O autor e os seus associados têm vindo ainvestigar os domínios da linguagem e dopensamento há já quase dez anos, durante osquais as hipóteses de que partiram foramrevistas ou abandonadas por falsas. No entanto,a linha fundamental da nossa investigação nãose desviou da direção tomada desde início.Compreendemos perfeitamente o quanto o nossoestudo é imperfeito, pois não é mais do que oprimeiro passo numa nova via. No entanto

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sentimos que, ao descobrirmos o problema dopensamento e da linguagem como questãocentral da psicologia humana demos algumcontributo para um progresso essencial. Asnossas descobertas apontam o caminho a seguirpor uma nova teoria da consciência, nova teoriaessa que afloramos apenas no fim do nosso livro.

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1. O problema e a abordagem O estudo do pensamento e da linguagem é

uma das áreas da psicologia em que éparticularmente importante ter-se umacompreensão clara das relações inter-funcionaisexistentes. Enquanto não compreendermos ainter-relação entre o pensamento e a palavra,não poderemos responder a nenhuma dasquestões mais específicas deste domínio, nemsequer levantá-las. Por mais estranho que talpossa parecer, a psicologia nunca estudousistematicamente e em pormenor as relações, eas inter-relações em geral nunca tiveram atéhoje a atenção que merecem. Os modos deanálise atomísticos e funcionais predominantesdurante a última década tratavam os processospsíquicos de uma forma isolada. Os métodos deinvestigação desenvolvidos e aperfeiçoadostinham em vista estudar funções separadas,mantendo-se fora do âmbito da investigação ainterdependência e a organização dessasmesmas funções na estrutura da consciênciacomo um todo.

É verdade que todos aceitavam a unidadeda consciência e a inter-relação de todas asfunções psíquicas; partia-se da hipótese de queas funções isoladas operavam inseparavelmente,numa ininterrupta conexão mútua. Mas navelha psicologia, a premissa inquestionável daunidade combinava-se com um conjunto depressupostos tácitos que a anulavam para todos

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os efeitos práticos. Tinha-se como ponto assenteque a relação entre duas determinadas funçõesnunca variava: aceitava-se, por exemplo, que asrelações entre a percepção e a atenção, entre aatenção e a memória e entre a memória e opensamento eram constantes e, comoconstantes, podiam ser anuladas e ignoradas (eeram-no) no estudo das funções isoladas. Comoas conseqüências das relações eram de fatonulas, via-se o desenvolvimento da consciênciacomo determinado pelo desenvolvimentoautônomo das funções isoladas. No entanto,tudo o que sabemos do desenvolvimentopsíquico indica que a sua essência mesma éconstituída pelas variações ocorridas naestrutura inter-funcional da consciência. Apsicologia terá que considerar estas relações e asvariações resultantes do seu desenvolvimentocomo problema fulcral, terá que centrar nelas oestudo, em vez de continuar pura esimplesmente a postular o inter-relacionamentogeral de todas as funções. Para se conseguir umestudo produtivo da linguagem e do pensamentotorna-se imperativo operar esta modificação deperspectiva.

Um relance sobre os resultados deanteriores investigações do pensamento e dalinguagem mostrará que todas as teoriasexistentes desde a antigüidade até aos nossosdias, cobrem todo o leque que vai daidentificação, da fusão entre o pensamento e odiscurso num dos extremos, a uma quasemetafísica separação e segregação de ambos, nooutro. Quer sejam expressão de um destes

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extremos na sua forma pura, quer os combinem,quer dizer, quer tomem uma posição intermédia,sem nunca abandonarem, contudo, o eixo queune os dois pólos, todas as várias teorias dopensamento e da linguagem permanecem dentrodeste círculo limitativo.

Podemos seguir a evolução da idéia daidentidade entre o pensamento e o discursodesde as especulações da lingüística psicológica,segundo a qual o pensamento é “discurso menossom”, até as teorias dos modernos psicólogos ereflexionistas americanos, para os quais opensamento é um reflexo inibido do seuelemento motor. Em todas estas teorias aquestão da relação existente entre o pensamentoe o discurso perde todo o seu significado. Se sãouma e a mesma coisa, não pode surgir entre elesnenhuma relação. Aqueles que identificam opensamento com o discurso limitam-se a fechara porta ao problema. À primeira vista, ospartidários do ponto de vista oposto parecemestar em melhor posição. Ao encararem odiscurso como simples manifestação externa,como simples adereço que reveste o pensamentoe ao tentarem libertar o pensamento de todas assuas componentes sensoriais, incluindo aspalavras (como faz a escola de Wuerzburg), nãose limitam a pôr o problema das relaçõesexistentes entre as duas funções, como tentam,também, à sua maneira, resolvê-lo. Na realidade,contudo, são incapazes de colocar a questão deuma maneira que permita dar-lhe uma soluçãoreal. Tendo tornado o pensamento e o discursoindependentes e “puros” e tendo estudado cada

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uma destas funções isoladamente, são forçadosa ver as relações entre ambas como umaconexão mecânica, externa, entre dois processosdistintos, A análise do processo do pensamentoverbal em dois elementos separados ebasicamente diferentes impede todo e qualquerestudo das relações intrínsecas entre opensamento e a linguagem.

O erro está pois nos métodos de análiseadotados pelos investigadores precedentes. Paratratarmos com êxito da questão da relação entreo pensamento e a linguagem teremos quecomeçar por nos perguntar a nós próprios, antesdo mais, que método será mais suscetível de nosfornecer uma solução.

Dois métodos essencialmente diferentes deanálise são possíveis no estudo das estruturaspsicológicas. Parece-nos que um deles éresponsável por todos os fracassos com que sedefrontaram os anteriores investigadores dovelho problema que, por nosso turno, estamoscomeçando a abordar e que o outro método é aúnica via correta para perspectivar a questão.

O primeiro método analisa os conjuntospsicológicos complexos em elementos. Pode sercomparado à análise química da água emhidrogênio e oxigênio, elementos que, cada umde per si não possuem as propriedades do todo epossuem propriedades que não existem no todo.O estudante que utilizar este método nainvestigação de uma qualquer propriedade daágua — por exemplo qual a razão por que a águaapaga o fogo — verificara com surpresa que ohidrogênio arde e que o oxigênio alimenta o fogo.

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Estas descobertas não lhe serão de grandeutilidade na resolução dos problemas. Apsicologia enfia-se na mesma espécie de becosem saída quando analisa o pensamento verbalnos elementos que o compõem — a palavra e opensamento — e estuda cada um deles emseparado. No decurso da análise as propriedadesoriginais do pensamento verbal desapareceram.Nada resta ao investigador, senão indagar ainteração mecânica dos dois elementos naesperança de reconstruir, de forma puramenteespeculativa, as evocadas propriedades do todo.Este tipo de análise desloca o problema para umnível de maior naturalidade; não nos fornecenenhuma base adequada para , estudarmos asmultiformes relações concretas entre opensamento e a linguagem que surgem nodecurso do desenvolvimento e do funcionamentodo discurso verbal em todos os seus aspectosEm vez de nos permitir examinar e explicarcasos e frases específicas e determinarregularidades que ocorrem no decurso dosacontecimentos, este método produzgeneralidades relativas a todo e qualquerdiscurso e a todo e qualquer pensamento. Alémdisso, induz-nos em sérios erros ao ignorar anatureza unitária do processo em estudo, poiscinde em duas partes a unidade viva entre o some o significado a que chamamos palavra e parteda hipótese de que essas duas partes só semantêm unidas por simples ações mecânicas.

O ponto de vista segundo o qual o som e osignificado são dois elementos separados comvidas separadas afetou gravemente o estudo de

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ambos os aspectos da linguagem, o fonético e osemântico. O estudo dos sons da fala comosimples sons, independentemente da suaconexão com o pensamento, por mais exaustivoque seja, pouco terá a ver com a sua funçãocomo linguagem humana, na medida em quenão dilucida as propriedades físicas epsicológicas específicas da linguagem falada,mas apenas as propriedades comuns a todos ossons existentes na natureza. Da mesma forma,se se estudarem os significados divorciados dodiscurso, aqueles resultarão forçosamente numpuro ato de pensamento que se desenvolve etransforma independentemente do seu veículomaterial. Esta separação entre o significado e osom é grandemente responsável pela banalidadeda fonética e da semântica clássicas. Tambémna psicologia infantil, se tem estudadoseparadamente os aspectos fonético e semânticodo desenvolvimento da linguagem. Estudou-secom grande pormenor o desenvolvimentofonético; no entanto, os dados acumulados fracocontributo trouxeram à nossa compreensão dodesenvolvimento lingüístico enquanto tal e arelação entre eles e as descobertas relativas àgenética do pensamento continuam a seressencialmente nulas.

Na nossa opinião, o outro tipo de análise,que podemos chamar análise em unidades, e avia correta a seguir.

Entendemos por unidade o produto daanálise que, ao contrário dos elementos,conserva todas as propriedades fundamentais dotodo e que não pode ser subdividido sem que

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aquelas se percam: a chave da compreensão daspropriedades da água são as suas moléculas enão a sua composição atômica. A verdadeiraunidade da análise biológica é a célula viva, quepossui todas as propriedades básicas doorganismo vivo.

Qual é a unidade do pensamento verbalque satisfaz estes requisitos fundamentais?Cremos que podemos encontrá-la no aspectointerno da palavra, no seu significado. Até àdata, realizaram-se muito poucas investigaçõessobre o aspecto interno da linguagem, e as quese realizaram pouco nos podem dizer sobre osignificado das palavras que não se aplique namesma medida a outras imagens e atos dopensamento. A natureza do significado enquantotal não é clara; no entanto, é no significado queo pensamento e o discurso se unem empensamento verbal. É no significado, portanto,que poderemos encontrar a resposta às nossasperguntas sobre a relação entre o pensamento eo discurso.

A nossa investigação experimental, bemcomo a analise teórica nos indicam que, tanto apsicologia da Forma (Gestalt), como psicologiaassociacionista, têm seguido direções erradas nainvestigação da natureza intrínseca dosignificado das palavras. Uma palavra não serefere a um objeto simples, mas a um grupo ou auma classe de objetos e, por conseguinte, cadapalavra é já de si uma generalização. Ageneralização é um ato verbal de pensamento ereflete a realidade duma forma totalmentediferente da sensação e da percepção. Esta

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diferença qualitativa a se encontra implicada naproposição segundo a qual há um saltoqualitativo não só entre a total ausência deconsciência (na matéria inanimada) e asensação, mas também entre a sensação e opensamento. Temos todas as razões para suporque a distinção qualitativa entre a sensação e opensamento é a presença no último de umreflexo generalizado da realidade, que é tambéma essência do significado das palavras e de que,por conseguinte, o significado é um ato depensamento no sentido completo da expressão.Mas, simultaneamente, o significado é umaparte inalienável da palavra enquanto tal,pertencendo, portanto, tanto ao domínio dalinguagem como ao do pensamento. Umapalavra sem significado é um som vazio, já nãofazendo parte do discurso humano. Como osignificado das palavras é, simultaneamente,pensamento e linguagem, constitui a unidade dopensamento .verbal que procurávamos Portanto,torna-se claro que o método a seguir na nossaindagação da natureza do pensamento verbal é aanálise semântica — o estudo dodesenvolvimento, do fundamento e da estruturadesta unidade, que contém o pensamento alinguagem inter-relacionados.

Este método combina as vantagens daanálise e da síntese e permite adequado estudodos todos complexos. Em jeito de ilustraçãotomemos outro aspecto ainda do nosso objeto deestudo, que também foi muito descurado nopassado. A função primordial da linguagem é acomunicação, intercâmbio social. Ao estudar-se

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a linguagem por meio da análise em elementos,dissociou-se também esta função da funçãointelectual do discurso. Tratava-se ambas comose fossem duas funções separadas, emboraparalelas, sem prestar atenção às suas inter-relações estruturais e evolutivas; contudo, osignificado das palavras é unidade de ambas asfunções da linguagem. É axioma da psicologiacientífica que a compreensão entre espíritos éimpossível sem qualquer expressão mediadora.Na ausência de um sistema de signos,lingüísticos ou não, só é possível o maisprimitivo e limitado tipo de comunicação. Acomunicação por meio de movimentosexpressivos, observada sobretudo entre osanimais não é tanto comunicação mas antesuma difusão de afeto. O ganso atemorizado quede súbito se apercebe dum perigo e alerta todo obando com os seus gritos não está dizendo aosrestantes o que viu, antes está contaminando osoutros com o seu medo.

A transmissão racional, intencional deexperiências e de pensamentos a outrem exigeum sistema mediador, que tem por protótipo alinguagem humana nascida da necessidade dointercâmbio durante o trabalho. Segundo atendência dominante, a psicologia descreveuesta questão de uma forma demasiadosimplificada, até muito recentemente. Partiu dahipótese de que o meio de comunicação era osigno (a palavra ou o som); de que, pelaocorrência simultânea, um som poderia ir-seassociando com o conteúdo de qualquerexperiência, passando a servir para transmitir o

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mesmo conteúdo a outros seres humanos.No entanto, um estudo mais aturado da

gênese do conhecimento e da comunicação nascrianças levou à conclusão de que acomunicação real exige o significado — isto é, ageneralização — tanto quanto os signos.Segundo a penetrante descrição de EdwardSapir, o mundo da experiência tem que serextremamente simplificado e generalizado antesde poder ser traduzido em símbolos. Só destaforma se torna possível a comunicação, pois aexperiência pessoal habita exclusivamente aprópria consciência do indivíduo e não étransmissível, estritamente falando. Para setornar comunicável terá que subsumir-se emdeterminada categoria que, por convençãotácita, a sociedade humana encara como umaunidade. Pesquisar a verdadeira comunicaçãohumana pressupõe uma atitude generalizadora,que constitui um estádio avançado da gênese dosignificado das palavras. As formas maiselevadas do intercâmbio humano só sãopossíveis porque o pensamento do homem,reflete a atualidade conceitualizada. É por issoque certos pensamentos não podem sercomunicados às crianças mesmo quando estasse encontram familiarizadas com as palavrasnecessárias a tal comunicação. Pode faltar oconceito adequado sem o qual não é possíveluma compreensão total. Nos seus escritospedagógicos, Tolstoy afirma que as criançasexperimentam amiúde certas dificuldades paraaprenderem uma palavra nova não pelo seusom, mas devido ao conceito a que a palavra se

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refere Há quase sempre uma palavra disponível— quando o conceito se encontra maduro.

A concepção do significado das palavrascomo unidade simultânea do pensamentogeneralizante e do intercâmbio social é de umvalor incalculável para o estudo do pensamentoe da linguagem. Permite-nos uma verdadeiraanálise genético-causal, um estudo sistemáticodas relações entre o desenvolvimento dacapacidade intelectiva da criança e do seudesenvolvimento social.

Pode considerar-se como objeto de estudosecundário a relação mútua entre ageneralização e a comunicação.

Virá talvez, a propósito mencionar aquialguns dos problemas da área da linguagem quenão exploramos especificamente no nossoestudo. O mais importante de todos é a relaçãoentre o aspecto fonético da linguagem e osignificado. Estamos em crer que os recentes egrandes passos em frente da lingüística se ficamem grande medida a dever a alterações operadasnos métodos de análise empregues no estudo dalinguagem. A lingüística tradicional, com a suaconcepção do som como elemento independenteda linguagem, usava o som isolado comounidade de análise Em resultado disto,centrava-se na fisiologia e na acústica mais doque na psicologia do discurso. A lingüísticamoderna utiliza o fonema, a mais pequenaunidade fonética indivisível pertinente para osignificado, unidade essa que, portanto, écaracterística da linguagem humana distinta dosoutros sons. A sua introdução como unidade de

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análise beneficiou a psicologia tanto como alingüística. Os benefícios concretos a que sechegou com a aplicação deste método provamterminantemente o seu valor. Este método éessencialmente semelhante ao método de análiseem unidades, distintas dos elementos, queutilizamos na nossa investigação.

A fertilidade do nosso método pode ficarpatente também noutras questões relativas àsrelações entre as funções, ou entre a consciênciacomo um todo e as suas partes. Uma brevereferência a pelo menos uma destas questõesindicará uma direção que o nosso estudo poderávir a tomar futuramente, e assinalar ocontributo do presente estudo. Estamos apensar na relação entre o intelecto e o afeto. Asua separação como objetos de estudo é umaimportante debilidade da psicologia tradicionalpois que faz com que o processo de pensamentosurja como uma corrente autônoma de“pensamentos que pensam por si próprios”,dissociada da plenitude da vida, dasnecessidades e interesses, das inclinações e dosimpulsos pessoais de quem pensa. Talpensamento dissociado terá que ser consideradoquer como um epifenômeno sem significado, quenão poderá alterar de maneira nenhuma a vida ea conduta de uma pessoa, quer como umaespécie de força primeira que influenciaria a vidapessoal de uma forma inexplicável, misteriosa.Fecha-se assim a porta à questão da causa e daorigem dos nossos pensamentos, visto que aanálise determinista exigiria uma clarificaçãodas forças motrizes que orientam o pensamento

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por esta ou aquela via. Pela mesma razão, avelha abordagem impede qualquer estudofrutuoso do processo inverso: a influência dopensamento sobre o aspecto e a vontade.

A análise por unidades aponta a via para aresolução destes problemas de importância vital.Ela demonstra que existe um sistema dinâmicode significados em que o afetivo e o intelectual seunem, mostra que todas as idéias contém,transmutada, uma atitude afetiva para com aporção de realidade a que cada uma delas serefere. Permite-nos, além disso, seguir passo apasso a trajetórias entre as necessidades e osimpulsos de uma pessoa e a direção específicatomada pelos seus pensamentos, e o caminhoinverso, dos seus pensamentos ao seucomportamento e à sua atividade. Este exemplodeveria bastar para mostrar que o métodoutilizado neste estudo do pensamento e dalinguagem é também uma ferramentapromissora para investigar a relação entre opensamento verbal e a consciência como umtodo e entre aquele e as outras funçõesessenciais desta última.

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2. A teoria de Piaget sobre a Linguagem eo Pensamento das crianças

IA psicologia deve muito a Jean Piaget. Não

é exagero dizer-se que ele revolucionou o estudoda linguagem e do pensamento infantis, poisdesenvolveu o método clínico de investigação dasidéias das crianças que posteriormente tem sidogeneralizadamente utilizado. Foi o primeiro aestudar sistematicamente a percepção e a lógicainfantis; além disso, trouxe ao seu objeto deestudo uma nova abordagem de amplitude earrojo invulgares. Em lugar de enumerar asdeficiências do raciocínio infantil quandocomparado com o dos adultos, Piaget centrou aatenção nas características distintivas dopensamento das crianças, quer dizer, centrou oestudo mais sobre o que as crianças têm do quesobre o que lhes falta. Por esta abordagempositiva demonstrou que a diferença entre opensamento das crianças e dos adultos era maisqualitativa do que quantitativa.

Como muitas outras grandes descobertas,a idéia de Piaget é tão simples que pareceevidente. Já tinha sido expressa nas palavras deRousseau, citadas pelo próprio Piaget, segundoas quais uma criança não é um adulto emminiatura e o seu cérebro não é um cérebro deadulto em ponto reduzido. Por detrás destaverdade, que Piaget escorou com provasexperimentais, esta outra idéia simples — a idéia

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de evolução, que ilumina todos os estudos dePiaget com uma luz brilhante.

No entanto, apesar de toda a suagrandeza, a obra de Piaget sofre da dualidadecomum a todas as obras pioneiras da psicologiacontemporânea. Esta clivagem é correlativa dacrise que a psicologia está atravessando àmedida que se transforma numa ciência noverdadeiro sentido da palavra. A crise decorre daaguda contradição entre a matéria prima factualda ciência e as suas premissas metodológicas eteóricas, que há muito são alvo de disputa entreas concepções materialista e idealista do mundo.Na psicologia, a luta é talvez mais aguda do queem qualquer outra disciplina.

Enquanto nos faltou um sistemageneralizadamente aceite que incorpore todo oconhecimento psicológico disponível, qualquerdescoberta factual importante conduzirá àcriação de uma nova teoria conforme aos fatosnovos observados. Freud, Levy-Bruhl, Blondel,todos eles criaram os seus próprios sistemas depsicologia. A dualidade predominante reflete-sena incongruência entre estas estruturasteóricas, com os seus tons carregados demetafísica e idealismo, e as bases empíricassobre que foram construídas. Na modernapsicologia fazem-se diariamente grandesdescobertas, descobertas essas que, no entanto,logo são envolvidas em teorias ad hoc pré-científicas e semi-metafísicas.

Piaget tenta escapar a esta dualidade fatalatendo-se aos fatos. Evita deliberadamente fazergeneralizações mesmo no seu próprio campo de

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estudo, pondo especial cuidado em não invadiros domínios correlatos da lógica, da teoria doconhecimento da História da filosofia. Para ele, oempirismo puro parece-lhe o único terrenoseguro. O seu livro, escreve ele, é,

antes do mais, e acima de tudo, umacoleção de fatos e documentos. Os elos queunem entre si os diversos capítulos são os elosfornecidos por um método único a váriasdescobertas e de maneira nenhuma os de umaexposição sistemática (29) (29, p. 1).

Na verdade, o seu forte consiste emdesenterrar novos fatos, analisá-los e classificá-los penosamente, quer dizer, na capacidade deescutar a sua mensagem, como dizia Claparède.Das páginas de Piaget cai uma avalanche degrandes e pequenos fatos sobre a psicologiainfantil.

O seu método clínico revela-se como umaferramenta verdadeiramente inestimável para oestudo dos todos estruturais complexos dopensamento infantil nas suas transformaçõesgenéticas.

É um método que unifica as suas diversasinvestigações e nos proporciona um quadrocoerente, pormenorizado e vivo do pensamentodas crianças.

Os novos fatos e o novo métodoconduzem-nos a muitos problemas; alguns sãointeiramente novos para a psicologia científica,outros aparecem-nos a uma luz diferente. Osproblemas dão origem a teorias, apesar de Piagetestar determinado a evita-las atendo-seestreitamente aos fatos experimentais — e

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passando, de momento, por cima do fato de quea própria escolha das experiências édeterminada por certas hipóteses. Mas os fatossão sempre examinados à luz de uma qualquerteoria, não podendo por conseguinte sertotalmente destrinçados da filosofia. Tal éparticularmente verdade para os fatos relativosao pensamento.

Para encontrarmos a chave do manancialde fatos coligidos por Piaget teremos quecomeçar por explorar a filosofia que está pordetrás da sua investigação dos fatos — e pordetrás da sua interpretação, que só é exposta nofim do seu segundo livro (30), num resumo doconteúdo.

Piaget aborda esta tarefa levantando aquestão do inter-relacionamento objetivo detodos os traços característicos do pensamentoinfantil por ele observados, Serão tais traçosfortuitos e independentes, ou formarão umconjunto organizado, com uma lógica própria,em torno de um fato central unificador? Piagetcrê que assim é. Ao responder à pergunta, passados fatos á teoria e incidentalmente mostra oquanto a sua análise dos fatos se encontravainfluenciada pela teoria, muito embora, na suaexposição, a teoria venha a seguir aos fatos.

Segundo Piaget, o elo que liga todas ascaracterísticas específicas da lógica infantil é oegocentrismo do pensamento das crianças. Elereporta todas as outras características quedescobriu, quais sejam, o realismo intelectual, osincretismo e a dificuldade de compreender asrelações, a este traço nuclear e descreve o

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egocentrismo como ocupando uma posiçãointermédia, genética, estrutural efuncionalmente, entre o pensamento autístico eo pensamento orientado.

A idéia de polaridade do pensamentoorientado e não orientado tomada de empréstimoà psicanálise. Diz Piaget:

O pensamento orientado é consciente, istoé, prossegue objetivos presentes no espírito dequem pensa, É inteligente, isto é, encontra-seadaptado a realidade e esforça-se por influenciá-la. É suscetível de verdade e erro ... e pode sercomunicado através da linguagem. Opensamento autístico é subconsciente, isto é, osobjetivos que prossegue e os problemas que põea si próprio não se encontram presentes naconsciência. Não se encontra adaptado àrealidade externa, antes cria para si próprio umarealidade de imaginação ou sonhos. Tende, nãoa estabelecer verdades, mas a recompensardesejos e permanece estritamente individual eincomunicável enquanto tal, por meio dalinguagem, visto que opera primordialmente pormeio de imagens e, para ser comunicado, temque recorrer a métodos indiretos, evocando, pormeio de símbolos e mitos, os sentimentos que oguiam (29) (29, pp. 59-60).

O pensamento orientado é social. Àmedida que se desenvolve vai sendoprogressivamente influenciado pelas leis daexperiência e da lógica propriamente dita. Opensamento autístico, pelo contrário, éindividualista e obedece a um conjunto de leisespeciais que lhe são próprias.

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Entre estes dois modos de pensamentocontrastantes:

há muitas variedades no que respeita aoseu grau de comunicabilidade. Estas variedadesintermédias obedecerão necessariamente a umalógica especial, que também é uma lógicaintermédia entre a lógica do autismo e a lógicada inteligência. Propomos dar o nome depensamento egocêntrico à principal formaintermédia (29)(29, p. 62).

Embora a sua função principal continue aser a satisfação das necessidades pessoais, jáengloba em si algumas adaptações mentais, umpouco da orientação para a realidadecaracterística do pensamento dos adultos. Opensamento egocêntrico das crianças “situa-se ameio caminho entre o autismo no sentido estritoda palavra e o pensamento socializado” (30)(30,p. 276) É esta a hipótese de base de Piaget.

É importante notar que através de toda asua obra Piaget sublinha com mais intensidadeos traços que são comuns ao pensamentoegocêntrico e ao autismo do que os traçoscomuns que os distinguem. No sumário do fimdo seu livro, afirma com ênfase: “no fim decontas, o jogo é a lei suprema do pensamentoegocêntrico” (30)(30, p. 323). A mesma tendênciaé especialmente pronunciada no tratamento dosincretismo, muito embora ele assinale que omecanismo do pensamento sincrético representauma transição entre a lógica dos sonhos e alógica do pensamento.

Piaget defende que o egocentrismo seencontra a meio caminho entre o autismo

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extremo e a lógica da razão, tanto cronológica,como estrutural e funcionalmente. A concepçãogenética do pensamento baseia-se na premissaextraída de psicanálise, segundo a qual opensamento das crianças é original enaturalmente autístico e só se transforma empensamento realista por efeito de uma longa epersistente pressão social. Piaget assinala queisto não desvaloriza a inteligência da criança. “Aatividade lógica não esgota a inteligência” (30)(30, p. 267). A imaginação é importante pararesolver problemas, mas não se preocupa comverificações e provas, coisas que são condiçõesnecessárias da busca da verdade. A necessidadede verificarmos e comprovarmos o nossopensamento — quer dizer a necessidade daatividade lógica — surge mais tarde. Estadefasagem será de esperar, diz Piaget, visto queo pensamento começa a servir a satisfaçãoimediata muito antes de procurar a verdade,forma mais espontânea do pensamento é o jogoou as imaginações plenas de desejo que fazem odesejável parecer inatingível. Até à idade de seteou oito anos o jogo domina a tal ponto opensamento da criança, que é muito difícildistinguir a invenção deliberada, da fantasia quea criança julga ser verdade.

Resumindo, o autismo é encarado como aforma original, mais primitiva, do pensamento; alógica aparece relativamente tarde; e opensamento egocêntrico é o elo genético entreambos.

Embora Piaget nunca tenha apresentadoesta concepção de uma forma coerente e

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sistemática, é ela a pedra de toque de todo o seuedifício teórico. É certo que por mais de uma vezele afirma que o pressuposto da naturezaintermédia do pensamento infantil e umahipótese, mas também diz que tal hipótese estátão próxima do senso comum que lhe parecepouco mais discutível do que o próprio fato doegocentrismo infantil. Segue os traços doegocentrismo na sua evolução e até a naturezada atividade prática da criança e até ao posteriordesenvolvimento das atitudes sociais.

É claro que, do ponto de vista genético,temos que partir da atividade da criança parapodermos compreender o seu pensamento; eessa atividade é incontestavelmente egocêntricae egotista. O instinto social sob a sua forma bemdefinida só se desenvolve mais tarde. O primeiroperíodo crítico a este respeito só ocorre por voltados sete ou oito anos de idade (30)(30, p. 276).

Antes desta idade, Piaget tende a ver oegocentrismo como algo que impregna tudo.Considera direta ou indiretamente egocêntricostodos os fenômenos da lógica infantil na sua ricavariedade. Do sincretismo, importante expressãodo egocentrismo, diz inequivocamente queimpregna todo o pensamento da criança, tantona sua esfera verbal, como na sua esferasensorial Após os sete ou oito anos, quando opensamento socializado começa a ganhar forma,os traços egocêntricos não desapareceminstantaneamente. Desaparecem das operaçõessensoriais da criança, mas continuamcristalizados na área mais abstrata dopensamento puramente verbal.

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A sua concepção da predominância doegocentrismo na infância leva Piaget a concluirque o egocentrismo do pensamento se encontratão intimamente relacionado com a naturezapsíquica da criança que é impermeável àexperiência. As influências a que os adultossubmetem as crianças.

não se encontram nestas como se setratasse de uma placa fotográfica: sãoassimiladas, quer dizer, são deformadas pelo servivo que as sofre e implantam-se na sua própriasubstância. É esta substância psicológica dacriança, ou, por outras palavras, a estrutura e ofuncionamento característicos do pensamento dacriança que procuramos descrever e em certamedida explicar (30)(30, p. 338).

Esta passagem resume a natureza dospressupostos básicos de Piaget e conduz-nos aoproblema geral das uniformidades sociais ebiológicas do desenvolvimento físico, a quevoltaremos na seção III. Em primeiro lugar,examinemos a solidez da concepção de Piaget doegocentrismo da criança à luz dos fatos em quese baseia.

IIComo a concepção que Piaget tem do

egocentrismo da criança é de primeiraimportância na sua teoria, temos que indagarque fatos levaram não só a admitir esta hipótese,como também a depositar tanta fé nela. Porconseguinte, poremos estes fatos à provacomparando-os com os resultados das nossaspróprias experiências (46)(46, 47).

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A base factual da convicção de Piaget é-lhedada pelas investigações a que submeteu o usoque as crianças dão à linguagem. As suasobservações sistemáticas levaram-no a concluirque todas as conversações das crianças sepodem classificar em um de dois grupos: oegocêntrico e o socializado. A diferença entreambos reside sobretudo nas suas funções. Nodiscurso egocêntrico a criança fala apenas delaprópria, não se preocupa com o interlocutor, nãotenta comunicar, não espera qualquer resposta efreqüentemente nem sequer se preocupa comsaber se alguém a escuta. O discursoegocêntrico é semelhante a um monólogo numapeça de teatro: a criança como que pensa em vozalta, alimentando um comentário simultâneocom aquilo que está a fazer. No discursosocializado, ela não procura estabelecer umintercâmbio com os outros — pede, manda,ameaça, transmite informações, faz perguntas.

As experiências de Piaget mostram que aparte de longe mais importante das conversasdas crianças em idade pré-escolar é constituídapor falas egocêntricas. Chegou à conclusão deque 44 a 47 por cento do número total deconversas registadas em crianças com sete anosde idade era de natureza egocêntrica. Estenúmero, diz ele, deve ser consideravelmentemais elevado no caso das crianças mais novas.Investigações posteriores com crianças de seis esete anos de idade demonstraram que, nestaidade, nem o discurso social se encontratotalmente liberto de pensamentos egocêntricos.Ao demais, para além dos seus pensamentos

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expressos, as crianças têm muitos pensamentosnão expressos. Alguns destes pensamentos,afirma Piaget, ficam por exprimir precisamenteporque são egocêntricos, isto é, incomunicáveis.Para os transmitir aos outros, a criança teriaque ser capaz de adotar os seus pontos de vista.“Poder-se-ia dizer que o adulto pensasocialmente. mesmo quando se encontra só, aopasso que as crianças com menos de sete anospensam e falam egocêntricamente, mesmo emsociedade com os outros” (29)(29, p. 56). Assim,o coeficiente de pensamento egocêntrico seránecessariamente muito mais elevado do que ocoeficiente de fala egocêntrica. Mas só os dadosorais são mensuráveis, só eles nos fornecem aprova documental sobre que Piaget baseia a suaconcepção do egocentrismo infantil. As suasexplicações sobre o discurso egocêntrico e oegocentrismo das crianças em geral sãoidênticas.

Em primeiro lugar, não há vida socialpersistente em crianças com menos de sete ouoito anos; em segundo lugar, a verdadeiralinguagem social das crianças, quer dizer, alinguagem utilizada na atividade fundamentaldas crianças — o jogo — é uma linguagem degestos, movimentos e mímica, tanto quanto umalinguagem de palavras. (29)(29, p. 56).

Quando, com sete ou oito anos de idade, odesejo de trabalhar com os outros começa amanifestar-se, a fala egocêntrica continua asubsistir.

Na sua descrição do discurso egocêntrico edo seu desenvolvimento genético, Piaget

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sublinha que esse discurso não cumprenenhuma função no comportamento da criançae que se limita a atrofiar-se à medida que acriança atinge a idade escolar. As experiênciasque nós próprios levamos a cabo, apontam paraconclusões diferentes. Estamos em crer que odiscurso egocêntrico assume desde muito cedoum papel muito definido e importante naatividade da criança.

Para determinarmos qual a causa da falaegocêntrica e que circunstâncias a provocam,organizamos as atividades das crianças dumaforma muito semelhante à de Piaget,acrescentando-lhes porém uma série defrustrações e de dificuldades. Por exemplo,quando uma criança se preparava para pintar,descobria subitamente que não havia papel, oulápis da cor que necessitava. Por outraspalavras, obrigavamo-la a defrontar-se comdeterminados problemas, obstruindo a suaatividade livre.(ver capítulo 7 sobre outrosaspectos destes problemas)

Descobrimos que nestas situações difíceis,o coeficiente de discurso egocêntrico quaseduplicava, em comparação com o númeronormal de Piaget para a mesma idade e tambémem comparação com o nosso próprio númeropara crianças que não se defrontavam com estesproblemas. A criança tentaria dominar eremediar a situação falando para si própria:“Onde está o lápis? Preciso de lápis azul. Deixalá, vou desenhar com o lápis vermelho e molho-ocom água; ficará mais escuro e parecerá azul”.

Nas mesmas atividades sem

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impedimentos, o nosso coeficiente de falaegocêntrica era até um pouco inferior ao dePiaget. Portanto, é legítimo presumir que asinterrupções do livre desenrolar da atividade sãoestímulos importantes para o discursoegocêntrico. Esta descoberta adequa-se comduas premissas que o próprio Piaget refererepetidas vezes ao longo do seu livro. Uma delasé a chamada lei da consciência, segundo a qualos obstáculos ou as perturbações dumaatividade automática fazem com que o autordessa atividade se aperceba dela. A outrapremissa é a que afirma que o discurso é umaexpressão desse processo de tomada deconsciência.

As nossas descobertas indicam que odiscurso egocêntrico já não se limita a ser umsimples acompanhamento da atividade dacriança Para além de ser um meio de expressãoe de libertação de tensão em breve se torna uminstrumento de pensamento no sentido própriodo termo — um instrumento para buscar eplanear a solução de um problema. Um acidenteocorrido durante uma das nossas experiênciasproporciona-nos um bom exemplo da formacomo o discurso egocêntrico pode alterar o cursode uma atividade: uma criança de cinco anosestava a desenhar um automóvel quando aponta do lápis se quebrou. Apesar do acidente, acriança tentou acabar o círculo que representavauma roda, pressionando o lápis sobre o papelcom muita força, mas nada surgiu, a não seruma linha vincada e sem cor. A criançasussurrou de si para si: “Está partido.” pôs o

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lápis de lado, substitui-o por aquarela ecomeçou a desenhar um carro partido emresultado de um acidente, continuando a falarde si para si acerca da alteração da sua pintura.A expressão egocêntrica da criançaacidentalmente provocada afetou tãomanifestamente a sua atividade, que é difíciltomá-la erradamente por um simplessubproduto, por um acompanhamento que nãointerferisse com a melodia. As nossasexperiências evidenciaram alterações muitocomplexas na inter-relação entre a atividade e afala egocêntrica. Observamos como o discursoegocêntrico começava por marcar o resultadofinal de um ponto de viragem de uma atividade,deslocando-se depois gradualmente para o meioe finalmente para o início da atividade, passandoa assumir uma função diretora, de planeamento,e elevando a atividade da criança ao nível de umcomportamento com objetivos conscientes. Oque acontece neste caso é semelhante à bemconhecida seqüência genética da designação dosdesenhos. Um bebê começa por desenhar,decidindo depois o que é aquilo que desenhou;numa idade ligeiramente superior, nomeia o seudesenho quando este se encontra meio feito; e,por fim, decide antecipadamente aquilo que vaidesenhar.

A concepção revista da função do discursoegocêntrico influenciará tambémnecessariamente a nossa concepção da suatrajetória posterior e terá que ser recordada apropósito da questão do seu desaparecimentopor altura da idade escolar. As experiências

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podem fornecer-nos provas indiretas, masnenhuma resposta terminante acerca dascausas do seu desaparecimento. Não obstante,os dados obtidos sugerem-nos fortemente ahipótese de que o discurso egocêntrico é umestádio na evolução do discurso vocal para odiscurso interior. Nas nossas experiências, ascrianças mais velhas comportavam-se de formadiferente das mais novas quando seencontravam face a face perante certosobstáculos. Freqüentemente, as criançasexaminavam a situação em silêncio encontrandoposteriormente uma solução. Quando inquiridossobre o que estavam a pensar davam respostasque se assemelhavam bastante ao pensamentoem voz alta das crianças em idade pré-escolarIsto indicaria que, na criança em idade escolar,se encontram relegadas para o discurso interiorsem som, as mesmas operações mentais que acriança em idade pré-escolar leva a cabo em vozalta, por meio do discurso egocêntrico. É claroque em Piaget não há nada nesse sentido, poiseste autor pensa que o discurso egocêntricodesaparece, muito pura e simplesmente. Odesenvolvimento do discurso interno nascrianças pouca dilucidação específica merece.Mas como o discurso interior e o egocentrismooralizado preenchem as mesmas funções, aconclusão a tirar daqui seria que se, como Piagetdefende, o discurso egocêntrico precede odiscurso socializado, então o discurso interiortambém precede o discurso socializado —pressuposto que, do ponto de vista genético, éinsustentável.

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O discurso interior do adulto representa o“pensar de si para si” mais do que a adaptaçãosocial; isto é, desempenha a mesma função queo discurso egocêntrico das crianças. Temtambém as mesmas características estruturais:fora do contexto seria incompreensível para osoutros, porque omite “mencionar” o que é obviopara o “locutor”. Estas semelhanças levam-nos apresumir que, quando desaparece da vista, odiscurso egocêntrico não se atrofia pura esimplesmente, antes continua o seu curso e“mergulha nas profundidades”, isto é, setransforma em discurso interior. A nossaobservação segundo a qual, na idade em queesta modificação ocorre, as crianças queexperimentam dificuldades passam a recorrer,quer ao discurso egocêntrico, quer ao discursosilencioso, a reflexão silenciosa, indica que essesdois discursos podem ser funcionalmenteequivalentes. Partimos da hipótese de que osprocessos do discurso interior se desenvolvem ese vão estabilizando aproximadamente no inícioda idade escolar e que isto é causa da rápidadiminuição do discurso egocêntrico que nessaidade se observa.

Embora as nossas descobertas sejam deâmbito limitado, julgamos que nos permitirãover a direção geral do pensamento e dalinguagem numa perspectiva nova e mais vasta.No ponto de vista de Piaget, as duas funçõesseguem uma trajetória comum, do discursoautístico ao discurso socializado, da fantasiasubjetiva à lógica das relações. No decurso destatransformação, a influência dos adultos é

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deformada pelo processo psíquico das criançasmas acaba por vencer. Para Piaget, odesenvolvimento do pensamento processa-se poruma gradual socialização dos estados mentaismais profundamente íntimos, pessoais,autísticos. Até o discurso social é apresentadocomo um discurso que sucede e não que precedeo discurso egocêntrico.

A hipótese que propomos inverte estatrajetória. Olhemos para a direção dodesenvolvimento do pensamento durante umcurto intervalo de tempo, desde o aparecimentodo discurso egocêntrico até ao seudesaparecimento, no quadro do desenvolvimentoda linguagem como um todo.

Consideramos que o desenvolvimento totalsegue a seguinte evolução: a função primordialda linguagem, tanto nas crianças como nosadultos, é a comunicação, o contato social. Porconseguinte, a fala mais primitiva das crianças éuma fala essencialmente social. De inicio, églobal e multifuncional; mais tarde as suasfunções tornam-se diferenciadas. Numa certaidade o discurso social da criança subdivide-sebastante nitidamente em discurso egocêntrico ediscurso comunicativo (Preferimos utilizar otermo comunicativo para a forma de discursoque Piaget designa por socializado — como setivesse sido algo diferente antes de se tornarsocial. Do nosso ponto de vista, as duas formas,a comunicativa e a egocêntrica, são ambassociais, apesar de as suas funções diferirem). Odiscurso egocêntrico emerge quando a criançatransfere as formas sociais cooperativas de

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comportamento para a esfera das funçõespsíquicas pessoais internas. A tendência dacriança para transferir para os seus processosinternos os modelos anteriormente sociais é umatendência bem conhecida que Piaget conhecemuito bem. Noutro contexto, ele descreve comoas discussões entre crianças dão origem àsprimeiras manifestações de reflexão lógica. Algosemelhante acontece, julgamos, quando acriança começa a conversar consigo, própriacomo se estivesse a falar com outrem. Quandoas circunstâncias a obrigam a deter-se parapensar, o mais certo é começar a pensar em vozalta. O discurso egocêntrico, dissociado dodiscurso social geral, acaba com o tempo porconduzir ao discurso interior que servesimultaneamente o pensamento autístico e opensamento lógico.

O discurso egocêntrico como formalingüística separada, autônoma e o elo genéticoaltamente importante na transição entre odiscurso oral e o discurso interior, um estádiointermédio entre a diferenciação das funções dodiscurso oral e a transformação final de umaparte do discurso oral em discurso interior. Éeste papel de transição do discurso egocêntricoque lhe confere um interesse teórico tão grande.Toda a concepção do desenvolvimento dodiscurso se alterará profundamente, consoante ainterpretação que se der ao papel do discursoegocêntrico. Assim, o nosso esquema dedesenvolvimento — primeiro, o discurso social,depois o discurso egocêntrico, depois o discursointerior — diverge profundamente não só do

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esquema behaviourista tradicional, — discursooral, murmúrio, discurso interior — mastambém da seqüência de Piaget — que passa dopensamento autístico para o discurso socializadoe o pensamento lógico através do discurso e dopensamento egocêntrico. Na nossa concepção averdadeira trajetória de desenvolvimento dopensamento não vai no sentido do pensamentoindividual para o socializado, mas dopensamento socializado para o individual.

IIIDentro dos limites do presente estudo, não

é possível avaliar todos os aspectos da teoria dePiaget sobre o desenvolvimento intelectual, asnossas preocupações centram-se sobre a suaconcepção do papel do egocentrismo na relaçãoevolutiva entre a linguagem e o pensamento.Vamos contudo indicar, de entre as suashipóteses teóricas e metodológicas, quais as queconsideramos erradas, assim como os fatos queele não consegue enquadrar na suacaracterização do pensamento da criança.

A psicologia moderna em geral, e apsicologia infantil em particular, mostramtendência para combinarem as questõespsicológicas com as filosóficas. Um paciente dopsicólogo alemão Ach resumiu muitoadequadamente esta inclinação, ao observar nofim de uma sessão: “Mas isso é filosofiaexperimental!” E, na verdade, muitas questõesdo complexo campo do pensamento infantilencontram-se na fronteira da teoria doconhecimento, da lógica teórica e de outrosramos da filosofia. Repetidas vezes Piaget toca

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inadvertidamente um ou outro destes domínios,mas, com notável coerência, refreia-se eabandona-o imediatamente. No entanto, apesarda sua expressa intenção de evitar teorizações,não consegue manter a sua obra dentro doquadro da ciência puramente factual. A escusadeliberada da filosofia é já de si uma filosofia —e uma filosofia que pode arrastar os seusproponentes para muitas incoerências. Exemplodisto é a concepção de Piaget sobre o papel daexplicação causal em ciência.

Piaget tenta escusar-se a entrar emconsideração com as causas na apresentaçãodas suas descobertas. Ao proceder assim,aproxima-se perigosamente daquilo a que, nacriança, designa por “pré-causalidade”, muitoembora no seu caso particular possa ver a suaabstenção como um estádio “supracausa”sofisticado, em que o conceito de causalidadeteria sido superado. Piaget propõe que sesubstitua a explicação dos fenômenos em termosde causa e efeito por uma análise genética emtermos de seqüência temporal e pela aplicaçãode uma fórmula de concepção matemática dainterpenetração funcional dos fenômenos. Nocaso de dois fenômenos interdependentes, osfenômenos A e B, pode-se considerar que A éfunção de B ou que B é função de A. Oinvestigador reserva-se o direito de organizar asua descrição dos dados da forma que melhorservir os seus objetivos em determinadomomento, embora eventualmente confira umaposição preferencial ao fenômeno mais primitivodo ponto de vista do desenvolvimento, como

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fenômeno mais explicativo no sentido fonético.Esta substituição da interpretação causal

pela interpretação funcional subtrai ao conceitode desenvolvimento todo e qualquer conteúdoreal. Muito embora, ao analisar os fatores sociaise biológicos, Piaget reconheça que o estudioso dodesenvolvimento mental tem por obrigaçãoexplicar a relação entre ambos e a não descurarnenhum, a sua solução é a seguinte:

Mas, para começar, há que escolher umdos idiomas em desfavor do outro. Optamos peloidioma sociológico, mas sublinhamos que não hánenhum exclusivo nisto — reservamo-nos odireito de voltarmos a adotar a explicaçãobiológica da criança, e a traduzir nos termos quelhe são próprios a descrição que tentamos daraqui (30)(30, p. 266).

Esta concepção reduz realmente toda ademarche de Piaget a uma escolha arbitrária.

O quadro de trabalho fundamental dateoria de Piaget apoia-se no pressuposto de quehá uma seqüência genética de duas formasopostas de intelecção que a teoria psicanalíticadescreve como duas formas que se encontram aoserviço do princípio do prazer e do princípio darealidade. Do nosso ponto de vista, a pulsãodinâmica de satisfação das necessidades e apulsão de adaptação à realidade não podem serconsideradas como coisas separadas que seopõem mutuamente. Uma necessidade só podeser verdadeiramente satisfeita através de umacerta adaptação à realidade. Além disso, não háadaptação pela adaptação: a adaptação é sempreorientada pelas necessidades, o que é um

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truismo inexplicavelmente descurado por Piaget.Piaget compartilha com Freud não só a

concepção indefensável da existência de umprincípio de prazer que precederia o princípio darealidade. mas também a abordagem metafísicaque eleva o princípio do prazer do seu verdadeiroestatuto de fator secundário, biologicamenteimportante, ao nível de uma força vitalindependente, de primo-motor dodesenvolvimento psíquico. Como separou anecessidade e o prazer da adaptação à realidade,Piaget é logicamente forçado a apresentar opensamento realístico como algo que existedissociado das necessidades concretas, dosinteresses e das aspirações concretas, comopensamento “puro” que tem por função exclusivaa busca da verdade pela verdade,exclusivamente.

O pensamento autístico — queoriginalmente era o oposto do pensamentorealístico na seqüência de Piaget — é, em nossaopinião, uma evolução tardia, um resultado dopensamento realístico e do seu corolário, opensamento conceptual, que nos conduz a umcerto grau de autonomia relativamente árealidade, permitindo assim a satisfação nafantasia das necessidades frustradas pela vidareal. Esta concepção do autismo é coerente coma de Bleuler (3). 0 autismo é um dos efeitos dadiferenciação e da polarização das várias funçõesdo pensamento.

As nossas experiências trouxeram aprimeiro plano outro ponto importante, que atéaqui tem sido descurado: o pape! da atividade da

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criança na evolução dos seus processosintelectivos. Vimos que o discurso egocêntriconão se encontra suspenso no vácuo, mas estádiretamente relacionado com a forma como acriança lida com o mundo exterior real. Vimosque isto é parte integrante dos processos deatividade racional que a inteligência como queassume nas ações infantis carregadas deincipiente intencionalidade e que esse discursovai progressivamente servindo para resolvercertos problemas e planear à medida que asatividades da criança se vão tornando maiscomplexas. Este processo é desencadeado pelasações da criança; os objetos com que esta lidarepresentam a realidade e modelam os seusprocessos de pensamento.

À luz destes fatos, as conclusões de Piagetexigem um certo número de clarificaçõesrelativamente a dois pontos importantes. Emprimeiro lugar, as peculiaridades do pensamentodas crianças por ele analisadas, tais como osincretismo, não abarcam um domínio tão vastocomo Piaget julga. Sentimo-nos inclinados apensar (e as nossas experiências no-loconfirmam) que a criança pensa de uma formasincrética em áreas de que não possuiconhecimentos ou experiência suficientes, masque não recorre ao sincretismo em relação acoisas que lhe são familiares ou que são de fácilcomprovação prática — e o número destascoisas depende do método de educação. Damesma forma, dentro do quadro do sincretismopropriamente dito, será de esperar encontraralgumas formas percursoras das futuras

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concepções causais que o próprio Piagetmenciona de passagem. Os próprios esquemassincréticos, apesar das suas flutuações,conduzem a criança a uma gradual adaptação;há que não subestimar a sua utilidade. Maistarde ou mais cedo, através de uma estritaseleção, da redução e da adaptação mútua, irãosendo burilados, transformando-se emexcelentes instrumentos de investigação nasáreas em que as hipóteses são aplicáveis.

O segundo ponto que há que serreavaliado e sujeito a certas limitações é aaplicabilidade das descobertas de Piaget àscrianças em geral. As suas experiências levam-no a acreditar que as crianças são impermeáveisà experiência. Piaget estabelece uma analogiaque julgamos ser reveladora: diz ele que ohomem primitivo só aprende com a experiênciaem casos muito especiais e limitados deatividade prática — e cita como exemplos dissocasos raros de agricultura, caça e manufatura.

Mas este contato efêmero e parcial com arealidade não afeta minimamente a sua maneirade pensar. O mesmo se aplica às crianças pormaioria de razões (30)(30, p. 268-269).

No caso do homem primitivo, não podemoschamar à agricultura e à caça contatosdesprezáveis com a realidade, pois constituempraticamente toda a sua existência. A concepçãode Piaget pode ser válida para o caso particulardas crianças que estudou, nas não tem alcanceuniversal. É ele próprio quem nos dá a causa daqualidade especial de pensamento que observounas suas crianças:

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A criança nunca entra em contato real everdadeiro com as coisas, pois não trabalha:brinca com as coisas, ou aceita-as como pontoassente (30)(30, p. 269).

As uniformidades de desenvolvimentoestabelecidas por Piaget aplicam-se ao meiodado, nas condições em que Piaget levou a caboo seu estudo. Não são leis da natureza, são leishistórica e socialmente determinadas. Stern jáhavia criticado a Piaget o fato de não ter tomadona devida conta a importância da situação e domeio sociais. O caráter mais egocêntrico ou maissocial da fala das crianças depende não só dasua idade, mas também das condiçõesambientes. Piaget observou crianças enquantobrincavam em determinado jardim infantil e osseus coeficientes só são válidos para este meioinfantil particular. Quando a atividade dascrianças é exclusivamente constituída por jogos,é acompanhada por um grande manancial desolilóquios. Stern assinala que nos infantáriosalemães, em que a atividade de grupo é maior, ocoeficiente de egocentrismo era algo menor eque, em casa, o discurso das crianças tende aser predominantemente social desde muito tenraidade. Se isto se passa com as crianças alemãs,a diferença entre as crianças soviéticas e ascrianças que Piaget observou nos infantários deGenebra devem ser ainda maiores. No seuprefácio à edição russa do seu livro, Piagetadmite que é necessário comparar ocomportamento de crianças de ambientes sociaisdiferentes para podermos estabelecer a diferençaentre o social e o individual no seu pensamento.

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Por esta razão saúda a colaboração com ospsicólogos soviéticos. Também estamosconvencidos de que o estudo do desenvolvimentodas crianças provenientes de ambientes sociaisdiferentes e em especial de crianças que, aocontrário das crianças de Piaget, trabalham,levará necessariamente a resultados que nospermitirão formular leis com um âmbito deaplicação muito mais vasto.

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3. A teoria de Stern sobre odesenvolvimento da linguagem A parte do sistema de Wilhelm Stern que é

mais conhecida e que tem vindo a ganharterreno com o passar dos anos, é a suaconcepção intelectualista sobre odesenvolvimento da linguagem na criança.Contudo, é esta mesma concepção que maisclaramente revela as limitações e as incoerênciasdo personalismo filosófico e psicológico de Stern,os seus fundamentos idealistas e a sua ausênciade validade científica.

É o próprio Stern quem descreve o seuponto de vista como “personalista-genético”.Analisaremos o princípio personalista mais àfrente. Para já, vamos ver como Stern trata doaspecto genético. Afirmaremos já à partida queesta teoria, tal como todas as teoriasintelectualistas, é, pela sua própria natureza,anti-genética.

Stern estabelece uma distinção entre trêsraízes da linguagem: a tendência expressiva, atendência social e a tendência “intencional”.Enquanto as duas primeiras estão tambémsubjacentes aos rudimentos de linguagemobservados nos animais, a terceira éespecificamente humana. Stern defineintencionalidade neste sentido como umaorientação para um certo conteúdo, ousignificado. “Em determinado estádio do seudesenvolvimento psíquico”, afirma ele, “o homem

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adquire a capacidade de significar algoproferindo palavras, de se referir a algo objetivo”(38)(38, p. 126). Em substância, tais atosintencionais são já atos de pensamento; o seusurgimento denota uma intelectualização e umaobjetificação do discurso.

Em consonância com um certo número deautores que representam a nova psicologia dopensamento, embora em menor grau do quealguns deles, Stern sublinha a importância dofator no desenvolvimento da linguagem.

Não temos nada a obstar à afirmaçãosegundo a qual a linguagem humanadesenvolvida possui um significado objetivo,pressupondo portanto um certo grau dedesenvolvimento do pensamento, e estamos deacordo em que é necessário tomar em linha deconta a relação estreita que existe entre alinguagem e o pensamento lógico. O problemaestá em que Stern encara a intencionalidadecaracterística do discurso desenvolvido, queexige explicação genética (isto é, que exige seexplique como foi gerada no processo evolutivo),como uma das raízes do desenvolvimento dalinguagem, como uma força motora, como umatendência inata, quase como um impulso, mas,de qualquer forma como algo primordial,geneticamente equiparada às tendênciasexpressiva e comunicativa — as quais naverdade são detectáveis já nos primeiros estádiosda linguagem. Ao ver a intencionalidade destamaneira (“die intentionale Triebfeder desSprachdranges”), substitui a explicação genéticapor uma explicação intelectualista.

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Este método de explicar uma coisa pelaprópria coisa que há que explicar é o errofundamental de todas as teorias intelectualistase, em particular, da de Stern — daí a suavacuidade geral e o seu caráter anti-genético(pois se relegam para os primeiros estádios dedesenvolvimento da linguagem característicasque pertencem aos seus estádios maisavançados) Stern responde à questão de como eporque a linguagem adquire significadoafirmando. a linguagem adquire significado pelasua tendência intencional, isto é, pela tendênciaà significação. Isto faz-nos recordar o médico deMolière que explicava os efeitos soporíferos doópio pelas suas propriedades dormitivas.

Da famosa descrição que Stern nos dá dagrande descoberta feita pelas crianças por voltado ano e meio ou dois anos de idade podemosver a que exageros pode conduzir umaacentuação exagerada dos aspectos lógicos. Poressa idade, a criança descobre pela primeira vezque cada objeto tem o seu símbolo permanente,uma configuração sonora que o identifica —quer dizer, que cada coisa tem o seu significado.Stern crê que, pelo segundo ano da sua vida,uma criança pode tomar consciência dossímbolos e da sua necessidade e considera queesta descoberta é já um processo de pensamentono sentido próprio do termo:

A compreensão da relação entre o signo eo significado que desponta na criança por estaaltura é algo diferente em princípio da simplesutilização de imagens sonoras, de imagens deobjetos e da sua associação. É a exigência de

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que todos os objetos, sejam eles quais forem,tenham o seu nome próprio pode considerar-secomo uma verdadeira generalização levada acabo pela criança (40)(40, pp. 109-110).

Haverá algum fundamento teórico oufactual para presumir que uma criança de umano e meio ou dois anos de idade temconsciência de uma regra geral, de um conceitogeral? Todos os estudos realizados sobre esteproblema nos últimos vinte anos indicam-nosque a resposta é negativa.

Tudo o que conhecemos da mentalidadeda criança de um ano e meio ou dois anos entraem choque com a idéia segundo a qual elapoderia ser capaz de operações intelectuais tãocomplexas. Tanto a observação como os estudosexperimentais indicam-nos que a criança sómuito mais tarde apreende a relação entre osigno e o significado, ou a utilização funcionaldos signos; tal encontra-se muito para lá doalcance de uma criança com dois anos. Alémdisso, as investigações experimentaissistemáticas mostraram que a compreensão darelação entre o signo e o significado e datransição para o estádio em que a criançacomeça a operar com os signos, não resultanunca de uma descoberta ou invençãorepentinas. Stern acredita que a criançadescobre o significado da linguagem de uma vezpor todas, mas na realidade, trata-se de umprocesso extremamente complexo que tem a sua“História Natural” (isto é, as suas origens e assuas formas de transição aos mais primitivosníveis genéticos) e também a sua “História

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Cultural” (que também tem as suas séries defases próprias, o seu próprio desenvolvimentoquantitativo, qualitativo e funcional, as suaspróprias leis e dinâmica).

Stern passa virtualmente por cima detodas as intrincadas vias que conduzem aoamadurecimento da função do signo; a suaconcepção do desenvolvimento lingüístico éextremamente simplificada. A criança descobrerepentinamente que o discurso tem significado.Esta explicação da forma como a fala se tornasignificante, merece em verdade ser equiparadaà teoria da invenção deliberada da linguagem, àteoria racionalista do contrato social e a outrasteorias intelectualistas famosas. Todas elasdesprezam as realidades genéticas e nãoexplicam realmente nada.

Também do ponto de vista dos fatos ateoria de Stern não agüenta o confronto. Wallon,Kotfka, Piaget, Delacroix e muitos outros, nosseus estudos das crianças normais e K. Buehlerno seu estudo dos surdos-mudos, descobriram:

(1) que a descoberta por parte da criançada ligação entre a palavra e o objeto não conduzimediatamente a uma consciência clara darelação simbólica entre o signo e o referente,característica do pensamento bem desenvolvido,que, durante um grande período de tempo, apalavra surge à criança mais como um atributoou uma propriedade do objeto do que comosimples signo, que a criança apreende a relaçãoexterna entre o objeto e a palavra antes deperceber a relação interna signo-referente;

(2) que a descoberta que a criança faz não

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é uma descoberta súbita, de que se possa definiro instante exato em que ocorre. Uma série delongas e complicadas “transformaçõesmoleculares” conduzem a esse momento críticodo desenvolvimento.

No decurso dos vinte anos que decorreramdesde a publicação, do seu estudo, ficouestabelecido sem sombra de dúvidas que aobservação fundamental de Stern era correta;isto é, há realmente um momento de descobertaque para uma observação mais grosseira surgecomo que não reparada. O ponto de viragemdecisivo do desenvolvimento lingüístico, culturale intelectual da criança descoberto por Sternexiste realmente — embora este autor tenhalaborado em erro, ao dar-lhe uma interpretaçãointelectualista. Stern assinala dois sintomasobjetivos da ocorrência dessa transformaçãocrítica: o surgimento de perguntas sobre osnomes dos objetos e as expansões rápidas, e porsaltos, do vocabulário — daí resultantes; ambosestes sintomas são de primeira importância parao desenvolvimento da linguagem.

A ativa procura de palavras por parte dacriança, que não tem equivalente nodesenvolvimento da “linguagem” nos animais,indica uma nova fase na evolução lingüística. Épor essa altura que o “grandioso sistema designos da linguagem” (para citar Pavlov) emergepara a criança da massa dos outros signos eassume um papel específico no comportamento.Um dos grandes feitos de Stern foi ter assenteeste fato sobre os firmes alicerces dos sintomasobjetivos, o que torna a lacuna da sua

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explicação ainda mais flagrante.Ao contrário das outras duas raízes da

linguagem, a expressiva e a comunicativa, cujodesenvolvimento é seguido desde os animaismais inferiores até aos antropóides e ao homem,a tendência intencional surge do nada: não temHistória nem conseqüências. Segundo Stern, éfundamental, primordial; brotaespontaneamente e “duma vez por todas”. É estapropensão que torna a criança capaz dedescobrir a função da linguagem por meio deuma operação puramente lógica.

É certo que Stern não diz isto assim porestas palavras. Ele entrou em polêmica não sócom os proponentes das teorias anti-intelectualistas que vão buscar as raízes e osinícios da linguagem das crianças a processosexclusivamente afetivos-conativos, mas tambémcom aqueles psicólogos que sobrestimam acapacidade de pensamento lógico das crianças.Stern não repete este erro, mas comete outroainda mais grave ao consignar ao intelecto umaposição quase metafísica de primazia, comoorigem, como causa primeira indecomponível dafala significante. Paradoxalmente este tipo deintelectualismo mostra-se particularmenteinadequado ao estudo do processo intelectual,que à primeira vista deveria ser a sua esfera deaplicação legítima. Por exemplo poderíamosesperar que o fato de se encarar a significaçãoda fala como resultado de uma operaçãointelectual trouxesse muita luz à relação entre alinguagem e o pensamento. Na realidade, talabordagem, ao estipular como estipula um

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intelecto já formado, bloqueia toda e qualquerinvestigação sobre as interações dialéticasimplícitas do pensamento e da linguagem. Otratamento que Stern dá a este aspectofundamental do problema da linguagemencontra-se repleto de incoerências e é a partemais débil do seu livro. (38)(38).

Pontos tão importantes como o discursointerior, a sua emergência e a sua conexão como pensamento mal são aflorados por Stern. Estepassa em revista os resultados das investigaçõesde Piaget apenas na sua análise das conversasinfantis, descurando as funções, a estrutura e osignificado genético dessa forma de linguagemStern é totalmente incapaz de relacionar ascomplexas transformações funcionais eestruturais do pensamento com odesenvolvimento da linguagem.

Mesmo quando Stern nos dá uma corretacaracterização de um fenômeno genético, oenquadramento teórico da sua obra impede-o detirar as conclusões óbvias das suas própriasobservações. Este fato torna-se mais evidente doque nunca na sua incapacidade para ver asimplicações da sua “tradução” dos primeirostermos infantis na linguagem dos adultos. Ainterpretação que dá às primeiras palavras dascrianças é a pedra de toque de todas as teoriasda linguagem infantil. É o ponto focal em quetodas as principais tendências das modernasteorias da linguagem se encontram eentrecruzam. Poder-se-ia dizer, sem exagero quetoda a estrutura de uma teoria é determinadapela tradução que se dá das primeiras palavras

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de crianças.Stern acha que tais palavras não devem

ser interpretadas nem dum ponto de vistapuramente intelectualista, nem do ponto de vistapuramente afeto-conativo. Reconhece os méritosde Meumann ao opor-se à teoria intelectualista,segundo a qual as primeiras palavras de umacriança designam realmente objetos enquantoobjetos (28)(28). Não compartilha contudo, opressuposto de Meumann que afirma que asprimeiras palavras são simples expressões dasemoções e dos desejos das crianças. Através daanálise das situações em que elas surgem provabastante conclusivamente que estas palavrasconvêm também uma certa orientação emdireção a um objeto e que esta “referênciaobjetiva” ou função apontadora freqüentemente“predomina sobre o tom moderadamenteemocional” (38)(38, p. 180).

Eis como Stern traduz as primeiraspalavras:

O significado da palavra infantil mamãtraduzida para a linguagem desenvolvida, não éa palavra “mãe”, mas antes uma frase do gênero“Mamã, chega aqui”, ou “Mamã, dá-me”, ou“Mamã, põe-me em cima da cadeira”, ou “Mama,ajuda-me” (38)(38, p. 180).

No entanto, quando observamos ascrianças em ação, torna-se óbvio que não é só apalavra mamã que significa, digamos, “Mamã,põe-me em cima da cadeira”, mas o conjunto docomportamento da criança nesse momento (oseu gesto de aproximação em direção à cadeira,tentando agarrar-se a ela, etc. Aqui, a orientação

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“afetiva-conotativa” em direção a um objeto (parautilizar os termos de Meumann) é aindainseparável da tendência intencional da fala:ambas as tendências constituem ainda um todohomogêneo e a única tradução correta de mamã,ou de quaisquer outras palavras primitivas é ogesto de apontar que as acompanha. A princípioa palavra é um substituto convencional para ogesto; surge muito antes da crucial “descobertada linguagem” pela criança e antes que esta sejacapaz de executar operações lógicas. O próprioStern admite o papel mediador dos gestos,.especialmente do apontar, no estabelecimentodo significado das primeiras palavras. Aconclusão inevitável seria a de que o apontar éde fato. uma atividade percursora da “tendênciaintencional”. No entanto. Stern escusa-se a irbuscar as raízes da história genética dessatendência. Para ele, esta não resulta de umaevolução a partir da orientação afetiva para oobjeto no ato de apontar (gesto ou primeiraspalavras) — surge do nada e é responsável pelonascimento do significado.

A mesma abordagem anti-genéticacaracteriza também o tratamento que Stern dá atodas as outras questões importantes analisadasno seu vigoroso livro, tais como odesenvolvimento do conceito e os principaisestádios do desenvolvimento da linguagem e dopensamento. Nem podia ser de outra maneira:esta abordagem é conseqüência direta daspremissas filosóficas do personalismo, o sistemadesenvolvido por Stern.

Stern tenta erguer-se acima dos extremos

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tanto do empirismo como do inatismo.Contrapõe o seu próprio ponto de vista dodesenvolvimento da linguagem, por um lado, aode Wundt, que considera a linguagem da criançacomo um produto do meio ambiente, sendo aparticipação da criança inteiramente passiva e,por outro lado, ao ponto de vista dos psicólogospara os quais o discurso primário (asonomatopéias ou o chamado papaguear dosbebês) foi inventado por uma geração infindávelde bebês. Stern tem cuidado em não descurar opapel desempenhado pelos jogos de imitação nodesenvolvimento da linguagem, ou o papel daatividade espontânea da criança, aplicando aestas questões seu conceito de “convergência”: aconquista da linguagem pela criança dá-seatravés de uma constante interação dedisposições internas que preparam a criançapara a linguagem e para as condições externas— isto é, a linguagem das pessoas que a cercam-, que lhe fornecem quer o estímulo quer amatéria prima para a realização dessasdisposições,

Para Stern, a convergência é um princípiogeral, aplicável à explicação de todos oscomportamentos humanos. Este é certamentemais um dos casos em que podemos dizer comGoethe: As palavras da ciência ocultam a suasubstância”. A sonora palavra convergência, queexprime aqui um princípio metodológicoperfeitamente inatacável (quer dizer, o princípiometodológico de que o desenvolvimento deveriaser estudado como um processo determinadopela interação entre o organismo e o meio

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ambiente), liberta na realidade o autor da tarefade analisar os fatores sociais e ambientais nodesenvolvimento da linguagem. É certo queStern afirma realmente com bastante ênfase queo meio ambiente social é o fator principal dodesenvolvimento da linguagem, mas, narealidade, limita o seu papel ao de um fato quese limita a acelerar ou retardar odesenvolvimento, que obedece às suas própriasleis imanentes. Como tentamos mostrar,utilizando o seu exemplo de como o significadoemerge na linguagem, Stern sobrestimou osfatores orgânicos internos.

Esta deformação é resultado direto doquadro personalista de referência. Para Stern, a“pessoa” é uma entidade psicologicamenteindependente que, “apesar da multiplicidade dassuas funções parciais, manifesta uma atividadeunitária, orientada para um objetivo” (39)(39, p.16). Esta concepção “monadista”, idealista, dapessoa individual, leva a uma teoria que vê alinguagem como algo radicado numa teleologiapessoal — e daí o intelectualismo e o pendoranti-genético do ponto de vista de Stern sobre osproblemas do desenvolvimento lingüístico, opersonalismo de Stern, ao ignorar como ignora afaceta social do comportamento lingüístico,conduz a absurdos patentes. A sua concepçãometafísica da personalidade, ao fazer decorrertodos os processos de desenvolvimento de umateleologia pessoal, inverte completamente asrelações genéticas reais. Em vez de uma históriaevolutiva da própria personalidade, em que alinguagem desempenha um papel que se

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encontra longe de ser secundário, temos a teoriametafísica segundo a qual a personalidade geraa linguagem a partir dos fins para que tende asua própria natureza essencial.

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4. As raízes genéticas do pensamento e dalinguagem

IO fato mais importante posto a nu pelo

estudo genético do pensamento e a linguagem éo fato de a relação entre ambas passar pormuitas alterações; os progressos no pensamentoe na linguagem não seguem trajetórias paralelas:as suas curvas de desenvolvimento cruzam-serepetidas vezes, podem aproximar-se e correrlado a lado, podem até fundir-se por momentos,mas acabam por se afastar de novo. Isto aplica-se tanto ao desenvolvimento filogenético como aoontogenético.

Nos animais, o pensamento e a linguagemtêm varias raízes e desenvolvem-se segundodiferentes trajetórias de desenvolvimento. Estefato é confirmado pelos estudos recentes deKoehler, Yerkes e outros sobre os macacos.Koehler provou que o surgimento de umintelecto embrionário nos animais — isto é, oaparecimento de pensamento no sentido própriodo termo — não se encontra de maneiranenhuma relacionado com a linguagem. As“invenções” dos macacos na execução eutilização de instrumentos, ou no capítulo dadescoberta de caminhos indiretos para a soluçãode determinados problemas, embora sejam semsombra de dúvida pensamento embrionário,pertencem a uma fase pré-linguística dodesenvolvimento do pensamento.

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Na opinião de Koehler, as suasinvestigações mostram que o chimpanzéevidencia um esboço de comportamentointelectual do mesmo gênero e do mesmo tipoque o do homem. São a ausência de linguagem.“esse instrumento técnico auxiliar infinitamentevalioso”, e a pobreza das imagens, “esse materialintelectual extremamente importante”, queexplicam a tremenda diferença existente entre osantropóides e os homens mais primitivos “evedam ao chimpanzé o mais pequenodesenvolvimento cultural” (18)(18, pp 191-192).

Vigora considerável desacordo entre ospsicólogos das diferentes escolas acerca dainterpretação teórica das descobertas deKoehler. A massa de literatura crítica a que estesestudos deram origem representa uma grandevariedade de pontos de vista o que torna tantomais significativo o ninguém contestar os fatosou a dedução que mais particularmente nosinteressa: a independência entre as ações dochimpanzé e a linguagem. Isto é admitido de boamente, mesmo pelos psicólogos que, comoThorndyke e Borovski. nada vêem nas ações dochimpanzé para lá dos mecanismos instintuais eda aprendizagem por “tentativas e erros”, “nadamais, salvo o já conhecido processo de formaçãode hábitos” (4)(4, p. 179). e pelosintrospeccionistas que fogem a rebaixar ointelecto ao nível do comportamento dosmacacos, mesmo dos mais avançados. Buehlerdiz com muito acerto que as ações doschimpanzés não têm qualquer relação com alinguagem; e que, no homem, o pensamento

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mobilizado pela utilização dos utensílios(Werkzeugdenken) também tem uma relaçãomuito mais tênue com a linguagem e com osconceitos do que qualquer outra forma depensamento.

A questão seria bem simples se osmacacos não tivessem nenhum rudimento delinguagem, não tivessem nada que seassemelhasse à linguagem. Ora, acontece queencontramos no chimpanzé uma linguagemrelativamente bem desenvolvida, que, sob certosaspectos — sobretudo foneticamente — nãodeixa de ser semelhante à humana. Estalinguagem tem uma característica notável: a defuncionar independentemente do intelecto.Koehler, que estudou os chimpanzés durantemuitos anos na Estação de Antropóides dasIlhas Canárias, ensina-nos que as suasexpressões fonéticas denotam apenas desejos eestados subjetivos; são expressões de afetos enunca um sinal de algo objetivo” (19)(19, p. 27).Mas a fonética dos chimpanzés e a humana têmtantas coisas em comum que podemosconfiantemente presumir que a ausência de umdiscurso do gênero humano não se deve anenhuma causa periférica.

O chimpanzé é um animal extremamentegregário e responde de forma muito intensa àpresença doutros exemplares da sua espécie.Koehler descreve formas altamentediversificadas de “comunicação lingüística” entrechimpanzés. Em primeiro lugar vem o seu vastorepertório de expressões afetivas: jogo facial,gestos, vocalização; a seguir encontram-se os

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movimentos que exprimem as emoções sociais;gestos de saudação, etc. Os macacos sãocapazes tanto de “compreender mutuamente osseus gestos” como também de “exprimir”, pormeio de gestos, desejos que envolvem outrosanimais. Habitualmente, um chimpanzéexecutará o início de uma ação que pretende queoutro animal execute — por exemplo, empurrá-lo-á e executará os movimentos iniciais demarcha para “convidar” o outro a segui-lo, ouagarrará o ar quando pretende que o outro lhedê uma banana. Todos estes gestos são gestosrelacionados diretamente com a própria ação.Koehler menciona que o experimentador é levadoa utilizar meios de comunicação elementaresessencialmente semelhantes para transmitir aosmacacos aquilo que espera deles.

Estas observações confirmam sobejamentea opinião de Wundt segundo a qual os gestos deapontar que constituem o primeiro estádio dodesenvolvimento da linguagem humana nãoaparecem ainda nos animais, mas alguns gestosdos macacos são uma forma de transição entre omovimento de preensão e o de apontar. (56)(56,p. 219). Consideramos que este gesto detransição é um passo muito importante daexpressão afetiva não adulterada para alinguagem objetiva.

Não há no entanto provas factuais de queos animais tenham atingido o estádio darepresentação objetiva de nenhuma das suasatividades. Os chimpanzés de Koehler brincavamcom barro colorido, começando por “pintar., comos lábios e a língua e passando mais tarde para

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pincéis a sério; mas estes animais — quenormalmente transferem para as suasbrincadeiras o uso dos utensílios e outroscomportamentos aprendidos em atividades“sérias” (isto é, em experiências) e, vice-versa —nunca evidenciaram a mínima intenção derepresentar o quer que fosse nos seus desenhosnem o mais leve indício de atribuírem o maispequeno significado aos seus produtos. AfirmaBuehler:

Certos fatos põe-nos de sobreaviso nosentido de não sobrestimarmos as ações doschimpanzés. Sabemos que nunca nenhumviajante confundiu um gorila ou um chimpanzécom um homem, e que nunca ninguém observouentre eles nenhum dos utensílios ou métodostradicionais que, nos homens, embora variandocom as tribos, indicam a transmissão de geraçãoem geração das descobertas já feitas, nenhumadas arranhadelas que executam na areia ou nobarro poderia ser confundida com desenhos querepresentassem alguma coisa ou com decoraçõestraçadas durante a atividade lúdica; não hálinguagem representacional, isto é, não há sonsequivalentes a nomes. Todo este conjunto decircunstâncias deve ter alguma causa intrínseca(7)(7, p. 20).

De entre os observadores modernos dosmacacos, Yerkes deve ser o único que explica asua carência de linguagem por outras razões quenão sejam as “causas intrínsecas”. A suainvestigação sobre o cérebro do orangotangoproduziram dados muito semelhantes aos deKoehler; mas levou as suas conclusões mais

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longe, pois admite uma “inteleção mais elevada”nos orangotangos — ao nível é certo de umacriança de três anos, pelo menos (57)(57, p.132).

Yerkes deduz esta intelecção com base emsemelhanças superficiais entre o comportamentodos homens e o dos antropóides: não apresentanenhuma prova objetiva de que os orangotangosresolvam os problemas socorrendo-se daintelecção, isto é, de “imagens”, ou de que sigame discirnam os estímulos. No estudo dos animaissuperiores, pode-se usar a analogia com bonsresultados, dentro dos limites da objetividade,mas basear uma hipótese em analogias não serácom certeza um procedimento científico correto.

Koehler, por outro lado, foi mais além: nãose limitou a utilizar a simples analogia na suainvestigação da natureza dos processosintelectuais dos chimpanzés. Mostrou também,por meio de uma análise experimental rigorosa,que o êxito das ações dos animais dependia dofato de eles poderem ver todos os elementos dasituação simultaneamente — este fator eradecisivo para o seu comportamento. Se o pauque utilizavam para chegar a um fruto colocadopara lá das barras fosse ligeiramente deslocadode forma que o utensílio (o pau) e o objetivo (ofruto) deixassem de ser visíveis num só relance,a resolução do problema tornar-se-ia muitodifícil, freqüentemente impossível até(especialmente durante as primeirasexperiências). Os macacos tinham aprendido aalongar os seus utensílios, inserindo um pau noorifício praticado noutro pau. Se por acaso os

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dois paus se cruzassem nas suas mãosformando um X, tornavam-se incapazes derealizar a operação familiar muito praticada dealongar o utensílio. Poderiam citar-se dúzias deexemplos destes extraídos das experiências deKoehler.

Koehler considera que a presença real deuma situação bastante simples é condiçãoindispensável em qualquer investigação dointelecto dos chimpanzés, condição sem a qual oseu intelecto não funcionará: conclui daqui queas limitações intrínsecas da “imagética” (ou“ideação”) são uma característica fundamentaldo comportamento intelectual do chimpanzé. Seaceitarmos as teses de Koehler, então a hipótesede Yerkes parece mais do que duvidosa.

Em conexão com estes recentes estudosexperimentais e observações do intelecto e dalinguagem dos chimpanzés, Yerkes apresentanovo material sobre o seu desenvolvimentolingüístico e uma nova e engenhosa teoria quepretende explicar a sua carência de verdadeiralinguagem. “As reações orais”, afirma ele, “sãomuito freqüentes e variadas nos chimpanzésjovens, mas a linguagem no sentido humano nãoexiste” (58)(58, p. 53). 0 seu aparelho vocal é tãodesenvolvido e funciona tão bem como o dohomem. O que lhe falta é a tendência paraimitar sons. A sua mímica está quase totalmentedependente dos estímulos óticos; eles copiamações, mas não sons. São incapazes de fazer oque o papagaio faz com tanto êxito.

Se as tendências imitativas do papagaio secombinassem com o calibre intelectual das do

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chimpanzé, este último possuiria sem dúvidalinguagem, já que tem um mecanismo vocalsemelhante ao do homem, assim como umintelecto de tipo e nível que lhe permitem utilizaros sons tendo em vista o discurso oral (58)(58, p.53).

Nas suas experiências, Yerkes aplicouquatro métodos para ensinar os chimpanzés afalar. Nenhum deles obteve êxito. Tais fracassos,em princípio, nunca resolvem um problema,como é claro. Neste caso, estamos ainda parasaber se é ou não possível ensinar oschimpanzés a falar. Não é raro que a culpa caibaao experimentador. Koehler diz que se osanteriores estudos não conseguiram mostrar queos chimpanzés não têm intelecto, tal não se deveao fato de os chimpanzés não o possuírem, masdevido à inadequação dos métodos, à ignorânciados graus de complexidade no interior dos quaiso intelecto do chimpanzé pode manifestar-se, àignorância da sua dependência, à ignorância dofato que tal manifestação depende da existênciade uma situação visual global. “As investigaçõessobre a capacidade intelectual — troçavaKoehler — “testam tanto o investigador como oinvestigado” (18)(18, p. 191).

Sem terem resolvido a questão emprincípio, as experiências de Yerkes mostrarammais uma vez que os antropóides não têm nadaque se pareça com a linguagem humana, nemsequer em embrião. Se relacionarmos isto com oque já sabemos de outras fontes, podemospresumir que os macacos são provavelmenteincapazes de acederem a uma verdadeira

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linguagem.Possuindo eles o aparelho vocal

indispensável e a gama de sons necessáriosporque razão são incapazes de falar? Yerkesatribui isso à ausência da capacidade deimitação, ou à sua debilidade. Pode ter sido estaa causa dos resultados negativos das suasexperiências, mas provavelmente ele não terárazão ao ver nessa carência a causafundamental da ausência de linguagem nosmacacos. Embora ele a dê como ponto assente,esta última tese é negada por tudo o queconhecemos do intelecto do chimpanzé.

Yerkes dispunha de um excelente meiopara comprovar a sua tese, meio esse que porqualquer razão não utilizou e que muitogostaríamos de poder aplicar se disso tivéssemospossibilidade material: excluiríamos o fatorauditivo ao adestrarmos as qualidadeslingüísticas dos animais. A linguagem nãodepende necessariamente do som. Há porexemplo a linguagem de sinais dos surdos-mudos e a leitura dos lábios, que é tambéminterpretação de movimentos. Nas linguagensdos povos primitivos, os gestos são utilizados emparalelo com o som e desempenham um papelde certa importância. Em princípio, a linguagemnão depende da natureza do material queemprega. Se é verdade que os chimpanzés têm ointelecto necessário para adquirirem algoanálogo à linguagem humana, e o únicoproblema reside no fato de não serem capazes deimitação vocal, então deveriam ser capazes dedominar nas experiências um qualquer tipo de

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gestos convencionais, cuja função psicológicaseria precisamente a mesma dos sonsconvencionais. Como o próprio Yerkesconjectura, poder-se-ia treinar os chimpanzés autilizarem gestos de mão, por exemplo, emsubstituição dos sons. O meio de expressão nãoestá em causa; o que importa é o uso funcionaldos signos, de quaisquer signos que possamdesempenhar um papel correspondente ao dalinguagem humana.

Este método ainda não foi posto à prova enão podemos ter a certeza dos resultados quedaria, mas tudo o que conhecemos docomportamento dos chimpanzés, incluindo osdados de Yerkes. nos obriga a arredar aesperança de que pudessem aprender alinguagem funcional. Nunca ouvimos falar deque houvesse qualquer indício de utilização suados signos. A única coisa que sabemos comcerteza objetiva e, não que possuem “ideação”,mas que, em determinadas circunstâncias sãocapazes de executar utensílios muito simples erecorrer a “desvios” e que estas circunstânciasexigem uma situação global perfeitamente visívele clara. Em todos os problemas em que não severificava a existência de estruturas visuaisimediatamente perceptíveis, e que se centravamnum outro tipo de estrutura diferente, — umtipo de estrutura mecânica, por exemplo — oschimpanzés abandonavam o comportamento detipo intuitivo para adotarem muito pura esimplesmente o método de tentativas e erros.

As condições necessárias para ofuncionamento intelectual dos macacos serão as

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mesmas condições exigidas para a descoberta dalinguagem, ou o uso funcional dos signos? Demaneira nenhuma. A descoberta da linguagemnão pode depender em caso nenhum de umaconfiguração ótica. Exige uma operaçãointelectual de tipo diferente e não temosquaisquer indicações que nos digam que taloperação se encontra ao alcance dos chimpanzése a maior parte dos investigadores admitem ahipótese de que eles carecem de tal capacidade:esta carência pode ser a principal diferençaentre o intelecto dos chimpanzés e o doshomens.

Koehler introduziu o termo Einsicht(intuição) para designar as operaçõesintelectuais acessíveis aos chimpanzés. Aescolha do termo não é acidental. Kafkaassinalou que Koehler parece significar com elea ação de ver no sentido literal do termo e só porextensão a “visão” genérica de relações, ou acompreensão por oposição à ação cega (17)(17, p130).

Deve dizer-se que Koehler nunca defineEinsicht, nem explicita a sua teoria. Na ausênciade interpretações teóricas, o termo é algoambíguo na sua aplicação: por vezes, designa ascaracterísticas específicas da própria operação, aestrutura das ações dos chimpanzés e por vezeso processo psicológico que precede e prepara taisações; como que um plano interno de operações.Koehler não avança qualquer hipótese acerca domecanismo de reação intelectual, mas é claroque, funcione o intelecto como funcionar, e sejaqual for a localização que lhe atribuirmos, — nas

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próprias ações dos chimpanzés ou em qualquerprocesso preparatório interno (cerebral ouneuro-muscular) — a tese mantém-se válida, atese de que esta reação não é determinada portraços de memória, mas pela situação tal comose apresenta visualmente. O chimpanzédesperdiçará até o melhor dos instrumentospara determinado problema se não o vir aomesmo tempo ou quase ao mesmo tempo que oobjetivo (i). Assim, a tomada em consideração daEinsicht não altera em nada a nossa conclusãode que o chimpanzé, mesmo que possuísse asqualidades do papagaio, seria com certezasobremaneira incapaz de dominar a linguagem.

No entanto, como dissemos, o chimpanzépossui uma linguagem própria bastante rica. Ocolaborador de Yerkes, Learned, compilou umdicionário de trinta e dois elementos de discurso,ou “palavras”, que não só se assemelhamfoneticamente ao discurso humano, comopossuem também certo significado, no sentidoem que são suscitadas por certas situações ouobjetos relacionados com o prazer ou odesprazer, ou que inspiram desejo, malícia oumedo (58)(58, p. 54). Estas “palavras” foramcompiladas enquanto os chimpanzésaguardavam que os alimentassem, ou duranteas refeições na presença de humanos, ouenquanto os chimpanzés estavam sós. Sãoreações vocais afetivas, mais ou menosdiferenciadas e, em certa medida, relacionadas,à maneira dos reflexos condicionados, comestímulos referentes à alimentação ou a outrassituações vitais quer dizer, era uma linguagem

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estritamente emocional.Relativamente a esta descrição da

linguagem dos macacos gostaríamos de realçartrês pontos: em primeiro lugar, a coincidência daprodução dos sons com gestos afetivos,particularmente perceptíveis quando oschimpanzés se encontram muito excitados, nãose limita aos antropóides — pelo contrário, émuito vulgar nos animais dotados de voz. Alinguagem humana teve certamente origem nomesmo tipo de reações vocais.

Em segundo lugar, os estados afetivos quesuscitam abundantes reações vocais noschimpanzés são desfavoráveis ao funcionamentodo intelecto. Koehler menciona repetidamenteque, nos chimpanzés, as reações emocionais,sobretudo as de grande intensidade, obliteramqualquer operação intelectual simultânea.

Em terceiro lugar, dever-se-á sublinhar denovo que nos macacos. a linguagem não tem porfunção exclusiva aliviar as tensões emocionais.Tal como noutros animais e também no homem,é também um meio de contato psicológico comos seus semelhantes Tanto nos chimpanzés deYerkes e Learned, como nos macacos observadospor Koehler, esta função é inconfundível. Masnão se encontra relacionada com as reaçõesintelectuais, isto é, com o pensamento. Temorigem na emoção e faz claramente parte dosíndroma emocional total, parte essa, porém,que desempenha uma função específica, tantobiológica como psicologicamente. Está muitolonge de constituir uma série de tentativasconscientes e intencionais para informar e

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influenciar os outros. Essencialmente é umareação instintiva ou algo extremamentesemelhante.

Dificilmente se porá em dúvida que, doponto de vista biológico, esta função dalinguagem é uma das mais primitivas e quegeneticamente tem algo a ver com os sinaisvisuais e orais dados pelos chefes dos gruposanimais. Num estudo recentemente publicadosobre a linguagem das abelhas, K. v. Frischdescreve certas formas de comportamento muitointeressantes e teoricamente importantes, queservem para o intercâmbio ou o contato (10) eque, sem sombra de dúvida, têm origem noinstinto. Apesar das diferenças fenotípicas, estasmanifestações comportamentais são no seufundamental semelhantes ao intercâmbiolingüístico dos chimpanzés. Esta similitudeaponta mais uma vez para independência entrea “comunicação” dos chimpanzés e toda equalquer atividade intelectual.

Empreendemos esta análise de diversosestudos da linguagem e do intelecto dosmacacos para elucidarmos a relação entre opensamento e a linguagem no desenvolvimentofilogenético destas funções. Podemos agoraresumir as nossas conclusões, que nos serãoúteis para o prosseguimento da análise doproblema:

(1) O pensamento e a linguagem têmraízes genéticas diferentes.

(2) As duas funções desenvolvem-sesegundo trajetórias diferentes e independentes.

(3) Não há nenhuma relação nítida e

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constante entre elas.(4) Os antropóides revelam um intelecto

que, sob certos aspectos (a utilizaçãoembrionária dos instrumentos) é semelhante aodos homens e uma linguagem também algosemelhante à humana, mas em aspectostotalmente diferentes (o aspecto fonético da suafala, a sua função de alívio emocional, osembriões de uma função social).

(5) A estreita correspondência entre opensamento e a linguagem, existente no homem,encontra-se praticamente ausente nosantropóides.

(6) Na filogenia do pensamento e dalinguagem distingue-se com muita clareza umafase pré-intelectual no desenvolvimento dalinguagem e uma fase pré-linguística nodesenvolvimento do pensamento.

IIOntogeneticamente, a relação entre a

gênese do pensamento e a da linguagem é muitomais intrincada e obscura; mas também aquipoderemos distinguir duas linhas de evoluçãodistintas, resultantes de duas raízes genéticasdiferentes.

A existência de uma fase pré-linguística dodesenvolvimento do pensamento na infância sórecentemente foi corroborada por provasobjetivas. Aplicaram-se a crianças que ainda nãotinham aprendido a falar as mesmasexperiências que Koehler levou a cabo comchimpanzés. O próprio Koehler havia já realizadoocasionalmente essas experiências com crianças

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com o objetivo de estabelecer comparações eBuehler empreendeu um estudo sistemático dascrianças com a mesma orientação. Os resultadosforam semelhantes para as crianças e oschimpanzés.

Sobre as ações das crianças, diz-nosBuehler:

eram exatamente como as doschimpanzés, de tal forma esta fase da vida dascrianças poderia ser corretamente designada poridade chimpanzóide; na criança que estudamoscorrespondia aos décimo primeiro e décimosegundo meses. É na idade chimpanzóide queocorrem as primeiras invenções da criança —invenções muito primitivas, é certo, masextremamente importantes para o seudesenvolvimento (7)(7, p. 46).

O que sobremaneira importa do ponto devista teórico, tanto nestas experiências, comonas dos chimpanzés, é a descoberta daindependência entre as reações intelectuaisrudimentares e a linguagem. Notando isto,Buehler comenta:

Costumava-se dizer que a linguagem era oinício da hominização (Menschwerden); talvezsim, mas antes da linguagem, há o pensamentoimplicado na utilização de utensílios, isto é, acompreensão das conexões mecânicas e aidealização de meios mecânicos com finsmecânicos, ou, para ser ainda mais breve, antesde surgir a linguagem, a ação torna-sesubjetivamente significativa — por outraspalavras, torna-se conscientemente finalista (7)(7, p. 48).

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As raízes pré-intelectuais da linguagem nodesenvolvimento da criança há muito que sãoconhecidas. O papaguear das crianças, o seuchoro e inclusivamente as suas primeiraspalavras são muito claramente estádios dodesenvolvimento da linguagem que nada têm aver com o desenvolvimento do pensamento. Tem-se encarado duma forma generalizada estasmanifestações como formas de comportamentopredominantemente emocionais. Contudo, nemtodas servem apenas a função de alívio de umatensão. Investigações recentes das primeirasformas de comportamento das crianças e dasprimeiras reações das crianças à voz humana(efetuadas por Charlotte Buehler e o seu círculo)mostraram que a função social da linguagem jáé claramente evidente durante o primeiro ano devida, quer dizer, no estádio pré-intelectual dodesenvolvimento da linguagem de criança.Observaram-se reações bem definidas à vozhumana logo no terceiro mês de vida e aprimeira reação especificamente social à vozdurante o segundo mês (5)(5, p. 124). Estasinvestigações também estabeleceram que asgargalhadas, os sons inarticulados, osmovimentos etc., são meios de contato sociallogo durante os primeiros meses da vida dascrianças.

Assim, as duas funções da linguagem queobservamos no desenvolvimento filogenético jáexistem e são evidentes nas crianças com menosde um ano de idade.

Mas a mais importante descoberta é o fatode em determinado momento por alturas dos

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dois anos de idade, as curvas dedesenvolvimento do pensamento e da linguagem,até então separadas, se tocarem e fundirem,dando início a uma nova forma decomportamento. Foi Stern quem pela primeiravez e da melhor forma nos deu uma descriçãodeste momentoso acontecimento. Ele mostroucomo a vontade de dominar a linguagem sesegue à primeira compreensão difusa dospropósitos desta, quando a criança “faz a maiordescoberta da sua vida”, a de que “todas ascoisas têm um nome” (40)(40, p. 108).

Este momento crucial, quando alinguagem começa a servir o intelecto e ospensamentos começam a oralizar-se, é indicadopor dois sintomas objetivos que não deixamlugar a dúvidas: (1)(1), a súbita e ativacuriosidade da criança pelas palavras, as suasperguntas acerca de todas as coisas novas (“oque é isto?”) e, (ii) o conseqüente enriquecimentodo vocabulário que progride por saltos e muitorapidamente.

Antes do ponto de viragem, a criançareconhece (como alguns animais) um pequenonúmero de palavras que, tal como nocondicionamento, substituem objetos, pessoas,ações, estados, desejos. Nessa idade, a criançasó conhece as palavras que lhe foramtransmitidas por outras pessoas. Agora asituação altera-se: a criança sente a necessidadedas palavras e, por meio das suas perguntas,tenta ativamente aprender os signosrelacionados com os objetos Parece terdescoberto a função simbólica das palavras. A

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linguagem, que no estádio anterior era afetiva-conotativa entra agora no estádio intelectual. Astrajetórias do desenvolvimento da linguagem edo pensamento encontraram-se.

Neste momento, os problemas dopensamento e da linguagem entrelaçam-se.Detenhamo-nos um pouco, examinemos o queacontece exatamente quando a criança faz a sua“grande descoberta” e vejamos se a interpretaçãode Stern é correta.

Buehler e Koffka comparam ambos estadescoberta com as invenções dos chimpanzésSegundo Koffka, uma vez descoberto pelacriança, o nome entra na estrutura do objeto, talcomo o pau passa a fazer parte da situação dequerer agarrar o fruto (20)(20, p. 243).

Examinaremos a solidez desta analogiamais tarde, quando analisarmos as relaçõesestruturais e funcionais entre o pensamento e alinguagem. De momento, limitar-nos-emos anotar que “a grande descoberta das crianças” sóse torna possível depois de se ter atingido umnível de desenvolvimento do pensamento elinguagem relativamente elevado. Por outraspalavras, a linguagem não pode ser “descoberta”sem o pensamento.

Em resumo, devemos concluir que:(1) No seu desenvolvimento ontogenético, o

pensamento e a linguagem têm raízes diferentes.(2) No desenvolvimento lingüístico da

criança, podemos estabelecer com toda a certezauma fase pré-intelectual no desenvolvimentolingüístico da criança — e no seu

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desenvolvimento intelectual podemos estabeleceruma fase pré-lingüística.

3) A determinada altura estas duastrajetórias encontram-se e, em conseqüênciadisso, o pensamento torna-se verbal e alinguagem racional.

IIISeja qual for a forma como abordemos o

controverso problema da relação entre opensamento e a linguagem, teremos sempre quetratar com certa exaustão do discurso interior.Este é tão importante para a nossa atividadepensante que muitos psicólogos, entre os quaisWatson, chegam a identificá-lo com opensamento — que consideram ser uma falainibida e silenciosa. Mas a psicologia ainda nãosabe como se dá a transição do discurso abertopara o discurso interior, nem com que idadeocorre, por que processo e por que razão serealiza.

Watson diz que não sabemos em queponto do desenvolvimento da sua organizaçãolingüística, as crianças passam do discursoaberto para o murmúrio e depois para o discursointerior, porque esse problema só foi estudadode forma acidental. As nossas investigaçõeslevam-nos a crer que Watson põe o problema deuma forma incorreta. Não há razões válidas paracrer que o discurso interior se desenvolve dumaforma mecânica qualquer, por meio de umagradual diminuição da audibilidade da fala(murmúrio).

É verdade que Watson menciona outra

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possibilidade: “talvez as três formas sedesenvolvam simultaneamente” — afirma ele(54)(54, p. 322). Esta hipótese parece-nos tãoinfundada do ponto de vista genético como aseqüência: fala em voz alta, murmúrio, discursointerior. Este “talvez” não é escorado pornenhum dado objetivo. Contra ele testemunhamas profundas dessemelhanças entre o discursoexterno e o discurso interior, reconhecidas portodos os psicólogos, inclusive Watson. Não háqualquer fundamento para presumir que os doisprocessos, tão diferentes funcionalmente(adaptação social, num caso, e adaptaçãopessoal, no outro) e estruturalmente (com efeito,a economia extrema, elíptica, do discursointerior transforma a configuração do discursoaté quase o tornar irreconhecível), possam sergeneticamente paralelos e convergentes.Também não nos parece plausível (paravoltarmos à tese principal de Watson) que seencontrem relacionadas mutuamente pela falamurmurada, a qual, nem pela sua estruturanem pela sua função, pode ser considerada umestádio intermédio entre o discurso exterior e odiscurso interior. Encontra-se a meio caminhoapenas fenotipicamente e não genotipicamente.

Os nossos estudos do murmúrio nosbebês comprovam isto completamente.Descobrimos que, estruturalmente, quase nãohá diferença nenhuma entre o murmurar e afala em voz alta; funcionalmente, o murmúriodifere profundamente do discurso interior e nãomanifesta qualquer tendência a assumir ascaracterísticas deste último. Ao demais, não se

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desenvolve espontaneamente até à idade escolar,embora possa ser induzido muito precocemente:com efeito, sob o efeito da pressão social, umacriança de três anos pode baixar a voz oumurmurar, durante curtos períodos de tempo ecom grande esforço. Este é o único ponto queparece escorar a concepção de Watson.

Embora discordemos da tese de Watson,acreditamos que este encontrou a abordagemmetodológica correta: para resolver o problema,teremos que procurar o elo intermédio entre odiscurso aberto e o discurso interior.

Inclinamo-nos para ver esse elo nodiscurso egocêntrico da criança descrito porPiaget, o qual, para lá do seu papel deacompanhamento da atividade da criança e assuas funções repressiva e de alívio das tensões,facilmente assume uma função planeadora, istoé, se transforma em pensamento propriamentedito muito natural e facilmente.

Se a nossa hipótese se verificar correta,teremos que concluir que a fala é interiorizadapsicologicamente antes de ser interiorizadafisicamente. O discurso egocêntrico é discursointerior pelas suas funções; é discurso em viasde se interiorizar, intimamente associado com oordenamento do comportamento da criança, jáparcialmente incompreensível para os outros,mas que mantém ainda uma forma bemexplícita, patente, na sua forma e que nãomostra quaisquer tendências para setransformar em murmúrio ou qualquer outraforma de discurso semi-silencioso.

Devíamos também ter então resposta para

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o problema da razão por que o discurso seinterioriza. Interioriza-se porque a sua função sealtera. O seu desenvolvimento deveria tertambém três estádios: não os que Watsonjulgava, mas os seguintes: discurso externo,discurso egocêntrico e discurso interior.Passaríamos também a dispor de um métodoexcelente para estudar o discurso interior “aovivo”, por assim dizer, enquanto as suaspeculiaridades funcionais e estruturais estãoainda a formar-se; seria um método objetivo,pois que estas peculiaridades surgem quando odiscurso é ainda audível, isto é, acessível àobservação e à mediação.

As nossas investigações demonstram queo desenvolvimento da linguagem segue o mesmocurso e obedece às mesmas leis que odesenvolvimento de todas as outras operaçõesmentais que envolvem a utilização de signos,como sejam, a atividade de contagem e amemorização mnemônica. Verificamos que estasoperações se desenvolvem geralmente em quatroestádios. O primeiro é o estádio primitivo ounatural, que corresponde ao discurso pré-intelectual e ao pensamento pré-verbal, alturaem que estas operações aparecem na sua formaoriginal, tal como se desenvolveram no estádioprimitivo do comportamento.

Vem a seguir o estádio que poderíamoschamar “da psicologia ingênua”, por analogiacom aquilo que se designa por “física ingênua” —a experiência que a criança tem daspropriedades físicas do seu próprio corpo e dosobjetos que a cercam e a aplicação desta

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experiência ao uso dos instrumentos: o primeiroexercício da inteligência prática infantil quedesabrocha.

Esta fase é muito claramente definida nodesenvolvimento lingüístico da criança.Manifesta-se pela utilização correta das formas eestruturas gramaticais antes de a criança tercompreendido as operações lógicas querepresentam. A criança pode operar comproposições subordinadas, com palavras como,porque, se, quando e mas, muito antes dedominar realmente as relações causais,condicionais ou temporais. Domina a sintaxe dalinguagem antes de dominar a sintaxe dopensamento. Os estudos de Piaget provaram quea gramática se desenvolve antes da lógica e quea criança aprende relativamente tarde asoperações mentais que correspondem à formaverbal que já utiliza há muito.

Com a gradual acumulação da experiênciapsicológica ingênua, a criança entra numaterceira fase, que se distingue por sinaisexternos por operações externas que sãoutilizadas como auxiliares para a solução dosproblemas internos. É a fase em que a criançaconta pelos dedos, recorre a auxiliaresmnemônicos, etc. No desenvolvimento lingüísticocaracteriza-se pelo discurso egocêntrico.

Chamamos ao quarto estádio, estádio de“crescimento interno”. As operações externasinteriorizam-se e sofrem uma profundatransformação durante esse processo. A criançacomeça a contar de cabeça, a utilizar a “memórialógica”, quer dizer, a operar com as relações

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intrínsecas e a utilizar signos. Nodesenvolvimento lingüístico é o último estádio dodiscurso interior, silencioso. Continua a haveruma interação constante entre as operaçõesexternas e internas e cada uma das formasconverte-se incansável e incessantemente naoutra e vice-versa. Pela sua forma, o discursointerior pode aproximar-se muito do discursoexterno ou tornar-se até exatamente igual a esteúltimo, quando serve de preparação para odiscurso externo — por exemplo, quando se estáa pensar uma conferência que se vai proferir.Não existe qualquer divisão nítida entre ocomportamento interno e o comportamentoexterno e cada um deles influencia o outro.

Ao considerarmos a função do discursointerior nos adultos após se ter completado odesenvolvimento, temos de perguntar a nóspróprios se, no seu caso, os processoslingüísticos e intelectivos têm uma relaçãonecessária, se podemos passar um traço de igualentre ambos. Também aqui, como no caso dosanimais, a resposta é negativa.

Esquematicamente, podemos imaginar opensamento e a linguagem como dois círculosque se intersectam Nas regiões sobrepostas, opensamento e a linguagem coincidem,produzindo assim o que se chama pensamentoverbal. O pensamento verbal, porém, nãoengloba de maneira nenhuma todas as formasde pensamento ou todas as formas delinguagem. Há uma vasta área de pensamentoque não apresenta nenhuma relação direta coma linguagem. O pensamento manifestado na

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utilização de utensílios encontra-se incluídonesta área, tal como acontece com o pensamentoprático em geral. Além disso, as investigaçõeslevadas a cabo pelos psicólogos da escola deWuerzburg demonstraram que o pensamentopode funcionar sem quaisquer imagens verbaisou movimentos lingüísticos detectáveis por auto-observação. As experiências mais recentesmostram também que não há correspondênciadireta entre o discurso interior e a língua ou osmovimentos da laringe do indivíduo sujeito àobservação.

Não há também quaisquer razõespsicológicas para fazer decorrer todas as formasde atividade lingüística do pensamento. Nenhumprocesso de pensamento estará com certeza aser mobilizado quando um indivíduo recita emsilêncio um poema aprendido de cor ou quandorepete mentalmente uma, frase que lhe foifornecida com propósitos experimentais —apesar do que possa pensar Watson. Por último,há a linguagem lírica suscitada pela emoção.Embora tenha todas as marcas auditivas da fala,dificilmente poderá ser classificada comoatividade intelectual no sentido próprio dotermo.

Somos portanto forçados a concluir que afusão entre o pensamento e a linguagem, tantonos adultos como nas crianças é um fenômenolimitado a uma área circunscrita. O pensamentonão verbal e a linguagem não intelectual nãoparticipam desta fusão e só indiretamente sãoafetados pelos processos do pensamento verbal.

IV

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Podemos agora resumir os resultados danossa análise. Começamos por tentar seguir agenealogia do pensamento e da linguagem até àssuas raízes, utilizando os dados da psicologiacomparativa. Estes dados são insuficientes paradetectarmos as trajetórias de desenvolvimentodo pensamento e da linguagem pré-humanoscom um grau mínimo de certeza. A questãofundamental, a de saber-se se os antropóidespossuem ou não o mesmo tipo de intelecto doque o homem, é ainda controversa. Koehlerresponde afirmativamente, outros respondempela negativa. Mas seja qual for a solução que asfuturas investigações derem a este problema,uma coisa é já clara: no mundo animal, opercurso para um intelecto de tipo humano nãoé igual à trajetória para uma linguagem de tipohumano; o pensamento e a linguagem nãobrotam da mesma raiz.

Nem aqueles que negariam a existência deum intelecto nos chimpanzés podem negar queos macacos possuem algo que se aproxima dointelecto, que o tipo mais elevado de formação dehábitos neles patente é um intelectoembrionário. A utilização de utensílios prefigurao comportamento humano. Para os marxistas,as descobertas de Koehler não constituemsurpresa Marx afirmou há muito (27) que autilização e a criação de instrumentos detrabalho embora estejam presentes nos animaisde forma embrionária, são característicasespecíficas do processo de trabalho humano Atese de que as raízes do intelecto humano seestendem ao reino animal e tem origem nele foi

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há muito admitida pelo marxismo vemo-la serelaborada por Plekhanov (34)(34, p. 138).

Engels escreveu que os homens e osanimais compartilham todas as formas deatividade intelectual; só o seu nível dedesenvolvimento difere (9): os animais sãocapazes de raciocinar a um nível elementar, deanalisar (o partir de uma noz é um inicio deanálise) e de fazer experiências, quandoconfrontados com determinados problemas, ouquando se lhes depara uma situação difícil.Alguns, como o papagaio, por exemplo, não sósão capazes de aprender a falar, como podem atéaplicar palavras com sentido, duma formarestrita: para pedir alguma coisa, usará palavraspelas quais receberá uma recompensa; quando éirritado deixará escapar as mais seletasinvectivas do seu vocabulário.

Escusado será dizer que Engels nãoacredita os animais com a capacidade depensarem ou de falarem ao nível do homem,mas, neste momento, não precisamos deaprofundar muito o significado exato da suaafirmação. Por agora, apenas desejamosconfirmar que não há boas razões para negar aexistência, nos animais, de uma inteligência euma linguagem embrionárias do mesmo tipo dados homens que, se desenvolvem, também comonos homens, segundo trajetórias separadas. Acapacidade de expressão oral dos animais nãonos dá nenhuma indicação sobre o seudesenvolvimento mental.

Vamos agora resumir os dados pertinentesfornecidos por estudos recentes sobre as

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crianças. Vemos que nas crianças também, asraízes e curso seguido pelo desenvolvimento dointelecto diferem dos da linguagem — e que,inicialmente, o pensamento é não-verbal e alinguagem é não-intelectual. Stern afirma que,em determinado ponto, as duas linhas dedesenvolvimento se cruzam, tornando-se alinguagem racional e o pensamento verbal. Acriança “descobre” que “cada coisa tem o seunome e começa a perguntar como se chamamtodos os objetos.

Alguns psicólogos (8) não estão de acordocom Stern, discordando que esta primeira fasede perguntas tenha ocorrência universal e queseja necessariamente sintoma de qualquerdescoberta momentosa. Koffka adota umaposição intermédia entre Stern e os seusopositores. Como Buehler, ele realça a analogiaentre a invenção de utensílios pelos chimpanzése a descoberta pela criança da funçãonominativa da linguagem mas, segundo ele, estadescoberta não é de tão vasto alcance comoStern supunha. Segundo o ponto de vista deKoffka, a palavra passa a fazer parte daestrutura do objeto no mesmo pé que todas asoutras partes suas constituintes. Durante umcerto período de vida da criança, a palavra paraesta não é um signo, mas apenas uma daspropriedades do objeto que tem de ser fornecidapara que a estrutura fique completa. ComoBuehler apontou, cada novo objeto apresentauma nova situação problemática para a criançae esta resolve o problema uniformementenomeando o objeto. Quando lhe falta a palavra

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para o novo objeto pergunta-a aos adultos (7)(7,p. 54).

Julgamos que esta concepção se encontramais próxima da verdade Os dados existentessobre a linguagem das crianças (escorados pelosdados antropológicos) sugerem-nos com grandeforça que durante um longo período de tempo apalavra é para a criança uma propriedade, maisdo que o símbolo do objeto, que a criançaapreende a estrutura-palavra-objeto mais cedodo que a estrutura simbólica interna.Escolhemos esta hipótese intermédia entre asvárias que se nos oferecem porque, tendo emconta a lei das probabilidades, achamos difícil deacreditar que uma criança entre os dezoitomeses e os dois anos de idade seja capaz dedescobrir a função simbólica da linguagem. Taldescoberta surge mais tarde e não duma formarepentina, mas através de uma série detransformações “moleculares”. A hipótese quepreferimos está em conformidade com aconfiguração geral da trajetória da dominaçãodos sons que nas anteriores seções descrevemos.Mesmo nas crianças em idade escolar o usofuncional de um novo signo é precedido por umperíodo de aprendizagem durante o qual acriança vai dominando progressivamente aestrutura externa do signo. De formacorrespondente, só ao operar com as palavras,que começou por conceber como umapropriedade dos objetos, a criança descobre econsolida a sua função como signo.

Deste modo, a tese de Stern da“descoberta” sofre limitações e carece de uma

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reavaliação. Contudo, o seu princípio básicopermanece válido: é evidente que, sob o ponto devista ontogenético, o pensamento e o discurso sedesenvolvem ao longo de linhas separadas e quenum certo ponto essas linhas se encontram.Este importante fato está hoje definitivamenteprovado, sem detrimento de clarificação, atravésde estudos posteriores, dos detalhes em que ospsicólogos ainda estão em desacordo: se esseencontro se dá num só ponto ou em váriospontos, como uma súbita descoberta ou apóslonga preparação através do uso prático e dalenta troca funcional, e se ocorre aos dois anosde idade ou na idade escolar.

Podemos agora sumariar a nossainvestigação do discurso interior. Também aquiconsideramos várias hipóteses e chegamos àconclusão que o discurso interior se desenvolveatravés de uma lenta acumulação de mudançasfuncionais e estruturais, que se desliga dodiscurso externo da criança simultaneamentecom a diferenciação das funções social eegocêntrica do discurso, e finalmente que asestruturas do discurso dominadas pela criançase transformam nas estruturas básicas do seupensamento.

Isto conduz-nos a um outro incontestávelfato de grande importância: o desenvolvimentodo pensamento é determinado pela linguagem,ou seja, pelos instrumentos lingüísticos dopensamento e pela experiência sociocultural dacriança. Fundamentalmente, o desenvolvimentoda lógica na criança, como o demonstraram osestudos de Piaget, é função direta do seu

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discurso socializado. O crescimento intelectualda criança depende do seu domínio dos meiossociais de pensamento, ou seja, da linguagem.

Podemos agora formular as principaisconclusões a retirar das nossas análises. Secompararmos o desenvolvimento primitivo dodiscurso e do intelecto — que, como vimos, sedesenvolvem ao longo de linhas separadas quernos animais quer nas crianças de tenra idade —com o desenvolvimento do discurso interior e dopensamento verbal, temos de concluir que oúltimo estádio não é uma simples continuaçãodo primeiro. A natureza do própriodesenvolvimento transforma-se, do biológico nosócio-histórico. O pensamento verbal não é umaforma natural de comportamento, inata, mas édeterminado pelo processo histórico-cultural etem propriedades e leis específicas que nãopodem ser encontradas nas formas naturais dopensamento e do discurso. Desde que,admitamos o caráter histórico do pensamentoverbal, teremos que o considerar sujeito a todasas premissas do materialismo histórico, que sãoválidas para qualquer fenômeno histórico nasociedade humana. Só pode concluir-se que aeste nível o desenvolvimento do comportamentoserá essencialmente governado pelas leis geraisdo desenvolvimento histórico da sociedadehumana.

O problema do pensamento e linguagemestende-se, portanto, para além dos limites daciência natural e torna-se no problema focal dapsicologia humana histórica, ou seja, dapsicologia social. Consequentemente, ele deve

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ser colocado de um modo diferente. Estesegundo problema exposto pelo estudo dopensamento do discurso será objeto deinvestigação separada.

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5. Gênese e estudo experimental daformação dos conceitos

IAté muito recentemente, o estudioso da

gênese dos conceitos encontrava-se inferiorizadopela carência de um método experimental quelhe permitisse observar a dinâmica interna doprocesso.

Os métodos tradicionais de estudo dosconceitos subdividem-se em dois grupos. Ochamado método da definição, com as suasvariantes, é típico do primeiro grupo de métodos.É usado para investigar os conceitos já formadosna criança através da definição verbal dos seusconteúdos. No entanto, este método tem doisimportantes inconvenientes que o tornaminadequado para investigar o processo emprofundidade. Em primeiro lugar, é um métodoque se exerce sobre o produto acabado dagênese dos conceitos, descurando a dinâmica e odesenvolvimento do próprio processo. Em vez deregistar o pensamento da criança, limita-sefreqüentemente a suscitar uma reproduçãoverbal do conhecimento verbal, de definiçõesacabadas fornecidas a partir do exterior. Podeser um teste do conhecimento e da experiênciada criança ou do seu desenvolvimentolingüístico, mais do que estudo de um processointelectual no verdadeiro sentido da palavra. Emsegundo lugar, este método, ao centrar-se napalavra, não consegue entrar em linha de conta

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com a percepção e a elaboração do materialsensorial que dão origem aos conceitos. Omaterial sensorial e a palavra são materiaisindispensáveis na formação do conceito Oestudo separado da palavra coloca o processonum plano puramente verbal que não écaracterístico do pensamento da criança. Arelação entre o conceito e a realidade permanecepor explicar; o significado de uma determinadapalavra é abordada através de outra palavra eesta operação, por muito que nos permitadescobrir, nunca nos dará um quadro dosconceitos da criança mas sim um registo dasrelações existentes no seu cérebro entre famíliasde palavras previamente formadas.

O segundo grupo engloba os métodosutilizados no estudo da abstração. Estesmétodos incidem sobre os processos psíquicosque conduzem à formação dos conceitos. Exige-se da criança que descubra um certo número detraços comuns numa série de impressõesdiscretas, abstraindo esses traços comuns detodos os outros traços com que se encontramfundidos na percepção. Os métodos deste tipodescuram o papel desempenhado pelo símbolo (apalavra) na gênese do conceito: um quadroparcial substitui a estrutura complexa doprocesso total por um processo parcial.

Assim, ambos os métodos parciaistradicionais separam a palavra do material dapercepção e operam com uma, quer com o outro,tomados em separado. A criação de um novométodo que permite a combinação de ambas aspartes foi um grande passo em frente. O novo

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método introduz no quadro experimentalpalavras sem sentido que a princípio nãosignificam nada para a criança sujeita àexperiência. Introduz também conceitosartificiais relacionando cada palavra sem sentidocom uma combinação particular dos atributosdos objetos para a qual não exista nenhumconceito nem palavra. Por exemplo, nasexperiências de Ach (1), a palavra gatsun vai apouco e pouco significando “grande e pesado”; apalavra fal, pequeno e leve; Este método podeser utilizado tanto com crianças como comadultos, visto que para resolver o problema oindivíduo observado não precisa ter já qualquerexperiência ou conhecimento prévio. O métodotambém entra em linha de conta com o fato deum conceito não ser uma formação isolada,ossificada, imutável mas parte ativa de umprocesso intelectual, constantemente mobilizadaao serviço da comunicação, do conhecimento eda resolução de problemas. O novo métodocentra a investigação sobre as condiçõesfuncionais da gênese dos conceitos.

Rimat levou a cabo um estudocuidadosamente preparado com adolescentes,utilizando uma variante deste método. Aconclusão principal a que chegou foi a de que averdadeira gênese dos conceitos excede acapacidade dos pré-adolescentes e só começacom o dealbar da puberdade. Escreve este autor:

Estabelecemos terminantemente que só aofindar o décimo segundo ano da vida dascrianças se manifesta um acentuado e súbitoaumento da capacidade de formar sem ajuda,

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conceitos objetivos generalizados... Opensamento através dos conceitos, emancipadoda percepção, traz à criança exigências queexcedem as suas possibilidades mentais para asidades inferiores a doze anos (35)(35, p. 112)

As investigações de Ach e Rimat provam afalsidade da concepção segundo a qual a gênesedos conceitos se baseia nas conexõesassociativas. Ach demonstrou que a existênciade associações entre os símbolos verbais e osobjetos, por mais numerosas que sejam, não é,em princípio, por si própria suficiente para aformação dos conceitos. As suas descobertasexperimentais não confirmam a velha idéia quepretende que um conceito se desenvolve pelomáximo fortalecimento das conexõesassociativas envolvendo os atributos comuns atodos — um grupo de objetos e oenfraquecimento das associações —estabelecidas entre os atributos em que essesmesmos objetos diferem.

As experiências de Ach demonstraram quea gênese dos conceitos é um processo criativo enão mecânico e passivo; que um conceito surgee toma forma no decurso de uma complexaoperação orientada para a resolução do mesmoproblema, e que a simples presença dascondições externas que favorecem umarelacionação mecânica entre a palavra e o objetonão basta para produzir um conceito. Segundoeste ponto de vista, o fator decisivo para agênese dos conceitos é a chamada tendênciadeterminante

Antes de Ach, a psicologia postulava a

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existência de duas tendências básicas queregeriam o fluxo das nossas idéias: a reproduçãoatravés das associações e a persistência. Aprimeira tendência, traz-nos à memória asimagens que em experiências passadas seencontravam ligadas à imagem que, emdeterminada altura, nos ocupa o espírito. Asegunda é a tendência de cada imagem pararegressar e voltar a penetrar no fluxo deimagens. Nas suas primeiras investigações, Achdemonstrou que estas duas tendências nãoconseguiam explicar os atos de pensamento quepossuem uma finalidade conscientementeorientada. O estudo dos conceitos por parte deAch mostrou que nenhum conceito novo seformava sem o efeito regulador da tendênciadeterminante gerada pela tarefa experimental.

Segundo o esquema de Ach, a gênese dosconceitos não segue o modelo de uma cadeiaassociativa em que um elo solicita o segundo: éum processo orientado para um objetivo, umasérie de operações que servem como passosintermédios em direção a um objetivo final. Amemorização das palavras e a sua relacionaçãocom determinados objetos, por si só, não conduzà formação do conceito: para que o processocomece terá de surgir um problema que nãopossa ser resolvido doutra forma, a não ser pelaformação de novos conceitos.

Esta caracterização do processo deformação de novos conceitos é no entantoinsuficiente. A criança pode compreender eempreender a tarefa experimental muito antesde atingir os doze anos de idade, e no entanto

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ser incapaz de formar novos conceitos até teratingido essa idade. O estudo do próprio Achdemonstrou que as crianças não diferem dosadolescentes e dos adultos pela forma comocompreendem os objetivos, mas pela forma comoo seu espírito opera para atingir esses objetivos.O pormenorizado estudo experimental de D.Usnadze sobre a gênese dos conceitos em idadepré-escolar (44)(44, 45,) também demonstrouque, nessa idade, as crianças abordam osproblemas exatamente da mesma maneira queum adulto quando opera com conceitos, masque o caminho que seguem para os resolver éinteiramente diferente. Só podemos concluir queos fatores responsáveis pela diferença essencialentre o pensamento conceptual do adulto e asformas de pensamento características da criançade tenra idade não são nem a tendênciadeterminante, nem o objetivo prosseguido, masoutros fatores que os investigadores nãoinquiriram.

Usnadze assinala que, embora osconceitos completamente formados só surjamrelativamente tarde, as crianças começam autilizar palavras socorrendo-se delas paraestabelecerem um terreno de compreensãomútua com os adultos e entre si Com base nisto,conclui que as palavras se apoderam da funçãodos conceitos e podem servir como meios decomunicação, muito antes de atingirem o níveldos conceitos característico do pensamentocompletamente desenvolvido.

Vêmo-nos confrontados, portanto, com oseguinte estado de coisas: uma criança é capaz

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de apreender um problema e visualizar o objetivoque tal problema levanta, num estádio muitoprecoce do seu desenvolvimento. Como astarefas levantadas pela compreensão e acomunicação são essencialmente semelhantespara a criança e o adulto, a criança desenvolveequivalentes funcionais dos conceitos numaidade extremamente precoce. mas as formas depensamento que utiliza ao defrontar-se comestas tarefas diferem profundamente das que oadulto emprega pela sua composição, pela suaestrutura e pelo seu modo de operação. Oprincipal problema suscitado pelo processo deformação do conceito — ou por qualqueratividade finalista — é o problema dos meiospelos quais tal operação é levada a cabo, porexemplo, não se consegue explicar cabalmente otrabalho, se se disser que este é suscitado pelasnecessidades humanas. Temos que entrartambém em linha de conta com os instrumentosutilizados e a mobilização dos meios adequadose necessários para o realizar. Para explicar asformas mais elevadas do comportamentohumano, temos que pôr a nu os meios atravésdos quais o homem aprende a organizar e dirigiro seu comportamento. Todas as funçõespsíquicas de grau mais elevado são processosmediados e os signos são os meios fundamentaisutilizados para os dominar e orientar. O signomediador é incorporado na sua estrutura comoparte indispensável a bem dizer fulcral doprocesso total. Na gênese do conceito, esse signoé a palavra, que a princípio desempenha o papelde meio de formação de um conceito,transformando-se mais tarde em símbolo. Nas

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experiências de Ach não se dá a esta função dapalavra a atenção suficiente. O seu estudo,embora tenha o mérito de desacreditar, de umavez por todas, o ponto de vista mecanicista sobrea formação dos conceitos, não pôs a nu averdadeira natureza do processo — nemgeneticamente, nem funcionalmente, nemestruturalmente. Enveredou por uma direçãoerrada com a sua interpretação puramenteteleológica, que eqüivale a afirmar que é opróprio objetivo que cria a atividade apropriadaatravés da tendência determinante — isto é, deque o problema traz consigo a sua resolução.

IIPara estudar o processo de gênese do

conceito nas suas diferentes fases dedesenvolvimento, utilizamos o método elaboradopor um dos nossos colaboradores, L. S.Sakharov (36). Poderíamos descrevê-lo como ométodo do duplo estímulo: apresentam-se aoindivíduo observado duas séries de estímulos,uma das quais como objeto da sua atividade e aoutra como signos que servem para organizaresta última. (2)

Sob muitos e importantes aspectos, estemodo de proceder inverte as experiências de Achsobre a formação dos conceitos. Ach começa pordar ao indivíduo observado um período deaprendizagem ou de prática; pode manipular osobjetos e ler as palavras sem sentido nelesescritas antes de se lhe dizer qual a tarefa que selhe pede. Nas nossas experiências, põe-se oproblema ao indivíduo sujeito a observação logode início; o problema não se altera durante toda

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a experiência mas as chaves para a suaresolução são introduzidas pouco a pouco, decada vez que a criança volta um bloco.Decidimo-nos por esta seqüência porquejulgamos que, para que o processo sedesencadeie, é necessário pôr a criança peranteo problema. A introdução gradual dos meiosnecessários à resolução do problema permite-nos estudar o processo total da formação dosconceitos em todas as suas fases dinâmicas. Aformação do conceito é seguida pela suatransferência para outros objetos; o indivíduoobservado e induzido a utilizar os novos termospara falar dos objetos diferentes dos blocosexperimentais e a definir o seu significado dumaforma generalizada.

IIINa série de investigações sobre o processo

de gênese dos conceitos iniciados no nossolaboratório por Sakharov e completados por nóse pelos nossos colaboradores Kotelova ePachlovskaia (48)(49)(48, 49, p. 70) estudaram-se mais de cem indivíduos — crianças,adolescentes e adultos, incluindo alguns comperturbações das atividades lingüísticas eintelectuais.

Os principais resultados do nosso estudopodem ser resumidos como se segue: odesenvolvimento dos processos que acabam porgerar a formação dos conceitos começamdurante as fases mais precoces da infância, masas funções intelectuais que, em determinadascombinações formam a base psicológica daformação dos conceitos amadurecem, tomam

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forma e desenvolvem-se apenas durante apuberdade. Antes dessa idade encontramoscertas formações intelectuais que desempenhamfunções semelhantes aos dos conceitos genuínosque mais tarde aparecem. Relativamente à suacomposição, estrutura e funcionamento estesequivalentes funcionais dos conceitos têm umarelação com os verdadeiros conceitos que ésemelhante à relação entre o embrião e oorganismo completamente desenvolvido.Identificar ambos seria ignorar o lento processode desenvolvimento entre a fase inicial e a fasefinal.

A formação dos conceitos é resultado deuma complexa atividade em que todas asfunções intelectuais fundamentais participam.No entanto, este processo não pode ser reduzidoà associação, à tendência, à imagética, àinferência ou às tendências determinantes.Todas estas funções são indispensáveis, masnão são suficientes se não se empregar o signoou a palavra, como meios pelos quais dirigimosas nossas operações mentais, controlamos o seucurso e o canalizamos para a solução doproblema com que nos defrontamos.

A presença de um problema que exige aformação de conceitos não pode por si só serconsiderada como causa do processo, embora astarefas que a sociedade coloca aos jovensquando estes entram no mundo cultural,profissional e cívico dos adultos sejam umimportante fator para a emergência dopensamento conceptual. Se o meio ambiente nãocoloca os adolescentes perante tais tarefas, se

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não lhes fizer novas exigências e não estimular oseu intelecto, obrigando-os a defrontarem-secom uma seqüência de novos objetivos, o seupensamento não conseguirá atingir os estádiosde desenvolvimento mais elevados, ou atingi-lo-áapenas com grande atraso.

A tarefa cultura, por si só, porém, nãoexplicas o mecanismo de desenvolvimento quetem por resultado a formação do conceito. Oinvestigador deve intentar compreender asrelações intrínsecas entre as tarefas externas e adinâmica do desenvolvimento e considerar agênese dos conceitos como função docrescimento cultural e social global da criança,que não afeta apenas o conteúdo mas também oseu modo de pensar A nova utilizaçãosignificativa, o seu emprego como meio para aformação dos conceitos é a causa psicológicaimediata da transformação radical no processointelectual que ocorre no limiar da adolescência.

Nesta idade não aparece nenhuma funçãoelementar nova que seja essencialmentediferente das que já existem: todas as funçõesexistentes passam a ser incorporadas numanova estrutura, formam uma nova síntese,passam a fazer parte de um novo todo complexo;as leis que regem este todo determinam tambémo destino de cada sua parcela individual. Orecurso às palavras para aprender a orientar osprocessos mentais pessoais e parte integrante doprocesso de formação dos conceitos. Acapacidade para regular as nossas açõespessoais utilizando meios auxiliares só atinge oseu completo desenvolvimento na adolescência.

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IVDa nossa investigação resultou que a

acessão à formação dos conceitos se opera emtrês fases distintas, cada uma das quais sesubdivide em vários estádios. Nesta seção e nasseis que se seguem, descreveremos estas fases eas suas subdivisões à medida que aparecemquando as estudamos pelo método do “duploestímulo”.

Os bebês dão o primeiro passo para aformação dos conceitos quando congregam umcerto número de objetos num acervodesorganizado ou “monte” para resolverem umproblema que nós adultos resolveríamosgeralmente formando um novo conceito. O“monte”, constituído por um conjunto de objetosdessemelhantes reunidos sem qualquer base.revela um alargamento difuso não orientado, dosignificado do signo (palavra artificial) a objetosaparentemente não relacionados uns com osoutros, ligados entre si ocasionalmente napercepção da criança.

Neste estádio, o significado das palavraspara a criança não denota mais do que umaconglomeração sincrética e vaga dos objetosindividuais que duma forma ou doutracoalesceram numa imagem no seu espírito.Dada a sua origem sincrética, essa imagem éaltamente instável.

Na percepção, no pensamento e na ação, acriança tende a fundir os elementos maisdiversos numa só imagem não articuladas sob ainfluência mais intensa de uma impressãoocasional. Claparède deu o nome de sincretismo

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a esta conhecida característica do pensamentoinfantil; Blonski chamou-lhe “coerênciaincoerente” do pensamento infantil.Descrevemos noutra ocasião o fenômeno comoresultado de uma tendência para compensar apobreza das relações objetivas bem apreendidaspor meio de uma super-abundância derelacionações subjetivas e para confundir estasreações subjetivas com as ligações objetivasentre as coisas. Estas relações sincréticas e os“montes” de objetos: congregados em torno dosignificado de uma palavra, refletem também oslaços objetivos, na medida em que estes últimoscoincidirem com as relações existentes entre aspercepções ou impressões da criança. Porconseguinte, muitas palavras têm parcialmenteo mesmo significado para o adulto e a criança,especialmente as palavras que se referem aobjetos concretos que fazem parte do meioambiente habitual da criança. Os significadosque os adultos e as crianças atribuem adeterminada palavra como que “coincidem”muitas vezes no mesmo objeto concreto e istobasta para assegurar a compreensão mútua.

A primeira fase da formação dos conceitosque acabamos de descrever subsume trêsestádios distintos. Foi-nos possível observá-lospormenorizadamente no quadro do estudoexperimental.

O primeiro estádio na formação dosconjuntos sincréticos que representam para acriança o significado de determinada palavraartificial é a manifestação do estádio dasaproximações sucessivas (de “tentativas e erros”)

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no desenvolvimento do pensamento. O grupo écriado ao acaso e a adjunção de cada objeto nãoé mais do que uma simples tentativa ouhipótese, o objeto é imediatamente substituídopor outro, mal se verifica que a hipótese éerrada, isto é, quando o experimentador volta oobjeto e mostra que este tem um nome diferente,

Durante o estádio que se segue, acomposição do grupo é grandementedeterminada pela posição espacial dos objetosexperimentados, isto é, por uma organizaçãopuramente sincrética do campo visual dacriança. A imagem ou grupo sincréticos formam-se como resultado da contiguidade no espaço ouno tempo dos elementos isolados ou pelo fato dea percepção imediata da criança os levar a umarelação mais complexa.

Durante o terceiro estádio da primeira faseda formação dos conceitos a imagem sincréticarepousa numa base mais complexa: é compostade elementos retirados de diferentes grupos ou“montes” já anteriormente formados pela criançada forma que acima se descreveu. Esteselementos sujeitos a uma nova combinação nãotêm qualquer relação intrínseca entre si, deforma que a nova formação possui a mesma“coerência incoerente” que os primeirosconjuntos. A única diferença reside no fato deque ao tentar dar significado a um novo nome acriança já consegue seguir uma operação a doistempos, mas esta operação mais elaboradapermanece sincrética e não produz uma ordemmais elevada do que a simples reunião de“montes”.

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VA segunda fase importante na via da

gênese do conceito engloba muitas variações deum tipo de pensamento que designaremos por“pensamento por complexos”. Num complexo, osobjetos individuais isolados encontram-sereunidos no cérebro da criança não só pelassuas impressões subjetivas, mas também porrelações realmente existentes entre essesobjetos. Isto é um novo passo em frente, umaprogressão para um nível muito superior.

Quando atinge esse nível a criança jásuperou parcialmente o seu egocentrismo. Jánão confunde as relações entre as suasimpressões com relações entre coisas — passodecisivo para abandonar o sincretismo e seaproximar do pensamento objetivo. Opensamento por meio de complexos já é umpensamento coerente e objetivo, embora nãoreflita as relações objetivas da mesma forma queo pensamento conceptual.

No pensamento dos adultos persistemcertos resíduos do pensamento por meio decomplexos. Os nomes de família são talvez omelhor exemplo disto. Todo o nome de família,(“Petrov”, por exemplo) subsume o indivíduoduma maneira que se assemelha estreitamenteao modo de funcionamento dos complexosinfantis. A criança que atingiu esse estádio dedesenvolvimento como que pensa em termos denomes de família; quando começa a organizar ouniverso dos objetos isolados, fá-lo agrupando-os em famílias separadas, mutuamenterelacionadas.

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Num complexo, as ligações entre os seuscomponentes são mais concretas e factuais doque abstratas e lógicas; do mesmo modo,também não classificamos uma pessoa nafamília Petrov por haver qualquer relação lógicaentre essa pessoa e os outros membrosportadores do nome. São os fatos que ditam aresposta.

As ligações factuais que subjazem aoscomplexos são descobertas através daexperiência. Por conseguinte, um complexo é,acima de tudo, e principalmente, umagrupamento concreto de objetos ligados pornexos factuais. Como um complexo não éformado no plano do pensamento lógicoabstrato, os nexos que o geram, bem assim comoos nexos que ajuda a criar, carecem de unidadelógica; podem ser de muitos e diferentes tipos.Todo e qualquer nexo existente pode levar àcriação de um complexo. É essa a principaldiferença entre um complexo e um conceito.Enquanto os conceitos agrupam os objetos emfunção de um atributo, as ligações que unem oselementos de um complexo com o todo e entre sipodem ser tão diversas quanto os contatos e asrelações existentes na realidade entre oselementos.

Na nossa investigação observamos cincotipos fundamentais de complexos que sesucediam uns aos outros durante este estádio dedesenvolvimento.

Chamamos ao primeiro tipo de complexo otipo associativo. Pode basear-se em todo equalquer nexo que a criança note entre os

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objetos da amostra e os objetos de alguns outrosblocos. Na nossa experiência o objeto-amostra, oque fora dado em primeiro lugar à criança com onome à vista, forma o núcleo do grupo a serconstruído. Na construção de um complexoassociativo, a criança pode acrescentar um blocoao objeto de partida por ter a mesma cor queeste, juntando a seguir outro porque ésemelhante ao núcleo pela sua forma edimensão ou por qualquer outro atributo que lhechame a atenção. Qualquer conexão entre oobjeto do núcleo e outro qualquer objeto bastapara que a criança inclua esse objeto no grupo eo designe pelo “nome de família”. A conexãoentre o núcleo e o outro objeto não tem que serum traço comum, como por exemplo, a mesmacor ou forma; uma semelhança ou um contraste,ou uma proximidade no espaço podem tambémservir para estabelecer a ligação.

Para a criança dessa idade a palavra deixade ser o nome próprio do objeto singular; torna-se o nome de família de um grupo de objetosrelacionados entre si por muitas e variadasformas, tantas e tão variadas como as relaçõesentre as famílias humanas.

VIO pensamento por complexos do segundo

tipo consiste em combinar os objetos ou asimpressões concretas que estes deixam noespírito da criança em grupos que seassemelham muito estreitamente a coleções. Osobjetos são agrupados com base em qualquertraço por que defiram, complementando-se,assim, mutuamente.

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Nas nossas experiências, a criança tomavaobjetos que diferiam da amostra pela cor, pelaforma ou o tamanho, ou por outra qualquercaracterística. Não pegava nelas ao acaso;escolhia-os porque contrastavam com o atributoda amostra que tomara como base doagrupamento e complementava esse atributo. Oresultado disto era uma coleção das cores eformas presentes no material da experiência, porexemplo, um grupo de blocos de diferentescores.

O que guia a criança na construção dacoleção era a associação por contraste e não aassociação por semelhança. No entanto estaforma de pensar combinava-se por vezes com aforma associativa propriamente dita, atrásdescrita, produzindo uma coleção baseada emprincípios mistos. A criança não conseguemanter-se fiel durante toda a experiência aoprincípio que originalmente aceitara para baseda coleção. Insensivelmente passa a consideraruma característica diferente, de forma que ogrupo que daqui resulta se torna uma coleçãomista, de cores e turmas, por exemplo.

Este longo e persistente estádio dedesenvolvimento do pensamento da criançaradica na sua experiência, na qual verifica quecoleções de coisas complementares formam porvezes um conjunto ou um todo. A experiênciaensina à criança certas formas de agrupamentofuncional: a chávena, o pires e a colher; umtalher constituído por um garfo, uma faca, umacolher e um prato; o conjunto de roupas queveste. Tudo isto são modelos de conjuntos

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complexos naturais. Até os adultos, quandofalam dos pratos ou das roupas, habitualmenteestão a pensar em conjuntos de objetosconcretos mais do que em conceitosgeneralizados.

Recapitulando, a imagem sincrética queleva à formação de “montes” baseia-se em nexosvagos e subjetivos; o complexo associativofundamenta-se nas semelhanças existentes ououtras ligações necessárias entre as coisas; oconjunto complexo, baseia-se nas relações entreos objetos observadas através da experiênciaprática. Poderíamos dizer que o conjuntobaseado nos complexos é um agrupamento deobjetos baseado na sua participação na mesmaoperação prática — da sua cooperaçãofuncional.

VIIApós o estádio de pensamento que opera

por complexos, há que colocar necessariamenteo complexo em cadeia — uma adjunçãodinâmica e seqüencial de ligações isoladas numaúnica, sendo o significado transmitido de um elopara o outro. Por exemplo, se a amostraexperimental é um triângulo amarelo, a criançapoderia por exemplo, pegar em alguns blocostriangulares até a sua atenção ser atraída por,digamos, pela cor azul do bloco que adeterminada altura acabara de acrescentar aoconjunto; passaria a selecionar blocos azuis sematender à forma — angulosos, circulares,semicirculares. Isto, por seu turno, basta paravoltar a alterar o critério; esquecendo-se da cor,a criança passa a escolher blocos redondos. O

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atributo decisivo varia constantemente durantetodo o processo. O tipo de nexos ou a formacomo cada elo da cadeia se articula com o que oprecede e o que se lhe segue não apresentamcoerência nenhuma. A amostra inicial não temimportância fulcral. Cada elo, uma vez incluídonum complexo em cadeia, é tão importante comoo primeiro e pode tornar-se um ímã para umasérie de outros objetos.

A formação de cadeias demonstraflagrantemente a natureza factual concreta eperceptiva do pensamento por complexos. Umobjeto que entrou num complexo devido a umdos seus atributos, não entra nele comoportador desse atributo, mas como elementoisolado com todos os seus atributos. A criançanão abstrai o traço isolado do todo restante, nemlhe confere um papel especial como acontececom os conceitos. Nos complexos a organizaçãohierárquica está ausente: todos os atributos sãofuncionalmente equivalentes. A amostra podeser completamente esquecida quando se formauma ligação entre dois objetos diferentes. Estesobjetos podem não ter nada em comum comalguns dos outros elementos e, no entanto,fazerem parte da mesma cadeia por força decompartilharem um atributo com outro doselementos.

Por conseguinte, o complexo em cadeiapode ser considerado como a forma mais purado pensamento por meio dos complexos. Aocontrário do complexo associativo, cujoselementos, no fim de contas, se encontraminterligados por meio de um elemento — o

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núcleo do complexo — o complexo em cadeianão tem núcleo, há relações entre elementosisolados, mas nada mais.

Um complexo não se eleva acima dos seuselementos como acontece com o conceito; funde-se com os objetos concretos que o constituem.Esta fusão do geral com o particular, entre ocomplexo e os seus elementos, esta amálgamapsíquica, como Werner lhe chamava, é acaracterística distintiva de todo o pensamentopor complexos — e do complexo em cadeia,muito em particular.

VIIIComo o complexo em cadeia é

factualmente inseparável do grupo de objetosconcretos que o formam, adquire amiúde umaqualidade vaga e flutuante O tipo e a naturezadas ligações podem mudar de elo para eloimperceptivelmente quase. Muitas vezes, umasemelhança muito remota basta para criar umaligação entre dois elos da cadeia. Por vezes osatributos são considerados semelhantes, nãodevido a uma semelhança genuína mas devido auma vaga impressão de que têm alguma coisaem comum. Isto leva ao quarto tipo de complexoobservado nas nossas experiências. Poderíamosdesigná-lo por complexo difuso.

O complexo difuso e marcado pela fluidezdo próprio atributo que une os seus elementosindividuais. Formam-se grupos de objetos ouimagens perceptualmente concretos por meio deligações difusas ou indeterminadas. Porexemplo, uma das crianças das nossasexperiências escolheria indiferentemente para

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associar a um triângulo, trapézios ou triângulos,pois aqueles lhe faziam lembrar triângulos comos vértices cortados. Os trapézios conduzi-la-iamaos quadrados, os quadrados aos hexágonos, oshexágonos aos semicírculos e estes por fim aoscírculos. A cor, como base para a seleção, éigualmente flutuante e variável. Os objetosamarelos podem ser seguidos por objetos verdes;a seguir o verde pode mudar para azul e o azulpara o preto.

Os complexos resultantes deste tipo depensamento são tão indefinidos que podem nãoter limites. Tal qual uma tribo bíblica que aspiraa multiplicar-se até ser mais numerosa do queas estrelas do céu ou as areias do mar, tambémum complexo difuso no espírito de uma criançaé uma espécie de família que tem poderes deexpansão ilimitados por adjunção sucessiva demais e mais membros ao grupo original.

As generalizações da criança nas áreasnão sensoriais e não práticas do seupensamento que não podem ser facilmenteverificáveis através da percepção ou da ação sãoos equivalentes na vida real dos complexosdifusos observados nas experiências. É bemsabido que a criança é capaz de transiçõessurpreendentes, de espantosas generalizações eassociações, quando o seu pensamento seaventura para lá das fronteiras do pequenomundo palpável da sua experiência. Fora dessemundo, a criança constrói freqüentementesurpreendentes complexos ilimitados pelauniversalidade das ligações que abarcam.

Estes complexos ilimitados, porém, são

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construídos segundo os mesmos princípios doscomplexos concretos circunscritos. Em ambos ostipos de complexos, a criança mantém-se dentrodo limite das ligações concretas entre as coisas,mas, na medida em que o primeiro tipo decomplexos compreende objetos que seencontram fora da esfera do seu conhecimentoprático, estas ligações baseiam-se naturalmenteem atributos difusos irreais e instáveis.

IXPara completar o quadro do pensamento

por meio de complexos. temos que descrever umoutro tipo de complexos — que como queconstitui a ponte entre os complexos e o estádiofinal e superior do desenvolvimento da gênesedos conceitos.

Chamamos pseudo-conceitos a este tipode complexos, porque a generalização formadano cérebro, embora fenotipicamente seassemelhe aos conceitos dos adultos épsicologicamente muito diferente do conceitopropriamente dito; na sua essência é ainda umcomplexo.

Na montagem experimental, uma criançaproduz um pseudo-conceito sempre que cercauma amostra com objetos que poderiam tambémser congregados com base num conceitoabstrato Por exemplo, quando a amostra éconstituída por um triângulo amarelo e a criançapega em todos os triângulos do materialexperimental, poderia estar a ser orientada pelaidéia geral ou conceito de triângulo. No entanto,a análise experimental mostra que na realidadea criança é orientada pela semelhança concreta

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visível e se limita a formar um complexoassociativo confinado a um certo numero deligações, um certo tipo de conexões sensoras.Embora os resultados sejam idênticos, oprocesso pelo qual são atingidos não é demaneira nenhuma o mesmo que no pensamentoconceptual (iii)

Temos de deter-nos a observar este tipo decomplexos com algum pormenor. Eledesempenha um papel predominante nopensamento da criança na vida real e éimportante como elo de transição entre opensamento por complexos e a verdadeiraformação de conceitos.

XOs pseudo-conceitos predominam sobre

todos os outros complexos no pensamento dacriança em idade pré-escolar, pela simples razãode que, na vida real, os complexos quecorrespondem ao significado das palavras nãosão espontaneamente desenvolvidos pelacriança: a trajetória seguida por um complexo noseu desenvolvimento encontra-se pré-determinada pelo significado que determinadapalavra já possui na linguagem dos adultos.

Nas nossas experiências, a criança, libertada influência diretriz das palavras familiares, eracapaz de desenvolver significados de palavras ede formar complexos de acordo com as suaspreferências pessoais. Só através daexperimentação poderemos avaliar o tipo e alatitude desta atividade espontânea de domínioda linguagem dos adultos. A atividade pessoalda criança não se encontra de maneira

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nenhuma esterilizada, embora se encontregeralmente oculta da vista e canalizada para viascomplexas, por influência da linguagem dosadultos.

A linguagem do meio ambiente, como osseus significados estáveis, permanentes, apontao caminho que a generalização infantil seguirá.No entanto, constrangido como se encontra, opensamento da criança prossegue ao longo davia pré-determinada, segundo a forma peculiarao seu nível de desenvolvimento intelectual. Oadulto não pode transmitir à criança o seu modode pensar. Apenas lhe fornece o significado jáacabado de uma palavra, em torno do qual acriança forma um complexo — com todas aspeculiaridades estruturais funcionais e genéticasdo pensamento por meio de complexos, mesmoquando o produto do seu pensamento é narealidade idêntico, pelo seu conteúdo, a umageneralização que poderia ter sido obtida pormeio do pensamento conceptual. A semelhançaexterna entre o pseudo-conceito e o conceitoreal, que torna muito difícil pôr a nu este tipo decomplexos é um dos mais importantesobstáculos para a análise genética dopensamento.

A equivalência funcional entre o complexoe o conceito, a coincidência que existe na práticaentre o significado de muitas palavras para oadulto e a criança de três anos, a possibilidadede compreensão mútua e a aparente similitudedos seus processos intelectivos levou apresumir-se erradamente que todas as formasde pensamento e de atividade intelectual dos

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adultos já se encontram presentes em embriãono pensamento das crianças e que na puberdadenão se dá nenhuma transformação radical. Éfácil compreender a origem desta concepçãoerrada. A criança aprende muito precocementeuma grande quantidade de palavras quesignificam a mesma coisa para ela e para oadulto. A compreensão mútua entre o adulto e acriança cria a ilusão de que o ponto final dodesenvolvimento do significado das palavrascoincide com o seu ponto de chegada, de que opensamento é fornecido já acabado à criançadesde início e de que não se dá nenhumdesenvolvimento.

A aquisição pela criança da linguagem dosadultos explica de fato a consonância entre oscomplexos da primeira e os conceitos dasegunda — por outras palavras, a emergência deconceitos complexos ou pseudo-conceitos. Asnossas experiências, em que o pensamento dascrianças não é entaramelado pelo significado daspalavras demonstra que, se não existissem ospseudo-conceitos, os complexos da criançaseguiriam uma evolução diferente dos conceitosdos adultos e a comunicação verbal entre ascrianças e os adultos seria impossível.

O pseudo-conceito serve como elo deligação entre o pensamento por complexos e opensamento por conceitos. É dual por natureza,pois um complexo já traz em si a semente emgerminação de um conceito. O intercâmbioverbal com os adultos torna-se assim umpoderoso fator de desenvolvimento dos conceitosinfantis. A transição entre o pensamento por

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complexos e o pensamento por conceitos passadespercebida à criança, porque os seus pseudo-conceitos já coincidem no seu conteúdo com osconceitos dos adultos.

Assim, a criança começa a operar comconceitos, a praticar o pensamento conceptualantes de se aperceber ter plena consciência danatureza destas operações. Esta situaçãogenética muito peculiar, não se limita aoprocesso de acessão aos conceitos; é a regramais do que a exceção no desenvolvimentointelectual das crianças.

XIVimos já com clareza que só a análise

experimental nos pode dar os vários estádios eformas do pensamento por complexos Estaanálise permite-nos pôr a nu, duma formaesquemática, a verdadeira essência do processogenético de formação dos conceitos e dá-nosassim a chave para compreender o processo talcomo se desenrola na vida real. Mas umprocesso de formação dos conceitosexperimentalmente induzidos nunca refletemperfeitamente o desenvolvimento genéticoexatamente como ocorre na vida real. As formasfundamentais do pensamento concreto queenumeramos aparecem na realidade em estadosmistos e a análise morfológica até agora expostaterá que ser seguida por uma análise funcional egenética. Devemos tentar correlacionar asformas de pensamento complexo descobertas naexperiência com as formas de pensamento queencontramos no desenvolvimento real da criançae verificar as duas séries de observações uma

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com a outra.A partir das nossas experiências

concluímos que, no estádio do pensamentocomplexo, os significados das palavras tal comoas crianças os percebem referem-se aos mesmosobjetos que o adulto tem no espírito, o queassegura a compreensão entre a criança e oadulto, mas que a criança pensa a mesma coisade maneira diferente, por meio de operaçõesmentais diferentes. Tentaremos verificar estaproposição comparando as nossas observaçõescom os dados sobre as peculiaridades dopensamento infantil e o pensamento primitivoem geral coligidos pela ciência psicológica.

Se observarmos que grupos de objetos acriança relaciona entre si ao transferir osignificado das primeiras palavras e comoprocede, descobrimos uma mistura das duasformas a que nas nossas experiênciaschamamos complexo associativo e imagemsincrética.

Tomemos de Idelberger um exemplo, que écitado por Werner (55)(55, p.206). No 251o. diade vida, uma criança emprega a palavra au-au auma figura de porcelana chinesa que representauma rapariga e com que a criança gosta debrincar No 307o. dia, chama au-au a um cãoque ladra no pátio, aos retratos dos avós, a umcão de brinquedo e a um relógio. No 331o. diaaplica o mesmo nome a um pedaço de pele comuma cabeça de animal notando particularmenteos olhos de vidro e a outra pele sem cabeça. No334o.aplica-o a uma boneca de borracha quechia quando é comprimida e no 396o. dia aplica-

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o aos botões de punho do pai. No 443o. diaprofere a mesma palavra mal vê uns botões depérola dum vestido e um termômetro de banho.

Werner analisou este exemplo e concluiuque se podia catalogar da seguinte forma todasas coisas a que a criança chamava au-au: emprimeiro lugar, os cães e os cães de brinquedo epequenos objetos oblongos que seassemelhassem à boneca de porcelana (porexemplo, a boneca de borracha e o termômetro);em segundo lugar, os botões de punho, osbotões de pérola e outros pequenos objetossemelhantes. O atributo que servia de critérioeram as superfícies oblongas ou as superfíciesbrilhantes parecidas com olhos.

É evidente que a criança unia estesobjetos concretos segundo os princípios doscomplexos. Estas formações espontâneas decomplexos preenchem completamente todo oprimeiro capítulo da história do desenvolvimentodas palavras infantis.

Há um exemplo bem conhecido efreqüentemente citado deste tipo de derivas: autilização pelas crianças da palavra quá-quápara designar primeiro um pato nadando naágua dum lago e depois toda a espécie delíquidos, incluindo o leite engarrafado; quandoacontece a criança observar uma moeda comuma águia desenhada, a moeda passa a ser umquá-quá sendo depois a designação transferidapara todos os objetos redondos com o aspecto demoedas. Eis um complexo em cadeia típico: cadanovo objeto incluído na cadeia tem algumatributo comum com outro elemento, mas os

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atributos de ligação estão constantemente avariar.

A formação de complexos é responsávelpelo fenômeno peculiar de uma palavra poder,em diferentes situações, ter significadosdiferentes ou até opostos, desde que hajaqualquer nexo associativo entre essessignificados. Assim, uma criança pode dizerantes, quer para antes e depois, ou amanhãpara amanhã e ontem, indiferentemente. Temosaqui uma perfeita analogia com algumas línguasantigas — o Hebreu, o Grego e o Latim — nasquais uma mesma palavra indica por vezestambém o seu contrário. Os Romanos, porexemplo, tinham uma mesma palavra para alto ebaixo. Tal casamento de significados opostos sóé possível em resultado do pensamento porcomplexos.

O pensamento primitivo tem outro traçomuito interessante que nos mostra opensamento por complexos em ação e indica adiferença entre os pseudo-conceitos e osconceitos. Este traço, que Levy-Bruhl foi oprimeiro a reconhecer nos povos primitivos,Storch nos doentes mentais e Piaget nascrianças — é designado correntemente porcontaminação. Aplica-se o termo à relação deidentidade parcial ou estreita interdependênciaestabelecida pelo pensamento primitivo entredois objetos ou fenômenos que na realidade nãoapresentam qualquer continuidade nemnenhuma outra conexão reconhecível.

Levy-Bruhl (26) cita von den Steinen apropósito de um flagrante caso de participação

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observado nos Bororo do Brasil que se orgulhamde serem papagaios vermelhos. Von den Steinena princípio não sabia como interpretar umaafirmação tão categórica, mas acabou por acharque os índios queriam significar precisamenteisso. Não se tratava apenas de uma palavra deque se tivessem apropriado, ou duma relaçãofamiliar sobre que insistissem: o que queriamsignificar era uma identidade de essências.

Parece-nos que o fenômeno dacontaminação não teve nenhuma explicaçãopsicológica suficientemente convincente e istopor duas razões: em primeiro lugar, asinvestigações tenderam a centrar-se sobre oconteúdo do fenômeno e a descurar as operaçõesmentais nele envolvidas, isto é, a estudar oproduto em vez do processo; em segundo lugar,não se efetuaram quaisquer tentativasadequadas para ver o fenômeno no contexto deoutras conexões e relações formadas pelocérebro primitivo. Acontece demasiadas vezesque aquilo que atrai a atenção das investigaçõesé o fantástico, o extremo, como por exemplo, ofato de os Bororo se considerarem comopapagaios vermelhos a expensas de fenômenosmenos espetaculares. No entanto, uma análisemais aturada mostra que até as conexões quenão se chocam abertamente com a nossa lógicasão formadas pelos povos primitivos com basenos princípios do pensamento por complexos.

Como as crianças de certa idade pensampor pseudo-conceitos, como, para elas, aspalavras designam complexos de coisasconcretas, o seu pensamento terá

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necessariamente como resultado acontaminação, isto é, conexões que não sãoaceitáveis pela lógica dos adultos. Determinadacoisa pode ser incluída em diferentes complexospor força dos seus diferentes atributos concretose. consequentemente, pode ter vários nomes. Autilização de um ou de outro depende docomplexo que é ativado em determinadomomento. Nas nossas experiências observamosfreqüentemente casos deste tipo decontaminação em que um objeto era incluídosimultaneamente em dois ou mais complexos. Acontaminação não é uma exceção nopensamento por complexos, muito pelocontrário, é a regra.

Os povos primitivos também pensam porcomplexos e, consequentemente, nas suaslínguas a palavra não funciona como umaentidade portadora de um conceito, mas comoum “nome de família” para grupos de objetosconcretos congregados não logicamente, masfactualmente. Storch mostrou que este mesmotipo de raciocínio é característico dosesquizofrênicos que regridem do pensamentoconceptual para um tipo mais primitivo deintelecção, rico em imagens e símbolos. Eleconsidera que o uso das imagens concretas emlugar dos pensamentos abstratos é um dos maiscaracterísticos traços do pensamento primitivo.Assim, a criança, o homem primitivo, e oalienado, por muito que os seus processosmentais difiram no respeitante a outros aspectosimportantes, manifestam todos fenômenos decontaminação — sintoma do pensamento

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primitivo por complexos e da função daspalavras como nomes de família.

Estamos portanto em crer que a formacomo Levy-Bruhl interpreta a contaminação éincorreta. Este autor aborda o fato de os Bororoafirmarem serem papagaios vermelhos do pontode vista da nossa lógica, presumindo quetambém para o homem primitivo tal asserçãosignifica uma identidade de essências. Mascomo, para os Bororo, as palavras designamgrupos de objetos e não conceitos, a suaasserção tem diferente significado. A palavra quedesigna papagaio é uma palavra que designa umcomplexo de que eles fazem parte conjuntamentecom os papagaios. Não implica identidade, talcomo o fato de duas pessoas compartilharem omesmo nome de família não implica que sejamuma e a mesma pessoa.

XIIA história da linguagem mostra

claramente que o pensamento por complexoscom todas as suas peculiaridades é o própriofundamento do desenvolvimento lingüístico.

A lingüística moderna estabelece adistinção entre o significado de uma palavra, ouexpressão, e o referente, isto é, o objeto quedesigna. Pode haver um só significado e váriosreferentes, ou diferentes significados e um sóreferente. Quer digamos “o vencedor de Jena” ouo “derrotado de Waterloo”, estamos a referir-nosà mesma pessoa e, no entanto, o significado dasduas expressões é diferente. Só há umacategoria de palavras que têm por única funçãoa função de referência: são os nomes próprios.

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Usando esta terminologia, podíamos dizer que aspalavras das crianças e dos adultos coincidem,pelos seus referentes mas não pelos seussignificados.

Também na História das línguasencontramos exemplos de identidades dereferentes combinadas com divergências designificados. Esta tese é confirmada por umagrande quantidade de fatos. Os sinônimosexistentes em cada língua são um bom exemplodisto. A língua russa tem duas palavras paradesignar a Lua, a que se chegou através dediferentes processos de pensamento claramenterefletidos pela etimologia Um termo deriva dapalavra latina que conota “capricho, fantasia,inconstância” e tinha por intenção óbviasublinhar a volubilidade de formas que distinguea Lua de todos os outros corpos celestes. Apalavra que está na origem do segundo termo,que significa “mediador”, foi sem dúvidaimpregnada pelo fato de o tempo poder sermedido pelas fases da Lua. Entre as línguas omesmo acontece. Por exemplo, em Russo, apalavra que significa alfaiate deriva de umavelha palavra que designa uma peça de pano;em Francês, Inglês e Alemão significa “o quetalha”.

Se seguirmos a evolução de uma palavraem qualquer linguagem e por maissurpreendente que tal possa parecer à primeiravista, veremos que o seu significado setransforma exatamente da mesma forma que opensamento das crianças. No exemplo quecitamos, a palavra au-au aplicava-se a uma série

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de objetos totalmente distintos do ponto de vistados adultos. No desenvolvimento da linguagemsemelhantes transferências de significado nãoconstituem exceção, antes pelo contrário, sãoregra. O russo tem uma palavra para dia-e-noite,a palavra sutki. A principio. significava costura,junção de duas peças de roupa, algo entretecido,passou depois a ser utilizada para designar todoe qualquer tipo de junção, por exemplo, a junçãode duas paredes de uma casa e, portanto, umcanto ou esquina; começou a ser utilizadametaforicamente para designar “crepúsculo”, aaltura “em que o dia e a noite se casam, seencontram”; passou depois a designar ointervalo entre um crepúsculo e o seguinte, oatual sutkí de 24 horas. Palavras tão diversascomo costura, canto, crepúsculo e 24 horas sãoenglobadas num só complexo no decurso dodesenvolvimento de uma palavra da mesmaforma que uma criança incorpora diferentescoisas num grupo com base na imagéticaconcreta.

Quais são as leis que regem a formaçãodas famílias de palavras? O mais freqüente é osnovos objetos serem designados em função deatributos que não são essenciais, de forma que apalavra não exprime verdadeiramente a naturezada coisa nomeada. Como um nome nunca é umconceito quando aparece pela primeira vez, ésimultaneamente demasiado limitado edemasiado vasto. Por exemplo, a palavra russaque designa rato significava primeiramente“ladrão”. Mas uma vaca não é nem de longeapenas um animal com cornos, nem um rato se

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limita a roubar; assim, os seus nomes sãodemasiado limitativos. Por outro lado, sãodemasiado latos, na medida em que essesepítetos podem ser aplicados — e realmente são-no em certas línguas — a um certo número deoutras criaturas. O resultado disto é uma lutaincessante, no seio da língua emdesenvolvimento, entre o pensamentoconceptual e a herança, o legado, do primitivopensamento por meio de complexos. Osubstantivo criado por um complexo, o nomebaseado num, entra em conflito com o conceitoque passou a representar. Na luta entre oconceito e a idéia que deu origem ao nome, aimagem perde gradualmente terreno; desvanece-se da consciência e da memória e o significadooriginal da palavra acaba por ficar obliterado. Háalguns anos toda a tinta de escrever era negra ea palavra russa que designa tinta refere-se à suacor negra. Mas isso não nos impede de falarmoshoje de “negrura” vermelha, verde ou azul semnotarmos a incongruência da combinação. Astransferências dos nomes para novos objetosocorrem por contiguidade ou semelhança, isto é,com base em ligações concretas típicas dopensamento por complexos. As palavras queestão sendo elaboradas na nossa épocaapresentam-nos muitos exemplos do processocomo coisas heterogêneas se misturam nummesmo agrupamento. Quando falamos da “pernada mesa”, do “cotovelo da rua”, da “boca nabotija”, estamos a agrupar objetos duma formasemelhante aos complexos. Nestes casos, assemelhanças visuais e funcionais que servem demediadores no processo são bastante claras. A

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transferência pode ser determinada, no entanto,pelas associações mais variadas, e quando setrata de uma transferência que ocorreu há muitotempo, é impossível reconstruir as conexõesexistentes com conhecimento perfeito do pano defundo histórico do acontecimento

A palavra primitiva não é um símbolodireto de um conceito mas antes uma imagem,um retrato, um esboço mental, uma curtahistória sobre esse conceito quer dizer, umaautêntica obra de arte em ponto pequeno. Aonomearmos um objeto por meio de um conceitopictórico desse gênero, vinculamo-lo a um grupoem que figura uma certa quantidade de outrosobjetos. A esse respeito, o processo de criação dalinguagem é análogo ao processo de formaçãodos complexos no desenvolvimento intelectualdas crianças.

XIIINa linguagem das crianças surdas-mudas

podemos aprender muitas coisas acerca dopensamento por complexos, pois a estascrianças falta o principal estímulo para aformação de conceitos. Privados de intercâmbiosocial com os adultos e deixados a si própriospara determinarem que objetos devem agruparsob a égide de um mesmo nome, formam os seuscomplexos livremente e as característicasespeciais do pensamento por complexosaparecem na sua forma pura e nítida.

Na linguagem por sinais dos surdos-mudos, o ato de tocar um dente pode ter trêssignificados diferentes: “branco”, “pedra” e“dente”. Os três significados pertencem a um

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mesmo complexo que, para melhor elucidação,exige um gesto suplementar de apontar ouimitativo, de forma a precisar-se que objeto sequer significar em cada caso concreto. As duasfunções da palavra encontram-se, por assimdizer, separadas. Um surdo-mudo toca o dente ea seguir, apontando para a sua superfície oufazendo um gesto de arremesso, diz-nos a queobjetos se refere em cada caso.

Para comprovarmos e complementarmosos nossos resultados experimentais fomosbuscar alguns exemplos de gênese de complexosdo desenvolvimento lingüístico das crianças, dopensamento dos povos primitivos e dodesenvolvimento da linguagem enquanto tal.Dever-se-á notar no entanto que até o adultonormal, que é capaz de formar e utilizarconceitos, não opera sistematicamente comconceitos ao pensar. Para lá dos processosprimitivos de pensamento dos sonhos, o adultodesvia-se constantemente do pensamentoconceptual para o pensamento concreto do tipodos complexos. A forma transitória dopensamento, o pseudo-conceito, não se limita aopensamento das crianças; também nósrecorremos a ela muito freqüentemente na nossavida de todos os dias.

XIVA nossa investigação levou-nos a dividir o

processo de gênese dos conceitos em três fasesprincipais. Descrevemos duas dessas fases,marcadas pela predominância da imagemsincrética e do complexo, respectivamente, echegamos agora à terceira fase. Tal como na

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segunda, pode ser subdividida em váriosestádios.

Na realidade, as novas formações nãoaparecem necessariamente apenas após opensamento por complexos ter completado a suatrajetória de desenvolvimento. Duma formarudimentar podem ser observadas muito antesde a criança começar a pensar em termos depseudo-conceitos. Essencialmente, no entanto,as formas que vamos começar a descrever têmuma segunda raiz, uma raiz independente.Possuem uma função genética diferente da doscomplexos no desenvolvimento mental dacriança.

A principal função dos complexos consisteem estabelecer ligações e relações. Opensamento por complexos dá início à unificaçãodas impressões dispersas; ao organizarelementos discretos da experiência em gruposcria uma base para futuras generalizações.

Mas o conceito desenvolvido pressupõealgo mais do que a unificação Para formar esseconceito é também necessário abstrair, isolarelementos e ver os elementos abstraídos datotalidade da experiência concreta em que seencontram mergulhados. Na genuína gênese dosconceitos é tão importante unificar comoseparar: a síntese tem que combinar-se com aanálise. O pensamento por complexos não podeefetuar ambas as operações. Asuperabundância, a superprodução de conexõese a debilidade da abstração constituem aessência mesma do pensamento por complexos.A função do processo que amadurece durante a

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terceira fase do desenvolvimento da gênese dosconceitos é constituída pela satisfação dosegundo requisito, embora os seus primeirospassos radiquem num período muito anterior.

Na nossa experiência, o primeiro passo emdireção à abstração dava-se quando a criançacomeçava a agrupar o máximo número possívelde objetos, por exemplo, objetos que erampequenos e redondos ou vermelhos e chatos.Como o material experimental não contémobjetos idênticos, até os que apresentam o maiornúmero de semelhanças são diferentes sobcertos aspectos. Daqui se segue que, ao colherassim os que melhor “se casavam”, a criançatem que prestar mais atenção a certos traços deum objeto do que aos outros — dando-lhe umtratamento preferencial, por assim dizer. Osatributos, ao somarem-se, fazem com que oobjeto que apresenta o máximo de semelhançascom a amostra se torne o centro de atenção,abstraindo-se assim, em certo sentido, dosatributos a que a criança presta menos atenção.A primeira tentativa de abstração não é obviaenquanto tal, porque a criança abstrai todo umgrupo de traços, sem os distinguir claramenteuns dos outros; amiúde, a abstração de um talgrupo de atributos baseia-se apenas numaimpressão vaga e geral de semelhança dosobjetos.

No entanto, o caráter global da percepçãoda criança abriu brechas. Os atributos de umobjeto foram divididos em duas partes a que nãose deu a mesma importância — e isto é umcomeço de abstração positiva e negativa. Um

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objeto não entra já no complexo in toto, comtodos os seus atributos — alguns vêem vedada asua entrada; se, com isso, o objeto éempobrecido, os atributos que provocaram a suainclusão no complexo adquirem um relevo maisvincado no pensamento da criança.

XVDurante o estádio seguinte do

desenvolvimento da abstração, o agrupamentode objetos com base no máximo de semelhançapossível é superado pelo agrupamento com basenum único atributo, por exemplo, oagrupamento exclusivo dos objetos redondos, oudos objetos chatos. Embora o produto não sepossa distinguir do produto de um conceito,estas formações, tal como os pseudo-conceitos,são meras percursoras dos autênticos conceitos.Segundo o uso introduzido por Gross(14),podemos chamar a estas formações conceitospotenciais.

Os conceitos potenciais resultam de umaespécie de abstração isolante de natureza tãoprimitiva que se encontra presente em certograu não só nas crianças de muito tenra idadecomo também nos animais. Pode treinar-se asgalinhas a responderem a um atributo distintoem diferentes objetos, como por exemplo, a corou a forma, se esse atributo for sinal de comidaacessível; os chimpanzés de Koehler, tendoaprendido a utilizar um pau como instrumento,utilizavam outros objetos compridos quandoprecisavam de um pau e não o tinham.

Mesmo nos bebês muito pequenos, osobjetos ou as figuras que apresentam certos

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traços comuns evocam respostas semelhantes.No mais precoce estádio pré-verbal as criançasesperam nitidamente que situações semelhantesconduzam a desfechos semelhantes. A partir domomento em que uma criança associou umapalavra com um objeto, facilmente se aplica aum novo objeto que a impressiona por, emcertos aspectos, ser semelhante ao primeiro. Osconceitos potenciais, portanto, podem serformados, tanto na esfera do pensamentoperceptual, como na esfera do pensamentoprático, virado para a ação — com base nasemelhança de significados funcionais, nosegundo. Estes últimos são uma importantefonte de conceitos potenciais. É do conhecimentogeral que os significados funcionaisdesempenham um papel muito importante nopensamento da criança infantil. Quando Se lhepede que explique uma palavra, uma criançadir-nos-á aquilo que o objeto designado pelapalavra em questão faz, ou — o que é maisfreqüente — o que se pode fazer com esse objeto.Até os conceitos abstratos são muitas vezestraduzidos na linguagem da ação concreta:“Razoável quer dizer quando estou a suar e nãome deixo estar numa corrente de ar”.

Os conceitos potenciais já desempenhamum certo papel no pensamento por complexos.Por exemplo, os complexos associativospressupõem a existência de que se “abstrai” umtraço comum de diferentes unidades. Masenquanto o pensamento por complexospredominar, o traço abstraído é instável, nãotem posição privilegiada e facilmente cede a sua

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dominância temporária a outros traços. Nosconceitos potenciais propriamente ditos, umtraço que alguma vez tenha sido abstraído nãose volta a perder facilmente no meio de outrostraços. A totalidade concreta de traços foidestruída pela sua abstração e abre-se apossibilidade de unificar os traços numa basediferente. Só o domínio da abstração, combinadocom o pensamento por complexos desenvolvidopermite à criança avançar para a formação dosconceitos genuínos. Um conceito só surgequando os traços abstraídos são novamentesintetizados e a abstração sintetizada daíresultante se torna o principal instrumento depensamento. Como ficou provado pelas nossasexperiências, é a palavra que desempenha opapel decisivo neste processo; a palavra éutilizada deliberadamente para orientar todos osprocessos parciais do estádio superior da gênesedos conceitos (iv).

XVINo nosso estudo experimental dos

processos intelectuais dos adolescentesobservamos como as formas primitivas depensamento, quer as sincréticas quer as que sebaseiam nos complexos, vão desaparecendogradualmente, como os conceitos potenciais vãosendo usados cada vez menos e os verdadeirosconceitos começam a formar-se — raramente aprincípio e depois com crescente freqüência.Mesmo após o adolescente ter aprendido aproduzir conceitos, não abandona as formasmais elementares; estas continuam a operardurante um certo período, continuando até a

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predominar em muitas áreas do seupensamento. A adolescência é menos um períodode consumação do desenvolvimento do que detransição e crise.

O caráter transitório do pensamento doadolescente torna-se particularmente evidentequando observamos o funcionamento real dosconceitos acabados de adquirir. Certasexperiências especialmente projetadas paraestudar as operações que os adolescentes levama cabo com os conceitos põem em evidênciaacima de tudo uma flagrante discrepância entrea sua capacidade para formar conceitos e a suacapacidade para os definir.

O adolescente formará e utilizará muitocorretamente um conceito numa situaçãoconcreta, mas sentirá uma estranha dificuldadeem exprimir esse conceito por palavras e adefinição verbal, em muitos casos, será muitomais restritiva do que seria de esperar pelaforma como o adolescente utilizou o conceito. Amesma discrepância ocorre no pensamento dosadultos, mesmo em níveis de desenvolvimentomuito avançados. Isto está de acordo com opressuposto de que os conceitos evoluem deforma muito diferente da elaboração deliberada econsciente da experiência em termos de lógica. Aanálise da realidade com a ajuda dos conceitosprecede a análise dos próprios conceitos.

O adolescente defronta-se com outrosobstáculos quando tenta aplicar um conceitoque formou numa situação específica a um novoconjunto de objetos e circunstâncias em que osatributos sintetizados no conceito aparecem em

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configurações que diferem da original (exemplodisto seria a aplicação a objetos quotidianos donovo conceito “pequeno e alto” desenvolvido noteste dos blocos). No entanto, o adolescentecorretamente é capaz de realizar essatransferência num estádio relativamente precocedo desenvolvimento.

Muito mais difícil do que a transferênciaem si é a tarefa de definir um conceito quando jánão tem quaisquer raízes na situação original etem que ser formulado num plano puramenteabstrato, sem referência a nenhuma situação ouimpressão concretas Nas nossas experiências,há crianças ou adolescentes que resolvemcorretamente o problema da formação doconceito, mas descem a um nível muito maisprimitivo de pensamento quando se trata dedefinir verbalmente o conceito e começam muitopura e simplesmente a enumerar os váriosobjetos a que aquele se pode aplicar naconfiguração particular em que se encontra.Neste caso operam com a palavra como umconceito mas definem-no como complexo —forma de pensamento esta que vacila entre oconceito e o complexo e que é característica etípica desta idade de transição.

A maior de todas as dificuldades é aaplicação de um conceito que o adolescenteconseguiu finalmente apreender e formular a umnível abstrato a novas situações que têm que serencaradas nos mesmos termos abstratos — umtipo de transferência que habitualmente só édominado pelo fim do período de adolescência Atransição do abstrato para o concreto vem a

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verificar-se tão árdua para o jovem, como aprimitiva transição do concreto para o abstrato.As nossas experiências não deixam quaisquerdúvidas que neste ponto, de qualquer forma, adescrição da gênese dos conceitos dada pelapsicologia tradicional, a qual se limita areproduzir o esquema da lógica formal, não temqualquer relação com a realidade.

Segundo a escola clássica, a formação dosconceitos é realizada pelo mesmo processo doretrato de família nas fotografias compósitas deGalton. Estas são realizadas tirando fotografiasde vários membros de uma mesma família sobremesma chapa, de forma que os traços de famíliacomuns a várias pessoas surgem comextraordinária vivacidade, enquanto os traçospessoais variáveis de cada um se esfumam coma sobreposição. Presume-se que na formação deconceitos se dá uma intensificação de traçossemelhantes; segundo a teoria tradicional asoma destes traços é o conceito. Na realidade,como alguns psicólogos há muito notaram, e asnossas experiências demonstram, o caminhopelo qual os adolescentes atingem a formaçãodos conceitos nunca se conforma com esteesquema lógico. Quando se vê em toda a suacomplexidade o processo de gênese dosconceitos, este surge-nos como um movimentode pensamento dentro da pirâmide dosconceitos, que oscila constantemente entre duasdireções, do particular para o geral e do geralpara o particular.

As nossas investigações mostraram queum conceito se forma não através do jogo mútuo

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das associações, mas através de uma operaçãointelectual em que todas as funções mentaiselementares participam numa combinaçãoespecífica. Esta operação é orientada pelautilização das palavras como meios para centrarativamente a atenção, para abstrair certostraços, sintetizá-los e representá-los por meio desímbolos.

Os processos que conduzem à formaçãodos conceitos desenvolvem-se segundo duastrajetórias principais. A primeira é a formaçãodos complexos: a criança une diversos objetosem grupos sob a égide de um “nome de família”comum; este processo passa por vários estádios.A segunda linha de desenvolvimento é aformação de “conceitos potenciais”, baseados noisolamento de certos atributos comuns. Emambos os processos o emprego da palavra éparte integrante dos processos genéticos e apalavra mantém a sua função orientadora naformação dos conceitos genuínos a que oprocesso conduz.

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6. O desenvolvimento dos conceitoscientíficos na infância

IPara se idealizar métodos eficazes de

instrução das crianças em idade escolar noconhecimento sistemático, é necessáriocompreender o desenvolvimento dosconhecimentos científicos no espírito da criança.Não menos importante do que este aspectoprático do problema é o seu significado teóricopara a ciência psicológica. No entanto, oconhecimento que possuímos do conjunto doassunto é surpreendentemente escasso e vago.

Que acontece no cérebro da criança aosconceitos científicos que lhe ensinam na escola?Qual é a relação entre a assimilação dainformação e o desenvolvimento interno de umconceito científico na consciência das crianças?

A psicologia infantil contemporânea temduas respostas a estas questões. Uma escola depensamento crê que os conceitos científicos nãotêm História interna, isto é, não sofrem qualquerdesenvolvimento, mas são absorvidos de formaacabada por um processo de compreensão eassimilação. A maior parte das teorias e métodosde educação continuam a basear-se nestaconcepção. Trata-se contudo de uma concepçãoque não resiste a um exame, quer do ponto devista teórico, quer do ponto de vista das suasaplicações práticas. Como sabemos, a partir de

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investigações do processo de formação dosconceitos, um conceito é algo mais do que asoma de certas ligações associativas formadaspela memória, é mais do que um simples hábitomental; é um complexo e genuíno ato depensamento, que não pode ser ensinado peloconstante repisar, antes pelo contrário, que sópode ser realizado quando o própriodesenvolvimento mental da criança tiver atingidoo nível necessário. Em qualquer idade, umconceito encarnado numa palavra representaum ato de generalização. Mas o significado daspalavras evolui e, quando a criança aprendeuma nova palavra, o seu desenvolvimento malcomeçou: a princípio a palavra é umageneralização do tipo mais primitivo; à medidaque o intelecto da criança se desenvolve ésubstituída por generalizações de tipo cada vezmais elevado — processo este que acaba porlevar à formação dos verdadeiros conceitos. Odesenvolvimento dos conceitos, dos significadosdas palavras, pressupõe o desenvolvimento demuitas funções intelectuais: atenção deliberada,memória lógica, abstração, capacidade paracomparar e diferenciar. Estes processospsicológicos complexos não podem serdominados apenas através da aprendizageminicial.

A experiência prática mostra também queé impossível e estéril ensinar os conceitos deuma forma direta. Um professor que tentaconseguir isto habitualmente mais não consegueda criança do que um verbalismo oco, umpsitacismo que simula um conhecimento dos

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conceitos correspondentes, mas que narealidade só encobre um vácuo.

Leão Tolstoy, com o seu profundoconhecimento da natureza da palavra e dosignificado, compreende mais claramente que amaior parte dos educadores que é impossíveltransmitir pura e simplesmente um conceito deprofessor para aluno. Ele narra as suastentativas para ensinar linguagem literária àscrianças do campo, começando por “traduzir” oseu vocabulário na linguagem dos contospopulares e traduzindo depois a linguagem doscontos em linguagem literária. Tolstoy descobriuque não se pode ensinar a linguagem literária àscrianças através de explicações artificiais, pormemorização compulsiva e repetição como seensina uma língua estrangeira. Escreve ele:

Temos que admitir que tentamos pordiversas vezes ... fazer isto e que sempre nosdefrontamos com uma insuperável aversão porparte das crianças, fato que mostra queseguíamos um caminho errado. Estasexperiências transmitiram-me a certeza de que éperfeitamente impossível explicar o significadode uma palavra ... Quando tentamos explicarqualquer palavra, a palavra “impressão”, porexemplo, substituímo-la por outra palavraigualmente incompreensível, ou toda uma sériede palavras cuja conexão interna é tãoincompreensível como a própria palavra.

Aquilo de que uma criança necessita, dizTolstoy, é de uma possibilidade de adquirirnovos conceitos e palavras a partir do contextolingüístico geral.

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Quando houve ou lê uma palavradesconhecida, numa frase quanto ao restocompreensível, e depois a lê noutra frase,começa a fazer uma vaga idéia do novo conceito;mais tarde ou mais cedo sentirá ... necessidadede usar a palavra — e uma vez que a use, passaa assenhorear-se da palavra e do conceito. Masestou convencido de que é impossível transmitirdeliberadamente novos conceitos ao aluno ... tãoimpossível e fútil como ensinar uma criança aandar apenas pelas leis do equilíbrio ... (43)(43,p,. 143).

A segunda concepção da evolução dosconceitos científicos não nega a existência de umprocesso de desenvolvimento no cérebro dacriança em idade escolar; defende porém queeste processo não difere essencialmente demaneira nenhuma do desenvolvimento dosconceitos formados pela criança na suaexperiência quotidiana e que não tem qualquerinteresse considerar-se estes dois processos emseparado. Qual é o fundamento deste ponto devista?

A literatura existente neste domíniomostra que ao estudarem a formação dosconceitos na infância, muitos investigadoresusaram os conceitos quotidianos formados pelacriança sem intervenção da educaçãosistemática. Presume-se que as leis baseadasnestes dados se aplicam também aos conceitoscientíficos das crianças, não se considerandonecessário comprovar esta hipótese. Só umpunhado dos mais perspicazes estudiososmodernos do pensamento da criança

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questionam a legitimidade de tal extensão.Piaget traça uma linha de demarcação nítidaentre as idéias da realidade desenvolvidaspredominantemente pelos seus esforços mentaise as leis que são decisivamente influenciadaspelos adultos. Dá ao primeiro grupo de leis adesignação de espontâneas e ao segundo a denão espontâneas e admite que estas últimasexigirão possivelmente uma investigaçãoindependente. A este respeito avança muito maise muito mais profundamente do que todos osoutros estudiosos dos conceitos infantis.

Ao mesmo tempo, há certos erros dopensamento de Piaget que infirmam o valor dassuas concepções. Embora defenda que ao formarum conceito a criança o marca com ascaracterísticas da mentalidade que lhe é própria,Piaget tende a aplicar a sua tese apenas aosconceitos espontâneos e presume que só estespodem esclarecer-nos verdadeiramente sobre asqualidades especiais do pensamento infantil;não consegue ver a interação entre ambos ostipos e as ligações que os unem num sistematotal de conceitos, durante o desenvolvimentointelectual da criança. Estes erros conduzem-noa outro. A teoria de que a socializaçãoprogressiva do pensamento e a essência mesmado desenvolvimento mental da criança constituium dos alicerces fundamentais da teoria dePiaget. Mas, se as suas concepções sobre osconceitos não espontâneos fossem corretas,seguir-se-ia delas que um fator tão importantepara a socialização do pensamento como aaprendizagem escolar não tem qualquer relação

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com o processo de desenvolvimento interno. Estaincoerência é o ponto fraco da teoria de Piaget,tanto do ponto de vista teórico como prático.

Teoricamente, Piaget vê a socialização dopensamento como uma abolição mecânica dascaracterísticas do pensamento próprio dacriança, como o seu gradual apagamento. .Tudoo que é novo no desenvolvimento provém doexterior, substituindo os modos de pensamentopróprios da criança. Durante toda a infância háum conflito incessante entre duas formas depensamento mutuamente antagonistas, comuma série de compromissos em cada nível dedesenvolvimento sucessivo, até que opensamento adulto acaba por dominar. Anatureza própria da criança não desempenhanenhum papel construtivo no seudesenvolvimento intelectual. Quando Piaget dizque nada é mais importante para o ensino eficazdo que um conhecimento exaustivo dopensamento espontâneo da criança (33) move-oaparentemente a idéia de que, tal como é precisoconhecer um inimigo para poder vence-lo nocombate, assim é preciso conhecer opensamento da criança.

Contraporemos a estas premissaserrôneas a premissa de que os conceitos nãoespontâneos têm que possuir todos os traçospeculiares ao pensamento da criança em cadanível de desenvolvimento porque estes conceitosnão são adquiridos por simples rotina, antesevoluem por recurso a uma estrênua atividademental por parte da criança. Estamos em crerque estes dois processos — o desenvolvimento

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dos conceitos espontâneos e dos conceitos nãoespontâneos — se encontram relacionados einfluenciam-se um ao outro permanentemente.Fazem parte de um único processo: odesenvolvimento da gênese do conceito, que éafetado por condições externas e internasvariáveis mas é essencialmente um processounitário e não um conflito de formas deintelecção antagônicas e mutuamenteexclusivas. A instrução é uma das principaisfontes dos conceitos da criança em idade escolare é também uma poderosa força de orientaçãoda sua evolução, determinando o destino de todoo seu desenvolvimento mental. Se assim é, osresultados do estudo psicológico dos conceitosinfantis podem aplicar-se aos problemas doensino duma maneira muito diferente daquelaque Piaget pensava.

Antes de analisarmospormenorizadamente estas premissas,pretendemos avançar as razões que nosassistem para diferenciarmos os conceitosespontâneos e os não espontâneos —particularmente os científicos — e submetermosos últimos a um estudo especial.

Em primeiro lugar, sabemos da simplesobservação que os conceitos se formam edesenvolvem em condições internas ou externastotalmente diferentes, consoante têm origem noque a criança aprende na sala de aulas ou nasua experiência pessoal. Nem sequer os motivosque movem a criança a formar os dois tipos deconceitos são os mesmos: o espírito defronta-secom problemas muito diversos quando assimila

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conceitos na escola e, quando é entregue aosseus próprios recursos. Quando transmitimosum conhecimento sistemático à criança,ensinamos-lhe muitas coisas que esta não podever ou experimentar diretamente. Como osconceitos científicos e os conceitos espontâneosdiferem pela relação que estabelecem com aexperiência da criança e pela atitude da criançarelativamente aos seus objetos, será de esperarque sigam caminhos de desenvolvimento muitodiferentes desde a sua gestação até a sua formafinal.

O destacar-se os conceitos científicoscomo objeto de estudo tem também um valorheurístico. No momento atual, a psicologia sódispõe de dois métodos para estudar a gênesedos conceitos. Num, tratamos dos conceitosreais das crianças, mas empregamos métodos —tais como a definição verbal — que nãopenetram para lá da superfície; o outro permite-nos uma análise psicológica incomparavelmentemais profunda mas apenas recorrendo ao estudode conceitos experimentais artificialmenteconcebidos. Estamos perante um urgenteproblema metodológico que consiste emencontrar meios de estudar os conceitos reaisem profundidade — em encontrar um métodoque possa utilizar os resultados obtidos pelosdois métodos que até aqui utilizamos. Parece-nos que a abordagem mais prometedora para oproblema será o estudo dos conceitos científicos,que são conceitos reais, mas que, no entanto, seformam debaixo dos nossos olhos, quase àmaneira dos conceitos artificiais.

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Por fim, o estudo dos conceitos científicosenquanto tais, tem importantes implicações paraa educação e a instrução. Embora os conceitosnão sejam absorvidos já completamenteformados, a instrução e a aprendizagemdesempenham um papel predominante na suaaquisição. Descobrir a relação complexa entre ainstrução e o desenvolvimento dos conceitoscientíficos é uma importante tarefa prática.

Tais foram as considerações que nosserviram de orientação para a tarefa dedistinguir os conceitos científicos dos conceitosdo dia a dia e submetê-los a um estudocomparativo. Para exemplificarmos o tipo dequestões a que tentamos dar resposta, tomemoso conceito “irmão” — um conceito quotidianotípico utilizado habilmente por Piaget paradeterminar toda uma série de peculiaridades dopensamento infantil — e comparemo-lo com oconceito “exploração” com que a criançacontacta nas suas aulas de ciências sociais. Seráo seu desenvolvimento igual, ou diferente? Seráque a palavra “exploração” se limitará a repetir aevolução do desenvolvimento de “irmão” ou serápsicologicamente um conceito de tipo diferente?Apresentamos a hipótese de que os doisconceitos devem diferir, tanto no seudesenvolvimento, como no seu funcionamento, eque estas duas variantes do processo de gênesedo conceito se devem influenciar mutuamentena sua evolução.

IIPara estudar a relação entre o

desenvolvimento dos conceitos científicos e dos

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conceitos quotidianos, precisamos de uma bitolade comparação. Para construirmos umdispositivo de medição temos que conhecer ascaracterísticas típicas dos conceitos quotidianosna idade escolar e a direção do seudesenvolvimento durante esse período.

Piaget demonstrou que os conceitos dascrianças em idade escolar são marcadospredominantemente pelo fato de aquelas nãoterem uma percepção consciente das relações,embora as manipulem corretamente duma formairrefletida e espontânea. Piaget perguntou acrianças de idades compreendidas entre os setee os oito anos de idade o significado da palavra“porque” na frase: “Amanhã não vou à escola,porque estou doente”. A maior parte dascrianças respondeu: “Quer dizer que o meninoestá doente”; outras responderam: “Quer dizerque o menino não vai a escola”. Uma criança éincapaz de compreender que as perguntas nãose referem aos fatos distintos da doença e daausência à escola mas à sua relação interna. Noentanto as crianças aprendem com certeza osignificado da frase, pois utilizamespontaneamente a palavra “porque” de umaforma correta, embora não a saibam empregardeliberadamente. Assim, não são capazes determinar corretamente a frase seguinte: “Ohomem caiu da bicicleta porque... ”.Freqüentemente substituirão a causa por umaconseqüência (“porque partiu o braço”). Opensamento da criança não é deliberado, nemtem consciência de si próprio; por que razãoentão a criança acaba por conseguir tomar

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consciência dos seus próprios pensamentos edominá-los? Para explicar o processo, Piagetinvoca duas leis psicológicas.

Uma dessas leis é a lei da conscientização,formulada por Claparède, que provou através deexperiências muito interessantes que apercepção da diferença precede a percepção dasemelhança. É com a maior das naturalidadesque a criança responde a objetos semelhantes enão tem necessidade de tomar consciência doseu modo de resposta, ao passo que adissemelhança cria um estado de desadaptaçãoque conduz à tomada de consciência. A lei deClaparède afirma que quanto mais suavementeutilizamos uma relação em ação, menosconsciência teremos dessa relação, a consciênciaque tomamos do que estamos fazendo varia naproporção direta das dificuldades que sentimospara nos adaptarmos a uma situação.

Piaget utiliza a lei de Claparède paraexplicar o desenvolvimento do pensamento quese dá entre os sete e os doze anos. Durante esteperíodo, as operações mentais da criança entramrepetidamente em conflito com o pensamento Acriança sofre sucessivas derrotas e fracassos,devido às deficiências da sua lógica e estaspenosas experiências geram a necessidade detomada de consciência dos seus conceitos.

Compreendendo que a necessidade não éexplicação bastante para nenhumatransformação ocorrida no desenvolvimento dopensamento, Piaget complementa a lei deClaparède com a lei da derivação ou dodeslocamento. A tomada de consciência de uma

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operação mental significa uma transferênciadessa operação do plano da ação para o planoda linguagem, isto é, implica que se recrie essamesma operação na imaginação, para que elapossa exprimir-se por palavras. Estatransformação não é, nem rápida, nem suave. Alei afirma que o domínio de uma operação noplano superior do pensamento verbal apresentaas mesmas dificuldades que o domínio dessamesma operação no plano da ação. Isto explica alentidão do processo.

Estas interpretações não nos parecemadequadas. As descobertas de Claparède podemter uma explicação diferente. Os estudosexperimentais que nós próprios levamos a cabosugerem-nos que a criança toma consciência dasdiferenças mais cedo do que as semelhanças nãopor nenhuma deficiência resultante de umqualquer mau funcionamento, mas porque aconsciência da semelhança exige uma estruturade generalização e de conceptualização maisdesenvolvida do que a consciência dasdiferenças. Ao analisarmos o desenvolvimentodos conceitos de diferença e de semelhança,descobrimos que a consciência da semelhançapressupõe a formação de uma generalização, oude um conceito, que abarque os objetossemelhantes, ao passo que a consciência dadiferença não exige tal generalização — podesurgir por outras vias. O fato de a ordem deseqüências genética destes dois conceitosinverter a seqüência da anterior manipulaçãocomportamental da semelhança e da diferençanão é caso único. Por exemplo, as nossas

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experiências determinaram que as criançasrespondem às ações representadas graficamenteantes de conseguirem responder à representaçãode um objeto, mas que tomam plena consciênciado objeto antes da ação (v).

A lei da transferência constitui umexemplo da teoria genética tão espalhadasegundo a qual certos acontecimentos oumodelos observados durante os primeirosestádios de um processo de desenvolvimento serepetirão nos estádios mais avançados. Ostraços que efetivamente se repetem cegammuitas vezes os observadores para assignificativas diferenças causadas pelo fato de osúltimos processos se desenrolarem num estádiode desenvolvimento superior. Podemosdispensar-nos de discutir o princípio genéticoenquanto tal, pois que apenas nos interessa asua validade explicativa no tocante aodesenvolvimento da consciência. A lei datransferência, como a lei da consciência, podequando muito responder à questão da razão pelaqual a criança em idade escolar não temconsciência dos seus conceitos; não consegueexplicar como se atinge a consciência. Paraexplicarmos esse acontecimento decisivo nodesenvolvimento fundamental da criança há queprocurar outra hipótese.

Segundo Piaget, na criança em idadeescolar, a ausência de consciência é um resíduodo seu egocentrismo, que está em vias dedesaparecimento, mas que continua a exercerinfluência na esfera do pensamento verbal quese está começando precisamente a formar nesse

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momento. A consciência é atingida quando opensamento socializado maduro expulsa do níveldo pensamento verbal o egocentrismo residual,ocupando o seu lugar.

Tal explicação da natureza dos conceitosda criança em idade escolar, baseadaessencialmente na incapacidade geral dascrianças para tomarem consciência dos seusatos, não resiste à prova dos fatos. Váriosestudos mostraram que é precisamente duranteos primeiros tempos da idade escolar que asfunções intelectuais superiores, cujascaracterísticas principais são a consciênciarefletida e o controle deliberado, começam aocupar o primeiro plano no processo dedesenvolvimento. A atenção, que anteriormenteera involuntária, toma-se voluntária e dependecada vez mais do pensamento da própriacriança: a memória mecânica transforma-se emmemória lógica orientada pelo significado,podendo começar a ser utilizadadeliberadamente pela criança. Poder-se-ia quasedizer que tanto a atenção como a memória setornam “lógicas” e voluntárias na medida em queo controle de uma função é a contrapartida daconsciência que cada qual dele tem. Nãoobstante, não se pode negar o fato demonstradopor Piaget: a criança em idade escolar, emboravá ganhando em deliberação e domínio das suasfunções, não tem consciência das suasoperações conceptuais, Todas as funçõesmentais de base se tornam deliberadas econscientes, durante a idade escolar, exceto opróprio intelecto.

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Para resolvermos este aparente paradoxo,temos que voltar-nos para as leis fundamentaisque regem o desenvolvimento psicológico. Umadessas leis afirma que a consciência e o controlesó aparecem num estádio relativamente tardiode desenvolvimento de uma função, depois deesta ter sido utilizada e praticada inconsciente eespontaneamente. Para submetermos umafunção ao controle da inteligência e da vontade,temos que a dominar primeiro.

O estádio das funções indiferenciadas nainfância é seguido pela diferenciação dapercepção nos primeiros tempos da infância e odesenvolvimento da memória na criança emidade pré-escolar, para apenas mencionarmos osaspectos mais salientes do desenvolvimentomental ocorridos em cada idade. A atenção, queé uma função correlativa da estruturação do queé apercebido e recordado, participa destedesenvolvimento. Consequentemente, a criançaque se encontra prestes a entrar para a escolapossui as funções que terá que aprender para assubmeter a um controle consciente numa formajá relativamente madura. Mas, nessa idade, osconteúdos dos conceitos — ou melhor, dos pré-conceitos como se devem chamar nessa idade —estão apenas começando a perder o seu caráterde complexos e teria que haver um autênticomilagre para que a criança fosse capaz de tomarconsciência deles e de os dominar durante esseperíodo. Para que isso fosse possível. aconsciência não teria que limitar-se a tomarposse das suas funções isoladas teria que ascriar.

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Antes de continuarmos, queremosclarificar a palavra consciência no sentido emque a usamos, quando falamos de funções nãoconscientes que se “tornam conscientes”(empregamos a expressão não consciente paradistinguirmos o que não é ainda consciente do“inconsciente” freudiano, resultante darepressão, que é um desenvolvimento posterior,que é efeito de uma diferenciação da consciênciarelativamente desenvolvida). A atividade daconsciência pode seguir diferentes vias; podeincidir sobre alguns aspectos apenas de umpensamento ou de um ato. Acabei, por exemplode dar um nó — fi-lo conscientemente, noentanto não consigo explicar como o fiz, pois aminha consciência se encontrava centrada maissobre o nó do que sobre os meus própriosmovimentos, e como da minha ação,. Quandoesta última se torna objeto da minhaconsciência, terei acedido à plena consciência.Utilizamos a palavra consciência para designar apercepção da atividade do cérebro — aconsciência de ter consciência. Uma criança emidade pré-escolar que, em resposta à pergunta:“eu sei o teu nome?”, responde dizendo o nome,não possui esta consciência auto-reflexiva; sabeo seu nome mas não tem consciência de que osabe.

Os estudos de Piaget mostraram que aintrospeção só começa a desenvolver-se durantea idade escolar. Este processo tem bastantescoisas em comum com o desenvolvimento dapercepção e da observação externas durante atransição entre a primeira e a segunda infâncias,

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quando a criança passa da primeira expressãosem palavras, para a percepção dos objetosorientada pelas palavras e por estas expressa —percepção em termos de significado. De formasemelhante, a criança em idade escolar passa daintrospeção não formulada para a introspeçãoverbalizada; percebe os seus próprios processospsíquicos como processos significantes. Mas apercepção em termos de significado implicasempre um certo grau de generalização.Consequentemente, a transição para a auto-observação verbalizada denota um processoembrionário de generalização das formasinteriores de atividade. O desvio para um novotipo de percepção interior significa também umdeslocamento para um tipo superior de atividadeinterior, pois que cada nova maneira de ver ascoisas abre a porta para novas possibilidades deas manipular. Os movimentos do jogador dexadrez são determinados pelo que vê notabuleiro; quando a sua percepção do jogo sealtera, a sua estratégia alterar-se-á também.Quando apercebemos algum dos nossos atos deuma forma generalizada, isolamo-los da nossaatividade mental total, podendo assim centrar aatenção neste processo enquanto tal eestabelecer uma nova relação com ele. Destamaneira, o fato de nos tornarmos conscientesdas nossas operações e de vermos cada umadelas como um processo de determinado tipo —tal como uma recordação ou a imaginação —conduz-nos a dominar esse processo.

A instrução escolar induz o tipo depercepção generalizante, desempenhando assim

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um papel decisivo na conscientização doprocesso mental por parte da criança. Osconceitos científicos, com o seu sistemahierárquico de inter-relações, parecem ser omeio em que primeiro se desenvolvem aconsciência e o domínio do objeto, sendo maistarde transmitidos para outros conceitos eoutras áreas do pensamento. A consciênciareflexiva chega à criança através dos portais dosconceitos científicos.

A caracterização que Piaget nos dá dosconceitos espontâneos da criança como nãoconscientes e não sistemáticos tendem aconfirmar a nossa tese. A inferência de queespontâneo é sinônimo de inconscientetransparece com toda a evidência em todos osseus escritos e é fácil de ver qual a base disso.Ao operar com os conceitos espontâneos, acriança não tem qualquer consciência dessesmesmos conceitos, pois a sua atenção seencontra sempre centrada no objeto a que oconceito se refere e nunca no próprio ato depensamento. A concepção de Piaget, segundo aqual, para a criança, os conceitos têm umaexistência desligada de todo e qualquer contexto,é também clara. Segundo este autor, sequisermos descobrir e explorar as idéiasespontâneas da própria criança ocultas pordetrás dos conceitos não espontâneos queprofere, teremos que começar por libertá-las detodo e qualquer vínculo a um sistema. Estaabordagem teve como resultado o tipo derespostas que exprimem a atitude nãomediatizada da criança relativamente aos

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objetos e que impregnam todos os livros dePiaget.

A nós parece-nos óbvio que um conceitosó pode cair sob a alçada da consciência e docontrole deliberado quando faz parte de umsistema. Se a consciência significa generalização,a generalização significa, por seu turno, aformação de um conceito de grau superior queinclui o conceito dado como seu caso particular.Um conceito de grau superior implica aexistência de uma série de conceitossubordinados e pressupõe também umahierarquia de conceitos com diversos níveis degeneralidade. O exemplo que se segue podeexemplificar a função desempenhada por estesdiversos graus de generalidade na emergência deum sistema: uma criança aprende a palavra flore pouco depois a palavra rosa; durante um longoperíodo de tempo não se pode dizer que oconceito “flor”, embora de aplicação mais lata doque a palavra “rosa”, seja para a criança maisgeral. Não inclui nem subordina a si a palavra“rosa” — os dois conceitos são inter-permutáveise justapostos. Quando “flor” se generaliza, arelação entre “flor” e “rosa”, assim como entreflor e outros conceitos subordinados, também setransforma no cérebro da criança. Um sistemavai ganhando forma.

Nos conceitos científicos que a criançaadquire na escola, a relação entre esse conceitose cada objeto é logo de início mediada por outroconceito. Assim, a própria noção de conceitocientífico implica uma certa posiçãorelativamente aos outros conceitos, isto é, um

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lugar num sistema de conceitos. Defendemosque os rudimentos da sistematização começampor entrar no espírito da criança através docontato que esta estabelece com os conceitoscientíficos, sendo depois transferidos para osconceitos quotidianos, alterando toda a suaestrutura psicológica de cima até baixo.

IIIA inter-relação entre os conceitos

científicos e os conceitos espontâneos é um casoespecial de um assunto muito mais vasto: arelação entre a instrução escolar e odesenvolvimento mental da criança. Têm sidoavançadas muitas teorias relativas a esta relaçãoe tal problema é ainda hoje uma das principaispreocupações da Psicologia soviética.Passaremos em revista as três tentativas pararesolver a questão, de forma a situarmos o nossoestudo no contexto mais geral.

A primeira teoria, que ainda hoje é adefendida por maior número de pessoas,considera que a instrução e o desenvolvimentosão mutuamente interdependentes, encarando odesenvolvimento como um processo dematuração sujeito a certas leis naturais, e ainstrução como a utilização das oportunidadescriadas pelo desenvolvimento. Um dos aspectosmais típicos desta escola de pensamentoconsiste nas tentativas que levou a cabo paraseparar cuidadosamente os produtos dodesenvolvimento dos da instrução, pressupondoque assim poderia isolá-los na sua forma pura.Nenhum investigador o conseguiu até hoje.Geralmente atribuem-se as culpas destes

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fracassos à inadequação dos métodos,compensando-se os mesmos fracassos com umredobrar das análises especulativas. Estesesforços para dividir o equipamento intelectualdas crianças em duas categorias podem ir a parcom a noção de que o desenvolvimento podeseguir o seu curso normal e atingir um nívelelevado sem o concurso da instrução — e queaté as crianças que nunca foram à escola podemdesenvolver as formas de pensamento maiselevadas acessíveis aos seres humanos. Noentanto, o mais freqüente é modificar-se estateoria de forma a entrar em linha de conta comuma relação que obviamente existe entre odesenvolvimento e a instrução: o primeiro cria aspersonalidades: a segunda, realiza-as. Encara-sea instrução como uma espécie de superestruturaerigida por sobre a maturação; ou paramudarmos de metáfora, estabelece entre odesenvolvimento e a instrução uma relaçãosemelhante à que existe entre o consumo e aprodução. Temos assim uma relação unilateral:a aprendizagem depende do desenvolvimento,mas o curso do desenvolvimento não é afetadopela aprendizagem que se aprende.

Esta teoria repousa sobre a observaçãomuito simples, segundo a qual qualquerinstrução exige um certo grau de maturidade dealgumas funções: não se pode da maneiranenhuma ensinar uma criança de um ano a lerou uma criança de três anos a escrever. Comisto reduz-se a análise da aprendizagem adeterminar o nível de desenvolvimento quevárias funções terão que atingir para que a

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instrução se torne possível. Quando a partir domomento em que a memória da criançaprogrediu o suficiente para lhe permitirmemorizar o alfabeto, a partir do momento emque a sua atenção pode fixar-se numa tarefaaborrecida, a partir do momento em que o seuespírito atingiu uma maturidade suficiente, aponto de poder apreender a conexão existenteentre o signo e o som — então, pode começar-sea ensinar a criança a escrever. Segundo estavariante da teoria a instrução arrasta-se areboque do desenvolvimento. O desenvolvimentotem que cumprir determinados ciclos antes dainstrução poder começar.

A verdade desta última afirmação éevidente; existe de fato um nível mínimo que éindispensável. No entanto, esta concepçãounilateral tem como resultado uma série deconcepções erradas. Suponhamos que amemória, a atenção e o pensamento da criançase desenvolveram a ponto de esta poder começara aprender a escrita e a aritmética; será que oestudo da escrita e da aritmética provocaráalguma transformação, algum efeito, sobre suamemória, a sua atenção ou o seu pensamento? Aresposta da psicologia tradicional é a seguinte:sim, na medida em que a criança exercita estasfunções; mas o processo de desenvolvimentoenquanto tal não se altera; nada de novo sepassa no desenvolvimento mental da criança;aprendeu a ler — nada mais. Esta concepção,característica da velha teoria pedagógicatambém impregna ligeiramente os escritos dePiaget, que acredita que o pensamento da

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criança atravessa certas fases e estádios,independentemente da instrução que tenha,recebido; a instrução continua a ser um fatorestranho. A bitola por que se deve medir o graude desenvolvimento da criança não é o queaprendeu pela instrução mas a maneira comopensa sobre assuntos acerca dos quais nuncarecebeu nenhum ensinamento. Aqui a separação— ou melhor, a oposição -- entre a instrução e odesenvolvimento é levada até ao extremo.

A segunda teoria relativa aodesenvolvimento e à instrução identifica os doisprocessos e foi W. James quem primeiro a expôs.Baseia ambos os processos na associação e naformação de hábitos, tornando assim a instruçãosinônimo do desenvolvimento. Esta concepçãoressurge um pouco no presente momento, sendoThorndike o seu principal promotor. Areflexologia, que traduziu o associacionismopara a linguagem da psicologia, vê odesenvolvimento intelectual da criança comouma acumulação gradual de reflexoscondicionados; a aprendizagem é vistaprecisamente da mesma forma. Como ainstrução e o desenvolvimento são idênticos nãose levanta sequer a questão da relação existenteentre ambos.

A terceira escola de pensamento,representada pela teoria gestaltista, tentareconciliar as duas anteriores teorias embora,evitando as suas fraquezas. Embora esteecletismo tenha como resultado uma abordagemalgo inconsistente, consegue com isto uma certasíntese entre os dois pontos de vista opostos.

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Koffka afirma que todo o desenvolvimento temdois aspectos, a maturação e a aprendizagem.Embora isto signifique que se aceitam, numaforma menos extrema, ambos os pontos de vista,a nova teoria representa um avanço sobre asduas outras, sob três pontos de vista.

Em primeiro lugar, Koffka admite umacerta interdependência entre os dois aspectos dodesenvolvimento. Com base numa certaquantidade de fatos, demonstra que amaturação de um órgão depende do seufuncionamento, que se melhora através daaprendizagem e da prática. A maturação, porseu turno, proporciona novas oportunidadespara a aprendizagem. Mas Koffka limita-se apostular uma influenciação mútua sem aexaminar pormenorizadamente. Em segundolugar, esta teoria introduz uma nova concepçãodo próprio processo educacional como formaçãode novas estruturas e aperfeiçoamento dasantigas. Dessa forma, concede-se à instruçãoum papel estrutural significativo. Acaracterística fundamental de todas asestruturas é a sua independência relativamenteà sua substância original — pode ser transferidapara outros meios. Uma vez que a criança tenhaformado determinada estrutura, ou aprendidodeterminada operação, será capaz de a aplicar aoutros meios. Demos-lhe um tostão de instruçãoe ela ganhou um milhão. O terceiro ponto emque esta teoria se mede vantajosamente com asanteriores é a sua concepção da relaçãotemporal entre a instrução e o desenvolvimento.Como a instrução já transmitida em

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determinada área pode transformar ereorganizar as outras áreas do pensamento dacriança, pode não se limitar a seguir amaturação ou acompanhar o seu passo, podetambém precedê-la e acelerar o seu progresso. Oadmitir-se que seqüências temporais diferentessão igualmente possíveis e importantes é umacontribuição da teoria eclética que não devemossubestimar.

Esta teoria coloca-nos perante uma velhaquestão que reaparece sob um aspecto diferente:a quase esquecida teoria da disciplina formal,habitualmente associada com Herbart. Estateoria defendia que a aprendizagem de certasmatérias desenvolve as faculdades mentais emgeral, para além de transmitir o conhecimentodo assunto estudado e as qualificaçõesespecíficas desse assunto. Na prática, esta teorialevou às formas mais reacionárias de pedagogia,como os “liceus clássicos” alemães e russos, quedavam especial e desmesurado realce ao Latim eao Grego como fontes de “disciplina formal”. Osistema acabou por ser abandonado porque nãosatisfazia os objetivos práticos da educaçãoburguesa moderna. Dentro da psicologiapropriamente dita, Thorndike levou a cabo umasérie de investigações, esforçando-se pordesacreditar a disciplina formal e por provar quea instrução não exercia nenhum efeito apreciávelsobre o desenvolvimento. A sua crítica éconvincente quando se aplica aos ridículosexageros da doutrina da disciplina formal, masnão afeta o seu núcleo válido.

No seu afã para demonstrar o caráter

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errôneo da concepção de Herbart, Thorndikeexecutou experiências com as funções maisespecializadas, mais limitadas e maiselementares. Do ponto de vista de uma teoriaque reduz todo o conhecimento à formação deconexões associativas, a escolha da atividadepouca importância teria. Em algumasexperiências treinou as pessoas sujeitas àobservação a estabelecerem a diferença entre ocomprimento relativo de linhas, tentandodeterminar depois se a prática adquirida tinhamelhorado a sua capacidade para distinguiremas dimensões de diferentes ângulos. Como énatural, verificou que tal não tinha acontecido. Ainfluência da instrução sobre o desenvolvimentotinha sido postulada pela teoria da disciplinaformal, mas apenas relativamente a matériascomo a matemática ou o ensino das línguas, quemobilizam vastos complexos de funçõespsíquicas. A capacidade para avaliar ocomprimento de algumas linhas pode não afetara capacidade para distinguir entre ângulosdiferentes, mas tal não quer dizer que o estudoda língua materna — com o conseqüenteaperfeiçoamento dos conceitos — deixe de terqualquer efeito sobre o estudo da aritmética. Aobra de Thorndike apenas faz surgir comopossível a existência de dois tipos de instrução: oadestramento numa qualquer qualificaçãoespecializada, como por exemplo, a datilografia,que mobiliza a formação de hábitos e exige umacerta prática, que é a instrução mais freqüentenas escolas profissionais para adultos, e o tipode instrução dada às crianças, que ativa vastasáreas da consciência. A idéia da disciplina

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formal pode ter pouco a ver com o primeiro tipode instrução, mas pode verificar-se válida para osegundo tipo. Salta à evidência que no processosuperior que surge no decurso dodesenvolvimento cultural da criança, a disciplinaformal deve desempenhar um papel que nãodesempenha nos processos mais elementares:todas as funções mais elevadas têm em comuma consciência, o controle e a abstração. Emconsonância com as concepções teóricas deThorndike, as diferenças qualitativas entre asfunções mais elevadas e as funções maiselementares são ignoradas nos seus estudossobre a transferência da instrução.

Para formularmos a nossa proposta deteoria sobre a relação entre a instrução e odesenvolvimento, partimos de quatro séries deinvestigações, (2) que tinham por propósitocomum pôr a nu estas inter-relações complexasem certas áreas de instrução escolar: escrita eleitura, gramática, aritmética, ciências naturaise ciências sociais. Os inquéritos específicos quelevamos a cabo incidiam sobre tópicos como odomínio do sistema decimal em função dodesenvolvimento do conceito de número; aconsciência da criança relativamente àsoperações que executa ao resolver problemasmatemáticos; os processos de interpretação eresolução dos problemas, utilizados pelosdetentores do primeiro grau de ensino. Veio alume muito material interessante sobre odesenvolvimento da linguagem escrita e faladadurante a idade escolar, sobre os níveis decompreensão do significado figurado, daquele

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desenvolvimento decorrentes, sobre a influênciado domínio das estruturas gramaticais naevolução do desenvolvimento mental, sobre acompreensão das relações no estudo dasciências sociais e naturais. As investigaçõescentravam-se sobre a nível de maturidadeatingido pelas funções psíquicas no começo daescolaridade e a influência da escolaridade sobreo seu desenvolvimento; sobre a seqüênciatemporal da instrução e do desenvolvimento;sobre as funções das várias matérias de ensinono âmbito da disciplina formal.

1.Na nossa primeira série de estudos,examinamos o nível de desenvolvimento dasfunções psíquicas necessárias para aaprendizagem das matérias escolares básicas —leitura e escrita, aritmética, ciências naturais.Descobrimos que não se poderia considerar queestas funções se encontrassem maduras noprincípio da instrução, mesmo para o caso dascrianças que se mostraram capazes de dominaro currículo muito rapidamente, e com muitobons resultados. A linguagem escrita é um bomexemplo. Por que razão a escrita é tão difícil paraos jovens estudantes que em certos períodos háum desfasamento de seis ou oito anos entre assuas “idades lingüísticas” escrita e falada?Habitualmente, explicava-se isto pela novidadeda escrita: como nova função, esta tem querepetir os estádios de desenvolvimento da fala;por conseguinte, a escrita de uma criança comoito anos de idade deve assemelhar-se à fala deum bebê de dois anos. Este último utiliza poucaspalavras e uma sintaxe muito simples, porque o

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seu vocabulário é reduzido e não possuiqualquer conhecimento das estruturas dasfrases mais complexas; mas a criança em idadeescolar possui as formas gramaticais e lexicaisnecessárias à escrita, visto que são iguais às quese utilizam na linguagem falada. As dificuldadesde dominar a mecânica da escrita não podemtambém explicar o tremendo abismo existenteentre a linguagem oral e a linguagem escrita dacriança em idade escolar. A nossa investigaçãomostrou que o desenvolvimento da escrita nãorepete a história do desenvolvimento da fala. Alinguagem escrita é uma função lingüísticadistinta, que difere da linguagem oral tanto pelasua estrutura como pela sua função. Até os seusestádios mais elementares de desenvolvimentoexigem um alto nível de abstração. É umalinguagem feita apenas de pensamento eimagem, faltando-lhe as qualidades musicais,expressivas e de entoação características dalinguagem oral. Ao aprender a escrever, acriança tem que se libertar do aspecto sensorialda linguagem e substituir as palavras porimagens de palavras. Uma linguagem que épuramente imaginativa e que exige asimbolização da imagem sonora por meio dossignos escritos (isto é, um segundo grau desimbolização) terá que ser mais difícil para acriança do que a linguagem oral, tal como aálgebra é mais difícil do que a aritmética. Osnossos estudos mostram que é a qualidadeabstrata da linguagem escrita que constitui oobstáculo mais importante e não osubdesenvolvimento dos pequenos músculos ouquaisquer outros obstáculos mecânicos.

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A escrita é também um discurso seminterlocutor, dirigido a uma pessoa ausente ouimaginária ou a ninguém em particular —situação esta que, para a criança, é nova eestranha. Os nossos estudos mostram que, noinício do ensino, as motivações da criança paraaprender a escrever são muito fracas. A criançanão sente qualquer necessidade disso e só temuma vaga idéia da sua utilidade. Naconversação, todas as frases são impelidas porum motivo: o desejo ou a necessidade conduzemos pedidos, as perguntas arrastam consigo asrespostas, o espanto leva à explicação. Osmóbeis mutáveis variáveis dos interlocutoresdeterminam em cada momento a elocução, ocurso da linguagem oral. Esta não precisa de serconscientemente orientada — a situaçãodinâmica encarrega-se disso. Os motivos paraescrever são mais abstratos, maisintelectualizados, encontram-se mais afastadosdas necessidades imediatas. No discurso escrito,somos obrigados a recriar a situação, arepresentá-la para conosco. Isto exige um certodistanciamento face à situação real.

A ação de escrever exige também da parteda criança uma ação de análise deliberada.Quando fala, a criança tem uma consciênciamuito imperfeita dos sons que pronuncia e nãotem qualquer consciência das operações mentaisque executa. Quando escreve, tem que tomarconsciência da estrutura sonora de cadapalavra, tem que dissecá-la e reproduzi-la emsímbolos alfabéticos que têm que sermemorizados e estudados de antemão. Da

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mesma forma deliberada, tem que dar àspalavras uma certa seqüência para formar umafrase. A linguagem escrita exige um trabalhoconsciente, porque a relação que mantém com odiscurso interior é diferente da linguagem falada:esta última precede o curso de desenvolvimento,ao passo que a linguagem escrita aparece depoisdo discurso interior e pressupõe a sua existência(o ato de escrever implica uma tradução a partirdo discurso interior). Mas a gramática dopensamento não é igual em ambos os casos.Poderíamos até dizer que a sintaxe do discursointerior é o exato contrário da sintaxe da palavraescrita, constituindo a linguagem falada umcaso intermédio.

O discurso interior é uma linguagemcompletamente desabrochada em toda a suadimensão, é uma linguagem mais completa doque a falada. O discurso interior é quasecompletamente predicativo porque a situação, oassunto pensado, é sempre conhecido de quempensa. A linguagem escrita, pelo contrário temque explicar completamente a situação para serinteligível. A transformação do discurso interior,condensado ao máximo, em linguagem escrita,pormenorizada ao máximo, exige o quepoderíamos designar por semântica deliberada— estruturação deliberada do fluir dosignificado.

Todos estes traços da linguagem escritaexplicam por que razão o seu desenvolvimentona criança em idade escolar segue muitoatrasado em relação ao da linguagem oral. Adiscrepância é causada pela proficiência da

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criança nas atividades espontâneas,inconscientes e na sua falta de qualidades paraa atividade abstrata, deliberada. Como os nossosestudos mostraram, as funções psicológicassobre que se baseia a linguagem escrita aindanão se começaram a desenvolver quando oensino da escrita se inicia e este tem que seerguer sobre os alicerces de processosrudimentares que mal estão começando a surgirpor essa altura.

Resultados semelhantes se obtêm nosdomínios da aritmética, da gramática e dasciências naturais. Em todos estes casos, asfunções necessárias para a aprendizagem nuncase encontram maduras quando o ensino começa.Analisaremos brevemente o caso da gramática,que apresenta algumas características especiais.

A gramática é uma matéria que parece nãoter grande utilidade prática. Ao contrário deoutras matérias escolares, não dá à criançaqualificações que não possuísse já. A criança jáconjuga e declina quando entra para a escola eaté houve quem afirmasse que o ensino dagramática podia ser dispensado. A isto sópodemos retorquir que a nossa análise mostroucom toda a clareza que o estudo da gramática éde primeiríssima importância para odesenvolvimento mental da criança

É certo que, muito antes de entrar naescola, a criança possui já um certo domínio dagramática da sua língua materna, mas trata-sede um domínio inconsciente adquirido dumaforma puramente estrutural, tal como se adquirea composição fonética das palavras. Se pedirmos

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a uma criança de tenra idade que produza umacombinação de sons, por exemplo, sc, veremosque lhe é muito difícil articulá-lasdeliberadamente; no entanto, no seio de umaestrutura, como na palavra Moscovo, a criançapronunciará os mesmos sons facilmente. Omesmo se passa com a gramática. A criançautilizará o caso ou o tempo do verbocorretamente numa frase, mas não será capazde declinar ou conjugar uma palavra a nossopedido. Pode não adquirir novas formasgramaticais ou sintáticas na escola, mas, graçasao ensino da gramática e da escrita, podeganhar consciência do que faz para utilizarconscientemente as suas qualificações. Talcomo, ao aprender a escrever a palavra Moscovoaprende que esta palavra é composta pelos sonsm-o-s-c-o-v-o e aprende a pronunciar cada umdesses sons separadamente, também aprende aconstruir frases, a fazer conscientemente o quefazia inconscientemente ao falar. A gramática e aescrita ajudam a criança a elevar-se a um nívelmais elevado de desenvolvimento lingüístico.

Assim. a nossa investigação mostra que odesenvolvimento dos alicerces psicológicosnecessários para o ensino das matérias de basenão precede esse ensino, mas desabrocha numacontínua interação com os contributos doensino.

2. A nossa segunda série de investigaçõescentrou-se sobre as relações temporais entre osprocessos de ensino e o desenvolvimento dasfunções psicológicas que lhes correspondem.Descobrimos que o ensino geralmente precede o

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desenvolvimento. A criança adquire certoshábitos e qualificações num dado domínio antesde aprender a aplicá-los consciente edeliberadamente. Nunca há um paralelismocompleto entre o curso do ensino e odesenvolvimento das correspondentes funções.

O ensino tem a sua própria seqüência e asua própria organização, segue um currículo eum horário e não se pode esperar que as suasleis coincidam com as leis internas dosprocessos de desenvolvimento que solicita emobiliza. Com base nos estudos que levamos acabo, tentamos traçar curvas querepresentassem a evolução do ensino e dasfunções psicológicas que nele participavam;estas curvas não eram coincidentes, muito pelocontrário, evidenciavam uma relação complexa amais não poder ser.

Por exemplo, os diferentes passos dadosna aprendizagem da aritmética podem não terigual valor para o desenvolvimento mental.Acontece muitas vezes que três ou quatroestádios percorridos no ensino desta matériapouco acrescentam ao conhecimento que acriança tenha da aritmética e que, com o quintopasso, haja como que uma revelação: a criançacompreendeu um princípio geral e a sua curvade desenvolvimento sofre uma súbita e marcadasubida. Para esta criança particular, o quintopasso foi decisivo, mas tal não pode tomar-secomo regra geral. O currículo não podedeterminar com antecedência o ponto de viragemem que um princípio geral se torna claro paradeterminada criança. Não se ensina à criança o

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sistema decimal em si, ensina-se-lhe a escrevernúmeros, a somar e a multiplicar, a resolverproblemas e de tudo isto acabam por emergiralguns dos conceitos gerais do sistema decimal.

Quando a criança aprende uma operaçãoaritmética ou um conceito científico, odesenvolvimento dessa operação ou do conceitoestá apenas no início. O nosso estudo mostraque a curva de desenvolvimento não coincidecom a curva do ensino escolar; o ensino precedede muito o desenvolvimento.

3. A nossa terceira série de investigaçõesassemelha-se aos estudos que Thorndike levou acabo sobre a transferência do adestramento,exceto num aspecto: fizemos incidir as nossasexperiências não sobre as funções maiselementares, mas sobre matérias de ensinoescolar e sobre as funções superiores, quer dizersobre as matérias e funções de que se poderiaesperar que tivessem relações significativasentre si.

Descobrimos que o desenvolvimentointelectual, muito ao invés de seguir o modeloatomista de Thorndike, não se encontracompartimentado segundo os temas do ensino. Asua evolução é muito mais unitária, e asdiferentes matérias escolares influenciam-semutuamente ao impulsionarem o seudesenvolvimento. Embora o processo de ensinosiga a sua própria ordem lógica, desperta eorienta no cérebro da criança um sistema deprocessos que se encontra oculto à observaçãodireta e que segue as suas próprias leis dedesenvolvimento. A detecção destes processos de

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desenvolvimento estimulados pela instrução éuma das tarefas fundamentais do estudopsicológico da aprendizagem.

Especificamente, as nossas experiênciaspuseram em evidência os seguintes fatos inter-relacionados: as condições prévias do ensinopara diferentes matérias escolares sãoessencialmente semelhantes; o ensino de umadeterminada matéria influencia odesenvolvimento das funções superiores paraalém dos confins dessa matéria específica; asprincipais funções psíquicas mobilizadas peloestudo de várias matérias são interdependentes— as suas bases comuns são constituídas pelaconsciência e pelo domínio deliberado damatéria, os principais contributos dos primeirostempos de escola. Destas descobertas segue-seque todas as matérias escolares fundamentaisatuam como uma disciplina formal, facilitandocada uma delas a aprendizagem das outras; asfunções psicológicas por elas estimuladasdesenvolvem-se num único processo complexo.

4. Na quarta série de estudos, atacamosum problema a que não se prestou a devidaatenção no passado, mas que consideramos serde importância fulcral para o estudo do ensino edo desenvolvimento.

A maior parte das investigaçõespsicológicas relativas à aprendizagem escolarmediam o nível de desenvolvimento mental dacriança propondo-lhe a resolução de certosproblemas estandardizados. Presumia-se que aquantidade de problemas que fosse capaz deresolver sozinha indicaria o nível do seu

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desenvolvimento mental nesse momentoparticular. Mas desta maneira, só se pode medira parte do desenvolvimento da criança que seencontra acabada, e esta é bem reduzidapercentagem do acervo total. Tentamos abordaro assunto de diferente modo. Tendo determinadoque a idade mental de duas crianças era de oitoanos, digamos, demos a cada uma delasproblemas mais difíceis do que os queconseguiriam resolver por si sós, dando-lhes leveajuda: o primeiro passo da solução, ou outraqualquer forma de ajuda. Descobrimos que, emcooperação, uma das crianças podia conseguirresolver problemas concebidos para crianças dedoze anos, enquanto a outra não conseguia iralém dos problemas pensados para crianças denove anos. A discrepância entre a idade mentalreal de uma criança e o nível que atinge quandoresolve problemas com auxílio indica a zona doseu desenvolvimento próximo: no nossoexemplo, esta zona era de quatro para a primeiracriança e de um para a segunda. Podemos dizerrealmente que o seu desenvolvimento é omesmo? A experiência ensinou-nos que acriança com a zona mais extensa dedesenvolvimento próximo terá melhoraproveitamento na escola. Esta medida dá-nosuma indicação acerca da dinâmica da evoluçãointelectual mais útil do que a idade mental.

Hoje em dia, os psicólogos compartilhamda convicção do leigo, segundo a qual a imitaçãoé uma atividade mecânica e que qualquer pessoapode imitar praticamente tudo o que quiser selhe mostrarem como. Para imitar, é preciso

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dominar os meios necessários para avançar dealgo que conhecemos para algo quedesconhecemos. Com o auxílio externo, todas ascrianças podem fazer mais do que o queconseguiriam por si sós — embora apenasdentro dos limites impostos pelo seu grau dedesenvolvimento. Koehler descobriu que umchimpanzé só consegue imitar os atosinteligentes de outros macacos que está emcondições de eventualmente executar por si. Écerto que o adestramento persistente podeinduzi-lo a executar ações muito maiscomplicadas, mas estas são executadas de umaforma mecânica e trazem todas as marcas doshábitos sem sentido, mais do que das intuiçõespercucientes. Até o mais esperto dos animais éincapaz de se desenvolver intelectualmenteatravés da imitação. Pode ser treinado,aperfeiçoado, a praticar certos atos específicos,mas os novos hábitos não produzem novascapacidades gerais. Neste sentido, pode dizer-seque é impossível ensinar os animais.

No desenvolvimento das crianças, pelocontrário, a imitação e o ensino desempenhamum papel de primeira importância. Põem emevidência as qualidades especificamentehumanas do cérebro e conduzem a criança aatingir novos níveis de desenvolvimento. Aimitação é indispensável para se aprender afalar, assim como para se aprender as matériasescolares. A criança fará amanhã sozinha aquiloque hoje é capaz de fazer em cooperação. Porconseguinte, o único tipo correto de pedagogia éaquele que segue em avanço relativamente ao

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desenvolvimento e o guia; deve ter por objetivonão as funções maduras, mas as funções emvias de maturação. Continua a ser necessáriodeterminar o limiar mínimo a que deve começar,digamos, a educação aritmética, pois que énecessária uma maturidade mínima dasfunções; mas temos que entrar em linha deconta com o limiar superior: a instrução deveestar voltada para o futuro e não para opassado.

Durante um certo período as nossasescolas favoreceram o sistema “complexo” deinstrução que se julgava encontrar-se adaptadoà maneira de pensar das crianças. Ao pôr ascrianças perante problemas que estasconseguiam resolver sem ajuda, este método nãoconseguia utilizar a zona de desenvolvimentopróximo e dirigir a criança no sentido do queainda não conseguia levar a cabo. A educaçãoseria orientada mais para as fraquezas dacriança do que para os seus pontos fortes,encorajando-a assim a permanecer no estádio dedesenvolvimento pré-escolar.

Para cada matéria de ensino há umperíodo em que a sua influência é maisproveitosa, porque a criança se encontra maisreceptiva. Montessori e outros educadoreschamaram-lhe o período sensitivo, termo que éusado também em biologia para os períodos dedesenvolvimento ontogênico em que o organismoé particularmente sensível a determinado tipo deinfluências. Durante esse período, umainfluência que antes ou depois pouco efeito teriapode alterar radicalmente a evolução do

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desenvolvimento. Mas a existência de um tempoótimo para o ensino de determinado assunto nãopode ser explicada em termos puramentebiológicos, pelo menos no que toca a processostão complexos como a linguagem escrita. Asnossas investigações demonstraram a naturezasocial e cultural do desenvolvimento das funçõessuperiores durante este período, isto é, a suadependência relativamente à cooperação com osadultos e ao ensino que estes ministram. Osdados de Montessori não perderam contudo arelevância. Ela descobriu por exemplo que se seensinar uma criança a escrever muito cedo,quando chega aos quatro e meio ou cinco anos,a resposta dela é “uma explosão de escrita”, umaabundante e imaginativa utilização da linguagemfalada que não é nunca igualada por crianças deidade superior. Eis um exemplo flagrante daforte influência que a instrução pode ter quandoas correspondentes funções ainda nãoamadureceram completamente. A existência deperíodos sensitivos para todas as matérias deensino é perfeitamente escorada pelos dados queobtivemos nos nossos estudos. O período deescolaridade como um todo é o período ótimopara o ensino de operações que exigemconsciência e controle deliberado; o ensinodestas operações impulsiona ao máximo odesenvolvimento das funções psicológicassuperiores na altura da sua maturação. Istoaplica-se também ao desenvolvimento dosconceitos científicos a que a escola primáriaintroduz as crianças.

IV

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Sob a nossa orientação, Zh.I. Shifconduziu uma investigação sobre odesenvolvimento dos conceitos quotidianos ecientíficos durante a idade escolar (37). O seuprincipal propósito era o de testarexperimentalmente as nossas hipóteses detrabalho sobre o desenvolvimento dos conceitoscientíficos em comparação com os conceitosquotidianos. Apresentavam-se à criançaproblemas estruturalmente semelhantesincidindo quer sobre material científico, quersobre material “ordinário”, comparando-se assoluções. As experiências iam desde aefabulação de histórias a partir de uma série degravuras que mostravam o início de uma ação, asua continuação e o seu termo até ao completarde fragmentos de frases terminadas por porqueou embora; estes textos eram complementadospor análises clínicas. O material de uma série detestes foi retirado de cursos sociais do segundo edo quarto graus. A segunda série utilizavasituações simples da vida do dia a dia, taiscomo: “o rapaz foi ao cinema, porque...”, “amenina ainda não sabe ler, embora...”, “Ele caiuda bicicleta, porque...”. Utilizaram-se métodossuplementares de estudo, como por exemplo:testou-se a extensão dos conhecimentos dascrianças durante algumas lições especialmenteorganizadas para o efeito. As crianças queestudamos eram alunas da escola primária.

As análises dos dados, que foramcomparados em separado para os diferentesgrupos etários, mostraram que, na medida emque o currículo fornece o material necessário, o

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desenvolvimento dos conceitos científicosprecede o desenvolvimento dos conceitosespontâneos.Quantidade de fragmentos de frasecorretamente completados

SEGUNDO GRAU QUARTO GRAU*Fragmentos terminados em “porque”

conceitos científicos 79,7% 81,8%conceitos quotidianos 59,0% 81,3%

Fragmentos terminados em “embora” conceitos científicos 81,3% 79,5%

conceitos quotidianos 16,2% 65,5%(*) No sistema escolar russo, as crianças dosegundo e do quarto graus terão, em média, oito

a dez anos de idade.Como poderemos explicar que a freqüência

de resoluções corretas seja maior para osproblemas que envolvem conceitos científicos doque para os problemas que envolvem conceitosda vida quotidiana? Podemos de imediato pôr departe a noção de que a criança é auxiliada pelainformação que recebe na escola, faltando-lheexperiência nas coisas do dia a dia. Os nossostestas, tal como os de Piaget, incidiam sobreassuntos e relações que eram familiares àscrianças e que estas mencionavamespontaneamente nas suas conversas. Ninguémpode admitir que uma criança saiba menos debicicletas, de crianças, ou de escolas do que daluta de classes, da exploração ou da Comuna deParis. A vantagem da familiaridade pesatotalmente a favor dos conceitos quotidianos.

A criança deve achar difícil resolverproblemas da vida quotidiana porque carece deconsciência destes conceitos e portanto não pode

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operar com eles da forma que é exigida pelatarefa. Uma criança de oito ou nove anos utilizacorretamente a palavra “porque” numa conversaespontânea; nunca diria que um menino caiu dabicicleta e partiu a perna porque foi levado parao hospital. No entanto, é com este tipo deafirmações que age até que o conceito de“porque” se torne completamente consciente. Poroutro lado, completa corretamente frases sobreassuntos de ciências sociais, como “A economiaplanificada é possível na URSS porque não hápropriedade privada — todas as fábricas, terrase oficinas pertencem aos operários ecamponeses”. Por que razão é a criança capaz deexecutar a operação neste caso? porque oprofessor, trabalhando com o aluno, forneceu ainformação, fez perguntas, corrigiu e obrigou acriança a explicar. Os conceitos da criançaforam formados pelo processo da aprendizagem,em colaboração com um adulto. Ao completar afrase, ela faz uso dos frutos dessa colaboração,desta vez independentemente. A ajuda doadulto, invisivelmente presente, permite àcriança resolver esses problemas mais cedo doque os problemas da vida quotidiana.

No mesmo grupo etário (segundo grau), asfrases com embora patenteiam um quadrodiferente: os conceitos científicos não seencontram mais avançados do que os conceitosda vida quotidiana. Sabemos que as relaçõesadversativas aparecem mais tarde do que asrelações causais no pensamento infantilespontâneo. Uma criança dessa idade podeaprender a utilizar conscientemente a palavra

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“porque”, pois nessa altura já domina o seuemprego espontâneo. Como não domina aindaigualmente a palavra “embora”, não pode, comoé natural, utilizá-la deliberadamente no seupensamento “científico”; por conseguinte, apercentagem de respostas certas é igualmentebaixa para ambas as séries de testes.

Os nossos dados mostram um rápidoprogresso na solução dos problemas da vidaquotidiana: no quarto grau os fragmentos com“porque” são corretamente completados comigual freqüência para os conceitos quotidianos eos conceitos científicos. Isto confirma a nossahipótese de que um nível mais elevado nodomínio dos conceitos científicos também eleva onível dos conceitos quotidianos espontâneos.Uma vez atingidos a consciência e o controle emdeterminado tipo de conceitos, todos osconceitos previamente formados sãoreconstruídos em conformidade com essaconsciência e esse controle.

A relação entre os conceitos científicos eos conceitos quotidianos espontâneos nacategoria adversativa apresenta, no quarto grau,um aspecto bastante semelhante ao da categoriacausal no segundo grau. A percentagem desoluções corretas para tarefas que mobilizam osconceitos científicos ultrapassa a percentagemdos que mobilizam os conceitos espontâneos. Sea dinâmica é a mesma para ambas ascategorias, será de esperar que os conceitosquotidianos se desenvolvam rapidamente noestádio seguinte do desenvolvimento, acabandopor apanhar os conceitos científicos. Começando

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dois anos mais tarde, todo o processo dedesenvolvimento de “embora” duplicaria avelocidade do de “porque”.

Pensamos que os nossos dados confirmama hipótese segundo a qual desde o princípio osconceitos científicos e espontâneos da criança —por exemplo, os conceitos de “exploração” e de“irmão” — se desenvolvem em sentidos inversos:partindo de pontos muito afastados movem-seem direção um ao outro. Este ponto é o fulcro danossa hipótese.

A criança ganha consciência dos seusconceitos espontâneos relativamente tarde; acapacidade para os definir por meio de palavras,para operar com eles conforme queira, aparecemuito depois de ter adquirido os conceitos. Elapossui o conceito (isto é, conhece o objeto a queo conceito se refere), mas não tem consciênciado seu ato de pensamento. No seudesenvolvimento, o conceito científico, emcontrapartida, começa usualmente pela suadefinição verbal sendo logo de início utilizado emoperações não espontâneas — quer dizer, logo deinício se começa a operar com o próprioconceito, que começa a sua vida no cérebro dacriança a um nível que os conceitos espontâneossó atingem mais tarde.

Um conceito infantil do dia a dia, como,por exemplo, “irmão”, está impregnado deexperiência concreta. No entanto, quando se lhepede para resolver um problema abstrato sobre oirmão de um irmão, como nas experiências dePiaget, por exemplo, a criança fica confusa. Poroutro lado. embora possa responder

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corretamente a questões sobre a “escravatura”, a“exploração” ou a “guerra civil” estes conceitossão esquemáticos e carecem do rico conteúdoproveniente da experiência pessoal. Sãogradualmente preenchidos pelo trabalho escolare pelas leituras posteriores. Dir-se-ia que odesenvolvimento dos conceitos espontâneos dacriança se processa de baixo para cima e que odesenvolvimento dos conceitos científicos segueuma trajetória descendente, em direção a umnível mais elementar e concreto. Isto éconseqüência da diversidade de formas como osdois tipos de conceitos surgem. Se procurarmosa raiz de um conceito espontâneo veremosgeralmente que este tem origem numa situaçãode confronto com uma situação concreta, aopasso que os conceitos científicos implicam logode início uma atitude “mediada” relativamenteao seu objeto.

Embora os conceitos científicos eespontâneos se desenvolvam em direçõesinversas, os dois processos estão estreitamenterelacionados. Por exemplo, os conceitoshistóricos podem começar por desenvolver-seapenas quando o anterior conceito quotidiano dacriança se encontra suficientemente diferenciado— quando a sua vida e a vida dos que a rodeiampode conformar-se à generalização elementar “nopassado e agora”, os seus conceitos geográficos esociológicos crescerão necessariamente sobre oterreno do esquema simples “cá e lá”. Aoforçarem lentamente o seu caminho ascendente,os conceitos quotidianos abrem caminho para osconceitos científicos e o seu desenvolvimento

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descendente. Cria uma série de estruturasnecessárias para a evolução dos aspectos maisprimitivos e elementares de um conceito, que lhedão corpo e vitalidade. Os conceitos científicos,por seu turno, fornecem estruturas para odesenvolvimento ascendente dos conceitosespontâneos da criança rumo à consciência e àutilização deliberada. Os conceitos científicosdesenvolvem-se para baixo, através dosconceitos espontâneos; os conceitos espontâneosdesenvolvem-se para cima, através dos conceitoscientíficos.

A influência dos conceitos científicos sobreo desenvolvimento mental da criança é análogoao efeito resultante da aprendizagem de umalíngua estrangeira, processo que é consciente edeliberado desde o início. Na língua materna decada qual, os aspectos mais primitivos dalinguagem são adquiridos antes dos maiscomplexos. Estes últimos pressupõem uma certaconsciência das formas fonéticas, sintáticas egramaticais, mas, com uma língua estrangeira,as formas superiores desenvolvem-se antes dodiscurso espontâneo e fluente. As teoriasintelectualistas da linguagem, como, porexemplo, a de Stern, que põem toda a tônica narelação entre o signo e o significado já desde oinício do desenvolvimento lingüístico, contêmum certo grau de verdade no caso das línguasestrangeiras. Os pontos fortes da criança naslínguas estrangeiras são os pontos fracos na suaprópria língua e vice-versa. Na sua próprialinguagem, a criança conjuga e declinacorretamente mas sem perceber o que faz: não

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sabe dizer o gênero, o caso ou tempo da palavraque emprega. Numa língua estrangeira,distingue entre os gêneros masculino e femininoe tem consciência das formas gramaticais desdeo principio.

Com a fonética dá-se o mesmo. Emboranão dê erros de pronúncia na sua línguamaterna, a criança não tem consciência dossons que pronuncia e, quando aprende asoletrar, sente grandes dificuldades para dividiruma palavra nos sons que a compõem. Numalíngua estrangeira, fá-lo facilmente e a escritanão se atrasa relativamente à fala. Achadificuldades na pronúncia, na fonética“espontânea”. O discurso fluente e espontâneo,com um domínio rápido e seguro das estruturasgramaticais só lhe vem depois de longo e árduoestudo.

Os resultados obtidos na aprendizagem deuma língua estrangeira estão dependentes de seter ou não atingido um certo grau de maturidadena língua materna. A criança pode transferirpara a nova língua o sistema de significados quejá possuía na sua própria língua e o inversotambém é verdade: uma língua estrangeirafacilita o domínio das formas superiores dalíngua materna. A criança aprende a ver a sualíngua materna como um sistema particularentre muitos, aprende a considerar os seusfenômenos à luz de categorias mais vastas e istoconduz à consciência das operações lingüisticas.Goeth disse com verdade que “aquele que nãoconhece nenhuma língua estrangeira nãoconhece verdadeiramente a sua própria língua”.

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Não é de surpreender que exista uma certaanalogia entre a interação mútua da línguamaterna e da língua estrangeira e a interaçãoentre os conceitos científicos e os conceitos davida cotidiana, na medida em que ambos osprocessos fazem parte da esfera do pensamentoverbal em desenvolvimento. Há contudo tambémdiferenças essenciais entre eles. No estudo daslínguas estrangeiras, a atenção fixa-se nosaspectos exteriores, sonoros, físicos dopensamento verbal; no desenvolvimento dosconceitos científicos, a atenção fixa-se nosaspectos semânticos. Os dois processos dedesenvolvimento seguem caminhos separados,embora semelhantes.

Não obstante, ambos os processossugerem uma resposta única para o problema domodo como se formam os novos sistemas,estruturalmente análogos aos mais primitivos: alinguagem falada, a escrita, as línguasestrangeiras, o pensamento verbal, duma formageral. Os fatos experimentais resultantes dosnossos estudos infirmam a teoria datransferência, que afirma que o estádio primitivomais avançado repete a trajetória do estádioanterior, verificando-se inclusive a recorrênciadas dificuldades já superadas no plano inferior.Todas as nossas provas confirmam a hipótese deque sistemas análogos se desenvolvem emsentidos inversos ao nível superior e inferior, eque cada sistema influencia o outro e beneficiados pontos fortes do outro.

Podemos agora voltar-nos para a inter-relação dos conceitos num sistema — o ponto

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fulcral da nossa análise.Os conceitos não se encontram

depositados no cérebro da criança como ervilhasnum saco, sem qualquer relação que os una. Seassim fosse, não seria possível nenhuma relaçãointelectual que exigisse uma coordenação depensamentos, nem nenhuma concepção geral domundo. Nem sequer poderiam existir conceitosseparados enquanto tais; a sua própria naturezapressupõe um sistema.

O estudo dos conceitos das crianças acada nível etário mostra que o grau de abstraçãode generalidade (planta, flor, rosa) é a variantepsicológica fundamental a partir da qual osconceitos podem ser hierarquizadossignificativamente. Se todos os conceitos sãogeneralizações, então a relação entre osconceitos é uma relação de generalidade. Oaspecto lógico dessa relação foi estudado muitomais completamente do que os seus aspectosgenético e psicológico. O nosso estudo tentacolmatar este desfasamento.

Comparamos os graus de generalidade dosconceitos reais da criança com as fases e osestádios atingidos por esta na formaçãoexperimental dos conceitos: sincretismo,complexos, pré-conceitos e conceitos. Era nossopropósito descobrir se existia uma relaçãodefinida entre a estrutura da generalizaçãotipificada por estas duas fases e o grau degeneralização dos conceitos.

Conceitos com diferentes graus degeneralidade podem surgir numa mesmaestrutura generalizativa. Por exemplo, as idéias

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de rosa e de flor podem encontrar-sesimultaneamente presentes no estádio dopensamento por complexos. Em conformidadecom isso, podem aparecer conceitos de igualgrau de generalidade em estruturas comdiferentes graus de generalização; por exemplo,a palavra “flor” pode aplicar-se a todas as florese a cada uma delas quer no estádio dopensamento por complexos, quer no estádio dopensamento conceptual. Descobrimos porémque, apesar de não haver completacorrespondência, cada fase, ou cada estruturageneralizativa, tem como contrapartida um certonível de generalidade, uma relação específicaentre os conceitos de ordem superior e de ordeminferior, uma combinação característica doconcreto e do abstrato. É verdade que o termoflor pode ser tão geral ao nível do complexo comoao nível do conceito, mas apenas no tocante aosobjetos a que se refere. Neste caso, um grauequivalente de generalidade não implica umaidentidade de todos os processos psicológicosmobilizados pela aplicação da palavra. Assim, nopensamento complexo a relação entre “flor” e“rosa” não é uma relação de subordinaçãohierárquica: o conceito mais lato e o conceitomais restrito coexistem no mesmo plano.

Nas nossas experiências, uma criançamuda aprendeu sem grandes dificuldades aspalavras mesa, cadeira, escritório, divã,prateleiras, etc.. No entanto, verificou-se que apalavra mobília era de apreensão demasiadodifícil. A mesma criança, que aprendera comêxito as palavras camisa, chapéu, casaco,

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calças, etc., não conseguiu ultrapassar o níveldesta série e aprender a palavra roupa.Verificamos que a um determinado nível dedesenvolvimento a criança é incapaz dedeslocar-se “verticalmente” do significado deuma palavra para o de outra, isto é, decompreender as suas relações de generalidade.Todos estes conceitos se encontram ao mesmonível, todos eles se referem diretamente adeterminados objetos e são mutuamentedelimitados da mesma turma que os objetos sãodelimitados: o pensamento verbal mais não é doque uma componente do pensamento sensorial,determinado pelos objetos. Por conseguinte,teremos que considerar este estádio como umestádio pouco desenvolvido e sincrético nodesenvolvimento do significado das palavras. Osurgimento do primeiro conceito generalizado,como, por exemplo, o conceito de “mobília” ou de“roupas” é um sintoma de progresso tãorelevante como o surgimento da primeira palavracom sentido.

Os níveis superiores de desenvolvimentodo significado das palavras regem-se pela lei daequivalência dos conceitos, segundo a qual todoe qualquer conceito pode ser formulado emtermos de outros conceitos, de um númeroilimitado de maneiras. Ilustraremos o esquemasubjacente a esta lei por meio de uma analogianão tão rigorosa como seria idealmente dedesejar, mas que é bastante aproximada para oque pretendemos.

Se imaginarmos a totalidade dos conceitosdistribuída pela superfície do globo, a localização

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de cada um deles pode ser definida por meio deum sistema de coordenadas, quecorresponderiam à latitude e à longitude dageografia. Uma destas coordenadas indicará alocalização de um conceito entre os extremos daconceptualização abstrata do maior grau degeneralização possível e a apreensão imediatasensorial de um objeto — isto é, o seu grau deconcreto e de abstração. A segunda coordenadarepresentará a referência objetiva do conceito, oponto da realidade a que se aplica. Doisconceitos que se apliquem a diferentes áreas darealidade, mas que possuam o mesmo grau deabstração — por exemplo, plantas e animais —poderia conceber-se que teriam diferenteslatitudes, mas a mesma longitude. A analogiageográfica falha em vários pormenores: porexemplo, os conceitos mais generalizadosaplicam-se a um conteúdo de área mais vasta,fato que deveria ser representado na latitude poruma linha e não por um ponto. Mas serve-nospara transmitir a idéia de que, paracaracterizarmos adequadamente um conceitoteremos de o colocar em dois domínioscontínuos — um que representa o conteúdoobjetivo e outro que representa os atos depensamento que apreendem o conteúdo. Ainterseção destes dois domínios determina todasas relações entre o conceito dado e todos osoutros — os conceitos que se lhe encontramcoordenados, subordinados ou que ossubordinam. A esta posição de um conceito nosistema total dos conceitos poderemos chamar amedida da sua generalidade.

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As múltiplas relações mútuas dosconceitos, sobre que se baseia a lei daequivalência, são determinadas pelas respectivasmedidas de generalidade. Tomemos doisexemplos extremos: as primeiras palavrasinfantis (pré-sincréticas), que carecem dequalquer grau de generalidade e os conceitos denúmeros desenvolvidos através dos estudos dearitmética. No primeiro caso, é óbvio quequalquer conceito só poderá exprimir-se atravésde si próprio e nunca através de outrosconceitos. No segundo caso, qualquer númeropoderá ser expresso de inúmeras maneiras, dadoque existe uma infinidade de números e quecada número contém em si as suas relações comtodos os outros. Por exemplo, podemos exprimiro número “um” como sendo “mil menosnovecentos e noventa e nove” ou em geral, comosendo igual à diferença entre dois númerosconsecutivos, ou como sendo igual a um númeroqualquer dividido por si próprio e duma miriadede maneiras diferentes. Eis um exemplo puro deequivalência de conceitos Na medida em que aequivalência depende das relações degeneralidade entre os conceitos e estas relaçõessão específicas para cada estruturageneralizante, esta última determina aequivalência de conceitos possível na sua esfera.

A medida de generalidade determina nãosó a equivalência de conceitos mas tambémtodas as operações intelectuais possíveis comdado conceito. Todas as operações intelectuais— comparações, juízos, conclusões — exigemum movimento no seio das coordenadas que

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delineamos. As transformações genéticas naestrutura de generalização provocam alteraçõestambém nestas operações. Por exemplo, àmedida que se atingem os níveis mais elevadosde generalidade e de equivalência dos conceitos,torna-se mais fácil recordar pensamentosindependentemente das palavras usadas. Umacriança de tenra idade reproduzirá umsignificado exatamente nas mesmas palavrascom que o recebeu. Uma criança em idadeescolar já pode reproduzir um significadorelativamente complexo por palavras suas;assim, portanto, a sua liberdade intelectual já émaior. Nas perturbações patológicas dopensamento conceptual a medida degeneralidade de um conceito encontra-sedistorcida, o equilíbrio entre o abstrato e oconcreto encontra-se alterado e as relações comos outros conceitos torna-se instável. O atomental pelo qual se apreende tanto o objetocomo a relação entre o objeto e o conceito perdea sua unidade e o pensamento começa a seguirtrajetórias quebradas. caprichosas e ilógicas.

Um dos objetivos do nosso estudo dosconceitos reais das crianças era o de encontraríndices da sua estrutura de generalidade em quepudéssemos confiar, pois só por meio dessesíndices os esquemas genéticos dados, geradospelos nossos estudos experimentais dosconceitos artificiais, poderiam ser aplicados comproveito aos conceitos infantis emdesenvolvimento.

Acabamos por achar esse índice namedida de generalidade dos conceitos, que varia

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com os diferentes níveis de desenvolvimento,desde as formações sincréticas até aos conceitospropriamente ditos. As análises dos conceitosreais das crianças também nos ajudaram adeterminar a forma como os conceitos diferemaos vários níveis nas suas relações com o objetoe o significado das palavras e pelas operaçõesintelectuais que possibilitam.

Além disso, a investigação dos conceitosreais complementou o estudo experimental,mostrando com clareza que cada novo estádio dodesenvolvimento da generalização é constituídosobre as generalizações do nível precedente; osprodutos da atividade intelectual do períodoprecedente não se perdem. Nas nossasinvestigações não pudemos pôr a nu as relaçõesinternas entre as fases consecutivas porque,após cada insucesso, o sujeito observado tinhaque libertar as generalizações que tinha feito erecomeçar de novo. Também a natureza dosobjetos experimentais não era de molde apermitir a sua conceptualização em termoshierárquicos.

A investigação dos conceitos reaiscolmatou estas falhas. Descobriu-se que asidéias das crianças em idade pré-escolar (quepossuem a estrutura de complexos) resultavam,não do agrupamento de imagens dos objetosindividuais, mas da elaboração de generalizaçõespredominantes durante uma fase anterior. A umnível superior, descobrimos uma analogiasemelhante entre antigas e novas formações nodesenvolvimento dos conceitos aritméticos e dosconceitos algébricos. A progressão dos pré-

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conceitos (os conceitos aritméticos da criançasão geralmente deste tipo) para os conceitosgenuínos, como por exemplo, os conceitosalgébricos dos adolescentes, realiza-se por meioda generalização das generalizações do períodoanterior. Neste estádio anterior abstraíram-secertos aspectos dos objetos generalizando-seesses aspectos para se atingir a idéia de número.Os conceitos algébricos representam abstraçõese generalizações de certos aspectos dos númerose não dos objetos, significando portanto umanova trajetória de desenvolvimento — um novo emais elevado plano de pensamento.

Os novos e mais elevados conceitos, porseu turno, transformam o significado dosconceitos inferiores. O adolescente que jádomina os conceitos algébricos atingiu um pontode observação a partir do qual vê os conceitosaritméticos segundo uma perspectiva maisvasta. Vimos isto com especial nitidez quandorealizamos experiências com a passagem dosistema decimal para outros sistemas denumeração. Enquanto a criança opera com osistema decimal sem dele ter consciênciaenquanto tal, não domina ainda o sistema, mas,pelo contrário, encontra-se-lhe subordinada.Quando se torna capaz de o aperceber como umcaso particular do conceito mais lato de escalasde notação, pode operar indiferentemente comeste ou outro sistema de numeração. Acapacidade de passar de um para outro sistema(por exemplo, a capacidade de “traduzir” umnúmero da base decimal para a base cinco) é ocritério deste novo tipo de nível de consciência,

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na medida em que indica a existência de umconceito geral de um sistema de numeração.Neste como noutros casos em que se dá umapassagem de um nível de significado para outro,a criança não é obrigada a reestruturarseparadamente todos os seus anterioresconceitos, coisa que seria realmente um trabalhode Sisifo. Logo que uma nova estrutura éincorporada no seu pensamento — geralmenteatravés de conceitos aprendidos na escola —essa estrutura espalha-se imediatamente pelosoutros conceitos a medida que estes sãoarrastados para as operações intelectuais de tipomais elevado

A nossa investigação dos conceitos reaisinfantis de ordem superior lança uma nova luzsobre outra importante questão da teoria dopensamento. A escola de Wuerzburg demonstrouque a evolução do pensamento orientado não éregida por conexões associativas, mas pouco fezpara clarificar os fatores específicas edeterminam realmente esta evolução. Apsicologia gestaltista substituiu o princípio daassociação pelo princípio da estrutura, mas nãoconseguiu estabelecer a distinção entre opensamento propriamente dito e a percepção, amemória e todas as outras funções sujeitas aleis estruturais; repetiu o modelo da teoriaassociativa ao reduzir todas as funções a um sónível. A nossa investigação ajudou-nos atranscender este modelo mostrando que opensamento de nível superior é regido pelasrelações de generalidade entre conceitos — umsistema de relações ausente da percepção e da

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memória. Wertheimer demonstrou que opensamento produtivo está dependente datransferência do problema da estrutura em quefoi apreendido pela primeira vez para umcontexto ou estrutura completamente diferente.Mas, para transferir um objeto de pensamentoda estrutura A para a estrutura B temos quetranscender as conexões estruturais dadas, eisto, como mostram os nossos estudos, exige umdeslocamento para um plano de maiorgeneralidade, para um conceito que subsume erege tanto A como B.

Podemos agora reafirmar numa basesólida que a ausência de um sistema é adiferença psicológica fulcral que distingue osconceitos espontâneos dos científicos. Poder-se-ia mostrar que todas as peculiaridades dopensamento infantil descritas por Piaget (taiscomo o sincretismo, a justaposição, ainsensibilidade à contradição) decorre daausência de um sistema nos conceitosespontâneos da criança — conseqüência dasrelações de generalidade não desenvolvidas. Porexemplo, para que fosse perturbada por umacontradição, a criança teria que ver asafirmações contraditórias à luz de um qualquerprincípio geral, isto é, no quadro de um sistema.Mas quando, nas experiências de Piaget, umacriança diz de um objeto que se dissolveu naágua porque era pequeno, e de outro que sedissolveu porque era grande, limita-se a proferirafirmações empíricas de fatos que decorrem dalógica das percepções. No seu cérebro não háqualquer generalização do tipo “As dimensões

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reduzidas implicam a dissolução” e, porconseguinte, não sente que as duas afirmaçõessejam contraditórias. É esta ausência dedistanciação relativamente à experiênciaimediata — e não o sincretismo visto como umcompromisso entre a lógica dos sonhos e arealidade — que explica as peculiaridades dopensamento infantil, as quais, por conseguinte,não surgem nos conceitos científicos dascrianças, os quais desde a sua gestação trazemconsigo relações de generalidade, isto é, algunsrudimentos de um sistema. A disciplina formaldos conceitos científicos transformagradualmente a estrutura dos conceitosespontâneos da criança e contribui para osorganizar num sistema; isto impele a criança amais elevados níveis de desenvolvimento.

A nossa discordância com Piaget centra-sesobre um único ponto. Ele pressupõe que odesenvolvimento e a instrução são processoscompletamente separados e incomparáveis e quea função da instrução limita-se a introduzir osmodos adultos de pensar, os quais entram emconflito com os da criança e acabam por ossuperar. Estudar o pensamento das criançasindependentemente da influência da instrução,como fez Piaget, exclui-se uma importante fontede transformações e impede-se o investigador depôr a questão da interação entre odesenvolvimento e a instrução que écaracterística a cada nível etário. A nossaabordagem centra-se sobre esta interação. Tendodescoberto muitos e complexos laços internosentre os conceitos científicos e os conceitos

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espontâneos, esperamos que as futurasinvestigações comparadas clarifiquem maisprofundamente a sua interdependência.avançando nós próprios uma primeiraantecipação do alargamento do estudo dodesenvolvimento da instrução aos níveis etáriosmais baixos. No fim de contas a instrução nãocomeça na escola. Os futuros investigadorespodem muito bem descobrir que os conceitosespontâneos das crianças são produto dainstrução pré-escolar, tal como os conceitoscientíficos são produto da instrução escolar.

VPara lá das conclusões teóricas, o nosso

estudo comparativo dos conceitos científicos edos conceitos do dia a dia produziu algunsresultados metodológicos. Os métodos por nóselaborados para utilização nas nossasinvestigações permitiram-nos colmatar odesfasamento existente nas investigações dosconceitos experimentais e dos conceitos da vidareal. A informação recolhida sobre os processosmentais dos jovens estudantes de ciênciassociais, embora muito esquemática erudimentar, sugeriu-nos algunsaperfeiçoamentos do ensino a introduzir noensino dessa disciplina.

Retrospectivamente, temos consciência dealgumas omissões e de alguns defeitosmetodológicos, que talvez sejam inevitáveisquando se está abordando um novo campo deestudo. Não estudamos experimentalmente compormenor a natureza dos conceitos do dia a diada criança. Isto deixa-nos sem os dados

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necessários para descrevermos a evolução globaldo desenvolvimento psicológico durante a idadeescolar; por conseguinte, a nossa crítica às tesesfundamentais de Piaget não se encontrasuficientemente escorada em fatos de confiançae sistematicamente recolhidos.

O estudo dos conceitos científicos incidiusobre uma única categoria — a dos conceitosdas ciências sociais — e os conceitosparticulares selecionados para a investigaçãonão formam nem indicam um sistema inerente àlógica do sujeito. Embora tenhamos aprendidomuitas coisas sobre os conceitos científicos emcomparação com os conceitos espontâneos,pouco aprendemos em relação às regularidadesespecíficas do desenvolvimento dos conceitossociológicos enquanto tais. Os futuros estudosdeverão incidir sobre conceitos que pertençam adiversos campos da instrução escolar,comparando-se cada conjunto de conceitos comum conjunto de conceitos extraídos de uma áreasemelhante da experiência do dia a dia.

Por último e sobretudo, as estruturasconceptuais que estudamos não eramsuficientemente diferenciadas. Por exemplo,quando utilizamos fragmentos de frasesterminados por “porque”, não separamos osvários tipos de relações causais (empíricas,psicológicas, lógicas) como Piaget fez nos seusestudos. Se o tivéssemos feito, talvez tivéssemossido capazes de estabelecer uma determinaçãomais fina entre os resultados dos testes dascrianças de diferentes grupos etários.

No entanto, até estas deficiências nos

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ajudarão a estabelecer o itinerário dasinvestigações futuras. O presente estudo não émais do que um primeiro e muito modesto passona exploração de uma nova área da psicologia dopensamento infantil que é muito plena depromessas.

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7. Pensamento e linguagemEsqueci a palavra que pretendia

dizer e o meu pensamento,desencarnado, volta ao reino das sombras

(de um poema de Mandelstham)

IComeçamos o nosso estudo com uma

tentativa de pôr a nu a relação existente entre opensamento e a linguagem nos estádios iniciaisdo desenvolvimento filogenético e ontogenético.Não encontramos nenhuma interdependênciaespecífica entre as raízes genéticas dopensamento e da palavra. Tornou-se patente quea relação interna que buscávamos não era umrequisito prévio do desenvolvimento histórico daconsciência humana, antes era um seu produto.

Nos animais, mesmo naqueles antropóidescuja fala é foneticamente como a fala humana ecujo intelecto se aparenta com o do homem, alinguagem e o pensamento não se encontraminterrelacionados. É indubitável que, nodesenvolvimento da criança, existe também umperíodo pré-linguístico do pensamento e umperíodo pré-intelectual a fala: o pensamento e apalavra não se encontram relacionados por umarelação primária. No decurso da evolução dopensamento e da fala gera-se uma conexão entreum e outra que se modifica e desenvolve.

Seria errado no entanto encarar opensamento e a fala como dois processos nãorelacionados entre si, seja como dois processos

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paralelos, seja como dois processos que seentrecruzassem em certos momentos e seinfluenciassem mutuamente duma formamecânica.

A ausência de uma relação primária nãoquer dizer que a conexão entre eles só possaformar-se de uma forma mecânica.

A futilidade da maior parte dasinvestigações primitivas devia-se em grandeparte ao fato de se pressupor que o pensamentoe a palavra eram elementos independentes eisolados e que o pensamento verbal era fruto dasua união externa.

O método de análise baseado nestaconcepção estava votado ao fracasso. Buscavaexplicar as propriedades do pensamento verbalcindindo-o nos elementos que o compunham —a palavra e o pensamento — nenhum dos quaistomado em separado possuiria as propriedadesdo todo.

Este método não é uma verdadeira análiseque nos seja útil para resolver problemasconcretos, antes conduz à generalização.

Comparamo-lo à análise da água emhidrogênio e oxigênio — que só pode darresultado em descobertas aplicáveis a toda aágua existente na natureza, desde o OceanoPacífico até uma gota de água da chuva.

Semelhantemente, a afirmação segundo aqual o pensamento verbal se compõe deprocessos intelectuais e funções de discursopropriamente ditas aplica-se a todo opensamento verbal e não explica nenhum dos

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problemas específicos com que se defronta oestudioso do pensamento verbal.

Tentamos uma nova abordagem doproblema e substituímos a análise em elementospela análise em unidades, cada uma das quaisretém, sob uma forma simples, todas aspropriedades do todo. Encontramos estaunidade do pensamento verbal no significado dapalavra.

O significado duma palavra representauma amálgama tão estreita de pensamento elinguagem que é difícil dizer se se trata de umfenômeno de pensamento, ou se se trata de umfenômeno de linguagem. Uma palavra semsignificado é um som vazio; portanto, osignificado é um critério da palavra e um seucomponente indispensável. Pareceria portantoque poderia ser encarado como um fenômenolingüístico. Mas do ponto de vista da psicologia,o significado de cada palavra é umageneralização, um conceito. E, como asgeneralizações e os conceitos são inegavelmenteatos de pensamento, podemos encarar osignificado como um fenômeno do pensar. Noentanto, daqui não se segue que o pensamentopertença a duas esferas diferentes da vidapsíquica.

O significado das palavras só é umfenômeno de pensamento na medida em que éencarnado pela fala e só é um fenômenolingüístico na medida em que se encontra ligadocom o pensamento e por este é iluminado. É umfenômeno do pensamento verbal ou da falasignificante — uma união do pensamento e da

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linguagem.As nossas investigações experimentais

confirmam integralmente esta tese fundamental.Não só provaram que o estudo concreto dagênese do pensamento verbal se tornou possívelpelo estudo do significado das palavras comounidade analítica, como levaram também aoutra tese que consideramos ser o maisimportante resultado do nosso estudo e quedecorre imediatamente da primeira: a tesesegundo a qual o significado das palavras evolui.Este ponto de vista deve substituir o postuladoda imutabilidade dos significados das palavras.

Do ponto de vista das velhas escolas dapsicologia, a relação entre a palavra e osignificado é uma relação associativaestabelecida através da repetição da percepçãosimultânea de um certo som e de um certoobjeto. Uma palavra solicita no espírito o seuconteúdo, tal como o sobretudo dum amigo nosrecorda esse mesmo amigo ou uma casa, os seushabitantes. A associação entre a palavra e o seusignificado pode desenvolver-se mais forte oumais debilmente, pode ser enriquecida pelarelacionarão com outros objetos de tiposemelhante, difundir-se por sobre um vastodomínio, Ou tornar-se mais limitada, isto é,pode sofrer transformações quantitativas eexternas, mas não pode modificar a suanatureza psicológica. Para que tal acontecesseteria que deixar de ser uma associação.

Desse ponto de vista, qualquer evoluçãodo significado de uma palavra é impossível einexplicável — conseqüência esta que constitui

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um handicap tanto para os lingüistas como paraos psicólogos. A partir da altura em que secomprometeu com a teoria da associação, asemântica persistiu em considerar o significadoda palavra como uma associação entre o som e oconteúdo. Todas as palavras, desde as maisconcretas às mais abstratas, surgiam comosendo formadas da mesma maneira,relativamente ao seu significado, parecendo nãoconter nenhum elemento característico da falaenquanto tal; uma palavra fazia-nos recordar oseu significado tal como um objeto nosrecordava outro objeto.

Pouco surpreenderá portanto que asemântica nem sequer pusesse a questão maisampla da evolução do significado das palavras.Reduzia-se essa evolução às variações nasconexões associativas entre as palavras isoladase os objetos isolados: uma palavra poderia emdeterminada altura denotar um objeto passandodepois a associar-se com outro, como umsobretudo que, por mudar de proprietário, nosrecordasse primeiro uma pessoa e, logo depois,outra.

A lingüística não compreendia que naevolução histórica da linguagem, a própriaestrutura do significado e a sua naturezapsicológica se transformam também.

Das generalizações primitivas, opensamento verbal vai-se elevando ao nível deconceitos mais abstratos. Não é apenas oconteúdo de uma palavra que se altera, mas aforma como a realidade é generalizada e refletidanuma palavra.

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A teoria associativa também não seadequa à explicação do desenvolvimento dossignificados das palavras na infância. Tambémneste aspecto, só pode explicar as alteraçõesexternas, puramente quantitativas, das conexõesque ligam a palavra e o seu significado, o seufortalecimento e o seu enriquecimento, mas nãoas transformações psicológicas e estruturaisfundamentais que podem ocorrer e ocorrem nodesenvolvimento da linguagem infantil.

Infelizmente, o fato de o associacionismoem geral ter sido abandonado durante um certolapso de tempo não parece ter afetado ainterpretação da palavra e do significado. Aescola de Wuerzburg, cujo propósito principalera o de provar a impossibilidade de reduzir opensamento a um simples jogo de associações edemonstrar a existência de leis específicas queregem a corrente de pensamento, não reviu ateoria associativa da palavra e do significado,nem reconheceu sequer a necessidade de umatal revisão. Esta escola emancipou o pensamentodos grilhões da sensação e da imagem e das leisda associação e transformou-o num atopuramente espiritual. Mas ao fazê-lo, regrediupara os conceitos pré-científicos de SantoAgostinho e Descartes, acabando por chegar aum idealismo subjetivo extremo. A psicologia dopensamento encaminhava-se para as idéias dePlatão, e, ao mesmo tempo, deixava-se alinguagem à mercê da associação. Mesmo após aobra realizada pela escola de Wuerzburg,continuou a considerar-se que a conexão entre apalavra e o seu significado era uma simples

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relação associativa. Encarava-se a palavra comocorrelativo externo do pensamento, como seusimples adereço, que não tinha qualquerinfluência na sua vida interna. O pensamento ea palavra nunca estiveram tão separados comodurante o período de Wuerzburg. Na realidade, adestruição da teoria associativa no domínio dopensamento incrementou o seu poderio nodomínio da linguagem.

A obra de outros psicólogos veio reforçarainda mais esta tendência. Selz continuou ainvestigar o pensamento sem tomar emconsideração a relação entre este e a linguageme chegou à conclusão de que o pensamentoprodutivo do homem e do chimpanzé eram denatureza idêntica a tal ponto este investigadorignorava a influência das palavras sobre opensamento.

Até Ach, que levou a cabo um estudoespecial do significado das palavras e que tentousuperar o associativismo na sua teoria dosconceitos se limitou a pressupor a existência de“tendências determinantes” que entrariam emação conjuntamente com as associações naformação dos conceitos. Por conseguinte, asconclusões a que chegou não vieram alterar aanterior compreensão do significado daspalavras. Ao identificar o conceito com osignificado, impedia que se explicasse osdesenvolvimentos e as transformações dosconceitos. Uma vez estabelecido, o significado deuma palavra ficava estabelecido para sempre; oseu desenvolvimento encontrava-se completo.Estes eram os mesmos princípios que os

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psicólogos atacados por Ach defendiam. Paraambos os lados, o ponto de partida da evoluçãodos conceitos constituía também o seu termo; sóhavia desacordo no tocante à forma como seiniciava o desenvolvimento da formação dapalavra.

Na psicologia gestaltista (Psicologia daForma), a situação não era muito diferente. Estaescola era ainda mais consistente do que asoutras na tentativa de superar o princípio geraldo associativismo. Não satisfeita com umasolução parcial do problema, tentou libertar opensamento e a fala da lei da associação ecolocá-los a ambos sob o domínio da lei dagênese de estruturas. Surpreendentemente, nemesta escola — que é a mais progressiva de todasas modernas escolas de psicologia — realizouquaisquer progressos na teoria da linguagem edo pensamento.

Por um lado, manteve a separaçãocompleta entre estas duas junções. A luz dateoria gestaltista, a relação entre o pensamento ea palavra aparece como uma simples analogia,uma redução de ambos a um denominadorestrutural comum. Encara-se a formação dasprimeiras palavras com significado por parte dascrianças como algo semelhante às operaçõesintelectuais dos chimpanzés nas experiências deKoehler. As palavras entram na estrutura dascoisas e adquirem um certo significadofuncional, duma forma bastante semelhanteàquela como, para o chimpanzé, o pau se tornaparte da estrutura de obtenção do fruto eadquire o significado funcional de instrumento.

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Já não se encara a conexão entre palavra esignificado como uma questão de simplesassociação, mas como uma questão deestrutura. Parece ser um passo em frente, masse examinarmos mais de perto a novaabordagem, é fácil ver que o passo em frente éum passo em falso, ilusório, e que não saímosainda do mesmo sítio. Aplica-se o princípio daestrutura a todas as relações entre as coisas, damesma forma avassaladora como anteriormentese aplicava o princípio da associação. Continuaa ser impossível explicar as relações específicasentre palavra e significado, pois à partidacontinua a considerar-se que em princípio sãoidênticas a todas as outras relações entre coisas.Os gatos continuam a ser tão pardos na poeirada psicologia gestaltista como nos primitivosnevoeiros do associacionismo universal.

Enquanto Ach procurava superar oassocionismo com a “tendência determinante”, ateoria psicológica gestaltista combateu-o com oprincípio da estrutura — mantendo no entantoos dois erros fundamentais da velha teoria: opressuposto da identidade de natureza de todasas conexões e o pressuposto de que ossignificados das palavras não se alteram. Tantoa antiga como a nova teoria psicológica partemambas da hipótese de que a evolução dosignificado de uma palavra termina mal estaemerge. As novas tendências da psicologiaproduziram progressos em todos os ramos,exceto no estudo do pensamento e da palavra.Neste domínio, os novos princípios parecem-secom os antigos como dois gêmeos.

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Se a psicologia gestaltista estagnou nocampo da linguagem, deu um grande passo àretaguarda no campo do pensamento. A escolade Wuerzburg, pelo menos, considerava que opensamento tinha leis próprias, ao passo que aescola gestaltista nega a existência de tais leis.Reduzindo a um denominador estrutural comumas percepções dos animais domésticos, asoperações mentais de um chimpanzé, asprimeiras palavras significativas das crianças e opensamento conceptual dos adultos, obliteratoda e qualquer distinção entre a percepção maiselementar e as mais elevadas formas depensamento.

Esta recensão crítica pode ser resumidacomo se segue: todas as escolas e tendênciaspsicológicas descuram um ponto fundamental:todo e qualquer pensamento é umageneralização. Assim, estudam a palavra e osignificado sem fazerem qualquer referência àevolução. Enquanto estas duas condiçõespersistirem em tendências sucessivas nastendências posteriores, estas muito poucarelevância terão para o tratamento do problema.

IIA descoberta de que o significado das

palavras evolui tira o estudo do pensamento e dalinguagem de um beco sem saída. Ossignificados das palavras passam a serformações dinâmicas e não já estatísticas,transformam-se à medida que as crianças sedesenvolvem e alteram-se também com as váriasformas como o pensamento funciona.

Se os significados das palavras se alteram

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na sua natureza interna, então a relação entre opensamento e a palavra também se modifica.Para compreender a dinâmica dessa relação,teremos que complementar a abordagemgenética do nosso estudo principal com a análisefuncional e examinar o papel do significado dapalavra no processo de pensamento.

Consideremos o processo seguido pelopensamento verbal desde o primitivo e difusosurgir dum pensamento até à sua formulaçãoNeste momento pretendemos mostrar não aforma como os significados evoluem ao longo dedilatados intervalos de tempo, mas o modo comofuncionam no processo vivo do pensamentoverbal. A partir dessa análise funcional,poderemos mostrar também que, em cada fasedo desenvolvimento do significado das palavrashá uma relação particular entre o pensamento ea linguagem. Como a forma mais fácil deresolver os problemas funcionais consiste emexaminar a forma mais elevada de determinadaatividade poremos por um momento de parte oproblema do desenvolvimento e consideraremosas relações entre o pensamento e a palavra nocérebro que já atingiu a maturidade.

A idéia diretriz da discussão que se seguepode ser reduzida à seguinte fórmula: a relaçãoentre o pensamento e a palavra não é uma coisamas um processo, um movimento contínuo devaivém entre a palavra e o pensamento; nesseprocesso a relação entre o pensamento e apalavra sofre alterações que, também elas,podem ser consideradas como umdesenvolvimento no sentido funcional. As

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palavras não se limitam a exprimir opensamento: é por elas que este acede àexistência. Todos os pensamentos tendem arelacionar determinada coisa com outra, todosos pensamentos tendem a estabelecer umarelação entre coisas, todos os pensamentos semovem, amadurecem, se desenvolvem,preenchem uma função, resolvem um problema.Esta corrente do pensamento flui como ummovimento interno através de uma série deplanos. Qualquer análise da interação entre opensamento e a palavra terá de principiar porinvestigar os diferentes planos e fases que umpensamento percorre antes de se encarnar naspalavras.

A primeira coisa que qualquer estudorevela é a necessidade de estabelecer a distinçãoentre dois planos de discurso. Ambos osaspectos da linguagem, tanto o interno,significante, semântico, como o aspecto externo,fonético, têm as suas leis de movimentoespecíficas, embora formem uma verdadeiraunidade, mas que é uma unidade complexa enão homogênea. Alguns fatos dodesenvolvimento lingüístico da criança indicama existência de movimentos independentes nasesferas fonética e semântica. Apontaremos doisdos mais importantes.

Quando começa a dominar a fala exterior,a criança principia por uma palavra, passandodepois a ligar dois ou três termos entre si; umpouco depois, progride das frases simples paraoutras mais complicadas, chegando por fim aodiscurso coerente composto por uma série de

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frases dessas; por outras palavras, progride daparte para o todo. Relativamente ao significadoem contrapartida, a primeira palavra da criançaé uma frase completa. Semanticamente, acriança parte do todo, de um complexosignificante e só mais tarde começa a dominaras unidades semânticas separadas, ossignificados das palavras e a subdividir o seupensamento primitivamente indiferenciadonessas unidades. O seu aspecto externo e oaspecto semântico da linguagem desenvolvem-seem direções opostas — o primeiro do particularpara o geral, da palavra para a frase e o outro dotodo para o particular, da frase para a palavra.

Isto, em si, basta para mostrar como éimportante distinguir o aspecto fonético dodiscurso do seu aspecto semântico. Como semovem em sentidos opostos, o seudesenvolvimento não é coincidente, mas isso nãoquer dizer que sejam independentes um dooutro. Pelo contrário, a sua diferença é oprimeiro estádio de uma estreita união.

De fato, o nosso exemplo revela a suaconexão interna tão claramente como a suadiferença. O pensamento das crianças,precisamente porque surge como um conjuntoamorfo e indistinto, tem que encontrar a suaexpressão numa palavra isolada; à medida que oseu pensamento se vai tornando maisdiferenciado, a criança vai perdendo apossibilidade de se exprimir por meio depalavras isoladas e tem que construir um todocompósito. Inversamente, a progressão dalinguagem em direção ao todo diferenciado

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numa frase, ajuda o pensamento da criança aprogredir de conjuntos homogêneos para partesbem definidas. O pensamento e a palavra nãosão talhados no mesmo modelo: em certosentido há mais diferenças do que semelhançasentre eles. A estrutura da linguagem não selimita a refletir como num espelho a estruturado pensamento; é por isso que não se pode vestiro pensamento com palavras, como se de umornamento se tratasse. O pensamento sofremuitas alterações ao transformar-se em fala.Não se limita a encontrar expressão na fala;encontra nela a sua realidade e a sua forma. Osprocessos evolutivos da fonética e da semânticasão essencialmente idênticos, precisamentedevido a seguirem sentidos inversos.

O segundo fato, que é tão importantecomo o primeiro, surge num período dedesenvolvimento posterior. Piaget demonstrouque a criança utiliza orações subordinadas emque figuram porque, embora, etc., muito antesde compreender as estruturas significantescorrespondentes a estas formas semânticas. Agramática precede a lógica. Também aqui, talcomo nos nossos exemplos anteriores, adiscrepância não exclui a unidade, antes lhe énecessária.

Nos adultos, a divergência entre o aspectosemântico e o aspecto fonético do discurso éainda mais flagrante. A lingüística moderna quese guia pela psicologia, encontra-se familiarizadacom este fenômeno, especialmente no que tocaao sujeito e ao predicado gramaticais epsicológicos. Por exemplo, na frase “o relógio

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caiu”, a ênfase e o significado podem variar comas situações. Suponhamos que noto que orelógio parou e pergunto, porque terá istoacontecido. A resposta é: “o relógio caiu”. Osujeito gramatical e psicológico coincidem: “orelógio” é a primeira idéia que existe na minhaconsciência; “caiu” é o que se diz do relógio. Masse ouvir um barulho no quarto ao lado e indagaro que aconteceu, e receber a mesma resposta, osujeito e o predicado psicológicos inverter-se-ão.Eu sabia que alguma coisa tinha caído — eradisso que estávamos a falar. “O relógio” vemcompletar a idéia. Poder-se-ia trocar a frase poresta: “o que caiu foi o relógio”. Então o sujeitogramatical e o sujeito psicológico coincidiriam.No prólogo da sua peça O Duque Ernst vonSchwaben, Uhland diz: “cenas sinistrasdesenrolar-se-ão perante os vossos olhares”.Psicologicamente, o sujeito é “desenrolar-se-ão”:o espectador sabe que vai ver o desenrolar decertos acontecimentos. A idéia adicional, opredicado, é “cenas sinistras”. Uhland queriadizer: “Aquilo que se desenrolará perante osvossos olhares é uma tragédia”. Qualquer partede uma frase pode tornar-se o sujeitopsicológico, a parte portadora da ênfasefundamental; por outro lado, por detrás de umaestrutura gramatical podem ocultar-sesignificados totalmente diferentes. O acordoentre o sujeito gramatical e o sujeito psicológiconão é tão predominante como tendemos apresumir -- antes pelo contrário, é um requisitoraramente satisfeito. Não são só o sujeito e opredicado que têm os seus duplos psicológicos,pois também o gênero, o número, o caso, o

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tempo, o modo, o grau gramaticais o possuem.Uma exclamação espontânea, que do ponto devista gramatical é errada, pode ter encanto evalor estético. A correção absoluta só seconsegue para lá da linguagem natural, namatemática. A nossa linguagem quotidianaoscila constantemente entre os ideais daharmonia matemática e os da harmoniaimaginativa.

Vamos ilustrar a interdependência dosaspectos semânticos e gramaticais da linguagemcitando dois exemplos que nos mostram que asvariações da estrutura formal podem arrastarconsigo alterações do significado de grandealcance.

Na tradução que fez da fábula “La Cigaleet la Fourmi” (vi) de La Fontaine, Krylovsubstituiu a cigarra de La Fontaine por umalibelinha. Em francês, cigarra é uma palavrafeminina, sendo portanto, adequada parasimbolizar uma atitude leviana e despreocupada.A nuance perder-se-ia numa tradução literal,pois cigarra em russo, é masculino, Ao decidir-sepor libelinha, que em russo é feminino, Krylovmenosprezou a tradução literal em favor daforma gramatical necessária para dar opensamento de La Fontaine (vii)

Tjutchev fez o mesmo na sua tradução dopoema de Heine sobre um abeto e uma palmeira.Em alemão, abeto é uma palavra masculina epalmeira é uma palavra feminina, e o poemasugere o amor de um homem por uma mulher,mas em russo ambas árvores são femininas.Para manter a implicação, Tjutchev substituiu o

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abeto por um cedro, masculino. Lermontov, nasua tradução mais literal do mesmo poema,destituiu-o destes matizes poéticos e deu-lhe umsignificado essencialmente diferente, maisabstrato e mais generalizado. Um pormenorgramatical pode, em certas circunstâncias,modificar todo o propósito do que se diz.

Por detrás das palavras, há a gramáticaindependente do pensamento, a sintaxe dossignificados das palavras. A mais simplesexclamação, não reflete uma correspondênciarígida e constante entre som e significado, é, narealidade, muito pelo contrário, um processo. Asexpressões verbais não podem nascercompletamente formadas, têm que sedesenvolver gradualmente. Este complexoprocesso de transição do significado para o somtem também que se desenvolver e aperfeiçoar. Acriança tem que aprender a distinguir entre asemântica e a fonética e a compreender anatureza da diferença entre uma e outra coisa. Aprincípio, começa por utilizar o pensamento e asformas verbais e os significados sem terconsciência deles como coisas distintas. Para acriança, a palavra é parte integrante do objetoque denota. Tal concepção parece sercaracterística da consciência lingüísticaprimitiva. Todos conhecemos a velha história dorústico que afirmava que não lhe surpreendiaque os sábios, com todos os instrumentos quepossuíam, pudessem calcular o tamanho dasestrelas e as suas trajetórias — o que lhe faziaespécie era como eles conseguiam saber o nomedas estrelas. Algumas experiências simples

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mostram que as crianças em idade pré-escolar“explicam” o nome dos objetos pelos seusatributos. Segundo elas, um animal chama-se“vaca” porque tem cornos, bezerro, quando osseus cornos ainda são pequenos, cão”, porque épequeno e não tem cornos; chama-se “carro” adeterminado objeto porque não é animal.Quando se lhes pergunta se poderia trocar osnomes das coisas, chamando por exemplo,“tinta” a uma vaca e “vaca” à tinta, respondemque não, “porque a tinta é para escrever e a vacadá leite”. Trocar os nomes significaria trocar ascaracterísticas específicas de cada objeto, tãoinseparável é a conexão de ambos no espírito dacriança. Numa experiência disse-se às criançasque em determinado jogo se chamaria “vaca” aum cão. Eis a seguir um exemplo típico deperguntas e respostas que ocorreram:

— Mas as vacas têm cornos?— Têm.— Mas então não te lembras que os cães é

que são vacas? Ora vê bem: os cães têm cornos?— Pois claro. Se são vacas, se lhes

chamamos vacas, têm que ter cornos. Têm queser uma espécie de vacas com corninhos.

Podemos ver pois como, para as crianças,é difícil separar o nome de um objeto dos seusatributos, que aderem ao nome mesmo quandoeste é transferido, como as coisas possuídasseguindo o seu dono.

A fusão dos dois planos da imagem, oplano semântico e o plano vocal, começa adesarticular-se à medida que a criança cresce e

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a distância entre um e outro vai aumentandogradualmente. Cada estádio no desenvolvimentodas palavras implica uma inter-relaçãoespecífica entre os dois planos. A capacidade dacriança para comunicar através da linguagemencontra-se diretamente relacionada com adiferenciação dos significados das palavras noseu discurso e na sua consciência.

Para compreendermos isto teremos querecordar uma característica fundamental daestrutura dos significados das palavras. Naestrutura semântica de uma palavraestabelecemos a distinção entre referente esignificado: correspondentemente, distinguimoso nominativo de uma palavra da sua funçãosignificante. Quando comparamos estas relaçõesfuncionais e estruturais nos diversos estádios dedesenvolvimento, isto é, no estádio primitivo, noestádio intermédio e no estádio maisdesenvolvido, deparamos com esta regularidadegenética: a princípio só existe a funçãonominativa; e, semanticamente, só existe areferência objetiva; a independência entre asignificação e a nomeação, assim como aindependência entre o significado e a referênciasó surgem posteriormente e desenvolvem-sesegundo as trajetórias que tentamos detectar edescrever.

Só quando este desenvolvimento seencontra completo é que a criança se tornatotalmente capaz de formular o seu pensamentoe compreender o pensamento dos outros. Atéessa altura, a utilização que dá às palavrascoincide com a que lhes dão os adultos na sua

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referência objetiva, mas não no seu significado.

IIITemos que levar a nossa investigação a

planos mais profundos e explorar o plano dodiscurso interno que se encontra por detrás doplano semântico. Examinaremos aqui algunsdos dados que obtivemos em experiênciasespecialmente dedicadas ao assunto. Nãopoderemos compreender integralmente a relaçãoentre o pensamento e a palavra em toda a suacomplexidade se não tivermos uma compreensãoclara da natureza psicológica do discursointerno. No entanto, de todos os problemasrelacionados com o pensamento e a linguagem,este é talvez o mais complicado, sobrecarregadocomo se encontra de toda a espécie de malentendidos terminológicos e doutro gênero.

Tem-se aplicado a expressão discursointerior ou endofasia a vários fenômenos, eautores há que discutem entre si acerca decoisas diferentes e têm-se travado muitasdiscussões entre autores que chamam o mesmonome a coisas distintas. Originalmente, pareceque se chamava discurso interior à memóriaverbal: exemplo disto, seria a recitaçãosilenciosa de um poema sabido de cor. Nessecaso, o discurso interno difere do externo apenasda mesma maneira que a imagem ou idéia deum objeto difere do objeto real. Era neste sentidoque entendiam o discurso interior os autoresfranceses que tentaram descobrir como aspalavras são reproduzidas pela memória — comoimagens auditivas, visuais, motoras ousintéticas. Veremos que a memória das palavras,

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a memória verbal é realmente uma dascomponentes, um dos elementos constituintesdo discurso interior, mas não o único.

Numa segunda interpretação, vê-se odiscurso interior como um discurso externotruncado — como “linguagem sem som”(Mueller) ou “discurso sub-vocal” (Watson).Bekhterev definiu-o como um reflexo do discursoinibido da sua parte motora. Tal explicação nãoé suficiente. A “locução” silenciosa das palavrasnão é equivalente ao processo integral dodiscurso interior.

A terceira definição, pelo contrário édemasiado ampla. Para Goldstein (12)(13)(12,13), a expressão recobre tudo que precede o atomotor da fala, incluindo os “motivos do discurso”de Wundt e a indefinível experiência discursivanão motora, não sensível — isto é, todo oaspecto interior do discurso, de qualqueratividade discursiva. É difícil aceitar aidentificação do discurso interior com umaexperiência interior não articulada, na qual osplanos estruturais separáveis e identificáveisdesapareceriam sem deixar traços. Estaexperiência central é comum a toda e qualqueratividade lingüistica e só por esta razão, ainterpretação de Goldstein não é adequada aessa função específica, única e exclusiva quemerece o nome de discurso interior.

Levada até ás suas últimas conseqüênciaslógicas, o ponto de vista de Goldstein conduzir-nos-ia à tese segundo a qual o discurso interiornão é de maneira nenhuma linguagem, masantes uma atividade intelectual e volitiva-afetiva,

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pois engloba os motivos do discurso e opensamento que se exprime por palavras.

Para obtermos uma descrição adequadado discurso interior, temos de partir dopressuposto de que se trata de uma formaçãoespecífica que tem as suas leis próprias emantém relações complexas com as outrasformas de atividade lingüística. Antes depodermos estudar a relação entre o discursointerior e o pensamento, por um lado, e alinguagem, por outro lado, teremos quedeterminar as características e as funções quelhe são próprias.

O discurso interior é um discurso para opróprio locutor; o discurso externo é umdiscurso para os outros. Seria na verdadesurpreendente que uma diferença defuncionamento tão radical não afetasse asestruturas de ambos os tipos de discurso. Aausência de vocalização, por si só, não é mais doque uma conseqüência da natureza específica dodiscurso interior e não é, nem um antecedentedo discurso exterior, nem a sua reprodução namemória, antes é em certo sentido, o contráriodo discurso exterior. Este último consiste emverter os pensamentos em palavras, consiste nasua materialização e na sua objetivização. Com odiscurso interior, pelo contrário, o processo éinvertido: o discurso volta-se para dentro, para opensamento. Por conseqüência as suasestruturas têm que ser diferentes uma da outra.

O domínio do discurso interior é um dosmais difíceis de investigar. Manteve-sepraticamente inacessível até se terem

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encontrado formas de aplicar os métodosgenéticos de experimentação. Piaget foi oprimeiro investigador a preocupar-se com odiscurso egocêntrico das crianças e a ver a suaimportância teórica, mas continuou cego àcaracterística mais importante do discursoegocêntrico — a sua relação genética com odiscurso interior — e isto veio distorcer a suainterpretação das suas funções e estrutura.Fizemos dessa relação problema central donosso estudo, e isso permitiu-nos investigar anatureza do discurso interior com invulgarexaustão. Um certo número de observações econsiderações levou-nos a concluir que odiscurso egocêntrico é um estádio dedesenvolvimento que precede o discurso interior.Ambos preenchem funções intelectuais; as suasestruturas são semelhantes; o discursoegocêntrico desaparece por alturas da idadeescolar, quando o discurso interior começa adesenvolver-se. De tudo isto inferimos que setransformam um no outro.

Se esta transformação se dá, então odiscurso egocêntrico fornece-nos a chave paracompreendermos o discurso interior. Uma dasvantagens que advêm de se utilizar o discursoegocêntrico para abordar o discurso interior é ade que aquele é acessível à observação e àexperimentação. É ainda um discursovocalizado, audível, isto é, um discurso externono seu modo de expressão, mas é ao mesmotempo um discurso interno na sua função e nasua estrutura. Para estudarmos um processointerno temos que exteriorizá-lo

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experimentalmente, relacionando-o com outraqualquer atividade; só então será possível aanálise funcional objetiva. Na realidade, odiscurso egocêntrico é uma experiência naturaldeste tipo.

Este método tem ainda uma outra grandevantagem: como o discurso egocêntrico pode serestudado no momento em que algumas das suascaracterísticas se estão desvanecendo enquantooutras novas se vão formando, estamos emcondições de avaliar que traços são essenciaispara o discurso interior e que traços são apenastemporários, determinando assim o objetivodeste movimento que progride do discursoegocêntrico para o discurso interior — isto é, anatureza do discurso interior.

.Antes de passarmos aos resultadosobtidos por este método, examinaremosrapidamente a natureza do discurso egocêntrico,sublinhando as diferenças entre o nosso métodoe o de Piaget. Piaget defende que o discursoegocêntrico da criança é uma expressão diretado egocentrismo do seu pensamento, o qual, porseu turno, é um compromisso entre o autismoprimário do seu pensamento e a sua socializaçãogradual. À medida que a criança cresce, oautismo definha e a socialização desenvolve-se,levando a um desvanecimento do egocentrismono seu pensamento e no seu discurso.

Segundo a concepção de Piaget, a criança,pelo seu discurso egocêntrico, não se adapta aopensamento dos adultos. O seu pensamentomantém-se integralmente egocêntrico; isto tornaa sua conversa totalmente incompreensível para

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os outros. O discurso egocêntrico não temqualquer função no pensamento ou na atividaderealística da criança — limita-se a acompanhá-los. E, como é uma expressão do pensamentoegocêntrico da criança, desaparecesimultaneamente com o seu egocentrismo. Doseu auge de desenvolvimento no começo dodesenvolvimento infantil, o discurso egocêntricocai a zero no limiar da idade escolar. A suahistória caracteriza-se mais pela involução doque pela evolução. Não tem futuro.

Na nossa concepção, o discursoegocêntrico é um fenômeno de transição entre ofuncionamento inter-físico e o funcionamentointra-físico, quer dizer, da atividade social ecoletiva da criança para a sua atividade maisindividualizada — modelo de desenvolvimentoeste que é comum a todas as funçõespsicológicas mais elevadas.

O discurso de si para si tem origem nadiferenciação do discurso para os outros. Namedida em que a trajetória principal dodesenvolvimento psicológico da criança é umatrajetória de progressiva individualização, estatendência reflete-se na função e na estrutura doseu discurso.

Os nossos estudos experimentais indicamque a função do discurso egocêntrico é a mesmada do discurso interior: não se limita aacompanhar a atividade da criança: está aoserviço da orientação mental, da compreensãoconsciente; ajuda-a a vencer as dificuldades; édiscurso de si para si, que se encontra íntima eutilitariamente relacionada com o pensamento

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da criança: o seu destino é muito diferentedaquele que lhe consigna Piaget. O discursoegocêntrico desenvolve-se segundo uma curvaascendente e não segundo uma curvadescendente: segue uma evolução não umainvolução. No termo dessa evolução transforma-se em discurso interior.

A nossa hipótese tem várias vantagenssobre a de Piaget: ela explica a função e odesenvolvimento do discurso interior e, emparticular, o seu súbito incremento, quando acriança se defronta com dificuldades que exigemconsciência e reflexão — fato que as nossasexperiências puseram a nu e que a teoria dePiaget não pode explicar. Mas a maior vantagemda nossa teoria consiste no fato de nosproporcionar uma resposta satisfatória a umasituação paradoxal descrita pelo próprio Piaget.Para Piaget, a diminuição quantitativa dodiscurso egocêntrico à medida que a criança vaicrescendo significa o desaparecimento dessamesma forma de discurso. Se assim fosse, seriade esperar que as suas peculiaridadesestruturais declinassem também: é difícilacreditar que o processo só afetasse a suaquantidade e não a sua estrutura interna. Odiscurso da criança torna-se infinitamentemenos egocêntrico entre os três e os sete anos.Se as caraterísticas do discurso egocêntrico queo tornam incompreensível para os outros têmrealmente as suas raízes no egocentrismo,deveriam tornar-se menos patentes à medidaque esta forma de discurso se vai tornandomenos freqüente; o discurso egocêntrico deveria

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ir-se assemelhando ao discurso social, tornando-se progressivamente mais inteligível. Mas o que éque acontece? Será a fala de uma criança de trêsanos mais difícil de seguir do que a de umacriança de sete anos? Pelas nossas investigaçõeschegamos à conclusão de que os traços dodiscurso egocêntrico, responsáveis pela suaininteligibilidade se encontram no seu ponto dedesenvolvimento mais baixo aos três anos,atingindo o seu maior desenvolvimento aos seteanos. Desenvolve-se em sentido inverso aodiscurso egocêntrico. Enquanto este último vaidiminuindo e atinge uma incidência nula poralturas da idade escolar, as característicasestruturais tornam-se progressivamente mais emais pronunciadas

Este fato lança uma nova luz sobre adiminuição quantitativa do discurso egocêntrico,que é a pedra de toque da teoria de Piaget.

Que significa esta diminuição7 Ascaracterísticas peculiares do discurso de si parasi e a sua diferenciação relativamente aodiscurso exterior aumentam com a idade. Quediminuirá então? Apenas um dos seus aspectos:a vocalização. Quer isto dizer que o discursoegocêntrico como um todo se encontra em viasde desaparecer'? Estamos em crer que tal não sepasse, porque, nesse caso, como poderíamosexplicar o desenvolvimento das característicasfuncionais e estruturais do discursoegocêntrico? Por outro lado, tal desenvolvimentoé perfeitamente compatível com a diminuição davocalização — na verdade, clarifica até o seusignificado. O seu rápido declínio e o rápido

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desenvolvimento das outras características só naaparência são contraditórios.

Para explicarmos isto vamos partir de umfato inegável, experimentalmente demonstrado.As qualidades funcionais e estruturais dodiscurso egocêntrico tornam-se mais marcadas àmedida que a criança se desenvolve. Aos trêsanos a diferença entre o discurso social e odiscurso egocêntrico da criança é nula. Aos seteanos, temos um discurso que pela sua estruturae pela sua função é totalmente diferente dodiscurso social. Deu-se uma diferenciação dosdois discursos. Isto é um fato — e sabe-se bemque os fatos são de difícil refutação.

Uma vez isto aceite, tudo o resto daquidecorre automaticamente. Se as peculiaridadesfuncionais e estruturais do discurso egocêntricoo vão isolando progressivamente do discursoexterior, então o seu aspecto vocal deverádesvanecer-se; e é isto, precisamente, o queacontece entre os três e os sete anos de idade.Com o progressivo isolamento do discurso de sipara si a sua vocalização torna-se desnecessáriae perde significado e, dado que as suaspeculiaridades estruturais se vão desenvolvendo,também impossível. O discurso de si para si nãopode achar expressão no discurso externo.Quanto mais independente e autônomo odiscurso egocêntrico se torna, mais debilmentese desenvolve nas suas manifestações externas.No termo do processo, separa-se integralmentedo discurso para os outros, deixa de servocalizado e parece nessa altura que está amorrer.

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Mas isso é uma ilusão. Interpretar ocoeficiente de profundidade do discursoegocêntrico como um sinal de que este tipo dediscurso está a morrer é como dizer que acriança deixa de contar quando cessa de utilizaros dedos para passar a calcular mentalmente.Na realidade., para lá dos sintomas dedissolução, oculta-se um desenvolvimentoprogressivo, o nascimento de uma nova forma dediscurso.

O declínio da vocalização do discursoegocêntrico é sinal de que a criança se vaiprogressivamente abstraindo do som, e vaiadquirindo uma nova capacidade, a faculdade de“pensar as palavras” em vez de as pronunciar.Tal é o significado positivo do grau deaprofundamento do discurso egocêntrico. Acurva descendente significa uma evolução emdireção do discurso interior.

Podemos ver que todos os fatos conhecidosrelativamente às características funcionais,genéticas e estruturais do discurso egocêntricoapontam para uma e mesma coisa: tal discursoevolui para o discurso interior. A história do seudesenvolvimento só pode ser compreendidacomo um progressivo desabrochar dascaracterísticas do discurso interior.

Estamos em crer que tal fato corrobora anossa hipótese acerca da origem e da naturezado discurso egocêntrico. Para convertermos anossa hipótese numa certeza, temos queidealizar uma experiência suscetível de nosmostrar qual das duas interpretações é acorreta. Quais são os dados de que dispomos

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para esta experiência crítica?Formulemos de novo as teorias sobre as

quais temos de tomar uma decisão. Piaget crêque o discurso egocêntrico é gerado pelainsuficiente socialização do discurso e que só sepode desenvolver de uma maneira: diminuindo eacabando por morrer. O seu ponto culminantefica para trás, no passado. O discurso interior éalgo de novo, importado do exteriorparalelamente à socialização. O seu pontoculminante está por vir. Evolui para o discursointerior.

Para obtermos provas a favor ou contraum ou outro dos dois pontos de vista, temos quecolocar a criança alternadamente em situaçõesexperimentais que encorajem o discurso social eem situações que o desencorajem, observandocomo as alterações afetam o discursoegocêntrico. Consideramos esta experiência umexperimentum crucis pelas seguintes razões.

Se a fala egocêntrica da criança resulta doseu pensamento egocêntrico e da insuficiênciade socialização, então qualquer debilitamentodos elementos sociais no quadro experimental,qualquer fator que aumente o isolamento dacriança relativamente ao grupo conduziránecessariamente a um súbito aumento dodiscurso egocêntrico. Mas se este último resultade uma insuficiente diferenciação entre odiscurso para si próprio e o discurso para osoutros, então as mesmas alterações conduzirãoao seu declínio.

Tomamos como ponto de partida para anossa experiência três observações do próprio

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Piaget: 1) o discurso egocêntrico só surge napresença de outras crianças implicadas namesma atividade, e não quando a criança estásozinha; isto é, num monólogo coletivo. 2) acriança tem a ilusão de que este discursoegocêntrico que não é dirigido para ninguém, écompreendido pelos que a cercam. 3) o discursoegocêntrico tem o caráter de discurso exterior.Não é inaudível nem murmurado. Estascaracterísticas não são com certeza fruto doacaso. Do ponto de vista da própria criança, odiscurso egocêntrico ainda não se diferencia dodiscurso social. Ocorre nas condições objetivas esubjetivas do discurso social e pode serconsiderado como um equivalente deinsuficiente isolamento entre a consciênciaindividual da criança e o todo social.

Na nossa primeira série de experiências(46)(47)(46, 47), tentamos destruir a ilusão dacriança de que era compreendida. Após termosmedido o grau de egocentricidade do discursonuma situação semelhante à das experiências dePiaget, pusemos a criança numa situaçãodiferente e nova: com crianças surdas-mudas oucom crianças que falavam uma línguaestrangeira. O quadro experimental mantinha-seinalterado relativamente a todas as outrascondições. O coeficiente de discurso egocêntricotornou-se nulo na maioria dos casos e nosrestantes, desceu em média para um númeroque era um oitavo do primitivo. Isto prova que ailusão da compreensão não é um simplesepifenômeno do discurso egocêntrico, antes seencontra funcionalmente correlacionado com

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aquele. Os nossos resultados devem parecerparadoxais do ponto de vista das teorias dePiaget: quanto mais débil é o contato entre acriança e o grupo (quer dizer, quanto menos asituação social a força a ajustar os seuspensamentos aos outros e a fazer uso dodiscurso social) mais livremente deverámanifestar-se o egocentrismo do seu discurso edo seu pensamento. Mas, do ponto de vista danossa hipótese, o significado destas descobertasé claro: o discurso egocêntrico, que resulta doinsuficiente grau de diferenciação entre odiscurso para si próprio e do discurso para osoutros, desaparece quando o sentimento de sercompreendido, que é essencial para o discursosocial, se encontra ausente.

Na segunda série de experiências, o fatorvariável era a possibilidade do monólogo coletivo.Após termos medido o coeficiente de discursoegocêntrico de cada criança em situações quepermitiriam o monólogo coletivo, colocamo-lasnuma situação que o tornava impossível — numgrupo de crianças que lhe são estranhas ouentão numa mesa separada num canto da sala;noutros casos deixava-se a criança trabalharcompletamente só, fazendo-se com que o próprioexperimentador abandonasse a sala. Osresultados desta série estão em concordânciacom os primeiros resultados. A impossibilidadedo monólogo coletivo teve por conseqüência umaqueda do coeficiente de egocentricidade e dodiscurso, embora não de forma tão flagrantecomo no primeiro caso — raramente se tornounulo e em média baixou para um sexto do

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número inicial. Os diferentes métodos deimpossibilitar o monólogo coletivo não tiveram amesma eficácia no respeitante à redução docoeficiente de discurso egocêntrico. No entanto,a tendência para a redução desse coeficiente erapatente em todas as variantes da experiência. Aexclusão do fator coletivo não libertoucompletamente o discurso egocêntrico pelocontrário, inibiu-o. A nossa hipótese foi maisuma vez confirmada.

Na terceira série de experiências, o fatovariável era a qualidade vocal do discursoegocêntrico. Do lado de fora da sala onde aexperiência se desenrolava, encontrava-seinstalada uma orquestra que tocava tão alto oufazia-se tanto barulho, que não só todas asoutras vozes, mas também a da própria criançaficavam afogadas numa variante de experiência,proibia-se expressamente à criança falar alto,permitindo-se-lhe apenas que murmurasse.Mais uma vez o coeficiente de discursoegocêntrico baixou, sendo a relação entre o seunúmero e o número primitivo de 5:1. Tambémneste caso os diferentes métodos não tinham amesma eficácia, mas a tendência de baseencontrava-se invariavelmente presente.

O propósito de todas estas séries deexperiências era eliminar as características dodiscurso egocêntrico que se assemelham com odiscurso social. Chegamos à conclusão que tallevava invariavelmente a um abrandamento dodiscurso egocêntrico. É portanto lógicopressupor que o discurso egocêntrico é umaforma que se desenvolve a partir do discurso

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social e que ainda não se encontra separadadesta nas suas manifestações, embora já sejadistinta nas suas funções e estrutura.

A discordância existente entre nós e Piagetno tocante a esta questão tornar-se-á clara como seguinte exemplo: estou sentado na minhasecretária e falo para uma pessoa que seencontra colocada por detrás de mim, não mesendo possível vê-la; se essa pessoa sair da salasem eu dar por ela, continuo a falar, julgandoque ela continua a ouvir-me e a compreender-me. Externamente, estou a falar de mim paramim, mas psicologicamente o meu discursocontinua a ser social. Do ponto de vista de Piagetpassa-se o contrário com a criança: o seudiscurso egocêntrico é um discurso de si para si;apenas tem a aparência de um discurso social,tal como o meu discurso dava a impressão deser egocêntrico. Do nosso ponto de vista, asituação é muito mais complicada:subjetivamente, o discurso egocêntrico dacriança já possui a sua função específica —nessa medida é independente do discurso social;no entanto, a sua independência não é completa,porque não é sentido como um discurso interiore a criança não o distingue do discurso para osoutros. Também objetivamente é diferente dodiscurso social, mas também neste caso tal nãose verifica completamente, pois o discurso sófunciona em situações sociais. Mas tantosubjetiva como objetivamente, o discursoegocêntrico representa uma transição entre odiscurso para os outros e o discurso de si parasi. Já tem a função do discurso interior, mas,

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pela sua expressão, continua a ser semelhanteao discurso social.

A investigação do discurso egocêntricopreparou o terreno para a compreensão dodiscurso interior, que passaremos a analisarseguidamente.

IVAs nossas experiências convenceram-nos

de que se deve encarar o discurso interior, nãocomo um discurso sem som, mas como umafunção discursiva totalmente diferente. O seutraço principal é a sua sintaxe muito particular.Em comparação com o discurso exterior, odiscurso interior parece desconexo e incompleto.

Esta observação não é nova. Todos os queestudaram o discurso interior, mesmo os que oabordaram dum ponto de vista behaviouristanotaram esta característica. O método de análisegenética permite-nos ir além de uma simplesdescrição dessa característica. Aplicamos estemétodo e verificamos que, à medida que odiscurso interior se desenvolve, evidencia umatendência para a forma de abreviação totalmenteespecífica: nomeadamente, a omissão do sujeitode uma frase e de todas as palavras com elerelacionadas, embora preservando o predicado.Esta tendência para a predicação surge emtodas as nossas experiências com talregularidade que somos forçados a admitir quese trata da forma sintática fundamental dodiscurso interior.

Para compreendermos esta tendênciapoderá ser-nos útil recordarmos certas situações

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em que o discurso exterior apresenta umaestrutura semelhante. A predicação pura ocorreno discurso exterior em duas circunstâncias:quando se trata de uma resposta ou quando osujeito da oração já é conhecido de antemão detodos os participantes da conversa. A resposta àpergunta: “Quer uma chávena de chá?” não énunca: “Não, não quero uma chávena de chá”,mas um simples “Não”. Obviamente, talsentença só é possível porque o sujeito já éconhecido de ambas as partes. À pergunta: “Oteu irmão leu este livro?” ninguém responde“Sim, o meu irmão leu este livro”. A resposta éum curto “Leu”, ou “Sim, leu”. Imaginemos agoraque um grupo de pessoas está à espera doautocarro: ninguém dirá, ao ver que o autocarrose aproxima: “O autocarro de que estamos àespera aproxima-se”. O mais provável é a fraseconsistir num abreviado: “Vem aí”, ou qualquerexpressão do gênero, pois o sujeito é evidente,dada a situação. Muito freqüentemente, asfrases abreviadas são causa de confusão. Oouvinte pode relacionar a frase com um sujeitoque lhe ocupa o espírito duma formapredominante e não com um sujeito que oemissor quer significar. Se os pensamentos dasduas pessoas coincidirem, pode-se conseguir umperfeito entendimento pelo uso dos simplespredicados, mas se estiverem a pensar em coisasdiferentes, o mais certo é haver um mal-entendido entre eles.

Nos romances de Tolstoy encontramosexemplos muito bons de condensação dodiscurso exterior e sua redução a predicados:

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tais exemplos freqüentemente incidem sobre apsicologia do conhecimento: “Ninguém ouviuclaramente o que ele disse, mas Kittycompreendeu-o. Compreendeu-o porque o seuespírito estava constantemente a observar assuas necessidades” (Anna Karenina, Parte V,Cap. 18). Poderíamos dizer que os seuspensamentos ao seguirem os pensamentos domoribundo, continham o sujeito a que a suapalavra se referia e que ninguém maiscompreendeu. Mas talvez o exemplo maisflagrante seja a declaração de amor entre Kitty eLevin por intermédio das letras iniciais:

“Há muito que desejava perguntar-lheuma coisa.

— Faça favor.— É o seguinte — disse ele, escrevendo as

iniciais Q r: n p s, q d n m o n?. Estas letrasqueriam dizer: “Quando respondeu: não podeser, queria dizer naquele momento, ou nunca?”Parecia impossível que ela pudesse compreendera complicada frase.

— Compreendo — disse ela.— Que palavra é esta? — perguntou ele,

apontando para o n que significava “nunca”.— A palavra é “nunca” — disse ela, — mas

não é verdade. Levin apagou rapidamente o quetinha escrito, estendeu-lhe o giz e levantou-se.Ela escreveu: N m, n p t r d m.

A sua face resplandeceu: tinhacompreendido. A frase significava: “Naquelemomento, não poderia ter respondido doutramaneira”.

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Kitty escreveu as iniciais seguintes: p q p ee p o q s t p. Isto queria dizer: para quepudesses esquecer e perdoar o que se tinhapassado.

Ele tomou o giz com mãos tensas etrêmulas, quebrou-o e escreveu as iniciais doseguinte: “Não tenho nada a esquecer e aperdoar. Nunca deixei de te amar”.

— Compreendo — sussurrou ela.O rapaz sentou-se e escreveu uma longa

frase. Ela compreendeu-a integralmente sem lheperguntar se estava a ir bem, pegou no giz erespondeu-lhe imediatamente. Ele esteve umlongo intervalo sem compreender o que tinhasido escrito e manteve olhar fixo no dela O seuespírito encontrava-se tonto de felicidade.Sentia-se completamente incapaz de deduzir aspalavras que ela indicava; mas nos olhosradiantes e felizes da rapariga leu tudo o queprecisava de saber. E escreveu três letras. Nãotinha ainda acabado de escrever e já Kitty estavalendo por sob a sua mão e escrevia a resposta:“Sim”. Tinham dito tudo na conversação quetinham mantido: que ela o amava e que diria aopai e à mãe que ele haveria de dirigir-se-lhes namanhã seguinte”. (Anna Karenina, Parte V, Cap.13).

Este exemplo tem um interesse psicológicoextraordinário, porque. tal como todo o episódioentre Kitty e Levin, Tolstoy o extraiu da suaprópria vida. Foi precisamente desta maneiraque Tolstoy comunicou a sua mulher o seu amorpor ela. Estes exemplos mostram claramente quequando os pensamentos dos interlocutores são

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os mesmos, o papel da fala se reduz ao mínimo.Noutro ponto, Tolstoy assinala que entre pessoasque vivem num estreito contato psicológico, talcomunicação por meio do discurso abreviado setorna a regra, e deixa de ser a exceção.

“Agora, Levin habituara-se a exprimir oseu pensamento integralmente sem qualquerproblema sem se preocupar em vertê-lo naspalavras exatas. Ele sabia que a sua mulher, nosmomentos plenos de amor como este,compreenderia o que ele queria dizer, bastando-lhe um indício; e ela compreendia, de fato” (AnnaKarenina, parte VI, Cap. 3).

A tendência para a predicação que surgeno discurso interior quando os doisinterlocutores sabem do que se trata écaracterizada por uma sintaxe simplificada, pelacondensação e por um número de palavrasextremamente reduzido. As confusões plenas decomicidade que se dão quando os pensamentosdas pessoas seguem direções diferentes estão emcompleto contraste com este tipo decompreensão. A confusão a que isto pode levar ébem dada por este pequeno poema:

Dois surdos são julgados por um surdo juiz.“Este roubou-me a minha vaca”, um deles diz,

“Alto aí, essa terra”, o segundo replica,“Sempre foi do meu pai e comigo é que fica!”

E o juiz: “Mas que vergonha, tanta briga!“A culpa não é vossa, é da rapariga”.A conversação de Kitty com Levin e o

julgamento do surdo são casos extremos, querdizer, são na realidade os dois pólos extremos dodiscurso exterior. Um deles exemplifica a

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compreensão mútua que se pode conseguiratravés de um discurso completamenteabreviado quando o sujeito que ocupa os doisespíritos é o mesmo; o outro, exemplifica aincompreensão total, mesmo com um discursocompleto, quando os pensamentos das pessoasvagueiam em diferentes direções. Não sãoapenas os surdos que não conseguemcompreender-se; tal acontece também comquaisquer duas pessoas que dão um significadodiferente à mesma palavra ou que defendempontos de vista diferentes. Como Tolstoy notou,aqueles que estão acostumados ao pensamentosolitário e independente não apreendemfacilmente os pensamentos de outrem e sãomuito parciais relativamente aos seus próprios:mas as pessoas que mantêm um contato estreitoapreendem os significados complicados quetransmitem mutuamente por meio de umacomunicação “lógica e clara” levada a cabo como menor número de palavras.

Depois de termos examinado asabreviaturas no discurso exterior, podemosagora, enriquecidos, debruçar-nos sobre omesmo fenômeno no discurso interior, em quenão é a exceção, mas a regra. Será instrutivocomparar as abreviaturas nos discursos orais,interiores e escritos. A comunicação por escritorepousa sobre o significado formal das palavrase, para transmitir a mesma idéia, exige umaquantidade de palavras muito maior do que acomunicação oral. Dirige-se a um interlocutorausente que raramente tem presente no espíritoo mesmo sujeito que quem escreve. Por

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conseguinte, terá que ser um discursocompletamente desenvolvido; a diferenciaçãosintática atinge a sua máxima expressão eutilizam-se expressões que soariam como nãonaturais na conversação oral. A expressão deGriboedov “ele fala como escreve” refere-se aoefeito estranho provocado pelas construçõeselaboradas quando utilizadas na linguagem nafala do dia a dia.

A natureza multifuncional da linguagem,que tem atraído a atenção aturada doslingüistas, já tinha sido assinalada porHumboldt no tocante à poesia e à prosa — duasformas muito diferentes pela sua função etambém pelos meios que mobilizam. SegundoHumboldt, a poesia é inseparável da música, aopasso que a prosa depende inteiramente dalinguagem e é dominada pelo pensamento.Consequentemente, cada uma destas formastem a sua própria dicção, a sua própriagramática, a sua própria sintaxe. Estaconcepção é de primeiríssima importância,embora nem Humboldt, nem os quedesenvolveram o seu pensamento tenhamcompreendido completamente todas as suasimplicações. Limitavam-se a estabelecer adistinção entre poesia e prosa e, nesta última,entre a troca de idéias e a conversação vulgar,isto é, a simples troca de informações ou acavaqueira convencional. Há outras importantesdistinções funcionais no discurso. Uma delas e adistinção entre monólogo e diálogo. O discursointerior e o discurso escrito representam omonólogo; o discurso oral, na maioria dos casos,

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representa o diálogo.O diálogo pressupõe sempre, da parte dos

interlocutores, um conhecimento do assuntosuficiente para permitir o discurso abreviado e,em certas condições, as frases puramentepredicativas. Também pressupõe que todas aspessoas estão em condições se ver os seusinterlocutores, as suas expressões faciais e osgestos que fazem e de ouvir o tom de voz. Jádiscutimos as abreviaturas e passaremos aconsiderar neste ponto apenas o aspectoauditivo, utilizando um exemplo clássico,extraído do “Diário de um Escritor”, deDostoyevski, para mostrar o quanto a entoaçãoajuda a compreender as diferenciações sutis dossignificados das palavras.

Dostoyevski relata uma conversação debêbados inteiramente constituída por umapalavra irreproduzível por escrito:

Uma noite de domingo aconteceu ter-meabeirado de um grupo de seis jovenstrabalhadores bêbados, tendo ficado a unsquinze passos deles. Subitamente apercebi-mede que conseguiam exprimir todos os seuspensamentos, sentimentos e até todo umencadeado de raciocínios por meio dessa únicapalavra, que, ainda por cima, é extremamentebreve. Um dos jovens disse-a de uma forma rudee enérgica para exprimir o seu completodesacordo com algo de que todos tinham estadoa falar. Outro responde com o mesmo nome,mas num tom e num sentido totalmentediferentes — exprimindo as suas dúvidas sobreos fundamentos da atitude negativa do primeiro.

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Eis senão quando um terceiro se exalta contra oprimeiro, irrompendo abruptamente naconversação e gritando excitadamente a mesmapalavra, mas desta vez como se fora uma pragaou uma obscenidade. Aqui o segundo parceirovoltou a interferir, zangado com o terceiro, oagressor, retendo-o, como querendo dizer: “Tensalguma coisa que te pôr às marradas?Estávamos a discutir os assuntos calmamente elogo vens tu, metes-te, e começas logo apraguejar!” E disse todo este pensamento numasó palavra, a mesma venerável palavra; só quedesta vez também levantou a mão, pondo-asobre o ombro do companheiro. Subitamente,um quarto, o mais novo do grupo, que até àquelemomento se tinha mantido silencioso, comoprovavelmente tivesse encontradorepentinamente uma solução para a dificuldadeinicial donde partira a discussão, levantou amão num transporte de alegria e gritou ...Eureka, será isto? Terei encontrado a solução?Não, nem “Eureka”, nem “encontrei a solução”,repetiu a mesma palavra irreproduzível, umapalavra, uma simples palavra, mas com êxtase,numa explosão de comprazimento —manifestação essa provavelmente um poucoexagerada, porque o sexto membro do grupo, omais velho deles, sujeito de aparência soturna,não gostou da coisa e cortou cerce a alegriainfantil do outro, dirigindo-se-lhe num tom debaixo solene e exortativo e repetindo ... sim,repetindo exatamente a mesma palavra, amesma palavra proibida em presença desenhoras mas que naquele momento queriadizer claramente “Para que são esses berros sem

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sentido?”. Assim, sem terem proferido maisnenhuma palavra, nem uma sequer, repetiramaquela elocução querida seis vezes de enfiada,seis vezes sucessivas e entenderam-seperfeitamente. (Diário de Um Escritor, ano de1873).

A inflexão revela o contexto psicológico emque se deve compreender determinada palavra.Na história de Dostoyevsky, tratava-se de umanegação de desafio, num dos casos, de umadúvida, noutro, de ira, no terceiro. Quando ocontexto é tão claro como neste exemplo, torna-se realmente possível transmitir todos ospensamentos, todos os sentimentos e até todauma cadeia de raciocínios com uma só palavra.

No discurso escrito, como o tom de voz e oconhecimento do assunto não são possíveis,somos obrigados a utilizar muitas palavras e autilizarmos essas palavras mais exatamente. Odiscurso escrito é a forma de discurso maiselaborada. Alguns lingüistas consideram que odiálogo é a forma natural do discurso ora!, aforma em que a linguagem patenteiacompletamente toda a sua natureza, e que omonólogo é em grande medida artificial. Ainvestigação psicológica não nos deixa grandesdúvidas de que, na realidade, o monólogo é aforma mais elevada, mais complexa, a forma quehistoricamente se desenvolve mais tarde. Nomomento presente, contudo, só nos interessaestabelecer qualquer comparação no tocante àtendência para a elipse.

A velocidade do discurso oral não sepropicia a um processo complicado de

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formulação — e não deixa tempo paradeliberações e opções. O diálogo implica aexpressão imediata não pré-determinada. Éconstituído por respostas e réplicas: é umacadeia de reações. Em comparação com isto, omonólogo é uma formação complexa dando aoseu autor tempo e vagar para uma cuidada econsciente elaboração lingüística.

No discurso escrito, ao qual faltam osapoios situacionais, tem que se conseguir acomunicação por recurso exclusivo às palavras esuas combinações. Isto exige que a atividadediscursiva assuma formas complicadas — e daío emprego dos rascunhos. A evolução dosrascunhos para a versão final reproduz o nossoprocesso mental. O planeamento tem umafunção importante no discurso escrito, mesmoquando não nos socorremos dum verdadeirorascunho. Habitualmente, dizemos a nóspróprios o que vamos escrever; trata-se tambémde um rascunho, embora apenas empensamento. Como tentamos mostrar nocapítulo precedente, este rascunho mental é umdiscurso interior. Como o discurso interiorfunciona como rascunho não só para o discursoescrito mas também para o discurso oral,passaremos agora a comparar ambas estasformas com o discurso interior, no tocante àtendência para a elipse e para a predicação.

Esta tendência, que não existe no discursoescrito e só muito raramente surge no discursooral, aparece sempre no discurso interior. Apredicação é a forma usual do discurso interior;psicologicamente, este é exclusivamente

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constituído por predicados. A omissão dossujeitos é uma lei do discurso interior,exatamente na mesma medida em que aobrigatoriedade da presença do sujeito e dopredicado constitui uma lei do discurso escrito.

Este fato experimentalmente estabelecidotem uma explicação: é que os fatores quefacilitam a pura predicação encontram-seinvariável e obrigatoriamente presentes nodiscurso interior. Sabemos aquilo em queestamos a pensar — isto é, sabemos já semprequais são o sujeito e a situação.Psicologicamente, o contato entre osinterlocutores numa conversação podeestabelecer uma percepção mútua que conduz àcompreensão do discurso elíptico. No discursointerior, a percepção “mútua” está semprepresente, numa forma absoluta; porconseguinte, dá-se, regra geral, umacomunicação praticamente sem palavras mesmoquando se trata dos pensamentos maiscomplicados.

A predominância da predicação é umproduto do desenvolvimento. De início, odiscurso egocêntrico é, pela sua estrutura,idêntico ao discurso social, mas no seu processode transformação em discurso interior vai-setornando menos completo e coerente, à medida aque passa a ser regido por uma sintaxetotalmente predicativa. As experiênciasmostram-nos claramente como e porque razão asintaxe predicativa vai começando a dominar Ascrianças falam das coisas que vêem, ouvem oufazem em determinado momento. Em resultado

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disto, tendem a deixar de lado o sujeito e todasas palavras que com ele se relacionam,condensando progressivamente o seu discursoaté que só ficam os predicados. Quanto maisdiferenciada se torna a função específica dodiscurso egocêntrico, mais pronunciadas setornam as suas peculiaridades sintáticas — asimplificação e a predicação. A vocalização correa par com esta modificação. Quandoconversamos de nós para nós precisamos aindade menos palavras do que Kitty e Levin. Odiscurso interior é um discurso quase sempalavras.

Reduzida a sintaxe e o som ao mínimo, osignificado passa a ocupar um lugar mais do quenunca proeminente. O discurso interior operacom a semântica e não com a fonética. Aestrutura semântica específica do discursointerior também contribui para a elipse. Asintaxe dos significados no discurso interior nãoé menos original do que a sua sintaxegramatical. A nossa investigação estabeleceutrês peculiaridades semânticas do discursointerior.

A primeira, que é essencial, é apreponderância do sentido das palavras sobre oseu significado — distinção que devemos aPaulhan. Segundo este autor, o sentido de umapalavra é a soma de todos os acontecimentospsicológicos que essa palavra desperta na nossaconsciência. É um todo complexo, fluido,dinâmico que tem várias zonas de estabilidadedesigual. O significado mais não é do que umadas zonas do sentido, a zona mais estável e

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precisa. Uma palavra extrai o seu sentido docontexto em que surge; quando o contexto mudao seu sentido muda também. O significadomantém-se estável através de todas asmudanças de sentido. O significado de umapalavra tal como surge no dicionário não passade uma pedra do edifício do sentido, não é maisdo que uma potencialidade que tem diversasrealizações no discurso.

As últimas palavras da já mencionadafábula de Krylov “A Cigarra e a Formiga”constituem uma boa ilustração da diferençaentre sentido e significado. As palavras: “Poisagora dança'” têm um significado fixo e definido,mas no contexto da fábula adquirem um sentidointelectual e afetivo mais vasto. Passam asignificar simultaneamente: “Diverte-te” e“Perece!”. Este enriquecimento das palavras pelosentido que adquirem nos diferentes contextos éa lei fundamental da dinâmica dos significadosdas palavras. Num determinado contexto, umapalavra significa simultaneamente mais oumenos do que a mesma palavra tomadaisoladamente; significa mais, porque adquire umnovo contexto; significa menos, porque o seusignificado é limitado e estreitado pelo mesmocontexto. O sentido de uma palavra, dizPaulhan, é um fenômeno complexo, móvel,protéico; modifica-se com as situações econsoante os espíritos e é praticamenteilimitado. As palavras extraem o seu sentido dafrase em que estão inseridas, e esta, por seuturno, colhe o seu sentido do parágrafo, o qual,por sua vez, o colhe do livro e este das obras

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todas do autor.Paulhan prestou ainda outro serviço à

psicologia, analisando a relação entre a palavra eo sentido e mostrando que a independênciaentre um e outra é muito maior do que a queexiste entre a palavra e o significado. Há muitojá se sabe que as palavras podem mudar desentido. Recentemente, houve quem assinalasseque o sentido pode modificar as palavras, oumelhor, que as idéias por vezes mudam denome. Tal como o sentido duma palavra seencontra relacionada com o conjunto da palavrana sua totalidade, e não apenas com os seussons isolados, também o sentido duma frase serelaciona com a globalidade da frase e não comas suas palavras tomadas isoladamente. Porconseguinte, uma palavra pode muitas vezes sersubstituída por outra sem se dar nenhumamodificação do sentido. As palavras e os seussentidos são relativamente independentes unsdos outros.

No discurso interior, a predominância dosentido sobre o significado, da frase sobre apalavra e do contexto sobre a frase constitui aregra.

Isto conduz-nos a outras peculiaridadesdo discurso interior. Ambas dizem respeito àcombinação das palavras entre si. Um dessestipos de combinação será antes como que umaaglutinação — uma forma de combinar aspalavras bastante freqüente em muitas línguas erelativamente rara noutras. A língua alemãforma freqüentemente um substantivo a partirde diversas palavras ou de frases. Em certas

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línguas primitivas, tal edição de palavrasconstitui regra geral. Quando diversas palavrasse fundem numa única, a nova palavra não selimita a exprimir uma idéia bastante complexa,designa também todos os elementos separadoscontidos nessa idéia. Como a tônica recaisempre no radical ou na idéia principal, taislínguas são de fácil compreensão. O discursoegocêntrico da criança patenteia um fenômenosemelhante. À medida que o discursoegocêntrico se vai aproximando da forma dodiscurso interior, a criança começa a utilizar aaglutinação cada vez mais como modo de formarpalavras compostas que exprimem idéiascomplexas.

A terceira peculiaridade semânticafundamental do discurso interior é a forma comoos sentidos das palavras se combinam econgregam — processo que é regido por leisdiferentes das que regem as combinações designificados. Na altura em que observamos estaforma singular de unir palavras no discursoegocêntrico, chamamos-lhe “influxo de sentido”.Os sentidos de diferentes palavras confluemnuma outra — “influenciam-se” literalmente - deforma que as primeiras estão contidas nasúltimas e as influenciam. Da mesma forma, umapalavra que continuamente se repete num livroou num poema absorve por vezes todas asvariantes de sentido neles contidas e se torna decerta maneira equivalente à própria obra. Otítulo de uma obra literária exprime o seuconteúdo e completa o seu sentido num graumuito mais elevado do que o título de um quadro

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ou de uma peça de música. Títulos como DomQuixote, Hamlet ou Anna Karenina ilustram istocom toda a clareza; todo o sentido da obra seencontra contido numa palavra, num nome.Outro excelente exemplo é a obra Almas Mortas,de Gogol. Originalmente, o título referia-se aosservos mortos cujo nome não fora removido daslistas oficiais e que podiam continuar a sercomprados e vendidos como se estivessem vivos.É neste sentido que as palavras são utilizadasdurante todo o livro, que é construído em tornodeste tráfico com os mortos. Mas, pela suaíntima relação com o conjunto da obra, estasduas palavras adquirem uma nova significação eum sentido infinitamente mais vasto. Quandochegamos ao fim do livro, a expressão “Almasmortas” significa para nós não só os servosdefuntos, mas também todos os personagens dahistória que estão fisicamente vivos, masespiritualmente mortos.

No discurso interior, o fenômeno atinge asua máxima incidência. Cada palavra isoladaencontra-se tão saturada de sentido, que, para aexplicar no discurso exterior seriam necessáriasmuitas palavras. Não é pois de surpreender queo discurso egocêntrico seja incompreensível paraos outros. Watson diz que o discurso interiorseria incompreensível, mesmo que fosse possívelgravá-lo. A sua opacidade acentua-se devido aum fenômeno que, diga-se de passagem, Tolstoynotou no discurso exterior: no seu livro,Infância, Adolescência e Juventude, descrevecomo, em pessoas que se encontram em contatopsicológico muito íntimo, as palavras adquirem

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significados especiais que só são entendidospelos iniciados. No discurso interior, desenvolve-se o mesmo tipo de idioma — o tipo de idiomaque é difícil de traduzir para a fala oral.

Com isto, concluímos o nosso relancesobre as peculiaridades do discurso interior,com que nos defrontamos pela primeira vez aoinvestigarmos o discurso egocêntrico. Quandofomos procurar comparações no discursoexterno, descobrimos que este último já contém,pelo menos potencialmente, os traçoscaracterísticos do discurso interno: a predicação,o declínio da oralidade, a predominância dosentido sobre o significado, a aglutinação, etc.,aparecem também em certas condições já nodiscurso externo. Estamos em crer que isto é amelhor confirmação da nossa hipótese, segundoa qual o discurso interior tem origem nadiferenciação do primitivo discurso das crianças.

Todas as nossas observações indicam queo discurso interior é uma função autônoma dalinguagem. Podemos confiantemente encará-locomo um plano distinto do pensamento verbal. Éevidente que a transição do discurso interiorpara o discurso externo não é uma simplestradução duma linguagem para outra. Não podeser conseguida apenas pela simples oralizaçãodo discurso silencioso. É um processo complexo,dinâmico que envolve a transformação daestrutura predicativa, idiomática do discursointerior em discurso sintaticamente articulado,inteligível para os outros.

VPodemos agora voltar a debruçar-nos

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sobre a definição do discurso interior quepropusemos antes de iniciarmos a nossa análise.O discurso interior não é o aspecto interior dodiscurso externo — é uma função em si próprio.Continua a ser discurso, isto é, pensamentoligado por palavras. Mas enquanto opensamento externo se encontra encarnado empalavras, no discurso interior é, em grandemedida, um pensamento feito de significadospuros. É uma coisa dinâmica, instável, ederivante, que flutua entre a palavra e opensamento, os dois componentes mais oumenos estáveis, mais ou menos solidamentedelineados do pensamento verbal. Só se podecompreender a sua verdadeira natureza e o seuverdadeiro lugar, após se ter examinado o planoseguinte do pensamento verbal, o plano aindamais profundo do que o discurso interior.

Esse plano é o próprio pensamento. Comodissemos, todos os pensamentos criam umaconexão, preenchem uma função, resolvem umproblema. A corrente de pensamento não éacompanhada por um desabrochar simultâneodo discurso. Os dois processos não são idênticose não há correspondência rígida entre asunidades de pensamento e de discurso. Isto éparticularmente verdade quando umpensamento aborta — quando como Dostoyevskidiz, um “pensamento não entra nas palavras”. Opensamento tem a sua própria estrutura e atransição entre ele e a linguagem não é coisafácil. O teatro defrontou-se, antes da psicologia,com o problema dos pensamentos ocultos pordetrás das palavras. Ao ensinar o seu sistema de

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representação, Stanislawsky exigia dos autoresque descobrissem o “subtexto” das suas réplicasna peça. Na comédia de Griboedov “O Espíritotraz a Infelicidade”, à heroína que afirma nuncao ter esquecido, o herói, Chatsky, diz: “Trêsvezes abençoado quem tal acreditar. A fé aqueceo coração”. Stanislawsky interpretou estapassagem como querendo dizer: “Acabemos comesta conversa”, mas poderia também serinterpretada como querendo dizer: “Não acreditoem si. Diz isso para me reconfortar”, ou: “Não vêque me está a atormentar? Eu bem queriaacreditar em si. Seria uma benção...”. Todasestas frases que proferimos na vida realpossuem uma espécie de sub-texto, umpensamento oculto por detrás delas. Nosexemplos que atrás demos da ausência deconcordância entre o sujeito e o predicado, nãolevamos a nossa análise até ao fim. Tal comouma frase pode exprimir muitos pensamentos,um mesmo pensamento pode ser expresso pormeio de diferentes frases. Por exemplo, a frase“O relógio caiu”, como resposta à pergunta:“Porque é que o relógio parou?” poderiasignificar: “Não tive culpa de o relógio se terestragado; caiu”. O mesmo pensamento, que éuma auto-justificação, poderia assumir a formaseguinte: “Não é meu hábito mexer nas coisasdas outras pessoas. Só estava a limpar o póaqui”, ou muitas outras frases.

Ao contrário do discurso, o pensamentonão é constituído por unidades separadas.Quando desejo comunicar o pensamento de quehoje vi um rapaz descalço de camisa azul a

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correr pela rua abaixo, não vejo cada elementoem separado: o rapaz, a camisa, a cor destaúltima, a corrida do rapaz, a ausência desapatos. Concebo tudo isto num só pensamento,mas exprimo o pensamento em palavrasseparadas. Um interlocutor leva por vezes váriosminutos a expor um só pensamento. No seuespírito o pensamento encontra-se presente nasua globalidade num só momento, mas nodiscurso tem que ser desenvolvido por fasessucessivas. Podemos comparar um pensamentocom uma nuvem que faz cair uma chuva depalavras. Como, precisamente, um pensamentonão tem correspondência imediata em palavras,a transição entre o pensamento e as palavraspassa pelo significado Na nossa fala, há sempreo pensamento oculto, há sempre o sub-texto.Houve sempre lamentos acerca dainexpressibilidade do pensamento devido ao fatode ser impossível uma transição direta dopensamento para a palavra:

Como poderá o coração exprimir-se?Como poderá outro compreendê-lo?

(F. Tjutchev)A comunicação direta entre os espíritos é

impossível, não só fisicamente mas tambémpsicologicamente. A comunicação só é possívelde uma forma indireta. O pensamento tem quepassar primeiro pelos significados e depois pelaspalavras.

Chegamos assim ao último passo da nossaanálise do pensamento verbal. O pensamentopropriamente dito é gerado pela motivação, istoé, pelos nossos desejos e necessidades, os

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nossos interesses e emoções. Por detrás de todosos pensamentos há uma tendência volitiva-afetiva, que detém a resposta ao derradeiroporquê da análise do pensamento. Umaverdadeira e exaustiva compreensão dopensamento de outrem só é possível quandotivermos compreendido a sua base afetiva-volitiva. Ilustraremos isto por meio de umexemplo que já tem sido utilizado: ainterpretações dos papéis de uma peça. Nassuas instruções para os atores, Stanislawskyenumerava os motivos subjacentes nas palavrasdos seus personagens. Por exemplo:TEXTO DA PEÇAMOTIVOS SUBJACENTESSofia:Ah, Chatsky, como estou contente por teresvindo!Tente ocultar a atrapalhação.Chatsky:Estás tão contente! Que simpático! Mas alegriasdessas não entendo bem! Pois antes me pareceque ao fim e ao cabo. Ao vir por aí à chuva maiso meu cavalo. A mim me contentei e a maisninguém.Tenta fazê-la sentir-se culpada.“Não tens vergonha?!”Tenta forçá-la a ser franca!Liza:Senhor se aqui estivesses neste mesmo lugar.Há uns cinco minutos, não, nem há tanto, não.Vosso nome ouviríeis bem alto soar!Ah Menina! Dizei-lhe que tenho razão!Tenta acalmá-lo. Tenta ajudar Sofia numa

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situação difícil.Sofia:Assim é, nem mais, nem menos!Que quanto a isso, sei que não tendes nada queme censurar!Tenta serenar Chatsky.Não sou culpada de nada.Chatsky:Pronto, aceitemos que assim é, deixai estar!Três vezes louvado quem tiver fé!Pois a fé o coração aquece!Acabemos com esta conversa, etc..

Para compreendermos o discurso deoutrem, não basta compreender as suaspalavras — temos que compreender o seupensamento. Mas também isto não basta —temos que conhecer também as suasmotivações. Nenhuma análise psicológica deuma frase proferida se encontra completa antesde se ter atingido esse plano.

Chegamos ao fim da nossa análise;passemos os seus resultados em revista. Opensamento verbal surge-nos como umaentidade dinâmica e complexa e a relação entreo pensamento e a palavra no seu interioraparece-nos como um movimento que abarcauma série de planos. A nossa análise seguiu oprocesso desde o seu plano mais externo até aoseu plano mais interno. Na realidade, odesenvolvimento do pensamento verbal segueuma trajetória oposta: do motivo que gera umpensamento à modelação do pensamento,primeiro no discurso interior, depois nossignificados das palavras e finalmente nas

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palavras. Seria no entanto errado imaginar queeste é o único caminho do pensamento para apalavra. O desenvolvimento pode deter-se numponto qualquer da sua complexa trajetória; épossível uma infinidade de movimentosprogressivos e recessivos, uma grande variedadede evoluções que desconhecemos ainda. Oestudo destas multifacetadas variações não cabeno âmbito da nossa tarefa presente.

A nossa investigação seguiu um percursobastante invulgar. Desejávamos estudar a formacomo internamente operam o pensamento e alinguagem, formas essas que se encontramocultas à observação direta. O significado e todoo aspecto interior da linguagem, a sua faceta quese encontra voltada para a pessoa e não para omundo exterior tem constituído até hoje umterritório desconhecido. Sejam quais forem asinterpretações que lhes sejam dadas, as relaçõesentre o pensamento e a palavra foram sempreconsideradas como algo constante e imutável,estabelecido para sempre. A nossa investigaçãomostrou que tais relações são, pelo contrário,relações mutáveis entre processos, que surgemdurante o desenvolvimento do pensamentoverbal. Não queríamos nem podíamos esgotar oassunto do pensamento verbal. Tentamosapenas dar uma concepção geral da infinitacomplexidade desta estrutura dinâmica —concepção que parte dos fatosexperimentalmente documentados.

Para a psicologia associacionista, opensamento e a palavra encontram-se unidospor laços externos, semelhantes aos laços

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existentes entre duas sílabas sem sentido. Apsicologia gestaltista introduziu o conceito dosnexos estruturais, mas, tal como a velha teoria,não entrou em linha de conta com as relaçõesespecíficas entre o pensamento e a palavra.Quanto às outras teorias, agrupavam-se emtorno de dois pólos — quer o pólo do conceitobehaviourista segundo o qual o pensamento élinguagem sem o ponto de vista idealista,defendido pela escola de Wuerzburg, e Bergson,segundo o qual o pensamento poderia ser“puro”, isto é, pensamento sem qualquer relaçãocom a linguagem, pensamento que seriadistorcido pelas palavras. A frase de Tjutchev“Uma vez dito um pensamento torna-sementira”, poderia muito bem servir de epitáfiopara o último grupo. Quer se inclinem para opuro naturalismo quer se inclinem para oidealismo mais extremo, todas estas teoriascomungam dum mesmo traço — o seu pendoranti-histórico. Estudam o pensamento e apalavra sem fazerem qualquer referência à suaHistória genética.

Só uma teoria histórica do discursointerior poderá tratar cabalmente este complexoe imenso problema. A relação entre opensamento e a palavra é um processo vivo; opensamento nasce através das palavras. Umapalavra vazia de pensamento é uma coisa morta,e um pensamento despido de palavraspermanece uma sombra. A conexão entre ambosnão é, no entanto, algo de constante e jáformado: emerge no decurso do desenvolvimentoe modifica-se também ela própria. À expressão

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bíblica “No princípio era o Verbo”, Goethe fazFausto responder: “No princípio era a ação”. Aintenção desta frase é a de diminuir o valor dapalavra, mas podemos aceitar esta versão se lhedermos outra acentuação: no princípio era aação. A palavra não é o ponto de partida — aação já existia antes dela; a palavra é o termo dodesenvolvimento, o coroamento da ação.

Não podemos encerrar o nosso relancesem mencionarmos as perspectivas abertas pelanossa investigação. Estudamos os aspectosinternos da linguagem que eram tãodesconhecidos para a Ciência como o outro ladoda Lua. Mostramos que as palavras têm porcaracterística fundamental serem um reflexogeneralizado do mundo. Este aspecto da palavraconduz-nos ao limiar de um tema muito maisprofundo e mais vasto — o problema geral daconsciência. As palavras desempenham umpapel fundamental, não só no desenvolvimentodo pensamento mas também nodesenvolvimento histórico da consciência comoum todo. Cada palavra é um microcosmos daconsciência humana.

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Notas (i) — Por “percepção quase ao mesmotempo” Koehler entende situações em queinstrumento e objetivo foram vistos juntos poucotempo antes, ou quando foram usadosconjuntamente tantas vezes numa situaçãoidêntica que são, para todos os fins,psicologicamente apreendidos simultaneamente(18)(18, p. 39).

(ii) — Vygotsky não descreve o teste empormenor. A seguinte descrição é extraída deConceptual Thinking in Schizophrenia, de E.Hanfmann e J. Kasanin (16)(16, pp. 9-10).

O material utilizado nos testes deformação dos conceitos consiste em 22 blocos demadeira de várias cores, formas, alturas elarguras. Existem 5 cores diferentes, 6 formasdiferentes, 2 alturas (os blocos altos e os blocosbaixos), e 2 larguras da superfície horizontal(larga e estreita). Na face inferior de cada figura,que não é vista pelo sujeito, está escrita uma dasquatro palavras sem sentido: lag, bik, mur, cev.Desprezando a cor ou a forma, lag está escritaem todas as figuras largas e altas, bik em todasas figuras largas e baixas, mur em todas as altase estreitas, e cev nas baixas e estreitas. No inicioda experiência todos os blocos, misturados quernas cores, tamanhos e formas, são espalhadosnuma mesa defronte do sujeito ... O examinadorvira um dos blocos (a “amostra”), mostra e lê oseu nome ao sujeito, e pede-lhe que retire todos

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os blocos que pensar puderem pertencer aomesmo tipo. Após o sujeito o ter feito ... oexaminador vira um doa blocos “erradamente”selecionado, mostra que é um bloco de um tipodiferente e encoraja o sujeito a prosseguir nastentativas. Após cada nova tentativa, outro blocoerradamente retirado é virado. À medida que onúmero de blocos virados aumenta, o sujeitoobtém gradualmente uma base para descobrir aque características dos blocos se referem aspalavras sem sentido. Mal faça esta descoberta,as ... palavras ... começam a fixar-se em tiposdefinidos de objetos (ou seja, lag para blocoslargos e altos, bik para largos e baixos), e novosconceitos, para os quais a linguagem não fornecenenhum nome, são então formados. O sujeitoencontra-se então preparado para completar atarefa de separação dos quatro tipos de blocosindicados pelas palavras sem sentido. Então, ouso dos conceitos tem um valor funcionaldefinido para o fim requerido por este teste. Se osujeito utilizar realmente o pensamentoconceptual na tentativa de resolução doproblema ... poder-se-á inferir da natureza dosgrupos que constrói e do seu procedimento nasua construção que aproximadamente cadaetapa do seu raciocínio é refletida na suamanipulação dos blocos. A primeira abordagemdo problema, o manuseamento da amostra, aresposta à correção, a descoberta da solução,todos estes estádios da experimentação podemfornecer dados que podem servir comoindicadores do nível de pensamento do sujeito.

(iii) — A seguinte análise das observações

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experimentais é tirada do estudo de E.Hanfmann e J. Kasanin (16)(16, pp. 30-31):

Em muitos casos o grupo, ou grupos,criados pelo sujeito têm quase o mesmo aspectoque numa classificação coerente, e a carência deuma verdadeira fundamentação conceptual sótransparece quando o sujeito se vê nacontingência de pôr à prova as idéias queconsubstanciam o seu agrupamento. Istoacontece no momento da correção quando oexaminador vira um dos blocos erradamenteselecionados e mostra que a palavra nele escritaé diferente da do bloco de amostra, por exemplo,que não é mur. Este é um dos pontos críticos daexperiência...

Sujeitos que abordaram a tarefa como umproblema de classificação respondemimediatamente à correção de uma formaperfeitamente específica. Esta resposta éadequadamente expressa na afirmação: “Ah!Então não se trata da cor” (ou forma, etc.)... Osujeito retira todos os blocos que tinha colocadojunto à amostra e começa à procura de outrapossível classificação.

Por outro lado, o comportamento exteriordo sujeito no início da experiência pode ter sidoo de tentar conseguir uma classificação. Pode tercolocado todos os blocos vermelhos junto àamostra, procedendo com bastante segurança...e declarar que pensa que aqueles blocosvermelhos são os murs. Então o examinador viraum dos blocos escolhidos e mostra que tem umnome diferente... O sujeito vê-o retirado, oumesmo retira-o ele próprio obedientemente, mas

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é tudo quanto faz: não faz nenhuma tentativapara retirar os outros blocos vermelhos de juntoda amostra mur. À questão do examinador se éque ainda pensa que aqueles blocos devem estarjuntos, e são mur, responde peremptoriamente.“Sim, devem manter-se juntos porque sãovermelhos”. Esta réplica demolidora revela umaatitude totalmente incompatível com umaverdadeira tentativa de classificação e prova queos grupos que ele tinha formado eram narealidade pseudo-classes.

(iv) — Deve ficar bem claro neste capítuloque as palavras também desempenham umaimportante, embora diferente, função nos váriosestádios do pensamento por complexos.Contudo, consideramos o pensamento complexoum estádio no desenvolvimento do pensamentoverbal, à diferença de muitos outros autores (21,53,55) que alargam o termo complexo paraincluir o pensamento pré-verbal e mesmo oinstinto primitivo dos animais.

(v) — Idênticos desenhos foram mostradosa dois grupos de crianças em idade pré-escolarde idades e nível de desenvolvimentosemelhantes. Pediu-se a um grupo pararepresentar o desenho — o que indicaria o grauda imediata apreensão do seu conteúdo; aooutro grupo pediu-se para o narrar por palavras,tarefa requerendo uma capacidade decompreensão conceptualmente mediada.Verificou-se que os “atores” forneceram osignificado da situação representada, ao passoque os narradores enumeraram objetos

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separados.

(vi) — “A cigarra e a formiga”. Em francêsno original.

(vii) — O exemplo dado por Vygotsky perdeparte do seu impacto em português, devido àsdiferentes relações entre os gêneros na línguaportuguesa e na língua russa.

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Autor: Lev S. VygotskyEdição eletrônica: Ed Ridendo Castigat Mores

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