peixoto, renato amado - duas palavras

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    Duas Palavras: Os Holandeses no Rio Grandee a inveno daidentidade catlica norte-rio-grandense na dcada de 19301

    Two Words: Os Holandeses no Rio Grandeand the invention ofthe catholic identity in Rio Grande do Norte in the 1930s

    Renato Amado Peixoto*

    Resumo

    O livro Os Holandeses no Rio Grande escrito e publicado pelo Padre Paulo

    Herncio de Melo em 1937, alm de ter sido a fonte para a beaticao dosProtomrtires do Brasil foi tambm o ponto de partida para a inveno daidentidade catlica no Rio Grande do Norte. Essa obra pensa os acontecimentosde seu tempo, como o Levante Comunista de 1935 e a Guerra Civil Espanhola,junto com um acontecimento do passado, a Invaso Holandesa e seuspersonagens, por exemplo, Felipe Camaro. Para isto, Os Holandeses no RioGrande dialogou com livros e pensadores que trabalhavam a regionalidadenordestina e a ideia da Nao, por meio de contedos como o Anticomunismo,o Antissemitismo, o Integralismo e o Pensamento Catlico. Por conseguinte,entendo que este estudo de caso permite investigar o prprio sentido daHistria Local e Regional, bem como demonstrar a importncia da Histriada Historiograa para a sua compreenso.

    Palavras-Chave: Protomrtires do Brasil. Felipe Camaro. Lus da CmaraCascudo. Anticomunismo. Antissemitismo.

    1 A primeira verso deste texto foi apresentada como conferncia de abertura do I Encontro de Histriae Historiograa do Rio Grande do Norte Poltica, Cultura e Sociedade, realizada em Mossor, na Uni -versidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), no dia 5 de novembro de 2013, com o ttulo de PadreHerncio e a escritura de Os Holandeses no Rio Grande: Um exame historiogrco da inveno da iden-tidade catlica norte-rio-grandense durante a dcada de 1930. Agradeo a Mrcia Pilnik e Maria ItliaCausin, da Biblioteca do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de So Paulo (IEB/USP) peladisponibilizao e digitalizao da primeira edio de Os Holandeses no Rio Grande. Agradeo tambm colaborao de Daniela Arajo Leirias e Patrcia Wanessa de Morais, minhas orientandas PIBIC, vincu-ladas ao projeto O pensamento catlico, a atuao poltica e a interveno social da Igreja em relao formulao da identidade e da espacialidade norte-rio-grandense entre 1930 e 1964, coordenado pormim na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Este, por sua vez, est vinculado ao projetoA Inveno da Terra Potiguar: instituies, intelectuais e agentes polticos na produo da espacialidadee da identidade norte-rio-grandense (1889-1960) por meio do qual recebeu apoio nanceiro do CNPq eda FAPERN.

    * Doutor em Histria pela UFRJ. Professor do Departamento de Histria e do Programa de Ps-Graduaoem Histria da UFRN. E-mail: [email protected]

    Doi: 10.5212/Rev.Hist.Reg.v.19i1.0002

    Revista de Histria Regional 19(1): 35-57, 2014Disponvel em: 35

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    Abstract

    The book Os Holandeses no Rio Grandein addition to being the source for thebeatication of the Protomartyrs of Brazil, was also the starting point for the

    invention of the Catholic identity in the state of Rio Grande do Norte. Thispaper thinks the events of its time, as the Brazilian Communist Rebellion of1935 and the Spanish Civil War; as well as the events of the past, as the DutchInvasion and its characters, as Felipe Camaro. In this regard, Os Holandesesno Rio Grande dialogued with books and thinkers that worked with thenortheastern regionalism and the very idea of the Nation, through contentssuch as Anti-communism, Anti-Semitism, Integralism and Catholic thought.Therefore, it is believed that this case study allows the investigation of thevery meaning of Local and Regional History, as well as to demonstrate theimportance of the History of Historiography for its understanding.

    Keywords:Brazilian Protomartyrs. Felipe Camaro. Lus da Cmara Cascudo.Anti-communism. Anti-Semitism.

    O livro Os Holandeses no Rio Grande, escrito pelo padre Paulo Herncio deMelo e publicado em 1937 no Rio de Janeiro, pela Editora ABC, uma das obrasmais importantes da historiograa norte-rio-grandense e, ao mesmo tempo,uma das menos conhecidas pelos seus estudiosos.2J valeria a indicao ape-nas ao apontar que esse livro foi a origem da caminhada que levou beati-cao dos Protomrtires do Brasil, aos quais so dedicados monumentos,templos e feriados municipais e estaduais no Rio Grande do Norte. Porm, arelevncia de Os Holandeses no Rio Grandepara a historiograa muito maior,uma vez que este livro inuenciou diretamente inmeros escritos, inclusive,de autores de relevncia nacional, caso de Lus da Cmara Cascudo, assimcomo instigou a discusso acadmica local e regional, por ter estabelecidoum padro de apreciao dos acontecimentos de 1645 nos engenhos Cunhae Uruau.

    Contudo, quero fazer aqui o registro de duas outras tessituras que en-riquecem a apreciao historiogrca da obra de Paulo Herncio. Em pri-meiro lugar, Os Holandeses no Rio Grandefoi a base a partir da qual se consti-tuiu a identidade e a espacialidade catlica norte-rio-grandense, inventadaem contrapartida produo pernambucana e em sintonia com a da Nao.Em segundo, a obra no oferece ao investigador apenas um inventrio doseventos de Cunha e Uruau, mas tambm o dilogo dos intelectuais e dopensamento catlico norte-rio-grandense com a produo historiogrca

    2 HERNCIO, Paulo. Os Holandeses no Rio Grande. 1 Ed. Rio de Janeiro: Empresa Editora ABC Limitada, 1937.

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    dos sculos XIX e XX e com os diversos eventos locais, nacionais e interna-cionais de seu tempo.

    Por conseguinte, entendo que o livro de Paulo Herncio no apenas se

    coloca como uma obra fundamental para a histria e a historiograa do RioGrande do Norte, mas tambm se apresenta como um registro interessantepara aqueles que desejam empreender um exame da atuao geopoltica daIgreja Catlica por meio do caso norte-rio-grandense e como uma fonte quepossibilita articular os limites e liames do pensamento catlico na dcada de1930, especialmente no que se refere ao anticomunismo.

    Comparando as duas edies de Os Holandeses no Rio Grande

    O problema a ser enfrentado por aqueles que iro empreender a leitu-ra de Os Holandeses no Rio Grande a grande diferena entre a segunda ediodo livro, de 1980, e a edio original.3O volume editado pela Fundao JosAugusto, pertencente ao governo do estado do Rio Grande do Norte, omitequalquer referncia folha de rosto original em que se via o Nihil ObstatdaDiocese de Natal e o Imprimaturdo Bispo Dom Marcolino Esmeraldo de SouzaDantas. Falta tambm mencionada edio todo o ltimo captulo, Reden-o, e a maior parte do penltimo captulo, Os teros de Henrique Dias.Alm disso, o prefcio original, Duas Palavras, escrito pelo padre J. Cabral,

    escritor, jornalista e um dos principais porta-vozes do anticomunismo nasdcadas de 1930 e 1940, foi substitudo por outro, escrito por Helio Galvo,professor universitrio, intelectual e poltico norte-rio-grandense.

    Em seu prefcio, Hlio Galvo considera Os Holandeses no Rio Grandeuma crnica atualizada e no uma obra de historiador, reexo da de-voo de Paulo Herncio aos mrtires de Cunha, Ferreiro Torto e Uruau,provada na organizao de um certame dedicado a eles, o Congresso Euca-rstico de So Jos de Mipibu. Nesse sentido, Hlio Galvo entendia que teria

    faltado a Paulo Herncio uma leitura mais ampla do material bibliogrcoento disponvel, bem como uma anlise aprofundada do perodo holan-ds remetendo s lutas que na Europa envolviam o Imprio de Felipe II e oReino dos Pases Baixos.4

    Por sua vez, o prefcio de padre J. Cabral 1 edio cuidava de fazera ponte entre os acontecimentos da dcada de 1930 e os da ocupao holan-desa: os exemplos da resistncia aos colonizadores por meio da comunho

    3

    HERNCIO, Paulo. Os Holandeses no Rio Grande.2 Ed. Natal: Clima Fundao Jos Augusto, 1980.4 Ibid. p. 5.

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    entre a religio e a ptria serviam para forjar um sentido do nacionalismoem luta contra os modernos Calabares que procuravam entregar o Brasilao comunismo ateu e aos colonizadores soviticos. Contrapunham-se ento,

    em sua anlise, o internacionalismo fraterno de Cristo e a chea do Papa,centrados no Vaticano, em Roma, ao internacionalismo anrquico e incen-dirio de Marx e chea de Stlin, aquartelados no Kremlin, em Moscou.5

    Longe de se encaixar na reviso positiva do sentido da colonizaoholandesa e do papel de Calabar, que era feita no perodo em que Helio Gal-vo escreveu seu prefcio, em ns da dcada de 1970, inclusive, por meio dapea teatral homnima, escrita por Chico Buarque de Holanda e Ruy Guerra,entendo que a obra de Paulo Herncio investia em uma interpretao opostaquela exemplicada no Elogio da Traio. As partes faltantes ao corpo

    do livro na 2 edio so exatamente as que do conta da derrota e fuga dosholandeses do Rio Grande do Norte, louvando a benevolncia de HenriqueDias em relao aos holandeses, enaltecendo a liderana guerreira de umnorte-rio-grandense, Felipe Camaro e seu apego f catlica. Exaltam tam-bm a sacralizao da terra norte-rio-grandense pelo sangue dos mrtires,

    sacricados por Deus, pela Ptria e pelo Rei.Finalmente, na folha de rosto, se apontava que tanto o texto quanto o

    prefcio de padre J. Cabral eram aprovados do ponto de vista moral e doutri-

    nrio pela Igreja norte-rio-grandense e aconselhados para a leitura de todosos catlicos pelo seu bispo diocesano.

    Historiografa e Histria da Historiografa6

    Devemos perceber por essa breve enumerao das diferenas entreas duas edies do livro de Paulo Herncio que pensar Os Holandeses no RioGrandeno uma tarefa que se esgota no estudo de sua escrita, mas que ne-cessita ser remetida a uma investigao de sua insero, enquanto produto

    histrico, em seu tempo, o que nos leva a uma perspectiva de ter de operar

    5 HERNCIO, Paulo. Os Holandeses no Rio Grande. 1 Ed. Rio de Janeiro: Empresa Editora ABC Limitada,1937, pp. 5-7.

    6 Busco dialogar com o texto Histria da Historiograa como analtica da Historicidade, de Valdei Lo-pes de Arajo de modo a poder contribuir na discusso para o estabelecimento da Histria da Historio-graa como subdisciplina no campo histrico. Tentarei aproximar a estratgia da desconstruo ao pen-samento heideggeriano entendendo que esta tarefa fez parte do percurso intelectual de Jacques Derrida.Em especco, colocarei minha posio a respeito ao problema da inveno da histria e apontarei aquesto da espacialidade e da espacializao enquanto fundamentais para a discusso em torno da de -nio da historicidade como a temporalizao da temporalidade do acontecer humano. Ver: ARAJO,

    Valdei Lopes de. Histria da Historiograa como analtica da Historicidade. Histria da Historiograa,Ouro Preto, n. 12, p. 34-44, ago. 2013.

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    a partir da desnaturalizao das formas de sua apreenso historiogrca,por meio de um exerccio que tenha em conta a histria da historiograa e,nesse sentido, acredito que se torna necessrio esclarecer minhas escolhas.

    Metodicamente, entendo que poderia prosseguir com esta tarefa pelodescortinamento sucessivo das formas de cognio que possibilitaram aescrita de Os Holandeses no Rio Grande, ou seja, investindo, em um primei-ro momento, nas relaes que inserem essa obra no rol daquelas que fo-ram produzidas por Paulo Herncio; buscando, em um segundo momento,compreender as escolhas empreendidas pelo autor na elaborao de suaobra (e. g., fontes, bibliograa) e exaurindo, em um terceiro momento, asrelaes e dilogos com outros textos, de modo a poder explicitar as condi-es, formas e funes de sua abertura historiogrca. Se assim o zesse, de

    certo estaramos operando, num percurso que caminha do estudo da escritapara seu estudo crtico da historiograa histria da historiograa con-tudo, acredito que perderamos algo que procurei explicitar justo no ttulode nosso texto: a ideia de inveno.

    Ainda que a ideia de inveno possa ser questionada como tal, ou seja,nada seria realmente inventado, mas repensado ou reconduzido a partir deum estoque sempre presente e renovado de condies, ou de que a ideia deinveno adviria mesmo do primado de um discurso construtivista e his-

    toricizante da prpria historiograa, entendo ser necessrio colocar esteproblema a ideia da inveno no como uma busca de origens, mas en-quanto a procura das condies inaugurais de um campo de forase de certarelao de forasque constituram uma funopara a histria do martrio deCunha e Uruau. No caso, escolhi prosseguir com esta tarefa investindopor meio da estratgia dadesconstruo derridiana7visando compreender asescolhas de Paulo Herncio e descortinar as recepes de sua escrita emmeio a esse processo.

    7 No utilizo a estratgia da desconstruo apenas para compreender o que o poder , mas para com-preender quais poderes podem ser em tais e tais contextos. Neste sentido, entendo que a questo dopoder to pervasiva, que no se pode isolar o lugar em que se lida com a questo mesma do poder nemcom as formas do poder, as quais convivem e se misturam com o Estado e nas diversas lgicas do Estado eacerca do Estado. No caso, utilizando a estratgia da desconstruo, procurarei colocar a relevncia de seconsiderar uma histria do espao na analtica da historiograa, a partir do argumento de que conside-ramos falsamente o espao e o tempo como duas possibilidades que temos de comparar ou relacionar, jque so termos conjuntos, a condio do aparecer do ser. Em relao a este argumento, ver: DERRIDA, Jac-ques. OUSIA E GRAMME Nota sobre uma nota de Sein und Zeit. In: Margens da Filosoa. 1 Ed. Campinas:Papirus, 1991, p. 90-93. Para a estratgia da desconstruo, ver, do mesmo autor: Hospitality, Justice and

    Responsibility: A Dialogue with Jacques Derrida In: Richard Kearney & Mark Dooley (eds.), QuestioningEthics: Contemporary Debates in Philosophy. Londres: Routledge, 1999, p. 65-83.

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    Comeo esta jornada aproveitando, mais uma vez, o prefcio de HlioGalvo para a 2 edio de Os Holandeses no Rio Grande.8Como j vimos, Galvocoloca o Congresso Eucarstico de So Jos de Mipibu enquanto uma prova

    da devoo de Paulo Herncio aos Mrtires, o que, em seu julgamento, con-duziria as escolhas da feitura do livro uma obra de devoo, realizada nascondies do campo religioso ao qual estava integrado o Catolicismo.

    No entanto, como acredito que a compreenso de Galvo se encerra por conta das posies tericas e historiogrcas dominantes em seu tem-po, o incio da dcada de 1980 na impossibilidade de se pensar o problemahistoriogrco em uma perspectiva em que a religio fosse compreendidacomo poder em seu prprio discurso, como se tornou possvel depois daviradaps-secularismo(postsecular turn) e, inclusive, a partir de um campo

    prprio, da Geopoltica Religiosa(religious geopolitics).9Por conseguinte, entendo que se devem inverter os termos colocados

    por Galvo para que possamos pens-los: a apreciao de Os Holandeses no RioGrandedepende da considerao do livro a partir das condies que possi-bilitaram o Congresso Eucarstico de So Jos de Mipibu, para, somente emseguida a isso, indagar destas condies qual funo poderia possuir a obrade Paulo Herncio.

    D. Marcolino e a Reestruturao DiocesanaO Congresso Eucarstico de So Jos de Mipibu uma das cenas princi-

    pais de um processo que entendo se iniciar com a nomeao de D. MarcolinoDantas para a Diocese de Natal, em setembro de 1929. No caso, D. MarcolinoDantas, religioso de prestgio na Bahia e com trnsito na capital da Repbli-ca, iria inaugurar no Rio Grande do Norte, aps a Revoluo de 1930, umapoltica de apoio aos Interventores federais em oposio s organizaes fa-miliares destitudas do poder.10Esse apoio seria provado j em 1931, quando

    8 Trabalharemos a partir daquilo que Jacques Derrida denominou de crtica formalidade do pref-cio, explorando sua exterioridade e interioridade em relao ao livro e trabalhando o problema de umahistoricidade do prefaciador e de sua relao com a temporalidade (ver as notas 6, 7 e 45 deste artigo):El tiempo es el tiempo del prefacio, el espacio cuyo tiempo habr sido la verdad es el espacio delprefacio. DERRIDA, Jacques. Fuera de libros(Prefacios). In: La Diseminacin. 2 Ed. Madri: Espiral/Ensayo,2007, p. 20.

    9 Quanto discusso sobre a virada ps-secularismo e sobre a Geopoltica Religiosa ver STURM, Tristan.The future of religious geopolitics: towards a research and theory agenda.Area, Londres, v. 45, n. 2, p.134-140, jun. 2013.

    10 Em relao ao conceito de organizao familiar e a escolha de sua utilizao no caso norte-rio-gran-

    dense em substituio ideia de oligarquia, ver PEIXOTO, Renato Amado. Espacialidades e estratgiasde produo identitria no Rio Grande do Norte no incio do sculo XX. Revista de Histria Regional, Ponta

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    D. Marcolino Dantas apoiou o Interventor Alusio Moura contra a tentativade deposio, orquestrada pelo ento tenente Ernesto Geisel, Secretrio Ge-ral do Estado e Diretor da Segurana Pblica do Rio Grande do Norte e con-

    tinuamente testado, especialmente nas eleies de 1934 e 1935, quando D.Marcolino Dantas foi alvo de intensos ataques por parte do Partido Popular,agremiao poltica que reunia a oposio ao interventor Mrio Cmara.11

    Entendo essas posies nos termos de uma reorganizao da IgrejaCatlica na Repblica a Reestruturao Diocesana adequada nova orga-nizao do poder e de espao, a estadualidade; da subsequente reformulaodo pensamento; e da atuao catlica que lanou mo dos insumos forne-cidos pelo Centro D. Vital a Neocristandade.12No caso, considero que aaproximao entre a Igreja Catlica norte-rio-grandense e os Interventores

    federais propiciou a ocasio para que diversos dos seus intelectuais fossemincorporados ao Governo estadual como o caso de Luiz da Cmara Cascudo;isso criaria as condies para o suporte Ao Integralista e Aliana Social agremiaes que reuniam os apoiadores de Mrio Cmara; e prepararia afundao do jornal A Ordem dirio ocial da Diocese de Natal.13

    necessrio ainda apontar a excepcionalidade da situao poltica noRio Grande do Norte, que serve para justicar sua relevncia como caso deestudo e revestir de especial importncia a tarefa de interpretao de Os

    Holandeses no Rio Grande. Neste sentido, o apoio de D. Marcolino Dantas aosInterventores federais e o suporte da Diocese de Natal Ao Integralistadevem ser considerados mediante dois argumentos.

    Grossa, v. 15, p. 169-193, jun. 2010; PEIXOTO, Renato Amado. Para alm da histria poltica: Histria eHistoriograa: entrevista [dez. 2013]. Revista Espacialidades, Natal, v. 6, n. 5, dez. 2013. Entrevista conce-dida a Diego Jos Fernandes Freire et al.

    11 Em relao ao termo Crise de 1935 no Rio Grande do Norte e a situao da Igreja Catlica norte-rio--grandense na dcada 1930, ver: PEIXOTO, Renato Amado. A Crise de 1935 no Rio Grande do Norte: atenso entre as identidades estadual e nacional por meio do caso norte-rio-grandense. In: Anais do VI

    Simpsio Internacional Estados Americanos - Pesquisas acadmicas contemporneas, Natal, UFRN, v. 1, p. 294-301, 2012.

    12 Em relao Reestruturao Diocesana, ver: MICELI, Sergio.A elite eclesistica brasileira.Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1988; e GOMES, Edgar da Silva. O catolicismo nas tramas do poder: a estadualizao diocesanana Primeira Repblica (1889-1930). 2012. Tese (Doutorado em Histria) Pontifcia Universidade Catlicade So Paulo, So Paulo, 2012, 344 p. Em relao Neocristandade e importncia do Centro D. Vitalpara sua compreenso ver: MAINWARING, Scott. A Igreja Catlica e poltica no Brasil, 1916-1985.So Paulo:Brasiliense, 1989; e RODRIGUES, Cndido Moreira. A Ordem: uma revista de intelectuais catlicos. BeloHorizonte: Autntica, 2005.

    13 Em relao aproximao entre a Igreja Catlica norte-rio-grandense e a Ao Integralista ver:PEIXOTO, Renato Amado. Catlicos a postos! A relao entre a Ao Catlica e a Ao Integralista no

    Rio Grande do Norte at o Levante Comunista de 1935. In:Anais do IV Encontro Estadual de Histria. Natal:ANPUH-RN, 2010.

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    Primeiro, que o Rio Grande do Norte foi, junto com So Paulo, o estadomais refratrio a uma composio com o governo Vargas, o que acarretouno clima de grande violncia das eleies de 1934 e 1935, at mesmo porque

    estas dividiram setores das elites tradicionais, proporcionando a incorpora-o de temas e questes da poltica nacional discusso estadual como, porexemplo, a dissoluo da A. N. L. e, nalmente, apresentando novos atores cena poltica local, como os comunistas e os integralistas.

    Segundo, que o Rio Grande do Norte foi o nico estado onde o Levan-te Comunista obteve sucesso, os revoltosos conseguiram controlar a capitaldurante trs dias e conseguiram, inclusive, expandir a revoluo em direoao interior, onde ocuparam diversas cidades. Alm da revoluo propria-mente dita, esteve em curso ainda uma guerrilha rural na regio do vale do

    Au, rea de monocultura da cana-de-acar, que atuou separadamente dosrevolucionrios e se manteve ativa at 1936.

    Este contexto de crise e tenso poltica e social extrema se sublimariano Rio Grande do Norte em 1935, opondo abertamente diversos segmentosdas elites, instituies e movimentos que buscaram no apenas conquistaro poder poltico, mas tambm produzir representaes de suas posies. Osvencedores das eleies de 1934 e 1935 buscaram logo tornar pblica umanarrativa da resistncia dos norte-rio-grandenses contra a violncia perpe-

    trada pelos enviados de Getlio Vargas e, por sua vez, os perdedores procu-raram descrever a lisura de seus atos no Governo e de suas atitudes frente aoLevante Comunista.14

    Era em meio a essa luta de representaes em torno da Crise de 1935que a Igreja norte-rio-grandense fabricou uma identidade e uma espaciali-dade que o Congresso Eucarstico de So Jos de Mipibu teria a funo de

    fazer representar.15

    O discurso anticomunista catlico norte-rio-grandense antes de 1935

    Vimos que o prefcio do padre J. Cabral 1 edio de Os Holandeses noRio Grandeligava os acontecimentos de 1645 ao combate do comunismo, mas

    14 Em relao primeira narrativa ver BARBOSA, Edgar. Histria de uma Campanha:Notas, photographiase documentos do ultimo pleito poltico norte-rio-grandense (1934-1935). 1 Ed. Natal: Imprensa Ocial,1936; em relao segunda, ver: MEDEIROS, Joo. Meu Depoimento Sobre a Revoluo Comunista e OutrosAssuntos. 1 Ed. Natal: Imprensa Ocial, 1937.

    15 O fazer representar, apontado aqui a partir do argumento de que o Congresso Eucarstico de So Josde Mipibu foi colocado em meio luta de representaes com as outras narrativas (ver a nota 14 deste

    artigo), se refere interpretao derridiana de Khra, que ser exemplicado na ltima parte desteartigo Duas Palavras ver a nota 45 deste artigo.

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    como poderia explicar que essa descontinuidade podia se tornar plausvelpara os homens de 1937? Quais eram as formas de acesso a esse passado quepossibilitavam a produo de uma imagem to forte e convincente?

    O discurso anticomunista usualmente tem sido pensado como umareao ou uma posio contra o marxismo ou contra a ex-Unio Sovitica,contudo, se considerado por meio da aproximao do catolicismo, seria maisprudente pens-lo como uma reelaborao especca de um discurso maisgeral contra a modernidade, que focou sucessivamente no combate ao pro-testantismo, maonaria e Revoluo Francesa, e que recebeu a contri-buio de diversos intelectuais no sculo XVIII e XIX, como Edmund Burke,Louis de Bonald, Joseph de Maistre e Juan Donoso Corts.16

    A obra A maonaria e os Jesutas, escrita por D. Vital Maria Gonal-

    ves, bispo de Olinda, em meio chamada Questo Religiosa pode ser consi-derada uma das primeiras manifestaes desse discurso no Brasil,17que seriadesenvolvido no sculo XX por diversos autores, muitos deles inuenciadosou ligados ao Centro D. Vital, criado no Rio de Janeiro, em 1922, por Jacksonde Figueiredo e que, depois de sua morte, passou a ser liderado por AlceuAmoroso Lima. Um desses autores, com vasta produo tambm na rea daespiritualidade catlica, era justamente o padre norte-rio-grandense J. Ca-bral, que durante quase trinta anos foi diretor do semanrioA Cruz, da dioce-

    se do Rio de Janeiro, e que em 1933 publicouA miragem soviticapela EditoraVozes de Petrpolis, um livro centrado no combate ao comunismo.18PadreJ. Cabral, por vrias vezes, representou D. Marcolino Dantas em solenidadesno Rio de Janeiro e essa ligao entre a Igreja norte-rio-grandense e o padreJ. Cabral persistiu inclusive por razes familiares, que o faziam passar, todoano, pelo menos um ms no Rio Grande do Norte. Por conseguinte, torna-serazovel apontar que desde antes do Levante Comunista as ideias do PadreJ. Cabral inuenciavam diretamente o clero e o pensamento catlico norte--rio-grandense.

    Contudo, outras ideias e vertentes do pensamento catlico tambm sezeram sentir por meio dos artigos ento publicados na revista A Ordem, doCentro D. Vital, anal, no era por mero acaso que o dirio ocial da Diocese de

    16Em relao contribuio desses autores para o pensamento catlico brasileiro da dcada 1920 e 1930ver: RODRIGUES, Cndido Moreira. Matrizes poltico-ideolgicas da Revista A Ordem. In:A Ordem: umarevista de intelectuais catlicos. 1 Ed. Belo Horizonte: Autntica, 2005, p. 23-72.

    17 OLIVEIRA, D. Vital Maria Gonalves de.A Maonaria e os Jesutas instruo pastoral do Bispo de Olinda

    aos seus diocesanos. 1 Ed. Rio de Janeiro: Typ. do Apostolo, 1875.18CABRAL, Padre J.A Miragem Sovitica.1 Ed. Petrpolis: Editora Vozes de Petrpolis, 1933.

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    Natal tambm se chamada A Ordem. Os artigos da revista eram reproduzidosna ntegra no dirio natalense e comentados noutros artigos em que se tra-balhavam problemas locais. Estabeleceu-se, assim, desde o primeiro nmero

    do dirio da Diocese de Natal, um compromisso contnuo de reproduo e detraduo das ideias divulgadas na revista do Centro D. Vital e, como nesta seexplicitavam vrias das correntes do catolicismo brasileiro, os artigos do dirionatalense tambm tendiam a reetir essa pluralidade de ideias, embora sejainteressante fazer notar as origens desse dirio para que que evidente maisuma inuncia sobre o desenvolvimento do pensamento catlico no estado.

    Ainda que o primeiro nmero do jornal A Ordemtenha sado apenasem 14 de julho de 1935, suas origens remetem a anos anteriores, em 19 demaro de 1933, quando D. Marcolino Dantas rmou um acordo com o Cen-

    tro de Imprensa da Congregao Mariana de Moos, sociedade fundada em30 de outubro de 1932, efetivamente conando aos Jesutas o apostolado daimprensa no Rio Grande do Norte.19

    Por conseguinte, tambm devemos observar a inuncia da tradioe da histria dessa ordem na produo do anticomunismo catlico norte--rio-grandense e, no por acaso, de modo a encaminhar nosso raciocnio,cabe notar que, a Congregao Mariana de Moos, o jornalA Ordeme a AoIntegralista do Rio Grande do Norte formada em sua maioria por mem-

    bros da Congregao Mariana e instituda numa cerimnia que contou coma presena de D. Marcolino Dantas foram todos criados no dia 14 de julho,mesmo dia da Revoluo Francesa, no exatamente para comemor-la.

    A queda do Homem na Modernidade

    Segundo Gearid Thuathail, a Companhia de Jesus possui uma his-tria e uma tradio que a diferencia das demais ordens da Igreja Catlica. uma ordem universalista que prega absoluta obedincia ao papado, com-

    posta por homens vindos de diferentes culturas e origens, organizada hie-rrquica e militarmente. Incio de Loyola, antes de fundar a Companhia deJesus, participou de campanhas militares e, enquanto religioso, utilizou de-liberadamente metforas militares para descrev-la como uma unidade deelite que possua um general a sua frente e cujos membros deviam se pensarcomo soldados para Jesus e para uma F verdadeira.

    O campo de atuao geogrco e institucional dos Jesutas variou tre-mendamente e os colocou a frente dos principais desaos enfrentados pela

    19REMEMORANDO UM ato de alta signicao.A Ordem, Natal, 15 ago. 1936.

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    Igreja Catlica. Nesse sentido, seu pensamento e sua atuao apresentaramuma coerncia com a sua histria e tradio: os Jesutas foram a tropa dechoque da Igreja na Contrarreforma e representaram sempre o papel de

    uma Igreja Catlica militante e organizada; seu ambiente operacional eradenido a partir de um inimigo que precisava primeiro ser denido, depoisconfrontado e vencido. Seus objetivos eram a defesa e a propagao da ver-dadeira f da Cristandade, e a consolidao e o alargamento do Reino deCristo na terra.

    A ideia de uma humanidade em crise, de uma queda do homem e dacivilizao, em curso desde a expulso do Paraso, mas agravada pela Re-forma, pelo Iluminismo e pela modernidade, e exemplicada no sculo XXpela guerra total, pelas revolues e pelo materialismo, contrastava abrup-

    tamente com o ideal de uma comunidade catlica em que o homem encon-traria a comunho entre o esprito e a matria. Contudo, entendia-se queessas crises deveriam ser passageiras, pois a histria da humanidade umcaminho reaberto pela vinda de Cristo terra, uma histria reta em que aIgreja a mantenedora da Civilizao e dos Cdigos Morais que tiveram suasorigens na Grcia e em Roma, respectivamente. Portanto, a crise, fosse qualfosse sua durao, teria um m, pois o Reino de Cristo eterno e a Igrejacompartilha essa Histria com a humanidade.

    Esta ideia da histria e o pensamento acerca da queda do homem, es-pecialmente renado no sculo XIX, foram ajustados pelos jesutas na aoe no pensamento, os quais inuenciaram, por sua vez, os outros religiosos eos intelectuais catlicos.20

    EmA miragem soviticapadre J. Cabral j fazia, em 1933, a analogia en-tre as perseguies movidas pelos csares com a resistncia dos mrtirese dos combatentes da f, assim como apontava a contnua insurgncia dasfalsas doutrinas e o esforo da Igreja em fazer ressurgir a civilizao depoisdas invases dos brbaros. Padre J. Cabral descrevia, ento, o comunismocomo um desses credos, Marx como seu profeta e O Capitalcomo seu evan-gelho. A metfora dos brbaros modernos seria adotada por Paulo Hern-cio e alargada no artigo A ameaa vermelha, publicado na edio de 20de agosto de 1935 do dirio da Diocese de Natal. Neste artigo, anterior aoLevante Comunista, Paulo Herncio procura denunciar - a partir dos docu-mentos que teriam sido apreendidos pela polcia na sede da A. N. L. do Rio

    20 THUATHAIL, Gearid. Spiritual geopolitics: Fr. Edmund Walsh and Jesuit anti-communism. In:

    Dodds, Klaus & Atkinson, David. Geopolitical Traditions:a century of geopolitical thought. 1 Ed. London:Routledge, 2000, p. 187-210.

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    de Janeiro um plano de expanso do imperialismo sovitico em direoao Brasil, que utilizava a propaganda, a inltrao nas instituies e agentesestrangeiros para minar as bases da nacionalidade e destruir o patrimnio

    moral da nossa gente.21

    Todavia, para a devida apreciao de Os Holandeses no Rio Grande, talvezseja necessrio notarmos que a metfora brbaros modernos seria revistapor Paulo Herncio j em 1936 no artigo Barbria e Civilizao tambmpublicado no jornal A Ordem

    Neste artigo, posterior ao Levante Comunista, Paulo Herncio enten-dia j no ser mais possvel equiparar os comunistas aos brbaros de ou-trora. Se o sentido da oposio dos brbaros civilizao romana podia sercompreendido e se a ideia de Humanidade era entrevista na convivncia dos

    Brbaros com a natureza e no culto que eles prestavam aos seus deuses, taiscoisas no eram observveis na atuao dos Comunistas.

    Segundo Paulo Herncio, agora estava, de um lado, o patrimnio sa-grado da civilizao crist; do outro a volta do homem ao estado selvagem o rebaixamento da personalidade humana com o predomnio da matriae o absolutismo das paixes; com a negao de Deus e a negao da vidafutura.22

    A horda moderna, metfora agora utilizada por Paulo Herncio,

    embora compartilhasse o mesmo legado que o cristianismo e habitasse omesmo espao, fazia da destruio material e simblica do patrimnio dacivilizao crist sua principal propaganda e mobilizao. A identicaodo mal como mvel da atividade da horda moderna se tornou o principalnexo por meio do qual se encaminharia, doravante, o raciocnio de Paulo He-rncio. Por conseguinte, uma reao fria satnica das destruies seriacolocada em outro nvel, o do combate no apenas no campo das ideias, mastambm na forma da Guerra. A ideia do guerreiro catlico, paradoxal, masrecorrente no pensamento da Igreja, comeava a tomar forma.

    Contudo, se torna necessrio deter um pouco esta anlise, uma vezque a diferena entre as duas metforas utilizadas por Paulo Herncio, almda materialidade proporcionada aos seus argumentos pelo Levante Comu-nista no Rio Grande do Norte, deve ser creditada, tambm, recepo, entreos catlicos, dos eventos da Guerra Civil Espanhola.

    21 HERNCIO, Paulo. A Ameaa Vermelha.A Ordem, Natal, p.1, 20 ago.1935.22 ______. Barbria e Civilizao.A Ordem. Natal, p.1, 08 fev. 1936.

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    A horda moderna

    Dois grandes temas impulsionaram o pensamento catlico norte-rio--grandense no perodo da organizao do Congresso Eucarstico de So Jos

    de Mipibu, o primeiro foi a Guerra Civil na Espanha.A Espanha era vista pela tica de ser um pas catlico, tomado pelos

    comunistas e em que os catlicos, a religio, a igreja e as suas relquias erammortos, perseguidos, destrudos e profanados. Sucessivas notcias no jornal

    A Ordemdavam conta de atrocidades sem par e a metfora os novos brba-ros era constantemente evocada em referncia aos Republicanos e a reaoa estes era saudada como um esforo contra os comunistas, que os catlicosdeveriam apoiar sem restries.

    Um episdio da luta na Espanha que moveu profundamente o imagin-rio catlico norte-rio-grandense e suscitou manifestaes mesmo em pequenascidades do interior do estado foi a defesa do Alczar de Toledo. Do ponto de vis-ta jornalstico, a durao do stio movido pelas foras republicanas ao baluartenacionalista, setenta dias, de 22 de julho at 28 de setembro de 1936, impunhauma cobertura atualizada e quase diria. Alm da sucesso de episdios dra-mticos, enfatizados pelo carter geral da Guerra Civil, uma notcia, sobretudo,magnetizou a leitura catlica, prova disto que foi repetida pelo jornalA Ordemno mesmo dia, no ano de 1936, em que se comemorava o padroeiro de Uruau,

    pouco depois da inaugurao do Congresso Eucarstico de So Jos de Mipibu.Segundo o artigo Heroe e Martyr, nos primeiros dias do cerco do Al-

    czar, o coronel Jos Moscard, lder do baluarte, foi chamado ao telefone. Dooutro lado da linha estavam os atacantes, que lhe comunicaram que o seu lhoestava prisioneiro e que, caso o Alczar no se rendesse, o fuzilariam imediata-mente. Depois, passaram o telefone para que o lho de Moscard falasse com opai. Seu lho tinha lhe perguntado como deveria agir. Moscard respondeu o se-guinte: Diga Viva a Espanha! , Viva o Cristo Rei! E morra como um heri.23

    Note-se que o lema do Congresso Eucarstico de So Jos de Mipibu,organizado por Paulo Herncio, era: Louvado seja o Santssimo Sacramen-to, a frase derradeira de Matias Moreira, martirizado pelos holandeses pro-testantes, segundo a explicao do lema que foi publicada pelo jornal A Or-demno mesmo dia e pgina que o artigo Heroe e Martyr.

    Para que entendamos essas remisses recprocas, devemos trabalharo segundo grande tema que impulsionou o pensamento catlico a discus-so do Tricentenrio da Chegada de Nassau a Pernambuco.

    23______. Heroe e Martyr.A Ordem. Natal, p.4, 07 nov. 1936.

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    A discusso do Tricentenrio da Chegada de Nassau a Pernambuco

    Desde maio de 1936 o jornal A Ordem havia inaugurado um debatecom a participao dos principais intelectuais norte-rio-grandenses a res-

    peito das comemoraes da chegada de Nassau a Pernambuco, que entoestavam sendo promovidas pelo governo daquele estado. O debate incluaum problema diretamente ligado ao Rio Grande do Norte, a disputa acercada naturalidade de Felipe Camaro, disputada tambm pelos historiadorespernambucanos, especicamente queles ligados ao Instituto Arqueolgico,Histrico e Geogrco Pernambucano.

    O debate norte-rio-grandense reetia ainda duas discusses que con-comitantemente estavam sendo travadas no nvel nacional: uma dizia res-

    peito reviso da histria da Invaso Holandesa; outra, ao pleito por maiorautonomia estadual, que estava sendo feito no apenas por Pernambuco,mas tambm por outros estados.

    De modo geral, os intelectuais catlicos criticavam o fato que Nassauera visto como pertencente Histria brasileira, sendo esquecida a sua con-dio de invasor e o papel que desempenhou enquanto um agente dos colo-nizadores, executando uma poltica de perseguio dos nacionais, da culturalusitana e da religio catlica. Sobretudo, os intelectuais catlicos aponta-vam que os revisionistas, subjugados pelo exotismo, descuidavam do nacio-nal e das guras que teriam forjado o nacionalismo, posio que contrastavacom a sobrevalorizao que faziam de certos aspectos pontuais como, porexemplo, as contribuies de Nassau arquitetura de Recife. No particular,alguns intelectuais norte-rio-grandenses colocavam que, por essa leitura,notadamente pernambucana, se cuidava de apontar a compreenso e a ca-racterizao de toda uma Regio.

    Se a leitura dos intelectuais catlicos em nvel nacional pode ser enten-dida como parte de um discurso que identicava a Igreja com o Estado brasilei-

    ro, cujas origens devem ser buscadas a partir de 1916 e nos insumos da Neocris-tandade, devo esclarecer que a leitura dos intelectuais norte-rio-grandensesbuscava se juntar compreenso dos intelectuais catlicos nacionais a partirdo descolamento das posies pernambucanas e regionais, especialmente pormeio da nfase na pertinncia de uma leitura da Invaso Holandesa a partir daperiferia da Regio. Este esforo era notvel, principalmente se pensarmos nafora no apenas econmica, mas tambm cultural de Pernambuco em relaoao Rio Grande do Norte, haja vista que, exceo de Pedro Velho de Albuquer-

    que Maranho, governador do estado na dcada de 1890, toda a elite norte-rio--grandense fora formada nos bancos da faculdade de Recife.

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    Observe-se que Os Holandeses no Rio Grandede Paulo Herncio recor-ta o tema da Invaso Holandesa justamente no espao e no perodo quepermitem dizer de uma especicidade dessa presena, predatria, geno-

    cida e essencialmente imperialista, inclusive do ponto de vista econmico,sublinhada pelas perseguies aos naturais e aos costumes, movidas pelosholandeses e seus agentes. Estes agentes, traidores e estrangeiros eram re-presentados na gura de Calabar, o traidor que possibilitara aos holandesescapturar o Forte dos Reis Magos e perpetrara o massacre de Ferreiro Torto;e na de Jacob Rabbi, o judeu que liderara o extermnio dos naturais emUruau e Cunha.

    Jacob Rabbi

    Para compreendermos o alcance das escolhas de Paulo Herncio etambm a recepo de Os Holandeses no Rio Grande, torna-se necessrio expli-citar mais a cena de produo24em que estavam inseridos, no caso, perscru-tando a interao e o dilogo com intelectuais, obras, ideias e movimentospoltico-sociais. Nesse sentido, interessante colocar que as indagaes docrtico, ou seja, daquele que examina a historiograa e sua histria, devemlevar em conta no apenas os elementos integrantes da obra, mas tambmaqueles que, deliberadamente no foram includos pelo autor em seus argu-

    mentos e interpretao. Para isto, vou colocar, resumidamente, a cena deproduo em que o livro de Paulo Herncio se insere.

    24 O conceito de Cena condensa uma srie de posies e de questes esboadas por Jacques Derridadesde meados da dcada de 1960, quando procurava estabelecer o dilogo e uma aproximao com opensamento de Martin Heidegger. Inserida por Derrida no projeto da desconstruo e desenvolvida noslivros Gramatologia, A escritura e a diferena e A voz e o fenmeno Introduo ao problema do signona fenomenologia de Husserl, essa aproximao de Jacques Derrida colocada por meio do deslocamentopara a Linguagem do sentido emprestado ao Ser por Heidegger. Este deslocamento foi pensado por meio daideia da arquiescritura, o sentido pr-lingustico que precederia a inscrio da linguagem seja enquanto fala

    seja como escrita, caracterizado pelo movimento e pela abertura dos signos, que colocaria o que podemoschamar de um Ser dos seresenquanto resposta ao Serde Heidegger (ver KATES, Joshua. Essential History:Jacques Derrida and the Development of Deconstruction. Evanston: Northwestern University Press, 2005,p. 193). A problematizao da arquiescritaabriria, por conseguinte, como uma nica e mesma possibilidade,a temporalizao e a relao com o outro (ver DERRIDA, Jacques. Gramatologia. 2 Ed. So Paulo: EditoraPerspectiva, 2004, p. 73), reconhecendo-se que sua analtica teria de lidar com a monstruosidade dainterpretao, ou seja, que a interpretao seria mais um amlgama do que uma sntese, na medida emque se teria de lidar com o heterogneo, o contraditrio, e com o movimento que permitiria a hibridizaodestes (ver DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferena.3 Ed.,So Paulo: Editora Perspectiva, 2002, p. 249;DERRIDA, Jacques & WEBER, Elisabeth. Points ...: Interviews, 1974-1994. Stanford: Stanford University Press,1995, pp. 385-386). Jacques Derrida pensa, assim, uma temporalidade inteligida por uma cena da histriaque considera primeiro o jogodo mundo, a abertura total que pregura a rede, para depois consider-lo

    enquanto jogo nomundo, ou seja, como uma cena de produocom sua subsequente operao, inscrio edisseminao.

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    J expliquei anteriormente que a Ao Integralista no Rio Grande doNorte foi formada, em grande parte, por integrantes da Ao Catlica e que o

    jornalA Ordem, dirio ocial da Diocese de Natal, era editado por pessoas liga-

    das simultaneamente aos dois movimentos. Otto de Brito Guerra, o redator--chefe do jornalA Ordem, por exemplo, foi o primeiro signatrio do Manifestode Recife, divulgado em 24 de novembro de 1932, em apoio ao Manifestode Outubro de Plnio Salgado, provavelmente o primeiro apoio recebido porPlnio Salgado fora do estado de So Paulo. Para que tenhamos ideia da im-portncia desse engajamento, Lus da Cmara Cascudo, o outro grande nomedo integralismo norte-rio-grandense, somente aderiu ao integralismo j emmeados de 1933 e, por inuncia direta de um dos principais lderes do inte-gralismo, Gustavo Barroso.

    Se, por um lado, o jornal A Ordemvai ser o principal divulgador dasposies de pensadores catlicos como Paulo Herncio e padre J. Cabral e deintegralistas militantes como Otto Guerra, os textos de Cmara Cascudo noforam publicados no jornal A Ordemat o m do Integralismo, embora suaatuao na Ao Integralista norte-rio-grandense tenha se tornado signi-cativamente maior a partir de fevereiro de 1937, depois da interveno dadireo nacional na chea estadual.

    Seria justamente um dos escritos de Cmara Cascudo que colocaria

    algumas das posies mais extremadas do debate intelectual e poltico emque Os Holandeses no Rio Grandese inseria. O principal argumento de O Bra-so Holands do Rio Grande do Norte, publicado em meados de 1936 porCmara Cascudo, era que o Braso desenhado por Nassau para a Capitania doRio Grande (Figura 1) reetia as alianas polticas dos holandeses. No caso,o elemento central do braso, um Avestruz, representaria o chefe indgenaJandu, cujo nome, em tupi, signica avestruzinho.25Tambm em O BrasoHolands do Rio Grande do Norteos acontecimentos de Cunha e Uruauso trazidos para o centro da explicao e nesta se ressalta, comparado coma produo historiogrca anterior, o tom a partir do qual, segundo CmaraCascudo, apresentado Jacob Rabbi:

    [...] um judeu de lenda, clssico, sem escrpulos, malvado, ladro, saqueador,intrigante, covarde. o mentor dos Jandus [...]. De um lado espalha o pavor,impossibilitando uma coligao dos colonos em ajuda ao levante que estalaraem Pernambuco. Doutro lado, o comerciante judeu auferiria lucros, seguros e

    25 CASCUDO, Luis da Cmara. O Braso Holands do Rio Grande do Norte. Revista do Instituto Histrico

    e Geogrco do Rio Grande do Norte.Natal, v. XXXV-XXXVII, 1938-1940. Natal: Typ. Santo Antnio, 1941, p.81-97.

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    vastos, comprando a baixo preo ou arrematando de graa os bens conscadosaos portugueses. As matanas inteis traziam lucros. Rabbi nunca perdeuocasio de negociar bem.26

    Figura 1 Braso da Capitania do Rio Grande

    Fonte: CARVALHO, Alfredo de. Os Brases dArmas do Brasil Holands. Revistado Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano, Recife, v. XI, n. 61, p. 574-589, mar. 1904.

    Trs problemas historiogrcos devem aqui ser colocados de modo aseguirmos esta reexo sobre Os Holandeses no Rio Grande.

    Primeiro, antes de 1871, ou melhor, antes da Histria das lutas com osHolandeses no Brasilde Varnhagen, Jacob Rabbi era apenas referido como ho-lands, amengo ou alemo, jamais como judeu. Varnhagen inaugura uma

    nova forma de se referir a Jacob Rabbi, no caso, como israelita.27Contudo,seria Rocha Pombo que, em 1905, na sua Histria Geral do Brasilpassaria a sereferir a Jacob Rabbi como judeu.28A partir da essa designao seria con-sagrada em outras obras, como na de Alfredo de Carvalho Um intrprete

    26 CASCUDO, Luis da Cmara. O Braso Holands do Rio Grande do Norte.Revista do Instituto Histrico eGeogrco do Rio Grande do Norte.Natal, v. XXXV-XXXVII, 1938-1940. Natal: Typ. Santo Antnio, 1941, p. 91.

    27 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Histria das Lutas Contra os Holandeses no Brasil desde 1624 a 1651.1 Ed.Viena: Imp. de Carlos Finsterback, 1871, p. 208.

    28 POMBO, Jos Francisco da Rocha. Histria do Brasil.1 Ed. v. 4. Rio de Janeiro: J. Fonseca Saraiva Editor,1905, p. 536.

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    dos Tapuias29, de 1909 e na Histria do Brasilde Raphael Maria Galanti, de1911.30Contudo, nenhum desses autores jamais lanou mo de uma adjeti-vao como a que Cmara Cascudo utilizou para se referir, no mais a Jacob

    Rabbi, mas aos judeus. Como explic-la, ou ainda, como lig-la cena deproduo de Os Holandeses no Rio Grande?O segundo problema historiogrco seria em relao ao escrito de

    Cmara Cascudo. Este se colocava em meio ao debate a respeito das come-moraes do tricentenrio da chegada de Nassau a Pernambuco e, emborano citasse Alfredo de Carvalho em seu escrito, a no ser para corroborarsua traduo do nome de Jandu como avestruzinho, era a partir das obrasdesse autor, um dos principais redatores da Revista do Instituto Archeologicoe Geographico Pernambucano, que Cmara Cascudo trabalhou em O Braso

    Holands do Rio Grande do Norte.As informaes acerca dos brases holandeses, suas guras e sua ex-

    plicao esto no artigo Os brazes darmas do Brasil Holands 1638,31enquanto a biograa de Jacob Rabbi e a explicao do nome Nhandui (e noJandu, que segundo Alfredo de Carvalho seria apenas a mutilao do nomeNhandui pelos autores contemporneos) esto, por sua vez, no artigo Umintrprete dos Tapuios 1637-1647.

    Neste ltimo artigo, Alfredo de Carvalho qualica Jacob Rabbi como o

    herege da abominvel seita deicida,32antes mesmo de descrever sua atua-o nos episdios de Cunha e Uruau. Embora essa adjetivao antissemitasomente seja utilizada nessa parte do artigo, caracteriza-se um precedentepara a apreciao de Cmara Cascudo. Contudo, o que diferencia os artigosde Alfredo de Carvalho do escrito de Cmara Cascudo que o autor norte--rio-grandense distingue Nassau como um agente colonial cuja atuao ehomenagens endossaram os feitos de Jacob Rabbi e Jandu-Nhandui. Essapercepo ca ainda mais ressaltada na medida em que Cmara Cascudo, aocontrrio de Alfredo de Carvalho, enxergou na Ema-Avestruz do braso daCapitnia do Rio Grande apenas um smbolo da selvageria dos antagonistasda Civilizao, utilizando para o endosso desta interpretao at mesmo ele-

    29 CARVALHO, Alfredo de. Um Intrprete dos Tapuios: 1637-1647. Revista do Instituto Archeologico eGeographico Pernambucano,Recife, v. XIV, n. 75, p. 657-667, mar. 1909.

    30 GALANTI, Raphael Maria. Histria do Brasil. 1 Ed. v. 2. So Paulo: Duprat & Comp., 1911, p. 317.

    31 CARVALHO, Alfredo de. Os Brazes dArmas do Brasil Holands. Revista do Instituto Archeologico eGeographico Pernambucano,Recife, v. XI, n. 61, p. 574-589, mar. 1904.

    32 _____. Um Intrprete dos Tapuios: 1637-1647. Revista do Instituto Archeologico e GeographicoPernambucano,Recife, v. XIV, n. 75, p. 660, mar. 1909.

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    mentos que haviam sido descartados no exame de Alfredo de Carvalho porserem impossveis de determinar, como, por exemplo, o emprego das coresnos brases de Nassau.33Esclarecido o segundo problema historiogrco,

    passemos ao terceiro.Em 1936, dois anos depois de j estar publicado o livro Brasil Colniade Banqueiros,34Gustavo Barroso lanou a traduo anotada de Os Protocolosdos Sbios do Sio,35livro sabidamente fabricado como propaganda antisse-mita e que havia sido divulgado intensivamente pelos Nazistas na Alema-nha antes mesmo de sua chagada ao poder. No mesmo ano de 1936, GustavoBarroso comeou a escrever A Histria Secreta do Brasilem que aponta a in-uncia negativa dos judeus sobre o desenvolvimento do pas.36O primeirovolume deste livro j estava pronto desde pelo menos setembro de 1936 e,

    antes mesmo de ser lanado nas livrarias, partes de seus captulos forampublicadas no jornal A Offensiva, no qual Cmara Cascudo tambm escrevia.EmA Histria Secreta do Brasil, apontando Jacob Rabbi e os acontecimentos deUruau, Gustavo Barroso explica a atuao de Nassau a partir de sua associa-o com os capitalistas judeus e compara as atrocidades de Jacob Rabbi s daTcheka judaico-comunista e s de Bela Kun, lder da revoluo comunistade 1919 na Hungria, completando, por conseguinte, a ligao, j iniciada nasobras anteriores, entre a Revoluo Francesa, a Maonaria, os Judeus e os

    Comunistas.37Essa ponte com o anticomunismo e o pensamento catlico,possibilitada pela publicao, j em 1931, do livro As foras secretas da Revo-luode Len de Poncins,38foi completada por Gustavo Barroso somente em1937 com o lanamento de Integralismo e Catolicismo.39

    Assim, a interpretao que juntava o compl judaico-maom-comu-nista destinado a controlar o Brasil e o mundo com uma reexo da reunio

    33 CARVALHO, Alfredo de. Os Brazes dArmas do Brasil Holands. Revista do Instituto Archeologico e

    Geographico Pernambucano.Recife, v. XI, n. 61, p. 587 mar. 1904.34 BARROSO, Gustavo. Brasil - Colnia de Banqueiros:(Histria dos emprstimos de 1824 a 1934). 1 Ed. Riode Janeiro: Civilizao Brasileira, 1936.

    35 _____. Os protocolos dos Sbios de Sio; o imperialismo de Israel, o plano dos Judeus para o conquista do mundo,o cdigo do Anti-Cristo, provas de autenticidade, documentos, notas e comentrios.So Paulo: Agncia Minerva,1936.

    36 _____. Histria Secreta do Brasil. P. 1 Do descobrimento abdicao de D. Pedro I.1 Ed. So Paulo: CompanhiaEd. Nacional, 1937.

    37 _____. Histria Secreta do Brasil. P. 1 Do descobrimento abdicao de D. Pedro I. 1 Ed. Rio de Janeiro,Ministrio da Educao e Cultura, Museu Nacional, 1958, p. 56-57.

    38PONCINS, Len de.As Foras Secretas da Revoluo.1 Ed. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1931.39BARROSO, Gustavo. Integralismo e Catolicismo.2 Ed. Rio de Janeiro: Empresa Editora ABC Limitada, 1937.

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    Renato Amado Peixoto

    54Revista de Histria Regional 19(1): 35-57, 2014Disponvel em:

    entre integralismo e o catolicismo seria completada por Gustavo Barrosojustamente nas obras de 1937, dentre elas, Reexes de um Bode40e, especial-mente, no seu prefcio para o livro A Questo Judaica de padre J. Cabral.41O

    prefcio de Gustavo Barroso e mais algumas partes dos captulos do livro dopadre J. Cabral seriam publicados pelo jornal A Ordema partir de outubrode 1937, mas, sabemos que o livro A Questo Judaicaj estava pronto desdeoutubro de 1936.

    Por conseguinte, sabendo-se que Os Holandeses no Rio Grandefoi escritonos primeiros meses de 1937 e que somente foi publicado em setembro desseano, obrigatrio considerar que esta obra dialogou tanto com o escrito deCmara Cascudo quanto com os livros de padre J. Cabral e Gustavo Barroso.Tambm se faz necessrio perceber que Os Holandeses no Rio Grande foi re-

    cebido a partir da circulao e do debate daquelas ideias no Rio Grande doNorte, principalmente porque necessariamente se inseria no circuito queento reunia os integralistas e os catlicos no estado.

    Prova disto que nas pginas do jornalA Ordemde 5 de maro de 1935Paulo Herncio criticou A Histria Secreta do Brasilapontando que GustavoBarroso errara em armar que alguns daqueles que estavam em Uruau ha-viam cometido suicdio. Paulo Herncio argumenta que no havia suportedessa armao em nenhum dos comentadores ou historiadores da Invaso

    Holandesa e nalizava, ao contrrio do argumento de Gustavo Barroso emA Histria Secreta do Brasil, empregando o mesmo tom que utilizaria em OsHolandeses no Rio Grande.

    Para Paulo Herncio, os acontecimentos de Uruau haviam sido cau-sados pelo dio hertico dos amengos e em relao a Jacob Rabbi repe-te apenas o tratamento consagrado por Rocha Pombo. Escolhe tambm noestigmatizar os indgenas, como havia feito Cmara Cascudo e no fazer aligao com os comunistas, como preferiu padre J. Cabral.42Contudo, comoseu livro dialogou com os demais escritos e ideias? Como Os Holandeses no RioGrandefoi reunido ao debate? Ao nal, sabemos no que Gustavo Barroso in-vestiu; que Jacob Rabbi foi agregado ao texto de vrios dos livros de CmaraCascudo; e que padre J. Cabral entendeu que os mrtires eram a imagem, tor-nada possvel, da resistncia contra os invasores comunistas, lo principalde sua obra poltica.

    40 BARROSO, Gustavo. Reexes de um Bode. 1 Ed. Rio de Janeiro: Grf. Educadora Limitada, 1937.

    41 CABRAL, Padre J.A Questo Judaica. 1 Ed. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1937.42 HERNCIO, Paulo. Gustavo Barroso e os Mrtires de Uruass. A Ordem, Natal, p.1, 05 mar. 1937.

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    Duas Palavras: Os Holandeses no Rio Grande...

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    Duas Palavras

    Voltemos a Duas Palavras, o prefcio de padre J. Cabral. Anal, qual a funo do prefcio em um livro? Introduzir o texto, reunir o escrito com

    aquilo que o precedeu, reapropriar o seu contedo? Tudo isso ao mesmotempo?

    Padre J. Cabral intitulou o prefcio escrito para a 1 edio de Os Holan-deses no Rio Grandecomo Duas Palavras e sua explicao no se depreendedo seu texto. Devemos abandon-lo? Devemos procurar seu sentido no textodo livro de Paulo Herncio? Devemos integr-lo cena de produo norte--rio-grandense?

    Uma das partes mais lembradas do livro de Paulo Herncio o captu-

    lo Heris e Mrtires, em que descreve, com cores vivas e detalhes aterra-dores, o acontecido em Uruau. O ponto culminante desse captulo justa-mente o suplcio de Matias Moreira, e sua frase derradeira, uma consso def que destacada em caixa alta do corpo do texto:

    Matias Moreira, quando lhe abriram as costas e lhe tiraram o corao,ainda pde exclamar, numa sublime consso de f: LOUVADO SEJA OSANTSSIMO SACRAMENTO.43

    O ltimo captulo da 1 edio de Os Holandeses no Rio Grande a descri-o da vitria, mas tambm a exaltao de um heri combatente, um guer-reiro catlico, Felipe Camaro. Paulo Herncio escreve que: Felipe Camarono entrava em combate sem primeiro fortalecer a coragem com os sacra-mentos e a orao,44ou seja, com o mesmo Jesus-Hstia, o Santssimo Sacra-mento exaltado por Matias Moreira.

    A frase derradeira de Matias Moreira, Louvado seja o Santssimo Sa-

    cramento tambm presente no escudo do 2 Congresso Eucarstico do RioGrande do Norte, realizado em Currais Novos em outubro de 1937, apenasum ms depois do lanamento do livro de Paulo Herncio (Figura 2).

    No centro do escudo est a imagem do Santssimo Sacramento; naparte de baixo, a paisagem do Rio Grande do Norte, com suas guas, o ter-reno agriculturvel, as montanhas e um ramo de algodo representando asriquezas do estado. Note-se que o escudo do 2 Congresso (Figura 2) se asse-

    43 HERNCIO, Paulo. Os Holandeses no Rio Grande. 1 Ed. Rio de Janeiro: Empresa Editora ABC Limitada,

    1937, p. 78.44 Ibid., p. 106.

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    Renato Amado Peixoto

    56Revista de Histria Regional 19(1): 35-57, 2014Disponvel em:

    melha, mas tambm se afasta admiravelmente do braso da Capitania do RioGrande (Figura 1): na parte de baixo do escudo, as mesmas guas, o mesmosolo; mas, no centro do escudo, o Avestruz cede lugar imagem do Santssi-

    mo Sacramento.

    Figura 2 Escudo do Congresso Eucarstico de Currais Novos

    Fonte: jornalA Ordem, 11 nov. 1937.

    O sentido de representao deve ser recolocado aqui. Representarno refere-se apenas a um sentido passivo apresentar algo mais complexopor meio de um objeto, tambm alude a um sentido ativo, ou seja, de rea-presentar sentidos, de atravessar objetos, de torn-los operantes, enm, detransform-los tambm a partir das condies de sua apresentao, no caso,no conuxo do mito e da razo.45

    45 Aqui trabalho o conceito de Khra a partir da compreenso de Jacques Derrida, visando discutirum sentido de investigao da Histria Local e Regional: o da produo de espacializaes. Procuro

    aproximar a compreenso derridiana do campo da Histria por meio de um estudo de caso, o exame dainveno da identidade catlica na espacialidade norte-rio-grandense e, apontamos que a beaticaodos Protomrtires do Brasil sua consequncia direta. Essa espacializao uma operao em que vriosespaos e tempos foram tomados conjuntamente outras espacializaes, locais, regionais e nacionais.Por meio deste estudo, entendo que o sentido da Espacializao no apenas passivo ou dirigido, masativo e tambm reexivo. Toda espacializao uma des-espacializao e uma des-constituio de outrasespacializaes precedentes ou contemporneas e que, enquanto desloca ativa e masculinamente, a espacializao tambm recebe e concebe passiva e femininamente , possibilitando-se, destemodo, o deslizamento do tempo para a alocao do inventado, fabricado ou reelaborado o Mito.Assim, a espacializao a operaoem que vrios espaos e tempos locais, regionais e nacionais soconjuntamente tomados/recebidos. Na Operao, o espaamento do tempo como no sonho , permite-nos dizer da investigao do espao e do tempo na cumplicidade, de sua origem comum e desse com-

    parecer como condio de todo aparecer do ser, inserido, portanto, no dilogo de Jacques Derrida comHeidegger apontado (ver as notas 6 e 7 deste artigo). Finalmente, nesse sentido de com-parecimento

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    Duas Palavras: Os Holandeses no Rio Grande...

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    Em Os Holandeses no Rio Grandese trabalharam antigos textos de modoa reoperar sua funcionalidade e recolocar suas possibilidades, acrescentan-do-se, nesta operao, outras tessituras. Tornado operante a partir de sua

    espacializao, o sentido catlico da histria foi dotado de um sentido decontemporaneidade com o tempo de sua escrita, com sua cena de produo:o livro de Paulo Herncio mostra o pequenino Rio Grande do Norte ofere-cendo a Pernambuco, Regio e Nao o caminho de sua salvao e o rumopara sua reconstruo.

    Assim como fora possvel pensar a imagem do Avestruz a partir daideia do agenciamento dos naturais pelo estrangeiro predador, o catolicis-mo pde deixar de ser mostrado como um legado dos portugueses para serreapresentado como uma inspirao universal, uma escolha do povo e uma

    ddiva terra norte-rio-grandense, ao m tornada sagrada pelo sangue dosseus Mrtires e pela bravura tambm sagrada de Felipe Camaro daquelesque foram sacricados e daqueles que combateram at o m, por Deus, pelaPtria e pelo Rei.46

    Artigo recebido para publicao em: 20/11/2013Artigo aprovado para publicao em: 07/05/2014

    que pretendo situar um sentido de investigao da Histria Local e Regional, o das operaes queproduzem as identidades e as espacialidades, compreendendo que isto permite tambm aventar umafuno da Histria da Historiograa do Local e do Regional, a de descortinar as espacializaes que dase produzem. Ver em relao ao ponto do dilogo de Jacques Derrida com Heidegger aqui colocadoDERRIDA, Jacques. OUSIA E GRAMME Nota sobre uma nota de Sein und Zeit In Margens da Filosoa.1Ed. Campinas, Papirus, 1991, p.77 e p. 93. A respeito da compreenso derridiana de Khra ver do mesmoautor. Khra.1 Ed. Campinas: Papirus, 1995.

    46 HERNCIO, Paulo. Os Holandeses no Rio Grande. 1 Ed. Rio de Janeiro: Empresa Editora ABC Limitada,1937, p. 106.