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Pelo Exemplo e pela Germinação: a Atualidade do Pensamento de San Tiago Dantas Ademar Seabra da Cruz Jr. Seria presunçosa a tentativa de realizar mais um panegírico, além dos tantos de que San Tiago Dantas foi alvo durante sua vida e após seu prematuro desaparecimento, em setembro de 1964, não fosse para reafirmar o entusiasmo com que seu fecundo pensamento continua a ser recebido pelas novas gerações. Por serem a atividade política, a evolução cultural e mesmo a elaboração intelectual de novas teorias sociais freqüentemente associadas a uma denegação do passado, e serem propensas à absorção de modismos circunstanciais, torna-se tarefa de primeira necessidade demonstrar a elaboração pioneira dos fundamentos, valores e opções com que se defronta a política e a sociedade brasileiras nos tempos recentes e nos dias atuais. Veremos que muitos dos problemas e de suas respectivas soluções, diagnóstico e prognóstico, foram acompanhados e elaborados pela presciente inteligência, fulgor humanístico e zelo patriótico - sem jamais, contudo, descambar em nacionalismos fáceis e retóricos - de San Tiago Dantas. Muitos foram e são os brasileiros que interpretaram a realidade doméstica do país e as linhas dinâmicas do cenário internacional que lhe conformam as opções e prioridades. San Tiago talvez tenha sido o único, no entanto, que vislumbrou uma análise holística, integrada, das dificuldades com que o Brasil se defrontava em seu tempo, bem como apontou com segurança e convicção as sendas que o país deveria percorrer para transcender os obstáculos primordiais que retardam sua inserção no rol das sociedades avançadas e tocadas pelos valores permanentes da cultura e da civilização. A destacada posição de San Tiago Dantas no cortejo da inteligência brasileira assoma-se, quando reconhecemos que talvez nenhum outro estadista de nosso país terá sido

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Pelo Exemplo e pela Germinação: a Atualidade do Pensamento de

San Tiago Dantas

Ademar Seabra da Cruz Jr.

Seria presunçosa a tentativa de realizar mais um

panegírico, além dos tantos de que San Tiago Dantas foi alvo

durante sua vida e após seu prematuro desaparecimento, em

setembro de 1964, não fosse para reafirmar o entusiasmo com

que seu fecundo pensamento continua a ser recebido pelas novas

gerações. Por serem a atividade política, a evolução cultural

e mesmo a elaboração intelectual de novas teorias sociais

freqüentemente associadas a uma denegação do passado, e serem

propensas à absorção de modismos circunstanciais, torna-se

tarefa de primeira necessidade demonstrar a elaboração

pioneira dos fundamentos, valores e opções com que se defronta

a política e a sociedade brasileiras nos tempos recentes e nos

dias atuais. Veremos que muitos dos problemas e de suas

respectivas soluções, diagnóstico e prognóstico, foram

acompanhados e elaborados pela presciente inteligência, fulgor

humanístico e zelo patriótico - sem jamais, contudo, descambar

em nacionalismos fáceis e retóricos - de San Tiago Dantas.

Muitos foram e são os brasileiros que interpretaram a

realidade doméstica do país e as linhas dinâmicas do cenário

internacional que lhe conformam as opções e prioridades. San

Tiago talvez tenha sido o único, no entanto, que vislumbrou

uma análise holística, integrada, das dificuldades com que o

Brasil se defrontava em seu tempo, bem como apontou com

segurança e convicção as sendas que o país deveria percorrer

para transcender os obstáculos primordiais que retardam sua

inserção no rol das sociedades avançadas e tocadas pelos

valores permanentes da cultura e da civilização.

A destacada posição de San Tiago Dantas no cortejo da

inteligência brasileira assoma-se, quando reconhecemos que

talvez nenhum outro estadista de nosso país terá sido

confrontado com desafios políticos e econômicos mais graves e

pungentes e tenha sido capaz de indicar, com grande

clarividência, soluções que poderiam ter sido capazes de

mitigar os efeitos da crise - caso tivessem sido consideradas

sem preconceitos, açodamentos e oportunismos. Essas avaliações

dos severos obstáculos ao desenvolvimento configuram-se

plenamente atuais para nortear um projeto de recuperação

nacional, em suas dimensões econômica, política, cultural e

social, de maneira integrada e articulada. San Tiago Dantas

foi, assim, o proponente e o gestor de um verdadeiro projeto

nacional, que, embora se projetasse para além de sua época,

teria sido eficaz para equacionar as crises e impasses mais

percucientes já de seu tempo.

Esse projeto nacional santiaguiano persistiu e revigorou-

se, quarenta anos após a sua morte, por estar fundado em

princípios universais de acordo com os quais, na fórmula

consagrada da solidariedade social de Tim Scanlon,

"Todos somos imbuídos de um desejo

fundamental de justificar nossas ações para os

outros em termos segundos os quais não poderão

ser razoavelmente rejeitados por ninguém" (1)

O universalismo característico das formulações de San

Tiago Dantas fôra voltado para perscrutar as grandes linhas da

civilização brasileira, suas vicissitudes e regularidades,

tanto no que se refere a nossas maiores virtudes quanto a

nossos mais candentes defeitos. Pretendia San Tiago, pois,

alertar para o que, no caso brasileiro, está na raiz da maior

parte de nossas mazelas: o desprezo pela memória. Nesse

particular, denuncia Marcílio Marques Moreira esse vício como

superlativo na tradição brasileira, o maior dentre os

obstáculos para a realização das idéias de San Tiago entre

nós. A falta de contigüidade de pensamento e ação no Brasil

"(...) induziu o político, tomado como

exemplo, a sempre pender em direção ao último

ponto de vista que lhe havia sido exposto,

enredando-se num cipoal de incoerências e

comprometendo-lhe o potencial de ação política

eficaz. E a incapacidade de fixação de uma linha

consistente de conduta acabou levando-o à

paralisia decisória." (2)

Atualidade Política e Perenidade Filosófica

O ativismo público de San Tiago Dantas, mormente após o

exercício dos mandatos de Deputado e Ministro, no lustro

inaugurado em 1959 até a sua morte, se deu no sentido de

superar as análises conjunturais e o voluntarismo que se

apossou da cena política e econômica brasileira, manifestando-

se através de decisões casuísticas, arranjos imperfeitos e

experimentos inconseqüentes, temporários e desprovidos de um

sentido de continuidade. San Tiago bem sabia da parcialidade e

da provisoriedade desses experimentos, mas lealmente buscou

não rejeitá-los em prol de um projeto maior de conciliação

nacional, que, entretanto, não pôde prosperar por não exprimir

um verdadeiro consenso em torno de instrumentos e instituições

políticas brasileiras, mas um mero e conveniente modus vivendi

mantido entre forças que, ao contrário de San Tiago, não

vislumbravam nessa conciliação nacional seu supremo valor

político.

Ao antever as perspectivas e os desdobramentos indesejados

dos problemas nacionais, San Tiago jamais se jactou de tal

clarividência junto aos seus pares, seja no Congresso, no

Executivo, ou em meio à elite da qual fazia parte. Respeitava

humilde e sobriamente os diversos pontos de vista, convencido

de que correspondiam a sinceras e valiosas contribuições para

a superação dos problemas políticos e econômicos nacionais. A

primeira e mais importante de uma série de grandes

contribuições de San Tiago Dantas para a evolução política do

Brasil foi, assim, sua arguta intuição, formulada somente em

linhas gerais, do conceito que seria formulado quase trinta

anos mais tarde por John Rawls em seu Liberalismo Político

(3), o do “fato do pluralismo”: ou seja, representa uma

circunstância constitutiva e permanente das democracias

contemporâneas a convivência necessária entre diversas

doutrinas razoáveis, não podendo nenhuma delas imbuir-se da

pretensão de representar uma versão da ‘verdade’, mais cogente

e convincente que as demais. O Estado, por outro lado, de

acordo com essa concepção, não pode ser invocado para promover

qualquer dessas doutrinas em detrimento dos princípios e

valores esposados pelas demais.

Se nos dias de hoje, após a quinta eleição direta

consecutiva para Presidente da República no Brasil, essa

interpretação soa-nos relativamente banal, era verdadeiramente

revolucionária à época de San Tiago Dantas. Num mundo marcado

por irreconciliáveis divisões e tensões ideológicas -

resquícios das quais teimosamente persistem no avançar do

século XXI - e onde as ‘doutrinas totais’ ainda constituíam a

tônica, a motivação da política internacional e o substrato da

política partidária na cena doméstica brasileira, os esforços

de San Tiago em prol da moderação, da tolerância e da

composição de interesses constituem manifestações de um

espírito grandioso, magnânimo, perscrutador das grandes

essências da convivência social humana. San Tiago terá sido,

assim, um dos raros brasileiros que utilizaram o rigor

analítico do Direito, associado à convicção de sua

superioridade deontológica para a composição dos conflitos

sociais, para operar uma grande síntese entre direito,

democracia, ética e política. Foi um grande paladino das

liberdades públicas, movido por uma crença fundamental na

Razão, a razão do direito, da imparcialidade e da justiça,

como instrumento único capaz de forjar um pacto em torno de um

projeto nacional.

Se em muitas ocasiões, mormente em sua histórica aula

inaugural proferida em 20 de março de 1964 na Faculdade de

Filosofia da Universidade do Brasil, San Tiago se prontificou

a condenar a radicalização política que iria resultar, doze

dias depois, nas conseqüências conhecidas, e a promover a

conciliação como a pedra de toque para a construção desse

projeto nacional, muitos anos transcorreriam antes que os

valores abraçados pelo grande Mestre ficassem cristalizados na

tessitura política e social brasileira. Em setembro de 2001, o

então Presidente Fernando Henrique Cardoso reconhecia

explicitamente que a possibilidade de vitória da oposição

constituía “um fato normal da vida democrática do país”,

reconhecimento democrático-liberal que tem no pensamento e na

prática político-parlamentar de San Tiago expressão conspícua

e inequívoca. Se no percurso de toda a tradição política do

Brasil independente, nossa democracia imperfeita, nos curtos

entreatos em que se fizera presente, era percebida como “um

método, uma forma de se alcançar ou exercer o poder como

tantas outras”(4), ela conheceu em San Tiago Dantas, no

conturbado período da pseudo-democratização de 1945-1964, um

defensor radical e um porta-voz intimorato, convincente e, por

que não dizer, solitário. Um dos poucos brasileiros de seu

tempo que não a via como um instrumento para o poder, mas como

um fim insofismável, um requisito essencial, ponto de partida

para qualquer projeto substantivo de reforma ou de mudança.

San Tiago, coerente com suas atitudes e convicções, atraiu

- não injustamente, deve-se esclarecer - as desconfianças

tanto da esquerda, quanto da direita. O proselitismo

integralista dos anos trinta foi muitas vezes identificado com

a intolerância professada por muitos de seus adeptos, voltada

para os arquirivais socialistas e comunistas. San Tiago, se

por um lado não pode ser tido como um membro secundário do

movimento, tendo ascendido ao cargo de Secretário de Imprensa,

algo equivalente ao de porta-voz, não pôde jamais ser

considerado como um militante tradicional. Suspeitou sempre da

importação acrítica de doutrinas alienígenas, precipitadamente

transplantáveis para o complexo cenário cultural e político

nacional; desconfiava ainda do arremedo de liberalismo dos

anos trinta, incapaz de ampliar as bases de legitimidade,

econômica e política, da frágil democracia inaugurada com o

advento da Revolução de 1930. Em seus últimos anos da vida,

contudo, havia amadurecido uma sólida convicção política e uma

personalidade pública amalgamada em torno de três eixos

filosóficos: um humanismo ético de feições socialistas, um

liberalismo político promotor de ideais de democracia,

tolerância e conciliação e um patriotismo temperado pela

crença de que culturas, modos de vida, sistemas jurídicos e

políticos são igualmente valiosos e nenhum dentre eles pode

ter a pretensão de sobrepujar os demais.(5)

Na contramão da história de seu tempo, portanto, San Tiago

haveria de nutrir um saudável ceticismo - do mesmo modo que

seu integralismo se situava numa perspectiva ‘nietzscheana’,

no dizer de Hélio Jaguaribe(6)- em relação a doutrinas

messiânicas ou ‘redentoras’, que prometessem ‘salvar’ ou

‘mudar’ rapidamente o Brasil. Sua perspectiva de transformação

social rejeitava sínteses pretensiosas e ‘saltos retumbantes’

e a situava antes nas conquistas ‘lentas e aluvionais’ (7),

características dos sistemas políticos imemoriais e do direito

privado no sistema romano-germânico. Para se compreender a

perenidade e a consistência das transformações sociais na

filosofia política de San Tiago Dantas, deve-se aludir ao seu

ex-libris, ad multis ad unum - todas as perspectivas convergem

para a unidade - conjugado com o aforismo de Hipócrates, que

certamente seria um de seus prediletos, segundo o qual natura

non facit saltus - a natureza não opera em saltos. Daí resulta

a crença santiaguiana de que todas as doutrinas políticas

razoáveis têm uma genuína contribuição a oferecer em seus

projetos para o Brasil, bem como a atitude construtivista

diante dos grandes desafios nacionais, domésticos e externos.

É pouco eficiente deblaterar contra posições de adversários ou

na identificação dos problemas; mais sensato é acumular

forças, testar hipóteses, convencer os pares da vis directiva

adotada e não hesitar em recuar se forem percebidos erros

nesse itinerário. San Tiago desdenhava, assim, de soluções que

não pudessem ser plena e criteriosamente justificadas para

seus interlocutores, que não pudessem ser “razoavelmente

aceitas por todos”.

Aqui cabe referir ao mais dramático episódio da vida

pública de San Tiago Dantas, o momento em que sua

clarividência, suas excepcionais credenciais de estadista e de

homem público foram postas à prova perante um corpo que

refletia e argumentava com outros parâmetros e pressupostos:

trata-se da sessão do Congresso Nacional de 28 de junho de

1962, quando se apresentou para postular o cargo de Primeiro-

Ministro do Gabinete parlamentarista do Presidente João

Goulart. Na ocasião, proferiu alocução memorável que terá sido

uma das mais lúcidas, argutas e convincentes explanações da

situação brasileira de seu tempo. San Tiago concitou, então,

seus pares a se erguerem em luta pela união do Brasil;

demonstrou, com sua autoridade de financista, o poder

corrosivo da inflação sobre a economia e sobre a auto-estima

nacionais; bateu-se pelas reformas de base e especialmente

pela reforma agrária; recuperou os contornos da política

externa independente; e exortou os partidos a se unirem na

responsabilidade e na solidariedade para a condução dos

destinos do país. Não obstante o Congresso ter sido palco de

uma das maiores demonstrações de reconhecimento jamais

prestadas a um homem público no Brasil, com o eflúvio das

palmas e ovações dirigidas a San Tiago Dantas, seu pleito não

teve a necessária acolhida majoritária. A razão para tal

paradoxo deveria ser encontrada no fato de que

“ (...) a política é a arena propícia ao

quieta non movere, pois representa interesses

consolidados e alianças inamovíveis. O medo da

transformação é o medo da perda de posições. É

conveniente, portanto, que os governos sejam

conduzidos por homens mais próximos do

sentimento comum de mediania, dominante em todos

os países.”(8)

Daí se observa que, fosse San Tiago apenas um homem do seu

tempo, certamente teria sido eleito.

Encontramos, assim, no pensamento de San Tiago Dantas, a

notável síntese entre Direito, Política e Sociedade, no

sentido de que em nenhum desses domínios as mudanças abruptas,

as revoluções espetaculares e as grandes reviravoltas podem

efetivamente operar as transformações duradouras e construídas

de que necessita a sociedade. A superação das desigualdades

não resultará da promulgação de decretos apressados ou de

expropriações violentas, mas antes de reformas de base que

permitam a correção incremental, sujeita a acréscimos

infinitesimais (ou ‘aluvionais’) das doses necessárias ao

tratamento seguro e eficiente para o equacionamento das

injustiças históricas. Mais importante do que o imediatismo

dos resultados é a garantia de que as transformações operadas

não retrocederão. O exemplo por excelência da lenta

consolidação das transformações sociais se situa em dois

planos distintos da vida nacional: a política externa e o

Direito Civil.

Atualidade Jurídica

A contribuição de San Tiago Dantas para o Direito, e

somente para o Direito, já o inscreveria no panteão dos

maiores jurisconsultos e intelectuais brasileiros, tendo sua

poderosa inteligência jurídica se estendido por vários ramos

do Direito, público e privado, e sendo seus ensinamentos e sua

doutrina ainda sobejamente estudados em cursos jurídicos e

citados em acórdãos de diversos tribunais brasileiros. Não se

tratará especificamente aqui da atualidade dessa contribuição,

mas se mencionará apenas como a atividade doutrinária de San

Tiago se corresponde harmonicamente com outros aspectos de sua

personalidade pública e de seu pensamento. Não obstante sua

visão disciplinada e rigorosamente positiva do direito,

esforçava-se por interpretá-lo segundo os ditames impostos

pela evolução da sociedade e pela transformação de seus

valores e necessidades; não concebia, entretanto, como é

característico do Common Law, que os fundamentos da norma e os

pressupostos de estabilidade social a ela correspondentes

pudessem ficar comprometidos pelos ímpetos renovadores e

incessantes das disputas e tensões sociais. Se o Direito deve

ser permeável à dinâmica da evolução social, aduzia San Tiago,

a mudança social deve ter no Direito um limite claramente

reconhecido, para que não degenere em voluntarismo político e,

em última análise, em arbítrio.

Direito, sociedade, política e economia devem harmonizar-

se em prol da satisfação das necessidades fundamentais dos

membros da sociedade - liberdade e justiça sendo as mais

importantes dentre essas - devendo esse avanço ser cumulativo,

consistente e irreversível, pautado por considerações de

eqüidade. O método para que a mudança social, mormente a

partir das relações privadas entre indivíduos e instituições,

atenda a esses imperativos, pode ser haurido da análise

santiaguiana do Direito Civil, entendido como

“o campo das aquisições lentas, das

transformações aluvionais. Lidando com

grandezas microscópicas, penetrando nos

alvéolos sociais, analisando e perquirindo

os tecidos, decompondo as células, o

trabalho do civilista não atinge a forma

geral, mas atinge a substância, fixa os

detalhes da sociedade.”(9)

Em que pese a preclara convicção de San Tiago de que o

exercício das liberdades civis e republicanas requer que se

desfrute de condições sócio-econômicas minimamente dignas para

que essas liberdades não sejam eivadas de um formalismo

jurídico estéril, intuía ele que soluções redistributivas

forçadas e radicais poderiam ser contraproducentes, uma vez

que teriam como conseqüência não pretendida a depressão da

renda e do produto nacional e o comprometimento da eficiência

e da imparcialidade do próprio Estado como intérprete do

interesse nacional.

Ao preconizar o vínculo entre liberdade e igualdade, entre

conciliação política nacional e distribuição, antecipou-se San

Tiago Dantas em algumas décadas ao moto que prevaleceria na

economia e na filosofia política contemporâneas, no sentido de

reconhecer na liberdade e na democracia variáveis dependentes

do desenvolvimento, entendido como crescimento com

distribuição de renda, via mecanismos de proteção e de bem-

estar social.(10)

Expressiva parcela de sua curta, mas profícua atividade

parlamentar, foi dedicada a identificar e alertar a elite

brasileira para os riscos de comprometimento irreversível do

projeto nacional de desenvolvimento, caso persistam os níveis

existentes de desigualdade entre classes sociais, entre

regiões e entre campo e cidade, fortalecendo círculos

concêntricos e virtualmente indissolúveis de pobreza e

miséria, os quais inviabilizarão, por sua vez, a possibilidade

de se formular políticas públicas efetivas na área econômica.

Terá transcorrido o período uma geração desde o

desaparecimento de San Tiago para que a elite e a sociedade

brasileiras tenham-se convencido verdadeiramente da gravidade

desse alerta. Parece igualmente que, pela primeira vez na

história do Brasil, as elites e a sociedade (o “povo-massa”,

no dizer de Oliveira Vianna) estão unidas em torno da

prioridade de atenuação da pobreza e da miséria e da mitigação

da apartação social no Brasil. Denunciava San Tiago que a

elite esteve sempre e historicamente divorciada do povo, na

interpretação e na percepção dos nossos mais candentes

problemas sociais, não estando à altura das graves

responsabilidades que lhe são cotidianamente cobradas. Somente

agora há indícios, ainda que preliminares, de que essa

conciliação está em vias de se realizar, em resposta, assim,

aos chamamentos de San Tiago, ecoantes na imprensa, no

Congresso, nos seus livros, artigos e discursos daqueles idos

pré-ruptura da ordem constitucional de março/abril de 1964.

Atualidade da Política Externa

A coerência do sistema de pensamento santiaguiano

abarcaria também, além da política, da economia e do direito,

a política externa, na sua atuação como Chanceler e nas

diversas ocasiões em que se manifestou em relação aos graves e

percucientes problemas internacionais de seu tempo. Sensível

aos apelos igualitaristas que promanavam, ainda que de maneira

deturpada, da esfera de influência da União Soviética, e

entusiasta do ideário político liberal, embora manipulado

ideologicamente pelo bloco Ocidental nos lances ideológicos e

estratégicos da Guerra Fria, San Tiago estava convencido, no

seu íntimo, de que ambas essas grandes concepções de

sociedade, que se embatiam no seu tempo, continham aportes

valiosos para o projeto de sociedade que vislumbrava para o

Brasil. Esse reconhecimento teve, por um lado, o condão de

evitar que o Brasil assumisse posições simplistas nesse

embate, em termos de alinhamento automático com um ou outro

bloco; essa necessária independência se manifestaria, por

outro, pelo reconhecimento lúcido de que, por trás de uma

aparentemente inconciliável oposição entre os dois sistemas

políticos e ideológicos, se ocultava uma reconciliação entre

as duas superpotências, no sentido de assegurar uma divisão do

mundo de acordo com seus desígnios, e que cristalizasse os

termos da ordem internacional pactuada em Yalta.(11)

Este era justamente o background internacional da época,

reconstruído pela leitura ex ante lúcida e arguta do sistema,

realizada por San Tiago, o pioneiro e principal executor da

estratégia - ainda que não se mostrasse pronta em todos os

seus contornos, desde os primeiros momentos da sua aplicação -

cunhada por Gelson Fonseca Jr. de “autonomia pela distância”.

Tal orientação consistiu na busca de espaços de atuação

externa, ainda que restritos e exíguos, e limitados pela

lógica confrontacionista da Guerra Fria, em que a autonomia

externa do país pudesse ser efetivamente exercida. A “política

externa independente” nada mais era, assim, do que uma

compreensão, parcialmente intuitiva e parcialmente elaborada,

dos limites estabelecidos e das possibilidades abertas pela

política internacional dos anos sessenta, limites e

possibilidades esses que viriam a ser sintetizados na fórmula

da “autonomia pela distância”, em contraste com a da

“autonomia pela participação”, esta última própria da

estratégia externa brasileira aplicada a partir dos anos

noventa.(12) O que se quer argumentar com essa redução teórica

é que historiadores e analistas de relações internacionais não

vislumbram outra alternativa mais eficiente e coerente com a

tradição brasileira de política externa, durante os perigosos

e dramáticos anos da primeira metade da década de 1960, do que

a política traçada por San Tiago à frente do Itamaraty, em

termos da afirmação de nossos objetivos nacionais e de nossa

inserção naquele tumultuado cenário global.

É certo, entretanto, que San Tiago não gostaria de ser

percebido exageradamente como um visionário, como um

responsável solitário - ainda que a solidão tenha sido um

aspecto recorrente de sua vida política - pela formulação de

políticas escorreitas e inacessíveis aos seus contemporâneos.

A verdade é que a política externa brasileira atravessou

décadas, e agora mais de século - pelo menos desde as

negociações de que fôra protagonista o Barão do Rio Branco na

fase da delimitação das fronteiras do Brasil - sempre imbuída

de uma pletora de valores, de corte grociano e kantiano, que

naturalmente lhe dão uma orientação ótima em tempos de crise,

como foi, por exemplo, a ameaça do estrangulamento da

autonomia externa do Brasil diante do recrudescimento das

hostilidades próprias do período da Guerra Fria. Desse modo, a

vocação pacifista do Brasil, a condenação do uso da força na

solução das controvérsias, a exortação ao uso da energia

nuclear exclusivamente para fins pacíficos, a celebração da

democracia como valor político universal, o direito à

autodeterminação dos povos, etc., dentre outros princípios de

corte semelhante e agora consubstanciados no art. 4° da

Constituição Federal, fazem parte de um patrimônio político

que, em grande medida, já precedia a notável visão de San

Tiago Dantas dos problemas e alternativas externas do Brasil.

Das cinco grandes diretrizes de política externa coligidas por

San Tiago para o Itamaraty(13), a formulação e execução de

pelo menos três delas (desarmamento tarifário da América

Latina e intensificação das relações comerciais do Brasil com

todos os países, inclusive os socialistas; apoio à emancipação

de territórios não autônomos, seja qual for a forma jurídica

utilizada para sua sujeição à metrópole; e autoformulação dos

planos de desenvolvimento econômico e de prestação e aceitação

de ajuda internacional) couberam à diligência e à correta

interpretação de San Tiago quanto ao papel de liderança de

alcance médio que o Brasil poderia desempenhar diante dos

constrangimentos do sistema internacional da Guerra Fria.

O episódio por excelência que assinala a conjugação

precisa de princípios vetustos de política externa brasileira

com a aplicação e reinterpretação dinâmica desses princípios à

luz de novos e inéditos fatos internacionais - quando a

verdadeira coerência de uma política é posta à prova e

plasmada para enquadrar-se em situações cujas soluções são

aparentemente antitéticas - foi a atuação do Brasil na VIII

Reunião de Consulta da Organização dos Estados Americanos de

Punta del Este, de janeiro de 1962. Sendo o principal e mais

delicado ponto da pauta a expulsão de Cuba do sistema da OEA,

por infringir obrigações democráticas mandatadas pela Carta de

Bogotá, o Chanceler brasileiro teve oportunidade de valer-se

de seu pan-humanismo multidisciplinar para rechaçar a proposta

radical, ao apelar para os valores consagrados da

autodeterminação e da não ingerência nos assuntos domésticos

de outros países, ao mesmo tempo em que reconhecia a violação

do princípio democrático protegido pela OEA nos desdobramentos

da Revolução de 1959. Ao anatematizar tanto a quebra das

instituições democráticas formais quanto a segregação proposta

pela delegação dos EUA, San Tiago relacionou argumentos

jurídicos, políticos, históricos e lógicos contra a proposta

exacerbada, que, no entanto, respeitaria e acataria

incondicionalmente, coerente com seu amor pelo direito e pelo

império da lei no ambiente essencialmente anárquico das

relações internacionais do seu tempo. Dentre esses argumentos

em prol de uma solução moderada, destaca-se um de natureza

lógica, argüido por San Tiago nos seguintes termos:

“(...) o retorno do país às condições

próprias do nosso Hemisfério, no caso cubano, em

que justamente se acusa o regime de manter

vínculos políticos e econômicos com um sistema

extracontinental, o isolamento só produziria,

como conseqüência, o reforço desses vínculos,

sem qualquer possibilidade evolutiva favorável

ao Ocidente.”(14)

Torna-se desnecessário insistir numa exegese ou análise

mais detida dessa primorosa avaliação do caráter

contraproducente das sanções que seriam efetivamente impostas

a Cuba pela OEA, uma vez que o país atravessou o umbral do

século XXI sem ter realizado as reformas políticas

pretendidas, sem ter-se constituído em “ameaça” efetiva para

nenhum outro país e tendo o próprio movimento anticastrista

radicado na Flórida perdido influência e sendo suas propostas

para a “transição” cubana descartadas como crescentemente

irrealistas. Aqui, a simplicidade da mensagem visionária de

San Tiago torna-se translúcida para os que buscam o

fortalecimento da democracia no nosso Continente: levantem-se

as sanções contra Cuba, deixe que o país se exponha

inteiramente aos valores políticos e filosóficos do Ocidente,

que estes acabarão por se impor natural e paulatinamente sobre

o regime, forçando-o a adaptar-se aos novos ventos. Sanções

motivadas por sentimentos imediatistas quase sempre degeneram

em situações contraproducentes, o que, no caso concreto,

impediu a realização do objetivo pretendido, ou seja, a

democratização de Cuba. Novamente San Tiago Dantas apontava o

caminho mais prudente a ser seguido:

"Todo problema em que se acha em causa

a soberania dos Estados oferece

dificuldades e reclama soluções, que muitas

vezes não satisfazem a espectadores

ansiosos por lances sensacionais, mas que,

na aparente modéstia de suas limitações,

conseguem modificar a longo prazo o rumo

dos acontecimentos e baixar, em benefício

da paz, as tensões internacionais. É o que

o Delegado do Brasil espera que venha a

suceder, graças à experiência e à

ponderação dos Chanceleres americanos, ao

fim da presente reunião." (15)

Como na sessão do Congresso Nacional que iria rejeitar sua

candidatura a Primeiro-Ministro, San Tiago logrou demonstrar

novamente, desta feita em Punta del Este, que sua posição e a

posição brasileira (juntamente com a da Argentina, Bolívia,

Chile, Equador e México, que também se abstiveram) eram as

mais coerentes, ponderadas e desapaixonadas. Também como na

sessão do Congresso, a posição de San Tiago foi novamente

derrotada. Essa coerência seria, ao final da Conferência,

reconhecida pelo próprio Secretário de Estado norte-americano,

Dean Rusk, ao admitir que “o Brasil foi o único país que

chegou e saiu da Conferência com a mesma posição.”(16)

Atualidade de San Tiago Dantas: Ética, Economia, Cultura e

Educação

A atualidade, ou melhor se diria, o caráter perene e

universal, do pensamento de San Tiago Dantas, não se reflete

apenas na concretude das propostas e das avaliações quanto aos

caminhos para o desenvolvimento nacional, mas se aplica a

conceitos, teorias e leituras de aspectos da cultura de seu

tempo, a partir das quais enfrentaria os elementos simbólicos

e infra-estruturais da crise política brasileira que chegaria

ao seu ápice em 1964. Acreditava San Tiago que as mazelas do

subdesenvolvimento poderiam ser creditadas à sofrível atenção

conferida pelas elites ao problema educacional brasileiro.

Problemas como a instabilidade das instituições políticas e da

economia, decorrente do descontrole inflacionário, estariam

diretamente relacionados ao crônico déficit educacional

brasileiro, o qual, se ainda é grave nos dias atuais, nos idos

dos anos 60 havia feito com que o Brasil perdesse chances

irrecuperáveis de aproveitar as oportunidades geradas pelo

processo de substituição de importações.

San Tiago tinha muito claro diante de si que os esforços

em prol da modernização econômica e política do país seriam

baldados caso não fossem amparados por um sólido programa de

elevação do nível educacional do país, tanto do povo quanto da

elite. Não por acaso, manteve extenso contato com educadores

da estirpe de Darcy Ribeiro, Paulo Freire e Anísio Teixeira,

com vistas à implantação de uma Lei de Diretrizes e Bases que

atendesse ao imperativo de massificar e aperfeiçoar a

organização e a estrutura do sistema de ensino do país.

Dedicou-se com afinco, no exercício do mandato de Deputado, a

propugnar por uma nova estrutura educacional brasileira,

através de uma LDB que reconhecesse o vínculo existente entre

educação, desenvolvimento econômico e democratização da

sociedade. Em suas “Dez Proposições Preliminares sobre

Educação para o Desenvolvimento”, de 1956, esse vínculo foi

explicitado em termos verdadeiramente premonitórios, ao

concitar o país a modernizar-se tecnologicamente e a aumentar

a eficiência do trabalho mediante o aumento da qualificação

profissional. É, de fato, uma das mais distintas

características do processo de globalização o eixo da

competitividade ter-se deslocado para economias e produtos

intensivos em conhecimento (“knowledge-based”), e relegado a

plano secundário o setor de matérias-primas e produtos semi-

manufaturados. Sabe-se igualmente que hoje um dos principais,

senão o principal, fator de composição do chamado “custo

Brasil” é o baixo nível relativo de qualificação profissional

do trabalho em setores-chave da cadeia produtiva do país.(18)

Sabia assim San Tiago Dantas que era na infra-estrutura

cultural e simbólica da nacionalidade, e não no seu produto

interno bruto e nos seus indicadores macroeconômicos - sendo

que hoje em dia variáveis culturais e simbólicas tornam-se

determinantes para a análise econômica(19) – que residia a

riqueza sustentada ou o retrocesso das nações. Além da

incessante atuação político-parlamentar e da militância

intelectual em prol dessa convicção - que, não é demasiado

repetir, somente hoje em dia se aparenta banal - San Tiago

propugnou por uma educação cívica, humanística e cidadã

fundada em preceitos éticos que, mais uma vez, estariam muito

adiantados para o seu tempo. Estabeleceu os contornos de uma

teoria ética que só viria a ter sua expressão integralmente

formulada a partir da publicação de Uma Teoria da Justiça, de

John Rawls, em 1971. Dado o espírito holístico e multifário de

San Tiago, sua ética filosófica seria trabalhada numa das mais

influentes análises literárias já publicadas em língua

portuguesa, onde humanismo ético, modesta erudição, clareza e

distinção analítica combinam-se para fazer do seu D. Quixote

um dos grandes momentos da prosa em língua portuguesa.(20)

Á ética precursora santiaguiana, como todo sistema vivo e

articulado, encaixa-se modularmente em outras esferas de seu

pensamento, mormente o jurídico. Somente a leitura completa de

sua apologia do Quixote revelará os contornos dessa ética

filosófica, embora o trecho a seguir nos forneça pistas

suficientes para o propósito deste artigo:

“É o Quixote um herói fracassado? Sim, se atentarmos

apenas no desvario de suas aventuras e arremetidas contra

alvos imaginários, e no fatal insucesso que, uma por uma, lhe

encerrou todas as ações. Mas quando passamos à última página

do livro inimitável, compreendemos que a efusão do heroísmo

não ficou perdida; que os atos malogrados do último cavaleiro

foram recebidos a crédito, para compensação das injustiças e

agravos que ele não soube ver, nem reparar; e finalmente que

dele brota um ensinamento contrário ao ideal da eficiência,

que é o da simples entrega de si mesmo, para operar pelo

exemplo e pela germinação. [...] Cada vez que, em nossa

própria vida, nos recusamos a uma salida, porque sabemos que

nosso ato não terá força sobre as condições externas e assim

não poderá remover os obstáculos opostos ao nosso intento,

estaremos agindo contra o espírito de D.Quixote.”(21)

Transparece da interpretação de San Tiago da contribuição

do Quixote para o espírito Ocidental a fundamentação

filosófica do liberalismo, em que os direitos individuais, as

escolhas de vida que julgamos valiosa, nossa autonomia, enfim,

não podem ser subjugadas em nenhuma circunstância, mesmo em

nome de um pretenso beneficio coletivo e difuso. A ética

santiaguiana, kantiana por excelência, é pautada por

universais de dignidade humana que requererão uma série de

bens primários, a liberdade, a educação, condições materiais

mínimas de existência, etc., do substrato dos quais nossas

ações poderão ser plenamente justificadas para os demais

membros da sociedade. O ideal da eficiência, anatematizado por

San Tiago, é inteiramente congruente com o conseqüencialismo

na ética, em que a validade de um ideal será medida justamente

pela função e pelo nível de utilidade que podem ser atribuídas

à ação. Já a “entrega de si mesmo” é mais consentânea com o

ideal kantiano, e, mais tarde, rawlsiano, do primado da

justiça e da autonomia sobre os constrangimentos do Estado e

da sociedade. A ética do Quixote, que, por transposição, seria

a ética de San Tiago Dantas, é a verdadeiramente liberal, de

corte deontológico, que requer o respeito resoluto e

inequívoco aos projetos de vida de outrem, por mais

disparatados que pareçam, do mesmo modo que disparatados

seriam os ideais do Quixote quando lidos pelas lentes do

utilitarismo que ainda prevalece nas relações entre os

indivíduos e entre estes e o Estado.

Essa forte concepção deontológica da ética de San Tiago

Dantas transparece igualmente em muitos de seus estudos

jurídicos, mas notadamente quando analisa os limites que devem

ser impostos ao uso da propriedade, quanto o proprietário

deverá responder pelos abusos e prejuízos causados a outrem

decorrentes do exercício inadequado desse direito,

antecipando, assim, dispositivos de lege ferenda que viriam a

ser consagrados somente a partir da vigência do novo Código

Civil, a partir de 2003.(22)

Ainda que San Tiago não nos tenha legado um repertório

enciclopédico de seu pensamento plural e multidisciplinar, sua

contribuição para a vida intelectual brasileira assoma-se ao

nível do aporte herdado dos grandes humanistas e estadistas do

país, como o foram Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. O

universalismo do pensamento santiaguiano é incontestável, a

ponto de termos continuamente de recorrer a seus ensinamentos

jurídicos mesmo após as infindáveis reformas e alterações do

direito positivo observadas nas quatro últimas décadas. Esse

universalismo, que insere seu pensamento na melhor tradição do

liberalismo clássico, é que faz dele o grande jurisconsulto, o

crítico, o cientista político, o ensaísta, o publicista e o

diplomata que aprendemos a reverenciar, mesmo não tendo vivido

em seu tempo e podido acompanhar a sua trajetória pública. Do

mesmo modo que a liberdade é um bem público que não se vincula

prioritariamente ao indivíduo que dela desfruta, o talento, a

disciplina e a acuidade intelectual de San Tiago não são bens

que avocaria para si, mas verdadeiras expressões da grandeza

do Brasil, de nossa capacidade de encontrar caminhos para o

desenvolvimento, de oferecer inovadoras contribuições para a

paz e para a solução dos graves problemas domésticos e

internacionais dos nossos dias. Tal é o legado de San Tiago

Dantas, que vibrará para sempre no coração dos democratas

brasileiros, de todos os tempos e gerações.

Notas:

(1) Scanlon, T. M., "Contractualism and Utilitarianism", in

Sen, A., & Williams, B., Utilitarianism and Beyond, Cambridge,

Cambridge University Press, 1996, pp. 117 e passim.

(2) Moreira, M. M., apresentação de San Tiago Dantas, D.

Quixote: um Apólogo da Alma Ocidental, Brasília, ed. da UnB,

1979, p. 5.

(3) Rawls, J., Political Liberalism, Nova York, Columbia

University Press, 1993, pp. 36/37.

(4) Weffort, F. C., Por que Democracia?, São Paulo,

Brasiliense, 1985, pp. 33/34 (3ª edição).

(5) Exemplo eloqüente dessa síntese filosófica, em torno de

três grandes eixos de pensamento, está contida no prefácio de

sua Política Externa Independente (Rio de Janeiro, ed.

Civilização Brasileira, 1964), em que afirmava a coerência e a

‘constãncia’ da política externa brasileira, moldada

exclusivamente na proteção de nossos valores e interesses,

sendo o Brasil um país que aspira “(1) ao desenvolvimento e à

emancipação econômica e (2) à conciliação histórica entre o

regime democrático representativo e uma reforma social capaz

de suprimir a opressão da classe trabalhadora pela classe

proprietária.”

(6) Jaguaribe, H., "San Tiago e o Projeto Nacional", in

Coelho, J. V. et allii, San Tiago - Vinte Anos Depois, São

Paulo/Rio de Janeiro, Paz e Terra/IEPES, 1985.

(7) Moreira, M. M., “O Veio Humanista na Reflexão de San

Tiago”, idem, p. 27.

(8) Discurso proferido pelo Deputado lbrahim Abi-Ackel na

Sessão da Câmara dos Deputados em homenagem ao 90° natalício

de San Tiago Dantas, 30/10/2001, iniciativa do Deputado Valdir

Pires.

(9) Dantas, S. T., Palavras de um Professor, Rio de Janeiro,

Forense, 1975, p. 18, apud De-Mattia, F. M., "Legado

Multidisciplinar de Francisco Clementino de San Tiago Dantas",

aula inaugural do ano letivo de 1995 da Faculdade de Direito

da Universidade de São Paulo, 02/03/1995, mimeo.

(10) O filósofo de nossos dias que logrou demonstrar

analiticamente esse vínculo é Amartya Sen, especialmente em

seus três livros traduzidos e publicados no Brasil, Sobre

Ética e Economia e Desenvolvimento como Liberdade (São Paulo,

Companhia das Letras, 1999 e 2000, respectivamente) e

Desigualdade Reexaminada (Rio de Janeiro, Record, 2001).

(11) O reconhecimento explícito e doutrinariamente acabado

dessa realidade de reconciliação de interesses aparentemente

antagônicos entre EUA e URSS no cenário internacional seria

realizado no magistral ensaio “O Congelamento do Poder

Mundial”, do então Embaixador na ONU João Augusto de Araújo

Castro, in Araújo Castro, Brasilia, ed. da UnB, 1982, pp. 197-

212 (Col. ‘Itinerários’).

(12) Fonseca Jr., G., A Legitimidade e Outras Questões

Internacionais, São Paulo, Paz e Terra, 1998, esp. O capítulo

"Alguns Aspectos da Política Externa Brasileira

Contemporânea". O autor vislumbra precisamente na “Política

Externa Independente” a expressão por excelência dessa

“autonomia pela distância” (op. cit. p. 360).

(13) Os “cinco pontos de política externa” de San Tiago Dantas

encontram-se relacionados no livro Política Externa

Independente, apud Archer, R., op. cit. pp. 34/35.

(14) Discurso de San Tiago Dantas na Comissão Geral da OEA, em

Punta del Este, 24/01/1962, extraído do portal

www.cebela.org.br/txtpolit/socio/vol7/G_253_2.html

(15) Idem, ibidem.

(16) Archer, R., “San Tiago e a Política Externa

Independente”, in Coelho, J. V. et alli, op. cit., p. 38.

(17) “Dez Proposições Preliminares sobre Educação para o

Desenvolvimento”, in Revista Brasileira de Política

Internacional, set. /dez de 1964, ano VII.

(18) Cf. em Arbache, J. S., "Comércio Internacional,

Competitividade e Políticas Públicas no Brasil", Brasília,

Departamento de Economia da UnB, junho de 2002, mimeo.

(19) Cf., por exemplo, em Knack, S. & Keefer, P., "Does Social

Capital Have an Economic Payoff? A Cross-Country

Investigation”, in The Quarterly Journal of Economics,

novembro de 1997, pp. 1251-1288.

(20) Dantas, S. T., D. Quixote - Um Apólogo da Alma Ocidental,

Brasília, ed. da UnB, 1979 (prefácio de Marcílio Marques

Moreira). A modéstia invulgar desse texto consiste na recusa

de San Tiago de incluí-lo no rol dos textos de análise

literária, considerando-o apenas como uma contribuição

“propedêutica” (pág. 16).

(21) D. Quixote... op. cit., p. 45.

(22) Dantas, S. T. O Conflito de Vizinhança e sua Composição,

Rio de Janeiro, ed. Forense, 2ª edição, 1972. A clareza

analítica de San Tiago, aliada a uma poderosa ética

interveniente em conflitos de direitos, transparece na

passagem seguinte da obra citada, às páginas 280 e 281:

"Verificando (...) que os incômodos são excessivos por ser

anormal o uso da propriedade que lhes dá origem, o juiz

indagará se a supremacia do interesse público legitima este

uso excepcional; se legítima, e se a ofensa à saúde, segurança

ou sossego não é de molde a inutilizar o imóvel prejudicado, o

juiz manterá os incômodos inevitáveis e, pela expropriação que

assim inflige ao proprietário incomodado, ordenará que se lhe

faça cabal indenização (direito oneroso de vizinhança); [...]

Se, porém, o interesse público não legitima o uso excepcional,

é de “mau uso” que se trata, o juiz mandará cessar". Note-se

aqui que o aspecto deontológico da proteção de direitos fica

patente quando San Tiago se refere a “interesse público” como

sinônimo, no caso concreto, de um bem “particular” que está

sendo infringido, como saúde, segurança e sossego. O bem é

público na medida em que a proteção desse direito, embora

privado, interessa a toda à coletividade. É o mesmo que se

passa, mutatis mutandis, com a defesa do Coronel Dreyfuss

empreendida por Émile Durkheim no famoso caso do século XIX na

França, em que não visava propriamente à defesa de Dreyfuss,

mas a assegurar um direito de primeira ordem, apelando para a

“consciência moral coletiva”, cuja promoção era de interesse

de toda a sociedade. Aqui a autonomia do agente, exatamente

nos termos do individualismo de Kant e Rousseau, expressa a

autonomia da razão como um “produto social”. O individualismo

beneficia a sociedade de maneira que, ao defender Dreyfuss,

Durkheim almejava no fundo defender a França das ameaças à

liberdade de expressão, ao direito ao contraditório e à

presunção de inocência.