a máscara da medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da...

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1 A MÁSCARA DA MEDUSA: A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO NACIONAL BRASILEIRO ATRAVÉS DAS COROGRAFIAS E DA CARTOGRAFIA NO SÉCULO XIX Renato Amado Peixoto Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História. Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães. Rio de Janeiro Fevereiro de 2005

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Page 1: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

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A MÁSCARA DA MEDUSA: A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO NACIONAL

BRASILEIRO ATRAVÉS DAS COROGRAFIAS E DA CARTOGRAFIA NO

SÉCULO XIX

Renato Amado Peixoto

Tese de Doutorado apresentada ao Programa

de Pós-graduação em História Social, Instituto

de Filosofia e Ciências Sociais, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Doutor em História.

Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2005

Page 2: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

2

A MÁSCARA DA MEDUSA: A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO

NACIONAL BRASILEIRO ATRAVÉS DAS COROGRAFIAS E DA

CARTOGRAFIA NO SÉCULO XIX

Renato Amado Peixoto

Manoel Luiz Salgado Guimarães

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em História Social,

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro -

UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História.

Aprovada por:

___________________________________________

Presidente, Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães

_________________________________________

Prof. Dr. Temístocles Américo Corrêa Cézar

_________________________________________

Prof. Dr. Maurício de Almeida Abreu

_________________________________________

Prof. Dr. Ilmar Rohloff de Mattos

_________________________________________

Prof. Dr. José Murilo de Carvalho

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2005

Page 3: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

3

Para Elaine,

minha amada esposa,

porque este trabalho,

como artesanato que uma aranha arranha e tece,

registra sua luta, inscreve seu riso,

no mapa de todos os meus sonhos,

no itinerário de minha passagem.

Page 4: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

4

Aos meus pais

Manuel e Celeste

Page 5: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

5

AGRADECIMENTOS

Ao amigo Prof. Dr. Manoel Luiz Salgado Guimarães, orientador desta tese, não

apenas por ter analisado seu conteúdo e corrigido seu texto, mas também pela

generosidade de apresentar-me a conceitos e questões que possibilitaram buscar muito

além do que inicialmente havia planejado: “Those are pearls that were his eyes”.1

Aos Profs. Drs. Ilmar Rohloff de Mattos e Afonso Carlos Marques dos Santos

que compuseram a Banca de Qualificação desta tese, tanto por suas sugestões, que

considero terem sido essenciais para o direcionamento das questões aqui debatidas,

quanto pelo incentivo que incitou meu trabalho e dispersou minhas inseguranças.

Ao Prof. Dr. Pedro Tórtima, pelo carinho dispensado no IHGB e pelas várias

explanações a respeito da questão penal; do mesmo modo, quero ainda agradecer a

minhas queridas Maria do Brasil e Isabel Correia, velhas conhecidas, pela acolhida

sempre fraternal no Serviço Geral de Documentação da Marinha e no Arquivo do

Itamaraty.

Finalmente, desejo demonstrar meu reconhecimento ao trabalho da Profª. Dra.

Andréa Daher, que em seu curso de Metodologia dispensou toda atenção e cuidado ao

nosso trabalho, e ao Prof. Dr. Carlos Alvarez Maia, cujas idéias e estímulo

possibilitaram o nascimento do projeto desta tese.

1 ‘Estas são as pérolas que foram seus olhos’. WiIlliam Shakespeare, ‘Canção de Ariel’ in A Tempestade, Ato I,

Cena II, The Complete Works of William Shakespeare. MIT: http://www-tech.mit.edu/ Shakespeare.html.

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Peixoto, Renato Amado

A Máscara da Medusa: a construção do espaço nacional brasileiro através

das corografias e da cartografia no século XIX/ Renato Amado Peixoto. – Rio de

Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2005.

xii, 432f.: il; 29 cm.

Orientador: Manoel Luiz Salgado Guimarães

Tese (doutorado) – UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/

Programa de Pós-graduação em História Social, 2005.

Referências bibliográficas: f. 417-432.

1. História do Brasil. 2. Historiografia. 3. História da Cartografia. 4. História

da Política Externa Brasileira. I. Guimarães, Manoel Luiz Salgado II. Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de

Pós-graduação em História Social. III. A Máscara da Medusa: a construção do

espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX.

Page 7: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

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RESUMO

A MÁSCARA DA MEDUSA: A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO

NACIONAL BRASILEIRO ATRAVÉS DAS COROGRAFIAS E DA

CARTOGRAFIA NO SÉCULO XIX

Renato Amado Peixoto

Manoel Luiz Salgado Guimarães

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em

História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Doutor em História.

As corografias e a cartografia foram utilizadas para registrar a construção e a

centralização do Estado brasileiro no século XIX. Este registro, que também foi

empreendido por meio da historiografia, pode ser entendido, num primeiro nível de

leitura, como um discurso onde o Estado narra seu passado, estabelecendo sua própria

legitimidade e fortalecendo-se no plano de seus direitos fundamentais. Num segundo

nível de leitura, entendemos que este registro inscreveu também as relações de força e

soberania que constituíram o Estado e construíram, assim, seu espaço e seu território.

Portanto, estes registros podem ser compreendidos enquanto representações da própria

Elite e de sua convivência continuada com o Político e a sociedade, viabilizando, assim,

um estudo do Poder a partir da compreensão de uma ‘linguagem’ e de um ‘saber sobre o

espaço’; e das condições de composição, produção, divulgação e reelaboração das

representações do espaço nacional.

Palavras-chave: História do Brasil, Historiografia, História da Cartografia,

Geografia, Representação, História da Política Externa, Cartografia, Corografia.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2005

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ABSTRACT

THE MASK OF MEDUSA: THE CONSTRUCTION OF THE BRAZILIAN

NATIONAL SPACE THROUGH CHOROGRAPHY AND CARTOGRAPHY

Renato Amado Peixoto

Manoel Luiz Salgado Guimarães

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em

História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Doutor em História.

Chorographies and cartography were used to register the construction and the

centralisation of the Brazilian state in the nineteenth century. This register, also applied

through historiography, can be understood, at a first reading, as a discourse in which the

state narrates its past, establishing its own legitimacy and strengthening itself regarding

its fundamental rights. In a second reading, it can be seen that this register is also

inscribed in the relations of force and sovereignty that constituted the state and

constructed its own space and territory. Therefore, these registers can be understood as

representations of the elite and their continual interaction with the political sphere and

with society, thereby making possible a study of power through an comprehension of a

knowledge about the space', an analysis of its 'language' and with the understanding of

the processes of composition, production, dissemination and continual reworking of the

representations of the national space.

Key-words: Brazilian History, Historiography, History of Cartography,

Geography, Representation, History of International Relations, Cartography,

Chorography.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2005

Page 9: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

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SUMÁRIO

LISTA DE FIGURAS E TABELAS – 9

CAPÍTULO 1

O tempo do espaço e os espaços do tempo: o antigo modelo de espaço da América portuguesa e a

‘relações de força e soberania’ – 13

CAPÍTULO 2

Rumo à ilha deserta: a construção cartográfica concorrencial e a disseminação – 32

CAPÍTULO 3

O mapa antes do território: a construção local e a construção central do espaço – 48

CAPÍTULO 4

Mapeando o vazio: a ‘gramática da visão’ e a interpretação semiológica e iconológica dos mapas

através das cartas gerais – 66

CAPÍTULO 5

Riscando o passado: a composição cartográfica e a inscrição cartográfica do Estado – 91

CAPÍTULO 6

A descrição do contemplador: as corografias e as condições de elaboração da narrativa – 122

CAPÍTULO 7

O assento central: a ‘operação da narrativa’ e as idéias da inscrição do Estado no espaço – 151

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CAPÍTULO 8

O itinerário do valioso ao possível: o uti possidetis e a operação da narrativa – 194

CAPÍTULO 9

O espelho do Jacobina: os processos de produção cartográfica e o novo regime da narração – 234

CAPÍTULO 10

Em amplexo fraternal: a ‘luta de representações’ e a produção das cartas gerais – 270

CAPÍTULO 11

A ‘Máscara da Medusa’: a perspectiva da centralidade e a construção da ‘Mitologia do espaço

nacional’ – 329

APÊNDICE I – 427

APÊNDICE II – 429

FONTES E BIBLIOGRAFIA – 431

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LISTA DE FIGURAS E TABELAS

FIGURAS

1. Mapa das distâncias da navegação à vela – 17

2. Modelo setentrional – 39

3. Diferentes versões do mesmo atlas – 41

4. Padrão paralelo – 42

5. Padrão diagonal – 43

6. Perspectiva do modelo meridional – 46

7. Guarajús – 47

8. Eixo da representação do primeiro modelo de carta geral – 73

9. A transformação do marco central – 74

10. Transferência de significados do marco central para o marco periférico – 78

11. Esquema da Carta da Nova Lusitânia – 81

12. Esquema de uma construção da centralidade do Rio de Janeiro – 87

13. Exercícios de perspectiva – 93

14. Primeira Carta – 98

15. Composição cartográfica da Primeira Carta – 100

16. Projeção Continental – 111

17. Traçados mais utilizados da linha de Tordesilhas – 116

18. Proposta de D. João VI – 121

19. Esquema das corografias – 130

20. Estrutura do ‘teatro da narrativa’ – 152

21. Estrutura da ‘operação da narrativa’ – 153

22. O Brasil das ‘Memórias acerca dos limites naturais’ – 171

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23. Carta mural Arrowsmith – 248

24. Comparação entre atlas com mapas gravados e atlas com mapas litografados – 254

25. O Rio de Janeiro nos atlas estrangeiros – 288

26. ‘Mapa do Rio Grande’ de Duarte da Ponte Ribeiro – 311

27. ‘Mapa Especial’ de Duarte da Ponte Ribeiro – 317

28. Atenas e Medusa – 337

29. Medusa (Romantic Circles) – 338

30. Esquema (Romantic Circles) – 339

31. Esquema (desta tese) – 340

32. Limites econômicos – 363

33. Limite das Sezões – 366

34. Limites do território restrito e do desconhecimento – 367

35. Mapa das Cortes (português) – 414

36. Mapa das Cortes (espanhol) – 415

37. Exemplo de narração – 421

38. Representações romanas da Medusa (séculos II-III D. C.) – 425

39. Medalhão dos Paranhos – 426

TABELAS

1. Divergências e convergências na SJNE (1842-1848) – 181

2. Relatores das consultas da SJNE entre 1842 e 1848 – 185

3. Áreas do Brasil e de algumas Províncias – 289

4. Exemplo da estrutura da ‘nova corografia’ – 297

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1 — O TEMPO DO ESPAÇO E OS ESPAÇOS DO TEMPO: O ANTIGO

MODELO DE ESPAÇO DA AMÉRICA PORTUGUESA E AS ‘RELAÇÕES DE

FORÇA E SOBERANIA’.

A idéia do espaço nacional brasileiro tem sido confundida com a história de suas

fronteiras, de acordo com uma narrativa centralizada na unidade do território e na

continuidade do Estado português na América. Segundo esta narrativa, durante o século

XIX e o início do século XX, o Brasil, um país satisfeito e cioso de seu legado, dirigiu

seus esforços para a consolidação pacífica dos seus antigos limites através da ação do

direito. Assim, sucessão e legitimidade estão associadas numa construção que prioriza a

fixidez espacial por meio de uma interpretação que entende os contratos de limites

como se fossem registros e testemunhos do nascimento, crescimento e amadurecimento

da Nação.

Neste sentido, a geração e a transmissão da nacionalidade estão ligadas à

consubstanciação pacífica da pátria por meio de uma tradição do privilégio à solução

jurídica, desenvolvida numa coleção de tratados, iniciados pelo gênio de Alexandre de

Gusmão e consolidados pela perspicácia do Barão do Rio Branco. Então, a terra,

somente a terra, foi capaz de unir o passado, o presente e o futuro, moldando o caráter

das relações sociais, a índole do nacional e o entendimento fraterno com os outros

povos: estes são os frutos de uma gênese harmoniosa do espaço e do zelo constante pelo

território.

O Brasil, já império, não procurava obter vantagens próprias ao

invocar o princípio do ‘Uti Possidetis’ [...] o Brasil jamais foi um país

imperialista; nunca usou ou abusou de sua força nem de sua população mais

numerosa para impor aos países vizinhos limites preestabelecidos. [...] Ao

Brasil, nação pacífica, liberal e democrática desde seus primórdios, isto, é

desde a instalação do município português em São Vicente [...] não restava

outro recurso senão valer-se do arbitramento para solução de suas contendas

de limites [...] sendo o Brasil uma sobrevivência do passado, e sobrevivência

da mesma raça em outro meio, não se compreende como seja possível

inventar entre nós uma nacionalidade sem o culto das tradições. É preciso

sentir ainda que uma grande pátria nunca foi obra de uma só geração, por

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maior que seja, mas produto de linhagens sucessivas, resultantes de esforços

continuados e de fatores muito complexos, atuando através dos séculos.2

Entretanto, entendemos que a construção do espaço nacional brasileiro e de seus

limites derivou do debate, das escolhas políticas e das lutas de representações que se

desenrolaram em torno da consolidação do Estado. Neste sentido, os limites e o espaço

não se consolidam nem mesmo depois das transformações operadas no Estado nas

décadas de 1830-1840 e das grandes iniciativas desencadeadas na política externa

durante os dez anos seguintes: podemos dizer que o espaço e seus territórios

continuariam, mutáveis, fluídos e, sobretudo, imaginados.

Assim, em lugar de uma legitimidade impressa pelo contrato dos limites ou de

uma continuidade derivada da tradição, compreendemos que a idéia do espaço nacional

seria melhor entendida como um arranjo contínuo da representação do Estado, motivado

pela reelaboração da inscrição das ‘relações de força e soberania’ que o constituíram e

caracterizado pela elisão das suas tensões e dos seus enfrentamentos.

Na realidade, no século XVIII, o espaço brasileiro havia sido apenas esboçado

pelo que denominaremos de ‘fronteira militar portuguesa’, apoiada sobre praças fortes

isoladas num território em larga parte desconhecido e distantes na média e, em

condições ideais, noventa dias de sua base. A logística da manutenção dessas

fortificações e de suas guarnições bem como as atividades correlatas de patrulha e

exploração, somente puderam ser mantidas, a muito custo, durante a maior pujança do

Estado português, entrando depois em decadência e abandono.

O forte [de São Gabriel] que foi construído em 1763 por ordem do

Capitão-General do Pará, Manuel Bernardo de Melo e Castro, acha-se hoje

em ruínas; com suas peças desmontadas, sua cortina arrasada, seus salientes

desmoronados e seus antigos edifícios em um montão de pedras. Representa

ele uma luneta de forma irregular, cuja gola, que é uma frente abaluartada,

defronta com o rio. As paredes são de pedra e barro simplesmente. Já não

existem mais senão os vestígios do antigo Quartel, dos armazéns para

material e guarda de pólvora.3

2 João Gualberto de Oliveira, Gusmão, Bolívar e o princípio do uti possidetis. São Paulo, 1958, p. 98-99 e contracapa.

3 Relatório da Comissão Demarcadora da Fronteira Norte ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, 1884.

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Contudo, a ‘fronteira militar portuguesa’ não possuía como objetivo a

manutenção da imobilidade da fronteira e da fixidez do espaço, mas, interditar o

movimento nas vias de comunicação conhecidas e obstacularizar os esforços contrários,

sempre deixando em aberto a possibilidade de deslocamento e infiltração no território

circundante a partir de suas posições, como, por exemplo, no caso dos presídios de

Albuquerque e Coimbra na margem ocidental do Paraguai, cuja fundação tinha o

propósito de garantir a navegação exclusiva desse rio e de interceptar a comunicação

interior das províncias espanholas com o Peru pelo caminho de Chiquitos.4

Por conseguinte, entendemos que a ‘fronteira militar portuguesa’ tinha por

princípios, a organização dos esforços avançados, o apoio ao deslocamento e a união do

esforço militar e civil, onde o chefe das tropas exercia um papel central. Tome-se, por

exemplo, a questão do soldo dos praças que serviam nas guarnições avançadas: como

estes eram arregimentados por um período determinado, geralmente um ano, e quando

de seu término, recebiam o soldo em espécie, de uma só vez. Isto significava que o

Estado, ou seu representante necessitava desembolsar grandes quantias de uma só vez e

ao mesmo tempo manter o fluxo das remessas de recursos humanos, com seus encargos

de arregimentação, fardamento, instrução, abastecimento e reposição.5

Deste modo, compreendemos que a ‘fronteira militar portuguesa’ pode ser

associada conceitualmente à idéia da guerra e ao antigo conceito militar da ‘Marca’,

onde sua distância, separação e afastamento estavam ligados à introdução e operação

num território contíguo, estrangeiro e hostil, constituindo-se o enfrentamento numa

possibilidade permanente. A ‘fronteira militar portuguesa’ constituía, de fato, uma

estratégia a ser conduzida num grande teatro de operações, com a flutuação das posições

variando em função de escolhas ou circunstâncias, caracterizando, não uma linha fixa,

precisa e contínua, mas uma zona flutuante, descontínua e imprecisa no espaço.

Por exemplo, a fronteira militar no sul do Mato Grosso foi constituída

estrategicamente de acordo com as condições provocadas pelas cheias do rio, pelos

enfrentamentos com os espanhóis baseados no Paraguai e pelas perspectivas de

cooptação dos índios Guaicurus. Deste modo, a constituição dos postos avançados na

área, como o Presídio de Coimbra, visavam preencher as características desse teatro de

4 ‘Instruções de Paulino José Soares de Souza a José Antônio Pimenta Bueno em 16/10/1843’ in A Missão Pimenta

Bueno (1843-1847) - Documentos, Ministério das Relações Exteriores, 1966, p. 3-15.

5 Francisco José de Sousa Soares de Andréa, 'Observações aos apontamentos sobre o estado atual da fronteira do

Brasil', 1847. IHGB, Lata 289, Pasta 9.

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operações, sendo que estes podiam ser relocados tão logo se constatassem mudanças ou

transformações nas condições estratégicas, como, no caso, pode ser constatado pela

intenção de se fortificar a área de Fecho dos Morros, posição mais favorável ao controle

do tráfego fluvial. Do mesmo modo, a posição de São Joaquim do Rio Branco

destinava-se tanto a basear as razias sobre as áreas povoadas pelos espanhóis e as

patrulhas e explorações na região do baixo Essequibo quanto controlar a área do alto

Rio Branco.

Ainda, a ‘fronteira militar’ remetia às condições da variação de escala aplicada

pela metrópole e que eram opostas a uma idealização da unidade e centralidade da

América portuguesa: a Amazônia, o Mato Grosso e o extremo sul, por exemplo,

constituíam espaços diferenciados para os quais convinham estratégias e iniciativas

separadas, sendo, inclusive, chamados, à época, de ‘Continentes’ do Domínio

português, comportando, cada qual, qualidades e consistência próprias.

As variações de escala aplicadas pela antiga metrópole ao espaço brasileiro eram

então também determinadas pelas limitações que as condições geográficas impunham às

comunicações, impondo-se, por conta da necessidade de descentralizar a administração,

a compartimentação do espaço. No caso, esta compartimentação pode ser exemplificada

por meio de um estudo do deslocamento entre o Rio de Janeiro, Belém, Angola e o

Prata. Então, a navegação à vela era praticamente o único meio de comunicação entre as

várias partes do Domínio português, sendo que, a distância entre Belém e o Rio de

Janeiro não era vencida através do costeio do litoral, mas pelo deslocamento dos navios

até a região próxima às ilhas de Cabo Verde, de onde os barcos eram novamente

impulsionados até as proximidades da Paraíba, importando numa viagem de,

aproximadamente, 11.500 quilômetros. Mas, se os barcos, por algum erro de cálculo ou

por um problema no regime de ventos, arribassem mais à noroeste da costa da Paraíba,

estes eram forçados a ter de refazer o deslocamento até Cabo Verde para poder retomar

a viagem.

Contudo, o trajeto entre Rio de Janeiro e Angola somava apenas a metade

daquele percurso, aproximadamente 6.000 quilômetros, enquanto que a distância que

separava o Rio de Janeiro da região do Prata era seis vezes menor, mas, separava o Rio

das regiões centrais do Brasil. Neste caso, as várias dificuldades do roteiro terrestre até

o Mato Grosso e o interior de São Paulo, Paraná e Goiás, como, por exemplo, as

doenças tropicais e os ataques dos indígenas, impunham a viagem pelo Paraná e

Page 17: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

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Paraguai através do Prata, sendo que, o tempo de deslocamento era ainda diminuído em

até sete meses.

Portanto, utilizarmos as distâncias exigidas pelos condicionalismos da

navegação à vela para construirmos um mapa do espaço da América Portuguesa e de

seus espaços adjacentes, chegaremos a um modelo que reproduz aproximadamente a

compartimentação do espaço, mesmo porque estes percursos poderiam ser ainda

aumentados, em função das correntes, calmarias e regime de ventos.

Cartografia: Renato Amado Peixoto.

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Note-se na Figura 1, a dispersão dos territórios brasileiros num espaço maior que

também compreende outros locais e espaços idealizados, como Angola, França,

Inglaterra e a África, a Europa e o Prata.6

Observe-se que a Europa, o Prata e a África apresentam-se mais próximas do

Rio de Janeiro e dos territórios adjacentes que os territórios amazônicos, e que, em

relação aos territórios centrais, apresentar-se-ia uma contiguidade ressaltada pelas

condições da navegação à vela, que representamos pelo prolongamento da Bahia e do

Rio Grande do Sul.

Veja-se que a região central encontra-se destacada dessa continuidade em função

do Prata, apresentando-se a esta descontinuidade a alternativa da longa comunicação

fluvial por São Paulo e que era possível, através de uma difícil navegação pelo Madeira,

a comunicação entre os territórios do centro e a Amazônia.

Ressalte-se ainda, que este modelo poderia continuar válido até a metade do

século XIX, se consideradas apenas as condições tecnológicas, uma vez que a

navegação a vapor somente começaria a substituir a navegação à vela no Brasil a partir

desse período, alterando as condições de percepção do espaço, inclusive pela

diminuição do tráfego terrestre no nordeste.

Por conseguinte, se entendermos que o território é construído a partir de um

percepção intelectualizada do espaço e que esta seria feita em razão das necessidades de

deslocamento e da administração, seria bastante improvável que uma construção

unitária e contínua do espaço da América portuguesa houvesse se imposto sobre uma

visão compartimentada ainda no século XVIII.

Esta percepção das variações de escala no espaço também perpassou a execução

e demarcação do conjunto dos tratados entre Portugal e Espanha no setecentos, podendo

ser discernida em sua principal premissa, a permuta de posições, que alcançaria todo o

império colonial e não apenas o continente americano. Nesse sentido cada parcela do

espaço era considerada em suas qualidades e, a seguir, comparada com uma outra

parcela do espaço que lhe fosse correspondente, para, somente então, ser efetuada a

troca. Por exemplo, no Tratado de Madri, o reconhecimento da soberania portuguesa

6 Utilizamos no mapa as escalas e proporções exatas das distâncias segundo a mecânica da navegação à vela, sendo

que nossos cálculos foram feitos sobre as pesquisas de Max Justo Guedes. Nesse sentido ver, 'As primeiras

expedições de reconhecimento da costa brasileira', in História Naval Brasileira v. 1, tomo I. Rio de Janeiro: Serviço

de Documentação Geral da Marinha., p.177-222, e 'O condicionalismo físico do Atlântico e a navegação à vela', in

História Naval Brasileira v. 1, tomo I. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1975, p. 117-

138.

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sobre o Maranhão, o Mato Grosso e o Amazonas se daria através da cessão das

Filipinas, Colônia do Sacramento e territórios adjacentes na margem do Prata, mais a

aldeia de São Cristóvão e o seu entorno, a saber, a área entre os rios Japurá e Iça, na

confluência do Amazonas. Já no Tratado de Santo Ildefonso, permutar-se-ia as ilhas de

Fernando Pó, Ano Bom e, novamente, da Colônia do Sacramento pelo território que

hoje constitui parte dos atuais estados brasileiros do Rio Grande do Sul e Santa

Catarina.

Por outro lado, a exploração do que convencionou-se chamar, ainda na África do

século XV, de ‘Sertões’, pode também ser entendida segundo uma percepção que

englobasse a ‘fronteira militar’ e a variação de escalas no espaço, pois se visava gerar

conhecimentos estratégicos que possibilitassem a dilatação da projeção econômica ou

militar, constituía este espaço enquanto periférico em relação ao estabelecimento

colonial. Neste raciocínio, também seria profundamente falha a aplicação estrita do

conceito de ‘fronteira natural’ base do princípio de expansão e da consolidação do

território da América portuguesa, pois a compreensão do Sertão fazia parte da empresa

mercantil e da circulação econômica da América portuguesa constituindo, muitas vezes,

um espaço próprio que não podia ser concebido em termos da ‘fronteira natural’, mas

com uma dilatação e contração relativamente autônomas.

Portanto, entendemos que o conceito de ‘fronteira natural’, conforme utilizado

pela narrativa, somente foi articulado no século XIX, quando se busca constituir a

antigüidade da inscrição do espaço nacional através do seu remetimento à uma

construção anterior, que, no entanto, no século XVIII, tinha sido apenas esboçada pelo

portugueses:

Sem dúvida a natureza predestinou este istmo para fecho do grande

Império; é aqui o berço dos dois gigantes [o Paraguai e o Amazonas], que o

abraçam, e circunvalam; a coroa da majestade, colocada no ponto mais

culminante de toda a terra de S. Cruz; como a principal atalaia; e para

encher o Brasil seus altos destinos, traçou-lhe o Gênio do Comércio vastas e

vantajosas proporções. É evidente, senhores, que são estes dois pequenos

Page 20: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

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rios, Alegre e Aguapehy, os que satisfazem o sentido óbvio e literal do

artigo X do tratado de limites de 1777.7

Assim, compreendemos que a idealização da nação foi feita através de uma

historicização de sua identificação com a terra e com a ocupação que incorporava a

centralização do Estado e sua extensão sobre os territórios periféricos. Esta narrativa

territorial consolidar-se-ia, mesmo, que, muitas vezes, os títulos exibidos e incorporados

à representação do espaço nacional demostrassem mais o abandono ou a transitoriedade

do antigo modelo e que permitissem reconstruir tanto a temporalidade quanto a

descontinuidade do espaço na América portuguesa.

Nesse sentido, serve como exemplo, a permanência da região de Guarajús nas

cartas gerais e corografias do século XIX, uma vez que seu registro se deu a partir da

discussão travada no final da década de 1840 sobre a importância de se incluir este

território no espaço nacional. O arraial de São José dos Guarajús, na margem esquerda

do rio Guaporé, se constituía então em uma coleção de ruínas situadas em torno de uma

antiga região aurífera. Já no século XVIII suas minas se encontravam esgotadas e

abandonadas, estando bem além dos interesses e do esforço máximo possível da

Metrópole.8 Ainda assim, esse título da ocupação pregressa do território consolidar-se-ia

nas representações cartográficas feitas no Brasil durante algumas décadas, até que fosse

expelido em razão dos interesses da política externa na década de 1870. Do mesmo

modo, também continuariam sendo representadas nas cartas gerais as ruínas do presídio

de Nossa Senhora dos Prazeres, um título constituído em referência ao heroísmo de seus

habitantes, conforme divulgado nas corografias do século XIX. Segundo esses relatos,

apenas entre 1769 e 1774 teriam sido registrados 499 óbitos, por conta da insalubridade

do clima e das doenças tropicais. Sendo ainda atacada pelos Guaiacurus em 1774, as

corografias narravam que a praça dos Prazeres teria sido evacuada em 1777, embora na

verdade tivesse sido destruída nesse mesmo ano, depois de sua rendição aos espanhóis.

Por conta dessa identificação do sacrifício do natural pela terra, o registro das ruínas dos

Prazeres se manteve, inclusive, até a derradeira carta geral do Império em 1875.

7 José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Programa geográfico - Quais são os limites naturais, pactuados e necessários

do Império do Brasil ?’, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, 1902..

8 Francisco José de Sousa Soares de Andréa, 'Observações aos apontamentos sobre o estado atual da fronteira do

Brasil', 13/3/1847. IHGB, Lata 289, Pasta 9.

Page 21: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

21

Além do antigo modelo de espaço da América portuguesa ser diferente daquele

que era proposto pela narrativa, a indeterminação do espaço e o desconhecimento do

território no século XIX desmentiam a persistência de uma continuidade com a tradição

da Metrópole. Na verdade, o conhecimento geográfico e cartográfico havia estagnado e,

em certos casos, até regredira, dentre outros motivos, pela inexistência de pólos

produtores de um ‘saber sobre o território’, uma vez que nem mesmo a metrópole os

havia ainda constituído, tendo lançado mão apenas de iniciativas isoladas. Ainda, o

conhecimento que fora detido pelos administradores coloniais não seria partilhado com

as elites que constituíram o núcleo dirigente do novo país, parte por conta das

características de uma ‘política de segredo’ da antiga metrópole, caracterizada,

inclusive, pelo regresso de uma importante parte dos registros para Portugal, parte pela

desorganização administrativa que se agravaria após o regresso da Corte e à

Independência, dispersando os arquivos.

A partir das décadas de 1840 e 1850, com as transformações políticas que

permitiram a centralização e a consolidação do Estado, diversos esforços seriam

dirigidos no sentido de constituir-se um ‘saber sobre o espaço’, através, inicialmente, da

recuperação do conhecimento corográfico e, depois, pela inscrição de uma

representação do espaço nacional, que passaria, também, pela organização de uma

coleção de mapas e documentos geográficos. Seus resultados serviriam tanto para

aumentar a eficiência dos agentes do Estado quanto facilitar os proprietários de terras,

coligindo e divulgando através das representações corográficas e cartográficas uma

perspectiva do espaço nacional onde aquelas elites se reconheciam e se faziam

reconhecer no interior de um conjunto espacial ordenado em torno do Estado

centralizado no Rio de Janeiro.

Nas representações resultantes desse esforço se incluiria, por exemplo, uma

literatura didática destinada aos liceus e ao público em geral, a qual seria muitas vezes

subvencionada pelo erário, e uma cartografia concorrencial àquela realizada por outros

Estados, que se consubstanciaria nas Cartas Gerais e outros produtos.

A construção das representações corográficas e cartográficas estaria ligada às

elites políticas através de diversos organismos e instituições, tais como o Conselho de

Estado, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Secretaria dos Negócios

Estrangeiros, o Exército, a Marinha e a Secretaria dos Negócios da Agricultura,

Page 22: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

22

Comércio e Obras Públicas, a partir das quais as diversas representações do espaço

competiriam e se influenciariam reciprocamente.

A corografia e a cartografia mostrar-se-iam, por conseguinte, inseparáveis do

processo de centralização e construção do Estado, com o qual colaborariam diretamente,

por exemplo, através da descrição do território, do mapeamento e da organização das

circunscrições territoriais e da delimitação do espaço urbano.

Duas regiões se distinguiriam nesse processo: uma primeira que seria mais

privilegiada por participar diretamente dos interesses do Estado, da expansão

imobiliária e comercial e da produção agrícola, correspondendo aos maiores

agrupamentos urbanos e às porções mais próximas ao litoral (com algumas exceções); e

uma segunda região, que corresponderia às demais parcelas de território ocupadas ou

reconhecidas.

Entendemos que esta divisão corresponderia aproximadamente aos binômios

esboçados por Ilmar Rohloff de Mattos, a saber, Civilização x Barbárie, Litoral x

Sertão,9 implicando em diferenciadas estratégias de representação cartográfica: a

primeira região demandaria esforços que permitissem uma multiplicação da presença do

Estado e, por conseguinte, possibilitassem o controle, a mensuração e a quantificação,

através de mapas topográficos, planos de cidades, cartas provinciais, etc., enquanto que

a segunda região seria representada numa escala que possibilitasse o planejamento e a

penetração do Estado, por meio das cartas regionais, das cartas gerais e dos mapas

hidrográficos.

Por conseguinte, uma centralidade, ou seja, uma visão do centro, se constituiria,

paulatinamente, a partir de uma reelaboração da cosmologia da Metrópole,

interpretando-se o espaço além do litoral segundo a ótica do colonizador - civilizador.

Assim, tornar-se-ia necessário redesenhar o antigo modelo de espaço a partir das novas

relações que compunham o Estado, registrando-se o novo tempo e o novo espaço

exigidos por essa operação, no interior de outros tempos e espaços referentes apenas à

América portuguesa, permitindo que se delimitasse um envoltório para o Estado

nacional tanto por uma historicização do território e do espaço quanto pela

espacialização e territorialização da História Pátria. Possibilitava-se também a gravação

9 Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. Rio de Janeiro: ACCESS, 1999, 4ª

edição, p. 150-151.

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23

de mapas que precedessem o próprio território e que se preenchesse os vazios do espaço

com os conteúdos dessa narrativa.10

Em lugar de ser uma construção passiva, produto do conhecimento e da

exploração, e assim, conceitual e temporalmente posterior ao território, os mapas

possibilitariam a afirmar o ‘saber sobre o espaço’ constituído através da experiência

compartilhada entre o político e o social, por uma Elite capaz de compreender e se fazer

compreendida através de uma ‘linguagem do espaço. Estabelecer-se-ia, assim, a

abstração do território, com o debate sobre o espaço passando a ser conduzido apenas

nos termos e referências expressos pela ‘linguagem do espaço’, que estabeleceria,

assim, a existência e as condições da narrativa. Dos mapas, tomar-se-ia emprestado,

ainda, o estatuto de verdade de seu suporte científico, fazendo-se com que, através de

suas linhas, se materializasse essa construção, para que, em seguida, fosse enfeixada em

formas pétreas: afinal, uma ligeira alteração no seu desenho poderia abrir possibilidades

para inúmeras outras.

Entretanto, para se construir uma representação do espaço nacional foi

necessário descrever primeiro o território: nesse sentido, as corografias interagiriam

com a cartografia no processo de constituição e organização do Estado,

experimentando, contudo, um desenvolvimento diferente daquele da cartografia.

Enquanto que esta última se constituiria num contexto dinâmico de concorrência com a

cartografia dos países europeus e americanos, as corografias seriam erigidas do passado

colonial para se transformarem, posteriormente, num instrumento pedagógico do

Estado.

As corografias participavam de um gênero que deve sua origem à definição e à

interpretação ptolemaica da Geografia. Nesta, basicamente se enfatizava a necessidade

da visão e a importância da imagem e do pictórico, sendo a Pintura a sua alegoria mais

perfeita. A corografia se estabeleceria ainda durante o Renascimento como uma

influência determinante sobre a representação gráfica do espaço, fazendo assim, com

que aquele gênero se desenvolvesse paulatinamente enquanto uma perspectiva pictórica

particular de um território, e mesmo se confundindo com a cartografia. Com o

incremento das viagens transoceânicas e com o colonialismo, a partir do século XVI, as

corografias passariam a ter fins utilitaristas e apoio oficial, proporcionando às

10 Ver nesta tese os capítulos ‘O mapa antes do território’ e ‘Mapeando o vazio’.

Page 24: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

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metrópoles a descrição, a delimitação e a identificação do território.11

Assim, no século

XIX encontrar-se-ia no Brasil uma tradição corográfica participante dessas mesmas

características e que remontava, pelo menos, ao século XVII.

Contudo, a segunda metade do século XIX se torna característica pelo

surgimento de uma nova forma corográfica que terá, muitas vezes, sua produção e

divulgação financiada pelo Estado. Esta é constituída enquanto um esforço ordenador e

normatizador que visa mais subordinar que informar e onde as partes e regiões são

designadas não mais pela sua individualidade, mas pelo seu pertencimento a uma

unidade histórica e territorial: a nação é reconhecida em sua descrição física e em

relação às suas divisões políticas, que compõem parcelas de uma unidade

administrativa, eclesiástica e judiciária. O mesmo processo é repetido em relação às

Províncias sempre se salientando sua participação e relação com as instituições

nacionais. Estas corografias conviverão ainda com as narrativas do velho estilo até se

tornarem predominantes na década de 1880, quando se intensifica a sua adoção

enquanto material didático nos liceus e no Colégio Pedro II. Por conseguinte, as antigas

corografias se transformariam lentamente de uma narrativa descritiva e pictórica em

uma exposição sistemática e mnemônica: a idéia da ordem se introduziria nessa forma

geográfica até reduzi-la a um rol de listagens.

A utilização das corografias pela narrativa também têm a característica de servir

para construir a prevalência da ordem e do central sobre o local; a imagem da

civilização é projetada sobre um território a ser preenchido, sobre o não-reconhecido

pelo centro, em suma, sobre o caos. A região menos privilegiada pela cartografia era

também um espaço a ser preenchido pela imaginação do geógrafo: o que nada significa

na ‘linguagem do espaço’ era transformado no desocupado, no despovoado, no

desabitado, ou seja, no passível de ser conquistado. Era, por conseguinte, um local a ser

esgotado e despido de suas características para depois ser recriado segundo uma

racionalidade já preexistente, a da Guerra.

Contudo, o vazio ainda poderia ser diferenciado: ao lado do inexplorado havia

um território semiconhecido, na realidade, um ‘vazio intermitente’. Esta era a área que

houvera sido mapeada, explorada, ou ainda, colonizada pela Metrópole mas que, por

11 Lucia Nuti, ‘Mapping places: Chorography and vision in the Renaissance’, in Denis Cosgrove, Mappings. London:

Reaktion Books, 1999.

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conta das características do antigo modelo de espaço, fora depois deixada de lado: era o

local da incerteza e do lapso. Através da cartografia e da corografia, pela insistência no

registro recorrente do abandono e da citação da antiga posse, se procurou projetar sobre

estes ‘vazios intermitentes’ a idéia de um pertencimento anterior, onde as ruínas

determinavam que a civilização ali fincara raízes, ligando idealmente o presente a uma

tradição do qual não poderia ser desligado. Mais do que nos espaços vazios, onde as

florestas e os descampados sugeriam o caos que deveria ser corrigido pela ordem e uma

reserva disponibilizada à civilização, as ruínas e o abandono sugeriam a imanência de

um espírito que não poderia ser traído.

Entretanto, embora a cartografia ficasse estagnada no Brasil durante a primeira

metade do século XIX, esta conheceria na Europa e nos Estados Unidos um enorme

desenvolvimento. A expansão econômica e territorial impôs a necessidade de

instrumentos para demarcar e projetar as percepções particulares dos múltiplos espaços

nacionais. Nestas representações, a inconstância dos limites do espaço brasileiro se

tornaria a norma, causada tanto pela flutuação e alteração dos saberes cartográficos e

geográficos quanto pelas diferentes percepções acerca do poder do Estado brasileiro.

Os atlas foram um dos locais estratégicos dessas leituras, uma vez que se

popularizariam durante o decorrer do século XIX pelo incentivo dos Estados e por conta

da progressão das técnicas de impressão, atingindo-se assim, tiragens cada vez maiores

e edições mais freqüentes para atender às demandas crescentes pela divulgação e

propagação do saber geográfico. Nesse contexto, a propagação das percepções de

espaço mesclava o político, a técnica e o mercado, apresentando ainda a peculiaridade

de exigir uma constante renovação do conhecimento e dos produtos.

Portanto, os Atlas se consubstanciariam como as metáforas pictóricas dos

interesses nacionais por atenderem a uma dupla especificidade: em primeiro lugar, ao

interesse de um mercado ávido e consumidor, servindo, no caso, à coleção, organização

e perpetuação do conhecimento geográfico; em segundo lugar, à divulgação e à

afirmação dos espaços nacionais, servindo aos propósitos da construção de identidades e

imaginários nacionais.

Nesse sentido, a distribuição dos atlas europeus e norte-americanos alcançava as

principais cidades da América do Sul, constituindo-se, muitas vezes, na principal fonte

de informação sobre os territórios desses mesmos países. Um exemplo eloqüente desse

problema, foi que, na ausência de uma representação oficial de seu território, o Brasil

Page 26: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

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utilizou o Atlas da Venezuela, reduzido a um esboço geográfico, para que fosse

assinado o Tratado de Limites de 1859 com aquele país, haja vista a necessidade, desde

1842, de fazer frente comum contra às ambições inglesas.12

Deste modo, em razão da produção cartográfica concorrencial, o mapeamento do

território necessitaria assumir também a função de ‘avatar do espaço nacional’, função

esta a ser exercida, por excelência, pelas Cartas Gerais, a saber, construir material e

conceitualmente o Estado, inscrevê-lo e encerrá-lo em um recipiente reconhecido no

espaço internacional no qual ficasse bastante clara a idéia ficcional da unidade. Veja-se,

por exemplo, o caso francês, segundo Lucien Febrve: “no século XVI, a França assume

uma forma aos olhos dos franceses porque a imprensa multiplica os atlas e mapas da

França que se tornam acessíveis, doravante, a todos os letrados. A forma da França fica

impressa em todas as memórias.”13

Nesse sentido, a inscrição do Estado no espaço seria relacionada com a

construção da Nação, através das idéias das ‘fronteiras naturais’ e do uti possidetis

através das narrativas territoriais. Nestas narrativas, organizadas a partir do ‘saber sobre

o espaço’, a ocupação progressiva do território e sua incorporação a um espaço

brasileiro contaria com a cartografia histórica como principal suporte. Os mapas

históricos permitiam consolidar na narrativa territorial a antigüidade do novo Estado,

permitindo criar, através de sua conjunção com a representação da inscrição do Estado

no espaço, a idéia de uma entidade coletiva originária, que uniria diferentes experiências

individuais e de grupo.

Por conseguinte, também a concatenação dos conceitos da ‘fronteira natural’ e

do uti possidetis foi construída através da experimentação e da prática da ‘linguagem do

espaço’, agregando-se novos conteúdos ao ‘saber sobre o espaço’. Estes conteúdos

seriam então representados na cartografia histórica, emprestando legitimidade à

inscrição do Estado no espaço e à própria narrativa territorial.

Portanto, efetivar-se-ia uma monumentalização dos produtos cartográficos que

pudessem servir de suporte à narrativa territorial, caracterizando-se, assim, uma

inversão no fluxo da produção daquelas representações: os mapas passavam a não serem

12 José Ribeiro da Fonseca Silvares, ‘Apontamentos corográficos para carta geral do Brasil’, c. 1872. BN,

Iconografia, I - 46, 11, 11.

13 Lucien Febvre. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 186.

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mais entendidos apenas como instrumentos da inscrição e da expansão do Estado, mas,

também, enquanto parte mesma do processo de construção da Nação.

Deste modo, este problema nos remete a uma reflexão sobre a análise das

relações de poder, conforme Michel Foucault, inicialmente compreendida nas suas

idéias a respeito da formação da nação e do papel da experiência colonial na formação

dos estados europeus, denominado de ‘colonialismo interno’.14

Segundo Foucault, a experiência colonial resultou na importação de modelos,

que repercutiram sobre os mecanismos de poder, aparelhos, instituições e técnicas de

poder. Uma das práticas destes modelos era a estratégia da negação da conquista ou do

envolvimento na conquista, que teria sido desenvolvida visando legitimar a transmissão

dos direitos através de sua vinculação a um certo número de leis. Esta transmissão dos

direitos, possibilitaria tornar o novo Estado herdeiro de uma soberania apenas limitada

pelas mesmas leis de seu antecessor. Assim, a construção da legitimidade estaria

vinculada por Foucault a uma estratégia da negação da conquista por conta da

necessidade primordial de se eliminar o conflito.15

Assim, o vínculo estabelecido pela

transmissão da legitimidade e da soberania, garantiria a igualdade jurídica perante os

outros estados europeus, assegurando ao Estado sucessor os direitos de seu antecessor,

desde que fosse operacionalizada também uma narrativa das origens na qual se elidisse

a colonização.16

Portanto, o que definiria uma Nação, não seria o arcaísmo ou a ancestralidade,

mas sua relação com o Estado, do mesmo modo, essa mesma Nação não se

caracterizaria numa relação horizontal com outras Nações, mas numa relação vertical

que iria de encontro a um corpo de indivíduos capazes de constituir o Estado: é ao longo

desse eixo vertical definido por Foucault através do binômio Virtualidade estatal -

Realidade estatal, ao invés de Nação - Estado, que a Nação deve ser caracterizada e

situada.

Seria então possível relacionar estas reflexões sobre as idéias de Foucault com a

análise de Ilmar R. de Mattos da formação do Estado Imperial, na Transmigração (o ato

14 Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 120-123 e 266-276.

15 Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,

1999, p.131-133.

16 Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 137-138.

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de transferência da Corte portuguesa do Velho para o Novo Mundo) estaria enfatizada a

sucessão e legitimidade do Estado, mas a elisão da colonização se consubstanciaria

através de uma narrativa na qual a tradição se incorporaria à ultrapassagem do

desorganizado e bárbaro, para o lugar da Ordem e da Civilização: a estratégia da

negação do conflito conduziria à operacionalização de uma narrativa que privilegiava,

na análise de Mattos, um compromisso com o chamado ‘Tempo Saquarema’.17

Retornando com este conteúdo a nossa reflexão sobre Foucault, existiria a partir

do Tempo Saquarema a constituição de uma narrativa que introduz e recoloca em seu

centro o problema do Estado: administrar, gerir, governar, assegurar a constituição e a

administração da figura e do poder estatal.

Portanto, poderíamos definir nossa idéia da narrativa territorial, num primeiro

nível de leitura, como um discurso onde o Estado irá narrar seu próprio passado,

estabelecendo sua própria legitimidade e fortalecendo-se no plano de seus direitos

fundamentais. Nesse sentido, essa narrativa estará voltada para o passado e para o

presente ao mesmo tempo, permitindo construir uma “uma história do tipo retilíneo, em

que o momento decisivo será a passagem do virtual para o real” 18

em que a relação das

forças que são postas em jogo não sejam aquelas da conquista ou da dominação, mas,

uma relação que seria descrita por Foucault como “inteiramente civil”, uma tensão

direcionada para a universalidade do Estado.19

Entendemos, entretanto, que a narrativa territorial, num segundo nível de leitura,

também enfatizaria uma outra espacialidade e uma outra temporalidade a partir dos

conteúdos do ‘saber sobre o espaço’, no caso, a verticalidade das relações na

caracterização da Nação. Nesse sentido, a narrativa territorial sublimaria as

representações das ‘relações de força e de soberania’ que constituíram o Estado, no

caso, representações da própria Elite e de sua convivência com o Político e a sociedade.

Por conta disto, justificar-se-ia, segundo a análise de Michel Foucault sobre as

relações de poder, um estudo do poder a partir das representações do espaço nacional e

de uma ‘linguagem’ do ‘saber sobre o espaço’.

17 Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial. Rio de Janeiro: ACCESS, 4ª

edição, p. 267-274.

18 Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 268.

19 Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 266-269.

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Para Foucault, uma análise não econômica do poder deveria se concentrar no

estudo do seu emprego e manifestação, no caso, as ‘relações de força’, entendendo que

estas teriam sido estabelecidas pelo combate, pelo enfrentamento, pela guerra, num

certo momento, historicamente precisável. O poder político teria então, como função,

“reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma espécie de guerra

silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na

linguagem, até nos corpos de uns e de outros.”20

Segundo Foucault, esta análise do poder enquanto uma guerra continuada,

deveria concentrar-se sobre duas hipóteses: a primeira, que “o mecanismo do poder

seria a repressão”, chamada de hipótese de Reich; a Segunda, que “o fundamento da

relação do poder é o enfrentamento belicoso das forças”, chamada de hipótese de

Nietzsche.

Um esquema, feito através destas duas hipóteses, resultaria numa contraposição

ao velho sistema de análise do poder que se “articularia em torno do poder como direito

original que se cede, constitutivo da soberania, e tendo o contrato como matriz de poder

político.” Analisar-se-ia, por conseguinte, o poder político não mais de acordo com o

“esquema contrato-opressão, mas de acordo com o esquema guerra-repressão”, nesse

sentido, a repressão “não significaria o mesmo que a opressão em relação ao contrato,

mas, seria “o simples efeito e o simples prosseguimento de uma relação de

dominação.”21

Assim, podemos entender que o poder, considerado enquanto ‘relação de força’,

sobreviveria às transformações do Político, juntamente com as ‘relações de soberania’

organizadas a partir das ‘relações de força’ através de sua articulação no Estado e com o

Estado. O Poder pode então ser compreendido enquanto força que se representa e que,

pela reelaboração dessas representações, se perpetua, por conseguinte, as ‘relações de

força e de soberania’ se reorganizariam em torno do conteúdo de suas próprias de suas

próprias construções pregressas, numa reelaboração contínua da representação, que, em

última análise, reinscreveria o próprio Poder através da sua representação feita pelas

Elites.

20 Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 21-23.

21 Michel Foucault. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 23-24.

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30

No caso, interpretando-se a idéia de Elite a partir do ponto de vista lingüístico,

esta seria definida como aqueles indivíduos capazes de dominar a ‘linguagem’ do

‘centro’ e de poder expressá-la, conforme definido por Noam Chomsky no conceito de

‘falante ideal’ [ideal speaker-hearer].22

Neste caso, conforme Clifford Geertz salientaria

em relação ao conceito de preservação de força, as dimensões perdidas seriam

restauradas intensificando-se a conexão com os centros ativos da ordem social, neste

caso, considerando-se estes centros como um ponto ou pontos onde as principais idéias

convergiriam para certas instituições, criando-se uma arena, na qual se desenrolariam

atos relativos a constituir a ligação do Político com a sociedade e onde os eventos que

mais afetam a vida de seus membros têm lugar.23

Deste modo, as representações do espaço, do território, do lugar e do momento

se tornariam centrais na constituição do estudo do poder, uma vez que seria sobre estes

e a partir destes que as ‘relações de soberania e de força’ se estabeleceriam, se

representariam e se reelaborariam. Nesse sentido, buscaremos utilizar a metáfora da

‘ekphrasis’, a saber, a descrição poética de uma pintura ou escultura, para entender a

reconstrução contínua da representação do poder a partir de elementos já preexistentes e

a transformação da narrativa territorial numa ‘Mitologia do espaço nacional’, feita já no

século XX.24

Esta transformação contribuiria para a idealização das relações da Elite

com o Político e o social e, ao mesmo tempo, para a formação de Fronteiras pouco

precisas entre as classes de deferência. Conforme o conceito de Edward Shils, que

também remete a idéia da representação das ‘relações de força e soberania’,25

essa

estrutura informe e ambígua da deferência, faz “com que as diferenças na dignidade

que podem ser apreendidas, mesmo que reconhecidas contra a vontade sejam mais

toleráveis.” Este caráter informe e ambíguo da representação da deferência tornaria “o

dissenso acerca da deferência muito mais manejável”, permitindo que “as discrepâncias

entre a deferência exigida e a deferência concedida sejam ignoradas sem conflitos

22 Noam Chomsky, 'Language and unconscious knowledge', in Rules and representations. New York: Columbia

University Press, 1978, p. 220.

23 Clifford Geertz, 'Centers, Kings, and Charisma: reflections on the symbolics of power' in Further essays in

interpretative anthropology. New York: Basic Books, Inc., Publisher, 1983, p. 122-123.

24 Ver, nesta tese, o capítulo ‘A máscara da Medusa’.

25 A deferência é entendida como o ato de apreciação ou depreciação do ‘parceiro’ para o qual uma ação é dirigida,

em razão da função que ele ocupa, das categorias em que ele é classificado, ou das relações em que participa em

relação a terceiros ou a categorias de pessoas tudo isso em comparação com a imagem que o atuante tem de si

próprio em relação a essas propriedades. Edward Shils, 'Deferência' in Centro e periferia. Lisboa: Difel, 1992, p.

419.

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31

dolorosos.” Tornar-se-ia também mais suportável “a tensão entre a igualdade que

emerge da associação civil e a desigualdade da distribuição diferencial de critérios

pertinentes para a deferência.”26

Neste sentido, poder-se-ia trabalhar uma análise do poder através de uma

ampliação do esquema de Foucault, para guerra-repressão-representação, entendendo-se

que dever-se-ia distinguir, por meio da idéia da representação, a função de preservação

do poder político, apontada por Foucault como uma reinserção das ‘relações de força’, a

qual agregaríamos também, uma função de reinserção das ‘relações de soberania’.

Esta idéia da reelaboração contínua da representação e de uma ‘luta pela

representação’ como forma de elaboração, reprodução e preservação do poder, poderia

ser chamada, conforme a construção de Foucault, de hipótese Romântica, já que foi

desenvolvida por vários pensadores que ser identificaram com uma vertente dessa

corrente filosófica que considerou o corpus do pensamento cartesiano, diretamente ou

através da construção kantiana. Nesse sentido, propomos desenvolver este estudo a

partir das considerações de Arthur Schopenhauer, Friedrich Schelling, Wilhelm von

Humboldt e Noam Chomsky, uma vez que todos estes autores, sem exceção, buscaram

no racionalismo o conteúdo teórico que lhes permitiria consolidar a representação fora

do domínio da Retórica. Conforme estes mesmos autores, a questão da representação

remete ainda a reconsiderar o problema do conhecimento e a entender a linguagem

enquanto central para sua definição e construção.

Portanto, estudaremos a construção do espaço nacional enquanto um arranjo

contínuo das representações do Poder, motivado pela reelaboração da inscrição das

'relações de força e soberania' que o constituíram e caracterizado pela elisão das suas

tensões e dos seus enfrentamentos.

26 Edward Shils, 'O sistema de estratificação da sociedade de massas' in Centro e periferia. Lisboa: Difel, 1992, p.

471.

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32

2 — RUMO À ILHA DESERTA: A CONSTRUÇÃO CARTOGRÁFICA

CONCORRENCIAL E A DISSEMINAÇÃO.

O atlas distingue-se dos demais produtos cartográficos por permitir

disponibilizar, simultaneamente, duas aplicações diferentes para os mapas: em primeiro

lugar, permite exprimir uma percepção da totalidade do espaço num dado momento,

possibilitando sua ordenação e perpetuação em coleções e arquivos; em segundo lugar,

disponibiliza as informações mais atualizadas e pontuais sobre territórios determinados,

permitindo a eficiência e a coordenação das escolhas e ações. Esta concomitância entre

o todo e o detalhe construiria, a partir do modelo do atlas, um gênero sobre o qual

incidiriam múltiplas demandas, confundindo-se então as necessidades do Estado, as

vontades do mercado e os interesses dos particulares.

Este gênero foi condicionado pelos interesses despertados pela história e pela

geografia nos últimos anos do século XVIII, quando estes dois conjuntos de saberes

combinaram-se formando as bases de um estudo conhecido então como ‘geografia

comparativa’, cujo principal objetivo era a exibição das sucessivas alterações de

fronteira numa particular parte do globo, em sucessivos períodos de tempo, do qual os

atlas constituíram-se como o principal suporte.

Assim, como os atlas permitiam à ‘geografia comparativa’ uma concatenação da

geografia com a narração da construção histórica do todo e a descrição eventual do

detalhe, formar-se-ia, paulatinamente, um outro modelo de atlas no século XIX, que

hoje é denominado de ‘atlas histórico’, além de, muitas vezes, seus espécimes

correlatos, os mapas históricos, serem constituídos enquanto parte substancial e

destacada dos demais atlas.27

Este problema refletia certos interesses de uma época, consubstanciados tanto

pela construção do Estado-Nação quanto pela expansão imperialista, cujos valores eram

então disponibilizados nas características intrínsecas desses atlas, capazes de permitir

sua materialização através de um eixo narrativo que enfatizava o poder territorial e sua

delimitação. Ainda, como estes valores estavam então sendo estandardizados por meio

27 Jeremy Black, Maps and history - Constructing images of the past. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 30-

73.

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33

do estabelecimento da escolarização das massas em escala nacional e divulgados através

de uma pedagogia constituída em torno do ensino da Geografia Universal e Nacional e

da História Pátria, os atlas tradicionais e os atlas históricos tornaram-se a base de

trabalho de seus profissionais.

Por conta disto, surgiria ainda uma nova oportunidade de inserção dos mapas

geográficos e históricos, uma vez que sua inclusão tornar-se-ia quase que obrigatória em

todas as obras históricas ou de interesse geral, desenvolvendo-se, conseqüentemente,

uma demanda crescente pelos produtos cartográficos em geral, o que possibilitou às

editoras aumentar as tiragens dos produtos cartográficos e a quantidade de títulos

oferecidos.28

Vários fatores permitiriam às editoras atender a estas novas demandas, sendo

que um destes foi o desenvolvimento de novos processos mecânicos para a fabricação

de papel, os quais se tornaram comercialmente viáveis por volta de 1800, por consta da

utilização plena do vapor, o que diminuiu o preço da matéria-prima dos atlas e cartas.

Outro fator foi o aperfeiçoamento das técnicas de impressão e de acabamento final,

como, por exemplo, a invenção da litografia, responsável pelo aumento da

produtividade no setor e o barateamento da impressão à cores.

Por sua vez, a popularização do colorido trouxe um aumento na quantidade de

informações que poderiam ser transmitidas pelo mapas e a conseqüente necessidade de

facilitar sua apreensão, fazendo com que novos esquemas gráficos e estilos passassem a

exercer grande influência na cartografia, principalmente após 1870, tornando necessário

o surgimento de novos processos pedagógicos que possibilitassem estender às crianças

o aprendizado da leitura desses novos e mais complexos mapas.

No mesmo sentido, o avanço das técnicas de impressão possibilitou que dados

estatísticos sempre atualizados fossem disponibilizados através dos mapas,

possibilitando que o interesse crescente pela mensuração e confrontação do poder

nacional fosse atendido, necessitando interagir com uma didática que objetivasse incutir

uma idéia da centralidade do Estado.

Este esforço pedagógico seria suscitado através do desenvolvimento de

processos ligados à memória visual e auditiva, passando-se a incentivar tanto a

memorização do espaço nacional pelo aluno, através de mapas-mudos e outras técnicas

28 Jeremy Black, Maps and history - Constructing images of the past. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 48-

58.

Page 34: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

34

de desenho quanto a memorização de seus elementos e características através de

técnicas de repetição. Ainda, estes dados seriam dispersos pelas obras geográficas

enquanto que os mapas passariam a ser estrategicamente dispostos nas escolas,

especialmente nos corredores e em lugar central nas salas de aula, sendo relacionados a

própria apreciação dos símbolos pátrios.29

Portanto, em um primeiro nível de leitura, podemos entender que os atlas

tornaram-se instrumentos destinados a inscrever a idéia do Estado-Nação,

desempenhando então um importante papel na formação da cidadania e da unidade

nacional, inclusive, porque sua adoção seria tornada obrigatória nas instituições de

ensino oficiais e nos órgãos públicos. Esta instrumentalização dos atlas permitiria ainda

consolidar uma representação do Estado-Nação, suportada pelas características do atlas

e, graças ao incremento de sua produção e comercialização, possibilitar sua divulgação

verdadeiramente planetária.

Assim, a composição, a ordenação e a lógica de escolha dos mapas que

constituiriam o atlas, obedeceu a um projeto editorial e intelectual que pretenderia a

centralidade de uma determinada perspectiva, constituída por uma ordem de visão e de

exposição, tornando possível estudar-se a constituição do que denominaríamos de

‘construções cartográficas concorrenciais’ a partir da investigação dos atlas.

Deste modo, num segundo nível de leitura, os atlas serviriam para registrar a

dinâmica da representação do espaço nacional, uma vez que o conhecimento

cartográfico constituiu-se enquanto intrinsecamente ligado à expansão ou construção

dos estados nacionais e à verificação de seus interesses.

Assim, entendemos que a formulação e a constituição dos conhecimentos

cartográficos e geográficos poderiam ser estudadas através dos atlas e dos demais

produtos cartográficos enquanto um produto da relação entre conhecimento e poder,

podendo-se estabelecer, inclusive, uma problematização da descontinuidade do espaço,

de suas escalas e de sua narração, consubstanciado no estudo do que denominaríamos de

um ‘saber sobre o espaço’.

Contudo, num terceiro nível de leitura, como deveríamos considerar os atlas

quanto a sua especificidade? Sujeito, como vimos, a diversos interesses e demandas, o

atlas seria apenas uma metáfora pictórica dos interesses nacionais? Ou será que em sua

29 Veja-se a utilização do mapa enquanto um avatar do Estado em Benedict Anderson, ‘Census, Map, Museum’ in

Imagined communities: reflections on the origin and spread of nationalism, London: Verso, 1992, Revised Edition,

p. 163-186.

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35

individualidade e finalidade os atlas poderiam visar, tão somente, a divulgação do saber

geográfico e cartográfico?

Neste sentido, observe-se a construção teórica de Gilles Deleuze à respeito da

transformação do conceito da idéia da ‘ilha deserta’ durante os século XVII-XVIII:

enquanto parte das ‘ilhas oceânicas’, a ‘ilha deserta’ foi considerada até esse período,

como estando desconectada do continente, sendo constituída originariamente por um

material distinto deste, a partir de sua floração do fundo do oceano e do elemento

aquático, por conseguinte, a ‘ilha deserta’ era um lugar de feiticeiras, sereias e outros

seres imaginários, em sua maioria femininos, que desafiavam o homem e lembravam-no

de sua condição.

Esta constatação de Gilles Deleuze do espaço como uma construção intelectual

nos permitiria entendê-lo também enquanto uma construção dinâmica: esse

entendimento pode ser exemplificado através da transformação do conceito da ‘ilha

deserta’ no século XVIII através de seu exame do ‘Robinson Crusoe’ de Daniel Defoe.

A companhia deste náufrago na ‘ilha deserta’ não seria um ser mítico ou um

personagem feminino, objeto de terror ou de desejo, mas, um indígena de nome ‘Sexta-

feira’, dócil ao trabalho, feliz em ser escravo e já desgostoso da antropofagia. Assim,

segundo Deleuze, uma recriação mítica do mundo impressa no conceito da ‘ilha deserta’

teria dado lugar à recomposição da vida quotidiana burguesa a partir de uma ordem

capitalista e protestante.30

Por conseguinte, em primeiro lugar, podemos entender que um ’saber sobre o

espaço’ pode ser constituído antes mesmo do próprio espaço, pela junção de impressões,

experiências, relações, táticas e estratégias que, por sua vez, estabelecerão

territorializações, construções, organizações e recortes do território: o espaço não é

morto, fixo, não dialético e imóvel, como nos lembraria Michel Foucault.31

Este seria o

sentido das suas ‘heterotopias’, a saber, a constituição de lugares no espaço diretamente

a partir de representações absolutamente intelectualizadas: nós não viveríamos num

espaço onde os indivíduos e as coisas devessem ser apenas situadas [situer], mas num

30 Gilles Deleuze, ‘Causes et raisons des îles désertes’, in L'île déserte et autres textes. Paris: Les Éditions de Minuit,

2002, p. 15.

31 Michel Foucault, 'Sobre a Geografia', in Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1996, 12ª edição, p.

159.

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36

espaço onde as relações definiriam ‘territorializações’ [emplacements] que seriam

absolutamente destacadas e irredutíveis umas às outras.32

Em segundo lugar, compreendemos também que o ‘saber sobre o espaço’ se

constrói a partir da absorção de informações e do compartilhamento das impressões

sobre estas, que serão reelaboradas através de processo de registro oral, textual ou

gráfico. No caso dos atlas, se estes forem examinados coletiva, serial e temporalmente,

notaremos que os registros cartográficos do espaço observam também uma dinâmica

relativa aos mecanismos internos de produção dos atlas, possibilitando-se, assim, o

transporte e a elaboração relativamente autônoma de novas significações para os

elementos anteriormente representados.

Denominamos esta característica da cartografia de disseminação, por ter sido

construída a partir da noção da ‘disseminação’ literária de Jacques Derrida

[dissémination], a saber, a impossibilidade de fixação da responsabilidade e da

individualidade dos significados.33

Contudo, nossa idéia da disseminação cartográfica

está mais ligada ao problema das técnicas cartográficas e de sujeição aos processos de

produção dos mapas e à coexistência de diferentes ‘saberes sobre o espaço’, diversos

questionamentos e intenções que se experimentariam através da mecânica de

‘construção cartográfica concorrencial’.34

Ainda, a disseminação dos produtos cartográficos seria resultado não apenas do

esforço do Estado em constituir sua representação do espaço, mas também do grande

interesse na divulgação e propagação do saber geográfico, gerado pelo incremento do

comércio e das navegações transatlânticas já a partir dos séculos XVI e XVII, interesse

este, que apresentou a peculiaridade de exigir uma constante renovação do

conhecimento geográfico e dos produtos cartográficos.

Estes produtos seriam dirigidos, a princípio, para um público mais qualificado e

que entendia a educação geográfica como um sinal de cultura e distinção social, assim,

o atlas já possuía um apelo que fazia sua circulação e influência ultrapassar as questões

e as fronteiras do Estado nacional. Nesse sentido, também já existia uma grande

competição entre vários produtos e editores, fazendo com que, em determinadas

circunstâncias, os atlas fossem, inclusive, adaptados para as condições de cada mercado.

32 Michel Foucault, 'Des espaces autres' in Dits et écrits, v. IV (1980-1988). Paris: Editions Gallimard, 1994, p. 754.

33 Jacques Derrida, La dissémination, Paris: Éditions du Seuil, 1972, p. 9-76.

34 Ver, nesta tese, o capítulo ‘O espelho de Jacobina’.

Page 37: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

37

Este problema pode ser exemplificado, pela existência, mesmo no século XIX,

de várias versões de um mesmo atlas, cada uma delas destinada ao público de um

diferente país, ou ainda pela impressão de edições feitas por encomenda, que

comportavam representações do espaço de acordo com a preferência de seu financiador.

No mesmo sentido, utilizar-se-ia freqüentemente do plágio e da adaptação de

mapas de outros editores visando-se atender com celeridade a uma demanda sempre

crescente e ávida por novidades e possibilitar-se tiragens novas e sucessivas, sendo

então os registros cartográficos muitas vezes distorcidos, reelaborados ou,

simplesmente, trocados nesse processo.35

Portanto, se podemos fazer, através da historicização da dinâmica da

representação do Estado uma leitura da relação entre conhecimento e poder e da

inserção desta nas ‘relações de força e soberania’, esta leitura deve levar em

consideração os problemas da disseminação através do estudo das técnicas e dos

processos de produção dos mapas.

Decorrentemente, os atlas e os produtos cartográficos podem nos servir como

instrumentos para aferir não só a existência de outras percepções da representação do

Estado, mas também para se estudar a sobrevivência de determinados ‘saberes sobre o

espaço’ através da disseminação, o que nos permitiria atestar uma descontinuidade do

próprio espaço.

Nesse sentido, podemos considerar que também é possível o estudo da

construção de ‘saberes sobre o espaço’ concorrentes com a representação do Estado

nacional, o que nos permitiria constituir ‘recortes do espaço’, pela historicização da

construção de representações locais do espaço.

Finalmente, devemos considerar que a divulgação e consolidação da

representação do Estado nacional agregaria certas especificidades relacionadas à

aplicação do conhecimento científico, por conseguinte, podemos interpretar os

interesses do Estado através da observação e estudo das técnicas empregadas nos

mapas.

35 Ver J. B. Harley, ‘Power and legitimation in the english geographical atlases of the eighteenth century’, in The new

nature of maps: essays in the History of Cartography Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001, p. 149-

168.

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38

A construção concorrencial e a disseminação através dos atlas do século XIX

Aplicando estes raciocínios a um estudo da representação do espaço nacional

brasileiro através dos atlas do século XIX, compreendemos que a percepção deste

espaço se orientou segundo, pelo menos, três diferentes modelos de espaço que se

assemelham aos antigos modelos de espaço da América portuguesa, atestando a

sobrevivência de outro ‘saber sobre o espaço’ através da disseminação.

Verificamos ainda, que em cada um destes modelos o espaço seria inscrito a

partir da utilização variada dos elementos geográficos e dos recursos cartográficos,

impondo-se certas características peculiares a cada um deles. Em geral, o registro dos

‘marcos geográficos’ serviria como base da inscrição do espaço. Estes ‘marcos

geográficos’ eram construções intelectuais do lugar, constituídos, então, como

‘acontecimentos geográficos’, separados do meio em que estavam insertos por sua

historicização ou significação. Estes ‘marcos’ seriam auxiliados por recursos da

inscrição cartográfica, como, por exemplo, o registro do espaço através da reta ou a

reelaboração de determinado elemento pela simbolização, que eram também remetidos

pelo ‘saber sobre o espaço’ a uma historicização ou significação.

Separando cada um destes modelos, constatamos na parte meridional do espaço,

a persistência de um primeiro espécime, mais rígido e estático que os outros, cujas

mudanças significativas atestariam tensões abruptas. No espaço central, observamos um

segundo modelo que possuía feições semi-rígidas e alternâncias variadas. O terceiro

modelo, no espaço setentrional, seria bastante fluído, inconstante e instável, coincidindo

suas variações com períodos de maior ou menor organização do Estado brasileiro e de

seus vizinhos.

No primeiro atlas da série estudada, os limites do modelo setentrional não eram

balizados por praticamente nenhum marco natural: seus limites eram então

genericamente representados pelo uso da poligonal, a qual era constituída tendo por

vértices as fortalezas que constituíam o limite militar português e como base os rios que

serviram como vias de penetração à metrópole portuguesa (ver Figura 2).

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39

Deste modo, e como regra geral para a série cartográfica estudada, o rio

Amazonas e o rio Negro, e por outras razões, todo o curso do Madeira e do Javari,

seguiriam percebidos enquanto pertencentes à soberania brasileira, sendo este status, a

partir da década de 1820, paulatinamente estendido também ao rio Branco.

Do Forte de São José de Marabitanas se originavam duas retas que separavam o

Brasil da América hispânica: enquanto a primeira seguia para o sudoeste até encontrar o

rio Javari, a segunda rumava para leste até encontrar o rio Branco e deste seguia até o

rio que era denominado de Carapana-tuba, percebendo-se como território brasileiro

apenas o curso mais baixo dos tributários do Amazonas.

Durante a década de 1830 os cursos superiores dos rios Negro e Solimões

também seriam negados ao espaço brasileiro, sendo, novamente o Forte de São José de

Marabitanas percebido como o ponto máximo da penetração brasileira no noroeste

amazônico. Este Forte pode ser, por conseguinte, considerado o primeiro ‘padrão’

definitivo dos limites setentrionais, no que seria acompanhado pelo rio Javari, ainda que

houvessem imensas variações na percepção da extensão e no curso deste rio, conforme

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40

pode ser averiguado em outros atlas da série.36

Contudo, a partir da década de 1830, se

consolidaria nas representações cartográficas uma localização média de 10° de latitude

para as nascentes daquele rio, ou seja, muito mais ao sul de onde na realidade se

encontravam, fazendo com que os modelos setentrional e central se mesclassem numa

mesma área.

Este caso exemplar do Javari pode ser utilizado para demonstração das

características da disseminação nos atlas e por extensão nas produções cartográficas

quanto a sua pertinência para se pensar a construção do espaço e de suas representações.

Como vimos anteriormente, considerava-se que os cursos dos rios Javari e

Madeira pertenciam em sua totalidade à soberania portuguesa. Assim, os limites

naquela área eram representados, convenientemente, através de um paralelo cruzando

das nascentes do Javari até encontrar o rio Madeira, incluindo-se nesse espaço vários

afluentes da margem sul do Amazonas e a região do seu entorno ao território atribuído

ao Brasil. Mesmo que os atlas editados posteriormente viessem a modificar a direção do

curso do rio, os limites brasileiros permaneceriam inalterados no paralelo 9° ou 10° 20'

Sul, muito embora este paralelo já não coincidisse mais nos atlas com a nascente do

Javari. Por conseguinte, estas representações do modelo setentrional somente teriam

sentido se considerássemos as características de disseminação da produção cartográfica.

Neste caso, a representação cartográfica se transformaria mantendo uma relação

com a produção cartográfica original, no que podemos denominar de ‘padrão’, podendo

ser, por conseguinte, diferentemente representada numa mesma edição de um atlas.

Um exemplo tanto da adaptação do atlas em razão de sua sujeição às condições

do mercado quanto da permanência dos limites face à alteração geográfica, é a dupla

versão, para a França e para o Brasil, da edição de 1848 do atlas Andriveau-Goujon.

Enquanto a versão francesa situava a nascente do Javari quase que em sua posição

astronômica correta, sua versão em língua portuguesa insistia em incorporar um

território maior para o Brasil. Contudo, ainda que divergissem na localização dos

acidentes geográficos, seria mantido, em ambas as versões do atlas, o ‘padrão’ do

paralelo ligando o Madeira ao Javari, ainda que um ‘padrão’ tomado pela diagonal fosse

igualmente aceitável para a versão francesa (ver Figura 3).

36 J. A. Buchon, Atlas de deux Amériques. Paris: J. Carez, 1825; Ostell's New General Atlas. London: Baldwin and

Cradock, Pasternoster Row, 1828, mapa XXVI.

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41

Entretanto, uma nova disseminação do ‘padrão’ do paralelo do Javari por outros

atlas estabelecer-se-ia paulatinamente, transformando-se numa nova representação dos

limites no modelo setentrional, desta vez mais negativa para o Brasil: transportava-se o

‘padrão’ para o lado oposto do Javari, fazendo-se com que o paralelo se iniciasse noutro

acidente geográfico qualquer, que não era o rio Madeira e sim um elemento fictício,

para que, somente depois, coincidisse com o Javari. Assim, a nova representação de

limites, em lugar de se projetar para fora do espaço brasileiro e, portanto, adicionar

território, projetava-se para seu interior, fazendo com que o ‘padrão’ passasse a rasgar

toda a Amazônia Ocidental, diminuindo a percepção do espaço brasileiro (ver Figura 4).

Em menor número, estabelecer-se-ia também nos atlas um terceiro ‘padrão’ de

representação, desta vez utilizando-se a diagonal, mas, que estava também interligado

com as representações anteriores: utilizava-se um dos pontos anteriores, no caso, o mais

conhecido geograficamente (o Madeira), como vértice e este era, por sua vez, ligado a

um ponto determinado do Javari. Esta representação começaria a ganhar corpo,

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especialmente, nas cartas e atlas em que se ficava patente haver incerteza sobre a

direção do curso e a extensão do rio Javari (ver Figura 5).

Portanto, durante o século XIX, coexistiram três diferentes representações para

um mesmo espaço do modelo setentrional, todas elas originárias da mesma matriz.

Quanto a parte oeste do modelo setentrional, as representações cartográficas

registrariam uma progressão constante dos limites brasileiros até a década de 1830.

Nesse período, coincidindo com a desintegração da Grande Colômbia, os limites

brasileiros se estenderiam sobre grande parte do curso dos rios Japurá e Apapuriaés e

sobre os afluentes superiores do rio Negro, inclusive atingindo os contrafortes dos

Andes.

Sintomaticamente, com a organização paulatina dos vários Estados que

circundavam a Bacia do Amazonas e coincidindo com o período da Regência no Brasil,

a percepção do espaço brasileiro refluiria para limites anteriores aqueles que eram

percebidos quando de sua Independência, deixando-se de representar neste o controle do

médio Solimões e do curso superior do rio Negro até a confluência com o rio Cataburi,

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tendência esta que se consolidaria durante as décadas de 1840 e 1860, quando deixaria

também de ser incluída nas representações dos limites brasileiros uma vasta área

compreendida entre os cursos médio e superior dos rios Juruá e Purus, constituindo-se

este período como o da menor percepção dos limites brasileiros na série estudada.37

Após 1860, a tendência passaria a se reverter na maior parte do modelo setentrional,

embora ainda houvessem refluxos em certas áreas.

37 A. Balbi & Emile Monlon, Atlas da Geographia Universal. Paris: J.- P. Aillaud, Monlon e Cª, 1858; New Universal

Atlas of the World, Philadelphia: S. Augustus Mitchell, 1849, p. 39-43.; A. Bruè, Atlas Universel de Géographie.

Paris: Charles Picquet, 1845; A. Houzé, Atlas Universel, Historique et Géographique. Paris: Lebigre-Duquesne

Frères, Éditeurs, c. 1840.

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No modelo Meridional, desde o início do século XIX a tendência predominante

nos atlas era a de delimitar a percepção do espaço brasileiro através de ‘marcos

geográficos’ referenciados pelo Tratado de Santo Ildefonso de 1777. Assim, a

representação do modelo meridional apresentava poucas indefinições, sendo que estas

estavam concentradas em áreas restritas, em geral de pequena extensão, à exceção da

área que seria mais tarde denominada de ‘Palmas’, em relação a qual nunca houve

durante todo o século XIX qualquer posição majoritária ou mesmo predominante nas

representações dos atlas, inclusive porque, parte destes a incluíam nos limites

paraguaios.

Portanto, no modelo meridional os padrões se caracterizaram pela duração e por

variações abruptas, na maioria dos casos definitivas, basicamente acompanhando a

definição jurídica da fronteira após os episódios das intervenções no Uruguai e da

Guerra do Paraguai.

Contudo, ratificando a rigidez caraterística do modelo, os atlas jamais

registraram a região das ‘Missões’ enquanto parte do espaço brasileiro até a década de

1840, recusa essa que persistiria em várias representações até pelo menos o início da

década de 1860. Esse comportamento refletiria provavelmente a intensidade dos

conflitos e os interesses comerciais estrangeiros, inscrevendo nas representações dos

atlas a centralidade dos interesses do tráfego comercial através da Bacia Platina (ver

Figura 6).

Por conseguinte, o conservadorismo nas representações do espaço brasileiro no

modelo meridional refletiria o desejo da estabilidade do sistema a partir do interesse

comercial, inscrito nas representação pelo entorno das vias fluviais que lhe serviriam.

Assim, o registro das fronteiras acordadas em 1851 com o Uruguai somente se

consolidaria nos atlas após a constatação da estabilidade do sistema.

Nos atlas, a percepção dos limites com o Paraguai, que em seu extremo

interceptariam o modelo central, possuiria um padrão ainda mais negativo, uma vez que

este somente se reverteria após a derrota daquele país ao final da Guerra, da qual

provavelmente foi uma das causas. Neste sentido, à exceção da percepção dos limites

com o Brasil, a percepção das outras áreas paraguaias sempre foi inconstante durante o

século XIX. De fato, praticamente nenhuma carta ou atlas estrangeiro reconheceria após

1807 a soberania brasileira sobre a região sul do Mato Grosso.

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No modelo central, a percepção do espaço brasileiro utilizou tanto a reta quanto

os marcos geográficos para registrá-lo, havendo mesmo, em algumas regiões a

combinação destes dois elementos. Por exemplo, na região do alto Paraguai, o modelo

meridional se mesclaria com o modelo central e até a década de 1870 acompanharia os

padrões deste último e a preferência por marcos geográficos. Já na área que se

comunicava com o modelo setentrional, algumas vezes estes padrões se confundiam,

criando aberrações em relação a série estudada. Neste caso, estas aberrações

possivelmente podem ser entendidas como uma defasagem no conhecimento

geográfico, um fato não verificável em virtude da dificuldade de acesso, ou porque

houvera, por conta da disseminação do conhecimento cartográfico, o transporte de um

conhecimento geográfico mais antigo que não se encaixava nas novas percepções, mas

que fora mantida em razão da importância de suas fontes originais: esta seria

especificamente uma solução para se entender a representação da área dos Guarajús

junto ao espaço brasileiro (ver Figura 7 — Note-se que a área constitui-se num enclave

dentro do território boliviano).38

O padrão do modelo central se caracterizava pela utilização de ‘marcos

geográficos’ que serviam como base às retas que os ligavam com outros ‘marcos

geográficos’, muitos dos quais transitórios. Por conseguinte, entendemos que no modelo

central a reta foi um recurso utilizado pela cartografia para possibilitar ajustes nos

padrões, permitindo representar ganhos e perdas homogêneas. Nesse sentido, as

representações se alternariam em ganhos e perdas para a percepção do espaço brasileiro

durante a série, caracterizando um comportamento semi-rígido e de alternância mais

lenta que o do modelo setentrional.

38 Adotou-se aqui a toponímia mais comum, uma vez que esta área possuiu diversas designações, tais como:

Guarajás, Santo Antônio dos Guarajús, etc.

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FIGURA 6 — PERSPECTIVA DO MODELO MERIDIONAL

Cartografia: Renato Amado Peixoto.

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Concluindo, conforme o estudo dos atlas do século XIX, entendemos que a

percepção do espaço brasileiro apresentou períodos alternados de retração e de

expansão, sendo que, de um modo geral, a percepção dos limites brasileiros foi

inconstante durante todo o século XIX. Podemos entender que esta percepção baseou-se

na interpretação dos interesses nacionais envolvidos, mas derivou, sobretudo, das

características da disseminação cartográfica.

Também podemos observar que o Tratado de Santo Ildefonso se constituiu como

uma referência importante para as representações dos atlas, embora o Tratado de Madri

não seja lembrado nem no século XVIII nem no século XIX. Nesse sentido, nosso

exame dos atlas franceses do século XVIII, mostra que a grande maioria destes atlas

representava o espaço sul-americano segundo um esquema de compartimentação

próximo aos modelos que descrevemos neste estudo.

Finalmente, devemos lembrar que a representação do espaço brasileiro somente

se consolida nos atlas após a década de 1870, justamente quando se divulga nas

Exposições Internacionais uma Carta Geral do Brasil, atestando-se, portanto, a idéia da

‘construção cartográfica concorrencial’.

FIGURA 7 — GUARAJÚS_

Cartografia: Renato Amado Peixoto.

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3 — O MAPA ANTES DO TERRITÓRIO: A CONSTRUÇÃO LOCAL E A

CONSTRUÇÃO CENTRAL DO ESPAÇO.

Mapear um território significa inscrevê-lo num determinado espaço e,

concomitantemente, possibilitar que a inscrição desse território possa transformar o

espaço. O exame dessa construção recíproca permite identificar certos processos de

formação da identidade coletiva, clarificando suas estratégias e características, uma vez

que o ato de mapear o território envolve um esforço continuado (explorar, descrever,

cartografar, divulgar), de constante articulação e diálogo entre as partes.

Quando um indivíduo ou um grupo cartografa um território, ele o faz

culturalmente: suas impressões e suas descrições, são participantes de um mesmo

processo de construção da identidade coletiva. Por conseguinte, entendemos que os

mapas e as corografias, enquanto instrumentos dessa intervenção cultural, são

construídos a priori, no conjunto das representações dos seus narradores e estão

sujeitos, por conseguinte, a constantes reelaborações da mesma identidade coletiva.

Nesta relação, os produtos cartográficos e geográficos participam da interação e

competição com outras identidades, internas e externas, uma vez que estas não podem,

do mesmo modo, serem concebidos sem que um território específico as situe e lhes dê

raízes e fronteiras.

A mecânica da concorrência entre os espaços visa estabelecer uma representação

que estimule a coesão interna e promova a diferenciação com o exterior, exigindo com

que o território seja definido tão precisa e completamente até que não haja dúvidas à

respeito da singularidade do espaço. Assim, os mapas e as corografias, por interagirem

diretamente com o território, podem tornar-se instrumentos de articulação e estratégia,

permitindo construir e promover uma representação do espaço e de sua paisagem capaz

de imprimir um consenso sobre as ‘relações de força e de soberania’ nele operantes.

Nessa lógica, o tempo e o espaço serão a argamassa da construção dos lugares de

representação insertos no território: na teoria, quanto mais precisas forem as imagens

destes lugares, maiores serão as chances de se afirmar os limites do território, mas, na

prática, para que se afirme o consenso em torno do território, muitas vezes é necessário

abstrair-se dessa mesma precisão.

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49

Do mesmo modo, se a construção da identidade coletiva define ou reelabora o

território, a mudança da escala altera o que é visto e o modo como os achados são

organizados. Por um lado, a concorrência espacial pode se estabelecer na escala local,

construindo-se no interior do território do espaço central um outro território tão

referenciado por sua própria perspectiva que esta exija uma transformação nas

articulações e nas estratégia do centro. Por outro lado, uma reelaboração oportuna do

espaço central se traduz por uma reestratificação da narrativa através de certos pontos

mínimos de conexão com o espaço local, permitindo sua aglutinação num ‘saber sobre o

espaço’ que caracteriza todo o conjunto.

Para que se possam aprofundar estas questões relacionando-as com os

problemas da construção do espaço nacional brasileiro que serão discutidos nos

capítulos posteriores, utilizaremos um exemplo já estudado anteriormente, o caso do rio

Javari, e os conceitos da ‘fronteira militar portuguesa’, da disseminação cartográfica e

da ‘cartografia concorrencial’.

Como foi visto anteriormente, na ‘fronteira militar portuguesa’, a ação humana

foi vital para a manutenção da indefinição dos limites, como aliás pode ser verificado

através do exame do léxico do início do século XIX: o ‘Fronteiro’ era o “Capitão da

praça, que está nas raias, e fronteira inimiga”, sendo que, a palavra ‘Fronteira’ também

significava “expedição contra terra de inimigos”. Ainda, uma das definições de

‘Fronteira’, a palavra ‘Confins’, expressava não somente uma zona larga, profunda, mas

também uma região indefinida: “raias, extremos, fronteiras de Terra estrangeira: os

confins da Terra.” Por sua vez, ‘Sertões’, outro léxico emblemático para este estudo e

para o entendimento do conceito da ‘fronteira militar portuguesa’, era então designado

como “o interior, o coração das terras, opõe-se ao marítimo, e costa [...] o sertão toma-

se por mato longe da costa”.39

Assim, em nossa leitura, entendemos que a idéia de ‘Fronteira’ opunha então o

conhecido ao desconhecido, o lugar do estabelecido ao indefinido, em cuja franja, o

‘Fronteiro’ operava: a fronteira era uma linha que constantemente poderia ser movida

para a frente, contra o inimigo e enraizava-se no território. Neste sentido, nas narrativas

do espaço, a linha da fronteira é descrita enquanto delimitando e envolvendo o ponto

onde a cultura e a natureza se cruzam: é o lugar de encontro entre a selvageria e a

39 Antonio de Moraes Silva, Dicionário da Língua Portugueza recopilado dos vocábulos impressos até agora, e nesta

segunda edição novamente emendado, e muito acrescentado. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813, p. 442.

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50

civilização que não envolve apenas a delimitação do espaço com o estrangeiro, mas que

dobra-se em direção ao conhecido cruzando pelas ‘relações de força e de soberania’.

Por conseguinte, o ‘Fronteiro’ é aquele que expressa e imprime essas ‘relações

de força’, que estende a ‘gramática da linguagem’ do centro para o local e que é

acreditado e se acredita enquanto um representante da Civilização.

O território do rio Javari, nosso caso de estudo, onde o conceito da ‘fronteira

militar’ atingiu seu paradoxo, teria sua população e área descritos a partir de uma

variação sobre os conceitos anteriores, veja-se:

Os seus extensos bosques, onde se cria e perde preciosa madeira,

são povoados de porcos, antas, veados e outras raças miúdas, geralmente

perseguidos por várias nações ainda selváticas [...], os Maiurunas, que fazem

uma coroa no mais alto da cabeça, e deixam tomar aos cabelos todo o seu

crescimento. Tem muitos furos no nariz e beiços, em que metem espinhos

compridos; nos cantos da boca trazem penas de arara. No lábio inferior,

extremidade do nariz e das orelhas, penduram rodelinhas de conchas. São

antropófagos; e quando os mesmos parentes adoecem gravemente, matam-

nos, para os comer antes que emagreçam com a moléstia [...].40

Dos seus costumes, dizem que são mui bárbaros, sendo mesmo

antropófagos não só para com os inimigos, como para com os de sua

própria nação que estão muito doentes ou muito velhos, tomando parte nos

banquetes os próprios filhos e pais dos que foram mortos. [...] Que eles são

ferozes, que matam seus inimigos sem perdão e que com os ossos das

canelas fazem ornamentos [...].41

Observe-se a presença na descrição do léxico ‘Nação’ que designava então “a

gente de um país, ou região, que tem Língua, Leis, e Governo a parte,” mas também

“Raça, casta, espécie” e que ‘País’ teria o significado na época tão somente de “Terra,

região”,42

por conseguinte, a noção de ‘Fronteira’ era então muito tênue, necessitando

explicitar-se então na descrição dos ‘confins’ por uma oposição absoluta dos costumes e

40 Manoel Ayres de Casal, Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Brasil — Coleção de Obras Raras,

Tomo II. São Paulo: Edições Cultural, 1943, 2ª Edição, p. 248-249

41 Barão de Marajó, As regiões Amazônicas. Lisboa: Imprensa de Libanio da Silva, 1895, p. 80-82

42 Antonio de Moraes Silva, Dicionário da Língua Portugueza recopilado dos vocábulos impressos até agora, e nesta

segunda edição novamente emendado, e muito acrescentado. Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813.

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valores, como no caso do Javari, mas que se manifestava evidentemente no trato entre

os indivíduos no centro mesmo do espaço.

A esse respeito, aprecie-se, por exemplo, a ilação de Ilmar Rohloff de Mattos a

respeito da “continuidade das relações” por meio da manutenção da ‘Ordem’ e da

constituição da ‘Civilização’, enxergadas através da subalternidade do personagem de

José Dias em ‘Dom Casmurro’.43

A partir desta ilação, observaremos que o personagem José Dias é quase que um

fantasma das representações com que se constitui a ‘classe senhorial’ e o próprio

Estado, se entendermos o conceito de fantasma enquanto Pierre Klossowski o constitui,

a saber, de que cada ser vivo interpreta segundo um código de signos que correspondem

às experiências, às imagens, ou seja, representações do que aconteceu ou que poderia

ter acontecido. Para que o impulso a essa interpretação seja estabelecido, é necessário

que o impulso seja um querer ao nível da consciência e que esta apresente a ele um

estado excitante como objetivo, daí elaborando-se uma significação daquilo que para o

impulso é um fantasma: uma excitação antecipada, de acordo com o que entendemos ser

uma representação de sua inscrição na ‘gramática da linguagem’.44

Por conseguinte, compreendemos que José Dias interpretava essa inscrição a

partir de seu lugar limítrofe no espaço, munido de uma leitura suficiente para divertir

“ao serão e à sobremesa” e de seus superlativos para emoldurar as idéias que apenas

acompanhava, com suas roupas cerzidas e seus passos calculados.45

De certo, esta

interpretação permitia que José Dias afastasse-se do abismo ocupado por Calibã, o

escravo selvagem e disforme imaginado por William Shakespeare, que ao ser ameaçado

por Próspero, amaldiçoava o dia de tê-lo conhecido:

Esta ilha é minha; herdei-a de Sicorax, a minha mãe. Roubaste-ma;

adulavas-me, quando aqui chegaste; fazias-me carícias e me davas água com

bagas, como me ensinaste o nome da luz grande e da pequena, que de dia e

de noite sempre queimam. Naquele tempo, tinha-te amizade, mostrei-te as

fontes frescas e as salgadas, onde era a terra fértil, onde estéril... Seja eu

maldito por havê-lo feito! [...] Eu, todos os vassalos de que dispondes, era

43 Ilmar Rohloff Mattos, O Tempo Saquarema: a formação do Estado imperial. Rio de Janeiro: ACCESS, 1999, 4ª

edição, p. 268.

44 Pierre Klossowski, Nietzsche e o Círculo Vicioso. Rio de Janeiro: Pazulin, 2000, p. 67.

45 Machado de Assis, Dom Casmurro. S/lugar: Editorial Sol90, 2004, p. 14-16.

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nesse tempo meu próprio soberano. Mas, agora me enchiqueiraste nesta dura

rocha e me proíbes de andar pela ilha toda... 46

Assim, a partir de Klossowski, entendemos que a idéia de lugar, seja o “quarto

ao fundo da chácara” de José Dias seja a “dura rocha” de Calibã, é construída a part ir de

uma ligação entre o tempo e o espaço articulada pelas ‘relações de força e soberania’: o

lugar é um querer constituído enquanto objetivo, desenvolvido na experiência pela

significação, onde um intrincado conjunto de permissões, proibições e pertencimentos é

costurado através de estratégias e táticas.

Portanto, compreendemos que a descrição do território brasileiro e de seus

limites no século XIX foi feita segundo um ‘saber sobre o espaço’ que também

compreendia as ‘relações de soberania’, materializadas no espaço local através da

narrativa territorial desde o mesmo sumo que José Dias interpretava e que Calibã

desdenharia:

A falar me ensinastes, em verdade. Minha vantagem nisso, é ter

ficado sabendo como amaldiçoar. Que a peste vermelha vos carregue, por

me terdes ensinado a falar vossa linguagem.47

O rio Javari e a construção central do espaço

O rio Javari foi, ao mesmo tempo, o único ‘limite natural’ do modelo

setentrional e o marco mais ocidental da fronteira portuguesa, cuja foz somente se

alcançava após uma jornada de oitenta e sete dias de canoa a partir de Belém do Pará.

Por que o rio Javari foi constituído como o único ‘limite natural’ daquela área,

logo numa parte tão remota do espaço português, fora do circuito de expansão mercantil

e dos seus interesses estratégicos? Como explicar essa excentricidade do modelo

setentrional?

No século XVIII, após terem sido desalojados de suas pretensões no alto

Solimões, os portugueses aquartelaram na foz do rio Javari a sua última guarnição antes

dos territórios espanhóis. Esta, por conta das péssimas condições do terreno e dos

46 William Shakespeare, A Tempestade. Rio de Janeiro: Ediouro, s/data, Ato I, Cena II, p. 54-55.

47 William Shakespeare, A Tempestade. Rio de Janeiro: Ediouro, s/data, Ato I, Cena II, p. 56.

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ataques dos indígenas, foi transferida, em 1776, para um sítio duas léguas acima do

mesmo rio Solimões onde já existia, desde 1766, um posto de inspeção português.48

Assim seria fundado o presídio de São Francisco Xavier de Tabatinga, num lugar mais

amplo e de melhor posição estratégica, sobre um barranco de se onde avistava tanto a

foz do Javari quanto os territórios espanhóis limítrofes.49

Contudo, ainda que Tabatinga passasse, a partir desse momento, a abrigar a

derradeira presença portuguesa na Amazônia ocidental, o abandonado rio Javari

continuaria sendo lembrado pela ocupação anterior e sustentado enquanto um marco

natural dos limites amazônicos, sendo reconhecido enquanto tal pela Coroa espanhola

através do Tratado de Madri e pelo de Santo Ildefonso, que curiosamente colocava

Tabatinga fora do território português. Ainda que estes tratados tivessem sido

repudiados no século XIX por Portugal e depois pelo Brasil, o rio Javari jamais deixaria

de ser considerado, em todo seu curso, tanto pelo espanhóis como pelos estados que os

sucederam, como o ‘limite natural’ do Brasil.

Entretanto, o Javari, por suas características, não se encaixava na ‘fronteira

militar portuguesa’, pois não tinha importância para a navegação, não apresentava

nenhuma vantagem para a penetração dos interesses mercantis, não se prestava à

catequese nem ao aldeamento dos índios, nem havia perspectivas para o seu

povoamento: numa estratégia cujo os principais objetivos eram a manutenção da

mobilidade e a penetração no espaço, o território do Javari era a própria materialização

da inércia.

O espantoso, no caso do rio Javari, era que, ao contrário do rio Madeira, a

presença portuguesa, e mais tarde brasileira, era apenas simbólica, uma vez que o seu

“sinuoso e lentíssimo curso,” como foi descrito por Castelnau,50

continuaria despovoado

e sobretudo, desconhecido, devido às dificuldades reais ou imaginárias.51

48 Alfredo Moreira Pinto, in Apontamentos para o dicionário geográfico do Brasil v. III. Rio de Janeiro: Imprensa

Nacional. 1889.

49 Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva. Corografia Paraense ou descrição física, histórica e política da província do

Grão-Pará. Salvador: Typografia do Diário, 1833, p. 309-310.

50 Citado em Barão de Marajó, As Regiões Amazônicas. Lisboa: Imprensa de Libanio da Silva, 1895, p. 80-82.

51 Como exemplo destas dificuldades, em 1903, 60 fuzileiros navais seriam embarcados do Rio de Janeiro no

Cruzador Barroso para Tabatinga, na Amazônia, onde, estacionados, velariam pela neutralidade brasileira quando

do conflito entre o Peru e a Colômbia. Em quatro meses, uma febre equatorial dizimou o contingente, regressando

para o Rio de Janeiro, como sobreviventes, um sargento, dois cabos e três soldados. Hélio Leôncio Martins,

‘Poderes Combatentes’, in História Naval Brasileira v. 5, tomo I B, Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da

Marinha, 1997, p. 91.

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Estas dificuldades seriam sobrestimadas com o decorrer do século XIX e a partir

da centralização do Estado Nacional brasileiro, quando o território do rio Javari e seus

habitantes passariam a ser descritos diferentemente do período anterior. Neste sentido, a

cristalização da nação se impunha através da racionalização, conquistando e banindo o

mistério, negando e extirpando outros povos.

Paisagem e população passariam a ser classificados e analisados, não apenas em

função da utilidade mercantil, mas em termos de quantidade, qualidade e diversidade.

Os indígenas veriam desaparecer gradualmente os atributos de sua diferenciação, uma

vez que o sujeito passa a ser usualmente negado no novo discurso dos limites, assim, a

linguagem negava-lhes o pertencimento à Civilização, mas, considerava-os participantes

de uma Ordem da qual os exploradores teriam o controle e de onde, inclusive, poderiam

ser adquiridas novas qualidades:

“Alguns [indígenas eram] inteiramente brancos [...] as mulheres [...]

não pintavam o corpo e eram esbeltas e elegantes [...] Eram ousados e

valentes, atacando o civilizado de frente e não por traição [...] casavam-se na

idade própria, por amor e inclinação [...] eram antropófagos mesmo entre si,

não poupando os próprios parentes, salvo se a morte tivesse sido provocada

por veneno ou moléstia epidêmica. Não poupavam os inimigos, matando-os

sem piedade, e de maneira atroz [...] o prato predileto nos canibais festins,

[eram] os miolos e as mãos das vítimas, apreciando em demasia as dos

homens civilizados. Dos ossos, dentes, etc. faziam troféus de guerra,

conservando alguns a cabeça da vítima na frente de suas malocas, espetada

na própria lança do guerreiro que a matou..”52

Tais informações sobre o território e sua população, por conseguinte, eram

reconcepções das corografias do século XVIII, uma vez que praticamente nenhum

homem branco, à exceção de alguns membros das Comissões Demarcadoras e outros

exploradores, teve a ousadia de se aventurar a percorrer o rio Javari.53

Estes poucos

indivíduos, pressionados pelas dificuldades materiais do empreendimento, produziram

52 ‘Relatório de Cunha Gomes ao Ministro das Relações Exteriores’, in Ruy Pessôa, A reexploração do rio Javari -

expedição Cunha Gomes de 1897. Brasília: Senado Federal/Centro Gráfico, s/data, p. 38-39..

53 “[...] nenhum explorador ou flibusteiro conseguira navegar [o rio Javari] por mais de três dias sem ser massacrado.”

Tetrá Teffé, Barão de Teffé - Militar e cientista. Biografia do Almirante Antonio Luiz von Hoonholtz. Rio de

Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1977, p. 239.

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os mais duvidosos e desencontrados resultados técnicos, os quais contribuiriam para

tornar o Javari o “rio misterioso” das narrativas do século XIX e, ao mesmo tempo,

induzir em erro toda a cartografia daí decorrente.

Neste sentido, por exemplo, a comissão de demarcação portuguesa de 1781

calculou haver descido 210 milhas do rio e estimou que seu curso se estendia para

noroeste até atingir 5° 36' de latitude Sul. Estes dados foram registrados em mapa no

ano de 1786, quando dois símbolos topográficos foram acrescidos ao curso reconhecido

do rio: indicavam-se ali duas ‘Vigias’,54

que poderiam significar dois tipos de

acontecimentos geográficos de acordo com o léxico da época: um local onde haviam

sido provisoriamente instaladas sentinelas às margens do rio (‘Vigia’ significava no

início do século XIX “Espia, sentinela”), ou um antigo termo náutico que designava um

banco de areia, uma dificuldade para a navegação.

Décadas depois, em sua correspondência com a Secretaria dos Negócios

Estrangeiros, quando da negociação de limites com o Peru, o enviado brasileiro, Duarte

da Ponte Ribeiro, estupefato, relataria que os plenipotenciários do Peru reconheceriam

novamente a posse brasileira sobre todo o curso do Javari baseados no fato de que seus

próprios mapas registraram duas povoações brasileiras no curso médio do rio.55

Provavelmente, este erro da diplomacia peruana se deveu ao fato de terem sido

consultado produtos cartográficos posteriores à ‘Carta da Nova Lusitânia’, de 1798,56

que utilizou dentre suas fontes o mapa de 1786, registrando definitivamente um marco

apenas temporário, as ‘Vigias’. No próximo capítulo, as Cartas Gerais serão melhor

analisadas, mas para a melhor compreensão deste caso, será adiantado que a ‘Carta da

Nova Lusitânia’ era um produto cartográfico no qual as características hidrográficas e

náuticas seriam determinantes. Assim, um termo transitório assinalado no mapa de 1786

seria transposto na Carta de 1798 como um local de dificuldade e alerta para a

navegação, fixando-se definitivamente em parte da cartografia do século XIX. Deste

modo, por conta da disseminação cartográfica, as cartas que foram utilizadas pelos

peruanos inscreveram, numa terceira leitura, os mesmos elementos cartográficos

anteriores como duas povoações.

54 ‘Carta do rio Javari até a latitude meridional 5° 36’ pelos Engenheiros José Joaquim Victorio da Costa e Pedro

Alexandrino de Souza’, 1787.

55 Ver José Antônio Soares de Souza, Um diplomata do Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, p.

297-298.

56 Antonio Pires da Silva Pontes Leme, Carta da Nova Lusitânia, Lisboa, 1798.

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Depois da expedição de 1781, o Javari somente seria novamente navegado nas

décadas de 1840 e 1850 pelos exploradores W. L. Herdon e F. L. Castelnau, o primeiro

dos quais havia recebido da Marinha americana a missão de explorar o vale do

Amazonas, enquanto que o segundo estava executando a viagem do Rio de Janeiro até

Lima e daí novamente até Belém por ordem do Governo francês. Assim, estas

expedições já podem ser inseridas no âmbito da expansão imperialista e da ‘cartografia

concorrencial’, sendo que, em relação ao Javari, Herdon apenas teria reconhecido 183

Km deste rio, mas Castelnau alegaria tê-lo penetrado profundamente por 270 milhas,

inacreditavelmente estabelecendo, então, a direção de seu curso em leste-oeste e sua

extensão em 525 milhas.57

Alguns anos depois, em 1866, uma expedição conjunta brasileiro-peruana

destinada a verificar a fronteira entre os dois países e que seria denominada

posteriormente de expedição Soares Pinto - Paz Soldán, tentou determinar as nascentes

do Javari, mas não conseguiria chegar a resultado algum, uma vez que seria arrasada

pelos nativos na latitude 6° 50’ Sul, tendo morrido, nessa ocasião, aquele que na época

era considerado um dos maiores hidrógrafos e astrônomos brasileiros, o capitão-tenente

Soares Pinto.

Somente em julho de 1874, seria designada um nova comissão para verificar a

origem do Javari, desta vez sob o comando de Antônio Luiz von Hoonholtz, professor

de hidrografia da Escola de Marinha desde 1857, autor da primeira obra em língua

portuguesa sobre hidrografia e do mapa da Ilha de Santa Catarina, o qual, por sua

perfeição técnica, foi incluído no Atlas Mouchez da Costa do Brasil.

Na seu relato da comissão, Hoonholtz assinalaria que “ninguém havia

ultrapassado impunemente a foz do rio Galvez” e que somente havia conseguido

determinar astronomicamente as nascentes do Javari após ter travado duas dificílimas

batalhas com os indígenas, cortando 176 grossos troncos de árvore que serviam de ponte

para aqueles (os trocos estavam atravessados de margem à margem do Javari impedindo

a navegação) e depois de ter perdido um terço do seu contingente (ainda que

navegassem em canoas cercadas por uma grossa tela de arame e praticamente não

desembarcassem).

O nascedouro do rio Javari seria então determinado por Hoonholtz em 7° 06’

Sul, com o auxílio do último dos nove cronômetros com que aquele explorador teria

57 Castelnau teria navegado o Javari entre os anos 1843-1847 e Herdon em 1854.

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iniciado a jornada. Segundo o seu relato, teriam morrido 23 dos 82 homens que

iniciaram a jornada, mas notícias posteriores dariam conta de 53 mortos, dentre os quais

o próprio irmão do explorador. Sugestivamente as memórias desta viagem exploratória,

publicadas na França por Alfred Marc, têm o título de “Um explorador brasileiro, dois

mil quilômetros de navegação em canoas através de um rio inexplorado e

completamente dominado por selvagens ferozes e indomáveis.”

Contudo, no Relatório de 1875 da Secretaria dos Negócios Estrangeiros,

Hoonholtz reconheceria não ter conseguido chegar à foz do rio Javari, “porquanto os

obstáculos eram tais que, não permitiam chegar além”, sintomaticamente, ao ser

agraciado com o título de Barão, o explorador não quis que este se referisse ao Javari,

preferindo ligá-lo à cidade de Tefé, ponto de partida da expedição.58

Mas, ao contrário do que seria de se esperar, a conclusão dessa exploração seria

muitíssimo mal recebida por seus compatriotas: conforme visto no capítulo anterior, por

conta dos padrões de limites que se estabeleceram através dos atlas, a soberania

brasileira sobre a área incluiria não só o Javari, mas ainda todo o território à leste desse

rio, traçando-se, na maioria das representações cartográficas, uma reta de sua nascente

até encontrar o rio Madeira, logo, quanto maior fosse a extensão do rio Javari, maior

seria o território pertencente ao Brasil.59

Mesmo que, no início do século XIX, a Corografia Brasílica houvesse

localizado as nascentes do rio Javari em 7° 30’ Sul, (quase o mesmo valor que é

atribuído atualmente, aproximadamente 7° 01’), o atlas La Rochette de 1807 e outros

atlas posteriores principiariam por prolongar a extensão do rio Javari até 10º 20’, valor

este que em 1858 seria novamente aumentado até o limite máximo de 12º Sul.60

No

entanto, ainda que a representação cartográfica do Javari mais benéfica para o Brasil

prevalecesse nos atlas estrangeiros, outros padrões de limites também começariam a se

estabelecer, negando a pretensão de se integrar todo o curso desse rio e,

consequentemente, o território que por este era balizado, ao espaço brasileiro.

58 Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, 1875, Anexo 2, p. 188-192.

59 Pelo artigo 8º do Tratado de 1750 se estabelecia que a fronteira correria pela divisão do leito dos rios Guaporé e

Mamoré, até o local situado a igual distância do Amazonas e embocadura do Mamoré, e depois deste lugar

continuaria sobre uma linha de leste a oeste, até encontrar a margem oriental do Javari. Ignácio Accioli de

Cerqueira e Silva, Corografia Paraense ou descrição física, histórica e política da província do Grão-Pará.

Salvador: Typografia do Diário, 1833, p. 204.

60 A. Balbi & Emile Monlon, Atlas da Geographia Universal. Paris: J.- P. Aillaud, Monlon e Cª, 1858.

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58

Portanto, num momento em que a produção dos atlas na Europa e nos Estados

Unidos atingia o seu auge, surgia, para o Brasil, a necessidade de se constituir uma

produção cartográfica concorrencial. Assim, seriam encomendadas no exterior versões

exclusivas de certos atlas61

e mapas onde se representavam os limites do Brasil segundo

os termos mais vantajosos, no caso do Javari, segundo um paralelo na altura do grau dez

ou doze, garantindo para o Brasil, especificamente, os cursos superiores dos rios Juruá,

do rio Purus e de outros tributários do Solimões, estes já reconhecidos e abertos à

ocupação.

Entretanto, para que se consolidasse uma produção cartográfica no Brasil, as

iniciativas governamentais dependeriam de se constituir um ‘saber sobre o espaço’

consensual que possibilitasse a composição de um registro do espaço nacional através

de um cânone corográfico, garantindo-se, assim, a integração das regiões periféricas

segundo às condições da construção de uma centralidade do espaço, numa função de

pedagogia interna e externa.

O IHGB, um dos lugares de construção desse ‘saber sobre o espaço’, por

exemplo, agiria de modo a incentivar tanto as viagens exploratórias quanto o debate

sobre a publicação das corografias. Uma primeira carta geral do Brasil seria justamente

composta por um de seus sócios, em 1846, Conrado Jacob de Niemeyer, tendo-lhe sido

concedido o primeiro prêmio geográfico outorgado por esse Instituto. Entretanto, não

seria dada continuidade a essa iniciativa e a composição de outras cartas gerais

aconteceria apenas de forma esporádica, fruto do trabalho individual, sendo que, apenas

na década de 1870 se organizaria um esforço destinado a produção de uma

representação oficial do espaço nacional, tendo em vista sua apresentação nas

exposições universais de Viena em 1874 e da Filadélfia de 1876.

No que se refere particularmente ao rio Javari, as obras resultantes desses

esforços endossariam a posição brasileira até o ano de 1875, quando toda a pretensão

brasileira de soberania sobre o território situado ao norte do paralelo de 10º 20’ foi

subitamente abandonada pela publicação da ‘Carta do Império do Brasil’.

Por que uma mudança tão repentina após quase cem anos de narrativas

geográficas e registros cartográficos noutro sentido?

61 A. Balbi & Emile Monlon, Atlas da Geographia Universal. Paris: J.- P. Aillaud, Monlon e Cª, 1858.

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59

Esta mudança oficial no padrão de limite do Javari seria realizada por razões de

estado: o Governo brasileiro já sabia,62

desde pelo menos a década de 1840, que o rio

Javari não se estendia ao sul do paralelo de 7°, destinando-se então aquele território à

permuta com outros países.63

Essa transação seria efetuada em 1867, durante a Guerra do Paraguai, com o

objetivo de garantir a neutralidade da Bolívia no conflito, pelo Tratado de Ayacucho.

Segundo seus artigos, caso algum dia se constatasse o curso do rio Javari ultrapassava o

paralelo de 10º 20’ (como na maioria das representações cartográficas), seu curso

inferior passaria a pertencer à Bolívia e se a cabeceira do rio fosse localizada em um

latitude inferior, o território entre esta e o referido paralelo deixaria de ser brasileiro.64

Como o reconhecimento do Barão de Tefé foi realizado após a Guerra do

Paraguai e por uma via tortuosa, já que a missão exploratória se destinava a balizar os

limites do Brasil com a república do Peru, estaria confirmada a segunda conjectura, com

o Brasil perdendo a maior parte do território e o misterioso rio Javari encolhendo

substancial e subitamente.

Portanto, a inscrição do Estado brasileiro que se consolidava através dos

instrumentos jurídicos internacionais era uma construção da perspectiva central, onde se

justificava a cessão de parte da periferia por conta de um ordenamento no qual não

havia lugar para uma articulação que incluísse uma construção local de espaço.

Como então se produziria uma construção local do espaço na região e como esta

faria surgir uma nova articulação espacial e a reinvenção da representação do espaço

nacional?

62 Theodosio Constantino de Chermont, 'Declarações sobre o rio Javari,' 24/07/1781. AHI, Lata 265, Maço 10, Pasta

8; Carta de Theodosio Constantino de Chermont, em 1/10/1781. AHI, Lata 283, Maço 7, Pasta 13; Carta de

Henrique João Wilkens para João Pereira Caldas, 14/07/1787. AHI, Lata 283, Maço 7, Pasta 13.

63 Duarte da Ponte Ribeiro, 'Memória n. 4 - Exposição do estado em que se achavam as questões de limites entre

Espanha e Portugal relativas às fronteiras do Brasil com as províncias do: Paraguai, Bolívia e Peru, depois da 2

guerra de 1801 que anulou o Tratado de Santo Ildefonso', 1842. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte

Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Doc. 2.

64 Segundo o artigo 9º deste Tratado, a fronteira correria “[...] do Mamoré até o Beni onde começa o rio Madeira.

Deste rio para o Oeste seguirá a fronteira por uma paralela tirada de sua margem esquerda na latitude Sul de 10° e

20’ até encontrar o rio Javari. Se o Javari tiver as nascentes ao Norte daquela linha Leste - Oeste, seguirá a

fronteira desde a mesma latitude e por uma reta a buscar a origem principal do dito rio Javari.” Barão de Marajó,

As regiões Amazônicas. Lisboa: Imprensa de Libanio da Silva, 1895, p. 9. Ver também Moniz Bandeira. O

expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata. Brasília: Editora Universidade de Brasília,

1998, p. 127.

Page 60: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

60

O rio Javari e a construção local do espaço

A organização do território do modelo setentrional esteve, a princípio, durante o

período colonial, sujeito à Capitania do Maranhão, cuja esfera administrativa ia, pelo

mar, até o rio Oiapoque, onde se limitava com a Guiana francesa. Depois de 1615, toda

a área ganharia autonomia sob a denominação de Capitania do Pará, da qual seria

desmembrada em 1755 sua parte ocidental, sendo este território chamado de Capitania

de S. José do Rio Negro, com capital na povoação de Barcelos. Durante o Primeiro

Reinado este território tornar-se-ia apenas a comarca do Alto-Amazonas, sujeita

novamente à Província do Grão-Pará, da qual seria finalmente separado em 1850, para

formar uma circunscrição política independente com o nome de Província do

Amazonas.

A Província do Amazonas experimentaria um intenso desenvolvimento a partir

dos meados da década de 1860, fruto da migração nordestina e dos altos lucros

provenientes da exportação da borracha, da qual era praticamente o único produtor

mundial. Esta pujança econômica, reconhecida pela visão central, seria uma das

responsáveis pela produção de uma identidade local:

A província do Amazonas, assim como a sua limítrofe do Pará, são

as duas que oferecem um futuro mais grandioso em todo o Império. Apesar

do seu desenvolvimento se ter feito lenta e parcamente, por circunstâncias

especiais da sua situação nos confins do litoral marítimo e da metrópole, a

riqueza espontânea de seu imenso território, a opulência das numerosas

artérias fluviais e a proximidade dos muitos estados e colônias estrangeiras,

hão de necessariamente dar-lhe um impulso vigoroso e constituir uma nação

rica, forte e colossalmente grandiosa.65

Como vimos, outros fatores relevantes para a constituição de uma identidade

local no Amazonas, foram a originalidade de seu povoamento e a constituição tardia

desta Província em relação as outras, o que iria originar um esforço de sua afirmação

enquanto um espaço autônomo frente a Província do Grão-Pará.

65 Viriato Augusto da Silva. Corografia do Brasil. Lisboa: D. Corazzi, 1882, p. 38.

Page 61: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

61

Esta identidade divergiria da construção historiográfica oficial, uma vez que não

era construída em relação à tradição, mas com o novo, onde a conexão com outros

países e a abertura a outras culturas quase que substituía a ligação com o Rio de Janeiro.

O Amazonas, segundo a construção local do espaço, seria o país do futuro, uma terra de

oportunidades, habitado em sua grande maioria por migrantes e estrangeiros, aos quais

os naturais e os indígenas, já estavam integrados, assim como a natureza, submetida

pelo progresso e pela civilização, trazida pela nova opulência:

As febres intermitentes , que podem ser contraídas por impureza das

águas, não são endêmicas e quase nunca atacam as pessoas que filtram o

precioso líquido para bebe-lo, andam calçadas e confortavelmente vestidas,

evitando os banhos fora das horas matinais.66

Neste contexto, também a noção dos limites espaciais dessa identidade não

coincidiria mais com as cartas oficiais que, cada vez mais desacreditadas, deixariam de

impedir que, em Manaus, se passasse a conceder lotes de terras, com títulos definitivos

de posse, no rio Acre, muito ao sul da fronteira estabelecida pelo governo central. A

constituição da comarca amazonense de Antimary excederia até os padrões de limites

anteriores, ultrapassando muito o paralelo de 10º 20’. Ainda, a própria exploração

comercial da região que o Javari integrava passaria a ser incentivada pelo governo do

Amazonas, apoiada na lógica de que a metade da produção de borracha provinha

daquele território.

No entanto, a divergência da visão de espaço central não se limitava à região do

Javari, uma vez que, segundo os mapas67

e as corografias mandadas confeccionar pelo

Estado do Amazonas, algumas das quais mantinham inclusas as cartas oficiais, seu

limite com a Colômbia era o antigo rio dos Enganos, o que permitia estender o espaço

local até os contrafortes da Cordilheira dos Andes.

Enquanto esta construção local do espaço ganhava corpo, diversos geógrafos e

militares no Rio de Janeiro passariam a contestar a visão de espaço central,

posicionando-se contra a cessão do território do Javari, através de argumentos que

reinventavam os padrões de limites. Segundo estes argumentos, as nascentes só

66 Lopes Gonçalves, O Amazonas - Esboço histórico, corográfico e estatístico até o ano de 1903. New York: Hugo J.

Hanf, 1904, p. 67.

67 Por exemplo, Raymundo B. Nery & Bernardo Ramos, Carte de l'Etat de l'Amazone, 1901.

Page 62: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

62

poderiam estar onde sempre estiveram, “pelo menos, na altura de 10° 20', isto é, no

paralelo do Madeira.”68

A luta de representações se intensificaria a partir da República, estendendo-se

então ao próprio Ministério das Relações Exteriores, que emprestaria credibilidade aos

novos argumentos pela constituição de duas novas expedições nos anos de 1897 e 1902

que possuíam o objetivo explícito de determinar as nascentes do Javari.

Contraditoriamente, também entre os anos de 1895 e 1899, seriam tomadas uma

série de providências destinadas a defender a soberania da Bolívia sobre a área

pretendida pelo estado do Amazonas, instalando-se, inclusive, um consulado brasileiro

na povoação de Porto Alonso, centro do território disputado e reconhecendo como

ilegais os decretos de Manaus, pois autorizava-se a Bolívia a criar uma alfândega e

demais repartições governamentais na região.

A reação do governo amazonense e dos comerciantes locais, que contaria com o

apoio popular, foi incentivar a desobediência às diretrizes do Rio de Janeiro e apoiar a

guerrilha contra as autoridades bolivianas:

[...] àquela porção de brasileiros, que em zona longínqua, regam

com seu sagrado sangue a idéia patriótica de fazer permanecer brasileira a

larga faixa de terra ora ocupada pelo estrangeiro, ao sul da chamada linha

Cunha Gomes, que o governo vê-se obrigado a respeitar por força de um

tratado. Por mais ilegal que pareça este proceder dos insurretos, traduz um

belo movimento de patriotismo e os sentimentos apurados do direito de

propriedade que, no dizer de von Thering, é um prolongamento da

personalidade mesma, parte integrante do indivíduo, porque é a sua

condição de coexistência social. Homens que, arriscando a vida,

conseguiram construir habitação, constituir um lar, fundar uma propriedade

em territórios inexplorados, que possuíam como pedaços da pátria, a cujas

leis eram obedientes, não se podem conformar a ver, de um momento para o

outro, perdidos todos os seus esforços inteligentes, passando à leis diversas

em estranha pátria.69

68 Taumaturgo de Azevedo, citado em Ruy Pessôa, A reexploração do rio Javari - expedição Cunha Gomes de 1897.

Brasília: Senado Federal, s/data, p. 21-22.

69 Lopes Gonçalves, O Amazonas - Esboço histórico, corográfico e estatístico até o ano de 1903. New York: Hugo J.

Hanf, 1904, p. 67, III.

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63

Em 1900, a eleição para o governo do Amazonas, seria ganha por um candidato

de consenso, Silvério Nery, cuja principal plataforma de governo era “a idéia de

despertar, por todos os meios justos e legais, a atenção dos poderes públicos da União

para uma ação comum, tendente a reivindicação do Acre [onde] o estrangeiro, tendo

invadido, com o assentimento do governo federal, uma parte do território amazonense,

parecia zombar de nossos direitos”.70

Iniciar-se-ia, em seguida, uma campanha de imprensa no Rio de Janeiro e

intensas pressões no Congresso, com vistas a defender os interesses de Manaus,

contrariando-se as tentativas de negar-se a existência de uma visão local de espaço:

[...] [esta] questão que não existe [...] esta questão [a do Acre] que

nasceu nas praças comerciais de Belém e Manaus, de lá subiu ao palácio do

governo do Amazonas, daí se propagou aos seringais do Acre, fosse agitada

na imprensa diária, até que vieram morrer suas ondas na outra casa do

Congresso.71

No centro de toda a controvérsia, encontrar-se-ia de novo o rio Javari: de

supetão, as discussões se encaminhariam nos meios geográficos até que se tornasse

majoritária a idéia de que o rio até então registrado nos mapas não era o Javari, mas

apenas um braço deste, o Jaquirana, sendo necessário, portanto, prosseguir no esforço

de encontrar o fugidio rio. Sob tais circunstâncias, Dionysio Cerqueira, o ministro das

Relações Exteriores, enunciaria a posição do Governo em um pronunciamento estranho

e enigmático:

Vou demostrar que a fronteira do Brasil com a Bolívia, entre os rios

Madeira e Javari, é a linha geodésica que liga a foz do Beni à nascente do

Javari, e não uma linha, que não é linha, mas um ângulo formado de duas

linhas, ou uma linha que é constituída por dois lados de um ângulo, cujo

vértice é o ponto de intercessão do meridiano que passa pela cabeceira do

70 Lopes Gonçalves, O Amazonas - Esboço histórico, corográfico e estatístico até o ano de 1903. New York: Hugo J.

Hanf, 1904, p. 67 e p. III.

71 Discurso de Dionysio Cerqueira, deputado e ex-ministro das Relações Exteriores no Congresso Nacional. Gregório

Thaumaturgo de Azevedo, O Acre - Limites com a Bolívia. Artigos publicados na imprensa - 1900-1901. Rio de

Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio, 1901, p. 9.

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Javari, e pelo paralelo que passa pela boca do Beni, e cujos extremos são as

cabeceiras do Javari e a boca do Beni.72

A partir deste enunciado verdadeiramente hermético, toda a questão seria

remetida ao marco zero, uma vez que o rio Javari, o qual balizara as fronteiras do Brasil

desde o século XVIII, simplesmente desaparecera. Como dissera certa vez o próprio

Barão de Tefé: “[...] escondia-se a fonte desse rio misterioso, quase encantado”.73

A confusão se transformaria ainda numa questão da campanha presidencial que

mudaria os rumos da eleição: acompanhando a tendência do eleitorado, Rodrigues

Alves passaria a demostrar simpatia pelos chamados “combatentes do Acre”. Eleito,

reconstruir-se-ia a articulação centro-periferia através da designação para o Ministério

das Relações Exteriores de um indivíduo já reconhecido por suas ligações com as

questões de limites: Rio Branco. Este, em 18 de Janeiro de 1903, faria um comunicado à

Bolívia através do qual se informava que o Brasil passaria a sustentar o que então

considerava ser a verdadeira interpretação do Tratado de Ayacucho: a fronteira

brasileira retornava ao mítico nascedouro do Javari, “o paralelo de dez graus e vinte

minutos”.

Remate dos Males

Em 1900 o rio Javari já estava aberto à navegação comercial até a sua principal

povoação, denominada então ‘Remate de Males’, localizada na confluência com o rio

Itecuaí, sendo que vapores e lanchas singravam-no até a confluência com o rio Curuçá.

A companhia de navegação que prestava esse serviço era inglesa, a The Amazon

Steamship N. Company, Ltd. e navegava uma vez por mês esse percurso.

Remate dos Males possuía naquele ano mais de 1.000 habitantes, e contava,

inclusive, com uma escola pública, mantida pelo governo do estado do Amazonas.74

Consta que o nordestino que lançou os fundamentos dessa povoação chegou à

Amazônia fugindo da seca depois de haver experimentado todo tipo de dificuldade: lá,

72 Gregório Thaumaturgo de Azevedo, O Acre - Limites com a Bolívia. Artigos publicados na imprensa - 1900-1901.

Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio, 1901, p. 5.

73 Luiz Viana Filho, A vida do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959, p. 398.

74 Lopes Gonçalves, O Amazonas - Esboço histórico, corográfico e estatístico até o ano de 1903. New York: Hugo J.

Hanf, 1904, p. 72-73.

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65

se tornaria ainda mais infeliz, perdendo o que lhe havia sobrado da família e mesmo os

últimos recursos conseguidos. Em seu leito de agonia, desanimado, resolveu batizar a

localidade com o nome de Remate de Males.75

A solução da questão do Acre por Rio Branco se daria não só através da compra

do território do Javari à Bolívia, mas também pela exclusão deste território do estado do

Amazonas: após a negativa do conhecimento pleno das negociações feitas no Império

com a Bolívia, reinventava-se o espaço local fazendo com que este fosse aglutinado ao

espaço central pela persistência dos nacionais.

Depois de finalmente se haver descoberto que o rio não estivera onde se

acreditara que havia existido, seus habitantes não mudariam de lugar, mas Remate de

Males mudaria de nome: passaria a se chamar Benjamim Constant, um dos patronos da

República do Brasil.

75 Agnelo Bittencourt, ‘A psicologia nos nomes geográficos do Amazonas’, in Mosaicos do Amazonas - Fisiografia e

demografia da região. Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas, 1966, p. 128.

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66

4 — MAPEANDO O VAZIO: A GRAMÁTICA DA VISÃO E A

INTERPRETAÇÃO SEMIOLÓGICA E ICONOLÓGICA DOS MAPAS

ATRAVÉS DAS CARTAS GERAIS

Nosso objetivo inicial neste capítulo é fundamentar a idéia da ‘gramática da

visão’ e sua importância na constituição de um ‘saber sobre o espaço’. A partir destes

fundamentos, procuremos estudar as condições da intuição e da intelecção do espaço

brasileiro por meio das Cartas Gerais dos séculos XVIII e XIX, para que, finalmente,

possamos estabelecer categorias que nos permitam discutir nos próximos capítulos a

construção das representações do espaço brasileiro e a inscrição do Estado no espaço.

Por conseguinte, a constituição da idéia de uma ‘gramática da visão’ visa inserir os

problemas do nosso estudo junto à construção de um ‘saber sobre o espaço’, já que

entendemos que este é elaborado a partir de certos elementos cuja origem, arranjo e

organização devem ser analisados tanto em relação à história da cultura quanto junto às

‘relações de força’ e às ‘relações de soberania’.

Nesse sentido, remetemos a idéia da ‘gramática da visão’ ao conceito de

‘gramática universal’, concebido no século XVIII e que foi diferentemente utilizado no

século XIX por vários pensadores, como Schopenhauer, Schelling, Burckhardt e

Nietzsche. O conceito de ‘gramática universal’ foi ainda desenvolvido no final da

década de 1960 por Noam Chomsky, a partir das concepções de Humboldt, a saber,

enquanto um princípio universal e inato de todas as linguagens naturais, ou seja, como

uma característica mental e inata da espécie, reconhecida por Humboldt enquanto a

‘Forma’ da linguagem.

Esta ‘Forma’ da linguagem decorreria de ‘noções comuns’ as quais envolvem

categorias relacionais que tornam possível a intuição do objeto e a unidade da

experiência racional, tais como, causa e efeito, o todo e a parte, parecença e diferença,

proporção e analogia, igualdade e desigualdade, simetria e assimetria, ‘noções comuns’

a todos os homens e que demonstram, portanto uma concepção ativa da intuição.76

76 Noam Chomsky, Reflections on language. New York: Pantheon Books, 1975, p. 3-7.

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Por conseguinte, segundo este conceito da ‘gramática universal’, entendemos

que a intuição dos objetos dependeria de experiências que evocam estruturas em alguma

parte do sistema cognitivo a desenvolver ou já desenvolvidas pela experiência

individual ou no seu contato com uma experiência compartilhada junto aos demais

indivíduos.

Apesar desta intuição dos objetos estar relacionada ao problema Kantiano da

conformidade dos objetos ao nosso modo de cognição, entendemos que este problema

pode ser melhor resolvido segundo a concepção de Schopenhauer, que efetivamente

distingue a intuição dos objetos enquanto uma característica única da mente humana

como Descartes, Humboldt e Chomsky.

Para Schopenhauer, o que é pensado é sempre um “conceito universal, não

intuitivo, que pode ser entendido como o conceito de um objeto em geral: mas, o pensar

só se relaciona, mediatamente, por meio de conceitos, aos objetos” que, em si mesmos,

são e permanecem sempre intuitivos.

Portanto, “o objeto como tal existe, sempre, só para a intuição e nela: ela só

pode ser preenchida pelos sentidos ou, na sua ausência pela imaginação”.77

Assim, a partir de Schopenhauer, entendemos que as coisas individuais seriam

intuídas como tais no entendimento, ou seja, mediante a aplicação do nexo causal entre

o que é pensado através dos sentidos com as intuições da experiência individual ou

compartilhada, por conseguinte, a intuição seria completamente intelectual.78

Deste modo, podemos relacionar os sentidos de Schopenhauer às ‘noções

comuns’ de Chomsky e Humboldt e, conseqüentemente, sua concepção da intuição e do

‘nexo causal’ à idéia de experiência conforme empregada por aqueles dois autores: a

mente proveria os meios para uma análise dos dados percebidos conforme a

experiência, enquanto esta última proveria a mente com os dados que permitiram a

delimitação das estruturas cognitivas que possibilitariam a experiência.

A ‘gramática da linguagem’ derivaria portanto desse jogo sucessivo de intuições

e intelecções entre os falantes compondo um repertório e uma estrutura que Humboldt

definiria como ‘uma atividade produtiva’ [eine genetische], um ‘trabalho mental’

77 Arthur Schopenhauer, 'Crítica da Filosofia Kantiana', Os Pensadores - Arthur Shopenhauer. São Paulo: Editora

Nova Cultural, 1997, p. 144.

78 Arthur Schopenhauer, 'Crítica da Filosofia Kantiana', Os Pensadores - Arthur Shopenhauer. São Paulo: Editora

Nova Cultural, 1997, p. 145.

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68

[Arbeit des Geistes] sempre repetido, de tornar os sons articulados capazes de expressar

o pensamento.79

Analogamente à existência de uma ‘gramática da linguagem’, Noam Chomsky

sugeriria a existência também de uma ‘gramática da visão’80

que, no caso, entendemos

estar relacionada à constituição do ‘saber sobre o espaço’. Neste caso, a ‘gramática da

visão’ seria composta como a ‘gramática da linguagem’, também a partir das ‘noções

comuns’, no caso, as estruturas cognitivas inatas ligadas à visão, que, através do ‘nexo

causal’ de Schopenhauer, seriam ligas a certas categorias construídas pela experiência

individual ou compartilhada, das quais destacaremos a Perspectiva e a Teoria das

Proporções, a partir das quais se desenvolveriam estilos estéticos conforme uma

intuição completamente intelectual dos objetos.

Ainda, esta intuição dos objetos propiciaria, segundo Schopenhauer, o estofo do

pensamento que se realiza, por conseguinte, por uma abstração a partir da intuição,

mudando apenas a forma de conhecimento já adquirido pela intuição, tornando possível

a sua combinação e a sua aplicação. Neste sentido, o uso da razão consistiria,

justamente em conhecer o particular através do universal, de apreendê-lo através das

circunstâncias contidas na formulação do pensamento, concretizando-se, assim, uma

intelecção do objeto.81

Portanto, entendemos que a intuição do espaço por meio das categorias da

‘gramática visual’ resultaria numa intelecção do espaço a qual, por sua vez, resultaria

numa representação desse mesmo espaço. Compreendemos também que nossa

compreensão da categoria da intelecção de Schopenhauer, relativamente à ‘gramática da

visão’, tornaria a intuição desta mais ligada à representação, por conseguinte,

importando mais atenção ao processo subjetivo do que a ‘gramática da linguagem’.

Neste estudo, procuraremos entender através das produções cartográficas do

século XVIII e XIX certos processos dessa intelecção, procurando determinar algumas

categorias que nos permitam utilizar a cartografia como um instrumento de exame

simultâneo da construção das representações do espaço brasileiro e da inscrição do

Estado no espaço.

79 Noam Chomsky, Cartesian Linguistics. Christchurch, New Zealand: Cybereditions, 2002, p. 62.

80 Noam Chomsky, Reflections on language. New York: Pantheon Books, 1975, p. 7-8.

81 Arthur Schopenhauer, 'Crítica da Filosofia Kantiana', Os Pensadores - Arthur Shopenhauer. São Paulo: Editora

Nova Cultural, 1997, p. 176.

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69

Para isto, escolhemos um dos gêneros cartográficos, a carta geral, entendida,

neste estudo, enquanto os produtos cartográficos que possuam as seguintes

características:

Em primeiro lugar, caracterizaremos como cartas gerais aqueles mapas que se

propõem distinguir um determinado espaço ou espaços sobre o território e após fazê-lo,

delimitem-no através de seu enquadramento, compreendido aqui como um recorte da

superfície terrestre disponibilizado para a leitura através de uma determinada

perspectiva possibilitada pelo emolduramento do mapa. Neste sentido, os paralelos e

meridianos que estabelecem esse recorte da superfície terrestre são instrumentos que

possibilitam, num primeiro nível, instituir relações de pertencimento e exclusão e, num

segundo nível, organizar uma estrutura territorial que dê sentido e referências à

construção do espaço.

Conforme estas características, as tentativas de inscrição e organização dos

espaços na porção oriental da América do Sul remontariam ao século XVI e possuiriam

como principal característica a imaginação cartográfica do espaço inexplorado, que se

consubstanciaria através da criação de ‘esquemas cartográficos’ que perduraram até o

século XIX, determinando esforços exploratórios, direcionamentos cartográficos e

influenciando construções do espaço — o Vazio, ou espaço não-conhecido, seria, neste

modelo de cartas gerais, um elemento dinâmico a ser preenchido, imaginado e

organizado.

Portanto, a intelecção do Vazio será referenciada por uma ‘gramática da visão’

que o processo subjetivo ligará à experiência individual ou compartilhada. Neste

sentido, para que se trace uma genealogia dessas experiências, é necessário,

primeiramente, definir que a própria idéia de mapa é muito mais extensa que a de seu

mero registro gráfico. Na realidade, o mapa se constitui primitivamente não um registro

gráfico, mas como um rol descritivo ou classificatório relacionado a uma base

geográfica, que adota uma forma possibilitadora de sua comunicação a outros

integrantes do grupo que compartilham pela experiência sua chave interpretativa.

Assim, em determinadas sociedades ou agrupamentos humanos onde não se

acreditasse necessária ou não houvesse capacidade técnica para a expressão gráfica,

existiram mapas que dispensaram essa forma de representação adotando-se então outras

formas capazes de serem compreendidas pelo grupo. Por exemplo, determinadas

culturas se utilizaram de mapas não-gráficos e sem o suporte de qualquer tipo de escrita,

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70

como os nativos das Ilhas Marshall, que com seu ‘Rebbelib’, a saber, uma estrutura que

combinava conchas e galhos, eram capazes de dar conta de um complicado sistema de

correntes marítimas e da localização das ilhas da região que freqüentavam. Por sua vez,

os Inuit da Groelândia representavam o conhecimento que possuíam do litoral dessa ilha

através de peças de madeira entalhadas no formato da costa e que eram transportadas

em suas canoas.82

Da mesma maneira, contrastando com a tradição chinesa e islâmica

na produção de mapas gráficos locais, várias formas não-gráficas de mapas mas que

apenas utilizavam o suporte da escrita e da oralidade, serviram correntemente na Europa

medieval para descrever e classificar o conhecimento geográfico das cidades e dos

campos.83

Contudo, dentro de cada um destes mesmos grupos anteriormente citados, a

representação dessa ‘gramática da visão’ estaria ligada às oportunidades de sua

expressão e da experimentação. Então, dentre os Inuit, a compreensão do espaço entre

as mulheres estava relacionada à localização e distância de certos pontos significantes a

partir de sua base, a maioria dos quais eram locais de troca, enquanto que para os

homens a linha da costa era mais importantes para a construção do espaço.84

Da mesma,

os mapas textuais e orais da Idade Média podem ser claramente percebidos como

construções ligadas aos interesses específicos de certos grupos de falantes, cabendo-lhes

mesmo a definição de mapas lingüisticos, com espécimes orientados para cada uma das

comunidades de uso da língua, definidas por meio de sua experimentação própria do

espaço, a saber, mercadores, burocratas, artesãos.85

Em segundo lugar, caracterizaremos também como cartas gerais as espécies de

mapas que estariam inseridas no esforço de constituição do Estado nacional: para a

consecução destas, convergiriam diversas iniciativas visando fins diversos, mas, cuja

principal característica era estabelecer a inscrição do Estado.

82 David Turnbull, Maps are Territories: Science Is an Atlas - a Portfolio of Exhibits. Chicago: University of Chicago

Press, 1993, p. 20-21; David Turnbull, Masons, Tricksters and Cartographers: Comparative Studies in the

Sociology of Scientific and Indigenous Knowledge. London: Routledge, 2003, p. 122-124.

83 Daniel Lord Smail, Imaginary Cartographies: Possession and Identitiy in Late Medieval Marseille. Ithaca: Cornell

University Press, 2000.

84 Yi-Fu Tuan, Space and Place - the Perspective of Experience. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2003,

p. 13.

85 Daniel Lord Smail, Imaginary Cartographies: Possession and Identitiy in Late Medieval Marseille. Ithaca: Cornell

University Press, 2000, p. 1-39.

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71

Neste modelo de Cartas Gerais seriam registradas as impressões do centro do

espaço sobre sua periferia, com os esquemas cartográficos e a imaginação cedendo

lugar ao planejamento e às estratégias do Estado. Neste modelo de carta geral o Vazio

não seria mais preenchido, imaginado e organizado, mas tornar-se-ia um elemento

estático a ser apagado e sobrescrito, e onde mesmo a não-inscrição consistiria em um

lugar a ser estudado. O esforço da construção do Estado nacional e da produção de sua

representação utilizou o material e a estrutura das cartas gerais anteriores adaptando-as à

narração de seu próprio passado, em prol de seus objetivos e visando estabelecer sua

legitimidade, assim, o vazio será sucessivamente apagado e reescrito com a utilização

de dois novos eixos de representação cartográfica: a Ordem e a Civilização. Por

conseguinte, deve-se fazer também uma leitura do significado dos elementos e das

estruturas técnicas do mapa, conectando-as às intelecções dos seus operadores.

Além disto, devemos entender que a cartografia no período possuirá uma

dinâmica toda própria, uma vez que expressará as ‘relações de força’ e as ‘relações de

soberania’ do Império, no caso, consolidadas na sua episteme.

Contudo, elaborando mais os nossos argumentos anteriores, a produção

cartográfica também exibirá certas tendências de representação que expressarão o

desejo e a vontade de ajustamento a determinados modelos mais amplos ou a reação a

uma tendência que acredita ser concorrencial e, ao utilizar-se o conceito de Deleuze e

Guattari, estabelecendo-se um lugar para a leitura de novos significados e referências de

uma reterritorialização das antigas construções.

Portanto, constituímos para nosso estudo, duas espécies distintas de Cartas

Gerais: aquelas que inscrevem e organizam um espaço da América portuguesa e às que

estão inseridas no esforço de constituição do Estado nacional.

Entretanto, ainda é necessário adiantar para esse estudo que o uti possidetis

somente se estabeleceu como instrumento de negociação das fronteiras brasileiras a

partir da década de 1850, enquanto que um determinado conceito de Fronteira Natural já

havia sido esboçado através das corografias desde a década de 1840, sendo

continuamente reafirmado nestas por um ligação com a política de expansão portuguesa

na América, inclusive por meio de sucessivos reforços conceituais que visavam,

emprestar maior credibilidade ao conceito do uti possidetis.

A idéia central nesse conceito da Fronteira Natural é a de que o processo de

formação histórica, decorrente dos esforços da Metrópole, moldaria, inclusive, o caráter

Page 72: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

72

nacional e teria como sua maior expressão a figura do Bandeirante, determinando,

através de variadas etapas, uma expansão que constituiria um espaço necessário e ideal,

o qual seria balizado por acidentes geográficos inconfundíveis e claramente

localizáveis.

Esse conceito da Fronteira Natural seria construído a partir da década de 1840

mas teria sua formas mais bem acabadas somente no século XX, quando Jaime

Cortesão, professor de Política Externa do Itamaraty, instituição que financiou a edição

da maioria de suas obras, utilizando a cartografia, construiu uma narrativa da

persistência do conceito da unidade do espaço brasileiro e de sua extensão do Prata ao

Amazonas desde o século XVI.

O cerne dessa construção seria a insistência dos cartógrafos em então representar

uma conjunção geográfica das bacias daqueles rios, o que evidenciaria a existência de

um espaço brasileiro destacado do Continente e que seria definido como a ‘Ilha Brasil’,

num esforço capaz de influenciar tanto a expansão territorial portuguesa quanto,

segundo outros autores,86

a política externa e a geopolítica brasileira.

Antes que os portugueses e os luso-brasileiros tivessem adquirido a

consciência perfeita da unidade geográfica, econômica e humana que deu

lugar à formação do Brasil, já haviam traduzido esse fato por aquilo a que

nós chamamos o mito da Ilha-Brasil.87

Assim, o exame do primeiro modelo das cartas gerais nos permite discutir tanto

a construção de uma linearidade histórica da narrativa territorial quanto a conjunção do

conceito de fronteiras naturais com o uti possidetis, especialmente através da construção

de Cortesão.

Para este último, o espaço brasileiro já seria balizado desde o século XVI por um

eixo de representação cartográfica, a ligação das bacias do Prata e do Amazonas, que

destacaria o território brasileiro do restante da América, criando, assim, uma união entre

espaço e território. Para que seja possível discutir esta narração, se faz necessário um

estudo da produção cartográfica do período, que permita discorrer sobre a genealogia e

a disseminação cartográfica dos eixos de representação dessas produções cartográficas.

86 Por exemplo, Demétrio Magnoli. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-

1912). São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.

87 Jaime Cortesão. História do Brasil nos velhos mapas v. 1. Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, 1957, p. 339

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73

As cartas gerais que inscrevem e organizam o espaço da América portuguesa Ainda que

o modelo das cartas gerais da porção oriental da América do Sul tenha se estabelecido

ainda no século XVI e influenciado a produção cartográfica até o início do século XIX,

o eixo de representação cartográfica na maioria das cartas gerais seria composto por

dois marcos geográficos imaginários distintos, que, ao contrário de destacar certos

elementos do espaço, iriam ancorar a organização e distribuição dos demais elementos

estruturais do espaço.88

O primeiro destes marcos teria como características principais

ser radial e central em relação ao espaço e aglutinador dos elementos mais destacados,

enquanto que o segundo marco seria periférico em relação ao primeiro marco,

separando e balizando os elementos secundários (ver Figura 8).

O primeiro marco geográfico, doravante denominado de marco central, surgiria

ainda no século XVI, sendo pouco representado nas outras cartas gerais até pelo menos

a primeira década do século XVII. Este marco tinha a função de preencher o interior do

88 Consultamos, para os estudos feitos a seguir, perto de duas centenas de mapas inclusos nas coleções da

SGDM/BM; CBS (Coleção Banco Santos) e na DRMC (David Rumsey Map Collection).

FIGURA 8 — EIXO DA REPRESENTAÇÃO DO PRIMEIRO MODELO

DE CARTA GERAL

Cartografia: Renato Amado Peixoto.

Page 74: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

74

território e o seu entorno até o litoral com o prolongamento de dois grandes cursos de

água, o Amazonas e um rio que desaguaria no Estuário do Prata, até uma origem

comum no centro do território, então imaginada como uma montanha ou vulcão (ver

Figura 9, elemento1), um símbolo universalmente relacionado à centralidade.89

Após a representação do marco central ter se disseminado pelo conjunto das

produções cartográficas, ocorreria uma troca no nível de sua simbolização, com a

passagem de um significado universal para um significado particular, uma vez que a

‘Montanha’ cedeu lugar ao ‘Lago’ (ver Figura 9, elemento 2), no caso, ainda uma

imagem isolada e que não se comunicava com nenhum outro elemento da carta.90

A transformação deste marco resultaria da conecção das notícias da existência de

grandes riquezas em ouro e prata no interior da América Meridional, propaladas pelos

aventureiros portugueses e espanhóis da primeira metade do século, como Aleixo

Garcia, Juan de Ayolas, Alvar Núñes Cabeza de Vaca e Domingo Martínez de Irala,

com um mito originário da região andina, a lenda do ‘El Dorado’, tanto que, nesse

89 Ver, por exemplo: Giovanni Battista Ramusio, Brasil, 1557; Ruscelli, Girolamo, Brasil nuova tavola, 1573.

90 Por exemplo: Arnold Florent van Langren, Delineatio totius australis partis americae, 1596

FIGURA 9 — A TRANSFORMAÇÃO DO MARCO CENTRAL

Esquema: Renato Amado Peixoto.

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sentido, o marco receberia, no final do século, a toponímia de ‘Laguna del Dorado’ ou

‘Dorado’ (ver Figura 9, elemento 3).91

Segundo a versão mais divulgada desta lenda, que teria nascido em Quito no

começo de 1541, o Rei ou Chefe Dourado mantinha, durante o dia, seu corpo sempre

coberto por pó de ouro, considerado por ele a como a mais bela das vestimentas, a qual

não se compararia com os ornamentos da mesma espécie envergados por seus súditos. O

Rei Dourado reinaria sobre um território muito populoso e rico, situado num terreno

plano no interior do continente, onde não existiriam florestas nem montanhas e em cujo

centro haveria um lago com muitas ilhas, que, sendo considerado sagrado por seus

habitantes, seria o destino final de oferendas rituais compostas de pedras preciosas e

ouro, e em cujas margens estaria situada uma larga cidade com muitas edificações e

estátuas douradas.92

Portanto, acompanhando tanto a divulgação do Mito quanto os relatos dos

aventureiros, dos quais possivelmente a obra de Cabeza de Vaca foi a mais importante,

a representação do lago, agora denominada de ‘Lago Eupana’, foi ligada a vários rios

que, nascendo em suas águas, desaguariam no Atlântico, e acrescida de várias ilhas e

uma cidade, nomeada como ‘Puerto de los Reyes’,93

um topônimo verdadeiro existente

na região do alto-paraguai e descrito nos ‘Comentários’ (ver Figura 9, elemento 4).94

A inclusão desses novos elementos na composição da representação do marco

central, provavelmente estaria ligada tanto à transformação do mito através da

experiência da exploração, de um lugar do ouro para uma civilização do ouro, quanto à

intelecção de se organizar cartograficamente o espaço pela incorporação dessa região às

partes reconhecidas e exploradas da América do Sul.

Portanto, o marco central tornou-se um ponto axial que não ligava simplesmente

o Prata ao Amazonas, conforme argumentado por Cortesão, mas uma intelecção do

Vazio, o centro do continente, a partir de sua ligação com o espaço reconhecido.

Ainda, somente a partir da primeira década do século XVII, coincidindo com sua

adoção pela ampla maioria das cartas gerais, o marco central passaria a ter a função de

91 Por exemplo: Cornelis de Jode, Brasiliae et Peruvia, 1593?; Luís Teixeira, s/título, c. 1574.

92 John Hemming, The search for El Dorado. London: Phoenix Press, 2001, p. 110-123.

93 Por exemplo: Petrus Plancius, Meridionalis americae pars, 1600?.

94 Esta obra foi impressa em Madri no ano de 1555. Alvar Nuñes Cabeza de Vaca, Naufrágios e Comentários. Porto

Alegre: LP&M, 1999, p. 195-200.

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elemento organizador do espaço e distribuidor, não apenas de parte, mas de todo o fluxo

aquático do território que desaguava no Atlântico.

Assim, esta representação do marco central possuiria ainda várias versões até o

final do século, sem que nenhuma delas se tornasse majoritária, uma vez que cada carta

geral, de acordo com a importância do princípio subjetivo na ‘gramática visual’, optava

por ligar o marco central aos cursos de diferentes rios, fossem estes reais ou

imaginários, como por exemplo, nas versões em que se prolongava até o marco central o

rio São Francisco ou um rio que se prolongava a partir da Baía de São Marcos.95

Portanto, a predominância da representação do marco central na organização do

espaço durante todo o século XVII não se prestou ao enfoque de uma unidade do

território brasileiro, a idéia central de Cortesão, mas a uma diversificação dos espaços e

à necessidade de separar estes espaços uns dos outros, a saber, Assunção, Nova

Andaluzia, Caribana, Paria, Guiana e Guaíra. A necessidade de dispor estes novos

espaços em um território desconhecido, e arrumá-los em uma relação recíproca,

provavelmente foi a lógica da atribuição de novas funções ao marco central, que

passaria a organizar o território através de suas atribuições.

Inclusive, esta representação do marco central enquanto organizador do território

não serviria, até sua decadência no início do século XVIII, para indicar os limites

naturais na delimitação do espaço de um território brasileiro, uma vez que o marco

nunca esteve contido no espaço da América portuguesa, e poucas vezes foi representado

contiguamente a este.

Ainda, a ligação entre a Bacia do Prata e a Amazônica, quando existiu

desconectada de outras ligações, poucas vezes serviria nas cartas gerais para delimitar o

espaço da América portuguesa, uma vez que a diversificação dos espaços nas cartas

gerais a partir de século XVII provocaria uma diminuição do território da América

portuguesa em relação àquele que lhe fora atribuído no final do século XVI, quando

dar-se-ia o apogeu de sua representação, estendendo-se do Amazonas ao Prata.96

Na primeira metade do século XVII o espaço brasileiro esteve preferencialmente

contido entre o Maranhão e São Vicente,97

sua menor percepção, principalmente em

95 Por exemplo, Jadocus Hondius, América, 1606.

96 Por exemplo: Cornelis de Jode, Brasiliae et Peruvia, 1593?; Arnold Florent van Langren, Delineatio totius australis

partis americae, 1596.

97 Por exemplo: Melchior Tavernier, Carte de l'amerique, 1627; Guiljelmo Blaeu, Paraguay, ó Prov. de Rio de La

Plata, 1640.

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razão da expansão do espaço atribuído à Assunção, Guaíra e Missões, caracterizando-se

assim uma competição concorrencial sobre o espaço, para nos cinqüenta anos seguintes

passar a ser percebido através da configuração Tocantins — São Vicente,98

tornando

somente no século XVIII, através da inclusão do território atribuído à Colônia do

Sacramento, a atingir parcialmente o Prata.99

As transformações do espaço atribuído à América portuguesa provocaria

mudanças nos espaços contíguos e na sua descrição toponímica: por exemplo, seria

registrada, desde as primeiras cartas gerais, a existência de uma imensa ilha no médio

curso do rio São Francisco, que teria, inclusive a função de marco organizador desse

território (ver Figura 8).100

Entretanto, quando por volta de 1650, a percepção do espaço

brasileiro se desloca rumo ao centro do continente, as cartas gerais começam a registrar

o deslocamento para oeste tanto do marco central quanto da ilha do São Francisco,101

provavelmente em razão do reconhecimento e da exploração do interior do Brasil, ainda

que a inclusão da região de Goiás ao espaço brasileiro somente se tornasse

predominante a partir do século XVIII.102

Vale a pena notar que, paralelamente as transformações das inscrições do

espaço, a atribuição da toponímia ‘Brasil’ predominaria nos períodos que

corresponderia a uma maior extensão do território, nos séculos XVI e XVIII, enquanto

que a toponímia ‘Brasília’ seria utilizada principalmente durante sua menor extensão,

durante o século XVII.

Por volta de 1650 ocorreria uma nova mudança na toponímia do marco central:

este passa a ser predominante referido como ‘Lago de Xarayaes’ e a partir do século

XVII quando declina sua importância como marco organizador, esta também se

refletiria na sua designação e na sua simbolização: antes de finalmente desaparecer, no

final do século XVII, seria denominado de ‘Lagunas de Xarayes’103

, depois

98 Por exemplo: John Ogicby, Novissima et acuratissima totius americae descriptio, 1671; Vincenzo Coronelli,

America meridionali, 1692.

99 Por exemplo: T. Jeffreys, South america drawn from the best maps, 1749; Carte tres curiese de la mer du sud,

1750?.

100 Por exemplo: Joan Blaeu, Brasilia, 1642.

101 Por exemplo: Arnold Colom, Zuyder deel van America, 1656?; Nicolas Sanson, Amerique meridionale, 1670?.

102 Por exemplo: Pieter van der Aa & Jean Dominique Cassini, Planisphere terrestre suivant les nouvelles

observationes des astronomes, 1715; , George Matthäus Seutter, Recens elaborata mappa geographica regni

brasiliae in America meridionali, 1740.

103 Por exemplo: Nicolas de Fer, L'Amérique Divisée, 1705; Giovanni Battista Albrizzi, Carta geografica del Bresil,

1740.

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representado pelo símbolo de um pântano,104

para no século XIX, ser identificado com o

Pantanal mato-grossense.

O segundo marco geográfico, doravante denominado de marco periférico,

surgiria no início do século XVII, portanto, tardiamente em relação ao marco central e

seria situado nas cartas gerais fora do território que se encontrava organizado pelo

marco central, separando a região que este dominava da região mais conhecida, a costa

do Caribe, e servindo como um eixo secundário na construção do território das cartas

gerais. Assim, o marco periférico teria a função de ordenar e preencher a área entre a

Bacia Amazônica e o entorno costeiro do Caribe, subordinando esses acidentes

geográficos.

FIGURA 10 — TRANSFERÊNCIA DE SIGNIFICADOS DO MARCO CENTRAL PARA

O MARCO PERIFÉRICO’

104 Por exemplo: Nicolas de Fer, L'Amerique Meridionale et setentrionale, 1717; Carte tres curiese de la mer du sud,

contenant des remarques nouvelles et tres utiles non seulement sur les port et iles de cette mer, mais aussy sur les

principaux pays de l'amerique tant septentrionale que meridinale, 1750?.

Os elementos selecionados foram aumentados entre cinco e seis vezes de seu tamanho original. Fonte: ‘Carta D’Anville’, 1748.

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A genealogia do registro do marco periférico acompanharia em várias

características o marco central, sendo representado também como um ‘Lago’105

e

também ligado ao mito de um lugar do ouro, para depois adquirir elementos que

permitissem adaptá-lo para o mito da civilização do ouro. Nesse sentido, o marco

periférico receberia, inicialmente, a toponímia de ‘Manoa’ e depois de Parime (também

Parima ou Torime), sendo-lhe agregado o elemento humano através da inscrição de um

núcleo urbano denominado de ‘Manoa’ ou ‘Dorado’.106

Entretanto, o que diferenciaria o marco periférico do marco central é que sua

representação se tornaria mais freqüente e mais elaborada na medida em que se

acentuava a decadência da representação do marco central, provavelmente podendo

indicar uma transferência de significados entre os dois eixos de representação das cartas

gerais, uma vez que o marco periférico ainda continuaria a ser representado nas

produções cartográficas do século XIX (ver Figura 10).

Portanto, o marco central e o marco periférico seriam ‘elementos aglutinadores’

das cartas gerais do primeiro modelo, uma vez que havia a necessidade de construir o

Vazio para que fosse possível organizar e ordenar o conhecido: mapear o vazio era um

exercício que estabelecia as relações entre o imaginado e o conhecido.

No processo de composição destas cartas gerais, o imaginado era inscrito no

matematizado, pois, se o Vazio existia no interior do território, o espaço reconhecido do

exterior possuía, muitas vezes, formas e coordenadas que penetravam e se ramificavam

para o interior, por conseguinte, o imaginado e o conhecido tinham de ser ajustados

através da intelecção do espaço.

Nesse sentido, as explorações e os mapeamentos permitiam complementar ou

reordenar a rede de conhecimentos e reconhecimentos superpostos que os eixos de

representação permitiam sustentar, aliás, num procedimento bastante similar às técnicas

aerofotogramétricas utilizadas pela engenharia cartográfica, a saber, a superposição de

planos fotográficos sucessivos, que serão depois unidos por eixos ou pontos cujas

coordenadas geográficas foram previamente determinadas.

105 Por exemplo: Gerhard Mercator, America meridionalis, 1606; Nicolas Visscher, Orbis terrarum tabula recens

emendata et in lucem edita, 1679.

106 Por exemplo: Guillaume Sanson & Alexis-Hubert Jaillot, Mappe monde, c. 1700; Guillaume de L'isle, America

meridionalis, 1718.

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80

Portanto, o registro do espaço no primeiro modelo das cartas gerais não foi

inteiramente subordinado à exploração do território, mas, muitas vezes antecedeu a esta,

sendo que, inclusive, os dados geográficos obtidos foram transformados ou

compreendidos em função do imaginado.

As cartas gerais inseridas no esforço de constituição do Estado e suas estruturas

técnicas e elementos gráficos.

O protótipo deste novo modelo de carta geral foi a ‘Carta da Nova Lusitânia’,107

através da qual se podem entender certos padrões destas representações. Este mapa foi

produzido sobre os dados recolhidos pelas Comissões Demarcatórias do tratado de

1777, visando concorrer com o ‘Mapa Geográfico de América Meridional’, composto

em 1790 por Juan de la Cruz Cano y Olmedilla, num momento em que já se sugeria a

transferência da sede do Império português para a América, projeto este que foi

sistematizado na década de 1790 e apresentado formalmente por D. Rodrigo de Sousa

Coutinho à Corte portuguesa em 1803.108

A carta da Nova Lusitânia seria então

produzida por ordem de D. Rodrigo, Ministro e Secretário de Estado da Repartição da

Marinha e Domínios Ultramarinos, num enquadramento que permitia a compreensão de

todo o espaço brasileiro e sugeria sua unidade territorial.

Nesta carta, a utilização da perspectiva se impõe, uma vez que o território é

representado através da visão do ultramar: um olhar a partir do exterior que se insere no

interior do espaço. Esta inserção se manifesta pelo exagerado dimensionamento no

mapa da rede hidrográfica, que adquire um destaque superior a qualquer outro elemento

gráfico da carta, numa arranjo capilar e uniforme que alcançava todos os pontos do

território mapeado e que sugeria o deslocamento, a penetração e a capacidade de

distribuição do espaço.

107 Antonio Pires da Silva Pontes Leme, Carta da Nova Lusitânia, 1798.

108 A respeito dos projetos de transferência, ver Maria de Fátima Silva Gouvêa, ‘O Senado da Câmara do Rio de

Janeiro e o projeto Imperial Luso-Brasileiro, 1750-1820’, in Maria Helena Carvalho dos Santos, Do tratado de

Tordesilhas (1494) ao tratado de Madri (1750). Lisboa: Sociedade portuguesa de estudos do século XVIIII, 1997,

p. 229-238.

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81

Esta perspectiva seria ainda intensificada na carta pelo prolongamento do Mar

do Norte até as costas de Pernambuco, criando uma idéia de contigüidade espacial e de

proximidade com a Metrópole, além de apontar o condicionalismo geográfico do

Atlântico que tornava, no tempo da navegação à vela, o Pará e o Maranhão mais

acessíveis à Europa do que o resto do Brasil, fazendo, por exemplo, através das

dificuldades da navegação costeira que a viagem do Ceará à Paraíba pudesse demorar

setenta e cinco dias.109

109 Max Justo Guedes, ‘As primeiras expedições de reconhecimento da costa brasileira’, in História Naval Brasileira

v. 1 tomo I. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha. 1975, p. 204-205.

FIGURA 11 — ESQUEMA DA 'CARTA DA NOVA LUSITÂNIA'

Cartografia: Renato Amado Peixoto - esquema utilizando coordenadas e elementos geográficos atuais. Fonte: Antonio Pires da Silva Pontes Leme, Carta da Nova Lusitânia, 1798.

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Nesse sentido, para se endossar o sentido de proximidade e absorção dessa área,

utilizar-se-ia o recurso de registrar a Barra do Pará num quadro menor adjacente à

representação do Mar do Norte (ver Figura 11). Assim, somente na parte inferior

esquerda da carta seriam registrados os outros portos: a Bahia de todos os Santos, o Rio

Grande e o Rio de Janeiro, compondo uma série de pequenos mapas sobrepostos ao

corpo da carta, que em sua soma revelam a intenção de representar tanto a receptividade

do espaço quanto os interesses comerciais da Metrópole.

As necessidades dos interesses mercantis, do movimento dos negócios e da sua

organização teriam ainda sua importância assinalada através de uma abundância de

símbolos como minas, registros e caminhos, pela delimitação das divisas das Capitanias,

claramente assinaladas, e pela intenção do registro minucioso da representação,

mensuração e qualificação da presença humana em cidades, vilas, freguesias, lugares,

sítios e ruínas.

Mas, mesmo que houvesse uma vontade de se consolidar a demarcação interna,

a carta da Nova Lusitânia não visava delimitar os limites externos: estes não são

registrados, fosse na Amazônia ou no Prata, embora o limite militar português e suas

unidades, as fortalezas, os fortins, as guarnições, estivessem gravados no território. Por

exemplo, a carta não registrava claramente a extensão da área da Guiana portuguesa,

mas, não falhava em apontar a existência de um quartel português no Oiapoque. Da

mesma maneira, certos territórios dentro do movimento mercantil mas além do limite

militar não seriam mapeados, nem registrados como parte de outros espaços

concorrentes, como, por exemplo, a área a oeste do rio Madeira, que seria ocultada

convenientemente sob uma rosa-dos-ventos (ver Figura 11).

Ainda, por conta de legitimar e divulgar um produto cartográfico em que se

buscava representar, pela primeira vez, o conjunto de um território descontínuo e sem

rigidez, os autores da carta da Nova Lusitânia necessitariam de buscar respaldo num

recurso comum da retórica da época: a argumentação da autoridade — num extenso rol,

junto aos créditos técnicos, foram citados todos aqueles que, segundo os autores,

endossariam o mapa, sob o título de “Tábua das autoridades que abonam esta carta”.

Portanto, a carta da Nova Lusitânia estabeleceu os padrões das cartas gerais que

surgiriam a partir do Tempo Saquarema: a inscrição horizontal do Estado no espaço se

daria através de enquadramentos que servissem à unidade, à compreensão do território e

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à apresentação de determinadas estratégias, enquanto que sua verticalidade, seria

inscrita através de certos elementos e técnicas gráficas, que consolidariam a

representatividade do binômio Ordem e Civilização, como, as citações da tradição e da

autoridade, a determinação de perspectivas, e a inscrição de marcos narrativos.

Os enquadramentos seriam responsáveis, em primeiro lugar, por induzir a uma

referenciação da compreensão do território a partir da determinação da unidade. Nesse

sentido hierárquico, se buscaria representar a organização do território em partes

subordinadas ao todo, tanto por meio de iniciativas de uma redivisão voltada para a

funcionalidade110

quanto pela ênfase na integração, utilizando-se para este efeito, de

recursos técnicos como o colorido111

dedicando, por exemplo, uma cor para cada

Província, sem que fossem utilizadas linhas para registrar os seus limites e o tracejado,

quando os limites eram indicados por linhas quebradas, descontínuas, sugerindo tanto a

possibilidade de ultrapassagem quanto de subordinação.

Portanto, a importância da representação e estabelecimento das fronteiras

internas estaria relacionada à representação das ‘relações de força’ e da centralidade,

que será abordada em outro capítulo.

Em segundo lugar, o enquadramento serviu como suporte para determinados

objetivos estratégicos específicos, uma vez que era uma estrutura técnica responsável

por destacar, adicionar ou relacionar um enfoque à representação do espaço, por

exemplo, restringindo e contendo um espaço concorrente, como foi o caso do

enquadramento da ‘Nova carta corográfica’ de 1857, confeccionada por ordem do então

Marquês de Caxias para contrapor-se às construções de espaço concorrenciais do

Paraguai.112

Outro objetivo estratégico onde o enquadramento serviu como suporte foi o da

utilização pedagógica do mapa para a divulgação da construção do espaço, como, por

exemplo, o ‘Atlas do Império do Brasil’ de Cândido Mendes, destinado à instrução

pública e que utilizou o enquadramento para projetar em seu mapa do território do

Império, de uma só vez, todas as construções de limites mais benéficas ao Brasil,

110 Por exemplo: Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘O Brasil em 19 departamentos’, in Memorial Orgânico, Rio de

Janeiro: s/editor, 1849.

111 J. D'Anvilliers de L'Ile Adam, Mapa geral do Império do Brasil, 1851.

112 Estas pretensões espaciais podem ser estudadas por meio na carta composta por Alfredo M. du Graty, Mapa de la

Republica del Paraguay, 1861.

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resultando, assim, em tornar-se a representação do espaço nacional mais dilatada do

século XIX.

Ainda, poder-se-ia incluir nestes exemplos, outro caso da utilização pedagógica

do mapa para a divulgação da construção do espaço para um público específico, que foi

a ‘Carta do Império do Brasil’,113

confeccionada para ser apresentada e distribuída em

1873 na Exposição Universal de Viena.

O enquadramento das cartas gerais também pode ser analisado em relação aos

seus ‘elementos gráficos’, especialmente no que diz respeito a sua utilização e

dispersão: nesse sentido, se daria uma produção de subordinações e de relações de

pertencimentos da simbolização cartográfica cujo deslocamento de significado seria

referido às mudanças na constituição do Estado e na sua relação com o espaço.

Assim, a construção de uma categoria hierárquica dos símbolos e sua aplicação

indistinta sobre a totalidade do território, possui a função de homogeneizar, espalhar

igualmente a civilização, como, por exemplo, a categorização da representação do

povoamento humano num só grupo, bastante abrangente e possível de ser aplicado em

qualquer área, como, por exemplo, Cidade / Vila / Povoação / Aldeia / Fazenda /

Estabelecimento, impondo-se uma mesma categorização sobre regiões tão distintas

entre si como, por exemplo, a Província do Rio de Janeiro e a Província do Mato

Grosso.

Deste modo, a homogeneização da simbolização sobre o território remeteria à

necessidade de extirpar o que não pudesse ser inventariado, compreendido ou

considerado excêntrico, por conseguinte, excluído esses elementos da representação, o

que, paradoxalmente, levou ao aumento do registro do desconhecimento nas cartas e à

subseqüente necessidade de classificá-lo.

Portanto, esse novo e aumentado vazio seria, doravante, um dos lugares

privilegiados da inscrição da Ordem e da Civilização através do registro de elementos

gráficos representativos do controle, da mensuração e da quantificação, produzindo-se o

detalhamento do vazio, ou melhor, de um desconhecimento proporcionalizado e

descritível. Assim, o desconhecimento era inscrito textualmente no mapa na direção de

seu exterior, ou seja, do mais conhecido, a Ordem, para seu interior, o desconhecido, a

Desordem, como no caso, pode ser percebido através desta descrição da região do rio

Javari:

113 Duarte da Ponte Ribeiro, Carta do Império do Brasil, 1873.

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“As nascentes destes rios são muito duvidosas.”

“Terrenos inteiramente desconhecidos e habitados por índios ferozes.”

“Os rios e suas vertentes são conhecidos apenas por vagas informações.”

“Terrenos desconhecidos.”114

Assim, o registro dos elementos que representavam os agrupamentos humanos e

a presença do Estado e de suas instituições, relaciona-se à lógica da própria

verticalização do Estado, da sua centralização e organização e do aumento do controle

do Estado sobre a sociedade e seus recursos.

Ainda, o registro da presença humana se tornaria progressivamente mais

complexo, diferenciando-se dos símbolos simples relativos à representação de suas

atividades nas primeiras cartas gerais do século XIX, no caso, as vilas / capelas /

caminhos,115

até lançar-se mão do recurso de quadros estatísticos e descritivos para

inscrever-se a presença do Estado em suas diversas grandezas, como, no caso, da

utilização de tabelas com as correlações Província / Comarca / Município; Senadores /

Deputados / Deputados Provinciais; Rendimentos anuais / Produtos de exportação.116

Também, as relações de ordenação e subordinação se tornariam cada vez mais

explícitas, como, por exemplo, População livre / População escrava; Rendimento geral /

Rendimento provincial / Rendimento municipal, juntamente com a personificação do

Estado através de suas instituições, como, por exemplo, Armada: quantitativo;

Comércio e Finanças: demonstrativo.117

Enquanto parte da construção da nação e da nacionalidade, a historicidade do

espaço seria construída nas cartas gerais através da utilização de técnicas retóricas como

a citação da tradição ou da autoridade. No primeiro caso, criar-se-iam símbolos

compostos através de sua junção com notas disponibilizadas em encartes fora do

enquadramento da carta ou sobre mesmo sobre o mapa, como, por exemplo: [(linha de

limites com a Guiana Francesa) + (“Limite de Carlos V em 1548”)],118

ou, [(Linha de

114 Conrado Jacob Niemeyer, Nova carta corográfica do Império do Brasil, 1857.

115 J. D'Anvilliers de L'Ile Adam, Mapa geral do Império do Brasil, 1851.

116 Conrado Jacob Niemeyer, Nova carta corográfica do Império do Brasil, 1857.

117 Pedro Torquato Xavier de Brito, Nova Carta Chorografica do Império do Brasil, 1867.

118 Pedro Torquato Xavier de Brito, Nova Carta Chorografica do Império do Brasil, 1867.

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86

Tordesilhas) + (“meridiano primitivo de demarcação”)].119

No segundo caso, seria

utilizada uma combinação de elementos gráficos visando induzir ao contraste e à

comparação, seja através da intensificação, como, por exemplo, através da utilização da

cor vermelha para destacar a que era então considerada a melhor alternativa dentre

vários elementos registrados, seja pela qualificação, por exemplo, combinando o

elemento gráfico com expressões denotativas de autoridade: “fronteira segundo”,

“demarcada em conformidade com”, “proposta por”120

.

Portanto, a retórica seria um estilo da ‘gramática da linguagem’ que, utilizada no

debate do ‘saber sobre o espaço’, seria incorporada à ‘gramática da visão’, no caso,

compondo-se o que denominaremos de elementos narrativos.

Outro recurso utilizado para compor a historicidade do espaço foi a inscrição dos

vestígios da tradição através dos elementos narrativos: a simbolização das ruínas e do

abandono proliferou em todas as cartas gerais do período, construindo a idéia de

pertencimento e ligação a uma ancestralidade merecedora de culto. Neste sentido, os

símbolos da presença humana tiveram, muitas vezes, acrescentada ao registro de sua

toponímia, a data da presença ou do estabelecimento do europeu no território,

resultando, portanto, num recurso através do qual se construía o pertencimento histórico

do espaço. Também seria registrada a reincorporação do território, como, por exemplo,

“rio Pirapó descoberto pela segunda vez em 1852”,121

significando a recuperação do

espaço a um patrimônio da Civilização.

Por sua vez, o recurso à tradição seria utilizado ainda em casos específicos, por

exemplo, no caso de se visar alguma estratégia particular, como, a de querer atribuir-se

determinada área litigiosa ao espaço brasileiro: nesse sentido era empregada a citação de

outros produtos cartográficos e narrativas geográficas como reforço da argumentação,

sendo estas citações geralmente disponibilizadas em forma de lista nas bordas da

carta.122

Em relação à perspectiva, a organização e a centralização do Estado faria com

que, progressivamente, o Rio de Janeiro se tornasse o centro das projeções e, passasse a

119 Antonio Adolfo de Varnhagen, Mapa do Brasil e territórios limítrofes, 1854.

120 Duarte da Ponte Ribeiro & Izaltino José Mendonça de Carvalho, Carta geográfica de uma parte do Império do

Brasil, 1856.

121 Conrado Jacob Niemeyer, Nova carta corográfica do Império do Brasil, 1857.

122 Por exemplo: Duarte da Ponte Ribeiro & Izaltino José Mendonça de Carvalho, Carta geográfica de uma parte do

Império do Brasil, 1856.

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87

referenciar o enquadramento das cartas gerais. Desta maneira, para que a posição do Rio

de Janeiro se tornasse mais proeminente na representação do espaço, as partes do

território consideradas excêntricas em relação a este novo enquadramento seriam muitas

vezes preteridas na delimitação do território a ser mapeado, por exemplo, no ‘Mapa

Geral do Império do Brasil’,123

a Amazônia Ocidental não seria registrada no

enquadramento do território brasileiro, mas, isolada em um quadro no canto da carta,

incompleta e em uma escala completamente desproporcional a seu tamanho real.124

Em contrapartida, planos topográficos da cidade do Rio de Janeiro seriam quase

que onipresentes nos mapas em geral, com sua posição e tamanho muito destacado em

relação ao conjunto do território mapeado (ver Figura 12).

123 J. D'Anvilliers de L'Ile Adam, Mapa geral do Império do Brasil, 1851.

124 J. D'Anvilliers de L'Ile Adam, Mapa geral do Império do Brasil, 1851.

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88

Ainda em relação à construção da centralidade do Rio de Janeiro nas cartas

gerais, haveria uma tendência após 1850 em definir essa cidade enquanto origem das

coordenadas de todo o sistema cartográfico e não apenas do espaço brasileiro.

Até a década de 1850, o meridiano inicial das cartas, era representado por outros

referenciais brasileiros, como a cidade de Belém125

e o cabo de Santo Agostinho126

, ou

por referenciais estrangeiros, como Paris127

e a Ilha do Ferro, entretanto, a partir de

1857 o meridiano do Pão de Açúcar na cidade do Rio de Janeiro finalmente se impôs

como a única referência dos mapas brasileiros (ver Figura 12). A estandardização do

meridiano inicial nos mapas brasileiros significa não só a criação de um marco

organizador da periferia, mas, também do próprio centro, que pela intervenção do

Estado sobre o espaço integrava em si os dois eixos de representação, a Ordem e a

Civilização. 128

Por último, para complementar a inscrição do Estado no território, seriam ainda

utilizados determinados elementos narrativos que denominaremos de elementos

narrativos mistos, compostos pela sobreposição em uma determinada área mapeada de

um conjunto de símbolos e elementos cartográficos.

Primeiramente, estes elementos gráficos registrariam as intervenções e

estratégias de ocupação e expansão do espaço pelo Estado, tais como: interesses

comerciais, explorações e projetos de estabelecimento de comunicações. Assim, por

exemplo: a expressão “Estrada projetada em 1860 pelo Major Pedro Torquato Xavier de

Brito”,129

seria representada conjuntamente a uma linha tracejada formando um único

elemento gráfico, que ocupava o espaço entre as cidades de Miranda e Curitiba.

Em segundo lugar, os elementos narrativos mistos complementariam a

demarcação da centralidade do Estado e inscreveriam no território o seu controle e a sua

verticalidade. Os registros ligados à ‘manutenção de uma Ordem’ e à ‘difusão da

Civilização’ fariam parte de um processo de organização do centro e de descrição da

125 Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘O Brasil em 19 departamentos’ in Memorial Orgânico, Rio de Janeiro: s/editor,

1849.

126 Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘Mapa do Brasil e territórios limítrofes’, 1854.

127 Duarte da Ponte Ribeiro & Izaltino José Mendonça de Carvalho, Carta geográfica de uma parte do Império do

Brasil, 1856.

128 Veja-se a Figura 11 e compare-se com o caso da França, segundo Febvre, onde se relaciona a ênfase na construção

da centralidade de Paris com a constituição e o aperfeiçoamento do Estado: “No século XVI, a França tem uma

cabeça reconhecida como tal: uma ‘capital’, objeto de orgulho de todos os franceses.” Ver: Lucien Febvre, Honra

e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 186.

129 Duarte da Ponte Ribeiro, Carta do Império do Brasil, 1873.

Page 89: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

89

periferia como ato correlato da construção das ‘relações de força’ e das ‘relações de

soberania’ no Estado, onde a substituição da natureza pela civilização e do vazio pelo

desconhecimento se caracterizaria também por uma sucessão do ‘bárbaros’ pelo

‘selvagens’.

Nesse sentido, podemos entender que no primeiro modelo das cartas gerais, o

espaço da América portuguesa foi organizado em meio e à volta dos espaços atribuídos

aos ‘bárbaros’. Estes eram locais referenciados pelas trocas e impedimentos com suas

próprias dinâmicas locais, que transpassava e se interrompia o território da Metrópole,

em acordo com a impossibilidade da fixação e da posse efetiva da área pelo Europeu,

um “país incógnito e habitado por várias nações de gentios,”130

cuja descrição

sincronizava-se com a natureza: “É país quase que só conhecido ao longo do Madeira e

vizinhanças do Amazonas ou Solimões”.131

Já no segundo modelo das cartas gerais, os novos elementos narrativos

inscreveriam o selvagem em um território cada vez mais delimitado, como, por

exemplo, o espaço do “Gentio Cherente muito feroz,” seria cercado no mapa por

elementos cartográficos que induzem à percepção do confinamento em uma área,

geralmente denominada de ‘Sertão’ ou registro equivalente, produzindo um composto

que poderia ser também representado menos ambiguamente, por exemplo, na expressão

“Sertão do gentio Tupinanbá”.132

Portanto, o ‘bárbaro’ a quem pertencia a um Vazio descritível seria sucedido

pelo ‘selvagem’ descrito por uma oposição ao controle e à produção que o impedia de

se unir à Ordem e de onde somente se esvaia para destruir, invadir, se chocar contra a

Civilização, como no caso, registrado nos marcos narrativos: “Terrenos infestados pelos

índios Botocudos,”133

e “Sertões inteiramente desconhecidos e ocupados por índios

ferozes.”134

Portanto, a percepção do espaço nas cartas gerais não remeteria a um espaço

estático, imóvel e natural, mas a uma dinâmica cartográfica e a uma caracterização da

nação que iria, em sua discussão, situar o Estado através da ação dos indivíduos

130 Antonio Pires da Silva Pontes Leme, Carta da Nova Lusitânia, 1798.

131 Manoel Ayres de Casal. Corografia brasílica ou relação histórico-geográfica do Brasil — Coleção de Obras Raras,

tomo II). São Paulo: Edições Cultural, 2ª Edição, 1943, p. 241.

132 Duarte da Ponte Ribeiro, Carta do Império do Brasil, 1873.

133 Conrado Jacob Niemeyer, Nova carta corográfica do Império do Brasil, 1857.

134 Duarte da Ponte Ribeiro, Carta do Império do Brasil, 1873.

Page 90: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

90

comprometidos com sua constituição, os quais definem politicamente o espaço e o

inscrevem através de suas iniciativas: na luta de representações e na reelaboração

contínua das ‘relações de força e soberania’ é que se construirá uma historicidade das

fronteiras.

Page 91: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

91

5 — RISCANDO O PASSADO: A COMPOSIÇÃO CARTOGRÁFICA E A

INSCRIÇÃO CARTOGRÁFICA DO ESTADO.

Nosso primeiro objetivo neste capítulo é procurar demonstrar que o exercício da

cartografia se constituiu a partir do desenvolvimento de um certo senso estético e de

uma determinada perspectiva. O exercício cartográfico, por conseguinte, deve ser

entendido como uma composição que envolve modelos e estilos, cada qual com seus

princípios e limitações.

O segundo objetivo deste capítulo, em decorrência do primeiro, é mostrar que a

inscrição cartográfica do Estado brasileiro foi condicionada pelos princípios e

limitações da composição cartográfica.

Como terceiro objetivo, procuraremos indicar que a narrativa espacial da Nação

e a história das suas fronteiras, utilizar-se-iam da cartografia e das idéias constituídas

em torno do exercício cartográfico.

Portanto, entendemos que a inscrição cartográfica do Estado foi feita sobre um

espaço previamente naturalizado e constituído, assim a representação do espaço

nacional insere-se numa relação necessariamente dinâmica e também histórica com a

cartografia.

Nesse sentido, a historiografia utilizaria os mapas e as narrativas geográficas

para estabelecer uma historicidade cartográfica do Estado e assim possibilitar a projeção

do presente no passado, inscrevendo e descrevendo o antigo com a semântica do

moderno.

Contudo, persistiria uma ambigüidade ligando o tempo e o espaço que poderia

ser expressa através da compreensão do exercício cartográfico no setecentos: para estes

cartógrafos, a expressão ‘riscar mapas’ e ‘riscar paisagens’ eram quase que

equivalentes, pois a observação da natureza estava compreendida num exercício que

compreendida tanto a cartografia quanto a corografia. ‘Riscar mapas’ podia significar,

por conseguinte, atividades paralelas ou sucessivas, mas que, antes de tudo, eram

convergentes e que inscreviam um determinado olhar, uma certa ‘gramática da visão’.

Entretanto, a cartografia do século XVIII conheceria a ascensão de uma

cientificidade que afastaria paulatinamente antigos procedimentos para colocar em seu

Page 92: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

92

lugar novos padrões e rotinas que restringiriam a possibilidade do cartógrafo de

enunciar e de ordenar as construções do Espaço: ‘Riscar’ passaria a significar, para o

cartógrafo do século XIX, esboçar sobre o espaço que em suas linhas gerais já estava

concebido no grande espaço epistemológico do Estado, ou, simplesmente, apagar e

eliminar o que fora anteriormente constituído, tornando possível ‘riscar’ novamente

sobre o mesmo espaço.

Assim, para que seja possível entender a inscrição do Estado através da

historiografia do século XIX é necessário perscrutar, primeiramente, os contextos, as

contingências e as limitações históricas do processo de mapear, que, para este estudo,

importam tanto quanto o exame do produto final, pois é na elisão dos seus termos que se

risca o espaço do Estado. Depois, ainda será preciso definir certas transformações das

idéias de espaço, para, finalmente tentar conectar os dois termos na construção narrativa

e cartográfica.

Entendemos, por conseguinte, que Perspectiva e Estética se tornariam, conceitos

centrais e definidores dos antigos e modernos lugares de representação do Espaço e

mesmo de sua compreensão, podendo ser associados a esses conceitos conforme foi

formulado teoricamente por Denis Cosgrove no interior da idéia de Paisagem.135

Para Cosgrove a idéia de Paisagem remeteria à constituição de um produto

cultural complexo resultante da formação histórica social e que implicaria numa

construção mediada pela experiência humana subjetiva: a representação da natureza

emergiria de circunstâncias específicas que estariam sujeitas aos usos práticos do

mundo físico, os quais remontariam a uma tradição cultural.

Assim, a Paisagem seria tanto um resultado da experimentação visual da

natureza quanto um produto de sua transformação, que seriam articulados estética e

tecnicamente num processo contínuo e historicizável.

A idéia de Paisagem surgiria na Pintura num período histórico específico, o

Renascimento, e numa região determinada, a Itália, como um gênero artístico particular,

fruto das mudanças sociais e produtivas e que seria por estas continuamente afetado e

transformado.

Dentre as várias técnicas utilizadas então para o controle do espaço visual, como

a proporção ou a cor, a Perspectiva surgiria e se consolidaria na opinião dos artistas

135 Denis E. Cosgrove, Social Formation and Symbolic Landscape. Madison, Wiscosin: The University of Wiscosin

Press, 1998.

Page 93: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

93

renascentistas como a sua mais importante descoberta (ver Figura 13). Nesse sentido,

através da experimentação, e tendo como principal objetivo o controle do espaço, a

representação do mundo através da perspectiva se transformaria, culturalmente, de uma

técnica artística numa propriedade específica do espaço.

Ainda, a manutenção e a propagação de um determinado sentido da Perspectiva

e de sua forma associada à Paisagem, seria definida pelo valor estético, o qual estaria

intrinsecamente ligado à constituição de um Mercado onde os produtos resultantes dessa

técnica seriam comercializados e à sua mediação das diferentes ligações psicológicas

entre a Arte e o Espectador.

FIGURA 13 —_ EXERCÍCIOS DE PERSPECTIVA

Fonte: Chandra Mukerji, Territorial Ambitions and the Gardens of Versailles. Cambridge: Cambridge University

Press, 1997, p. 89.

Page 94: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

94

A constituição da Perspectiva centralizada e organizadora do ponto de vista do

observador, instrumentalizaria na Paisagem a possibilidade de utilização de diversos

controles sobre o objeto a ser representado, como por exemplo, os da passagem ou da

idealização do tempo, compostos através da subordinação ou composição de elementos

para influenciar tanto a significação quanto a apropriação individual e coletiva. Para

isto, ainda que estivesse aparentemente relacionada apenas a uma centralidade do

observador e ao processo de experimentação individual, a Perspectiva estava sujeita,

mais profundamente, ao concurso do aprendizado, da associação e da aceitação, ou seja,

o artista e o espectador participariam da transmissão e apropriação dos processos

culturais e sociais em circuitos de uso, troca e significação, a partir do que o produto

artístico deve ser considerado como um elemento da cultura material do período

histórico contemplado.

Portanto, a organização, a produção cartográfica do espaço e a subseqüente

inscrição do Estado no espaço, estavam não apenas sujeitas aos ordenamentos sociais e

políticos mas refletiria continuamente as relações entre o desenvolvimento dos

processos técnicos relativos à perspectivação do objeto, como a escala, a projeção ou o

enquadramento; e as transformações estéticas, relacionadas tanto às transformações

epistemológicas do saber cartográfico quanto às demandas de um mercado no qual as

cartas e mapas estavam incluídos enquanto produtos da cultura material.

A historicidade dessa interação corresponderia diretamente às tentativas de situar

o Estado através de uma determinada Perspectiva onde a cartografia e as narrativas

geográficas do espaço significariam, para certos indivíduos, tanto um modo de ver, de

representar e de classificar a si mesmos e aos outros, quanto de representar o seu mundo

e o seu relacionamento com este.

Neste sentido, a objetivação da Perspectiva desdobrar-se-ia nas narrativas

geográficas e na cartografia através de técnicas literárias e de recursos gráficos

tornando-se possibilitadora e divulgadora de uma ‘gramática da visão’ constituída a

partir de um ‘saber sobre o espaço’.

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A inscrição cartográfica do estado e a composição cartográfica

Certos produtos elaborados a partir do ‘saber sobre o espaço’, os mapas e as

corografias, colaboraram para a narrativa espacial da Nação e para a construção de uma

história das fronteiras. Estas construções historiográficas e mitológicas se constituíram

de um modo difuso, porém consistente, durante mais de cem anos, desde Varnhagen,

passando por Capistrano de Abreu, Pandiá Calógeras, Rio Branco e outros, até se

completar magistralmente em Jaime Cortesão, quando o esforço de inscrição

cartográfica do Estado seria fundido com uma ‘mitologia do espaço’:

Os engenheiros setecentistas [se] beneficiavam em larga escala

duma tendência vital e fundo cultural, herdados [...] Visa um objetivo

político e ardentemente nacional. Todos esses engenheiros constróem

conscientemente um Estado — o Brasil. Medem-lhe a grandeza pelo

padrão continental. Circundam-no de fossos e fortalezas, que possam

enfrentar vitoriosamente as investidas espanholas. São e sentem-se Titãs.136

Deste modo, a unidade territorial e o espaço nacional possuiriam suas origens

ainda no século XVIII, decorrendo da inscrição e da adaptação da Nação a um espaço,

idealizado, desejado e possuído, resolvidas por uma fórmula que reunia a saída de um

espaço diminuído, um legado original delimitado pelo Tratado de Tordesilhas, para a

penetração num território primitivo e virgem, cuja justeza da posse seria reconhecida

através do Tratado de Madri. Mais do que uma conquista, essa posse era fruto de um

fluxo que gerou não apenas a força do desbravador mas também o gênio do especialista

e a sedução do diplomata, qualidades que germinariam na terra brasileira, crescendo

através da comunhão do indivíduo com a terra.

No entanto, o cerne da argumentação de Jaime Cortesão, o exemplar mais bem

acabado da narrativa do espaço nacional, se baseia na idéia da competência do saber

matemático e cartográfico português, enquanto a quase totalidade dos autores

136 Note-se que estes engenheiros eram militares, fruto, segundo Cortesão, de um esforço dirigido pelo Estado no

sentido de incentivar o desenvolvimento da cartografia no exército durante o século XVIII. Jaime Cortesão, O

Tratado de Madrid. Ed. fac-similar, v. 1. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 319-320.

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96

portugueses137

considera que, após um período de florescimento no século XVI, a

matemática portuguesa teria entrado num período de decadência.

Este período seria, inclusive, caracterizado por alguns autores, como um

‘deserto’, perdurando até 1760, quando novamente cresceria até atingir algum nível, a

partir da reforma pombalina da Universidade de Coimbra. Ainda segundo essa mesma

bibliografia, essa decadência teria várias causas, como, a predominância dos jesuítas na

Educação secundária e universitária; os privilégios concedidos à formação jurídica em

detrimento do estudo técnico e a atitude mental e cultural predominante em Portugal no

período, que opunha os interesses religiosos e políticos então predominantes às

inovações científicas.

Tal situação corroboraria a situação de penúria extrema da cartografia

portuguesa no século XVIII, que carecia de meios, pessoal e mesmo de obras: a própria

cobertura topográfica e cartográfica de Portugal era extremamente reduzida se

comparada a de outros países, como, por exemplo, a França, somente tendo se

implementando a partir de 1851, quando se criaram as condições de consenso político e

estabilidade institucional que permitiriam aprofundar os esforços de modernização e de

consolidação territorial do Estado.138

Ainda em 1780, segundo a análise do mais capacitado engenheiro português da

época, Francisco João Rocio, muito pouco do que se havia produzido sobre o território

da Metrópole podia ser elevado à condição de Mapa, e mesmo assim, grande parte deste

esforço se deveu ao empenho da iniciativa privada. Segundo Rocio, somente teriam sido

convenientemente cartografadas certas propriedades rurais e algumas partes do Alto

Douro e das margens do Tejo, regiões econômica ou politicamente mais importantes, e,

137 Veja-se o estudo de João Filipe Queiró, ‘A Matemática’, in História da Universidade em Portugal v. I, Parte II

(1537-1771), Lisboa: Fund. Gulbenkian, 1993, no qual são citadas as seguintes obras sobre a história da

matemática em Portugal: ‘Ensaio histórico sobre a origem e progressos das Matemáticas em Portugal’, de

Francisco de Borja Garção-Stockler, editada em Paris, no ano de 1819; ‘Memórias históricas sobre alguns

Matemáticos Portugueses, e Estrangeiros Domiciliários em Portugal, ou nas Conquistas’, de Antônio Ribeiro dos

Santos; ‘Les Mathématiques en Portugal’, editada em Coimbra, no ano de 1909, de Rodolfo Guimarães; ‘História

das Matemáticas em Portugal’, de Francisco Gomes Teixeira, editada em Lisboa, no ano de 1934); ‘Memórias de

Literatura Portuguesa’, publicadas pela Academia Real das Ciências de Lisboa, tomo VIII, parte I, 1812, p. 148-

229; ‘Matemática e matemáticos em Portugal’, de Luís de Albuquerque e ‘As Matemáticas em Portugal - da

Restauração ao Liberalismo’, de J. Tiago de Oliveira. 138 Rui Miguel C. Branco, O mapa de Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 2003, p. 13.

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97

com a importante ressalva destes registros terem sido feitos sobre um “terreno limpo,

cultivado e ocupado”, ou seja, em áreas que ofereciam menores dificuldades técnicas.139

Além disto, havia uma grande carência de pessoal capaz de realizar no campo os

cálculos e as observações necessários aos levantamentos cartográficos, a saber,

engenheiros, geógrafos e astrônomos. Especialmente no que se refere aos últimos, este

problema pode ser exemplificado pela dificuldade na arregimentação de astrônomos

para a demarcação dos limites referentes ao Tratado de Madri: os estrangeiros ocuparam

então a grande maioria dos cargos técnicos e, inclusive, de comando, isto, saliente-se,

numa empresa de extrema importância estratégica para o Estado português. Inclusive,

em 1751, o posto mais alto da mesma Comissão Demarcatória, composta ainda por

militares e pessoal de apoio, foi ocupado por um genovês, enquanto que a maioria dos

vinte e sete técnicos empregados era formada por italianos e alemães, sendo que apenas

seis destes eram portugueses.140

Ainda em 1780, ou seja, trinta anos depois, o número

de astrônomos e geógrafos disponíveis era tão pequeno que as demarcações decorrentes

do Tratado de Santo Ildefonso tiveram de ser atrasadas em até dez anos. Além disso, era

praticamente inexistente uma estrutura de apoio, que propiciasse transportes, proteção e

substituição desse pessoal, especialmente no Mato Grosso e na Amazônia.

Mas, também existiria outro fator limitador, este de ordem material: a falta de

instrumentos para astrônomos e geógrafos, devido à sua escassez e custo, uma vez que

então eram importados a maioria dos instrumentos necessários para o trabalho de campo

e a totalidade daqueles destinados à observação dos fenômenos astronômicos, sendo a

Inglaterra o seu principal fornecedor.141

Portanto, o registro cartográfico do espaço da América portuguesa refletiu

obrigatoriamente as características anteriormente descritas constituindo-se durante o

século XVIII apenas através de iniciativas isoladas e esporádicas, sendo que, mesmo

estas, teriam sua importância exagerada pela narrativa territorial, especialmente no que

se refere ao desempenho dos chamados ‘padres matemáticos’, Diogo Soares e

Domingos Capaci.

139 Ver ‘Resposta à consulta de D. Maria I ao Ten. Cel Eng. Francisco João Rocio em 29/08/1780’ IHGB, lata 69,

documento 8; ‘Tratado preliminar de limites entre Portugal e Espanha, correspondência dos vice-reis Marquês do

Lavradio e Luiz Vasconcellos e Souza com a Corte de Portugal.’ IHGB, Lata 110, Pasta 7. 140 ‘Relação dos oficiais de guerra e mais pessoas que se acham nomeadas por Sua Majestade para a expedição da

América Portuguesa’, AHI, Arquivo Particular ponte Ribeiro, Lata 290, Maço 3.

141 José Feliciano Fernandes Pinheiro, Anais da Província de São Pedro, Paris: Typografia de Casimir, 1839, 2ª

Edição, p. 181.

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Ainda que seja bastante relevante o trabalho dos padres Capaci e Soares, dadas

as dificuldades da época, tanto o sentido de seus registros quanto o de sua produção tem

sido deslocado constantemente desde se consolidou a ‘mitologia do espaço nacional’.

Nesse sentido, sucessivos estratos narrativos se sobreporiam à narrativa de Jaime

Cortesão, compondo-se uma memória da centralidade do esforço dos ‘padres

matemáticos’ numa estratégia da Metrópole destinada a construir uma Carta Geral do

espaço brasileiro e, por conseguinte, lastrear com conhecimentos geográficos precisos a

ação diplomática portuguesa no Tratado de Madri.

Entretanto, ao proceder-se um exame qualitativo e comparativo de cada trabalho

dos ‘padres matemáticos’ com o conjunto de sua obra, utilizando-se para essa análise do

conceitos de composição cartográfica, nota-se que o esforço daqueles padres estava

diretamente destinado a incrementar o conhecimento de certas áreas estratégicas para a

Cartografia: Renato Amado Peixoto, esboço com seleção de elementos da 'Primeira Carta'. Fonte: Diogo Soares, 'Nova e 1ª Carta da Terra

Firme', c. 1737.

FIGURA 14 - 'PRIMEIRA CARTA'

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Coroa. Com efeito, trabalharam grande parte do tempo isoladamente, sendo que a maior

desse esforço foi dedicado à confecção de plantas de fortalezas e planos topográficos. É

certo que foram produzidos vários mapas, a saber, uma carta da capitania do Rio de

Janeiro, talvez uma de Minas Gerais e sete cartas de diversas partes da costa sudeste e

meridional do Brasil, que, após terem sido combinadas, formaram a chamada ‘Primeira

carta da Terra Firme’142

abrangendo desde o litoral do Rio da Prata até a região de Cabo

Frio (ver Figura 14).

A ‘Primeira Carta’ foi composta por um dos padres, Diogo Soares, através de

três ‘elementos aglutinadores’ dos registros cartográficos: o primeiro era o ‘Novo

Caminho do Sertão’, no caso, o registro do itinerário terrestre desde ‘o Sertão do Rio

Grande’ até a cidade de São Paulo, que servia como um elemento de amarração de

certos elementos geográficos divergentes e dispersos. O segundo ‘elemento aglutinador’

era a linha costeira, tema de quase todos os outros mapas de Diogo Soares, que, para sua

maior efetividade, foi sincronizado com uma Perspectiva que enfatizava o trânsito

marítimo entre três pontos focais do mesmo Mapa, a Colônia do Sacramento, a cidade

de Laguna e o Rio de Janeiro. Finalmente, o terceiro ‘elemento aglutinador’ eram os

rios que desembocavam no Prata e que constituíam um esboço do espaço de penetração

(ver Figura 15).

Se compararmos a composição cartográfica da ‘Primeira Carta’ de Diogo

Soares com o restante da obra conjunta, dedicada ao registro da topografia e das

construções militares daqueles centros urbanos, ao mapeamento da linha costeira e da

organização da área do Prata enquanto dependente da Colônia do Sacramento, podemos

compreender que a fronteira militar servia como seu tema organizador enformando o

esforço de Soares e Capaci através do foco nas comunicações econômicas e militares

que constituíam uma determinada estratégia administrativa.143

142 Diogo Soares, ‘Nova e primeira Carta da Terra Firme, e Costas do Brasil ao meridiano do Rio de Janeiro, desde o Rio da Prata até Cabo Frio, com o Novo Caminho

do Sertão do Rio Grande até a cidade de São Paulo’, 1737.

143 Comparando-se as Figura 14 e 15, note-se a centralidade do “Caminho do Sertão do Rio Grande até São Paulo” no

enquadramento da ‘Primeira carta da Terra Firme’ (destacado em vermelho). Observe-se também a distribuição

das atividades topográficas, ‘pontos focais’ do esforço dos ‘padres matemáticos’ no litoral e aos longo da

perspectiva. Observe-se que a ‘Primeira carta da Terra Firme’ foi construída a partir da combinação das ‘cartas da

linha costeira’ (Figura 15) e que estas podem ser reunidas através da perspectiva a partir do Rio de Janeiro (Figura

15). Todos os planos e mapas estudados encontram-se na Mapoteca da Marinha do Brasil.

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100

Nesse sentido, as diversas observações feitas por Capaci e Soares nas capitanias

do Rio de Janeiro, São Paulo, na região aurífera de Minas Gerais e em parte de Goiás,144

analisadas com o conjunto de seu trabalho evidenciam que este que se destinava a

orientar a atividade do Estado português nas áreas economicamente mais importantes.

Assim, este destinava-se a consolidar uma continuidade marítima, terrestre e econômica

entre o ‘Continente do Sul’,145

as Minas Gerais e a Capital, sobretudo porque seria esta

evidenciada nas descrições geográficas e cartográficas através de uma laboriosa e

insistente organização orientada pelo Meridiano do Rio de Janeiro, demonstrando-se

assim a centralidade administrativa do conjunto.

144 ‘Tabuadas de Longitudes e Latitudes de grande parte do Brasil observadas pelos astrônomos empregados na

Demarcação’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XLV, n° 64, 1882.

145 Remeta-se neste caso à discussão da compartimentalização e especialização do espaço na América portuguesa em

nosso capítulo ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’.

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101

A composição cartográfica da ‘Primeira Carta’ foi possibilitada por uma

Estética cartográfica que, embora em transição, ainda reconhecia e legitimava uma

representação do todo que se fazia a partir do desdobramento proporcional das partes.

Sua perspectivação se relacionava com um desenvolvimento anterior da teoria das

proporções na Renascença que fundira a interpretação cosmológica com a noção

clássica da simetria,146

imprimindo na cartografia tanto uma idéia de

‘tridimensionalidade’ do objeto, que se exprimia pela conexão do espaço mapeado com

o não mapeado, quanto pela idéia de uma ‘estrutura natural’ intrínseca ao objeto

mapeado, a qual se expressaria através da relação da parte com o conjunto. Esta Estética

ainda sobrevivia em Portugal por conta da situação mesma da cartografia lusitana,

resultando numa tensão entre antigos e modernos métodos cartográficos que somente se

resolveria no Brasil em meados do século XX.

Ainda em relação ao deslocamento do sentido dos registros e da produção de

Capaci e Soares, tende-se, de um modo geral, a integrá-los com outros trabalhos

realizados num período cronológico posterior, interpretando-se esse conjunto de

atividades como um esforço da metrópole para esquadrinhar e descrever o território

nacional no século XVIII. Porém, os produtos cartográficos que são associados a essa

iniciativa ou são atividades isoladas e localizadas ou então registros decorrentes de

esforços específicos.

Os primeiros decorreram do patrocínio, por parte de alguns Governadores, de

atividades destinadas a coadjuvar suas administrações, visando com isto, reconhecer e

agregar certas áreas cuja importância estratégica, militar ou comercial fosse então

considerada. Por exemplo: durante o século XVIII, a maioria dos produtos cartográficos

relativos ao Mato Grosso são decorrentes de explorações e expedições que possuíam

como objeto o rio Paraguai, sua principal via de comunicação com o Rio de Janeiro e

área de conflito continuado seja com os espanhóis ou os indígenas; já na Capitania do

Grão-Pará, um dos focos dessas atividades era a região do rio Madeira, em virtude do

temor da expansão das Missões espanholas e também porque este era então considerado

enquanto uma importante área de expansão econômica por permitir a ligação daquela

Província com as minas de Cuiabá.

146 Erwin Panofsky, ‘A História da teoria das proporções humanas como reflexo da história dos estilos’, in

Significado Nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976.

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102

Outros registros do território também foram relacionados com a produção dos

‘Padres Matemáticos’, como, por exemplo, aqueles decorrentes de uma atividade

principal e centralizadora, como foi o caso das Comissões encarregadas da demarcação

de limites do Tratado de Madri e do Tratado Provisional de Santo Ildefonso, ou os

registros originários de esforços não interligados e menores como as cartas

hidrográficas, itinerários de viagens, mapas topográficos e as atividades da Engenharia

Militar.

Cada um destes trabalhos possuiu seu enfoque em problemas restritos, pontuais

e muitas vezes datados, como, no caso das Demarcações, quando se buscava consolidar

e assessorar uma discussão retórica e argumentativa em torno de limites entre os

comissários portugueses e castelhanos, produzindo-se, muitas vezes, registros

tendenciosos, apressados ou mesmo inconclusos.

Portanto, a maioria destes esforços destinava-se a cobrir objetivos específicos

das administrações regionais, utilizando-se de recursos próprios ou desviando certas

atividades da Metrópole ou a resolver problemas pontuais, assim, não podem ser

caracterizar a consecução de um projeto que, inclusive, foi nomeado em algumas obras

como o ‘esquadrinhamento sistemático do território’ por Portugal.147

As avaliações que exageraram o papel da cartografia da América portuguesa no

setecentos foram ainda influenciadas tanto por uma narrativa heróica da localização

geográfica dos limites que foi promovida corporativamente pelo Exército e Marinha nos

séculos XIX e XX, quanto por uma narrativa das fronteiras e da história pátria que já

estaria esboçada desde o Programa Histórico do IHGB em 1839,148

mas que seria

modificada a partir de 1849, quando a ascensão de Paulino José Soares de Souza à

Secretaria dos Negócios Estrangeiros entronizaria o uti possidetis como um dos móveis

da diplomacia brasileira. Esta narrativa transformar-se-ia durante o século XX numa

‘Mitologia do espaço nacional’ através da construção da memória de Alexandre de

Gusmão e pela atribuição a este do papel de fundador do espaço nacional brasileiro.

147 Por exemplo: Sérgio Buarque de Hollanda (Org.) História Geral da Civilização Brasileira (I) v. 1. Rio de Janeiro:

Ed. Bertrand Brasil, 2003, 297-298.

148 “No meio da caliginosa e abafada atmosfera lampejava a intervalos o gênio brasileiro; distinguem-se indivíduos,

associações científicas se formam, que acreditariam a nações mais adiantada em civilização: ali em Alexandre de

Gusmão, que por incúria dos tempos escassamente é conhecido por algumas cartas expedidas do gabinete de D.

João V de Portugal, porém, que para ser hoje admirado a par do Marquês de Pombal (não se me trate de exagerado,

em tempo o demostrarei) só lhe faltou haver nascido além do Atlântico [...]: Gusmão foi dotado de vistas mais

vastas, de mais variados conhecimentos nas ciências”. ‘Programa Histórico’ in Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, tomo I, n° 2, 1839, p. 62.

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103

Pela associação do Tratado de Madri ao uti possidetis, materializar-se-ia através do

personagem de Alexandre de Gusmão uma obra fundadora e aglutinadora do espaço,

uma vez que este já era caracterizado enquanto imbuído do espírito da Nação.

Neste sentido, o próprio exercício cartográfico seria associado à obra de

Alexandre de Gusmão, que passaria a demarcar em duas etapas a cartografia da

América portuguesa: a primeira delas teria sido consolidada pelo gênio e pela ação de

Gusmão através de uma atividade destinada a servir de instrumento para a

ultrapassagem dos limites de Tordesilhas e a construir o sentido do Tratado de Madri. Já

a segunda etapa foi aquela que, sucedendo a obra Gusmão, estaria imbuída do seu

espírito, servindo para complementá-la materialmente e a basear a delimitação e

consolidação das fronteiras brasileiras.

Entretanto, em contraste com esta construção, os cronistas portugueses do final

do setecentos freqüentemente entenderam o Tratado de Madri e o de Santo Ildefonso

como tendo sido desvantajosos e prejudiciais para Portugal. Enquanto o primeiro era

referido apenas para que dele se recordasse a nulidade, o segundo sempre foi

circunscrito em sua condição de instrumento preliminar, um esboço de intenções para

um futuro entendimento, sendo enfatizada, por conseguinte, sua precariedade.

Portanto, quase no século XIX, a questão era ainda remetida a um instrumento

jurídico que as narrativas territoriais do setecentos já consideravam a esse tempo

descartado: o Tratado de Tordesilhas.

Para que se possa entender tal raciocínio e suas implicações, será necessário

novamente empregara idéia da composição cartográfica, em primeiro lugar, através da

compreensão de uma idéia de sua Perspectiva, e depois, a de sua Estética, para que se

possibilite o estudo da idéia do espaço no setecentos.

Com relação ao primeiro aspecto, a idéia que permeava a construção do espaço,

durante o setecentos e que poderia ser verificada através das perspectivas cartográfica e

geográfica, era a da ‘organização das particularidades’: o olhar era definido a partir de

uma posição central do observador no espaço a ser ‘riscado’. Neste processo eram

levadas em conta as proporções, os contrastes e os matizes que identificavam e

explicavam determinadas separações ou unidades de acordo com a capacidade de

movimento ou a posição do observador: o espaço era então entendido como possuindo

qualidades e utilidades que seriam ‘riscadas’ pelo observador, observado-se que, então,

a cartografia e a geografia estavam embebidas nos mesmos contextos teóricos que a

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104

pintura, onde abundavam considerações sobre a utilização de técnicas tais como o uso

do foco, da cor e da luz.149

Nesse sentido, a percepção do espaço seria orientada por

uma seleção cultural específica e constituída por observações múltiplas, com critérios

determinados e que afetavam a construção do todo.

Utilizando-se novamente do exemplo dos “padres matemáticos”: seus registros

do território incluíram também a confecção paralela de uma ‘História natural dos rios,

montes, árvores e ervas, animais e pássaros do Brasil’. No mesmo raciocínio, a

repartição do espaço da América portuguesa em diversos ‘Continentes do Domínio

português’, se constituía também num exemplo da utilização de diversas perspectivas e

do discernimento de uma hierarquia das mesmas perspectivas através de uma seleção.

Assim, a maioria da correspondência que relata as Demarcações e os entendimentos dos

tratados do XVIII enfoca preferencialmente os limites meridionais, em especial os do

Rio Grande e, acessoriamente, os das regiões do Paraná e do Paraguai, subalternizando

o Mato Grosso e a Amazônia, caracterizando-se, por conseguinte, uma hierarquização

do espaço. Mesmo assim, os limites do Rio Grande não seriam convenientemente

demarcados durante todo o século, mesmo que esta fosse considerada então uma

Província destacada geograficamente do resto da América portuguesa e,

consequentemente, mais carente de segurança e de socorros.

A intelecção do espaço no setecentos e a inscrição do estado no espaço

Em relação a uma definição estética do espaço no setecentos, entendemos que

esta pode ser historicizada, compreendendo-se neste processo, suas tensões e

transformações por meio de seus estilos. Entendemos, por conseguinte, que estes estilos

estéticos do espaço faziam parte da ‘gramática da visão’ da qual se constituiriam os

elementos do ‘saber sobre o espaço’.

Assim, primeiramente, podemos definir a transformação estética do espaço da

América portuguesa no setecentos em termos de sua utilidade ou de sua qualidade,

segundo critérios referenciados por perspectivações imersas na ‘gramática da visão’

que, como vimos antes, estavam ligadas ao problema da proporção e de suas relações

149 Ver a respeito do desenvolvimento teórico da cartografia e geografia: Denis Cosgrove, ‘The Geometry of

landscape: pratical and speculative arts in sixteenth-century Venetian land territories’, in Denis Cosgrove &

Stephen Daniels, The Iconography of Landscape: Essays on the Symbolic Representation, Design and Use of Past

Environments. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 254-276.

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105

com o espectador, conforme podemos compreender a partir das considerações de Erwin

Panofsky sobre os estilos estéticos.150

Deste modo, a intelecção do espaço brasileiro no setecentos pode ser

compreendida a partir de uma definição de dois estilos estéticos diferentes, o primeiro

dos quais está ligado a uma intuição da ‘utilidade’ das porções do território as que se

definiam por reciprocidade e apenas esquematicamente em relação ao todo. O segundo

estilo estético estava ligado a uma intuição das ‘qualidades’ das porções do território em

relação a um todo definido pela reunião simétrica das porções. Tendo em vista facilitar

nossa exposição, nomearemos a primeira intuição como ‘estilo utilitário’ e a segunda

como ‘estilo qualitativo’.

Podemos entender que o ‘estilo utilitário’ derivou dos elementos de uma

‘gramática da visão’ constituída ainda na Idade Média e que se materializou na arte

religiosa, no qual a apreciação da proporção se dava através de um sistema fracionário

que transmitia mais relações do que quantidades reais.151

Este estilo estético resultaria numa compreensão compartimentada do espaço

que possibilitava, por exemplo, a permuta de territórios já colonizados por outros

incertos e ainda despovoados, uma vez que as porções seriam avaliadas separadamente,

qualificadas e comparadas com as características de outra porção e, ainda que estas

fossem geograficamente muito diversas, a permuta seria efetuada se neste avaliação a

porção visada fosse considerada mais útil na relação com o todo.

Tome-se por exemplo o Tratado de Madri: utilizando-se razões diversas para

cada um dos casos, porções menores do território seriam destacadas de porções maiores,

sendo depois permutadas por outras em sucessão: o Mato Grosso pelas Filipinas, a

Colônia do Sacramento e os ‘Territórios Anexos’ pelas Sete Missões, a região do

Guaporé pela do Japurá. Trocavam-se indivíduos, bens, utensílios e mesmo a História,

uma vez que o ‘estilo utilitário’ ancorava-se ainda em ‘relações de soberania’ que

possibilitavam entre as Coroas a ‘cessão de direitos’ sobre o território, idéia seria

150 Erwin Panofsky, ‘A História da Teoria das Proporções Humanas como reflexo da História dos Estilos’, in

Significado nas artes visuais, São Paulo: Perspectiva, 1976.

151 Erwin Panofsky, ‘A História da Teoria das Proporções Humanas como reflexo da História dos Estilos’, in

Significado nas artes visuais, São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 110-116.

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106

utilizada nos tratados firmados por Portugal até Santo Ildefonso e que considerava o

espaço como um objeto válido para venda ou permuta.152

Entretanto, ainda que tenha baseado o Tratado de Madri, o ‘estilo utilitário’

começaria a rivalizar com um outro estilo estético que se enraizaria mesmo nas políticas

do Estado português a partir da década de 1750, uma vez que a crítica aos Tratados de

Madri e Santo Ildefonso foi baseada numa reflexão sobre as desvantagens da ‘cessão de

direitos’ para um Estado que se constitui sobre o território.

Este novo estilo, que denominamos de ‘estilo qualitativo’ pode ser remetido aos

elementos introduzidos na ‘gramática da visão’ desde o Renascimento, fundindo,

segundo Panofsky, uma visão cosmológica com a noção clássica da simetria. Podemos

entender que nesse estilo o Espaço e o Estado constituiriam um todo orgânico, com

fluxos e necessidades que não poderiam ser limitados pelos Tratados do velho estilo,

uma vez este todo era vivo e em movimento: o conceito de fronteira militar e do fluxo

comercial seriam tonificados a partir de 1750 e refletir-se-iam na compreensão do

Espaço.153

Por conseguinte, começaria a se formar uma idéia da historicidade dos limites

que superaria gradualmente a idéia da ‘cessão de direitos’, até se juntar no oitocentos

com o conceito de que a presença do indivíduo no território estabeleceria tanto direitos

quanto deveres, enfatizando-se assim uma ligação do homem e do Estado com a terra.

Portanto, emergia um novo estilo estético que impossibilitava a retração do

território, por conta de uma organicidade que não permitia invasões ou mutilações.

Nesse sentido, o ‘estilo qualitativo’ construía laços da História com o espaço que

necessitavam constantemente de cuidados e de aperfeiçoamentos: sua proteção, sua

memória e sua monumentalização se tornariam gradualmente a tônica dos esforços do

Estado.

A reação contra o estilo utilitário já podia ser verificada em 1752, quando sua

crítica ainda entendia em seu argumento que os tratados de limites configuravam um

contrato entre as partes cujos direitos seriam deslocados para o território, deste modo, o

defeito do contrato ainda não era identificado na fórmula jurídica, mas, na ação e no

152 Vejam-se os ‘Tratados Dispositivos de 1751-1752’ IHGB, Lata 102, Pasta 20; o ‘Tratado de Madri’ IHGB, Lata

116, Número 14 e os ‘Tratados de Mútua Aliança assinados em 1701 com a Espanha e a França’ in José Manoel

Cardoso Oliveira, Atos Diplomáticos do Brasil: tratados do período colonial e vários documentos desde 1943, v. I.

Brasília: Senado Federal, 1997.

153 Erwin Panofsky, ‘A História da Teoria das Proporções Humanas como reflexo da História dos Estilos’, in

Significado nas artes visuais, São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 129.

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valor dos seus Procuradores, no caso, o próprio Alexandre de Gusmão,154

o que

influenciaria a invalidação, já em 1761, do Tratado de Madri pelo Tratado de El Pardo.

Contudo, a crítica se valia ainda de outros três argumentos: o primeiro era o de

que aquele Tratado não coincidia o limite jurídico com o espaço anteriormente

conquistado e ocupado, o segundo, que restringia a circulação e o terceiro, que permitia

a penetração e trazia insegurança a terra.155

Por conseguinte, desenvolver-se-ia paulatinamente em torno do estilo qualitativo

uma narrativa histórica que visava consolidar aqueles argumentos, constituindo uma

antigüidade da ocupação portuguesa no Prata, remontada às primeiras expedições de

reconhecimento, como as de Américo Vespúcio e a de Martim Afonso de Sousa, que

teriam estabelecido os marcos da presença portuguesa além do Prata, na Baía de São

Matias. Essa presença simbólica seria colada a uma presença de fato personificada,

ainda no século XVI, pelas expedições paulistas, que teriam explorado ou colonizado a

região da Bolívia, do Paraguai, do Tucumán, e da Cisplatina.156

O reconhecimento da posse e a presença de fato dissuadiram a ocupação

espanhola, ainda que a penetração jesuítica tivesse de ser, algumas vezes, impedida pela

força, como, por exemplo, quando da tentativa de estabelecimento dessa ordem na

Cisplatina, que teria obrigado os paulistas a reagirem militarmente, episódio que

terminou a com derrota castelhana junto ao sítio onde mais tarde se fundaria a Colônia

do Sacramento. Por conseguinte, a fundação dessa cidade em 1680 se daria, segundo a

narrativa do setecentos, sobre um sítio batizado pelo sangue e pela resistência ao

invasor.

Ainda segundo esta narrativa, a infiltração espanhola nos territórios portugueses

se daria a partir da União Ibérica, identificada com o cativeiro bíblico, resultando daí em

diante, em um contínuo recuo do espaço português, mesmo que no Prata essa posse

houvesse sido reconhecida pela Espanha em uma série de acordos que se concluíram no

Tratado de Utrecht.

154 ‘Carta do Il.mo e Ex.mo Sr. Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará Francisco Xavier de Mendonça Furtado, escrita ao Secretário de Estado Diogo de

Mendonça Corte Real em 20 de Janeiro de 1752, em que declara, depois de ouvir algumas pessoas sobre o juízo que faziam do Tratado de Limites, o seu parecer’,

in Conselho Ultramarino, Papéis Vários, Tomo I. IHGB 1. 2. 9:1752.

155 ‘Correspondência de Francisco Xavier de Mendonça Furtado; do Bispo do Pará; de João Azeredo de Souza’ in Conselho Ultramarino, Papéis Vários, Tomo I. IHGB 1.

2. 9:1752.

156 Vejam-se: ‘Discussão Histórica e Jurídica sobre os Limites do Brasil contra as pretensões dos Castelhanos por um

parente de Alexandre de Gusmão’, 1767. IHGB, Lata 50 Pasta 7; Luís dos Santos Vilhena, Pensamentos Políticos

Sobre a Colônia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1987; ‘Notícias dos Títulos do Estado do Brasil e seus limites

austrais e setentrionais até o ano de 1765’, 1/02/1767. IHGB Lata 29, Pasta 3.

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A negação dessa posse pelos tratados subseqüentes (Madri e Santo Ildefonso)

era atribuída pela narrativa, em primeiro lugar, a uma malversação dos interesses

portugueses, à superioridade cartográfica dos castelhanos e à própria debilidade política

de Portugal. Em segundo lugar, esses documentos jurídicos teriam sido

intencionalmente confeccionados para possibilitarem o logro e consequentemente o

prejuízo territorial. Somando-se a esse quadro, a incorporação de uma descrição

dramática dos conflitos da década de 1760-1770, acrescentaria uma nova carga emotiva

à narrativa histórica: estes seriam relatados como uma série de ataques premeditados aos

flancos da América portuguesa, destituídos da formalização mesma da guerra, o que

contribuía para sublinhar o rompimento da norma jurídica.

Esta imagem do isolamento e de insegurança, frente a um adversário que

desprezava regras básicas do ordenamento civilizatório seria ainda aumentada por um

relato da infiltração do território e drenagem de seus recursos humanos. Os jesuítas,

ancorados em um imenso poder monetário e político, capaz de ultrapassar os limites do

Estado espanhol e subverter a opinião, manipulavam obras e distorciam a cartografia

visando seus próprios objetivos territoriais e econômicos, naquele momento coligados à

Espanha.

A todo esse cenário contrapunha-se uma idéia da identificação do território com

o Estado, com o nacional e com a resistência que seriam coligidas na figura do Paulista,

cuja idealização já começa a se notar desde a década de 1750 e que seria construída em

torno da coragem, apreço e mimetismo com o solo. Segundo a narrativa, os jesuítas

tentariam atingir essa mesma identificação ao caluniar e denegrir os paulistas, utilizando

argumentos que visavam demonstrar sua desobediência, imoralidade, barbárie e

crueldade.

A transformação da idéia filosófica-jurídica a respeito dos tratados de limites,

através da superação do estilo utilitário pelo qualitativo, também pode ser acompanhada

pela análise e interpretação que a narrativa do setecentos fez dos tratados de limites,

quando procuraria constituir uma genealogia destes cujo eixo paradigmático fosse a

própria natureza do território.

O primeiro tratado nesta genealogia era o ‘Tratado Provisional’ de 1681, onde a

posse da Colônia do Sacramento estava ligada ao princípio de restituição In Continenti,

ou seja, caracterizada pelo imediatismo, dispensativo de formalidade ou argumentação.

Para a narrativa do setecentos o princípio In Continenti representava a liquidez da

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109

questão territorial que consumava-se pela integração do espaço cisplatino no patrimônio

português.

Já no ‘Tratado de Mútua Aliança’ de 1701, entendia-se que em seu artigo 14º,

agregara-se ao corpo jurídico conceitual o princípio da cessão In Solidum, que foi

interpretado pela narrativa como a constituição da solidariedade entre todo o limite

circundante e dependente com o centro administrativo da Colônia do Sacramento e sua

incorporação como uma unidade integrada ao patrimônio português. Essa entidade

coligada seria descrita como os ‘Territórios Adjacentes’, que incluíam geograficamente

toda a margem do Rio da Prata, que passaria a ter, assim, existência jurídica In Solidum

com a Colônia do Sacramento.

Finalmente, pelos artigos 6º e 7º do ‘Tratado de Utrecht’ de 1715, a idéia da

incorporação seria repetida, desta vez com o adendo da exclusividade, entendido como

o transporte da qualificação do território e incorporação a uma unidade subjacente, o

Brasil, constituindo um vínculo indissolúvel.

Contudo, a narrativa do setecentos não destacaria, nesse último tratado, a

inclusão da opção da ‘cessão de direitos’, porque esta estava mais vinculava ao estilo

utilitário. Segundo esta opção presente no Tratado de Utrecht, a prerrogativa poderia ser

exercida pela Espanha através da oferta de áreas para permuta na América, desde que

Portugal aceitasse o equivalente oferecido, que este país julgava caber somente na

Europa.

Se utilizarmos os elementos da genealogia dos tratados feita pela narrativa do

setecentos para compararmos o Tratado de Madri com o de Santo Ildefonso, poderemos

observar que já se impõe neste último uma transformação dos estilos. Enquanto o eixo

paradigmático do Tratado de Santo Ildefonso ainda fosse a ‘cessão de direitos’,

incluindo, no caso, a permuta de territórios, uma vez que a Ilha de Santa Catarina seria

trocada pela Colônia do Sacramento, e pelas ilhas de Fernando Pó e Ano Bom, o seu

eixo sintagmático consagraria a dinâmica do território ao estipular diferenciadas formas

do espaço, privilegiando-se separações, restrições e interdições em vez da fórmula geral

do limite como no Tratado de Madri.

As partes meridional e setentrional do território da América portuguesa seriam

exemplos dessa perspectiva múltipla do espaço: no território do Rio Grande se

estabeleceriam zonas neutras, zonas compartilhadas e territórios desmilitarizados,

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enquanto que na Amazônia se delimitariam apenas os “Confins dos Domínios das duas

Coroas” através da enunciação dos divisores de águas ideais.

Contudo, a análise destes tratados pela narrativa do setecentos se estabeleceria

pela elisão dessa interpretação, uma vez que se desprivilegiava mesmo a essência

jurídica dos tratados e de sua execução, por exemplo, era praticamente um consenso que

a redação do tratado fora propositadamente vaga para beneficiar a demarcação do

território pelos espanhóis em face de seu conhecimento cartográfico superior. Para o

estilo qualitativo os Tratados de Madri e Santo Ildefonso impuseram a retração do

território e uma partilha desigual que ignorou marcos e colonização, mesmo no vale do

Amazonas, e que legou para a América portuguesa apenas “os fundos do interior dos

sertões” como uma pobre indenização pela área do Prata, definido como a chave da

defesa da América portuguesa e sua via principal de comunicações.157

Ao contrário, a narração dos séculos XIX se constituiria justamente sobre os

documentos desqualificados pela narrativa do setecentos ao mesmo tempo elidindo os

tratados anteriores. Esse confronto de percepções se tornaria mais agudo pelo

estabelecimento de uma interpretação da base documental que enfatizaria apenas os

aspectos da ‘cessão de direitos’ e sobre um acervo limitado, o que possibilitava remeter

a transmissão territorial sem se ater aos aspectos de sua qualificação, excluindo a

discussão dos termos e aspectos das permutas territoriais. Assim, através da

transformação dos acervos e de sua leitura pela narração do século XIX se possibilitaria

uma interpretação que operava através da idéia de uma contínua expansão do território,

legitimada por uma posse anterior que consolidava a utilização do princípio do uti

possidetis pela diplomacia brasileira.

Nesse sentido, é necessário estabelecer mesmo uma diferença na perspectiva do

espaço entre as narrativas do século XIX e a ‘Mitologia do espaço nacional’: enquanto a

primeira se constrói a partir de uma relação entre a centralização e constituição do

Estado nas décadas de 1840-1850, a segunda se sobrepõe a esta com o contributo de um

produto cultural, a geopolítica, que se consolidaria no século XX e que atribuiria para si

mesma o status de Ciência.

No entender da nossa pesquisa, a geopolítica se constituiria através do amálgama

de conceitos políticos, geográficos e de política externa, e pretenderia interpretar a

Geografia segundo certas determinantes históricas que demonstravam a validade de suas

157 Luís dos Santos Vilhena, Pensamentos Políticos Sobre a Colônia. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1987, p. 43.

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leis. Nesse contexto, seria natural que a Cartografia servisse como veículo divulgador de

idéias e consagrador de seus preceitos. Vários intelectuais e acadêmicos do período,

como Jaime Cortesão e Delgado de Carvalho, ambos professores do Instituto Rio

Branco e de instituições oficiais de ensino, como a atual UFRJ, conviveram e

produziram no ambiente geopolítico da década de 1950, que integrava então

universidade, militares e diplomatas.

Um dos autores de maior impacto então foi Mário Travassos, que em 1930, pela

primeira vez, idealizaria o Brasil enquanto uma ‘Potência Regional’. Em ‘Projeção

Continental do Brasil’,158

sua obra magna, Travassos verificaria a existência no

Continente americano de dois grandes antagonismos geográficos separados pela

Cordilheira dos Andes, representados pelo Atlântico e pelo Pacífico.

Por conseguinte, o espaço nacional seria influenciado pela sua posição Atlântica,

que, por sua vez, estaria submetida a outros dois grandes antagonismos geográficos: o

158 Mário Travassos, Projeção continental do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1947, 4ª Edição.

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112

Amazonas e o Prata, os quais na prática explicariam e condicionariam as disputas

regionais e que traduziriam-se, no final, por um desequilíbrio geopolítico em favor do

Prata. Dentro da análise de Mário Travassos, por exemplo, a projeção de poder dos

Estados Unidos no Caribe, “o Mediterrâneo americano”, e a influência desse país

através do Pacífico seriam exemplos da influência dos condicionalismos, os mesmos

que criariam para o Brasil um espaço onde, em virtude de sua vocação continental, lhe

caberia um papel coordenador.

A chave para essa projeção desse poder, definido como ‘Continental’, seria,

além da ocupação do Hinterland (o interior remoto e não desenvolvido), a projeção da

influência sobre determinados pontos de equilíbrio, o mais importante dos quais seria a

região na qual estava situada a cidade de Santa Cruz de la Sierra, a chave da América do

Sul. Essa região, denominada como “o triângulo estratégico Santa Cruz de La Sierra -

Cochabamba - Sucre”, seria a um só tempo o pólo de convergência das influências

amazônica, platina e andina, além de controlar um dos nudos (ponto de menor

resistência na Cordilheira e que oferece passagem mais fácil de uma vertente para a

outra).

Segundo ainda a colaboração de Mário Travassos com Delgado de Carvalho,

seria definida através da utilização de produtos cartográficos a “atuação” das ‘regiões

naturais’ do Brasil, demonstrando-se que os chamados ‘Brasil Platino’ e ‘Brasil

Amazônico’ convergiam naturalmente sobre o centro geográfico do continente, o

‘Triângulo-chave’ e que, se esta convergência fosse auxiliada por projetos políticos,

viários e diplomáticos, se constituiria o predomínio do Brasil sobre toda a América do

Sul.159

Assim, por meio da geopolítica, o Tratado de Madri adquiriria uma nova

importância e explicação para os homens do século XX: o gênio de Alexandre de

Gusmão antevira já no século XVIII uma perspectiva absolutamente revolucionária — a

expansão do espaço brasileiro, dos limites de Tordesilhas rumo ao coração do

continente, garantindo ao país uma posição privilegiada na América do Sul. Nesse

sentido, ainda em 1959, Delgado de Carvalho desenvolveria uma composição

159 Veja-se a Figura 16. Primeiramente, note-se que a divisão das ‘regiões naturais’ de Delgado de Carvalho

praticamente coincide com o meridiano de Tordesilhas tal como desenhado por Varnhagen. Em segundo lugar,

observe-se que as duas ‘regiões naturais’ situadas além do meridiano de Varnhagen praticamente tocam o

‘triângulo chave’. A ‘atuação’ das ‘regiões naturais’ sugere que a geografia impôs um ritmo natural à penetração e

ocupação do território.

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113

cartográfica do Tratado de Madri que logo seria disseminada através de sucessivas

edições do Atlas Histórico Escolar utilizado na educação fundamental: os limites do

Tratado de Madri seriam então interpretados em relação às fronteiras atuais e ao Tratado

de Tordesilhas, ainda que na prática as Comissões Demarcatórias do XVIII não

pudessem determinar nenhum desses limites e que o Tratado de Madri tivesse sido

anulado dez anos depois.

Por conseguinte, tanto na ‘Mitologia do espaço nacional’ quanto na narrativa do

setecentos, o Tratado de Tordesilhas tornar-se-ia, o ponto de partida da narrativa, sendo

que, nesse sentido, as transformações na cartografia e nas narrativas geográficas

imporiam esteticamente uma transformação na leitura da perspectiva que iria influenciar

ambas as intelecções do espaço.

O cerne da questão técnica do Tratado de Tordesilhas era o problema da

longitude: até o final do século XVIII não havia se estabelecido um método inconteste

de auferi-la nas viagens marítimas, sendo bastante conhecida a disputa que se

desenrolou na Inglaterra a respeito da utilização de cronômetros para esse fim. No caso,

a tecnologia capaz de produzir em grande escala instrumentos portáteis capazes de

resistir a grandes choques, variações de temperatura e pressão, somente se tornou

disponível no século XIX.

Do mesmo modo, a medição das longitudes terrestres era um processo bastante

complicado e que somente foi possível a partir de 1670 através de um método baseado

no eclipse das luas de Júpiter, somente descobertas por Galileu em 1610, e cujo

aperfeiçoamento duraria perto de cinqüenta anos, por conta da confecção de tabelas

astronômicas confiáveis e de telescópios mais potentes e manuseáveis. Esse método

possuía a grande desvantagem de necessitar das condições atmosféricas e astronômicas

ideais (que não eram disponíveis no hemisfério sul durante boa parte do ano),

instrumentos extremamente caros e bastante frágeis, além de operadores e calculistas

experimentados e instruídos. Ainda no século XVIII se utilizaram alguns cronômetros

de maior porte, sobre carroças, com resultados razoáveis, mas que demostraram só

serem utilizáveis em superfícies contíguas, como na Europa, e em pequenas distâncias.

A única alternativa plausível seria a utilização do método lunar, que envolvia o uso de

instrumentos mais simples, como o sextante, mas que era ainda mais especializado,

utilizando tabelas e cálculos muito complexos, que duravam em média, quatro horas.

Por todos esses motivos, a utilização do cronômetro portátil se tornava mais prática,

Page 114: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

114

inclusive para as jornadas terrestres, o que era especialmente recomendável no interior

da América do Sul, com regiões inóspitas, imensas distâncias a serem percorridas,

grande cobertura vegetal que impossibilitando tomadas astronômicas e imensos riscos,

tanto para o equipamento, quanto para a vida dos técnicos, como doenças, ataques de

selvagens, acidentes, fome, sede, que exigiam que as medições fossem realizadas com a

maior rapidez possível. Nesse sentido, cabe o exemplo das longitudes amazônicas, as

quais somente se tornaram disponíveis no último quarto do século XIX, graças à

utilização do cronômetro portátil: note-se ainda, a título de ilustração dos custos e das

dificuldades, que uma expedição utilizava, muitas vezes, até dez desses instrumentos, e

que não raro, todos se inutilizavam. Do mesmo modo, cabe salientar que, ainda em

1753, na Alemanha, no centro da Europa, não havia nenhum ponto determinado pela

longitude.160

Ao contrário da longitude, o cálculo da latitude já fora eficientemente

disponibilizado desde o século XVI, tornando a sua observação relativamente simples.

A elaboração pelos portugueses do ‘Regimento do Sol’, uma série de tábuas da posição

astronômica do Sol, permitia que, pela observação da declinação solar outras pessoas

que não os especialistas fossem capazes de determinar essa coordenada. Desse modo, as

cartas do século XVI e XVII apresentavam uma aproximação bastante boa em relação à

latitude e desvios de longitude muito grandes em relação às coordenadas conhecidas

atualmente. Esta última era então calculada através do método da Estima, ou seja,

através do cálculo da distância percorrida desde o meridiano conhecido: como estas

eram sempre percorridas por via marítima, necessitava-se, primeiramente, saber a

velocidade do navio. Para isto, lançavam-se ao mar cordas marcadas em espaços

regulares por nós, que eram contados em períodos determinados de tempo, medidos por

meio de ampulhetas. Este método era sujeito, portanto, a diversos problemas, tais como,

calmarias, correntes ou vendavais capazes de operar desvios da rota, que era a razão

última da diversidade do traço cartográfico.

Deste modo, qualquer demarcação baseada no Tratado de Tordesilhas seria

completamente inexeqüível, uma vez que este fora baseado na delimitação da longitude:

esta foi uma das razões da ‘cessão de posse’ ter superado amplamente o argumento

jurídico de Tordesilhas, uma vez que, tanto a Coroa portuguesa quanto a espanhola

160 David Turnbull, Masons, Tricksters and Cartographers: Comparative Studies in the Sociology of Scientific and

Indigenous Knowledge. London: Routledge, 2003, p. 113.

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115

reconheciam a incapacidade de confirmar seus títulos ou de apoiá-los cientificamente,

impondo-se assim uma premissa que se faria presente no corpo dos tratados do

setecentos — a revogação de todos os outros anteriores.

Contudo, a indeterminação da longitude foi ainda utilizada pelos Estados

ibéricos para a manipulação das representações cartográficas do espaço. Como, em

teoria, as possibilidades de construções seriam infinitas, a capacidade de se afirmar uma

representação dominante era limitada apenas pelas suas condições de produção e

divulgação. No setecentos, prevalece nas crônicas e correspondência oficial portuguesa

a idéia da superioridade espanhola nesse esforço, consolidando-se inclusive o

pensamento de que os tratados de Madri e de Santo Ildefonso foram negociados sob a

influência da cartografia espanhola. No caso, se entendia que esta influência também se

estendia sobre os atlas, especialmente aqueles editados na França, e até mesmo sobre

uma peça cartográfica que seria a fonte principal de consultas da Corte portuguesa, a

Carta D’Anville, encomendada para suprir parte da deficiência portuguesa nesse

setor.161

Ainda que essas alegações portuguesas possam ser questionadas, é certo que a

influência da cartografia espanhola se estendeu sobre o século XIX: praticamente todas

as representações do espaço brasileiro nos Atlas desse período foram tributárias da obra

de um dos demarcadores do Tratado de Santo Ildefonso, Francisco de Requeña: sua

composição cartográfica do Tratado de Santo Ildefonso, o ‘Mapa Geográfico de la

Mayor Parte de la America Meridional’, de 1796, influenciaria, por conseguinte, todas

as questões e pretensões territoriais do oitocentos.

Nesse sentido, tornar-se-ia mesmo difícil de estabelecer, fora dos Atlas, padrões

de representação dos acidentes geográficos, especialmente da costa, durante o século

XVIII. De um modo geral, a cartografia espanhola estreitava as distâncias entre as

costas oriental e ocidental da América, situando o litoral brasileiro mais a oeste, de

modo a obter maior ganho com sua representação do meridiano de Tordesilhas,

enquanto que os portugueses faziam justamente o contrário.

Também não existia nenhuma representação padrão do Meridiano de

Tordesilhas, uma vez que seu traçado seria constantemente alterado para se atender os

interesses de Estado. Na verdade, a primeira representação acurada, com coordenadas

161 'Tratado Preliminar de limites entre Portugal e Espanha, correspondência dos Vice-Reis Marquês do Lavradio e

Luiz Vasconcellos e Souza com a Corte de Portugal', 1780-1782. IHGB, Lata 110, Pasta 7.

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razoavelmente corretas, foi feita em 1854 por Varnhagen, para acompanhar a sua

História Geral.162

Essa composição cartográfica do Tratado de Tordesilhas, a “Primitiva

Demarcação”, conforme denominada por Varnhagen, atendia, portanto a narrativa do

século XIX e casava-se habilmente com a idéia de fluxo e expansão do território contida

na construção historiográfica que surgiria no IHGB após a década de 1850, pois se

salientava a expansão do espaço brasileiro num momento que se acusava o Governo de

ceder territórios: no mapa de Varnhagen, o meridiano de Tordesilhas foi traçado mais

favoravelmente aos espanhóis do que a cartografia destes fora capaz de fazer durante os

três séculos anteriores (ver Figura 17).163

Ao contrário da narrativa do século XIX, que idealizou a excelência da

cartografia portuguesa, na narrativa do setecentos se cristalizou a idéia da superioridade

cartográfica espanhola dirigindo os tratados, o que contribuiu para consolidar nesta

162 Antonio Adolfo Varnhagen, Mapa do Brasil e territórios limítrofes para acompanhar a História Geral daquele país,

delineado pelo autor dela e gravado sob a direção de A. Lamaitre, 1854, Paris.

163 Ver Figura 17: os meridianos aqui traçados são os mais usuais na produção cartográfica desses países, embora, na

maioria das vezes este sequer fosse representado. Substituiu-se a reta pela curva nos meridianos português e

espanhol para tentar contornar a diferença das projeções adotadas por Varnhagen em relação a estes e para

demonstrar o problema que a longitude oferecia no século XVIII.

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117

narração a ultrapassagem tanto de uma argumentação baseada na sucessão pacífica dos

tratados quanto do estilo utilitário, uma vez que aquela superioridade inviabilizava a

organicidade entre o Estado e o território que ali se construía: 164

O Papa Alexandre VI de mútuo próprio por Bula passada no ano de

1493, um ano depois de descoberta a Índia Ocidental, concedeu à Coroa de

Castela as conquistas da América, e conhecendo que se vinha embaraçar

com as conquistas já concedidas a Portugal, inventou uma repartição aérea,

impraticável, imaginária, especulativa, entanto hábil para semear (como

semeou) discórdia perpetuamente entre as duas Coroas, e guerras

sanguinolentas, escola onde de contínuo se estudam se inventam, e saem

falsas doutrinas demostradas nos errôneos e falsos mapas geográficos,

primeiro do Rei católico, e depois por todo o mundo, nas infinitas e sempre

maliciosas cartas geográficas que idearam os castelhanos.165

Nesse sentido, a ultrapassagem da idéia de uma sucessão contínua dos tratados

se daria gradualmente através do deslocamento de uma retórica do direito mais

aproximada do estilo utilitário, para uma ‘forma de soberania’ baseada na conquista e na

aquisição, que se desenvolveria posteriormente no estilo qualitativo ligando o solo ao

nacional.

Assim, num primeiro momento, a narrativa do setecentos descaracterizaria o

argumento jurídico pela demonstração da presença no Tratado de Tordesilhas de vários

vícios de origem, dentre eles o dolo. Em seguida, se colocaria em dúvida a existência

mesma do Contrato, numa argumentação já nesse momento também historicista: a

ausência de seu registro nos arquivos do Estado o remeteria da esfera deste, para a

esfera do testemunho, da tradição e da literatura. Finalmente, a historicidade dos laços

do Estado com o território se sobreporiam, por meio tanto de uma crônica dessa

interação, que descrevia os feitos, atos e posses, quanto de um relato dinâmico e

histórico dos contratos, descentralizando o Tratado de Tordesilhas para recolocá-lo

como parte de uma negociação que envolvia uma jurisprudência e casuística mais

164 Com respeito à influência da cartografia espanhola e à idéia de organicidade, veja-se, por exemplo, as

correspondências do Marquês de Lavradio e de Martinho de Mello e Castro p/ D. Luiz de Vasconcellos e Souza in

‘Tratado Preliminar de Limites Entre Portugal e Espanha, Correspondência Dos Vice-reis Marquês Do Lavradio e

Luiz Vasconcellos e Souza Com a Corte de Portugal’, 1780-1782. IHGB, Lata 110, Pasta 7.

165 ‘Notícias dos Títulos do Estado do Brasil e seus limites austrais e setentrionais até o ano de 1765’, 1/02/1767.

IHGB, Lata 29, Pasta 3.

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118

ampla. Assim, peças e direitos confundir-se-iam e misturar-se-iam com a presença

pregressa do Estado no território, estabelecendo-se, por conseguinte, uma base jurídica

para a nulidade dos contratos.

Nesse sentido, os argumentos geográfico e cartográfico foram centrais no

discurso, pois serviram para vários fins da discussão prática, como, por exemplo, para

se deslocar o meridiano inicial de Tordesilhas das Ilhas de Cabo Verde para as dos

Açores (que eram representadas mais a ocidente nos mapas do séculos XVIII); mas,

principalmente, porque ofereciam contraprovas que impediam a refutação convincente

de qualquer alegação feita com base naqueles mesmos argumentos, utilizando-se, para

isso, dos problemas do cálculo da longitude, das dúvidas quanto à conversão das léguas

para graus de meridiano ou mesmo da identificação e quantificação daquela unidade de

medida.

Portanto, o século XVIII impôs diversos novos problemas à cartografia que não

poderiam mais ser superados somente por iniciativas individuais, mas que necessitavam

lastrear-se em um suporte técnico que assegurasse a confiabilidade e a cientificidade do

mapa e que também participasse de um corpo conceitual que tivesse aceitação universal.

Nesse sentido, a técnica era um dos principais limitadores da expansão do saber

cartográfico nos países periféricos, fazendo com que os Atlas estrangeiros se

consolidassem como a maior fonte disponível de informações cartográficas, por conta

do aumento generalizado dos custos que eram impostos pela necessidade de incorporar

os sucessivos avanços científicos.

Neste caso, os custos somente eram absorvidos pelo aporte financeiro

representado pela venda do produto final e pela comercialização de direitos e serviços

ou ainda pela economia representada pela transação de originais e matrizes e pelo

agenciamento do registro cartográfico a terceiros. Assim, se introduzia a vontade do

Mercado, ávido por novos produtos e que exigia uma qualidade e acuidade sempre

maiores, para as quais contribuía a divulgação do saber científico. Estabelecia-se, deste

modo, um gosto Estético estabelecido pelo Mercado no qual a qualidade gráfica e

técnica se uniam, impedindo a emergência de uma produção concorrencial nos países

periféricos e influenciando decisivamente a sua cartografia.

Desta maneira, o Estado se impunha como o único empreendedor e competidor

possível, mas a um custo de entrada muito alto e com uma necessidade de investimento

contínuo na formação de pessoal e desenvolvimento de técnicas, se desarticulando,

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119

neste processo, toda uma tradição cartográfica, como a portuguesa, que era baseada na

iniciativa individual e que privilegiava a composição manuscrita.

Contudo, o aporte do Estado na nova cartografia significou também uma

contribuição à Estética, pois mapear não significava mais apenas representar o território,

mas também integrar, padronizar, distender o olhar do centro até os recantos mais

remotos — construir fronteiras.

Essa ultrapassagem mental e estética significava uma nova atitude onde a parte

cederia lugar ao todo: a tradição cartográfica que nascera no ocidente com as Cartas

Portulanas, destinadas a navegação no Mediterrâneo, um espaço geográfico fechado,

onde os rumos se estabeleciam por meio da orientação visual e da capacidade de decisão

do indivíduo, dava lugar a um modelo aberto, mas que paradoxalmente já estava

construído por meio de uma normatização rigorosa dos padrões cartográficos.

Decorrentemente, a cartografia tornou-se uma atividade coletiva, essencialmente

técnica, extremamente especializada e voltada para a difusão e divulgação de sua

própria Estética, continuamente em adaptação ao Mercado.

O grande mapeamento da França, iniciado por Giovanni Cassini no último

quartel do século XVII, produziu os padrões da nova cartografia, traçando, a partir de

Paris, triangulações sucessivas, que visavam estabelecer coordenadas exatas e distâncias

calculadas sobre todo o território francês: o esquadrinhamento do território se constituiu

pela localização de pontos interligados a outros pontos através da organização de redes

que inscreviam o Estado francês no espaço.

A cartografia era então material de primeira necessidade também para

administrar o deslocamento de soldados e a administração dos esforços da guerra:

Cassini não era considerado à época apenas o maior especialista na revolução das luas

de Júpiter, aquele capaz de aplicar o sistema de longitudes a uma Carta Geral da França,

mas também um renomado projetista de fortalezas, trabalhando rotineiramente junto

com o grande Engenheiro militar Sébastien Vauban.

A própria organização das Ciências naquele país, como a constituição e suporte

da ‘Académie Royale des Sciences’ e do Observatório Astronômico, foi subordinada ao

esforço da construção territorial racionalizando essa relação em torno do Estado e

dessacralizando a idéia mística da cartografia medieval que ligava o céu a terra.166

166 Chandra Mukerji, Territorial Ambitions and the Gardens of Versailles, Cambridge: Cambridge University Press,

1997, p. 260-261.

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Essa ultrapassagem mental se impõe sobre o estilo qualitativo constatando-se a

impossibilidade técnica e prática de se mapearem limites tão extensos e inóspitos, ao

mesmo tempo em que repudiam os procedimentos das Comissões Demarcatórias

espanholas por se reconhecerem aí os antigos vícios que se opunham às modernas

técnicas.167

Esta argumentação entendia que o território espanhol também era dinâmico,

sendo as Missões sua mais degenerada característica, por penetrarem, corroerem e

sugarem os recursos, a seiva do território, por isso, a insistir-se-ia em que os antigos

métodos cartográficos eram a origem mesma da corrupção dos contratos. Nessa

argumentação estão preservadas as noções de fronteira militar e do espaço comercial: os

limites devem ser aqueles que emprestem defensabilidade ao espaço, assim como os

Confins devem ser os que preservem as possibilidades do comércio ou que o viabilizem,

portanto, o território deve ser, ao mesmo tempo, seguro, produtivo, fértil e lucrativo.

Esta argumentação seria colocada em prática numa políticas de limites já a partir

de 1802 quando da ocupação portuguesa do território das Sete Missões: refutando a

proposta castelhana de utilizar o princípio do status quo ante bellum, antiga prática das

disputas entre os dois países, os portugueses preferiram conservar o território a

consolidar a paz.

Depois, em 1818, confirmando-se a influência do estilo qualitativo, D. João VI

ofereceria todo o território ao norte do rio Amazonas em troca da projeção do espaço

brasileiro até o Prata (ver Figura 18).168

Deste modo, observa-se que a figura da ‘cessão

de direitos’ já estaria abandonada por um exercício que identificava através de certas

categorias as parcelas que deveriam compor o espaço brasileiro, e onde o território era

entendido segundo uma classificação que colocava progressivamente em seu centro, o

Estado e sua narrativa. A partir desta argumentação, definir-se-iam para o espaço

qualidades tais como, saúde, crescimento e perpetuação, que deveriam tipificar as

estratégias do Estado, agora organicamente ligado ao território, pulsante e vivo. Nesse

exercício, a conquista e a aquisição passavam a ser também consideradas como uma

conseqüência de certas necessidades do Estado, e que passariam a ser justificadas no

ajuste das narrativas históricas.

167 Ver, por exemplo, ‘Carta de Francisco João Rocio’ e ‘Tratado Preliminar de Limites entre Portugal e Espanha,

correspondência dos vice-reis Marquês do Lavradio e Luiz Vasconcellos e Souza com a Corte de Portugal’, 1780-

1782. IHGB, Lata 110, Pasta 7..

168 Marquês de Aguiar, ‘Documentos relativos às questões de limites do Império do Brasil ventiladas no Congresso

de Paris em 1818’, 16/06/1816. IHGB, Lata 79, Documento 9.

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Portanto, as transformações do Estado, das suas necessidades, das suas categorias e

das suas qualidades também encerrariam mudanças de narrativas: da mesma maneira

que no setecentos a composição do mapa importava primeiro no riscar de sua paisagem,

na apreensão e descrição de suas naturezas, agora o Estado necessitava riscar suas

origens, riscar os mapas de seu passado — mover-se sobre as ruínas, não apenas

admirá-las, mas utilizar suas pedras em um novo Castelo.

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6 — A DESCRIÇÃO DO CONTEMPLADOR: AS COROGRAFIAS E AS

CONDIÇÕES DE ELABORAÇÃO DA NARRATIVA

“A simples descrição deste sítio levanta a imaginação do contemplador.”

Visconde de São Leopoldo. Programa Geográfico.

Nosso primeiro objetivo neste capítulo é definir a corografia em relação ao

nosso objeto de estudo, já que as atividades de cartógrafos e corógrafos confundiram-se

e misturaram-se no Brasil durante os séculos XVIII e XIX num processo que

possibilitou a construção do espaço nacional e, ao mesmo tempo, moldou seus limites.

Em segundo lugar, definiremos este processo de construção do espaço nacional

como a constituição de uma narrativa através do ‘saber sobre o espaço’, discernindo as

condições de sua elaboração e inscrição no IHGB.

Inicialmente, a concatenação desses dois objetivos precisa ser explicada, tanto

pelas transformações da corografia nos séculos precedentes quanto pela consolidação,

no Brasil, de diversos modelos corográficos, a partir da segunda metade do setecentos.

A ligação clássica entre Corografia e Geografia surgiu ainda no segundo século

depois de Cristo no âmbito da Geographia de Ptolomeu de Alexandria. Esta obra era

composta de uma parte teórica a respeito do estudo e da composição do espaço e por

uma parte prática com a seleção, compilação e ordenação de perto de oito mil registros

de cidades e acidentes naturais reconhecidos pelo mundo romano em sua expansão

militar e comercial, num rol que se estendia desde a China até o Mar do Norte, cobrindo

ainda partes substanciais da África e Ásia. Esses registros, foram ordenados

espacialmente em relação a dois elementos, a latitude e a longitude, compondo

claramente um mundo de forma esférica cuja parte conhecida cobria pouco mais de 180º

de longitude.169

A longitude era definida a partir de um ponto fictício, as Ilhas Afortunadas,

situadas pelo autor no extremo ocidental conhecido, e calculada por Ptolomeu através

169 Peter Whitfield, New Found Lands: Maps in the History of Exploration. New York: Routledge, 1998, p. 9-11; 53-

55.

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da distância tomada em dias de jornada. Esta medida era bastante imprecisa nas regiões

menos freqüentadas ou de difícil acesso, embora fosse relativamente eficaz nas áreas

urbanas e onde o Império Romano havia estruturado redes viárias.

Relacionada ao problema da composição do rol de registros, a questão da

longitude teria reflexo direto sobre seus métodos de trabalho e teorizações: embora os

objetivos e processos de Ptolomeu fossem científicos e rigorosos, estes dependiam da

confiabilidade e da comparação dos relatos de militares, exploradores e negociantes,

que, muitas vezes possuíam objetivos diversos e específicos.

Assim, a obra de Ptolomeu distinguiu o processo de construção do espaço em

duas etapas, cada qual relacionada a uma técnica: a corografia, que tão somente

recolheria as informações de uma determinada parcela do espaço, notadamente as

regiões habitadas, e a geografia, entendida por este enquanto hierarquicamente superior,

responsável por coligir, selecionar e retificar os dados apresentados pela corografia,

agrupando matematicamente os dados resultantes a um espaço organizado.

Presumivelmente, a última etapa do processo compor-se-ia da transposição dos

registros geográficos para uma base gráfica, através de uma técnica cartográfica,

contudo, não existem menções ou representações européias desta prática no período

imediatamente posterior a Ptolomeu.

Esta idéia de um ‘processo de construção do espaço’ seria transformada com a

redescoberta da Geographia no século XVI, quando traduções sucessivas e dispersas

pela Europa (especialmente em Londres, Antuérpia e em Basel) corromperam os termos

ptolemaicos, consolidando-se, pelos novos textos, outros atributos para a corografia e

uma relação eqüitativa desta com a geografia.170

Essa mutação atingia a abrangência, o enfoque e o método da Corografia, que

teve redimensionados os seus objetos, passando a abranger regiões e até mesmo

Estados, os quais seriam estudados através de uma descrição pormenorizada e

minuciosa de sua natureza e costumes, que focava a mensuração de seus acidentes.

Por conseguinte, o século XVI esvaziou o conteúdo geográfico dos termos

ptolemaicos, passando a conferir um status científico à corografia que a tornava,

doravante, um instrumento prático e útil, para, por exemplo, resolver disputas de

170 Ver Lucia Nuti, ‘Mapping Places: Chorography and Vision in the Renaissance’, in Mappings, Denis Cosgrove.

London: Reaktion Books, 1999, p. 99-108.

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território, vendas de propriedades, operações militares, planejamentos estatais e o

incremento comercial.

Também a partir desse período, a corografia desenvolver-se-ia paulatinamente

tanto como uma representação gráfica quanto textual: na Renascença italiana,

derivando-se da pintura e utilizando suas técnicas, a representação gráfica se

desenvolveu mais rapidamente, conflitando com a cartografia, seus métodos e escalas.

Este processo era tanto mais complicado porque se conheciam apenas as

proposições seiscentistas de modelos gráficos da geografia ptolemaica, baseados nas

teorizações da Geografia. Mesmo assim, estas proposições eram, por sua vez, derivadas

de representações árabes e se destinavam a contrapô-las, como se pode notar, inclusive,

pela questão relativa à orientação geral dos mapas, como se pode observar através da

comparação entre os mapas de Al-Idrisi, do século XI com o modelo do Atlas Catalão,

do século XIV. Enquanto as representações árabes inspiradas no modelo ptolemaico

eram orientadas para o Sul, possibilitando o destaque da Península Arábica, as

representações européias eram orientadas para o norte, destacando-se a massa

continental, subordinando ou excluindo o espaço islâmico.

A representação gráfica da corografia se desenvolveu na Itália e em Flandres

através de técnicas representativas ligadas diretamente à Perspectiva e a idéia de

Paisagem, que constituiriam diferentes modelos de representação: os Planos, os Planos

Perspectivos e os Panoramas.

Cada um destes modelos consolidou-se enquanto vertentes gráficas da

representação corográfica, embora diferissem entre si, principalmente, pela composição

do objeto em relação à centralidade do observador, resguardando-se, contudo, as idéias

de proporção, medida e distância.

Assim, o Plano individualizava-se por utilizar a perspectiva horizontal como

meio principal de inscrição da Paisagem, destinando-se, principalmente, ao

reconhecimento do espaço pelos viajantes; por sua vez, o Plano Perspectivo propiciava

uma melhor apreciação da distância e da relação entre diversos objetos separados entre

si no espaço, através do uso conjunto das perspectivas horizontal e vertical. Por sua vez,

o Panorama oferecia uma perspectiva de 360º, através da qual o observador era inserido

no centro da área inscrita.

Em face de sua representação gráfica, a corografia textual se desenvolveria com

mais vagar: ainda durante o século XVII, os principais cartógrafos se opunham à

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utilização de material que não fosse cartográfico, a não ser que este fosse obtido por

seus próprios recursos, preferindo-se simplesmente, plagiar seus concorrentes e

predecessores ou utilizar, em vez daquele material, a combinação de cartas de menor

escala, transformando-se o mapa, por meio deste uso, numa espécie de mosaico.171

Deste modo, a ascensão da corografia textual em fonte primária da cartografia se

daria cautelosamente a partir do século XVII, para atingir seu apogeu somente no

período que vai do meio do século XVIII até a primeira metade do século XIX.

Esta ascensão se daria a partir do incremento dos ‘circuitos de informação’, em

primeiro lugar, a partir de uma difusão cultural e acadêmica, que permitiu o aumento do

número de especialistas, cientistas e mesmo da ‘ilustração’ entre a elite letrada.

Em segundo lugar, a melhoria das condições materiais, especialmente dos meios

de transporte, propiciaria que um número maior de autores e de observadores confiáveis

pudessem se deslocar dos centros técnicos até as áreas de observação e que nestas

circulassem com maiores chances de sucesso.

Em terceiro lugar, a difusão da impressão tornou possível a inclusão de um

número maior de indivíduos letrados num circuito de informações que disponibilizava o

conhecimento e as práticas corográficas, como, por exemplo, através dos mapas e

corografias; de técnicas de mensuração visual das distâncias; e de práticas do

aprendizado do uso da perspectiva.

Em quarto lugar e último lugar, o conhecimento corográfico e sua discussão se

tornariam, mesmo, parte integrante do repertório de socialização de uma elite letrada.172

Este incremento dos ‘circuitos de informação’ seria também responsável por

propagar dentre os indivíduos que deles participavam o conhecimento dos modelos de

representação da corografia gráfica, constituindo-se, assim, padrões de reconhecimento

e observação que seriam transferidos, por sua vez, para a corografia textual.

Assim, surgiram diferentes vertentes simultâneas da corografia textual que

podem também ser agrupadas em modelos, cujos eixos de narração coincidem em

naturalizar as ciências naturais como instrumento metodológico que separava,

descrevia, mensurava e ordenava. No caso brasileiro, praticamente todas as corografias

171 Geoffrey Parker, ‘Maps and Ministers: The Spanish Habsburgs’, in Monarchs, Ministers and Maps: the

Emergence of Cartography as a Tool of Government in Early Europe, Buisseret, David. Chicago: The University

of Chicago Press, 1992, p. 128.

172 Por exemplo, Chandra Mukerji, Territorial Ambitions and the Gardens of Versailles. Cambridge: Cambridge

University Press, 1997, p. 88-89.

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126

textuais produzidas entre os anos de 1750 e 1850 pretenderam de algum modo conectar

as descrições geográficas com as descrições antropológicas e naturais.

Embora houvessem proliferado diversas designações dessas vertentes, estas

podem ser agrupadas em quatro modelos amplos, os ‘Roteiros’, os ‘Itinerários’, as

‘Memórias’ e as ‘Descrições’, os quais se diferenciaram por suas Perspectivas e objetos

particulares.

Assim, o modelo dos ‘Roteiros’ (ver Figura 19), no qual também podem ser

incluídas as Viagens, foi, por excelência, uma narrativa em primeira pessoa, do esforço

de penetração no desconhecido ou retirado, nomeado indistintamente como ‘Sertão’, no

qual se detalhavam as experiências, maravilhas e perigos, mas, que procurava

resguardar direções e peculiaridades que possibilitassem a orientação na área penetrada.

Por conta de sua originalidade, o Roteiro era capaz de consolidar a autoridade de

seu autor, estabelecendo seu prestígio em contrapartida à serventia que esse havia feito

ou presumido a respeito do espaço devassado: o ‘Sertanista’ não era apenas aquele que

penetrava o território, mas quem utilizava com algum proveito o ‘Sertão’.

Portanto, a atividade do sertanista relaciona o conhecimento do território com as

práticas da coleta e do aproveitamento dos seus recursos, sendo a idéia da geração e do

incremento do fluxo comercial dissociada, no Roteiro, do movimento de ocupação do

território. O Sertanista indica, instrui, assevera e disponibiliza à Colônia um espaço

além de seus limites, uma vez que era o prático dos Sertões, aquele que agregava

espaços, conduzia a raça e servia enquanto fonte de inspiração, seus relatos e exemplos

sendo transmitidos e imitados.

Veja-se, por exemplo, João de Souza, um dos mais célebres sertanistas do século

XVIII, considerado o primeiro explorador do rio Madeira e do rio Tapajós e o

descobridor da ligação entre as províncias do Pará e de Mato Grosso. Os Roteiros deste

Sertanista foram copiados ainda em sua vida transformando suas viagens em feitos

heróicos que continuariam sendo celebrados ainda em meados do século XIX, quando já

haviam se passado cem anos de suas célebres avançadas pelo Sertão.173

173 Ver, por exemplo: João de S. José, ‘Viagem e visita do Sertão em o Bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763’, in

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo IX, n° 5, 1847; Ricardo Franco de Almeida Serra,

‘Mato Grosso. Navegação do Rio Tapajós para o Pará pelo Ten. C.el. Ricardo Franco de Almeida Serra, escrita em

1799, sendo Governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro tomo IX, n° 5, 1847; Joaquim José Ferreira & Ricardo Franco de Almeida Ferreira, ‘Reflexões Sobre a

Capitania de Mato Grosso, oferecidas ao Governador e Capitão General da mesma Capitania João de Albuquerque

de Mello e Cáceres: Pelos Tenentes Coronéis Joaquim José Ferreira e Ricardo Franco de Almeida’, in Revista Do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XII, n° 15, 1849.

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127

Ainda, sua palavra chegou a possuir foros de autenticidade, sendo, nesse sentido,

consultado pela própria Metrópole em relação às políticas coloniais quando foi

responsável por pareceres que consolidariam a avaliação negativa do Tratado de Madri

conduzindo, inclusive, a sua anulação em 1760.174

Por conseguinte, os Roteiros também tornaram-se muitas vezes a fonte de

produtos geralmente mais elaborados como as ‘Memórias’ e ‘Descrições’, nas quais

eram referidos como fontes de autoridade e onde se consolidaram seus juízos. Nesse

sentido, rivalizaram diretamente com os relatos dos viajantes e exploradores

estrangeiros como Condamine, Castelnau e outros, que, mesmo sendo reconhecidos

enquanto especialistas, tinham seu conhecimento apontado como superficial e

deturpador, por estes não conhecerem nem praticarem o interior, os sertões, mas apenas

as áreas limítrofes a este, como as vias navegáveis e as zonas habitadas.175

Outro modelo corográfico, o ‘Itinerário’ (ver Figura 19), se diferenciou do

Roteiro na medida em que seu objeto era um território já explorado anteriormente e que

estava compreendido entre dois pontos delimitados. A regulação e o incremento do

fluxo comercial eram os principais objetivos dos Itinerários, e para tanto, sua estrutura

de narração era organizada a partir de um esquema de espaço ternário: partindo-se de A,

chega-se a C passando por B. Este esquema necessitava que o ponto B fosse claramente

distinguível e localizado pelo trajeto das interseções A—B e B—C, que também

deveriam ser direcionadas, mensuradas e avaliadas. Estes critérios temporais e espaciais

visavam à economia de recursos e ao gerenciamento das iniciativas através do

reconhecimento das vias de apoio e deslocamento e da identificação dos obstáculos,

como, por exemplo, nos trajetos São Paulo — Cuiabá, Pará — Mato Grosso, Goiás —

Pará.

Os Itinerários possibilitavam ainda que o comerciante ou viajante estabelecesse

seu próprio percurso constituindo escalas e entrepostos, sendo, inclusive, alertados para

as vantagens da reunião com outros viajantes em determinados trechos da rota, por

174 Ver ‘Carta do Il.mo e Ex.mo Sr. Governador e Capitão General do Estado do Grão-Pará Francisco Xavier de

Mendonça Furtado, escrita ao Secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real em 20 de Janeiro de 1752, em

que declara, depois de ouvir algumas pessoas sobre o juízo que faziam do Tratado de Limites, o seu Parecer,’

Conselho Ultramarino, Papéis Vários, Tomo I, 1752. IHGB 1. 2. 9:1752; ‘Parecer que deu João de Souza e

Azeredo sobre o referido em 26 de Janeiro de 1752’, in Conselho Ultramarino, Papéis Vários, Tomo I, 1752. IHGB

1. 2. 9:1752.

175 Ver por exemplo: André Fernandes de Souza, ‘Notícias geográficas da capitania do Rio Negro [...]’ Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo X, n° 11, 1848; Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva, Corografia

Paraense ou Descrição física, histórica e política da Província do Grão-Pará. Salvador: Tipografia do Diário, 1833.

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128

conta de dificuldades geográficas, como saltos, transbordos e rápidos ou em face do

perigo de ataque de indígenas. Nesse sentido, como os Itinerários eram na sua maior

parte compostos pela descrição das comunicações fluviais e dos pontos habitados que

estas ligavam, ‘lugares’ isolados em meio a florestas e outras regiões adversas, espaços

remotos, desertos e muitas vezes visualmente monótonos, provavelmente os Itinerários

receberam influência de modelos marítimos mais antigos e que guardavam certas

similaridades com os seus problemas e objetivos, como as ‘Cartas Portulanas’ e os

‘Itinerários Náuticos’.

As ‘Cartas Portulanas’, que remontam ao século XIV, foram mapas destinados a

orientar o comércio e as viagens no Mediterrâneo, onde a rota era estabelecida pela

escolha de uma ‘linha de rumo’, uma reta traçada no mapa ligando dois pontos

conhecidos. Na ‘linha de rumo’ o navegante se orientava através das direções obtidas

pela consulta à bússola e pelas medições da distância percorridas, que eram confirmadas

pela ‘estima’ e asseguradas pela identificação dos acidentes naturais mais notáveis,

descritos num compêndio, o ‘roteiro’. Este, por sua vez, daria origem aos ‘Itinerários

Náuticos’, que seriam utilizados pela navegação oceânica desde o século XVI até o

século XIX, consistindo numa relação minuciosa dos acidentes cujo conhecimento eram

considerados necessários à localização e ao trânsito costeiro.

Como nos espaços oceânicos dos antigos modelos marítimos, a comunicação

com o interior do Brasil foi construída sobre o risco da ultrapassagem do Vazio,

rasgando um espaço conhecido apenas em suas margens e sujeitando-se à alternância de

situações conhecidas, mas, incontroláveis. Os Itinerários, como as ‘linhas de rumo’,

possibilitavam o deslocamento através desse Vazio desde que sujeito a uma fixidez, a

uma norma e a uma invariabilidade que consubstanciava-se num movimento de

contorno do desconhecido apenas quebrado esporadicamente por paradas necessárias.

Nesse sentido, os ‘lugares’ dos Itinerários se assemelhavam às ilhas ou às

‘aguadas’ dos modelos náuticos, assim como suas margens e entornos, os sertões, eram

preenchidos à maneira dos mapas seiscentistas que ocupavam esses Vazios com

monstros e animais imaginários. Preenchia-se um espaço que não era só geográfico, mas

também da imaginação, com terrores que nos Itinerários foram deslocados sem serem

destruídos inteiramente. Através das ciências naturais e antropológicas essas

representações não foram despedaçadas, mas apenas ligadas às margens da narrativa

Page 129: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

129

para que se pudesse encontrar os limites de sua passagem até um ‘lugar do

reconhecido’, num movimento possibilitador do controle ou da significação do Vazio.

Estes movimentos seriam realizados a partir da centralidade, ou seja, da

perspectiva do autor, quando o Vazio tornar-se-ia se tornaria paulatinamente idêntico a

sua imagem.

O modelo corográfico das Memórias (ver Figura 19), no qual também podem ser

incluídas as Histórias e as Reflexões, compunha-se predominantemente de dissertações

onde tempo e espaço complexos eram relacionados. A questão histórica compunha o

eixo desse modelo, fosse estabelecendo a antigüidade da posse do território,

descrevendo o estabelecimento e o desenvolvimento da ocupação ou debatendo o

relacionamento do colonizador com os povos indígenas.

Nesse processo, as ruínas, os padrões ou a mera passagem do elemento

civilizador se constituiriam como monumentos da passagem para um patrimônio que

não se esgotava apenas pelo estabelecimento continuado: a mera consumação da

penetração do inexplorado se tornava uma qualidade inesquecível doravante ligando a

terra ao seu possuidor. Portanto, quando se assentava o povoamento, este era celebrado

como a narração da presença especialíssima do colonizador, virtuosa na presença e

industriosa tanto na tutela quanto na disputa com os indígenas.

Assim, no modelo das ‘Memórias’, a história tornou-se o elemento organizador e

consolidador do espaço, constituindo um território definido e nominado, através de um

exercício que pode ser entendido como uma narração da presença e estabelecimento do

Estado e de suas regras.

Pela especificidade dos objetivos das Memórias, seu autor normalmente era um

especialista, alguém capaz de emitir um juízo sobre as matérias geográficas ou

antropológica que constituíam os objetos da dissertação.

Portanto, o modelo das Memórias é também um lugar da inserção individual do

autor, criando-se uma ambigüidade da apreensão que desloca, muitas vezes, o objeto

corográfico do centro da narrativa, revelando-se nesse processo estratos culturais e

impressões pessoais, que, por exemplo, podiam variar desde o desconforto em relação à

presença ou atuação do Estado até o deslumbramento quase que infantil diante das

diferenças de espaço e de cultura.

Assim, nas Memórias, o especialista organizava, a partir do domínio da técnica e

da coleção de suas experiências, uma narrativa sobre um objeto circunscrito e

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130

delimitado com objetivos preestabelecidos onde a história consolidava, relacionava e

confrontava o objeto com uma argumentação de ordem moral ou racional que

delimitava diferenças e divergências, estabelecendo estratégias de inserção,

recuperação, superação ou controle do espaço pelo Estado.

Finalmente, as ‘Descrições’ ou ‘Corografias propriamente ditas’ eram

dissertações a respeito de um espaço bem delimitado e de grandes proporções onde a

presença de um ente organizador e central era inequívoca (ver Figura 19).

Normalmente, as Descrições não eram obras originais, mas se utilizavam de fontes mais

antigas, como outras Descrições, Roteiros, Itinerários e Memórias de onde se

atualizavam certos dados ou se adicionavam algumas categorizações.

O objetivo principal do modelo das Descrições era circunscrever um território

administrativo, situando-o em meio a outros por meio da descrição de seus componentes

humanos, geográficos e econômicos. Estes componentes eram então ordenados e

delimitados em espaços internos, os quais, por sua vez, seriam hierarquizados em

relação ao todo, por exemplo, através da composição e da distribuição da população, da

FIGURA 19 — ESQUEMA DAS COROGRAFIAS

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131

enumeração das possibilidades e realidades econômicas e da descrição dos acidentes

geográficos e de sua relação com o restante do espaço.

Embora no período que vai de 1750 até 1850 existisse um fluxo mais ou menos

constante na produção das corografias textuais, os anos 1790-1810 e 1830-1850 foram

especialmente significativos. Estes dois momentos estão relacionados com alguns dos

fatores que permitiram que a corografia textual se tornasse fonte primária da cartografia,

especialmente o surgimento dos especialistas e a difusão da impressão.

No primeiro caso, a decadência da cartografia portuguesa nos séculos XVII e

XVIII, abordada anteriormente, exemplifica bem o desenvolvimento das Ciências

matemáticas e naturais nesse país. No caso brasileiro esta questão foi agravada pela

inexistência das Universidades e pelos impedimentos impostos pela Metrópole em

relação à visitação do país por estrangeiros. Embora, por conta da vinda de especialistas

enquadrados nos interesses da Metrópole, as atividades derivadas das demarcações dos

tratados do século XVIII (Madri e Santo Ildefonso) pudessem ter gerado a atividade

corográfica, as limitações técnicas e de pessoal anteriormente citadas impediram em

grande parte essa tarefa. Na realidade, a transformação da atividade corográfica

brasileira nos anos 1790-1810 está ligada a processos detonados na Metrópole, como as

transformações do período Pombal e à vinda da Corte.

Em relação ao período Pombal, a anulação em 1760 do Tratado de Madri

impeliu à ocupação militar dos extremos brasileiros, como, no caso da construção da

Fortaleza do Príncipe da Beira, sobre a margem do rio Guaporé, um dos maiores

entrincheiramentos das Américas e a conquista dos Campos de Guarapuava, o oeste do

atual Estado do Paraná.

Para isto se tornou necessário designar oficiais de alta patente, engenheiros

militares e outros profissionais deslocando os poucos elementos disponíveis no Império

português para intermináveis comissões no interior do Brasil, praticamente fixando-os à

Colônia. A reforma pombalina do sistema educacional português também possibilitaria

que alguns brasileiros pudessem ascender às carreiras técnicas, possibilitando que certas

tarefas da ocupação militar e mais tarde da demarcação do Tratado Provisório de Santo

Ildefonso fossem feitas não apenas por estrangeiros ou portugueses. Estes especialistas

brasileiros designados ou formados durante o período Pombal para as atividades

militares e estratégicas seriam os responsáveis por grande parte da produção corográfica

mais significativa dos anos 1790-1810, inclusive patrocinando trabalhos de terceiros por

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132

meio de sua influência e de sua atividade quando instalados no aparelho burocrático da

Colônia.

Alguns desses especialistas seriam deslocados na década de 1780 para o interior

do Brasil para a demarcação dos limites do Tratado Provisório de Santo Ildefonso.

Contudo, a repulsa das elites políticas metropolitanas a esse Tratado e o fracasso das

negociações posteriores transformaria as atividades daqueles indivíduos destinando-as a

coadjuvar as atividades militares, administrativas e comerciais da Colônia.

Na verdade, em face da escassez material e técnica da cartografia portuguesa,

foram pouquíssimos os indivíduos que participaram dessas atividades, por exemplo, nas

medições relativas ao Tratado de São Ildefonso somente cinco astrônomos foram

responsáveis pela cobertura de todo o território da América portuguesa: Antonio Pires

da Silva Pontes Leme, Francisco José de Lacerda e Almeida, Francisco de Oliveira

Barbosa, Bento Sanches e José Simões de Carvalho.176

Suas tarefas eram simplesmente

gigantescas, mesmo para os padrões do século XXI: todas as observações nos rios

Solimões, Jupará, Branco, Madeira, Guaporé e na maior parte do Mato Grosso foram

feitas por apenas três dos astrônomos citados, a saber: Simões, Lacerda e Pontes.

Pontes, nascido em Mariana, Província de Minas Gerais, no reconhecimento de

rotas comerciais e na demarcação de limites, cumpriu no conjunto de suas comissões

um périplo várias vezes maior que o de Humboldt, Condamine ou qualquer outro

viajante do século XVIII e que talvez só possa ser superado pelas grandes explorações

africanas do século XIX. Outro daqueles astrônomos, José de Lacerda e Almeida,

nascido na cidade de São Paulo, após cumprir suas missões no Brasil recebeu ainda a

tarefa de tentar a travessia da África, de Moçambique para Angola, no decorrer da qual

viria a falecer.

Outro participante das atividades desse período, Ricardo Franco de Almeida

Serra, designado chefe dos Engenheiros Militares na expedição de Antonio Pires da

Silva Pontes Leme, comandava apenas um colega. Serra foi depois designado

sucessivamente para várias comissões na Província de Mato Grosso, sendo responsável

por grande parte dos planos e plantas topográficas da área Amazônica no período.

Por outro lado, a transformação da atividade corográfica nos anos 1790-1810

também está ligada à retirada das restrições impostas pela Metrópole à tipografia, que se

176 ‘Tabuadas de longitudes e latitudes de grande parte do Brasil observadas pelos astrônomos empregados na

Demarcação’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XLV, n° 64, 1882.

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133

desenvolveria após a chegada da Corte em 1808. A divulgação das corografias textuais

escritas até a primeira década do século XIX havia sido muito restrita, sendo estas

conhecidas, no máximo, por alguns círculos militares ou administrativos. Somente com

a publicação da ‘Descrição Geográfica da Capitania de Mato Grosso’ do mesmo

Ricardo Franco de Almeida Serra, publicada no jornal ‘Patriota’, em 1813, e da

‘Corografia Brasílica’, em 1817, é que essas obras teriam uma circulação maior e

alcançariam um público menos restrito.

Estas duas obras seguiriam caminhos bastante diferentes durante o século XIX: a

obra de Serra não apresentou muita repercussão na época de seu lançamento, mas

exerceu uma influência capital e muitas vezes silenciosa sobre as corografias textuais e

a cartografia do o século XIX, especialmente no período de 1830-1850, enquanto que a

‘Corografia’ de Manoel Aires de Casal, obra dedicada a D. João VI e incentivada por

este, ainda que fosse bastante citada como fonte de autoridade, perderia gradativamente

seu prestígio intelectual quando a centralização do estado e a constituição de uma

narrativa das fronteiras imporiam novas estruturas às Descrições a partir da metade do

século XIX.177

Isto se daria por conta da obra de Manoel Aires de Casal defender uma

divisão administrativa considerada depois inadequada e especialmente porque esse autor

ratifica explicitamente a narrativa do setecentos através da narração de seus limites.

Somente durante o Governo Vargas a ‘Corografia Brasílica’ recuperaria seu

prestígio, por conta do sentido que lhe foi emprestado pela construção historiográfica do

Estado Novo e pelo prefácio de Caio Prado Júnior.178

Então aquela obra seria celebrada

como fundadora da corografia brasileira, por conta de abranger um espaço que poderia

ser definido como nacional e divulgadora da “Carta de Caminha, verdadeira certidão do

nascimento do Brasil”.179

O IHGB e as condições de elaboração da narrativa

Explicada, a partir das transformações da corografia nos séculos precedentes, a

consolidação no Brasil de diversos modelos corográficos na segunda metade do

177 Veja-se, por exemplo, a opinião de Henrique de Beaurepaire Rohan, Estudos acerca da organização da Carta

Geográfica e da História física e política do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877, p. 20-22.

178 O prefácio de Caio Prado Júnior encontra-se junto a edição de 1945, feita pelo Instituto Nacional do Livro.

179 E. Vilhena de Moraes, ‘Nota Liminar’ in Catálogo dos mapas existentes na Biblioteca do Arquivo Nacional -

Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre geografia e cartografia realizada no Rio de

Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944, p. 4.;

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134

setecentos, procuraremos concatená-los com a constituição de uma narrativa através do

‘saber sobre o espaço’, discernindo as condições de sua elaboração e inscrição no

IHGB.

Nesse sentido, ao contrário do que se poderia supor, as corografias textuais do

século XVIII foram mais influentes no século XIX do que as escritas no mesmo século

e dois fatores interligados explicam essa tendência: a já citada difusão da tipografia e o

aumento, no período, do interesse a respeito do espaço nacional.

Este último fator estaria ligado a duas influências bem marcadas: em primeiro

lugar, a condução do processo da política externa no Primeiro Reinado que se refletiria

na composição das elites políticas e na construção de certas imagens do espaço,

problemas que trataremos no capítulo posterior, e, em segundo lugar, a criação posterior

do IHGB como parte de um projeto das mesmas elites que visava forjar a Nação. Neste

contexto, já bem estudado por vários autores, o IHGB se tornaria não apenas uma

instituição destinada a arregimentar o material destinado à construção histórica da

Nação, mas também, um lugar de reunião e debate que possuía na sua Revista um

importante instrumento de divulgação.

A centralidade da Revista do IHGB na atividade de criação das corografias

textuais do século XIX é instituída na medida que se constitui no Instituto uma

narrativa a partir do ‘saber sobre o espaço’ que pode ser interpretado através de uma

leitura sobre a teorização do crítico literário Harold Bloom, por sua vez elaborada a

partir de Jacques Derrida e Sigmund Freud.

Para Bloom, a ‘Cena da Escritura’ é entendida como o ato criador, do qual se

originaria a ‘Cena Primária’, definida como uma performance, uma “ficção fantástica”,

dependendo estas, fundamentalmente, de um ato anterior, uma ‘Cena de Instrução’ “que

necessariamente é também uma cena de autoridade e prioridade”, origem do processo

de apropriação poética que chamaria de ‘angústia da influência’.180

Em nossa análise da constituição de uma narrativa através do ‘saber sobre o

espaço’, divergiremos já da teorização de Bloom nos seguintes pontos: em vez de

entendermos a ‘influência’ ou a ‘angústia da influência’ como um ato de releitura,

transcendência e transgressão sobre uma continuidade arbitrária e inescapável,

entenderemos a ‘Cena da Escritura’ como a procura da afirmação sobre um Cânone

sempre em construção e permanentemente renovado, o que torna a ‘Cena de Instrução’

180 Harold Bloom, Um Mapa da Desleitura. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1995, p. 42-51.

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135

uma interpretação criativa que busca sobre uma autoridade sempre renovada a

legitimação de sua escrita.

Nesse sentido, se novamente nos referirmos à contribuição de Derrida, esses atos

de releitura participariam, eles mesmos, de um processo contínuo e difuso de escolhas,

de aceitação e da incorporação de códigos e sinais que esse autor explica, utilizando a

referência da teoria freudiana, através do mecanismo inscrição — interpretação —

escritura,181

que, no contexto da ‘Cena Primária’ seria remetido por Bloom à

confirmação pela imaginação, interpretada então como desprovida de referencial ou

significado.

Entretanto, em nossa análise, a ‘Cena Primária’, construída na ‘Cena de

Instrução’, estaria mais relacionada à elaboração do Cânone e a um processo contínuo,

transformador mas recorrente, uma reelaboração contínua ligada às ‘relações de

soberania’, que, inicialmente, possuiria a narração do setecentos como um elemento

referencial. Divergiríamos novamente de Bloom, ao considerar a ‘Cena Primária’ como

também sendo constantemente reelaborada, num processo onde se busca a legitimação

sobre o prestígio universal dos princípios, ou seja, segundo a teorização de Mirceia

Eliade, pela construção do Mito.182

Assim, a Escrita, definida por Derrida no contexto da interpretação dos sonhos

de Freud como o produto de uma “cadeia significante de forma cênica”,183

será

entendida, no caso, como um ato também coletivo e do qual as platéias incorporadas aos

atos de releitura também já participariam: a “Cena de Instrução” deixaria de ser

unicamente um ato necessário e originário para se tornar também um elemento da

vontade e de escolha, uma inscrição deliberada que compõe integralmente a “Cena da

Escritura”.

Portanto, em nossa análise, a idéia do Cânone não seria estritamente àquela da

filologia alexandrina, ou seja, de um corpo literário rígido e ordenado, mas a de um

conjunto em transitoriedade e processo, onde a idéia do classicus remonta não a padrões

de origem, mas de finalidade e que participa de um ou mais ‘teatros’ de produção e

interpretação.

181 Jacques Derrida, ‘Freud e a Cena da Escritura’, in A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.

182 Ver nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.

183 Jacques Derrida, ‘Freud e a Cena da Escritura’, in A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002,

p. 210.

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136

Aproximando novamente nossa análise com a teorização de Bloom, entendemos

que a idéia de ‘Cena’ (enquanto um cenário ou lugar onde a ação “ocorre ou é

encenada”)184

pode ser ampliada o suficiente para abranger todo o processo de

construção do espaço, uma vez que este possuirá no século XIX diversas ramificações e

imbricações, utilizando, doravante, a idéia de teatros da narrativa, para coletivamente

designar a escrita, a produção e as relações e inter-relações poéticas.

Nesse sentido, a idéia de uma ‘influência’ na produção da corografia textual no

IHGB estaria mais ligada àquilo que Burckhardt sugeria a respeito do século XIX: em

vez das relações entre “a grandeza e o infinito” sugeridas por Bloom, a prisão e a

privação nas rodas da “máquina encantada” do oitocentos:185

a narrativa é uma

produção, uma inscrição das ‘relações de soberania’.

No caso do Instituto, a elaboração e a editoria da Revista do IHGB

corresponderiam a uma parcela do processo de produção que surgiria já com a fundação

desse instituto e a partir de exercício que seria consubstanciado pela apresentação e

discussão dos textos de seus sócios nas sessões periódicas. Estes textos produziriam

respostas ou anseios que, por sua vez, seriam catalisados através da busca de corografias

e de sua publicação na ‘Revista’, consolidando-se a argumentação por referirem-se às

necessidades verificadas na discussão ou ainda, que apontavam o direcionamento

destas.

Por sua vez, estes novos classicus incrementariam a discussão e remeteriam à

novos textos que, por sua vez, remeteriam a uma nova busca de textos e sua publicação,

consagrando outros classicus, e estabelecendo no IHGB um ‘Debate’ que incrementaria

uma dinâmica do processo de produção da narrativa. Este conjunto de práticas e usos

centralizado no IHGB, mas, participante do teatro da narrativa, será denominado,

doravante, de regime da narrativa.

Novamente, para comparar nossa idéia à ‘angústia da influência’ de Bloom,

remetemos à percepção do Fausto por Burckhardt, que, no caso, entendia a importância

do classicus como originador de um impulso, em direção a uma verdade, na realidade

impossível de ser encontrada. Para Bloom, a recusa da instrução é também uma recusa

da autoridade e prioridade, com a rejeição absoluta dos pais engendrando uma versão

tardia destes, entretanto, como entendemos que o classicus na produção corográfica do

184 Harold Bloom, Um Mapa da Desleitura. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1995, p. 58.

185 ‘Carta para Albert Brenner’ in Jacob Burckhardt, Cartas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 225-230

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137

IHGB é também parte de um processo de inscrição das ‘relações de soberania’ e de sua

reelaboração através da narrativa, o ato de releitura confunde-se na própria ‘Cena da

Escritura’, como pode ser exemplificado pela observação de Burckhardt, em relação ao

mesmo Fausto: “qualquer um que tenha lidado com alegorias por tanto tempo quanto

ele torna-se inevitavelmente, ele próprio uma alegoria”.186

Novamente retomando nossa descrição do regime da narrativa, na medida em

que o poder decisório do IHGB foi centralizado, numa feição ancien régime, nas mãos

do Secretário Geral,187

a publicação das corografias textuais do século XVIII não era

apenas parte das atividades do Instituto mas também uma fonte de consolidação da sua

autoridade e um elemento estimulador do debate, uma vez que influenciavam discussões

que por sua vez influenciavam outras publicações numa continuidade guiada pela

referenciação originária.

A publicação das corografias textuais do século XVIII gerariam uma atividade

corográfica que seguiria seus modelos e que se orientaria em parte por seus métodos,

estabelecendo-se assim uma convivência entre antigos e modernos modelos e métodos

corográficos que amoldar-se-iam na narrativa. Este amálgama poderia ser

exemplificado pela presença, nas corografias, de citações de coordenadas tiradas através

das distâncias junto às modernas coordenadas astronômicas e, inclusive, pela utilização

em de medições de longitudes e latitudes feitas pelos Demarcadores dos Tratados do

século XVIII quando sabia-se que era comum existirem, mesmo nas medidas de

latitude, diferenças de até 10 graus.

Portanto, tanto a investigação das origens quanto o estudo das finalidades da

publicação das corografias na Revista do IHGB compõem um mesmo processo, o

regime da narrativa, que deve ser investigado para que se entendam as condições de

elaboração da narrativa e, consequentemente, a construção do espaço nacional.

O interesse pelo espaço nacional e o conseqüente esforço de publicação das

corografias do século XVIII ainda extrapolaria o IHGB, como no caso do Diário do

astrônomo da Partida de 1786 Francisco José de Lacerda, que foi publicado em 1841

por determinação da Assembléia Legislativa de São Paulo. Esta problematização do

espaço através das corografias seria grandemente influenciada em suas origens pelas

186 ‘Carta para Albert Brenner’ in Jacob Burckhardt, Cartas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003, p.230 -232.

187 Manoel Luiz Salgado Guimarães, ‘Reinventando a Tradição: sobre Antiquariado e escrita da História’, in

Humanas, Porto Alegre, 23, ½, 2000, p. 129.

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indefinições em relação a uma construção da história pátria: através da discussão do

espaço se buscavam na territorialização da história as fontes para essa leitura.

Nesse sentido, em sua origem, o Debate no IHGB oscilaria tanto entre as

remissões à exploração portuguesa quanto às descrições de territórios e monumentos

imaginários capazes de fazer remontar a leitura histórica a uma origem clássica capaz de

identificá-la com suas congêneres européias. Este problema pode ser exemplificado

através da remissão às citações de três territórios e monumentos imaginários que foram

divulgados através da Revista do IHGB, alimentando o Debate e gerando investigações

e explorações, no caso, a ‘Cidade Abandonada’ no sertão da Bahia, os ‘Martírios’ no

sertão de Goiás e as ‘Inscrições da Pedra da Gávea’.

No caso da ‘Cidade Abandonada’, a Revista do IHGB seria diretamente

responsável por emprestar legitimidade a esse território imaginário, relacionando-o a

fatos históricos autênticos e a documentos descobertos por seus próprios membros.

Esses relatos seriam divulgados na ‘Revista’ e descreveriam uma cidade com uma

arquitetura tipicamente romana, com arcos, estátuas, um templo e vestígios de sua

cultura, como moedas, espadas, etc.188

Esta idéia da sobrevivência clássica no Sertão brasileiro estava associada a duas

representações: a velha idéia da Manoa, ou seja, um ‘território da opulência do ouro’,

como também a nova idéia do ‘mistério paleográfico’, ou seja, a existência de escritos

não decifrados que conteriam a chave de uma antigüidade a identificar.

A busca da ‘Cidade Abandonada’ drenaria recursos e esforços tanto do Governo

quanto do IHGB por, pelo menos, dez anos, sendo que o Instituto destacaria um de seus

sócios, José de Carvalho Benigno, para esta tarefa.189

Já o território imaginado dos ‘Martírios’ surgiria como um subproduto da

publicação das corografias do século XVIII onde aquela região era bastante citada e

sempre em relação à antigos relatos de Bandeirantes. Duas versões diferentes foram

apresentadas então no IHGB: na primeira, supostamente havia sido identificado um sítio

onde estranhas figuras de pedra lembrariam os sinais do martírio de Cristo, enquanto

188 Januário da Cunha Barbosa, ‘Relação histórica de uma oculta e grande povoação antiquíssima, sem moradores,

que se descobriu no ano de 1753, nos Sertões do Brasil; copiada de um manuscrito da Biblioteca Pública do Rio de

Janeiro’, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo I, n° 2, 1839.

189 Ainda em 1849 Benigno se reportava ao IHGB indicando a possibilidade da existência da ‘Cidade Abandonada’ e

relacionando-a com outros mitos semelhantes como o de Moribeca. José de Carvalho Benigno, ‘Breve Notícia

Sobre as Minas Descobertas no Assuruá, na Província da Bahia’, in Revista Do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, tomo XII, n° 16, 1849.

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que na segunda, os sinais do suplício de Jesus estariam diretamente representados em

gravuras rupestres, as quais estariam rodeadas por estranhos monumentos de pedra.

Em ambas as versões, os ‘Martírios’ marcavam a existência de uma rica lavra de

ouro nos sertões de Goiás, portanto, havendo, novamente, uma associação do ‘mistério

paleográfico’ com a idéia de um ‘território da opulência do ouro’.

Por último, também debater-se-ia no IHGB a notícia da existência de inscrições

semelhantes à escrita fenícia na Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro, as quais poderiam

atestar o desembarque num passado remoto de indivíduos daquela civilização no Brasil.

Este debate motivaria o envio de uma expedição ao local que acabaria não excluindo

completamente a possibilidade de um desembarque fenício, mas indicando a maior

probabilidade das formas engastadas na rocha haverem sido causadas pelos fenômenos

da natureza.

Portanto, a discussão do espaço no IHGB remeteu-se, a princípio, à discussão

mesma da origem histórica através de seu remetimento a um ‘mito fundador’, o qual iria

se desenvolver gradualmente através de um processo cuja finalidade era a definição de

um espaço nacional e que foi deslanchado pelo chamado Programa Geográfico, de

autoria do primeiro presidente do IHGB, José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde

de São Leopoldo:

Quando o Brasil aparece em notória crise; quando por todos os lados

é comprimido, e estreitado em fôrma de bronze, e os escritores do dia

provocam e desafiam os literatos para que instruam o Público, ávido de

conhecer os títulos da sua propriedade; o Instituto Histórico e Geográfico do

Brasil há de cruzar os braços, com indiferença e insensibilidade?190

Assim sendo, o Programa Geográfico se constituiu explicitamente sobre duas

premissas: o desconhecimento do território por parte das elites políticas e a percepção

de um refluxo do espaço nacional por conta da expansão dos espaços circundantes.

A percepção de que a Pátria estaria sendo envolvida e sitiada foi derivada em

grande parte das idéias e das discussões das relações externas realizadas pela elite

política, cujas circunstâncias serão debatidas no próximo capítulo. Quanto a questão do

desconhecimento, esta estava conectada ao problema mesmo da construção histórica e

190 Visconde de São Leopoldo, ‘Programa Geográfico - Quais são os limites naturais, pacteados e necessários do

Império do Brasil?’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, tomo 105 parte I, 1902.

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se definiria paulatinamente por uma associação do ‘mito fundador’ com a construção da

narrativa do espaço nacional, através dos esforços e iniciativas realizados pela

Metrópole na América portuguesa, associação esta que terá como fio condutor as

corografias textuais.

Portanto, a publicação das corografias textuais na ‘Revista do IHGB’

problematizaria a questão do espaço num processo que também visava definir a

construção histórica.

Nesse processo, o resgate das corografias textuais do século XVIII possibilitou

duas construções diferentes: primeiramente, a associação do espaço imaginado com

uma origem remota embasada na antiga presença humana no território, cuja

historicidade pudesse ser remontada e atribuída. Em segundo lugar, o aperfeiçoamento

de um modelo que designaria a finalidade do processo, a idéia da filiação a uma

civilização européia idealizada, a partir da qual se produziam as corografias textuais.

O Debate sobre estas construções seria incentivado pelas diretrizes do próprio

IHGB, que indicavam o conteúdo e a forma das informações geográficas que seus

sócios deveriam remeter. A geografia estava, por conseguinte, associada à história, mas,

segundo a utilização de uma espécie narrativa já consagrada, a corografia, e que era

considerada capaz de oferecer a disponibilização de certos elementos essenciais da

construção da nova presença humana:

Notícia circunstanciada da extensão da Província, de sua

confrontação com outras, de sua divisão em comarcas, da direção de

seus rios, e montanhas, da qualidade de seus terrenos, e de seus

arvoredos, da sua mineração, agricultura, e pescarias, de tudo enfim que

possa servir à história geográfica do país, e com a possível exatidão e

clareza.191

Portanto, a problematização do espaço que se iniciou com o Programa

Geográfico consagraria tanto a forma das corografias textuais do setecentos quanto a

remissão das corografias do século XIX a uma construção histórica do território

191 Januário da Cunha Barbosa, ‘Lembrança do que devem procurar nas Províncias os sócios do Instituto Histórico

Brasileiro, para remeterem à sociedade central do Rio de Janeiro’, Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, tomo I, n° 1, 1844.

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nacional através da monumentalização da presença do colonizador, afastando-se

paulatinamente o tema dos territórios imaginários do centro do debate.

Esta problematização prosseguiria através do debate propiciado pelas Breves

Anotações de Manoel José Maria da Costa e Sá192

e da Resposta às Breves Anotações

do Visconde de São Leopoldo. Através destas obras, tanto foi apontado o escopo

histórico e narrativo da monumentalização como também se estabeleceu um Cânone das

obras essenciais ao debate do espaço nacional, composto pelos atos diplomáticos dos

séculos XVII e XVIII, pelos comentários e críticas aos Tratados e pelas corografias

textuais do período, dentre as quais se tornariam bastante relevantes a Descrição

Geográfica da Capitania de Mato Grosso e as Memórias relativas ao ato de posse

realizado por Pedro Teixeira no rio do Ouro.

A publicação destas duas corografias do setecentos na ‘Revista do IHGB’,193

inauguraria o fluxo responsável por determinar a forma da produção corográfica do

século XIX, uma vez que o debate iniciado por Fernandes Pinheiro privilegiava não o

enquadramento territorial num espaço nacional, como a Corografia Brasílica de Ayres

de Casal, mas, a construção do espaço através da discussão verdadeiramente focal do

território, o que permitia tanto a problematização das questões surgida por via da

Política Externa quanto a delimitação e circunstancialização dos interesses

representados no âmbito do IHGB.

Contudo, o processo de produção e publicação das corografias textuais adquiriu

não apenas a função de elemento propiciador e instigador do debate, mas também a de

conector com aquilo que Harold Bloom chamaria de “prestígio das origens”: a idéia da

ligação com um tempo sagrado que as transformações ou as mudanças não poderiam

alterar.194

As corografias serviriam então como documentos da ligação do território com o

espaço monumentalizado e com o agente civilizador, caracterizando-se uma dicotomia

entre a nova e a antiga presença humana centrais no debate do IHGB. Esta dicotomia

192 Manoel José Maria da Costa e Sá, ‘Breves anotações à Memória que o Ex. Sr. Visconde de São Leopoldo

Escreveu Com o Título "Quais são os limites naturais, pactuados, e necessários do Império do Brasil?’, in Revista

do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105 parte I, 1902.

193 Respectivamente: Ricardo Franco de Almeida Serra, ‘Extrato da descrição geográfica da Província de Mato

Grosso, feita em 1797’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo VI, n° 22, 1844; Francisco

Xavier Ribeiro de Sampaio, ‘Extrato da viagem que em visita e correição das povoações da capitania de São José

do Rio Negro, fez o ouvidor e intendente general da mesma Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, no ano de 1774

e 1775’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo I, n° 2, 1839.

194 Harold Bloom, Um Mapa da Desleitura. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1995, p. 57.

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pode ser exemplificada pela publicação de um grande número de corografias cujo foco

central era a presença do colonizador em territórios contestados ou cuja posse não era

reconhecida ao Brasil, uma vez que estava relacionada à influência dos problemas da

política externa na década de 1840.195

A partir desses enfoques da construção e problematização do espaço gerado pelo

debate em torno do Programa Geográfico, os interesses das elites do Rio de Janeiro

puderam ser ligados aos das elites das Províncias, inclusive através de um esforço de

identificação do território: ao lado das explorações arregimentadas e apoiadas pelo

IHGB, os governos das Províncias e os particulares também passaram a organizar

expedições cujas finalidades incorporavam-se aos anseios do Instituto.

Significativamente, através da ‘Revista’ certos aspectos e exemplos dessa

articulação seriam destacados e entronizados na discussão do espaço, em especial

aqueles que possibilitavam a descrição dessas explorações enquanto missões

civilizatórias ou enquanto participando de um esforço de integração, como por exemplo,

nos Itinerários patrocinados pelo Barão de Antonina na região do Oeste paulista e nos

Campos de Guarapuava196

; na Viagem através do Araguaia incentivada pelo governo da

Província de Goiás ou no Relatório de Castelnau ao Ministério da Instrução Pública.197

195 Por exemplo, aqueles referentes à margem norte da embocadura do Amazonas, ao alto rio Branco, à Amazônia

Ocidental ou a região do rio Paraguai. Ver: Antonio Ladislau Monteiro Baena, ‘Memória sobre o intento que tem

os ingleses de Demerari de usurpar as terras a oeste do rio Repunari adjacentes à face austral da cordilheira do Rio

Branco para amplificar a sua Colônia’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo III, n° 3,

1841; Alexandre Rodrigues Ferreira, ‘Propriedade e posse das Terras do Cabo Norte pela Coroa de Portugal

deduzida dos Anais Históricos do Estado do Maranhão e de algumas Memórias e documentos por onde se acham

dispersas as suas provas’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo III, n° 3, 1842; Antonio

Pires da Silva Pontes, ‘Viagem de reconhecimento das comunicações do Brasil com a colônia holandesa Surinã’, in

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo VI, 1844; Francisco José Rodrigues Barata, ‘Diário da

viagem que fez à colônia holandesa de Surinam o Porta-bandeira da sétima companhia do regimento da cidade do

Pará, Francisco José Rodrigues Barata, pelos sertões e rios deste Estado, em diligência do Real Serviço’, in Revista

do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo 8, n° 1, 1846; Henrique de Beaurepaire Rohan, ‘Viagem de

Cuiabá ao Rio de Janeiro, Pelo Paraguai, Corrientes, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, em 1846, pelo major

Henrique Beaurepaire Rohan’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo IX, n° 7, 1847;

Manoel Joaquim de Abreu, ‘Diário roteiro da diligência de que foi encarregado em 1791 Manoel Joaquim de

Abreu, ajudante da praça de Macapá, por ordem do Governador e Capitão General do Estado’, in Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XI, n° 11, 1848.

196 John Henrique Elliot, ‘Resumo do itinerário de uma viagem exploradora pelos rios Verde, Itareré, Paranapanema,

e seus afluentes, pelo Paraná, Ivary e sertões adjacentes, empreendida por ordem do Ex. Sr. Barão de Antonina’, in

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo IX, n° 5, 1847; João Henrique Elliot, ‘Itinerário das

viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão de Antonina para descobrir uma via de comunicação entre o

porto da vila de Antonina e o Baixo Paraguai na Província de Mato Grosso: feitas nos anos de 1844 a 1847 pelo

sertanista o Sr. Joaquim Francisco Lopes, e descritas pelo Sr. João Henrique Elliot’, in Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro tomo X, n° 10, 1848.

197 F. de Castelnau, ‘Relatório dirigido ao Ministro de Instrução Pública pelo Sr. Castelnau, encarregado de uma

comissão na América Meridional’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo VII, n° 26, 1845;

Rufino Theotônio Segurado, ‘Viagem de Goiás ao Pará’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

tomo X, n° 10, 1848.

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O esforço das elites provinciais incorporaria ainda ao Programa Geográfico uma

produção local incipiente que havia surgido através da inspiração proporcionada pela

Corografia Brasílica e que havia se encaixado no modelo corográfico textual das

Descrições, ainda que tendo restringido sua escala e objetos aos interesses da

administração regional.198

Portanto, constituiu-se paulatinamente um ‘saber sobre o espaço’ obtido por

diferentes vias e por diferentes meios, cujo alcance e adequação aos anseios do IHGB

seria reconhecido pela consolidação de um Cânone de obras essenciais, pela integração

do somatório das contribuições regionais, pela divulgação de um número significativo

de textos pouco conhecidos ou pelo incentivo e publicação de novas produções. Este

‘saber sobre o espaço’, continuamente depurado, transformado e legitimado no debate

do IHGB, foi utilizado para pautar decisões de política interna e externa, e transposto

em sucessivas representações cartográficas.

Entretanto, para que fosse possível representar graficamente a discussão travada

no âmbito do IHGB, por conta da incerteza sobre o espaço, seria necessário que esta

representação do espaço nacional não se constituísse através da nova Estética

cartográfica que se consolidou no século XVIII, mas, segundo a concepção

renascentista da geografia ptolemaica. Neste sentido, a centralidade do Programa

Geográfico e, consequentemente, do projeto do IHGB na discussão do espaço nacional,

tornou possível o amálgama daquela concepção com as novas técnicas de projeção e

impressão reunindo e legitimando o ‘saber sobre o espaço’ neste processo. Este

amálgama seria transformado no conhecimento cartográfico de facto, criando-se, por

conseguinte, uma tensão pela convivência forçada entre as concepções ptolemaicas e a

nova Estética cartográfica a qual doravante incorporar-se-ia à cartografia brasileira.

A cartografia do território brasileiro no século XIX seria, portanto, a

representação gráfica de um espaço nacional continuamente em construção no Debate,

num processo que seria desenvolvido, delineado e transformado pelo senso de

oportunidade política de uma elite que sucessivamente se imaginava e se descrevia no

território, inscrevendo um espaço moldado pelos seus interesses.

Assim, o registro corográfico e cartográfico do espaço nacional poderia ser

definido como uma ‘descrição do contemplador’ que refletia, infletia e projetava seu

198 Por exemplo: Raimundo José da Cunha Matos, ‘Corografia histórica da Província de Minas Gerais’, 1833. IHGB,

1.4.8; Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva, Corografia paraense ou descrição física, histórica e política da

Província do Grão-Pará. Salvador: Typografia do Diário, 1833.

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espaço imaginado, num subversão das construções anteriores e da nova Estética

cartográfica, o que permitiria, mesmo, que um dos membros dessa elite pudesse, bem

mais tarde, observar ter “construído o mapa do Brasil”.199

Para que essa inscrição pudesse ser bem sucedida, foi necessário que alguns

elementos da ‘gramática da visão’ dessa elite constituíssem também o ‘saber sobre o

espaço’ reunido no IHGB. O primeiro, percebido elaborado desde o enfoque das

corografias textuais em territórios restritos; segundo, desde a influência dos modelos da

corografia gráfica sobre a corografia textual; terceiro, desde a sobrevivência de uma

forma especial da corografia oral e textual do setecentos: o mapa literário.

O enfoque das corografias textuais do século XVIII num território restrito se deu

por conta tanto de uma construção descentralizada do espaço na América portuguesa,

como já foi visto noutro capítulo200

e se transmitiu como modelo às corografias do

século XIX por conta das características inerentes às discussões do espaço no IHGB.

Assim, seria no embate entre o anacronismo do modelo de espaço do setecentos e os

interesses e problemas políticos do oitocentos que a influência dos modelos da

corografia gráfica, sobretudo o Plano e o Plano Perspectivo, se faria sentir

sucessivamente sobre os modelos da corografia textual, especialmente os Roteiros e os

Itinerários.

A relação do Plano com aqueles dois modelos da corografia textual se verifica

mesmo a partir de suas características narrativas: como os Roteiros e os Itinerários eram

narrações da penetração ou passagem pelo território através das vias navegáveis, o

deslocamento da perspectiva nestes se fazia numa contraposição entre o

congestionamento do centro e a profundidade do Vazio. Esta relação seria conjugada

com uma dinâmica da colonização, onde a descrição do deslocamento se sobrepunha a

da ocupação, objetivando-se na narração como uma estrutura que opunha a

impenetrabilidade e o mistério do interior com a fluidez e a personalidade dos caminhos

navegáveis. Na verdade, o Sertão somente começaria a ser descrito na medida em que

essa dinâmica do deslocamento fosse substituída pelos interesses da organização do

território e da inclusão civilizatória, fossem estes provenientes do Estado ou de

particulares.

199 Barão do Rio Branco, Efemérides Brasileiras. Brasília: Senado Federal, 1999, p. XV.

200 Ver nesta tese o capítulo ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’.

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Antes do estabelecimento de Miranda, que deu ocasião de se

reconhecerem estes terrenos, se supunha, pela perspectiva que oferece a

navegação do Paraguai, que entre este rio e o Paraná corria de norte a sul

uma unida e extensa cordilheira de serras, chamadas de Amambaí, de cujos

montes nasciam os diversos e opostos braços daqueles rios: mas agora se

conhece que estes sólidos montuosos, que gradualmente se elevam, são

todos interrompidos por largos campos denominados da Vacaria [...].201

A influência do Plano foi sendo substituída pela do Plano Perspectivo, na

medida em que também a dinâmica de reconhecimento das comunicações fosse

substituída pelo estabelecimento no território, sendo este qualificado, abrangido,

absorvido pela vista e pela compreensão. Nesse deslocamento do Plano para o Plano

Perspectivo estava ainda compreendida uma estratégia de monumentalização da antiga

posse através da exortação da antiga presença humana, reconhecida na figura do

colonizador: seus atos, propósitos e sacrifícios pessoais garantiriam a integração do

território ao novo espaço, sendo este processo qualificado enquanto a recuperação e

refundação do antigo.

Esta passagem na estrutura narrativa das corografias de uma exortação da antiga

presença humana para a tipificação da nova presença humana, como civilizadora e

ordenadora, consagrar-se-ia nas Memórias e Descrições. Este deslocamento aconteceu

na medida que se tornava necessário estabelecer um conhecimento totalizante que

ultrapassasse as diferentes aproximações de escala representadas pelos Roteiros e

Itinerários e que ao mesmo tempo permitisse inibir os lapsos entre estes.

Deste modo, se construiu paulatinamente pela influência da perspectivação do

Panorama uma intuição sobre as Memórias e Descrições que passou a orientar uma

intelecção do território totalizado através da narrativa de sua penetração e ocupação.

Nesta intelecção a presença humana assumia o controle das disposições e das

qualificações dos elementos que passaram a compor o conjunto. Com isto, o território e

seus elementos deixaram de centralizar a narração e tornar-se-iam uma unidade dentre

outras unidades, descortinadas, desenvolvidas e aglutinadas a partir da experiência e do

conhecimento adquirido pela presença humana.

201 Ricardo Franco de Almeida Serra, ‘Memória ou informação dada ao Governo sobre a Capitania de Mato Grosso,

por Ricardo Franco de Almeida Serra, Tenente Coronel Engenheiro em 31 de Janeiro de 1800’, in Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo II, n° 5, 1841, p. 35-36.

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Já o Mapa Literário (ver Figura 19) se desenvolveria no século XVIII através da

influência do Panorama numa forma limítrofe entre a corografia textual e a cartografia e

possuía suas origens e divulgação na oralidade, sendo algumas vezes inscrito na forma

literária e podendo ser descrito como uma descrição panorâmica de uma intuição da

presença humana sobre uma unidade territorial. Deste modo, a divulgação do ‘mapa

literário’ permitiu a circulação de uma idéia unitária do espaço brasileiro e de um

território a este atribuído, especialmente entre as elites administrativas e letradas. Este

modelo corográfico foi resgatado para a ‘linguagem do espaço’ por José Feliciano

Fernandes Pinheiro, ajudando a consolidar, junto às demais corografias, o debate do

espaço nacional no IHGB.

O mapa literário e a intelecção de um espaço unitário

A tradição da produção e divulgação de registros oralizados do espaço deita

raízes na produção cartográfica medieval européia, uma vez que, ainda que houvesse

um grande interesse na confecção dos mapas-múndi na Idade Média, houve

pouquíssimos esforços para se produzir mapas locais na Europa até 1300.202

Enquanto que a produção do mapa-múndi na Idade Média possa ser entendida

enquanto uma forma de representação da ideologia religiosa e de significação do

Cristianismo em relação ao resto do Ecúmeno, a representação do local foi abastecida

por uma teia de interesses que se confrontaram e se misturaram demonstrando sua

diferenciação através de estruturas organizativas da narração, do léxico e da gramática,

que definiremos melhor no próximo capítulo. Aliás, a representação gráfica dos mapas

locais na Europa estará diretamente ligada a ascensão do poder central e das suas

necessidades de taxação: enquanto os poderes centrais não se sobreporem a um poder

descentralizado e muitas vezes difuso, a forma não-gráfica dos mapas continuará sendo

praticamente a única forma de representação do espaço local.

Os formae, instrumentos cadastrais dos Romanos, foram os predecessores dessas

representações medievais, uma vez que aglutinavam na mesma forma, certos elementos

gráficos, como os principais rios e a delineação das propriedades e uma extensa

202 Daniel Lord Smail, Imaginary Cartographies: Possession and Identitiy in Late Medieval Marseille. Ithaca: Cornell

University Press, 2000, p. 1-2.

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147

descrição literária dos registros das propriedades.203

Progressivamente, em função da

dinamicidade das transformações do espaço, os elementos gráficos passaram a

coadjuvar os elementos oralizados, fazendo com que, especialmente nas cidades, os

mapas fossem compostos apenas em sua forma literária.

Ainda, na Europa medieval não existiu um modelo único de ‘mapa literário’,

mas várias formas de representação literária, cada uma destas conectada a um diferente

grupo e a seus interesses, havendo a convivência, por exemplo, de ‘mapas literários’

compostos por artesãos, comerciantes ou grandes proprietários, que se distinguiam e se

faziam distinguir a partir dessa representação do espaço local. Assim, seria mais correto,

conforme constata Daniel Smail na sua pesquisa sobre os mapas oralizados da cidade de

Marselha, atribuir a estas formas, em certos casos, a designação de ‘mapas lingüísticos’,

uma vez que seus termos estão conectados ao uso e às necessidades de seus

operadores.204

Por conseguinte, a idéia de representação cartográfica que se estabeleceu na

Europa durante a Idade Média era plural e não singular, construída através de um

conjunto de significações que denotavam idéias, conceitos e hierarquias, e que

possibilitaram na escala local a ordenação e a coesão de um determinado grupo, pelo

controle da posse, pela manutenção da efetividade das transações e pela orientação

desse grupo em relação a seu próprio universo lingüístico.

Assim, o ‘mapa lingüístico’ foi composto através do exercício de conceitos e

padrões inteligíveis para o grupo, onde, por exemplo, a localização se estabelecia

através da triangulação entre pontos notáveis que se fizeram, ou foram feitos

importantes pelo uso e divulgação no trato cotidiano. Por conseguinte, os marcos dos

‘mapas lingüísticos’ eram, ao mesmo tempo, marcos da sociabilidade do grupo e os

monumentos da edificação dessa comunidade que se consolidariam através de uma

construção do espaço diretamente ligada à experimentação do território.

No caso do Brasil, antecedendo a construção do espaço nacional no século XIX,

os ‘mapas literários’ expressaram mais as idéias de um espaço brasileiro unitário,

enformado pela experimentação do território e divulgado pelas necessidades das elites

203 Norman J. W. Thrower, Maps and Civilization: Cartography in Culture and Society. Chicago: The University of

Chicago Press, 1999, p. 23-25.

204 Daniel Lord Smail, Imaginary Cartographies: Possession and Identitiy in Late Medieval Marseille. Ithaca: Cornell

University Press, 2000, Introduction.

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148

administrativas, já que este não podia ser ainda convincentemente descrito através da

representação gráfica.

Estes mapas, eram mais propriamente Panoramas capazes de reunir

sucintamente certas informações pertinentes ao fluxo comercial geral ou administrativo

através da remissão aos demais modelos corográficos. Assim, poucas eram as citações

sobre os territórios eram apenas de natureza geral, e mesmo estas se faziam sempre a

partir de sua relação com uma presença humana então enfatizada pela fruição, pelo

deslocamento ou pela relação com um status jurídico. Neste último caso, representavam

ainda uma intelecção do circuito descritivo do espaço da América portuguesa em sua

vinculação à argumentação qualitativa e da nulidade dos tratados, no caso, configurada

na narrativa do setecentos.

Na realidade o espaço descrito nos mapas literários era múltiplo e desigual: não

apresentava contornos definidos, mas apenas padrões que eram estabelecidos por certos

marcos privilegiados e reconhecíveis, emprestados dos demais modelos corográficos e

que se distinguiam por sua relevância e em oposição absoluta com o Sertão. Assim,

apesar de ser um território identificado no espaço pelos Roteiros e Itinerários, o Sertão

se distinguia nos mapas literários por sua presença e ausência simultâneas: compunha o

espaço mas não participava de sua descrição uma vez que nele a presença humana ainda

não havia se manifestado através de uma vivificação reconhecida pelo cartógrafo.205

Os poucos exemplares dos mapas literários do século XVIII que sobreviveram

até hoje, mostram uma continuidade de conteúdo e de forma que pode ter sido

assegurada pela transmissão oral nos espaços de sociabilidade e pelo fato do

conhecimento corográfico fazer parte do repertório de socialização da elite letrada.

Nesse sentido, é exemplar o relato do encontro em 1762 entre o Bispo do Pará D. João

de S. José com o Sargento-mor João de Azeredo e Souza: o conhecimento corográfico

confere a João de Souza uma distinção social e uma autoridade que é reconhecida pelo

religioso e que se torna central na conversação entre ambos, introduzindo interesses e

afinidades na convivência entre esses indivíduos e seus agregados. Do mesmo modo é

205 ‘Carta de João de Souza e Azeredo à Corte’, in Conselho Ultramarino, Papéis Vários, Tomo I, 1752. IHGB

1. 2. 9:1752; ‘Notícias dos títulos do Estado do Brasil e seus limites austrais e setentrionais até o ano de 1765’,

1/02/1767 in IHGB, Lata 29, Pasta 3; ‘Discussão histórica e jurídica sobre os limites do Brasil contra as pretensões

dos Castelhanos por um parente de Alexandre de Gusmão’, 1767 in IHGB, Lata 50 Pasta 7; ‘Notícia sobre a

demarcação de limites entre as possessões portuguesas e espanholas: Bula de Alexandre VI’, c. 1780 in IHGB,

Lata 356, pasta 14; Luís dos Santos Vilhena, Pensamentos políticos sobre a Colônia, Rio de Janeiro: Arquivo

Nacional, 1987.

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149

possível verificar que ambos discutiam, relatavam e avaliavam em relação a outros

conteúdos os seus próprios ‘mapas literários’ do Brasil.206

Portanto, a idéia do território brasileiro enformado num espaço unitário persistiu

no século XIX através do modelo dos ‘mapas literários’, embora a partir de uma

composição diferente: oriundos do debate no IHGB e influenciados pela sua produção e

publicação, esta composição se diferenciaria dos mapas literários do século XVIII pela

identificação pormenorizada dos territórios, os quais passariam a bordejar e identificar

os contornos do espaço nacional.

Assim, através do debate, as corografias do século XVIII se constituiriam como

elementos construtores do território: seria através delas que preencher-se-iam os vazios

do espaço nacional e instituir-se-iam seus Marcos.

Os Marcos seriam constituídos através da seleção de certos elementos

dramáticos das narrativas corográficas, um material escolhido por sua capacidade de

sintetizar a antiga experimentação do território e, ao mesmo tempo, amalgamar num

todo reconhecível os diferentes territórios reunidos através do ‘mapa literário’.

A refundação, a recuperação, a defesa e o heroísmo seriam algumas das

características que territorializariam os Marcos sobre o Mapa: os Marcos foram

constituídos como decalques dos códigos e das normas de socialização dos participantes

dos debates no IHGB, fossem estes políticos, militares ou diplomatas.

Com efeito, os novos mapas literários seriam compostos segundo as percepções

e interesses desses grupos e todos estes estariam sujeitos às influências recíprocas e às

leituras conjuntas propiciadas pelo processo do debate. Como característica desse

processo, todos os mapas literários do século XIX remeteriam às mesmas fontes, às

corografias textuais, e a Marcos semelhantes, divergindo entre si no detalhe e nas

circunstâncias da apresentação. Por exemplo, no que tange ao espaço central, as

corografias de Ricardo Franco de Almeida Serra207

são a base de todos aqueles textos,

206 Veja-se, por exemplo, a descrição do encontro do Bispo D. João e do frade Fonseca com João de Souza Azeredo.

João de S. José, ‘Viagem e visita do Sertão em o Bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763’, in Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro tomo IX, n° 5, 1847, p. 81-83.

207 Ricardo Franco de Almeida Serra, ‘Extrato da descrição geográfica da Província de Mato Grosso, feita em 1797’,

in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo VI, n° 22, 1844; Ricardo Franco de Almeida Serra,

‘Mato Grosso. Navegação do rio Tapajós para o Pará pelo Ten. C.el. Ricardo Franco de Almeida Serra, escrita em

1799, sendo Governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro’, Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro tomo IX, n° 5, 1847; Ricardo Franco de Almeida Serra, ‘Memória ou informação dada ao Governo

sobre a Capitania de Mato Grosso, por Ricardo Franco de Almeida Serra, Tenente Coronel Engenheiro em 31 de

Janeiro de 1800’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo II, n° 5, 1841.

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150

portanto, os Marcos e o espaço nacional construídos pelos mapas literários do século

XIX são bastante convergentes, embora expliquem essas opções diferentemente.

Assim, consolida-se um processo que vai ser utilizado na representação do

espaço nacional brasileiro através das Cartas Gerais do século XIX. Estas foram

baseadas nos Marcos instituídos pelos mapas literários, os quais, por sua vez, foram

pinçados das corografias textuais reunidas e patrocinadas pelo IHGB, o que eqüivale a

dizer que se possibilitou a composição das Cartas Gerais como mapas abertos,

desmontáveis e passíveis de serem reconstruídos e modificados: as Cartas Gerais foram

o espelho gráfico dos ‘mapas lingüísticos’ do século XIX, nelas está inscrita a episteme

da sociedade brasileira.

Portanto, se os mapas literários do século XVIII foram capazes de transmitir ao

século XIX a idéia de um espaço brasileiro unitário, subalternizando a existência das

diferenças locais enfatizadas pelo demais modelos corográficos, os mapas literários do

século XIX ultrapassariam esta circunstância, tornando-se os exemplares mais bem

acabados de um ‘saber sobre o espaço’ que consolidaria a construção do espaço

nacional.208

A apropriação das corografias pelo debate do IHGB e a subseqüente

depuração destas no próprio debate, vai ainda proporcionar a distinção de determinados

espaços locais em relação aos outros e ao mesmo tempo contrapor e subalternizar estes

espaços em relação ao espaço do centro.

Assim, paulatinamente, o ‘mapa literário’ e as corografias seriam substituídas

pelas cartas gerais e pelas ‘novas corografias’, subalternizando-se um saber corográfico

baseado na exposição das ponderações dos especialistas e elidindo-se um campo para a

consagração dos debatedores: constituir-se-ia a construção do espaço nacional como um

dos decalques da Episteme social e da ‘gramática da visão’ de uma elite capaz de

compreender e expressar plenamente a ‘linguagem do espaço’.

208 Veja-se, por exemplo: Ernesto Ferreira França Filho, ‘Apontamentos diplomáticos sobre os limites do Brasil’,

18/10/1849 in IHGB, Lata 133, documento 20; Duarte da Ponte Ribeiro, Apontamentos sobre o estado atual da

fronteira do Brasil, 1844 in IHGB, Lata 289, Pasta 9 e Francisco José de Sousa Soares de Andréa, Observações aos

Apontamentos sobre o estado atual da fronteira do Brasil, 1847 in IHGB, Lata 289, Pasta 9.

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7 — O ASSENTO CENTRAL: A ‘OPERAÇÃO DA NARRATIVA’ E AS IDÉIAS

DA INSCRIÇÃO DO ESTADO NO ESPAÇO

“E que país este senhores, para uma nova civilização e para novo assento das

ciências! Que terra para um grande e vasto Império! Banhadas suas costas em

triângulo pelas ondas do Atlântico; com um sem número de rios caudais e de

ribeiros empolados que o retalham em todos os sentidos, não há parte alguma do

sertão, que não participe mais ou menos do proveito que o mar lhe pode dar para o

trato mercantil, e para o estabelecimento de grandes pescarias. A grande

cordilheira que o corta de norte a sul, o divide por ambas as vastas fraldas e

pendores em dois mundos diferentes, capazes de criar todas as produções da terra

inteira. Seu assento central quase no meio do globo, defronte e à porta com a

África, que deve senhorear, com a Ásia à direita, e com a Europa à esquerda, qual

outra região se lhe pode igualar...”

José Bonifácio de Andrada e Silva. Discurso.209

Nosso objetivo neste capítulo é elaborar o problema da operação da narrativa

uma vez que este será abordado nos capítulos subsequentes, para, em seguida,

procedermos, através dessa abordagem, ao estudo das idéias da inscrição do Estado no

espaço internacional, visando relacioná-lo com a construção do ‘Debate’ no IHGB e

com as intelecções do espaço que foram discutidas no capítulo anterior.

Nesse sentido, iniciaremos procurando compreender como se constituiria uma

‘gramática do lingüista’ [linguist’s grammar] a partir das intelecções do espaço que

foram discutidas no capítulo anterior, ou seja, compreender como se constituiria dentre

uma comunidade que utilizava a mesma língua, um ‘conhecimento do espaço

uniformemente representado’ por um grupo de seus membros, consistindo numa teoria

explicitamente articulada que pretendia expressar precisamente as regras e princípios

daquele conhecimento.

Por conseguinte, a partir das idéias de Noam Chomsky sobre a relação entre

Conhecimento e Linguagem,210

entendemos que, para ser possível o estabelecimento

209 Discurso proferido na Academia Real de Ciências de Lisboa em 24/06/1819, in Ernesto Ferreira França Filho,

"Apontamentos diplomáticos sobre os limites do Brasil," Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,

(XXXIII) 41, 2° Tomo, 1870..

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desse ‘conhecimento do espaço uniformemente representado’, deveria existir na

‘comunidade lingüistica’ um grupo de seus membros capaz de dominar e

instrumentalizar um conhecimento uniformemente conhecido, no caso, este grupo seria

entendido enquanto ‘falantes ideais’ [ideal speaker-hearers] da língua.

Estes ‘falantes ideais’ compartilhariam suas experiências num teatro da

narrativa, composto por locais de enunciação (LE) onde existiriam condições de

enunciação propícias para a formação de um ‘debate’, a saber, uma reunião mais ou

menos contínua dos ‘falantes ideais’, um compartilhamento dos seus interesses e uma

reciprocidade nas condições de enunciação (ver Figura 20).

Estas condições garantiriam que houvesse a interação de suas experiências à um

conhecimento fluído e em permanente transformação, que chamaremos de ‘gramática

compartilhada’, sendo que desta seriam selecionados certos elementos por determinados

‘falantes ideais’ os quais, por serem capazes de conduzir sua elaboração contínua, serão

doravante denominados de operadores da narrativa. Estes elementos seriam elaborados

210 Noam Chomsky, ‘Language and unconscious knowledge’, in Rules and representations. New York: Columbia

University Press, 1978, p. 217-254.

FIGURA 20 — ESTRUTURA DO ‘TEATRO DA NARRATIVA’

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153

a partir da sintaxe da ‘gramática da linguagem’ e das oportunidades da operação,

constituindo-se, a partir do ‘debate’, como um ‘conhecimento do espaço uniformemente

representado’, uma ‘gramática do lingüista’ (GL).

Este ‘conhecimento do espaço uniformemente representado’ seria então

organizado numa narrativa e divulgado na comunidade lingüistica, estando sujeito à

novas transformações pelo compartilhamento de outras experiências, pelas

oportunidades da operação da narrativa e pelo ‘debate’ no teatro da narrativa (TN)

(ver Figura 21).

Portanto, entendemos que a ‘gramática compartilhada’ é a matriz de onde foram

retirados os elementos para a composição de uma narrativa do espaço e, para que

possamos explicar como se constitui teoricamente essa composição, se faz necessário

FIGURA 21 — ESTRUTURA DA ‘OPERAÇÃO DA NARRATIVA’

Page 154: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

154

remontar novamente a Noam Chomsky, desta vez à sua idéia do ‘uso criativo da

linguagem’.211

Começaremos, no caso, mostrando como esta concepção de Chomsky se baseia

na asserção acerca da linguagem que foi proposta por René Descartes.

Segundo Descartes, o Homem diferiria dos autômatos e dos animais por uma

capacidade intrínseca de elaborar palavras e sinais para transmitir aos outros Homens os

seus pensamentos e de corresponder, do mesmo modo, a uma elaboração semelhante.

O princípio que propiciaria esta capacidade intrínseca seria a Razão,

universalmente compartilhada por todos os Homens, de qualquer extração e em

qualquer condição: estabelecer-se-ia assim a Razão, pela capacidade do ‘uso criativo da

linguagem’, também como um princípio de completa igualdade entre os Homens, já que

a Razão não derivaria do “poder da matéria”, mas estaria “estreitamente unida e ligada”

ao Homem.212

A partir desta construção de Descartes, Noam Chomsky entende que a

capacidade de utilizar criativamente a linguagem seria ainda desenvolvida e se

desenvolveria por conta das oportunidades efetivamente estabelecidas na elaboração e

transmissão do pensamento.

Nesse sentido, o pensamento seria então entendido enquanto uma relação entre a

‘faculdade’ [facultie], que Chomsky identificaria com a Razão cartesiana, e os

‘conceitos individuais’ [ideas], através do que denominaria de ‘complexos sem fim’

[endless complexes], ou seja, através de expressões, sentenças e proposições que se

tornariam disponíveis mentalmente através da Experiência.

Esta capacidade de utilizar criativamente a linguagem seria resultante, portanto,

de um princípio espontâneo [spontaneous principle] e de uma vontade racional [rational

volition] que também é a base da linguagem humana. Isto levaria os falantes a uma

procura por coerência e unidade na experiência, pela comparação de impressões e pela

reflexão sobre esses materiais, o que possibilitaria definir primariamente a linguagem

como um meio de reflexão e pensamento e apenas secundariamente servindo aos

propósitos da comunicação social.

Ainda, Chomsky remeteria essa idéia da linguagem à tentativa de Humboldt de

desenvolver uma teoria geral da lingüística, no qual definiria a linguagem mais como

211 Noam Chomsky, Cartesian Linguistics. Christchurch, New Zealand: Cybereditions, 2002.

212 René Descartes, Discurso sobre o Método. São Paulo: Hemus Editora Limitada, 1978, p. 102-107.

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uma ‘atividade’ [energeia] do que como um ‘produto’ [ergon], ou ainda, mais como

uma ‘atividade gerativa’ [eine Erzeugung] do que um ‘produto sem vida’ [ein todtes

Erzeugtes].

Então, segundo Humboldt, a única maneira verdadeira de definir a linguagem

seria como ‘uma atividade produtiva’ [eine genetische], um ‘trabalho mental’ [Arbeit

des Geistes] sempre repetido, de tornar os sons articulados capazes de expressar o

pensamento.213

Neste sentido, existiria apenas um fator uniforme e constante no ‘trabalho

mental’ e que seria a ‘Forma’ da linguagem, definida como uma estrutura sistemática

que não mantêm componentes isolados, mas que incorpora os elementos por ‘um

método de formação da linguagem’, fixado pelas ‘leis de geração’ da linguagem.

Estas ‘leis de geração’ constituiriam a ‘Forma’ da linguagem, propiciando a

produção de um número ilimitado de eventos discursivos capazes de corresponder às

condições dos processos de pensamento, o que, no caso, envolveria um contínuo

processo de geração e regeneração da capacidade de produzir suas representações

[word-making capacity].

Assim a ‘Forma’ da linguagem seria composta por ‘regras de articulação do

discurso’ [Redefügung], por ‘regras de formação das palavras’ [Wortbuildung] e pelas

regras da formação dos conceitos que determinam a classe das ‘palavras raízes’ da

linguagem [Grundwörther].214

Então, nossa primeira proposta, seria a de estudar a composição da narrativa do

espaço a partir da seleção, comparação e reflexão sobre os elementos contidos na

‘gramática compartilhada’, visando perscrutá-la através das oportunidades da operação

da narrativa e de sua reelaboração. Ainda, procuraremos relacionar o estudo da

composição da narrativa do espaço com a ‘Forma’ da linguagem e consoante certas

regras que a definiriam.

Visando avançar mais em nossa proposta, desenvolveremos ainda outra asserção

de René Descartes acerca da Razão e da linguagem, sobre as idéias do ‘uso criativo da

linguagem’ anteriormente discutidas.

Segundo Descartes o Homem estaria ligado a todos os conceitos intuídos da

natureza através das palavras com as quais os expressaria, propiciando-nos assim o

213 Noam Chomsky, Cartesian Linguistics. Christchurch, New Zealand: Cybereditions, 2002, p. 62.

214 Noam Chomsky, Cartesian Linguistics. Christchurch, New Zealand: Cybereditions, 2002, p. 63.

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156

entendimento de que a criação de uma representação poderia ser diretamente ligada à

construção dos ‘conceitos individuais’ [ideas] de Chomsky.215

Neste caso, a representação seria a matriz do ‘uso criativo da linguagem’, que

poderia ser entendido, portanto, como um processo contínuo de reelaboração da

representação pela Razão,216

de acordo com a Experiência e com as oportunidades de

criação.217

Assim, a composição da narrativa pode ser compreendida como uma

representação já distinguida da ‘gramática compartilhada’, o que nos leva

primeiramente a compreender a importância da operação da narrativa, ou seja, da

relação instituída pelos operadores da narrativa entre a gramática do lingüista’, a

‘gramática da linguagem’ e a ‘gramática compartilhada’.

Por conseguinte, em nosso estudo, entendemos a operação da narrativa deve ser

trabalhada enquanto uma inscrição continuada, construída no ‘debate’ a partir das

condições de interação entre os ‘falantes ideais’, ou seja, da reunião mais ou menos

regular dos ‘falantes ideais’, do compartilhamento de interesses e da reciprocidade nas

condições de enunciação no teatro da narrativa.

Finalmente, como entendemos que a narrativa é constituída como uma inscrição

continuada dos interesses, dos lugares e das condições de enunciação dos ‘falantes

ideais’, a reelaboração dessa inscrição continuada implicará também numa

subsequente reelaboração da mesma narrativa. Nesta caso, a operação da narrativa

apontaria sempre para uma solução de continuidade que visaria satisfazer as novas

condições de interação entre os ‘falantes ideais’.

215 “Et denique propter loquelae usum, conceptus omnes nostros verbis, quibus eos exprimmimus, alligamus, nec eos

nisi simul cum istis verbis memoriae mandamus” — ‘E por fim, por causa do uso da fala, ligamos todos os nossos

conceitos a palavras com as quais os exprimimos e só os confiamos à memória simultaneamente com essas

palavras.’ René Descartes, Princípios da Filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002, LXXIV.

216 “Cumque faciliu postea verborum quam rerum recordemur, vix unquam ullius rei conceptum habemus tam

distinctum, ut illum ab omni verborum conceptu separemus: cogitationesque hominum fere omnium, circa verba

magis, quam circa res versantur” — ‘E como nos recordamos depois mais facilmente das palavras que das coisas,

dificilmente acontece-nos ter um conceito tão distinto de uma coisa qualquer que o separemos dos conceitos das

palavras; e os pensamentos de quase todos os homens versam mais acerca das palavras do que acerca das coisas’

René Descartes, Princípios da Filosofia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002, LXXIV;

217 “Porque, enquanto a Razão é um instrumento especial que pode ser usado em todas as oportunidades, esses órgãos

têm necessidade de uma disposição especial para cada ação particular”. René Descartes, Discurso sobre o Método.

São Paulo: Hemus Editora Limitada, 1978, p. 103-104.

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157

As condições do estudo da inscrição do Estado no espaço internacional

Conforme vimos no capítulo anterior, a idéia de um espaço brasileiro unitário já

havia se desenvolvido no século XVIII, havendo, inclusive, sido registrada por uma

forma de representação, o ‘mapa literário’, que se contrapunha ao antigo modelo de

espaço da América portuguesa. O ‘mapa literário’ ofereceria então as bases sobre as

quais se passou a pensar o problema da ‘inscrição do espaço nacional’ através do debate

no IHGB, inserido num teatro da narrativa bastante amplo e que incluía diversos locais

de enunciação, por exemplo, o IHGB, o Conselho de Estado e a SNE (ver Figura 20,

onde estão representados, respectivamente, como LE 1, LE 2 e LE 3).

Entretanto, o pensamento da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’,

embora estivesse relacionado com a ‘inscrição do espaço nacional’, se desenvolveria

apenas numa parte desse teatro da narrativa interligada com o restante do teatro, a

partir das necessidades e problemas próprios de certos locais de enunciação, a saber, o

Conselho de Estado e a SNE.

Portanto, será sobre esta parcela do teatro da narrativa e a partir do problema da

‘inscrição do Estado no espaço internacional’ que desenvolveremos o nosso estudo

sobre a operação da narrativa.

Para isto será necessário que adotemos certas premissas teóricas: em primeiro

lugar, adotaremos para o estudo do Conselho de Estado a delimitação utilizada por José

Honório Rodrigues, a saber, o ‘Primeiro Conselho de Estado’ é entendido como aquele

organismo que existiu entre 1822 e 1823 e que também foi chamado de ‘Conselho de

Procuradores Gerais das Províncias do Brasil’, sendo integrado pelos ministros de

Estado mais os Procuradores Gerais eleitos por cada Província, de acordo com sua

representatividade na deputação enviada às Cortes.

Por sua vez, o ‘Segundo Conselho de Estado’ é entendido como aquele que teria

funcionado de 1823 a 1834, tendo sido composto originalmente por dez membros mais

os ministros de Estado, sendo que, com a Constituição de 1824, o número de

Conselheiros foi mantido, porém, desobrigando-se o Conselho de ser composto pelos

ministros de Estado e estabelecendo-se a vitaliciedade de seus membros.

Já o ‘Terceiro Conselho de Estado’ é entendido como aquele que se reuniu de

1842 até o final do Império, possuindo doze membros ‘ordinários’ e doze

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‘extraordinários’, todos vitalícios, sendo sua função apenas consultiva e o acolhimento

de suas opiniões apenas facultativo, embora em certos casos sua audiência fosse

obrigatória.218

Em segundo lugar, utilizaremos a premissa de José Murilo de Carvalho, quando

referindo-se ao ‘Terceiro Conselho de Estado’, entendeu que este se constituía numa

organização estratégica para se estudar o pensamento político do Império, por conta das

condições de sua constituição e pela características derivadas da longa convivência de

seus membros e destes com as principais questões do Estado.219

Em terceiro lugar, trabalharemos a partir da observação de José Honório

Rodrigues, também referente ao ‘Terceiro Conselho de Estado’, de que, por conta de

sua estreita ligação com o Parlamento, aquele funcionaria como uma “Primeira Câmara”

junto ao Poder Moderador, coadjuvando o Governo e a administração em matérias de

legislação e regulamentos, preparando os projetos, discutindo as suas dificuldades e

conveniências.220

Em quarto lugar, trabalharemos também a partir da idéia de José Honório

Rodrigues de que existiria uma continuidade institucional a ser observada entre os três

Conselhos de Estado, entendendo que, por conta disto, os três Conselhos poderiam vir a

ser analisados como um só. Neste sentido, Rodrigues argumentava esta continuidade

institucional entre os três Conselhos se daria por conta de terem sido todos concebidos

pelos conservadores como um órgão cuja atuação visava travar certas iniciativas dos

liberais, por isso mesmo, esta instituição teria sido combatida em diversas ocasiões

pelos liberais.221

A partir destas premissas teóricas, nosso estudo visará entender tanto a questão

da operação da narrativa quanto o pensamento da ‘inscrição do Estado no espaço

internacional’, no caso do ‘Terceiro Conselho de Estado’. Nesse sentido, buscaremos

trabalhar não sobre as ‘Atas do Conselho Pleno’, mas sobre as ‘Atas da Seção dos

Negócios Estrangeiros’, por entendermos, em primeiro lugar, que a especificidade dos

assuntos discutidos se adequaria mais ao confronto com o conteúdo do ‘debate’ do

IHGB.

218 José Honório Rodrigues, Atas do Conselho de Estado, v. I-II. Brasília: Senado Federal, 1973.

219 José Murilo de Carvalho, A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial .

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 357.

220 José Honório Rodrigues, Conselho de Estado; o Quinto Poder? Brasília: Senado Federal, 1978, p. 5-8.

221 José Honório Rodrigues, Conselho de Estado; o Quinto Poder? Brasília: Senado Federal, 1978, p. XV.

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159

Em segundo lugar, por constituir um lugar de interseção entre dois lugares de

enunciação, a saber, o Conselho de Estado e a Secretaria de Negócios Estrangeiros,

entendemos que a Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros é um lugar privilegiado

para se compreender o pensamento acerca do espaço no Império.

Decorrentemente, em terceiro lugar, entendemos que este lugar de interseção é

também um local estratégico para podermos estudar a relação entre o Conselho de

Estado e o Governo, exemplificado, no caso, pela Secretaria de Negócios Estrangeiros.

Em quarto lugar, poderemos estudar, no que se refere a questão do espaço, a

existência de uma continuidade institucional entre o ‘Segundo Conselho de Estado’ e o

‘Terceiro Conselho de Estado’, através de nossa idéia da experiência compartilhada, .

Em quinto e último lugar, a escolha das ‘Seção de Justiça e Negócios

Estrangeiros’ nos permitirá acompanhar a inserção de seus componentes e consultores

no teatro da narrativa e sua participação no ‘debate’ do IHGB.

Portanto, pretendemos através deste estudo encontrar os elementos que

confirmem a abrangência do debate já então travado no IHGB e que nos permitam

discernir os diferentes pensamentos a respeito da inserção do Estado no espaço

internacional. Além disso, este estudo visa apontar certas questões que serão trabalhadas

noutros capítulos, como o problema da construção da ‘Gramática do lingüista’ através

da operação da narrativa e o problema da transformação da Secretaria dos Negócios

Estrangeiros num lugar de enunciação privilegiado da narrativa do século XX.

Finalmente, cabe-nos alertar que não visamos aqui a um estudo de todo o

período em que funcionou o ‘Terceiro Conselho de Estado’, mas apenas alavancar o

estudo da operação da narrativa através do objetivos que anteriormente nos

propusemos. Deste modo, acreditamos, por razões que serão suficientemente

esclarecidas nos próximos capítulos, que estes objetivos ficarão satisfeitos com um

exame severo das atas até os anos de 1857-1858 e, se fizer-se necessário, com uma ou

outra referência esporádica as atas do período posterior.

O problema da inscrição das possessões africanas de Portugal no espaço nacional

brasileiro

Para que possamos iniciar o estudo a que nos propomos, devemos ainda

relacioná-lo com alguns problemas estudados nos capítulos anteriores, no caso, a

questão da existência de um modelo de espaço da América portuguesa, entendido a

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160

partir das qualidades atribuídas ao território, e a questão da construção da

perspectivação do espaço através das corografias que determinaria numa representação

unitária do espaço brasileiro.

Nesse sentido, compreendemos ser necessário ligar estas duas questões ao

problema da não-inscrição das possessões africanas de Portugal no espaço nacional

brasileiro, no caso, entendendo ainda que este problema está ligado às idéias da

‘inscrição do Estado no espaço internacional’ que desenvolvemos junto ao estudo

proposto.

O exame deste problema se faz necessário em virtude de precisarmos consolidar

a idéia de que uma ‘inscrição do espaço’ já havia se estabelecido através da narrativa

do setecentos, sendo esta, inclusive, representada através dos ‘mapas literários’. Por

conseguinte, entendemos que esta inscrição não incluía as demais partes do Império

Português, ainda que as relações comerciais com a África fossem muito intensas no

início do século XIX e que assim continuassem após a Independência.

Concentraremos nossa reflexão no estado das presença portuguesa na África nos

primeiros vinte anos do século XIX, pois, como é sabido, nosso problema se encerra

com o ‘Tratado de paz, amizade e aliança’ de 1825, através do qual o Brasil tem sua

independência reconhecida por Portugal. Em seu artigo terceiro, o Brasil se compromete

a “não aceitar as proposições de quaisquer colônias portuguesas para se reunirem ao

Brasil”.

Contudo, José Honório Rodrigues aponta que este Artigo foi uma imposição

britânica para o reconhecimento da independência do Brasil, recordando que existia

uma disposição anterior de algumas das colônias africanas em se reunirem ao Brasil,

que poderia ser exemplificada pela vontade expressa por parte dos deputados angolanos

às Cortes de reunir essa colônia ao Brasil.222

Ainda segundo José Honório Rodrigues, o

interesse da Inglaterra visava cortar os laços entre o Brasil e a África, facilitando-se

assim tanto a sua expansão colonial sobre o Continente quanto a eliminação do tráfico

de escravos.223

Na realidade, as possessões portuguesas na África, fora as ilhas de São Tomé e

Príncipe e de Cabo Verde, haviam se reduzido a alguns poucos empórios e fortalezas

222 José Honório Rodrigues, Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 161-176.

223 José Honório Rodrigues, Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 170-171, 174-

175.

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161

bastante decadentes e malconservados. Na Guiné restavam os presídios de Bissau e

Cacheo, dependentes administrativamente de Cabo Verde, funcionando basicamente

como entrepostos para os traficantes de escravos baseados naquela ilha. Em

Moçambique poucas centenas de portugueses estavam concentrados principalmente em

Lourenço Marques, sendo poucos aqueles que se aventuravam no continente, controlado

pelos sultanatos muçulmanos instalados ao longo da costa e arrasado pelas incursões

dos Ngunis, uma fração dos Zulus que haviam estabelecido um estado independente ao

sul de Moçambique. A maioria das possessões portuguesas no Continente estavam

situadas em Angola, sobretudo na região de Luanda, sendo que alguns poucos presídios

ainda sobreviviam nas costas e no interior da região de Benguela, sustentados pelo fluxo

do tráfico de escravos.

No restante da África ocidental conservavam-se apenas as reclamações,

endossadas pela Inglaterra, sobre o território de Cabinda e Molembo junto ao estuário

do rio Zaire, enquanto que na região do Daomé, havia se preservado a duras penas

desde o século XVIII o chamado estabelecimento do Castelo, ou fortaleza de São João

Batista de Ajudá como ponto de apoio ao comércio português naquela parte da costa.

Este estabelecimento, evacuado durante as Guerras Napoleônicas,224

tinha sido apenas

tolerado pelos soberanos locais e se preservara somente em razão das transações de

escravos por tabaco e aguardente conduzidas por comerciantes da Bahia. Anda por

conta dessa peculiaridade, a administração do estabelecimento de Ajudá foi conduzida,

desde o século XVIII, pelos administradores daquela Província brasileira.225

Por conseguinte, após a independência do Brasil as novas diretivas coloniais de

Portugal visavam, justamente, restabelecer as ligações com as possessões africanas e

transformá-las num substituto para a perda do Brasil. Nesse sentido, o Estado português

direcionaria suas atividades para regiões bem específicas, como Angola e a Guiné, onde

se planejava essa expansão às custas dos particulares, embora, entretanto, já se

previssem muitas dificuldades, como por exemplo, na Guiné, onde se acreditava que

224 Gervase Clarence-Smith, O Terceiro Império Português (1825-1975). Lisboa: Editorial Teorema Ltda, 1985, p. 47.

225 ‘Relação das Províncias do Reino do Brasil, das Ilhas do Oceano Atlântico, e dos territórios d'África Ocidental, e

Oriental, e da Ásia, que atualmente são considerados pertencentes à Nação Portuguesa, Além-Mar’, 1821. IHGB,

lata 69, documento 8.

Page 162: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

162

seria grande a concorrência dos franceses e ingleses após a extinção do Tráfico, único

sustentáculo da presença portuguesa na área.226

Ainda, por conta da decadência geral da área, entendia-se que o fomento das

ilhas de São Tomé e Príncipe deveria ser a primeira providência destinada a

implementar as novas iniciativas portuguesas na África, uma vez que delas dependia,

em grande parte, a ligação com o Continente. Também a partir desta base dever-se-ia

desenrolar o próprio esquadrinhamento das possessões portuguesas, já que então a

maioria de suas posições portuguesas eram consideradas incertas pelo próprio Estado.227

Portanto, quaisquer ligações que possam ser feitas em relação a uma suposta

iniciativa brasileira de se inscrever a África no espaço nacional têm de elidir

necessariamente o problema mesmo da construção do espaço, já que, no caso,

acreditamos que a inclusão da África seria incompatível com o antigo modelo de espaço

da América portuguesa ou com o novo modelo de espaço que se esboçava na virada do

século XVIII. Contudo, poderiam ter havido iniciativas africanas, mas, provavelmente

estas possuiriam uma receptividade bastante pequena e teriam de vir necessariamente

dos grupos ligados ao Tráfico, única atividade de relevo nas relações com a África.

Entretanto, ainda assim seria bastante questionável alguma unanimidade nas

possessões africanas de Portugal em relação a uma união com o Brasil, já que o

problema do Crédito deveria ser a maior fonte de tensão no Tráfico: aqueles que deviam

ao Estado português poderiam pensar numa união com o Brasil que impedisse a sua

cobrança, entretanto aqueles que devessem aos mercadores brasileiros provavelmente

prefeririam uma posição de autonomia.228

Restar-nos-ia ainda resolver o problema da ligação da Bahia com o Daomé: do

mesmo modo que José Honório Rodrigues indicaria existir uma disposição das

possessões portuguesas em se reunirem ao espaço brasileiro, Robin Law apontaria

existir um interesse do Brasil em incorporar algumas destas, afirmando que a posse do

forte português de Ajudá, no Daomé, “foi objeto da disputa entre Lisboa e o Rio de

Janeiro, sendo decidida em favor de Portugal no acordo em que este reconheceu a

independência brasileira”.229

226 'Parecer da Real Junta do Comércio de Lisboa sobre o comércio das possessões portuguesas na África depois da

independência do Brasil', 22/12/1826. IHGB, Lata 76 Pasta 6.

227 ‘Instruções para o Governador das Ilhas São Tomé e Príncipe’, 1824. IHGB, Lata 37, Pasta 1.

228 Gervase Clarence-Smith, O Terceiro Império Português (1825-1975). Lisboa: Editorial Teorema Ltda, 1985, p. 45.

229 Robin Law, ‘A carreira de Francisco Félix de Souza na África Ocidental (1800-1849)’, Topoi, 2001, v. 2, p. 17.

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163

Relatando a carreira do brasileiro Francisco Félix de Souza, considerado “uma

figura central tanto no tráfico transatlântico de escravos quanto” no reino do Daomé,

Robin Law indica que tendo este assumido em 1806 a posição de governador interino

daquela fortaleza, após a morte do último governador enviado pelo Brasil, Francisco

Félix de Souza teria oferecido a fortaleza de Ajudá ao Governo brasileiro sem no

entanto obter resposta, o que poderia ter sido o motivo da ruptura entre estes.230

A partir de nosso exame da correspondência dirigida pelos soberanos do Daomé

aos Reis de Portugal, podemos considerar que no século XIX o comércio já interessava

menos aos comerciantes baianos do que aos soberanos do Daomé e que Francisco Félix

de Souza não era acreditado enquanto autoridade por nenhuma das partes.

Desde 1750, quando se inaugura esta série documental, portada pelos Emissários

daqueles Reis africanos, o principal objeto dessas missivas foi pedir a continuação do

comércio entre os dois países, inclusive, porque este dependia da nomeação do diretor

do estabelecimento de Ajudá, feita em comum acordo entre as autoridades baianas e o

soberano do Daomé.231

Já em 1795, quando se deu a segunda missão Daometana, o soberano daquele

reino insistiria no reparo da fortaleza e na troca do diretor da fortaleza de Ajudá,

encaminhando ainda a proposta de que o tráfico de escravos com o Império português se

fizesse tão somente a partir daquele entreposto.232

Note-se, que esta proposta da criação

de um exclusivo comercial seria renovada através da terceira missão Daometana,

enviada à Bahia em 1805, sendo que desta vez se incluía entre suas intenções a abolição

da própria Diretoria de Ajudá.233

Esta exigência de 1805 teria acontecido em razão da decadência das

dependências físicas e do pessoal da fortaleza de Ajudá, uma vez que o próprio Rei do

Daomé relataria em 1810 para D. João VI, que Francisco Félix de Souza, “escrivão da

fortaleza” já não fazia mais nenhum serviço naquela “e está comendo o soldo de Vossa

Real Alteza só habita em Popó com casa de negócios e ensinando a todos os Capitães

230 Robin Law, ‘A carreira de Francisco Félix de Souza na África Ocidental (1800-1849)’, Topoi, 2001, v. 2, p. 17.

231 ‘Carta do Conde das Galveas para o Conde dos Arcos’, 12/05/1811 in 'Correspondência trocada entre os Reinos de

Portugal e o de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 5.

232 ‘Correspondência entre o Rei do Daomé e D. Maria I’, 1795 in 'Correspondência trocada entre os Reinos de

Portugal e o de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documentos 1 e 2.

233 ‘Carta do Conde das Galveas para o Conde dos Arcos’, 12/05/1811, in 'Correspondência trocada entre os Reinos

de Portugal e o de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 5.

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164

que não saltem em meu porto.”234

Este relato foi encaminhado por meio da quarta

missão Daometana que, no entanto, foi proibida de encontrar-se com D. João VI no Rio

de Janeiro. Por conta deste impedimento, em carta anexa à missiva do Rei do Daomé, o

Conde das Galveas pediria da Bahia esclarecimentos sobre o tratado assinado com a

Inglaterra e instruções no sentido de se restringir ou não o comércio com Ajudá, até

porque já se construía outro estabelecimento português numa região próxima,235

havendo sido oferecidas, por Estados rivais do Daomé, condições mais propícias para o

comércio.236

Noutra missiva, cuja datação estabelecemos entre os anos de 1818 ou 1819 e que

acompanhou a quinta missão Daometana, seu novo soberano reitera o desejo de

comerciar com Portugal e observa que Francisco Félix de Souza “escrivão que foi da

fortaleza de Ajudá” havia se oferecido para mandar conduzir junto com o embaixador

daquele Reino os portugueses que tinham sido mantidos aprisionados em Daomé pelo

seu antecessor no trono. No mesmo documento, o novo soberano relataria ainda a ruína

da fortaleza de Ajudá e descreveria a ascensão de Francisco Félix de Souza, “que tem

ajudado o meu povo”, no reino do Daomé.237

Portanto, podemos compreender, através do exame da correspondência dirigida

pelos soberanos do Daomé aos Reis de Portugal, que as ligações comerciais entre o

Brasil e o Daomé já seriam apenas esporádicas, haja vista, inclusive, o impedimento

motivado pela restrição ao Tráfico acertada com a Inglaterra em 1810. Ainda que o

desejo de reunir Ajudá ao espaço brasileiro tenha sido manifestado por Francisco Félix

de Souza, este decorria apenas das suas próprias motivações comerciais, haja vista que

ele não era reconhecido então por nenhum dos lados como governador da fortaleza, no

caso, em ruínas, mas já como um Daometano.

Ainda, esta ligação apenas honorária da fortaleza de Ajudá com o Brasil não se

incluiria no novo modelo de espaço construída sobre a experimentação do território, o

que pode ser endossado pela recepção de D. Pedro I à missão enviada pelo Rei do Benin

234 ‘Carta do Rei de Daomé para D. João VI’, 2/10/1810 in 'Correspondência trocada entre os Reinos de Portugal e o

de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 3.

235 ‘Carta do Conde das Galveas para o Conde dos Arcos’, 12/05/1811 in 'Correspondência trocada entre os Reinos de

Portugal e o de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 5.

236 ‘Carta do Rei de Ardra para D. João VI’, c.1810-1811, in 'Correspondência trocada entre os Reinos de Portugal e o

de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 4.

237 ‘Carta do Rei do Daomé para D. João VI’, c. 1818-1819 in 'Correspondência trocada entre os Reinos de Portugal e

o de D'Agoné ou Daomé na África', 1795-1811. IHGB, Lata 137, Pasta 62, Documento 6.

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165

ao Rio de Janeiro em 1824: D. Pedro se recusa a manter relações oficiais com os

soberanos africanos,238

à exemplo de D. João VI.

Esta recusa de D. João VI em manter relações diplomáticas com os soberanos

africanos contrastava, mesmo em sua época, com o esforço diplomático feito para que

se assinassem, entre 1810 e 1818, nada menos que quatro tratados de paz e resgate com

as “Potências Barbarescas”. Neste caso, se visava evitar as ações de pirataria efetuadas

pelos Paxás de Argel e Túnis, preservando-se assim o trânsito dos barcos brasileiros

rumo a Gibraltar, onde se desembarcavam todas as mercadorias destinadas à região do

Mediterrâneo.239

Desde modo, poder-se-ia supor que as atitudes inglesas teriam desencorajado

então qualquer tipo de associação direta do Estado com as fontes do tráfico negreiro,

mas, as diretivas portuguesas para a África posteriores a 1822 reinserem as relações

com os Estados africanos no mesmo patamar que estas possuíam no século XVIII.240

Note-se que D. Pedro I não se furtaria a receber o Rei do Havaí Kamehameha II,

quando este aportou no Rio de Janeiro em 1824 durante sua viagem rumo à Inglaterra,

ocasião em que lhe ofereceria uma “rica espada” e um anel de brilhantes para sua

esposa, trocados, no ato, pelo manto “de uso pessoal” daquele soberano, confeccionado

com plumas de pássaros, que se encontra ainda hoje em exposição no Museu

Nacional.241

Nesse sentido, uma missiva dirigida em provavelmente 1825, por D. João VI a

D. Pedro I é bastante ilustrativa, pois dela compreende-se que o foco da inscrição do

Estado brasileiro no espaço internacional é realmente a Europa, sendo o problema da

forma de governo adotada no Brasil, a Monarquia, enfatizada como o móvel dessa

escolha. Nesta missiva, assevera-se que mesmo as relações com os países latino-

americanos deveria ser consolidada a partir dos contatos com a antiga metrópole, a

Espanha. Ainda, em decorrência desse enfoque, dever-se-ia ajustar até mesmo o pessoal

diplomático e a atuação da diplomacia: aqueles deveriam ser escolhidos dentre os que

238 AHI, Embaixador Manoel Alves de Lima, 1824-1826. 273, Lata 1, Pasta 13, citado em José Honório Rodrigues,

Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 170.

239 ‘Correspondência sobre o comércio português com as Potências Barbarescas’, 1793-1818. IHGB, Lata 77, Pasta 6.

240 ‘Exposição, consulta e reflexões sobre projetos de Companhias Comerciais em Guiné e nas Ilhas de Cabo Verde’,

1826. IHGB, Lata 39, Pasta 6; ‘Instruções para o Governador das Ilhas São Tomé e Príncipe’, 1824. IHGB, Lata

37, Pasta 1.

241 MN, Ficha catolográfica da peça ‘Manto Owhyeen’.

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166

pela posse e pelas relações familiares se ligassem à Coroa e a atuação da diplomacia

deveria se nortear por um acatamento aos seus valores.242

Então, ainda que uma suposta intenção brasileira de incorporar as regiões

privilegiadas pelo Tráfico fosse capaz de provocar, em Portugal, temores suficientes

para se justificar, dadas as condições do Erário, o envio de tropas para ocupar as regiões

de Angola e Benguela,243

seria mais sensato crer que as palavras de D. Pedro ao

Ministro Britânico no Rio de Janeiro espelhariam um pensamento disseminado no

Brasil: “em relação as costas da África, nós não queremos nada, nem qualquer parte. O

Brasil é suficientemente grande e bastante produtivo para nós, e estamos contentes com

o que a Providência nos deu”.244

Portanto, pode-se entender que ligou-se, desde o início, a ‘inscrição do Estado

no espaço nacional’ à construção de um modelo de espaço brasileiro unitário, conectado

à Europa e excluindo a África, mas que esta inscrição também estava ligada à

consolidação e à manutenção das antigas ‘relações de soberania’245

inscritas ainda

durante o período colonial.

242 ‘Carta cifrada de D. João VI a Pedro I’. IHGB, Lata 140, Documento 1.

243 Raimundo José da Cunha Matos, ‘Compêndio histórico das possessões da Coroa de Portugal nos mares e

continentes d'África oriental e ocidental’, 1836. IHGB, Lata 14, Doc. 16, p. 344.

244 Citado em José Honório Rodrigues, Brasil e África: outro horizonte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 172.

245 Ver nesta tese o capítulo ‘Mapeanado o vazio’.

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167

A inscrição do Estado no espaço internacional e o Conselho de Estado

Um Estado que marcha sem princípios ou pontos de vista fixos, pelos quais se

regulem seus negócios, tanto internos quanto externos, é um Navio que vaga nos

mares sem bússola e sem destino de porto

José Feliciano Fernandes Pinheiro. Memória acerca

dos Limites naturais

Tendo enfrentado o problema da não-inscrição das possessões africanas de

Portugal no espaço nacional brasileiro, entendemos que este nos trouxe alguns insumos

para o estudo a que já nos havíamos proposto desde o início do capítulo, uma vez que

demonstra-se a consolidação do novo modelo do espaço brasileiro já no início do

Primeiro Reinado, a partir da idéia de um território contínuo, assentado na América mas

conectado à Europa e às antigas ‘relações de soberania’.

Esta constatação nos serve como um paliativo para a perda da documentação do

‘Segundo Conselho de Estado’ anterior a 1828, já que somente se conservaram as atas

posteriores a ascensão de José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de São

Leopoldo, ao cargo de Secretário do Conselho. Por conseguinte, visando compreender o

processo de operação da narrativa e o desenvolvimento das idéias da ‘inscrição do

Estado no espaço internacional’, entendemos que cabe-nos conectar as atas restantes

com os insumos adquiridos através do estudo do problema da não-inscrição das

possessões africanas de Portugal.

Neste sentido, devemos começar conectando o novo modelo de espaço com o

pensamento de José Feliciano Fernandes Pinheiro, haja vista já termos elaborado no

capítulo anterior a idéia de que o debate sobre o espaço seria introduzido no IHGB a

partir do seu ‘Programa Geográfico’ e este mesmo debate seria coordenado através de

sua atuação enquanto Presidente daquele instituto.

Também devemos adiantar que antes da fundação do IHGB, durante a década de

1830, Pinheiro se destacou como consultor da Secretaria dos Negócios Estrangeiros

(doravante citada como SNE), sendo responsável por vários pareceres, inclusive

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168

presidindo a ‘Comissão Investigadora de Limites’, que foi constituída no intuito de se

estabelecer uma interpretação oficial do espaço brasileiro.246

Esta inserção de Pinheiro na SNE e, em certa medida, a própria fundação do

IHGB, deveu-se a sua ativa participação no Legislativo durante a década de 1830, a

qual, por sua vez, deve ser remetida à intensa participação política de Pinheiro durante

os anos vinte, quando exerceu, sucessivamente, as funções de Deputado às Cortes de

Lisboa, de Senador por São Paulo, de Ministro do Império e de Conselheiro de Estado.

Assim, entendemos que se pode traçar um roteiro do pensamento sobre o espaço

de Pinheiro e, a partir deste, se empreender uma problematização da idéia da ‘gramática

compartilhada’, uma vez que Pinheiro pode seguramente ser apontado como um ‘falante

ideal’ desde os anos vinte e como um dos operadores da narrativa no final dos anos

trinta.

Desde 1821, quando de sua participação enquanto representante de São Paulo às

Cortes Gerais e Constituintes de Lisboa, já podemos relacionar o pensamento de

Pinheiro com o novo modelo de espaço brasileiro. Nas Cortes de Lisboa, José Feliciano

Fernandes Pinheiro foi o principal responsável pela impugnação da permuta a ser

realizada com a Espanha, da cidade de Montevidéu, na América, pela de Olivença, na

Europa. Esta atuação em defesa do novo modelo de espaço seria reconhecida, inclusive,

por Hipólito José da Costa no Correio Brasiliense, quando comentaria que “o deputado

Fernandes Pinheiro manejou este negócio com mão de mestre.”247

Na verdade, esta identificação com o novo modelo já tinha começado a se

esboçar desde 1807, quando Pinheiro escreveu a ‘História nova e completa da América’,

onde privilegiava o relato da construção de um novo Estado no Continente, os Estados

Unidos, a partir do contributo europeu e do enraizamento destes no território.248

Esta

idéia precoce da ligação entre o tempo, a terra e o homem baseando a compreensão do

espaço, seria depois desenvolvida nos seus ‘Anais da Província de São Pedro’, cuja

primeira edição foi impressa entre os anos de 1819 e 1822.249

A adesão de Pinheiro ao novo modelo de espaço seria confirmada em 1826,

quando, já no cargo de Ministro do Império, se batia pela criação dos Cursos Jurídicos

246 A esse respeito ver o próximo capítulo ‘Um Itinerário do valioso ao possível’.

247 Citado em Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, ‘Apontamentos biográficos sobre o Visconde de São Leopoldo’,

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XIX, 21, 1898, p.137.

248 José Feliciano Fernandes Pinheiro, História nova e completa da América. Lisboa: Fr. José Mariano Velloso, 1807.

249 A esse respeito ver o próximo capítulo ‘Um Itinerário do valioso ao possível’

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169

em São Paulo e Olinda: ao ser consultado por D. Pedro I a respeito da União das Coroas

do Brasil e de Portugal, o Ministro se postaria contra esse projeto.250

Logo em seguida,

pouco antes de ser nomeado Conselheiro,251

procuraria ainda conectar essa reelaboração

das antigas ‘relações de soberania’ através da constituição de uma ligação permanente

do Estado com o novo modelo de espaço: Pinheiro ofereceria a D. Pedro I a ‘Memória

acerca dos Limites naturais’, um documento que deveria ser guardado no Arquivo do

Estado, “entre os seus segredos mais importantes”, a fim de que pudesse servir como

guia a cada um dos futuros Governantes do Brasil.

Nesta ‘Memória’, Pinheiro formulava para o Brasil o que pretendia que fosse

seu ‘Sistema Político’, “um plano sempre uniforme de conservar-se e engrandecer-se”,

no qual estariam detalhadas “todas as circunstâncias, todos os motivos, todas as razões,

todas as vantagens e inconvenientes reais ou aparentes” das escolhas ali contidas.

Este planejamento de longo prazo de Pinheiro estava fundado sobre o que

chamava de “interesses naturais” do Estado, considerados como imutáveis e

indestrutíveis, visando dar “um estado de Direitura e estabilidade” à “Nação”.

Neste sentido, Pinheiro argumentava ser da “opinião geral”, a percepção de que

a vocação do Brasil era tornar-se uma “Grande Potência Marítima e Comerciante”,

necessitando, para tanto, que fosse “previamente circunvalado”.

Esta ‘circunvalação’ do território brasileiro, deveria ser feita a partir dos

principais traços da natureza, os ‘limites naturais’, capazes de conservar a “Nação”

acobertada “das querelas e da fácil invasão de vizinhos”. Por conta disso, se propiciaria

um desenvolvimento seguro da sua população e da sua riqueza, fatores indispensáveis

para a formação de uma Marinha, capaz de na Paz, ativar “o círculo de relações entre a

Capital e as Províncias remotas” e, na Guerra, servir como “fortaleza volante”, levando

“o ataque e a defesa aonde conviesse”.

Estes ‘limites naturais’ deveriam se alargar na fronteira meridional desde as

nascentes do rio Paraguai, passando pelo rio Paraná e pelo rio Uruguai até o Rio da

Prata, em compensação do que Pinheiro entendia como ‘custos e perdas’ de uma guerra

250 Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, ‘Apontamentos biográficos sobre o Visconde de São Leopoldo’, Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XIX, 21, 1898, p. 41-42.

251 Pinheiro foi nomeado conselheiro em 18 de maio de 1827, exatamente dois meses depois de ter escrito a

‘Memória acerca dos Limites naturais’, na vaga aberta, em 11 de março de 1827, pelo falecimento do Marquês de

Nazaré.

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170

não provocada, que vinha sido movida contra os brasileiros pelos espanhóis e seus

sucessores há vinte anos (ver Figura 22).

Para justificar estas pretensões, Pinheiro argumentaria que os corpos morais, os

Estados, guiar-se-iam pelas mesmas leis que os corpos físicos, sendo a primeira delas a

da sua conservação, assim sendo, a situação do Brasil seria comparável à dos Estados

Unidos, que teriam se apossado da Flórida “só por simples razão de conveniência, sem

mais direito do que o receio que fosse ocupada por alguma Potência Européia”.

Quanto a fronteira setentrional, dever-se-ia ignorar os Tratados anteriores,

buscando-se e fortificando-se o território onde as nascentes do Paraguai se uniriam às

do Amazonas, constituindo-se uma ligação entre os “dois gigantes” e procurando-se

defender este último por meio de uma linha de Fortes e Presídios que permitissem tanto

vigiar “a conduta dos vizinhos” quanto apoiar as colônias “que bordassem nesse

extremo interior” (ver Figura 22).

Por fim, construída a segurança do território que propiciava conservar as

instituições da Nação, poder-se-ia atrair para o Brasil “a aluvião espantosa de

emigrados” europeus que demandavam então “asilo, no terreno ingrato da América

Setentrional”, por não acharem estes “a segurança de suas pessoas e de seus cabedais

pelas freqüentes revoluções que sucedem, e ainda mal que por longo tempo se

sucederão” na Europa.252

252 José Feliciano Fernandes Pinheiro, 'Memória acerca dos naturais limites do Brasil', 18/03/1827. IHGB, Lata 421,

Pasta 16.

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171

Portanto, podemos compreender que já existia na ‘gramática da linguagem’ uma

‘gramática compartilhada’ de ‘saberes sobre o espaço’ onde certas representações eram

apreendidas e reelaboradas pelos ‘falantes ideais’ em novas representações, segundo

suas experiências, suas comparações e suas reflexões, através de uma sintaxe já

disponível, o novo modelo do espaço.

Contudo, ainda não havia amadurecido um teatro da narrativa e se buscavam

locais de enunciação onde existissem condições de enunciação propícias para a

formação de um ‘debate’. Entretanto, ficaria evidente através dos sucessos do debate em

torno das principais questões sobre o espaço, que faltavam as condições de enunciação

para que, a partir do ‘Segundo Conselho de Estado’, se pudesse constituir uma

‘gramática do lingüista’.

Cartografia: Renato Amado Peixoto. Fonte: José Feliciano Fernandes Pinheiro, 'Memória acerca dos naturais limites do Brasil', 18/03/1827. IHGB, Lata 421, Pasta 16.

FIGURA 22 — O BRASIL DAS 'MEMÓRIAS ACERCA

DOS LIMITES NATURAIS'

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172

Deste modo, acreditamos que este problema pode ser exemplificado a partir dos

debates travados em torno de questões que pensamos terem se constituído ainda no

período não documentado, especialmente entre 1826 e 1828, as quais se prolongariam

até a extinção do ‘Segundo Conselho de Estado’. Por conta das indicações encontradas

nas Atas posteriores a 1828, provavelmente, o debate sobre o espaço esteve centralizado

em torno de três questões: a primeira, obviamente, diz respeito à unidade do território

nacional, sendo imposta pela Guerra da Cisplatina; a segunda questão, referente ao

assentamento do espaço nacional e de seus interesses na América, derivava das várias

demandas de D. Pedro em relação à sucessão portuguesa; a terceira diz respeito ao

entendimento da conecção do espaço brasileiro com a Europa e das relações de suas

Potências com o Brasil.

Inicialmente, exemplificaremos o debate em torno da unidade do espaço

nacional utilizando para este fim a participação de Pinheiro no ‘Segundo Conselho’: sua

intelecção do espaço, desenvolvida na 'Memória acerca dos naturais limites do Brasil' e

a sua própria presença no ‘debate’, seriam postas à prova pouco depois de ser nomeado

conselheiro.

O debate seria condicionado pela influência dos interesses ingleses, que,

segundo Pinheiro, já procuravam, desde 1826, separar aquela Província do território

brasileiro e pelo desenrolar da Guerra da Cisplatina em 1828, notadamente pelas

seguidas derrotas do Exército no Rio Grande do Sul e pelo esvaziamento do bloqueio

imposto pela Marinha à Buenos Aires.253

Apesar de bem conhecer esses insucessos militares e de saber que D. Pedro I era

bastante receptivo às pressões inglesas, Pinheiro relata que o Conselho de Estado foi

completamente surpreendido pela notícia do acerto pela SNE de um Tratado de Paz com

as Províncias Unidas, pelo qual sancionava-se a secessão da Cisplatina.254

Em uma tensa sessão, praticamente todos os membros do Conselho de Estado

declarar-se-iam contra o Tratado, tachado de desigual e indecoroso ao Brasil, instando

que o governo Imperial desenvolvesse mais constância e energia para que fosse mantida

a união com a Cisplatina, somente se excetuando deste entendimento o Marquês de

Caravelas, José Joaquim Carneiro de Campos. Mas, não tendo sido modificada a

253 Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, 'Memórias do Visconde de São Leopoldo'. Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XXXVIII, 42, 1875, p. 6-7.

254 Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, 'Memórias do Visconde de São Leopoldo'. Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XXXVIII, 42, 1875, p. 44-45.

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173

opinião de D. Pedro I, seguir-se-ia a exposição do ministro dos Negócios Estrangeiros,

versando à respeito das ameaças de outras potências de romper o bloqueio brasileiro no

Prata; depois, a do ministro do Império, relatando a penúria das finanças; e, finalmente,

a do ministro da Guerra, descrevendo o estado de desagregação do Exército e a

subversão que grassava na província do Rio Grande.

Após estas exposições proceder-se-ia a uma outra votação, onde, Pinheiro

declararia depois, “vergava-se o rigor dos princípios ao império das circunstâncias”, e,

desta vez, apenas com o voto em contrário de Francisco Vilela Barbosa, Marquês de

Paranaguá, aprovando-se o Tratado de 1828 e a independência do Uruguai.255

José Feliciano Fernandes Pinheiro ainda freqüentaria as sessões do ‘Segundo

Conselho de Estado’ até o dia quatro de outubro daquele ano, quando, alegando

problemas de saúde, viajaria para o Rio Grande do Sul. De lá enviaria, em 24 de

dezembro uma carta para D. Pedro I, onde lastimaria o estado da Província e o

descontentamento com a política Imperial nos seguintes termos:

Releve-me, Senhor, que por estas e outras combinações eu avance

que o repouso que hoje noto nestes povos não é de certo conseqüência de

uma íntima satisfação, mas o efeito do cansaço depois de longas

calamidades. Todo bom brasileiro, como eu, confia que V.M. Imperial,

aproveitando-se do remanso de uma paz extorquida pela necessidade,

vingará ainda a honra e glória nacional e levantará o nosso crédito abatido.

Um grande monarca, como Vossa Majestade, não se contenta com o bem do

momento, mas pelo seu gênio e sabedoria converte e molda a seu jeito o

tempo e as circunstâncias.256

A partir do conhecimento desta carta, D. Pedro I mandaria suspender os

vencimentos de Pinheiro, intimando-o ainda a recolher os proventos dos meses

anteriores aos cofres provinciais. Pouco depois, seria também dada publicidade a este

feito, através da publicação do ofício que o originou, numa gazeta de Porto Alegre.

Finalmente, pouco mais de sete meses depois, D. Pedro I ilegalmente exoneraria

255 Atas do ‘Segundo Conselho de Estado’, 12ª Sessão, 27/08/1828; Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello,

'Memórias do Visconde de São Leopoldo'. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XXXVIII,

n° 42, 1875, p. 18-19 e 44-45.

256 Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, 'Memórias do Visconde de São Leopoldo'. Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XXXVIII, n° 42, 1875, p. 21.

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174

Pinheiro de seu posto vitalício, tornando-o o único conselheiro a sofrer tal sorte em toda

a duração do Império.257

Do mesmo modo, a questão da sucessão portuguesa demonstraria as

contradições das condições de enunciação que impediriam o ‘Segundo Conselho de

Estado’ de se transformar num local de enunciação da ‘gramática da linguagem’. Como

vimos anteriormente, a questão da sucessão portuguesa incluiria várias demandas da

parte de D. Pedro I, todas elas contrárias ao assentamento do espaço brasileiro e de seus

interesses na América. Logo em 1826 seria afastada a sua idéia da reunião entre as duas

Coroas, ainda que chegasse a sugerir o Rio de Janeiro como a sede do novo Governo.

Contudo, estas demandas chegariam a seu ápice quando, em 1830, D. Pedro I,

premido pela pressão conjunta da Inglaterra, França e Áustria reuniria o Conselho de

Estado, já sem a presença de Pinheiro, para que este ratificasse à natureza da própria

demanda, ou seja, questionava-se mesmo o novo modelo do espaço brasileiro,

admitindo-se um retrocesso à descontinuidade do antigo modelo de espaço da América

portuguesa. Nesse sentido pedia-se que os conselheiros ‘votassem’ se a questão da

sucessão era européia ou também americana e, decorrentemente desse entendimento, se

a questão da sucessão devia ser resolvida através da guerra a Portugal.

Em relação aos problemas postos em votação, o Conselho de Estado decidiria

por uma pequena margem (três votos a um, com três abstenções) que a questão da

sucessão era exclusivamente européia. Por sua vez, a guerra a Portugal seria rejeitada

por unanimidade, sendo que os conselheiros ainda procurariam certificar-se de que D.

Pedro I não proporia nenhuma declaração de guerra ou que por tal motivo perturbaria a

tranqüilidade do Império, “como tem manifestado”.258

Finalmente, a questão do entendimento da conecção do espaço brasileiro com a

Europa e das relações com suas Potências demonstraria a impotência do ‘Segundo

Conselho de Estado’ frente aos problemas da política externa, uma vez que, na prática,

apenas lhe cabia a apreciação final de suas conseqüências. Neste sentido, a consulta de 5

de março de 1829 é emblemática, pois, nesta seria apresentado pelo Ministro dos

Negócios Estrangeiros o ultimatum britânico relativo à indenização completa dos navios

apreendidos durante o bloqueio de Buenos Aires.

257 Francisco Ignacio Marcondes Homem de Mello, 'Memórias do Visconde de São Leopoldo'. Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XXXVIII, n° 42, 1875, p. 21.

258 Novamente o único voto totalmente favorável às pretensões de D. Pedro I foi o do Marquês de Caravelas. Atas do

Segundo Conselho de Estado, 39ª Sessão, 12/03/1830.

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Por este ultimatum o Comandante da esquadra inglesa estava autorizado a

proceder à represália sobre tantos navios brasileiros quanto se entendesse necessário

para a satisfação daquela dívida. Como não haviam alternativas ao Conselho de Estado

somente coube instruir ao Ministro que protestasse energicamente, mostrando a

ilegitimidade do ato britânico e a sua contrariedade ao Direito Público Marítimo

adotado pela própria Inglaterra, mas, que depois não se deixasse de pagar o que fosse

exigido.259

Portanto, a partir destas três questões centrais sobre o espaço, verificamos que

existia um constrangimento à iniciativa de pensamento que ainda se remetia à própria

constituição do Conselho de Estado e suas características moldadas então sobre um

constituição outorgada e um Executivo autoritário e personalista.

Contudo, o compartilhamento dessas experiências do Segundo Conselho

adensaria na ‘gramática da linguagem’ uma ‘gramática compartilhada’ do espaço, de

onde seus elementos seriam recolhidos e elaborados por certos ‘falantes ideais’ na

primeira legislatura do Parlamento.

O Parlamento se constituiria então num lugar de enunciação onde as condições

de enunciação permitiriam que fossem elaborados determinados enunciados sobre o

espaço e que se constituísse um pensamento acerca da reprodução das condições de

enunciação os quais consolidariam paulatinamente um teatro da narrativa onde visava-

se a construção de um saber sobre o espaço.

Nesse sentido, a operação da narrativa consistiria na capacidade de se articular

esse saber sobre o espaço, vinculando-o à reelaboração das ‘relações de soberania’ e à

centralização do Estado. Por conseguinte, se tornaria necessária a constituição de

lugares de enunciação dedicados à construção do saber sobre o espaço e que estes

fossem articulados a outros lugares de enunciação. Nestes, o saber sobre o espaço seria

reelaborado em diversas ‘inscrições do Estado no espaço’, sendo estas empregadas na

subseqüente produção e divulgação das representações do espaço nacional.

Nesta ‘continuidade lingüistica’ seria constituído um teatro da narrativa, uma

soma dos lugares de enunciação, cujos limites seriam condicionados pelos custos da

elaboração e reelaboração das condições de enunciação e da operação da narrativa

pelos ‘falantes ideais’.

259 Atas do Segundo Conselho de Estado, 25ª Sessão, 5/03/1829.

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176

Portanto, é sobre esta articulação de nossa base teórica com as pesquisas até aqui

expostas, que prosseguiremos em nosso objetivo de abordar a constituição das idéias da

‘inscrição do Estado no espaço internacional’ no ‘Terceiro Conselho de Estado’,

relacionando-a com a elaboração e reelaboração de um saber sobre o espaço através do

‘Debate’ no IHGB e com a formação de um outro lugar de enunciação na SNE.

Assim, na Câmara dos Deputados, seria aprovada, em 1827, as propostas de

Bernardo Pereira de Vasconcellos para que os ministros passassem a ter de ir prestar

contas de sua atuação ao Parlamento e de Nicolau Pereira de Campos Vergueiro para

que a prestação de contas dos ministérios fosse obrigatória através do ‘Relatório’.

Desenhava-se então, no confronto entre o Governo e o Parlamento uma

crescente identificação deste com a Nação, levando à reivindicação de poderes que

consubstanciar-se-iam na votação do orçamento e na votação das Forças Armadas,

compondo-se as bases do parlamentarismo. Estas bases poderiam então ser resumidas

na conquista pelo Parlamento, da prerrogativa de poder conceder ou não, os recursos

necessários para que o Gabinete pudesse efetivamente governar.260

Por conseguinte, através da consolidação das condições de enunciação passaria a

desenvolver-se no Parlamento uma série de enunciados a respeito da ‘inscrição do

Estado no espaço internacional’ que estavam relacionados com o compartilhamento das

experiência do ‘Segundo Conselho de Estado’.

Constituir-se-ia por meio destes enunciados um repúdio ao que era se

convencionou chamar no Parlamento de 'Sistema de Tratados', englobando-se neste

conceito a todos os tratados assinados durante as vicissitudes da Guerra da Cisplatina,

os quais impunham uma pretensa reciprocidade entre o Brasil e as nações européias.

Esta reciprocidade, na verdade, passaria a ser entendida no Parlamento como uma

expressão jurídica da desigualdade entre o Brasil e as potências européias:

Esses velhos Estados da velha Europa, ignorando os verdadeiros

princípios econômicos, julgaram que deviam fazer pender ao seu lado e em

seu favor a sonhada balança comercial. Hoje é geralmente reconhecido, que

260 Amado Luiz Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade

de Brasília, c. 1981, p. 11-13.

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os tratados não podem deixar de ser atos senão hostis, ao menos muito

odiosos às nações.261

Por conta deste entendimento, passar-se-ia também a repudiar todas as gestões

anteriores do Ministério dos Negócios Estrangeiros, denunciadas por Francisco de Paula

Souza e Melo nos termos de que “nenhuma repartição como a dos Estrangeiros tem

feito ainda mais mal ao Brasil”, principalmente do que chamava de “política de

reconhecimento”. Esta ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, identificada “com

os Tratados os mais indignos”, era caracterizada por Paula Souza como uma “baixeza

com que mendigam o reconhecimento de nossa Independência”, e era entendida como a

causadora do “estado lastimoso em que nos encontramos”.262

Por conseguinte, depois de 1828, o Parlamento passaria a exigir com que todos

os tratados negociados pela SNE tivessem de passar pela aprovação tanto da Câmara

dos Deputados quanto do Senado, antes que passassem a ter pleno efeito, uma demanda

que na verdade somente seria alcançada depois da abdicação de D. Pedro I.

Deste modo, a ‘inscrição do Estado no espaço internacional’ teria de passar

necessariamente por uma revisão do ‘Sistema de Tratados’ que incluía, num primeiro

momento, a extensão para todas as nações, dos privilégios alfandegários anteriormente

concedidos.

O estabelecimento da equalização da tarifa alfandegária em 15 % era então

entendido como uma medida provisória, para vigorar enquanto não se podia decretar a

inconstitucionalidade do ‘Sistema de Tratados’, destinando-se, segundo os argumentos

definidos por Vasconcellos no Parlamento, a “eliminar o monopólio, fazer justiça às

nações americanas, sobretudo Estados Unidos, e aumentar a concorrência da oferta

externa, tendo em vista a baixa dos preços, o aumento da importação e

consequentemente da receita.”263

Num segundo momento, a revisão do ‘Sistema de Tratados’ passaria a basear-se

no princípio de que competiria somente ao Parlamento legislar em matéria tributária,

261 Bernardo Pereira de Vasconcellos, Manifesto político e exposição de princípios, citado em Amado Luiz Cervo, O

Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade de Brasília, c. 1981, p.

21.

262 Francisco de Paula Sousa e Melo, Atas do Senado, Sessão de 12 de agosto de 1846, citado em Amado Luiz Cervo,

O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade de Brasília, c. 1981,

p. 26.

263 Amado Luiz Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade

de Brasília, c. 1981, p. 22.

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sendo que este princípio efetivar-se-ia através da recusa do Senado de renovar o tratado

com Áustria em 1836. A partir dessa recusa, todos os outros tratados passariam a

também serem recusados, culminando, num terceiro momento, com a elevação geral das

tarifas, as chamadas ‘tarifas Alves Branco’, de 1844, que seguir-se-iam ao fim do

Tratado com a Inglaterra, embora este houvesse sido renovado unilateralmente por

aquele país até o ano de 1845.264

Portanto, quando se reinstituí o Conselho de Estado em 1842, ainda que este se

constitua no bojo do ‘regresso conservador’, sua composição continuaria a privilegiar,

inclusive em sua composição, as condições de enunciação que haviam sido

estabelecidas a partir da primeira legislatura do Parlamento. Estas condições de

enunciação incluiriam o aprofundamento e a modificação do debate sobre ‘a inscrição

do Estado no espaço’ no ‘Terceiro Conselho de Estado’, visando-se com isso

estabelecerem-se subsídios que permitissem uma possível polêmica com o Parlamento,

preservando-se assim a autonomia dessa instituição frente ao Governo.

Do mesmo modo, o antigo posicionamento do Parlamento contra a SNE levaria

ao desejo dos conselheiros, especialmente da primeira geração destes, em acompanhar

de perto o funcionamento daquele ministério, desenhando-se assim, inclusive, um

controle estreito sobre suas atividades.

Cabe notar, nesse sentido, que o funcionamento do ‘Terceiro Conselho de

Estado’ era dividido em várias seções, sendo que a Seção de Justiça e Negócios

Estrangeiros (doravante citada como SJNE), como as outras seções, era composta por

três conselheiros, no caso, sendo presidida pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, que

não tinha poder de voto.

Ainda, ao contrário do ‘Segundo Conselho’, onde a minuta de cada consulta era

apresentada aos conselheiros pelo Ministro ou ainda pelo próprio Imperador, no

‘Terceiro Conselho’ cada seção possuía um relator fixo escolhido dentre seus

integrantes, o qual seria responsável por apresentar a minuta do parecer a ser votado e o

relato de sua discussão. Além disso, se não tivesse havido unanimidade nas votações, os

votos discordantes poderiam ser acrescentados em anexo ao parecer do relator.

A reunião de todas as seções comporia o chamado Conselho Pleno, quando, à

exemplo das seções, se emitiria um parecer de caráter consultivo e circunscrito ao

264 Amado Luiz Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade

de Brasília, c. 1981, p. 20-29.

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âmbito da consulta imperial. Contudo, cabe esclarecer que as seções não eram de todo

carentes de iniciativa, uma vez que podiam se reunir sem convocação e propor as ações

que então lhe parecessem convenientes, desde dissessem respeito aos assuntos que lhes

fossem afetos.

Aparentemente, se nos restringirmos aos aspectos do funcionamento e da

composição das seções, um estudo baseado nas atas da SJNE ou sobre as atas de

qualquer outras seção apresentaria, em relação àqueles produzidos a partir das atas do

Conselho Pleno, a desvantagem de condicionar-se a uma amostra muito reduzida do

pensamento do Conselho de Estado, tanto por uma suposta fixidez da composição das

seções, quanto por conta do pequeno número de sues componentes.

Contudo, na prática, a presença dos conselheiros nas reuniões secionais e mesmo

o pertencimento destes às seções eram muitas vezes transitórios, fruto de uma mecânica

de suplência oficiosa que foi adotada no ‘Terceiro Conselho de Estado’ à margem do

seu Regimento. Assim, tornar-se-ia possível, inclusive, pensar as alterações na

composição das seções dentro de um contexto de estratégias ou alianças que refletissem

não só as mudanças no poder ou a predominância de determinada corrente de

pensamento, mas também a importância de cada seção relativamente à cada conjuntura

política.

Por outro lado, era relativamente comum que se reunisse mais de uma seção

durante certas discussões. No caso de algumas reuniões da SJNE, aconteceria

ultrapassar-se, inclusive, o quantitativo necessário à reunião do Conselho Pleno, que era

de sete conselheiros. Por conseguinte, poder-se-ia, através de uma análise baseada nas

presenças às reuniões, aventar-se a projeção e o peso das discussões travadas e sob

quais circunstâncias teria sido empreendido o debate em cada uma das seções.

Finalmente, em vários momentos, os líderes dos partidos Conservador e Liberal

participariam das reuniões da SJNE, o que permitiria avaliar a existência de enfoques

particulares a cada uma destas agremiações ou ainda os seus interesses conjunturais em

respeito a certos aspectos específicos da vida política, os quais, por sua vez, poderiam

ser mais aprofundados por conta da própria divisão temática que circunscrevia cada uma

das seções.

Por conseguinte, seguindo-se este raciocínio e voltando-o para nosso estudo, as

atas da SJNE possuiriam a vantagem de ser um material de análise, não apenas do

pensamento específico sobre o espaço, mas também uma amostra das práticas do

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‘Terceiro Conselho de Estado’ e mesmo da política do Império, constituindo um

microcosmo de sua atuação.

Assim, uma das questões que pode ser colocada a partir desta pesquisa sobre as

atas da SJNE diz respeito à importância da representação dos partidos políticos e de

seus programas no pensamento do espaço no ‘Terceiro Conselho de Estado’.

Considerando que o ‘Terceiro Conselho’ foi constituído no decorrer do ‘regresso

conservador’ e da disputa com os liberais, a constituição inicial da SJNE refletiu a

predominância do partido conservador, assim como suas sucessivas formações

refletiriam depois a adesão do Partido Liberal às regras do poder. Deste modo, a partir

de 1847 se daria o concurso de liberais à Seção, no caso, Miguel Calmon du Pin e

Almeida, o Marquês de Abrantes e Antônio Paulino Limpo de Abreu, o Visconde de

Abaeté, em 1848.

Mesmo que o problema da influência dos partidos nos debates do ‘Terceiro

Conselho de Estado’ seja no mínimo discutível, haja vista existir um sentimento comum

a respeito da independência do voto entre os conselheiros ,265

os dados de nossa

pesquisa permite que façamos algumas reflexões a respeito do sentido do voto e da

representação dos partidos nas seções.

Primeiramente, em relação ao sentido do voto, entendemos que o predomínio

conservador na composição da SJNE foi contrabalançado, especialmente nos anos do

gabinete liberal, entre 1844 e 1848, através do mecanismo de suplência e de reunião das

seções anteriormente referido, o que permitiu a presença dos dois partidos, e inclusive

de seus líderes, na maioria das discussões da SJNE.266

Por conseguinte, se a influência dos partidos se fizesse sentir nos debates da

seção, certos posicionamentos tradicionalmente atribuídos a cada um dos partidos

dever-se-iam explicitar, ao menos, demonstrando-se uma tendência partidária dos

conselheiros nas questões mais sensíveis, como, por exemplo, naquelas que dissessem

respeito ao liberalismo ou ao intervencionismo, mas, em nenhuma das cento e quinze

atas analisadas foi encontrada uma oposição estrita entre representantes dos dois

partidos.

265 Veja-se por exemplo, José Murilo de Carvalho, A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de

sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 361.

266 Verifica-se a presença nas votações da SJNE, durante o período, dos seguintes liberais: Antônio Paulino Limpo de

Abreu (Visconde de Abaeté), Francisco de Paula Sousa e Melo, Manuel Alves Branco (2º Marquês de Caravelas) e

José da Costa Carvalho (Marquês de Monte Alegre).

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Ainda, mesmo em muitas das sessões do período pesquisado as reuniões

contassem apenas com a presença dos conservadores, nossa análise das atas dão conta

de intensas divergências durante essas reuniões e de pareceres sem consenso, ocorrência

que tornar-se-ia, inclusive, bastante comum a partir de 1844 (ver Tabela 1).

Assim, podemos entender que o sentido de independência de voto dos

conselheiros no ‘Terceiro Conselho’ permitiu que o debate sobre o espaço não fosse

construído sobre posicionamentos partidários mas a partir de diversos enunciados

elaborados sobre os elementos retirados da ‘gramática compartilhada’ ou sobre um

‘saber sobre o espaço’ constituído em outro lugar de enunciação.

Esta consideração pode ser perfeitamente demonstrada a partir da comparação

desses enunciados com a produção derivada do debate no IHGB e se contrapõe, de um

modo geral, à idéia de que a política externa do Império foi o ponto de consenso entre

os partidos ou de que foi apenas um ato reflexo da conjuntura internacional.

Portanto, podemos considerar, dentro do mesmo raciocínio, que a política

externa é constituída a partir de um ‘saber sobre o espaço’ em contínua elaboração, o

que permitiria estender o domínio da História sobre um outro campo, o da análise da

política externa, por conseguinte, mais além de uma mera ‘análise do processo

decisório’, permitindo-se com isto, melhor explicar certos problemas pouco entendidos,

como, por exemplo, a influência da geopolítica sobre a política externa brasileira

durante o século XX.

TABELA 1 —- DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS NA SJNE (1842-1848)

Ano Divergências Convergências Divergências ( %)

1842 0 7 0%

1843 3 2 60%

1844 7 11 39%

1845 8 18 31%

1846 15 28 35%

1847 1 11 8%

1848 3 1 75%

Fonte: Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, 1842-1848.

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Em segundo lugar, em relação à representação dos partidos na Seção,

procederemos a um exame da tabulação das divergências e convergências nas reuniões

da SJNE no período que antecedeu a chamada ‘grande política americana’,

normalmente entendida como um ponto de inflexão entre uma ‘política externa liberal’

e uma ‘política externa conservadora’.

Observe-se que os dados referentes aos anos de 1842, 1843, 1847 e 1848 se

apresentam como atípicos na série tabulada: enquanto 1843 e 1848 apresentam o maior

número de divergências no período, 1842 e 1847, apresentam tanto o maior percentual

de convergências. Assim, para a análise desta série tabulada, consideraremos existirem

duas séries atípicas em relação ao conjunto, os anos 1842-1843 e 1847-1848.

Num primeira análise, sabe-se que Paulino José Soares de Souza assumira a

SNE em 1843, sendo substituindo já em 1844 por conta das resistências às intenções de

então se instaurar uma política intervencionista no Prata. Também sabe-se que o mês de

setembro de 1848 marca a volta de Paulino José Soares de Souza à SNE, encerrando-se

um período de grande instabilidade naquele ministério, que foi ocupado por cinco

titulares em menos de dois anos.267

A partir da posse de Paulino José Soares de Souza na SNE em 1848, definir-se-

ia oficialmente a doutrina de limites a ser seguida pelo Império, a saber, o Uti Possidetis

e a nulidade dos tratados coloniais. Também seria inaugurada uma nova fase na política

externa, chamada na Parlamento de ‘a grande política americana’, que seria

caracterizada pelo retorno à presença ativa no Prata, após se resolver, pelo fim do

Tráfico de escravos, as pressões inglesas reguladas pelo ‘Bill Aberdeen’.

Novamente, se apenas observássemos somente por uma ‘análise do processo

decisório’, atribuiríamos as atipicidades observadas em nossa série de dados à

alternância no poder entre os partidos Liberal e Conservador, já que traduziríamos essas

atipicidades por uma oscilação da política externa entre a intenção de intervir, a

neutralidade e o intervencionismo.

Ainda se utilizássemos apenas a análise do processo decisório, as questões da

neutralidade e da intervenção deveriam ser entendidas enquanto diferenciais entre os

partidos Liberal e Conservador, sendo então o debate destas questões na SJNE uma das

explicações dos altos percentuais de divergências na seção, já que esta seção era um dos

267 De janeiro de 1847 até setembro de 1848, passam pela SJNE, respectivamente, os seguintes ministros: Bento da

Silva Lisboa (2º Barão de Cairú), Saturnino de Sousa e Oliveira, José Antonio Pimenta Bueno, Antônio Paulino

Limpo de Abreu e Bernardo de Sousa Franco.

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lugares por excelência da discussão da política externa e mesmo porque ali estavam

representados os líderes dos dois partidos.

Entretanto, se observarmos a primeira série atípica (1842-1843), veremos que no

ano que precederia a destituição de Paulino José Soares de Souza e a alternância de

poder, ocorreu um aumento da ordem de 60% no quantitativo de divergências, o que

ainda poderia ser explicado de várias formas por uma análise baseada no ‘processo

decisório’, mas, note-se que neste período a predominância conservadora na seção era

absoluta.

Do mesmo modo, na segunda série atípica (1847-1848), veremos que nos anos

que precederiam a ‘grande política americana’ e a alternância no poder entre os dois

partidos, as consultas à SJNE diminuem 77%, apresentando-se então apenas 8% de

divergências, quando deveria ter-se dado exatamente o contrário.

Então, ao entendermos que a política externa se constituí a partir de um ‘saber

sobre o espaço’ isto permitir-nos observar que, ao invés de representar um tendência

partidária, como já aventamos, não existia na SJNE nenhum consenso à respeito da

intervenção nem uma clara definição de política partidária que permitisse basear uma

‘análise do processo decisório’, devendo-se mesmo salientar que, a doutrina de limites,

geralmente relacionada ao partido conservador, deveu-se a uma lenta constituição do

‘saber sobre o espaço’ durante as décadas de trinta e quarenta, conforme explicitaremos

no capítulo seguinte.

Por conseguinte, para que se possa explicar convenientemente tais ocorrências

atípicas na tabela, mais a persistência de um grande quantitativo de divergências nos

outros anos, é necessário esclarecermos que, no período estudado, existiam na seção

diferentes idéias da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’ e que estas idéias se

sobrepuseram às tendências partidárias.

Assim, podemos entender o incremento das divergências como um indício do

surgimento destas novas idéias para o que, como sabemos que não houve uma alteração

na composição oficial dos membros da SJNE, seria necessário que um dos membros da

seção passasse a defender outra idéia ou que os mecanismos de suplência e de reunião

das seções do ‘Terceiro Conselho de Estado’, em função de algum arranjo interno,

fossem os responsáveis por este aumento das divergências.

Por outro lado, o decréscimo das divergências poderia indicar a existência de um

consenso em torno de uma idéia da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, mas,

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184

como sabemos que isto não aconteceu, por meio da análise das atas, devemos entender

que uma das explicações possíveis para a diminuição abrupta das consultas à SJNE

(uma diferença de 90,7% entre 1846 e 1848) é a de que ter-se-ia processado alguma

transformação no relacionamento com a SNE, já que esta era a fonte das consultas e que

tal transformação tornou as consultas à SJNE menos necessárias.

O exame das atas nos permite observar que outros conselheiros passariam a

integrar as reuniões da seção justamente a partir do primeiro período atípico (1842-

1843), sendo que um destes conselheiros, Bernardo Pereira de Vasconcellos, teria um

engajamento nas discussões da SJNE completamente desproporcional ao dos demais

conselheiros (ver Tabela 2).

Bernardo Pereira de Vasconcelos estaria presente a praticamente todas as

reuniões da SJNE até 1848, se tornando o relator de 52% das consultas no período

1842-1848, número que subiria para 56% se fossem considerados os dados somente a

partir de 1843, ano em que Vasconcelos começa a participar das reuniões da SJNE.

Ainda, no período 1846-1848, este conselheiro exerceria a função de relator em 63%

das reuniões, um número impressionante, ainda mais se for considerada a sua

progressiva decadência física, originária de uma enfermidade que debilitava

enormemente suas faculdades motoras (note-se que Vasconcelos morreria em maio de

1850).

Outra constatação importante é que, paralelamente a este engajamento

progressivo de Vasconcelos na seção, reduziram-se as ocasiões em que o Imperador

restituiu a matéria de consulta da Seção ao exame do Conselho Pleno,268

o que,

provavelmente, é um indicador tanto do maior prestígio da seção quanto do alcance dos

argumentos do relator.

Portanto, a inserção de Bernardo Pereira de Vasconcellos na SJNE, sua

assiduidade, o controle da função de relator e o menor índice de rejeição dos Pareceres

da Seção pelo Poder Moderador nos possibilita entender que os mecanismos informais

do ‘Terceiro Conselho de Estado’ seriam operados como um instrumento regulador das

‘relações de força’, entendidas aqui no sentido empregado por Foucault em sua obra

268 Conselho de Estado: 1842-1889 - Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros vol. II Brasília: Câmara dos

Deputados, 1978, p. 14.

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‘Em defesa da Sociedade’, enquanto uma reinserção do Poder, ou seja, um exercício

continuado de reelaboração das relações de poder.269

Neste sentido, se entendermos a SJNE como um microcosmo da política

Imperial, estas ‘relações de força’ seriam reelaboradas transversalmente às instituições,

aos regulamentos e às leis, excedendo e ultrapassando a organização constituída, para

recolocar e relembrar pontual e oportunamente um poder historicamente estabelecido.

Em terceiro lugar, delinear-se-ia ainda uma transformação progressiva no

relacionamento entre SJNE e a SNE durante o período observado, a qual irá se

caracterizar pelo controle progressivo das funções diretivas e administrativas da SNE

pela SJNE.

TABELA 2 — RELATORES DAS CONSULTAS DA SJNE ENTRE 1842 E 1848.

Relatores 1842-45 1846-48 Total

Bernardo Pereira de Vasconcelos 23 (41%) 37 (63%) 60 (52%)

Caetano Maria Lopes Gama 14 (25%) 10 (17%) 24 (21%)

Honório Hermeto Carneiro Leão 7 (13%) 8 (14%) 15 (13%)

José da Costa Carvalho 7 (13%) 7 (6%)

José Cesário de Miranda Ribeiro 1 (2%) 1 (1%)

Miguel Calmon du Pin e Almeida 2 (3%) 2 (2%)

Antônio Paulino Limpo de Abreu 2 (3%) 2 (2%)

Sem identificação do relator 3 (5%) 2 (2%)

Total 56 (49%) 59 (51%) 3 (3%)

Fonte: Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, 1842-1848.

Neste sentido, já a primeira consulta à SJNE é na realidade uma prestação de

contas da SNE e uma exposição de seu planejamento futuro para os conselheiros,270

o

que provavelmente espelha a preocupação do Parlamento com a independência que

269 Michel Foucault, Em Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes,

1999, p. 22-24.

270 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 11/03/1842.

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186

aquele ministério conduzira a política externa frente ao legislativo durante o Primeiro

Reinado e que ainda era manifestada espontaneamente por estes em meados da década

de 1840,271

ou seja, revela-se a influência de uma ‘gramática compartilhada’ pelos

conselheiros.

Assim, esta atitude de vigilância em relação à SNE se transformaria

paulatinamente num controle estrito, como pode ser observado a partir de 1844, quando

a SNE passaria a encaminhar os pedidos de instruções dos diplomatas estrangeiros à

Seção,272

prosseguindo essa transformação através da iniciativa seccional de reorganizar

o serviço diplomático brasileiro, inclusive introduzindo os princípios do mérito e da

competência para a admissão na carreira diplomática e culminando com a vinculação

dos processos de demissão do pessoal da SNE à chancela e julgamento da SJNE.273

Ainda, a SJNE passaria a regular tanto os assuntos mais importantes, como as

instruções aos diplomatas, fornecidas minuciosamente pela Seção,274

quanto as questões

mais triviais do funcionamento da SNE, tais como, gratificações, emolumentos,

regulamentos consulares275

e até mesmo a aposentadoria de diplomatas.276

A transformação na interação entre os dois órgãos se tornaria mais aguda entre

os anos de 1846 e 1847, quando a própria estrutura da SNE tanto interna quanto externa,

passa a ser organizada a partir de regulamentações discutidas no âmbito da SJNE.277

Sintomaticamente, Bernardo Pereira de Vasconcelos serviu como relator em quase

todos os pareceres onde se alteraria substancialmente o poder e a influência da Seção

sobre a SNE.

Portanto, como a transformação no relacionamento entre a SJNE e a SNE

coincide com a reelaboração das ‘relações de força’ na Seção, poderíamos supor, se

entendêssemos a SNJE como um microcosmo da política Imperial, que o ‘Poder

político’ teria como uma de suas funções reinscrever continuamente as ‘relações de

271 Amado Luiz Cervo, O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Editora Universidade

de Brasília, c. 1981, p. 26.

272 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 28/06/1844.

273 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 10/07/1845.

274 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 30/07/1845.

275 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 09/03/1847, 06/05/1847, 18/10/1847, 27/09/1848 e

13/12/1848.

276 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 31/12/1853.

277 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 11/02/1846 e 18/10/1847.

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187

força’ nas instituições, nas relações entre as instituições, na regulamentação das

instituições e se voltarmos esta ilação para o nosso estudo, até mesmo na linguagem.

Em 1842, no Conselho de Estado, as principais idéias da ‘inscrição do Estado no

espaço’ giravam em torno das idéias da reafirmação da soberania e da construção

econômica da nação, cujas discussões estavam ligadas aos problemas decorrentes do

‘Sistema de Tratados’.

Enquanto a maioria dos integrantes da Seção entendia então que convinha

sacrificar parte da soberania em razão da grande necessidade de comércio, de capitais e

de população a ser satisfeita pela imigração, alguns outros defendiam o fim dos

privilégios do ‘Sistema de Tratados’,278

embora, de um modo geral, os pareceres fossem

bastante complacentes em relação aos interesses dos países europeus.

Dominava então uma idéia da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’

numa ‘comunidade idealizada’ que nos reunia aos países europeus, seja pelas idéias,

seja pela origem ou pelos costumes.

Em relação à ‘inscrição do espaço nacional’ a Seção reconhecia que o

desconhecimento do território e de seus limites impunha uma recusa em celebrar

tratados com os países limítrofes279

e demonstrava grande relutância em se desvencilhar

dos antigos tratados coloniais, uma vez que não se podia sequer supor se as inovações

poder-se-iam traduzir em benefícios ou perdas.280

Mas, posteriormente, começar-se-ia a esboçar, a partir da entrada de Bernardo

Pereira de Vasconcelos na Seção, uma idéia de ‘inscrição do Estado no espaço

internacional’ que identificava claramente os interesses comerciais das potências

européias no Brasil com o aumento de sua ‘influência’, considerando-se esta como

danosa aos interesses nacionais.281

Embora seja certo que alguns destes elementos já estivessem presentes na

repulsa ao ‘Sistema de Tratados’ esboçada anteriormente na Seção, naquele momento o

argumento concorrencial ainda não era decisivo, uma vez que compreendia-se que as

relações com as potências européias revestiam-se de um caráter civilizador, permitindo

278 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 04/11/1842 e pareceres anexos de 20/12/1842 e

11/07/1843.

279 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 23/06/1845.

280 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 16/06/1842.

281 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 18/09/1843.

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188

ainda a alguns conselheiros subestimar assim as restrições impostas à soberania

brasileira.

Por conseguinte, a denúncia do avanço da ‘influência’ estrangeira iria constituir-

se no cerne de uma idéia de ‘inscrição do Estado no espaço nacional’ que contrapunha o

estrangeiro ao nacional e advogava a resistência e a exaltação dos valores e instituições,

afirmando, por exclusão, uma identidade nacional.282

Neste sentido, o legado das

tradições portuguesas seria identificado ao nacional e à construção da Nação, num

contexto de reação ao estrangeiro que teria a animosidade contra a Inglaterra e contra

suas ações como um dos seus vetores.

Este contexto também refletiria as discussões anteriores do Parlamento e as

variáveis do sistema de relações continental, gerando, na associação com o legado

português, os primeiros esboços de um espaço nacional brasileiro. Deste modo

resultaria incluir-se nesta idéia a oposição e desconfiança para com os habitantes das

antigas colônias hispânicas, considerados indistintamente como herdeiros de uma

rivalidade intransponível e rancorosa contra os brasileiros.283

Nesta idéia, a ‘inscrição do espaço nacional’ incluiria o conceito das ‘fronteiras

naturais’ esboçado anteriormente por Pinheiro nas ‘Memórias’, buscando-se assim

distinguir o Brasil dentre as outras nações do continente americano. Esta separação

então passaria a ser interpretada num contexto idealizado onde o Brasil significava, em

oposição aos seus, vizinhos, a ordem e a civilização e onde, por exemplo, insere-se a

idéia da reincorporação do Uruguai, “que pertencera ao Brasil por livre e espontânea

vontade” e do qual fora separado “graças ao Imperador D. Pedro I ter cedido aos

impulsos dos sentimentos liberais e generosos do seu coração”.284

Por conseguinte,

demonstrar-se-ia também por esta idéia a influência da ‘gramática compartilhada’ e da

experiência do ‘Segundo Conselho’.

Ainda através desta nova idéia, da qual Bernardo Pereira de Vasconcelos seria o

maior defensor na SJNE, se proporia uma nova relação do Brasil com as potências

européias: os acordos que fossem celebrados com estes países deveriam possuir

compensações reais e condições iguais para o país, jamais tolhendo as iniciativas do

282 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 23/02/1844.

283 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 02/07/1844.

284 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 05/07/1844 e 29/07/1844.

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189

Legislativo “na adoção de medidas apropriadas ao desenvolvimento da indústria, bem-

estar e prosperidade do Brasil”.285

Frente a vários problemas, como em relação ao Prata ou ao Tráfico, a postura

dos defensores desta idéia seria pragmática, pois defendiam a neutralidade do Brasil no

Prata e na Amazônia, como um instrumento ditado pela ocasião, enquanto se

acumulassem as forças materiais necessárias para um futuro confronto, já que este seria

inevitável.

A própria escravidão e o Tráfico não eram considerados ideais, mas, necessários,

uma vez que o contexto criado pela falta de braços para a agricultura havia

proporcionado o apoio das elites produtoras ao Tráfico. Este apoio se daria tanto no

Parlamento, resultando em diversas dificuldades para a aprovação de leis que

possibilitassem a venda de terras e a imigração de colonos, quanto no nível local, onde a

direção da eleição dos juizes de paz garantia uma tolerância completa ao Tráfico,

especialmente nos locais de desembarque.286

Entretanto, outra idéia da ‘inscrição do Estado do espaço’ desenvolver-se-ia a

partir dos antigos posicionamentos majoritários na SJNE e seu maior expoente será

Caetano Maria Lopes Gama. Seus partidários eram favoráveis a uma maior

aproximação e identificação com a Europa e considerava que as divisões políticas

provocadas pelos partidos e o mau estado das finanças públicas eram os responsáveis

pelo declínio da situação nacional. Essa fraqueza conjuntural fatalmente levaria à

agressão externa e ao conseqüente esfacelamento do território, sendo urgente, portanto,

incentivar e acelerar reformas que servissem, ao mesmo tempo, para fortalecer a

autoridade central e proteger a propriedade.

Esta idéia considerava ainda o tráfico de escravos como um elemento retardador

da indústria e da riqueza nacional, que inibia a imigração européia e inviabilizava o

crescimento da população livre e o entendimento com a Inglaterra.287

A continuação do

Tráfico, além de estimular a mistura de raças, poderia ser a ruína da Monarquia e das

elites, um “Cavalo de Tróia” que “introduzia diariamente no Brasil os defensores das

instituições do Haiti”.288

285 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 16/09/1844.

286 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 10/10/1846.

287 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 28/06/1844.

288 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 10/08/1846.

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190

Quanto à ‘inscrição do espaço nacional’, por motivos políticos e econômicos a

região do Prata era considerada como uma de suas projeções e a intervenção, fosse

diplomática ou militar, era advogada como o instrumento necessário para salvaguardar

os interesses do Brasil, salientando-se neste processo, porém, a necessidade do

entendimento e mesmo do alinhamento do Brasil com a Europa.

Ainda outra idéia da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’ se

desenvolveria no âmbito da SJNE, derivada das antigas posições minoritárias no

‘Terceiro Conselho de Estado’ e centralizada na figura de Francisco de Paula Sousa e

Melo.

Nesta idéia, a neutralidade não era apenas uma condição para o crescimento do

Brasil, mas a única postura possível diante da constatação da pouca importância do país

nos cenários americano e mundial e em face dos insucessos recentes e passados. Dadas

estas condições, caberia ao Brasil construir com os seus vizinhos as condições de

convivência e prosperidade material, inclusive no respeito ao território destes.

Para que fosse possível a resistência às pressões externas seria necessário abrir

novas vertentes diplomáticas, especialmente estreitando-se as relações com os Estados

Unidos e a Rússia, vistas como nações cujos interesses coincidiriam com os do Brasil e

que seriam possuidoras de peso e influência sobre a política externa da Inglaterra.289

Esta idéia entendia, por conseguinte, existirem semelhanças entre o Brasil e os

demais países da América, o que levava à necessidade de uma convivência pacífica e à

procura de novas oportunidades no espaço internacional fora da ‘comunidade

idealizada’.

Contudo, a Inglaterra não era entendida como um adversário, mas como um

exemplo a ser copiado, logo, um país com o qual o Brasil devia buscar a colaboração e

o entendimento. Assim, os partidários desta idéia acreditavam ser necessário elaborar

estratégias que privilegiassem as relações comerciais em lugar da diplomacia estrita e,

nesta ótica, se considerava imperativo superar a estreiteza das relações internacionais

através do privilégio ao comércio.

As variáveis das relações internacionais teriam ainda uma grande influência no

desenvolvimento das tensões e das relações entre as idéias da ‘inscrição do Estado no

espaço internacional’. O aumento das pressões inglesas corresponderia a uma tendência

para se alinharem as posições na SJNE, por exemplo, entre novembro de 1844 e janeiro

289 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 23/12/1845 e 23/06/1845.

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191

de 1845, seria produzida uma série rara de decisões unânimes contra as posições

inglesas, sobretudo no tocante às Comissões Mistas.

Refletindo esta inclinação, a argumentação dos pareceres relativos à extinção das

Comissões Mistas se constituiria, em grande parte, no amálgama dos principais

enunciados das idéias, pois seriam invocados como razões dos pareceres tanto o

problema da obstrução do comércio, quanto as questões relativas à soberania e à

carência de braços para a agricultura.

Esta construção conjunta também se repetiria no embasamento do progressivo

abandono da idéia de neutralidade no Prata – seriam arrazoados tanto a concorrência

comercial sofrida pelo Brasil, quanto a tradição estratégica portuguesa de evitar o

engrandecimento argentino e o temor da intervenção externa seguida de fracionamento

do território nacional.

Do mesmo modo, as diferenças entre as várias idéias da ‘inscrição do Estado no

espaço internacional’ não impediam que em vários momentos as idéias da ‘inscrição do

espaço nacional’ convergissem: os limites do Tratado de Santo Ildefonso e do Tratado

de Madri deixariam de ser, durante a década, uma referência para os limites e passariam

a ser rejeitados por defensores das várias idéias enquanto parte de uma postura

calculada para possibilitar uma futura expansão brasileira, uma vez que seu

entendimento do uti possidetis, era a de que este era um instrumento apenas

circunstancial.290

Esta interpretação se dava pela identificação temporária das idéias com o antigo

pensamento estratégico português, que priorizava a consolidação de posições em lugar

de ocupação do território. Entretanto, haviam algumas diferenças entre as idéias da

‘inscrição do Estado no espaço’, enquanto a corrente de Lopes Gama se postou contra

os tratados com os países vizinhos, a tendência do grupo de Vasconcellos era entender

que os tratados com os países vizinhos podiam ser possíveis, na medida em que, no

interesse nacional, projetassem ou resguardassem a influência brasileira.

Dentro deste raciocínio, sob a liderança de Vasconcelos, a própria SJNE tomaria

a iniciativa de propor, um ‘Tratado de amizade, comércio, navegação e limites’ com o

Paraguai,291

assim como sugeriria a negociação de limites com a Venezuela a fim de

290 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 23/06/1845.

291 Note-se que não estiveram presentes à reunião os representantes da posição contrária. Atas da Seção de Justiça e

Negócios Estrangeiros, consulta de 25/06/1845.

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diminuir a pressão britânica sobre o território de ambos os países e impedir a expansão

territorial daquela potência na Amazônia.292

Entretanto, essa convergência pontual das idéias da ‘inscrição do Estado no

espaço’ se origina da liderança exercida por Vasconcelos na Seção, uma vez que seu

pragmatismo evitará tanto o rompimento de relações com a Inglaterra, que foi

preconizado em vários momentos pelos defensores das outras idéias, quanto logrará

evitar as hostilidades e o engajamento precoce no Prata.

Ainda que não se consolidem as alternativas de Vasconcelos ao Tráfico293

e que

sua liderança fosse interpretada como uma tolerância às humilhações impostas pela

Inglaterra,294

a construção de um ideário de identidade nacional através da identificação

com a herança portuguesa e com a afirmação e diferenciação do Brasil no cenário

americano e mundial se confirmaria como a mais influente idéia da ‘inscrição do Estado

no espaço internacional’: o Brasil seria idealizado como “o supremo árbitro dos novos

Estados da América ex-espanhola e o rival da grande potência americana outrora

colônia inglesa.”295

Suas idéias avançariam inclusive no sentido de diferenciar os interesses da

monarquia daqueles do Estado brasileiro: as idéias de reciprocidade de tratamento e

parentesco deveriam ser substituídas pelas do realismo político e dos interesses

comerciais. Inclusive, como parte desse raciocínio, estariam incluídos dentre os deveres

que cabiam aos membros do corpo diplomático brasileiro no exterior, “influir, e até

dirigir a administração [daqueles países] em benefício de sua nação, sem que, contudo,

de qualquer modo a comprometa, e lhe suscite os menores embaraços e dificuldades.”296

Ainda assim, o pensamento do espaço na SJNE durante o período 1842-1848

não deve ser analisado apenas através de uma ótica que o entenda como um embate de

várias idéias sublimadas na SJNE, embora realmente estas sejam recolhidas das

discussões do Parlamento, do debate no IHGB e das construções da SNE.

Na verdade o pensamento do espaço na SJNE apenas interage no teatro da

narrativa servindo como um local de enunciação e de reelaboração das representações,

292 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 06/10/1846.

293 Através, por exemplo, de acordos com o Zollverein ou do incentivo à imigração chinesa (Atas da Seção de Justiça

e Negócios Estrangeiros, respectivamente, consultas de 17/03/1846 e 30/05/1846).

294 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 11/04/1846 e seguintes.

295 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 30/07/1845.

296 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 18/10/1847.

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193

mas, será em outros locais de enunciação que se elaborará um ‘saber sobre o espaço’

cuja organização permitirá que se conduza uma operação desse saber numa narrativa.

Entretanto, a reorganização da SNE coordenadas por Vasconcelos permitiram que após

sua morte, esta fosse reconstituída como um local de enunciação e que mais tarde

assumisse a operação da narrativa, permitindo que as ‘relações de força’ fossem

reinscritas continuamente também através da reelaboração do ‘saber sobre o espaço’.

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8 — UM ITINERÁRIO DO VALIOSO AO POSSÍVEL: O UTI POSSIDETIS E A

OPERAÇÃO DA NARRATIVA.

“Desta forma conseguiria o Império, aproximadamente, a Fronteira possível, pelo

único direito valioso, isto é, o uti possidetis, apoiado com a Força; sem a qual nada

de proveito obterá o Governo Imperial dos outros seus vizinhos limítrofes.”

Duarte da Ponte Ribeiro. Apontamentos.

Como vimos nos capítulos anteriores, a narrativa do século XIX se estabeleceu

num lugar validado por um ‘saber sobre o espaço’, por conta da elisão da narrativa do

setecentos e da construção de uma idéia do espaço nacional que entroniza a nação. Esta

construção incorporou tanto a idéia de um espaço brasileiro unitário quanto se apropriou

das corografias no debate do IHGB. Nesse sentido, se utilizarmos a idéia da ‘Forma’ da

linguagem de Humboldt e suas ‘leis de geração’,297

ter-se-iam já estabelecido as ‘regras

de articulação do discurso’ e as ‘regras de formação das palavras’ por meio da

articulação do ‘saber sobre o espaço’ num debate no teatro da narrativa e de sua

condução pelos ‘falantes ideais’, a saber, aqueles indivíduos capazes de compreender

integralmente a ‘linguagem do espaço’, reelaborá-la e de expressá-la. Por conseguinte,

em relação à idéia de Humboldt, faltar-nos-ia desenvolver ainda a ‘regra de formação

dos conceitos que determinam a classe das palavras-raízes’.

Portanto, o primeiro objetivo deste capítulo será explicitar essas regras

utilizando o conceito do uti possidetis, procurando entender a ‘linguagem do espaço’

como ‘uma atividade produtiva’ [eine genetische], um ‘trabalho mental’ [Arbeit des

Geistes], conforme Humboldt, a partir do que buscaremos, como segundo objetivo deste

capítulo, demostrar o desenvolvimento e as condições da operação da narrativa, por

meio do debate do IHGB e da atuação de seus operadores.298

297 Ver o capítulo ‘O assento central’.

298 A idéia de ‘operador da narrativa’ remete-se ao conceito de ‘operador social’ de Gilbert Durant, utilizado por esse

autor para definir os indivíduos que, através da narração oral ou literária, produzem ou difundem o Mito. Ver

Gilbert Durand, Mito e Sociedade. Lisboa: A Regra do Jogo, 1983, p. 53-55.

.

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195

Como é sabido, a construção narrativa do século XIX se articula em torno de

uma ‘linguagem do espaço’ que possui duas ‘palavras-raízes’ principais e ligadas: ‘uti

possidetis’ e ‘Tratado de Madri’. Estas ‘palavras-raízes’ seriam, separadamente,

constituídas em representações que, uma vez ligadas, tornar-se-iam capazes de

comunicar os diversos eventos e termos da narrativa entre si. Essa ligação entre as duas

‘palavras-raízes’ produz, no sentido e ordem usuais, um enunciado específico através da

conexão de suas representações: instrumento jurídico consagrado pela antigüidade,

cujas origens se perdem no tempo consenso originador do espaço nacional.

A chave interpretativa deste enunciado, e da própria narrativa do XIX, é que,

primeiramente, a construção da representação das ‘palavras-raízes’ pode ser

historicizada e que aquela deriva da atuação dos operadores da narrativa. Em segundo

lugar, como a ligação dessas construções se fez através da permutação dos atributos das

duas ‘palavras-raízes’ em diversos pares sintáticos capazes de afetar continuamente

todos os novos eventos e termos da narrativa tais como, [consenso antigüidade],

[instrumento consenso] e [espaço origens], entendemos que essa permutação e

ligação se deu através de uma operação da narrativa, que, novamente, também pode ser

historicizada.

Nesse sentido, se remontarmos à nossa idéia da produção do espaço no IHGB e

da apropriação das corografias, que poderíamos definir como um ‘ato de releitura’,299

verificamos que nele ocorre o mecanismo inscrição — interpretação — escritura, no

qual, se novamente remontarmos a Jacques Derrida, participaria da idéia de uma

‘economia da palavra’, que presumiria “um encadeamento lógico sob a forma da

simultaneidade” onde as palavras são “também primariamente coisas”. Derrida,

interpretando Freud, pressuporia então uma “transgressão” do “sentido habitual da

palavra linguagem”, onde ‘linguagem’ seria entendida como “toda espécie de expressão

da atividade psíquica”,300

por conseguinte, nos levando a entender a idéia da ‘atividade

gerativa’ de Humboldt [eine Erzeugung] como um processo de inscrição das

experiências, onde as ‘palavras-raízes’ resultariam de uma composição organizada pelas

oportunidades de inscrição.

299 Ver o capítulo ‘A descrição do contemplador’.

300 Jacques Derrida, ‘Freud e a Cena da Escritura’, in A Escritura e a Diferença São Paulo: Editora Perspectiva, 2002,

p. 210-213.

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196

Portanto, a narrativa do XIX deve ser entendida enquanto um ‘ato de releitura’

onde se instaura um processo de construção da linguagem que torna cada palavra parte

mesmo da representação e ainda, cada uma destas representações indistintas entre si.301

Nesse sentido, poderíamos ainda utilizar uma aproximação com a lingüística

através do conceito de ‘gramática gerativa’ de Noam Chomsky,302

uma vez que este

possibilita uma análise tanto da articulação da narrativa do XIX quanto da construção de

suas representações.

Segundo Chomsky, os processos mentais de uma ‘gramática gerativa’ se

constróem sobre o que o operador já conhece e não sobre “aquilo que possa informar

sobre o seu conhecimento”, idéia que pode ser corroborada pela asserção de Roman

Jakobson sobre o poder coercitivo do modelo gramatical: “toda a diferença nas

categorias gramaticais conduz informação semântica.”303

Portanto, a transformação estrutural da sentença não é determinada pela

gramática, mas por condições que Noam Chomsky definiria como pertencentes à teoria

do uso da linguagem — teoria do desempenho: as sentenças mais aceitáveis seriam

aquelas que produzissem melhor desempenho e não aquelas que fossem

gramaticalmente mais corretas. No caso, para cada sentença haveria uma estrutura

profunda capaz de determinar sua interpretação semântica, constituída por um conjunto

restrito de seqüências básicas, nas quais, as sentenças nucleares seriam aquelas que

envolveriam um mínimo de aparato transformacional em sua geração, não

desempenhando um papel distinto na interpretação das sentenças.

Citando Humboldt, Chomsky entende que a linguagem não pode ser

verdadeiramente ensinada, mas que apenas se podem apresentar as condições sob as

quais ela se desenvolverá na mente de cada indivíduo por uma forma particular.304

Então, a aquisição da linguagem é feita nos termos das notações disponíveis através de

301 Veja-se, por exemplo, a definição, segundo Freud, da palavra enquanto representação: “As palavras são muitas

vezes tratadas pelos sonhos como coisas e sofrem então as mesmas montagens que as representações das coisas.”

Sigmund Freud, citado por Jacques Derrida, in A Escritura e a Diferença São Paulo: Editora Perspectiva, 2002, p.

210-211.

302 Noam Chomsky, ‘Aspectos da Teoria da Sintaxe’ in Os Pensadores - Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson,

Louis Trølle Hjelmslev, Noam Chomky. São Paulo, Abril Cultural, 2ª edição, 1978, p. 230-280.

303 Roman Jakobson, ‘A concepção da significação gramatical segundo Boas.’ in Lingüística e Comunicação. São

Paulo: Cultrix, s/data, p. 92.

304 Noam Chomsky. ‘Aspectos da Teoria da Sintaxe’ in Os Pensadores - Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson,

Louis Trølle Hjelmslev, Noam Chomky - Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson, Louis Trølle Hjelmslev, Noam

Chomky. São Paulo: Abril Cultural, 2ª edição, 1978, p. 270. A citação de Humboldt se refere à obra ‘Über die

verschiedenheit des menschlichen sprachbaues’, publicada em inglês como ‘Linguistic Variability & Intellectual

Development’, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.

Page 197: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

197

uma seleção de gramáticas que contenham generalizações que possam ser facilmente

expressas.

Assim, os nossos ‘pares sintáticos’ podem ser comparados, na análise de

Chomsky, às sentenças nucleares, e a sua idéia de estrutura profunda e da aquisição da

linguagem adaptada à nossa construção da narrativa do século XIX, com sua operação

se fazendo pela seleção gramatical baseada numa teoria do desempenho que conduz

informações semânticas. Por conseguinte, visamos ultrapassar uma análise puramente

gramatical dos ‘pares sintáticos’ que, para serem compreendidos, necessitam ter

reconstruída a sua representação em cada nível, a partir do qual, cada uma de suas

seleções foi construída.305

Deste modo, o uti possidetis, descrito pela narrativa do XIX como parte mesmo

da negociação do Tratado de Madri, deve ser estudado como uma ‘palavra-raiz’

participante da mecânica permanente de geração da narrativa, no caso, através da

experimentação dos problemas da formação do Estado ou das relações internacionais,

mas, onde o território definir-se-ia, conforme o ‘saber sobre o espaço’, no caso, por uma

retificação das origens, a partir da narrativa do setecentos.

Esse embate entre a reescrita e a persistência permite identificar, ainda em

relação à aproximação da lingüística com a construção narrativa do XIX, uma

polaridade gramatical caracterizada no uso diferenciado de duas categorias de tempo e

espaço: a primeira destas, identificada com o esforço de apreensão do conhecimento nos

fenômenos, nas causas e nas fontes; a segunda, que remetia ao consagrado, revelado e

validado pela construção e permanência do Mito. A resultante dessa ambigüidade na

narrativa será a aproximação do Mito com um novo ‘saber sobre o espaço’ constituído

no século XX em torno da geopolítica e que será capaz de possibilitar a reelaboração da

narrativa a partir da inscrição contínua das ‘relações de força e de soberania’.

Nesse contexto, observe-se que a sobrevivência e o desenvolvimento de uma

argumentação própria da tradição setecentista, o naturalismo científico, conviveria com

a ascensão de uma outra argumentação relativa à constituição da memória.

Aproximando-se este à teorização de Mirceia Eliade a respeito do mecanismo,

funcionamento e evolução do Mito, pode-se compreender que o problema da

305 Nesse raciocínio, podemos aproximar os nossos ‘pares sintáticos’ com a noção de ‘unidades elementares de

conteúdo’ a partir dos quais as frases são construídas e das quais Chomsky baseia a sua reconstrução

representacional através do estudo formal da estrutura sintática fundamentando uma análise semântica. Ver Noam

Chomsky, Estruturas Sintáticas. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 115-117.

Page 198: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

198

idealização da Nação constituiria a História Pátria como o lugar privilegiado de

sobrevivência do Mito.306

A transição entre o modelo narrativo de setecentos e o modelo narrativo do

século XIX seria resolvida não por um hipotético debate a respeito do fim do modelo

antigo, mas pela constituição de uma narrativa que se assemelhasse e que replicasse

àquele modelo, daí a importância excepcional atribuída na narrativa do XIX ao

conhecimento das origens, fosse qual fosse a sua substância. Esta ‘busca das origens’

possibilitava a justaposição das argumentações, uma vez que ambas objetivavam um

“retorno à origem”, seja por meio de uma rememoração meticulosa e exaustiva dos

eventos pessoais e históricos, seja pela restauração abrupta da condição original.307

Entretanto, o ‘retorno às origens’ na narrativa do XIX seria concebido como uma

possibilidade de renovar e regenerar a existência daqueles que a empreendiam e para

que se propiciasse uma regeneração repetida ritualmente. A articulação da narrativa do

século XIX ao redor das ‘palavras-raízes’ ‘uti possidetis’ e ‘Tratado de Madri’, numa

mecânica de constante aplicação, visava, por conseguinte, acertar a conexão da

constituição do Mito com as condições mesmas de sua reprodução. Mas, mesmo que a

construção do Mito estivesse conectada às origens da narrativa, seria necessário ainda

empreender na argumentação o reencontro das condições que precederam a criação do

Mito, ou seja, conforme Eliade, o “estado que precedeu a criação da cosmogonia”, o

“Caos”.308

No caso da narrativa do XIX, este empreendimento influenciou mesmo o

processo de sua reprodução e de sua perpetuação por conta das várias possibilidades

deixadas em aberto por conta da natureza dupla da sua construção: tratava-se de

assegurar-se se a reprodução e a perpetuação do modelo seriam garantidas por uma

argumentação que enfatizasse o ‘retorno com um início’, situação em que se priorizaria

o relato minucioso dos fatos, acontecimentos e personagens capazes de imprimir

movimento à narrativa; ou por uma argumentação que enfatizasse o ‘retorno às

condições iniciais’ onde seria priorizada a ligação e a associação com um passado

comum à Metrópole e à nova Nação, destacando-se a manutenção das tradições e a

elisão de determinados termos impeditivos dessa narração.

306 Ver: Mircea Eliade, Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994, 4ª edição, p. 71-122.

307 Ver: Mircea Eliade, Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994, 4ª edição, p. 82.

308 Ver: Mircea Eliade, Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994, 4ª edição, p. 76.

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199

Portanto, ainda que as condições da construção, reprodução e perpetuação do

Mito estivessem ligadas ao desenvolvimento da narrativa do XIX, suas tensões e

iniciativas estiveram diretamente conectadas à operação da narrativa. Neste sentido, o

estudo do problema das argumentações da construção narrativa, através da

historicização das ‘palavras-raízes’, permite-nos analisar as tramas, as aproximações e

os rompimentos no debate entre os operadores da narrativa, oferecendo subsídios ainda

para entendermos os sobressaltos da construção historiográfica da Nação e do espaço

nacional.

Assim, ao enfocarmos a historicização das ‘palavras-raízes’ e a sua conexão pela

operação da narrativa, não buscamos, como num mapa, desvelar a construção do Mito

ou as origens da identidade nacional, mas, possibilitar um itinerário de suas

contradições e desvios, de seus lugares, personagens e olhares.

A construção do Uti Possidetis e do Tratado de Madri

Como vimos num outro capítulo,309

a narrativa do setecentos tinha como um dos

seus principais argumentos a desqualificação dos tratados do século XVIII: enquanto o

Tratado de Madri fora anulado diretamente pelo de El Pardo, o de Santo Ildefonso

nunca houvera ultrapassado a condição de preliminar. Este argumento era ainda

orientado pela lógica de que tanto os direitos quanto o domínio territorial da América

portuguesa excediam em muito o território que poderia vir a ser delimitado por meio

daqueles tratados. A utilização do tempo condicional se justificava na medida em que

era parte da própria argumentação: apenas algumas parcelas das fronteiras foram na

prática delimitadas, e ainda assim de modo precário ou duvidoso, sendo a negociação

dos tratados e sua execução viciadas por erros e incorreções propiciadas pela malícia e

pela superioridade cartográfica dos espanhóis.

Outro argumento da narrativa do setecentos era o da qualificação do espaço: a

ocupação da Bacia do Prata era identificada com a própria instalação portuguesa na

América e com os esforços subseqüentes dos brasileiros que lá estabeleceram sua

identidade na luta contra o invasor. A riqueza e a beleza natural daquela região eram

diretamente relacionadas com sua produtividade e com a viabilidade do

empreendimento, características que não eram reconhecidas, por exemplo, na

309 Ver o capítulo ‘Riscando o passado’.

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200

Amazônia, o que, aliás, viabilizou este território como objeto de barganha durante as

conversações de 1818.

Entretanto, se os operadores da narração do XIX rescreveram a narrativa do

setecentos a partir de seus principais argumentos, o fizeram sobre uma experiência

compartilhada: em primeiro lugar, pesava o problema da amputação da Cisplatina em

1828, província que somente seria considerada como definitivamente perdida no

decorrer da década de quarenta. Em segundo lugar, também a partir da década de

quarenta começou-se a crer que o Brasil encontrava-se ameaçado em seu espaço, tanto

pelos novos vizinhos que surgiram com a partilha da América espanhola, quanto pela

França, Inglaterra e Estados Unidos na Amazônia.

Portanto, ao mesmo tempo em que os termos da argumentação qualitativa do

espaço tornar-se-iam fora de lugar, sua persistência favorecia uma rearrumação sintática

da sentença, na qual as parcelas menos qualificadas na narração anterior adquiriram

determinados atributos que as levaram a substituir progressivamente as parcelas

descartadas: na medida em que se verificava a impossibilidade concreta de retomar os

termos da narrativa do setecentos, seria atribuído à Amazônia um lugar destacado na

produção narrativa e no Mito, que iria se consolidar, inclusive, através de um ‘saber

sobre o espaço’ constituído em torno da geopolítica no século XX.310

Do mesmo modo, o argumento da desqualificação dos tratados havia perdido

parte de sua eficácia, tanto por conta da produção concorrencial dos atlas estrangeiros,

que delimitava os espaços através desses referenciais, quanto pela difusão científica e

pela transformação das técnicas cartográficas que destituíram os termos da

argumentação referentes aos antigos tratados do século XVII e de Tordesilhas,

permitindo situá-los no espaço.

Sintomaticamente, a iniciativa no sentido da reescrita desse último argumento

coube, ainda dentro da própria narrativa do setecentos ao seu último operador, José

Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de São Leopoldo, que publicou em duas

partes, nos anos de 1819 e 1822, a primeira edição dos ‘Anais da Província de São

Pedro’.311

Através desta obra, Pinheiro, além de estabelecer sua filiação à narração do

setecentos ligar-se-ia também, na forma, à tradição dos ‘mapas literários’ e, por

310 Ver, por exemplo, as obras de Carlos de Meira Mattos e Golbery do Couto e Silva.

311 A primeira edição dos ‘Anais’ saiu em dois tomos, sendo o primeiro publicado em 1819, no Rio de Janeiro e o

segundo em 1822, em Lisboa.

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201

conseguinte, à idéia de um espaço brasileiro unitário. Contudo, embora descrevesse um

circuito do espaço da América portuguesa, se vinculasse a uma qualificação do território

pela ligação do homem à terra e defendesse a nulidade dos tratados,312

Pinheiro

estabeleceria também a originalidade de sua leitura. Nos ‘Anais’, primeiramente, o

argumento da nulidade dos tratados foi retirado da trama jurídica anterior e introduzido

no contexto histórico: o ataque espanhol transferiu a questão do particular para os

princípios universais do Direito Público, com a guerra tornando sem efeito não só os

tratados do século XVIII, mas quaisquer tratados anteriores, esvaziando-se, assim, a

questão de Tordesilhas e justificando-se a posse de todos os territórios conquistados.

Nesse sentido, a conquista das armas portuguesas e o novo sistema que surgiu com a

paz de Badajoz, em 1801, fora obra da força dos brasileiros ou dos portugueses

residentes no Brasil, que, também pela força, destruíram toda a possibilidade de retorno

ao sistema antigo.

Em segundo lugar, se a guerra definira a posse e o território, a sobrevivência do

estilo qualificativo seria assegurada não por uma ligação episódica ou de direito entre o

território e o grupo, mas pela descrição de uma relação ininterrupta e continuada.

Assim, Pinheiro desenvolve um relato que introduz um indivíduo plural, o brasileiro,

como ator da narrativa e procura o documento, o testemunho e a tradição como suas

fontes para legitimar essa narração. Para isto, o autor utiliza sua experiência pessoal

enquanto auditor geral das tropas durante a campanha de 1811 a 1812 e em vários

cargos na Província do Rio Grande, que o levou a conhecer grande parte da Cisplatina e

da Província do Rio Grande, bem como incorpora em sua obra, embora sem citação,

trabalhos de terceiros, como um estudo de José de Saldanha, engenheiro na demarcação

de 1783 e, posteriormente, o segundo comandante do território das Missões.313

Em terceiro lugar, motivado por suas experiências anteriores, Pinheiro destitui a

antiga idéia portuguesa das ‘fronteiras ideais’ através da distinção de um novo termo na

‘linguagem do espaço’: as ‘fronteiras naturais’. A idéia das ‘fronteiras naturais’ surge,

através dos ‘Anais’, como uma expressão da situação derivada da paz de Badajoz e das

312 Ver o capítulo ‘Riscando o passado’.

313 Segundo Pauwels, que teria consultado os originais de Saldanha, esse trabalho foi composto em 1807 e era um

relato dos problemas das demarcações do tratado de Santo Ildefonso, por conseguinte, se enquadrando na narrativa

do setecentos. Geraldo José Pauwels, Algumas notas sobre a gênese dos números para as áreas do Brasil e seus

Estados. Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1924, p. 14.

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202

intervenções portuguesas na Cisplatina durante a década de 1810, constituindo-se,

portanto, numa interpretação da continuidade do espaço brasileiro até o Rio da Prata.

Utilizando o raciocínio anteriormente exposto, a transformação da idéia da

‘‘fronteira natural’’ é um marco na interpretação do espaço brasileiro que somente se

tornou possível a partir do século XIX, por conta da possibilidade de se dispor de uma

seleção gramatical mais ampla e já articulada com as condições de produção da

narrativa, no caso, exemplificada pela divulgação na primeira década do século das

corografias de Ricardo Serra e Aires de Casal.

A impressão no Patriota, em 1813, da ‘Descrição geográfica da Capitania de

Mato Grosso’, escrita em 1797, resgatou a informação da possibilidade de ligação entre

a Bacia do Amazonas e a do Prata, já presente em corografias mais antigas como as

‘Notícias curiosas e necessárias das coisas do Brasil’ do Padre Simão de Vasconcelos,

de 1668 e nas representações cartográficas, onde a ligação entre essas e outras Bacias,

hipotéticas ou reais, era ainda mais antiga, remontando, como vimos em um capítulo

anterior, ao final do século XVI.314

Deste modo, em 1817, Aires de Casal, um autor

ligado à narrativa do setecentos, já se aproximaria bastante da idéia da ‘‘fronteira

natural’’ de Pinheiro, ao demonstrar que existia uma oposição entre o Brasil “em sua

acepção política” de um “Brasil natural”. No ‘Brasil natural’ existiria uma unidade

demarcada pela hidrografia, consistindo numa linha quase que contínua, interrompida

em apenas “uns poucos côvados”, que, no Mato Grosso, separavam as Bacias do Prata e

do Amazonas. Contudo, esse obstáculo era possível de serem superado por meio do

transbordo, feito numa pequena distância entre os rios Alegre e Aguapeí, assim, o Brasil

tornar-se-ia, segundo Casal, uma península, cujo istmo seria constituído pela pequena

distância que separava os dois rios.

Portanto, podemos entender que a idéia das ‘fronteiras naturais’ foi um produto

da disseminação da obra de Aires de Casal, que foi ligada, por Pinheiro, à idéia da

‘fronteira ideal’ da narrativa do setecentos, por sua vez, um produto da ‘fronteira

militar’, já que, em conceito, ligava-se à defesa do território.

A ligação com os termos da narrativa do setecentos passaria a influenciar,

doravante, a idéia das ‘fronteiras naturais’ e a produção do uti possidetis, a partir do

314 Ver o capítulo ‘Mapeando o vazio’.

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203

desenvolvimento, por Pinheiro, da primeira produção de um espaço nacional brasileiro,

a ‘Memória acerca dos naturais limites do Brasil’, de 1827.315

Como vimos, conjuntamente com a Cessão da Cisplatina e os outros episódios

que constituíram o ocaso político de Pinheiro no Primeiro Império, na ‘Memória’ a idéia

das fronteiras naturais continuava ligada à idéia de Aires de Casal, ao admitir um limite

para o espaço brasileiro idealizado na ligação entre as grandes bacias hidrográficas da

América Meridional.

Mas, Pinheiro inovou novamente na questão, em primeiro lugar, ao aproximar

ainda mais as ‘fronteiras naturais’ do conceito das ‘fronteiras ideais’, delimitando o

espaço nacional pelos rios Paraná, Paraguai e Amazonas, portanto além de Aires de

Casal e mesmo do que havia escrito nos ‘Anais’. Em segundo lugar, Pinheiro

estabeleceu uma finalidade política à definição das fronteiras naturais: estas seriam um

condicionante da estabilidade, comércio e progresso do novo país. Portanto, a definição

das fronteiras e do espaço nacional já eram entendidas em 1827 como um fator daquilo

que seria entendido a partir da década de 1840 como ‘civilização’. Em terceiro lugar,

Pinheiro equacionou o processo, o direcionamento e o comando da definição do espaço

nacional como um objetivo das elites dirigentes que a elas somente poderia ser revelado,

sendo, para todos os efeitos, considerada uma ‘política de segredo’.

Durante a década de 1830, acompanhando a desorganização do Estado, o

pensamento de um espaço brasileiro unitário sofreu um refluxo notável, dando lugar às

iniciativas locais de produção do espaço que, inclusive, a partir da década de 1840,

passariam a competir com a produção central. Surgiriam, nesse período, dentre outras, a

‘Corografia Paraense’316

e a ‘Corografia de Minas Gerais’317

escritas segundo o modelo

corográfico das Descrições, que, como vimos anteriormente, possuíam como principal

característica a circunscrição de um espaço dotado de um ente central e organizador, por

sua vez, caracterizado em meio a outras unidades.

Também durante essa década, acentuou-se a deterioração das fronteiras militares

e a decadência das províncias interiores ou mais excêntricas, como Goiás, Mato Grosso

e Pará. Este processo foi paralelo à crescente organização dos Estados vizinhos, o que,

315 Ver o capítulo ‘O assento central’.

316 Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva, Corografia Paraense ou Descrição física, histórica e política da Província do

Grão-Pará. Salvador: Tipografia do Diário, 1833.

317 Raimundo José da Cunha Matos, ‘Corografia Histórica da Província de Minas Gerais’. IHGB, Lata 1, Maço 4,

Pasta 8.

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204

nesse sentido, iria gerar repetidas questões de limites que se intensificariam no período.

Sintomaticamente, a narração do setecentos cede lugar progressivamente a uma

argumentação que visava contemporizar com as construções de espaço desses países,

algumas das quais já estavam registradas em formas de representação que o Estado

brasileiro ainda não havia desenvolvido, como as Cartas e Corografias Gerais. Assim, a

idéia da utilização do Tratado de Santo Ildefonso enquanto definidor e delimitador das

fronteiras ganha força por meio do pleito dos novos Estados hispânicos, passando a

preterir tanto no Conselho de Estado quanto na SNE, a argumentação da narrativa do

setecentos, em razão daquele tratado parecer assegurar ao Brasil um território que não

se podia mais garantir na prática. De um modo geral, esta compreensão derivava dos

relatos acreditados pela SNE das iniciativas então empreendidas por aqueles Estados,

dando conta da construção de estabelecimentos e postos militares, da cooptação de

grupos indígenas e da doação de terras em áreas tidas como brasileiras, bem como da

apresentação de suas reivindicações, asseguradas por cédulas reais ou por uma suposta

ocupação continuada do território.

Assim, como uma construção do espaço nacional sustentada pela argumentação

do setecentos e pelo termo das ‘fronteiras naturais’ de Pinheiro não pudesse mais ser

posta em prática, a produção do espaço nacional tornou-se não mais ativa, mas, reativa

às proposições do Estados hispânicos.

Se novamente utilizarmos a teorização de Noam Chomsky sobre a linguagem e o

seu par fundamental desempenho/competência, podemos entender a produção reativa do

espaço nacional no sentido de que era necessário, não apenas redefinir os termos e a

argumentação de uma nova produção do espaço a partir dos dados do desempenho, ou

seja, a partir de sua efetividade na situação concreta, mas ainda reavaliar e constituir a

própria competência dos operadores da narrativa, ou seja, através do conhecimento e

da compreensão do espaço.

Nesse sentido, as idéias de Pinheiro sobreviveriam pela divulgação de sua obra e

por sua própria atuação, já que se tornaria um dos parlamentares mais participantes na

década de 1830, tendo lugar fixo em duas importantes comissões da Câmara: a da

diplomacia e a da resposta à Fala do Trono. Suas idéias, principalmente os conceitos das

‘fronteiras naturais’ e da nulidade dos tratados, seriam reinterpretadas e discutidas a

partir dos problemas de limites na década de trinta, tornando-se o cerne de um

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205

pensamento do espaço nacional a partir do processo de centralização do Estado nos anos

posteriores.

Coincidentemente, as maiores contribuições às idéias de Pinheiro foram

concebidas por outros autores sobre a discussão de um mesmo problema, já que desde

1833 a Bolívia passou a conceder sesmarias numa área entendida então como fazendo

parte da Província de Mato Grosso, tornando-se assim, um dos principais focos da

atuação da SNE e do Governo. Seria, por conseguinte, sobre esse problema, que a idéia

das ‘fronteiras naturais’ de Pinheiro iria ser trabalhada em 1836 na ‘Memória sobre os

limites de Mato Grosso’ de José Antônio Pimenta Bueno, futuro Visconde e depois

Marquês de São Vicente.318

Nesta obra não seria contestada, a princípio, a validade do Tratado de 1777, mas,

questionava-se a aplicação estrita de Santo Ildefonso, uma vez que esta privaria a

Província de algumas de suas melhores terras, além de impedir o comércio com São

Paulo. Ao mesmo tempo, Pimenta Bueno constatava ser desnecessária a aquisição ou a

expansão sobre novos territórios, dada a impossibilidade mesma de se administrar os

que então se possuíam, sendo, portanto, razoável que o Brasil cedesse os territórios que

não pudesse aproveitar ou não fossem de utilidade em troca da delimitação de uma

fronteira protegida por limites naturais que cobrissem as vias principais de comércio e

os principais pontos habitados.

Pimenta Bueno ainda trabalharia outro conceito de Pinheiro, contido, por sua

vez, no argumento da nulidade dos tratados, a ‘posse do território’, considerada como

base do acordo de paz de Badajoz. Pimenta Bueno utilizaria este conceito como o

fundamento para a aplicação dos limites em seu conceito de ‘fronteiras naturais’. Nesse

sentido, a ‘posse do território’ não se restringia apenas ao estabelecimento atual, mas,

também poderia ser alargada desde que estabelecida uma conexão pregressa ou mesmo

transitória, fosse pelo estabelecimento antigo no território, pelas rondas ou pelas

reclamações e correspondências das autoridades espanholas, por conseguinte, através do

concurso de provas históricas, estabelecendo-se um novo conceito — “a posse não

interrompida”.

Assim, na ‘Memória’ de Pimenta Bueno, os principais argumentos da ‘fronteira

natural’ de Pinheiro foram adaptados, conforme o antigo conceito da ‘fronteira militar’

318 José Antonio Pimenta Bueno, ‘Memória sobre limites da Província de Mato Grosso’. AHI, Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, Pasta 8.

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206

e de acordo com o problema engendrado pela concessão boliviana das sesmarias na

Província de Mato Grosso, mas, assimilando também a figura da ‘cessão de direitos’,

cerne dos ajustes do Tratado de Madri. Estabelecia-se, deste modo, pela primeira vez,

uma ponte entre o pensamento do espaço nacional com o Tratado de Madri. Ao mesmo

tempo, Pimenta Bueno transformava um conceito simples e que dizia respeito à posse

material, definida por Pinheiro por meio do limite militar, em um conceito heterogêneo

e cuja aplicação era relacionada à sua idéia de ‘fronteira natural’.

Por outro lado, ainda que afastado temporariamente do centro do poder, Pinheiro

continuou sendo reconhecido como uma das principais, se não a maior autoridade

geográfica do Brasil. Prova disso é que, já em 1830, Pinheiro seria consultado pela SNE

a respeito das pretensões uruguaias de limites, ocasião em que aproveitou para reafirmar

sua crença na nulidade de todos os tratados anteriores como um paradigma a ser

estabelecido nas negociações e delimitação de fronteiras, justificado pela sua

interpretação da paz de Badajoz e remetida aos seus ‘Anais’, encaminhados para exame

da SNE.319

A influência posterior dessas opiniões na SNE pode ser atestada na medida em

que, em meados de 1836, antes de ser enviado à Bolívia para se ocupar dos problemas

de limites, o representante do Brasil, Duarte da Ponte Ribeiro, já reconheceria estar

convencido da nulidade dos tratados anteriores como base para a negociação de

limites.320

Entretanto, esta não era ainda a posição oficial do Governo, uma vez que

Ribeiro, chegando a seu destino, acordou com os bolivianos a conservação dos limites

de 1777 até que se pudesse concluir algum tratado entre os dois países, posição que

seria confirmada posteriormente pelo titular da SNE, Antônio Peregrino Maciel

Monteiro.321

Com esse fim, a SNE consignou a Ribeiro três projetos de fronteiras para

serem apresentados aos representantes bolivianos, todos eles extraídos das ‘Memórias’

de Pimenta Bueno e conformados com os conceitos de ‘posse continuada’ e ‘fronteiras

naturais’.

319 Carta de José Feliciano Fernandes Pinheiro para Francisco Carneiro de Campos, s/data. AHI, Arquivo Particular

de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 228, Maço 5, Pasta 4, Documento 1.

320 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Elenco Histórico das discussões dos Comissários portugueses sobre a desnecessária

substituição do Rio Iguatemi e Iponé-guassu ao Igurey e Corrientes que existiam onde os mostrava o Mapa de

1749, que serviu de base ao de Limites de 13 de Janeiro de 1750’ in AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte

Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Doc. 1, 1836.

321 Ver a correspondência oficial entre José Inácio de San Jineos e Duarte da Ponte Ribeiro, em 15/03/1837, e entre

Duarte da Ponte Ribeiro e Antônio Maciel Peregrino, em 17/06/1838. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte

Ribeiro, Lata 268, Maço 3, Pasta 1.

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207

Enquanto isso, no Brasil, Pinheiro seria nomeado em 1837 por Peregrino, para

ser o presidente de uma comissão destinada a determinar os limites do país, doravante

denominada ‘Comissão Investigadora dos Limites’,322

juntamente com outras “pessoas

versadas na Topografia e Estatística do País” que, com sua “observação luminosa” e

“experiência depurada” examinariam os limites e suas questões, “uma das primeiras

necessidades públicas”, por conta, especialmente, dos problemas com a França e

Inglaterra nas Guianas. Seriam atribuídas à ‘Comissão Investigadora de Limites’ as

tarefas de “determinar quais os limites do Sul e Oeste do Império do Brasil, à vista dos

Tratados e Convenções existentes” e definir “quais os limites, que se podem considerar

como naturais, com relação às localidades, e topografia do país.”323

Portanto, se entendia então na SNE que os limites brasileiros deveriam ser

definidos tanto pela idéia das ‘fronteiras naturais’ quanto por meio do recurso aos

tratados pregressos. Sobre a base deste entendimento, resultaram dois trabalhos distintos

da ‘Comissão Investigadora de Limites’, o primeiro, de José Saturnino da Costa Pereira,

autorizado por conta de seus problemas de saúde a emitir um parecer em separado,324

e

o segundo, assinado pelo presidente da comissão, José Feliciano Fernandes Pinheiro.

Na primeira parte de seu trabalho, Pereira versa, inicialmente, sobre a utilidade

dos tratados do século XVIII para a determinação dos limites, mas, aponta, em seguida,

os vícios e problemas decorrentes das demarcações. Em relação aos limites naturais,

Pereira observaria, com pesar, serem o Prata e o rio Uruguai as fronteiras mais próprias

ao Brasil, demonstrando, assim, mais uma vez, a influência dos ‘Anais’ de Pinheiro,

obra, aliás, citada explicitamente por Pereira.

Na segunda parte do trabalho, Pereira aponta a impossibilidade de se analisarem

os limites pelo Tratado de Santo Ildefonso, já que não existia nenhuma cópia deste nos

arquivos da SNE, no caso, poder-se-ia apenas fazer algumas conjeturas a respeito deste,

baseadas sobre o texto do Tratado de Madri. Finalmente, Pereira termina por distinguir

certos limites naturais que deveriam ser utilizados para compor o espaço brasileiro e, ao

322 Embora não tenha sido denominada nos documentos oficiais, nosso trabalho adotará, doravante, a denominação

‘Comissão Investigadora dos Limites’, a qual era empregada por Duarte da Ponte Ribeiro, conforme anotação

autógrafa à margem da correspondência entre José Feliciano Fernandes Pinheiro e Antonio Peregrino Maciel

Monteiro. Ver AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 228, Maço 5, Doc. 4.

323 A ‘Comissão Investigadora de Limites’ foi nomeada diretamente pelo titular da SNE, Antônio Peregrino Maciel

Monteiro. Ver Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, 1838, p. 8.

324 Conforme carta de José Saturnino da Costa Pereira para Antônio Peregrino Maciel Monteiro, de 26/10/1837. AHI,

Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 6, Documento 32.

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208

mesmo tempo, indicando alguns direcionamentos para a ação do Estado, como por

exemplo, ao avaliar que os limites do espaço brasileiro com as Guianas seriam melhor

estabelecidos através dos divisores de águas ou que se deveria garantir a navegação

exclusiva do Amazonas desde Tabatinga, utilizando-se para isto do recurso a uma linha

imaginária que seguiria da foz do rio Javari rumo ao norte, linha esta que ficaria

conhecida posteriormente nas negociações brasileiras como a ‘Reta Tabatinga-

Apáporis’. Entretanto, fica patente no trabalho de Pereira o desconhecimento do

território, ainda mais porque, não sendo possível encontrar informações suficientes, lhe

foi necessário lançar mão da carta da América Meridional de Arrowsmith como fonte

para o seu trabalho.325

Já o trabalho de Pinheiro se limitou a reafirmar o valor de sua ‘Memória’ de

1827 como a melhor interpretação das fronteiras naturais, assim como da sua idéia da

nulidade dos tratados anteriores expressa nos ‘Anais’, embora, ressalve que o Tratado

de Madri fora aquele que melhor havia se prestado para os fins de delimitação do

espaço nacional, provavelmente por conta do extenso contato que os membros da

‘Comissão Investigadora de Limites’ tiveram com seu texto, como também pode ser

observado no trabalho de Pereira.326

Portanto, a ‘Comissão Investigadora de Limites’ teve como principais

resultados, ao lado da consagração das idéias de Pinheiro, o reconhecimento, senão

explícito, mas, prático, do desconhecimento do território e da decorrente

impossibilidade de se definir os limites brasileiros, enquanto que, secundariamente, se

estabelecia uma ponte definitiva entre a produção do espaço nacional e o Tratado de

Madri, desta vez ligando-o à própria idéia da formação do território brasileiro.

Coincidentemente, no ano seguinte, na Bolívia, após uma troca comum de

notas, os representantes daquele país fizeram saber a Ribeiro que o Tratado de 1777

também não existia nos arquivos de seu Governo e que esse país não mais o

reconheceria como base para a fixação de limites. Assim sendo, Ribeiro solicita

instruções a SNE sobre sua nova conduta na continuação das negociações: deveria

325 José Saturnino da Costa Pereira, ‘Memória sobre os limites do Brasil ao Sul e Oeste’. AHI, Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, 1837.

326 ‘Correspondência do Visconde de São Leopoldo ao Ministro dos Negócios Estrangeiros’, 1837. AHI, Arquivo

Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 5, Pasta 4, Documento 3.

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209

continuar insistindo no tratado de Santo Ildefonso ou passaria a centrar-se no uti

possidetis ?327

Com essa iniciativa, Ribeiro operaria uma transformação essencial no conceito

da ‘fronteira natural’ e consequentemente no processo da construção do espaço. Ainda

que o texto decorrente das novas negociações entre Ribeiro e o Governo boliviano

entenda o sentido da ‘fronteira natural’, tal como fora antes idealizada por Pimenta

Bueno, “procedendo de comum acordo, em caso de convir-lhes, na troca de alguns

terrenos ou indenizações para fixar a linha divisória de maneira mais exata, mais natural

e mais condizentes ao interesse de ambos os povos”, Ribeiro encadeou o conceito da

‘posse não interrompida’ a um antigo instrumento jurídico, o uti possidetis. Ao fazê-lo,

Ribeiro tanto alargou seu conteúdo sintático como tornou-o parte acessória das

negociações: “prometem ambos [os países] a levá-lo [o tratado] a efeito, o mais pronto

que possível for, pelos meios mais conciliatórios, pacíficos, amigáveis e conformes ao

uti possidetis.”328

Ora, em primeiro lugar, a incorporação do conceito de Ribeiro numa linguagem

que fosse simultaneamente aceita por dois grupos receptores inteiramente distintos e

com interesses completamente divergentes pode ser explicada pela persistência,

primeiramente, de uma ‘estrutura profunda’ comum, constituída tanto pelo acervo

jurídico colonial, que determinou sua interpretação semântica, quanto por uma

experiência particular da elite letrada brasileira, familiarizada com o conceito através da

ênfase dada ao ensino do Direito Romano na Universidade de Coimbra. Esta, no caso,

pode ser exemplificada através de um dos operadores da narrativa: Pinheiro foi um dos

principais defensores, na Constituinte, da criação de uma faculdade de Direito no Brasil,

atuação repetida quando titular da pasta do Império em 1827, ocasião em que se pôs a

colocar em prática essa idéia. Em ambos os casos, Pinheiro propunha a Universidade de

Coimbra como modelo e entendia, como Vasconcellos, que se deveria manter parte das

cadeiras de Direito Romano no seu currículo.329

Então, a inscrição do uti possidetis na

construção da narrativa do século XIX refletiria o comportamento dos operadores, a

partir de uma experiência da língua, sendo que esta fornecia uma explicação do

327 Duarte da Ponte Ribeiro, Ofício de 19 de janeiro de 1839. AHI, Lima - Ofícios, 1838-1840.

328 Duarte da Ponte Ribeiro, Ofício de 16 de janeiro de 1839. AHI, Lima - Ofícios, 1838-1840.

329 S. Vampré. Memórias para a História da Academia de São Paulo, v. I, 1977, São Paulo, INL/CFC/MEC, p. 14;

citado em Teotônio Simões. ‘Os Bacharéis na Política - A Política dos Bacharéis’. Tese apresentada como

exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais. USP, 1983.

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210

comportamento gramatical, no caso, definindo as ‘seqüências gramaticais’, ou seja,

aquelas aceitáveis pelos falantes.330

Em segundo lugar, a aceitação do conceito de Ribeiro pode ser explicada pela

existência de uma ‘estrutura de superfície’, constituída pela percepção política do

problema de limites com a Bolívia, que possibilitou seu emprego fonético para a

interpretação de uma situação episódica.331

Convencido que estou de que é conveniente ao Brasil consentir na

declaração feita pelo governo da Bolívia, de terem caducado os tratados que

ligavam as Potências que foram parte, segue-se que toda questão de limites

ficará reduzida ao princípio do uti possidetis: a sanção desse princípio é todo

meu empenho, e o consignei como acessório a ver se passa; chamando

imediatamente a atenção sobre o comprometimento de celebrar o tratado

especial de navegação fluvial, que tanto desejam.332

Portanto, a compreensão dos ‘sistemas de regras’ das linguagens utilizadas

pelos grupos receptores, segundo uma condição nele latente, ou seja, pela

experimentação das condições apresentadas,333

permitiu ao operador uma transformação

sintática e uma rearrumação dos termos, baseada no desempenho e na interpretação

semântica e fonética. Assim, ainda que aquela não fosse a posição oficial do Governo,

Ribeiro seria capaz de conseguir o consentimento implícito da utilização de seu conceito

nas negociações por parte da SNE e de seu ministro a partir de 1839, Caetano Maria

Lopes Gama, Visconde de Maranguape, que viria a ser um dos Conselheiros de Estado

mais atuantes na SJNE. Doravante, o uti possidetis seria introduzido no cerne das

330 Noam Chomsky, Estruturas Sintáticas. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 15-18.

331 Ver Noam Chomsky, Aspectos da Teoria da Sintaxe, in Os Pensadores - Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson,

Louis Trølle Hjelmslev, Noam Chomky. São Paulo: Abril Cultural, 1978, 2ª edição, p. 241-242. O sentido de

‘estrutura interna’ relacionado com a semântica, e de ‘estrutura externa’, com a fonética, se referem diretamente

aos sentidos de forma interna e forma externa conforme utilizados por Humboldt. Ver Chomsky, in Os Pensadores

- Ferdinand de Saussure, Roman Jakobson, Louis Trølle Hjelmslev, Noam Chomky. São Paulo: Abril Cultural, 2ª

ed., 1978, p. 242, nota 27.

332 Duarte da Ponte Ribeiro, Ofício de 17 de janeiro de 1839. AHI, Lima - Ofícios, 1838-1840.

333 Segundo Chomsky, “não se pode verdadeiramente ensinar a linguagem, mas apenas apresentar as condições sob as

quais ela se desenvolverá na mente por forma particular. Assim, a forma de uma língua, o esquema de sua

gramática, é dado, em larga medida, embora não fique disponível para uso sem experiência apropriada para pôr a

operar os processos de formação da linguagem.” Ver Noam Chomsky, in Os Pensadores - Ferdinand de Saussure,

Roman Jakobson, Louis Trølle Hjelmslev, Noam Chomky. São Paulo: Abril Cultural, 1978, 2ª edição, p. 270-271.

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discussões do espaço nacional, as quais seriam dominadas justamente por questões

relacionadas à sua interpretação fonológica e semântica.

No Brasil, como vimos, os trabalhos realizados pela ‘Comissão Investigadora de

Limites’, ao invés de solucionar a questão dos limites, resultaram, paradoxalmente, em

reconhecer o desconhecimento do território. Como, em grande parte, esse resultado foi

conseqüência da falta de informações do próprio Governo, uma de suas primeiras

providências após o término dos trabalhos da comissão, foi decidir por uma reforma na

SNE, dotando-a de um ‘Arquivo’, para onde se encaminhassem os documentos e mapas

referentes à essa questão, e sintomaticamente, de uma ‘Biblioteca Especial’, destinada a

armazenar “todas as produções, que o desenvolvimento do espírito humano houver de

dar à luz no que respeita à marcha dos Governos, e às modificações, que por ventura se

tenham de realizar nas relações das diversas associações políticas.”334

Por sua vez, Pinheiro também apresentou em seu prefácio à segunda edição,

revista e ampliada, dos ‘Anais’, vários argumentos favoráveis à constituição de “um

colégio especial de literatos escolhidos, incumbidos de recolher e transmitir os feitos

que constituem a vida das nações”. Ainda, Pinheiro fazia ver a necessidade de que “se

deputassem literatos Brasileiros de conceito, que fielmente colhessem da Torre do

Tombo, e doutros Arquivos Nacionais, e copiassem os monumentos e escritos, que

tivessem relação com a História do Brasil”,335

o que teria possivelmente ocasionado

com que, já no final desse ano, José Maria do Amaral fosse nomeado e Francisco

Adolfo de Varnhagen indicado, para o cargo de adido à Legação brasileira em Lisboa

com o fim de selecionar e copiar os “documentos que sirvam para a organização da

História do Brasil.”336

Faz-se necessário apontar, que, embora a publicação da segunda edição dos

‘Anais’ seja posterior à fundação do IHGB,337

sua redação foi feita em data anterior, se

constituindo assim na primeira ata de intenções dessa instituição e estabelecendo sua

relação com a construção do espaço nacional.

334 Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, 1838, p. 18.

335 José Feliciano Fernandes Pinheiro, Anais da Província de São Pedro, Paris: Tipografia de Casimir, 1839, 2ª

edição, p. VIII-IX.

336 Cartas de Antônio Menezes de Vasconcelos de Drummond para Caetano Maria Lopes Gama, em 6/12/1839 e

14/12/1839, Ofícios de Lisboa, AHI, citados em Isa Adonias, O acervo de documentos do Barão da Ponte Ribeiro.

Rio de Janeiro: s/editor, 1984, p. 22.

337 A fundação do IHGB se deu em 21 de outubro de 1838 enquanto que a publicação da segunda edição dos ‘Anais’

foi feita em 1839.

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212

Nesse sentido, três fatos corroboram nossa hipótese: primeiro, o exame dos

‘Anais’ pelo Instituto foi publicado já no primeiro número de sua revista, e neste os

pareceristas identificam as intenções de Pinheiro com o IHGB.338

Segundo, o ‘Programa

Geográfico’ de Pinheiro, uma obra posterior à redação da segunda edição dos ‘Anais’,

foi lido no IHGB já na sessão de 16 de fevereiro de 1839, o que por si só já recuaria a

redação dos ‘Anais’ para o ano anterior. Terceiro, o prefácio dos ‘Anais’ muito

provavelmente foi escrito em decorrência do debate entre Pinheiro e Raimundo José da

Cunha Mattos, primeiro secretário da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e

depois vice-presidente do IHGB. Esse debate ocorreu ainda em 1837, durante os

trabalhos da ‘Comissão Investigadora de Limites’ da qual ambos fizeram parte,339

influenciando, inclusive, parte da obra de Mattos, como, por exemplo, a ‘Dissertação’,

datada de 1839, onde este autor reconhece a necessidade, apontada por Pinheiro nos

‘Anais’, de se recolher, num primeiro passo, os subsídios da história provincial, para

somente depois se escrever a história geral do país.340

Portanto, a partir dos trabalhos da ‘Comissão Investigadora de Limites’, se

estabelece uma base tripla, no final da década de trinta, sobre a qual se irá elaborar a

construção do espaço nacional: a percepção de que era necessária a compreensão e o

acompanhamento do sistema de regras da política e das relações internacionais; o

esforço destinado a colecionar e organizar dados que capacitassem a interpretação da

questão e, finalmente, a iniciativa de se constituir um grupo de indivíduos, capazes de

elaborar e transmitir o pensamento sobre o espaço, emblematizados por Pinheiro na

figura do ‘literato’. Neste não estariam compreendidas apenas as funções do escritor ou

do especialista, mas também a do Mestre, aquele capaz tanto de administrar a instrução

como, por seu exemplo, indicar o caminho:

Eu, o menos destro dos meus consórcios, sairei a campo, com as

armas, que de momento pude ajuntar; conscencioso, e leal, prestarei pobre

338 ‘Juízo sobre os Anais da Província de S. Pedro’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo I,

n° 1, 1839, p. 256.

339 Conforme carta de Raimundo José da Cunha Mattos para Antonio Peregrino Maciel Monteiro, em 26/10/1837, in

AHI, Arquivo Particular Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 6, Documento 22.

340 Raimundo José da Cunha Matos, ‘Dissertação acerca do sistema de escrever a História Antiga e Moderna do

Império do Brasil’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXVI, 1863, p. 122.

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oblação, como é dever de qualquer cidadão nos interesses da Pátria, sem

aspirar a mais alto.341

Na realidade, o trabalho da ‘Comissão Investigadora de Limites’ foi retomado,

por iniciativa do próprio Pinheiro no IHGB: o seu ‘Programa geográfico’, originador do

debate no IHGB, como visto em capítulo anterior,342

reconstitui as preocupações do

espaço e dos limites, começando, sintomaticamente, com a pergunta: Quais são os

limites naturais, pactuados e necessários do Império do Brasil?

Nesse ponto, é interessante notar, através dessa sentença que inicia o processo de

construção do espaço no IHGB, a conexão entre o ‘Programa’ e a ‘Comissão

Investigadora de Limites’. Pudemos observar que Pinheiro insere, à guisa de anexo, o

ofício da SNE que trata da constituição da ‘Comissão Investigadora de Limites’ nos

‘Anais’. Tal procedimento, que seria apenas despropositado, caso a redação dos ‘Anais’

não fosse anterior ao Programa, se torna central em nossa hipótese, pode ser estudado

como a utilização do recurso retórico pelo autor, no sentido de emprestar prestígio e

autoridade ao seu texto, bem como para persuadir o leitor da importância da

argumentação.343

No caso, esse procedimento se reveste ainda de mais importância, uma

vez que o documento inserto nos ‘Anais’ não confere com o original,344

diferindo deste

em dois pormenores: primeiro, quanto à composição da Comissão. Na versão dos

‘Anais’, a ‘Comissão Investigadora de Limites’ era composta, além de Pinheiro, por

Raimundo José da Cunha Matos, José Saturnino da Costa Pereira, Antônio José

Rodrigues e Luiz d’Alencourt, todos ligados ao Exército, (Pereira era o titular da pasta)

e especialistas na geografia do país, enquanto que na versão original, Francisco Vieira

Goulart, que não pertencia a nenhum dos dois grupos, ocupava o lugar de d’Alencourt.

Em segundo lugar, quanto aos objetivos da Comissão, a segunda edição dos

‘Anais’ suprime uma das questões encaminhadas à Comissão, justamente aquela que

relaciona os tratados anteriores com o problema dos limites. Sabendo-se que um dos

temas centrais dos ‘Anais’ era, justamente, o da nulidade dos tratados anteriores,

341 José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Programa Geográfico’ in Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902, p. 341-342

342 Ver o capitulo ‘A descrição do contemplador’.

343 Quanto ao emprego da retórica como chave de leitura ver: José Murilo de Carvalho, ‘História intelectual no Brasil:

a retórica como chave de leitura.’ in Topoi, n° 1, 2000.

344 Carta de José Feliciano Fernandes Pinheiro ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 25/10/1837. AHI, Arquivo

Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 228, Maço 5, Pasta 4.

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pertenceria também à uma lógica retórica desconsiderar parte da citação para que esta se

ajustasse mais perfeitamente à argumentação. Contudo, o fato é que a segunda edição

do ‘Anais’ situava a ‘Comissão Investigadora de Limites’ também mais próxima do

‘Programa’, ao ajustar tanto a constituição de seus membros quanto seu problema.

Nesse sentido, aconteceu mesmo na época de sua publicação, uma confusão do

‘Programa’ com o trabalho final de Pinheiro na ‘Comissão Investigadora de Limites’.

sendo tomados como um só por vários de seus leitores, provavelmente um dos objetivos

de sua estratégia de citação.

Entretanto, em comparação com o trabalho de Pinheiro na Comissão, o

‘Programa geográfico’ é uma elaboração totalmente nova, muito mais ampla, onde, se

por um lado, se buscava consolidar a argumentação da nulidade dos tratados para os

sócios e membros do Instituto, por outro, atribuía ao Tratado de Madri uma acepção

bastante diversa da narrativa do setecentos. Pinheiro também se preocupou em buscar

subsídios nos documentos e nos relatos de naturalistas acreditados para justificar sua

idéia de espaço nacional, incorporando, inclusive, a cartografia como fonte documental

e de argumentação, procurando inventariar a cada passo do ‘Programa’ os mapas e

cartas capazes de endossar ou esclarecer os problemas da questão.

Portanto, Pinheiro foi o responsável por trazer a cartografia, pela primeira vez,

para o centro da construção do espaço. Vale a pena acrescentar, nesse sentido, que o

motivo do atraso na publicação dos ‘Anais’ foi também a preocupação do seu autor com

a cartografia, uma vez que nos ‘Anais’ seria encartado um mapa da Província do Rio

Grande de autoria de Pinheiro, que ainda estava sendo gravado em Paris.345

Portanto, o ‘Programa geográfico’ irá consolidar no IHGB, em sintonia com o

trabalho anterior de Pimenta Bueno e o pensamento de Ribeiro, a ligação da construção

do espaço com a prova histórica, enfatizando-se uma apreensão do conhecimento nos

fenômenos, nas causas e nas fontes, como pode ser exemplificado pelas corografias

produzidas no período. Por outro lado, o ‘Programa’ também introduz no IHGB a idéia

de que o espaço fazia parte de uma narração organizada pela elaboração do Mito, no

caso, do pertencimento do indivíduo ao território, portanto, constituir-se-ia no IHGB,

através do ‘Programa’, a polaridade gramatical que resultaria posteriormente na

possibilidade de se produzir uma ‘Mitologia do espaço nacional’ a partir da narrativa do

século XIX.

345 Ver o capítulo ‘Em amplexo fraternal’.

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Depois de avaliado, o ‘Programa’ foi impresso às custas do IHGB que, em

seguida, distribuiu-o entre os seus sócios, gerando, assim, a divulgação e o debate das

idéias de Pinheiro, por sinal, muito bem recebidas por todos, à exceção de Manoel José

Maria da Costa e Sá, membro da Academia Real de Ciências de Lisboa. Esse autor, nas

suas ‘Breves Anotações’,346

critica Pinheiro justamente quanto a organização da

narrativa: esta omitiria, suprimiria e interpretaria erroneamente diversos elementos.

Costa e Sá, investiria especialmente contra o tratamento dado no ‘Programa’ ao Tratado

de Madri, acusando-o de ter sido extremamente nocivo a Portugal e, inclusive,

lembrando que logo após o Tratado, Alexandre de Gusmão caíra em desgraça, sendo

mesmo, acusado de suborno.

A ‘Resposta’ de Pinheiro,347

que contaria, inclusive, com o incentivo de D.

Pedro II,348

iria reafirmar perante o IHGB a nulidade dos tratados, mas, demostrar

também a transcendência do tratado de 1750 para o Brasil, lançando assim as bases para

a produção de outro termo da narrativa do XIX: o mito de Alexandre de Gusmão.

Em seguimento à ‘Resposta’, Pinheiro apresentaria ao IHGB, em 1841, a

primeira biografia de Alexandre de Gusmão, denominada ‘Da vida e feito de Alexandre

de Gusmão e de Bartolomeu Lourenço de Gusmão’, que depois seria também impressa

e distribuída às custas do Instituto.349

Esta biografia dos Gusmão, proposta por Pinheiro

“para resgatá-los de um esquecimento, onde ficariam indignamente sepultados”, já fazia

parte de seus planos desde pelo menos 1838, quando em uma viagem a Santos, sua

cidade natal, colheu os documentos para escrever sobre o Alexandre e Bartolomeu de

Gusmão, seus conterrâneos, então desconhecidos mesmo pelas elites letradas, mas cuja

lembrança provavelmente fora cultivada e preservada pela Memória local.

Se no ‘Programa’ já se podia distinguir uma idealização da genialidade e do

saber de Alexandre de Gusmão, nesta biografia, sua figura seria aproximada do ideal

346 Manoel José Maria da Costa e Sá, ‘Breves anotações à Memória que o Ex. Sr Visconde de São Leopoldo escreveu

com o título "Quais são os limites aturais, pactuados, e necessários do Império do Brasil?” ’in Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902.

347 José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Resposta às breves anotações que a Memória do Visconde de S. Leopoldo

sobre os Limites do Brasil fez o Sr. Conselheiro Manoel José Maria da Costa e Sá’, in Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902.

348 Carta de José Feliciano Fernandes Pinheiro para Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, em 15/09/1846, citada em

Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, ‘Apontamentos biográficos sobre o Visconde de São Leopoldo’, in Revista

do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XIX, n° 21, 1898, p. 140

349 José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Da vida e feitos de Alexandre de Gusmão e Bartolomeu Lourenço de

Gusmão’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902, p. 399-400.

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romântico de herói, sendo enriquecida com a descrição de sua precocidade, de sua

lealdade e de seu desapego à riqueza ou a fama. Segundo esse enredo, o Tratado de

Madri é entendido como sua obra magna, uma façanha capaz de lhe garantir a

eternidade nos “Fastos do Brasil”. Já para seu irmão Bartolomeu de Gusmão, Pinheiro

reservou a glória e a ventura de ter sido o inventor da primeira máquina voadora:

Tinha a forma de um pássaro, crivado de multiplicados tubos, pelos

quais passava o vento a encher uma espécie de bojo, o que servia para elevá-

lo; e se faltasse o vento, entretinha-se o mesmo efeito por meio de foles

dispostos dentro do corpo da máquina. A ascensão devia também ser

promovida pela atração elétrica de peças de âmbar, dispostas na parte

superior, e por duas esferas, na mesma posição, incluindo magnete.350

Entretanto, embora ressaltasse que a ambos os irmãos coube a alcunha de “os

voadores”, seria apenas através de Alexandre de Gusmão que Pinheiro guiaria a

narração do século XIX de encontro ao seu Mito, descrevendo através das condições

que precederam a criação do Tratado de Madri os mesmos problemas enfrentados e

trabalhados por ele na ‘Comissão Investigadora de Limites’ e no IHGB, por

conseguinte, empreendendo no enredo o reencontro das condições que precederam a

criação do Mito, conforme Mircea Eliade, o ‘estado que precedeu a criação da

cosmogonia’, o “Caos”.

Assim, o Tratado de Madri, sintomaticamente definido por Pinheiro como “o

gizamento geral de nossas raias”, teria decorrido da necessidade há muito sentida de se

definir os limites do Brasil. Para que se chegasse a tal fim, seria preciso superarem-se

inúmeras dificuldades, pois, além de não se saber determinar o espaço brasileiro [a

extensão das possessões nacionais], contava-se ainda com o desconhecimento do

território como fator impeditivo, ignorando-se mesmo as suas balizas naturais,

consideradas como então como essenciais para traçar a demarcação e evitar futuras

querelas; além do mais, contava-se ainda como o problema de todos os tratados

anteriores terem sido abortados.

350 Enciclopédia Britânica, 1797, segundo José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Da vida e feitos de Alexandre de

Gusmão e Bartolomeu Lourenço de Gusmão’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo

LXV, n° 105, parte I, 1902, p. 399-400.

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217

Mas, “o coração grandioso de Gusmão” não fraquejou: munido dos relatos,

itinerários, notícias e direitos dos paulistas, “seus heróicos patrícios”, Gusmão

bosquejou e marcou os pontos capitais, prescreveu as instruções, acompanhou as

discussões e esclareceu as dúvidas que surgiram.

Portanto, o Tratado de Madri foi fruto do esforço hercúleo e quase solitário de

um brasileiro, que, defendendo os direitos de seus conterrâneos, delineou sua pátria.

Contudo, invejado, vilipendiado, incompreendido pelos portugueses, ainda que lutando

até o final, foi atraiçoado e esquecido351

— mesmo seu irmão partilharia da mesma

sorte, morrendo à míngua, anônimo e maltrapilho.

A consolidação do Uti Possidetis e os operadores da narrativa

Ainda que no Conselho de Estado os escritos de Pinheiro fossem lidos pelos

Conselheiros e mesmo suas idéias citadas nos votos e pareceres, estas não se

constituiriam em opinião da maioria na SJNE até, pelo menos, o início da década de

cinqüenta. Para isso, foi primeiramente necessário que a construção do espaço se

consolidasse no IHGB através do debate, para que, através de sua divulgação e pela

renovação do Conselho de Estado, seus termos e as ‘palavras-raízes’ fossem

entronizados na SJNE e traduzidos, paulatinamente, na prática da política externa

brasileira.

O conselheiro Caetano Maria Lopes Gama, antigo ministro dos Negócios

Estrangeiros quando das negociações de Ribeiro na Bolívia, fez em 1841 a primeira

citação do uti possidetis no Conselho de Estado, justamente quando se examinavam

outros tratados negociados por Ribeiro, desta vez com o Peru. A SJNE vetou neste

exame a ratificação da iniciativa de Ribeiro, pois os conselheiros entenderam que o

abandono das antigas convenções entre Portugal e Espanha seria uma inovação

perigosa, em razão, sintomaticamente, do desconhecimento do território.352

Além disso,

a questão da cessão de território, implícita nessa argumentação desde que introduzida

por Pimenta Bueno, também não era então ainda aceita pelos conselheiros, mesmo

porque ainda se questionava nesse órgão a secessão da Província Cisplatina.

351 José Feliciano Fernandes Pinheiro, ‘Da vida e feitos de Alexandre de Gusmão e Bartolomeu Lourenço de

Gusmão’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902, p. 386-388.

352 Na realidade Ribeiro assentou dois tratados com o Peru em 8 e 9 de julho de 1841, respectivamente, o Tratado de

paz, amizade, comércio e navegação; e o Convênio Especial, sendo que ambos não foram ratificados por sugestão

do Conselho de Estado. Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 16/06/1842.

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218

Lopes Gama citaria novamente o uti possidetis em 1844, quando do exame de

problemas relativos aos limites com o Uruguai, desta vez como voto abertamente

discordante e justificado em separado do parecer da maioria, demonstrando a

possibilidade daquele conceito ser a base de uma política de fixação de limites, mas,

alargando novamente seu conteúdo sintático: o uti possidetis poderia ser utilizado

preemptivamente pelo Brasil, ou seja, orientar-se-ia, por conta de uma compreensão das

‘fronteiras naturais’, o assentamento e a ocupação do território, tendo em vista se

garantir, assim, o uti possidetis numa futura negociação.353

Enquanto isso, no IHGB, o debate sobre o espaço se adensa a partir do início da

colaboração de diversos personagens que se envolveriam também na construção da

narrativa do século XIX. Já em 1841, antes de sua nomeação em 1842 como adido à

Legação brasileira em Lisboa, Varnhagen teve publicado às custas do IHGB um artigo

denominado ‘As primeiras negociações diplomáticas respectivas ao Brasil’, onde

concatenou, pela primeira vez, a idéia da ocupação do território com a ação da

diplomacia. Desenvolvendo esse raciocínio e, em consonância com as intenções

expressas por Pinheiro nos ‘Anais’ sobre o envio de literatos brasileiros ao exterior,

Varnhagen defende que os documentos relativos às transações diplomáticas que se

encontravam então espalhados nos arquivos e bibliotecas de várias nações, deveriam ser

recolhidos um Arquivo comum no Brasil, pois, “poderão para o futuro servir não só à

história nacional, como às primeiras linhas de um corpo diplomático e de direito público

externo do Brasil”.354

No ano seguinte, dá-se início à participação de Ribeiro no IHGB, inclusive nas

suas comissões internas, ao mesmo tempo em que inicia uma colaboração íntima com o

então ministro da SNE, Paulino José Soares de Sousa, futuro visconde do Uruguai.

Fruto dessa interação excepcional, surgiu a ‘Memória n° 12’, onde Ribeiro consolidou

perante a SNE o argumento da nulidade dos tratados, conforme os conceitos de

Pinheiro, passando a defender um híbrido do seu uti possidetis com o de Lopes Gama:

apesar de reafirmar a compensação e a cessão de territórios a fim de cobrir a ‘fronteira

natural’, Ribeiro passa a incluir no uti possidetis a idéia da aplicação preemptiva, tendo-

353 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 29/07/1844.

354 Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘As Primeiras Negociações Diplomáticas Respectivas ao Brasil’, in Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte I, 1902, p. 427-454.

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se em vista, uma definição futura dos limites.355

Para acompanhar esta memória Ribeiro

fez desenhar um mapa segundo sua orientação, pelo major Adolfo Antonio Frederico

Seweloh, onde delineava-se o território limítrofe com a Bolívia, apontando para uma

solução de limites conforme essa argumentação.

A ‘Memória n° 12’, por reunir diversas características, se constitui num material

exemplar para o estudo da narrativa do século XIX, pois foi construída segundo o

modelo dos mapas literários e sobre a ‘Memória’ de Ricardo Serra que havia sido

recém-publicada pela Revista do IHGB, se constituindo assim tanto no primeiro

exemplo da conectividade entre as corografias, os mapas literários e a cartografia,

quanto num produto direto do debate do IHGB. Além disso, ao procurar utilizar a

cartografia como uma leitura subjacente ao texto, a ‘Memória n° 12’ demonstra ter

recebido a influência direta do ‘Programa’ e dos ‘Anais’ de Pinheiro, inaugurando tanto

a integração da cartografia com a narrativa do século XIX, quanto uma produção

individual que se manteria durante trinta anos e influenciaria outros autores.

Data deste período, por conseguinte, o começo da interação e cooperação entre a

SNE e o IHGB cujo principal veículo será Ribeiro, e a colaboração deste com o

Conselho de Estado, através de Bernardo Pereira Vasconcelos, a quem assessorará a

partir do momento em que a SJNE passou a projetar sua influência sobre aquela

secretaria nas questões referentes à política externa e mesmo em relação aos problemas

internos.356

Foi por conta dessas interações que os problemas da política externa, através

das reflexões da SNE, se fizeram sentir no debate no IHGB, resultando numa narrativa

que seria, depois, pouco a pouco, entronizada no Conselho de Estado.

Nesse sentido, os conflitos no Sul do país e no Prata renovariam a preocupação

em relação ao problema de limites com o Uruguai, gerando uma intensa reflexão na

SNE a respeito da validade dos tratados anteriores que terminaria pela consolidação da

ligação entre o uti possidetis e o Tratado de Madri em 1844. Em diálogo com Ribeiro,

Ernesto Ferreira França, titular da SNE, sem negar a validade dos tratados anteriores,

entendia que a observância de Santo Ildefonso, como pretendia o Uruguai, se traduziria

para o Brasil na perda de dois terços do território que se considerava então parte da

355 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Memória n° 12 - Memória sobre limites e negociações do Império do Brasil com as

Repúblicas do Peru, Bolívia e Paraguai’. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1,

Documento 2.

356 Correspondência de Bernardo Pereira de Vasconcellos para Duarte da Ponte Ribeiro, 1846-1847. AHI, Arquivo

Particular Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 2, Pasta 42.

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Província do Rio Grande. Ferreira França entendia, por conseguinte, que se deveria

buscar outro tratado que fosse mais vantajoso para o Brasil, fixando-se, assim, no

Tratado de Madri, cujas raias acreditava serem superiores, por sua defensabilidade, até a

outros acordos aparentemente mais vantajosos, como, por exemplo, os que foram

obtidos durante o período joanino.357

Portanto, retornava novamente a idéia de que o Tratado de Madri apresentava

uma vantagem intrínseca para o Brasil, tornando obrigatória, para Ribeiro, uma reflexão

sobre o problema. Para este, a compreensão do Tratado de 1750 estava ligada a uma

remissão ao Tratado de Tordesilhas, que, para Ribeiro, fora produzido sob o conhecido

efeito da influência que os espanhóis possuíam então sobre a Igreja Católica, fazendo

com que os portugueses jamais houvessem aceitado pacificamente aquela “linha

indeterminada”. Assim, como já em 1681 Portugal tinha declarado “explicita e

categoricamente” que nunca havia reconhecido definitivamente “as Bulas dos Papas”, o

Tratado de Madri era o único acordo possível de ser alegado por qualquer uma das

partes, uma vez que fora negociado e delimitado pacificamente e em comum acordo.

Segundo Ribeiro, a oposição feita a este tratado teria sido movida apenas por

interesses pessoais do Marquês de Pombal, dos quais faziam parte, inclusive, a

nomeação de Gomes Freire de Andrade para o cargo de Governador do Rio de Janeiro e

Comissário dos Limites. Assim, apesar das divergências na localização dos acidentes

geográficos, decorrentes do desconhecimento do território implícito no texto do

Tratado, os marcos de limites teriam sido estabelecidos pelos Comissários através do

consenso das partes, construído na interpretação do texto do Tratado sobre o próprio

território, no que denominou de ‘princípio de posse efetiva’, por conseguinte, a

iniciativa dos demarcadores possibilitou que o Tratado de Madri se tornasse um

exemplo de equidade.358

Foi por esse raciocínio sobre a praxis das demarcações do Tratado de Madri que

Ribeiro estabeleceu a correspondência com o seu uti possidetis e os problemas de

limites enfrentados pelo Estado naquele momento, uma idéia bastante adequada a um

período de confrontos internos e agressões externas como foi a década de 1840 no

Brasil. Assim, não está presente no raciocínio de Ribeiro, neste momento, uma

357 Carta de Ernesto Ferreira França para Duarte da Ponte Ribeiro, em 29/11/1844. AHI, Arquivo Particular de Duarte

da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 2, Pasta 17.

358 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Apontamentos de Duarte da Ponte Ribeiro sobre as possessões portuguesas e espanholas

na América’. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 289, Maço 3, Pasta 5.

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correlação do uti possidetis com os princípios da negociação do Tratado de Madri, mas,

com a resolução das questões decorrentes das Demarcações.

Essa reflexão da SNE em 1844 demonstra a crescente importância do Tratado de

1750 na construção da narrativa, que seria sublimada no contexto da interação entre a

SNE e o IHGB, pela primeira colaboração enviada por Varnhagen do exterior para o

Instituto, justamente a transcrição e a certidão do Tratado de Madri, requeridas por

meio de uma Ordem Régia de D. Maria II à Torre do Tombo.359

Também fizeram parte dessa interação entre as reflexões da SNE e a aquisição

de conhecimento e debate sobre o espaço no IHGB, a retomada do modelo dos ‘mapas

literários’ por Pinheiro, Ribeiro e outros na década de 1840, resultando numa

experimentação e construção contínua da narrativa em torno da unidade do espaço.

Nesse sentido, a produção do Mito já pode ser observada nesses escritos através do que

Eliade denominou de ‘desejo do retorno às origens’, presente tanto nos ‘Apontamentos’

de Ribeiro360

quanto nas ‘Observações’ de Francisco José de Sousa Soares de

Andréa,361

e que pode ser identificado pela ênfase deste autores na necessidade de

renovação e regeneração dos antigos testemunhos da presença portuguesa e a inclusão

no espaço nacional de seus monumentos.

Igualmente, em relação a esse registro das origens, podemos utilizar a teorização

de Norman Cohn referente à ligação entre a construção do Estado e a produção do

Mito.362

Nesta teorização, ‘Caos’ e ‘Cosmos’ são definidos como categorias gerais,

separadas em essência e em permanente oposição narrativa que enfeixam o sentido

daquela ligação: a manutenção do Estado e a presença do Soberano garantem a

perpetuação do ‘Cosmos’ pelo afastamento do ‘Caos’. Deste modo, o registro das

origens, pode também ser verificado nos ‘mapas literários’ através da oposição narrativa

‘Cosmos’—‘Caos’, identificada nestes pela caracterização de uma identidade do

nacional em oposição ao ‘outro’ situado além do espaço. Nesse sentido, o ‘Caos’ se

manifesta continuamente fora do espaço nacional, ameaçando-o em todas as suas

359 ‘Ordem Régia de D. Maria II para o Oficial Maior do Arquivo da Torre do Tombo solicitando que se passe por

Certidão o pedido feito por Francisco Adolfo de Varnhagen com o teor do Tratado de Madri, demarcando os

limites da América, assinado entre Castela e Portugal em 13/01/1750 na Cidade de Madri’. IHGB, Lata 116,

número 14.

360 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Apontamentos sobre o estado atual da fronteira do Brasil’. IHGB, Lata 289, Pasta 9.

361 Francisco José de Sousa Soares de Andréa, ‘Observações aos apontamentos sobre o estado atual da fronteira do

Brasil’. IHGB, Lata 289, Pasta 9.

362 Norman Cohn, Cosmos, caos e o Mundo que virá. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

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dimensões pela negação da ordem, pela violência e pela barbárie — o “direito e a

Força” de Ribeiro ou “a Lei, a força e a firmeza” de Andréa eram os instrumentos

advogados para a delimitação do espaço nacional e a conseqüente preservação do

‘Cosmos’.

Portanto, quando em 1846 o Conselho de Estado se coloca contra a utilização do

uti possidetis nas negociações com a Venezuela, desautorizando toda a iniciativa da

SNE nesse sentido e validando os tratados do XVIII, este posicionamento já não

acontece apenas pela percepção do desconhecimento do território, mas, pelo

entendimento de que não mais se poderia transigir na defesa e no resgate do legado

original, agora sob permanente ameaça.363

Por conta dessa percepção, o debate se encaminhou na direção de consolidar a

argumentação da narrativa e estabelecer uma unidade de sua interpretação em torno do

IHGB. Esse esforço resultou no Parecer de 1847 da Comissão de Geografia, presidida

por Ribeiro, sobre o Memorandum de Pedro de Alcântara Lisboa relativo à opinião da

validade do Tratado de Santo Ildefonso, manifestada pelo Visconde de Santarém, então

uma autoridade geográfica e cartográfica mundialmente reconhecida.

O Parecer, aprovado pelo Instituto, recomenda a retificação dos escritos do

Visconde de Santarém, reconhecendo a argumentação da nulidade dos tratados como

base da negociação de limites, sancionando ainda o uti possidetis como parte integrante

da mesma argumentação e ligando-o a um registro da origem, como nas palavras de

Lisboa sobre o uti possidetis: “não é mais do que a continuação da fruição de um direito

legitimamente adquirido, e que só pode ser abandonado de uma maneira explícita.”364

A operação da narrativa

A partir do Parecer de 1847, os principais operadores da narrativa, como Lopes

Gama e Pimenta Bueno participariam mais intensamente das discussões do IHGB,

estreitando-se ainda mais o teatro da narrativa. Por outro lado, Ribeiro, teria uma

participação ainda mais intensa na principais questões da política externa, inclusive

como representante brasileiro em Buenos Aires durante o governo Rosas.

363 A consulta diz respeito ao exame geral das negociações com a Venezuela e especificamente dos ofícios enviados

em 12 de janeiro de 1846 e 15 de fevereiro de 1846 pelo representante brasileiro naquele país. Atas da Seção de

Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 6/10/1846.

364 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IX, n° 5, 1847, p. 436-439.

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Posteriormente, no seguimento da parceria com Bernardo Pereira de Vasconcellos,

tornar-se-ia, durante a década de 1850, o principal consultor da SJNE, inaugurando-se

uma colaboração que seria continuada por outros membros da SNE e ‘literatos’ do

Instituto como, por exemplo, Varnhagen. Sintomaticamente, não apenas Ribeiro, mas

também Pimenta Bueno, Soares de Sousa e Lopes Gama, teriam uma participação

intensa nesse novo teatro da narrativa e sempre em posição de destaque: os dois

primeiros foram nomeados, respectivamente, em 1848 e em 1849, para o posto de titular

da SNE, ingressando ainda, em 1859 e 1853, para o Conselho de Estado. Ainda neste

órgão, Lopes Gama se converteria, a partir da morte de Bernardo Pereira de

Vasconcellos, na figura mais poderosa da SJNE, sendo escolhido como Relator de

metade das consultas feitas à Seção durante o período que vai de 1849 a 1853.365

Como resultado do estreitamento do teatro da narrativa, já em 1849, às vésperas

da invasão da Argentina, o Conselho de Estado passaria a sustentar a argumentação da

nulidade dos tratados entendendo-a como capaz de renovar os “direitos imprescritíveis”

do Brasil através da “aliança ilustrada e benéfica da diplomacia e da força”, ou seja,

remetendo as iniciativas de política externa ao ‘saber sobre o espaço’ e a uma

‘linguagem do espaço’.366

No seguimento dessa interpretação, seria também

reconhecido o uti possidetis de Ribeiro como base para a resolução das questões de

limites, já identificado com a ‘posse efetiva’ e “de perfeito acordo com os escritores

mais dignos de atenção”, ou seja, consolidando aquela ‘palavra-raiz’ enquanto o

instrumento de verificação e delimitação de uma ‘‘fronteira natural’’, por conseguinte,

admitindo implicitamente nesse contexto a idéia da cessão de territórios, e ratificando o

debate do IHGB através da entronização da narrativa.367

Assim, foi possível que se constituísse na primeira metade da década de 1850

uma centralidade absoluta do IHGB na produção da narrativa, mas, por conta das

características da convergência dos teatros, sua operação deixaria de estar em poder do

plenário ou dos cargos executivos do Instituto para se situar num ambiente definido e

privilegiado de sua estrutura, a Comissão de Geografia, que seria composta entre 1852 e

1856, justamente por Ribeiro, Lopes Gama e Pimenta Bueno.368

365 Ver a Tabela ‘Relatores das consultas da SJNE entre 1842 e 1848’, no capítulo ‘O assento central’.

366 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de julho de 1849.

367 Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de agosto de 1849.

368 Nas eleições de 1852 e 1854 os três foram eleitos com significativa votação, ver: Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, tomo IX, n° 5, 1847, p. 71-73 e 585.

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Para isto, a Comissão de Geografia possuía várias prerrogativas decorrentes dos

estatutos do Instituto, como produzir pareceres sobre temas ligados à questão da

narrativa, vetar publicações ou ainda desaconselhar obras cuja matéria lhe dissesse

respeito. Ainda, como seus membros eram eleitos por votação dentre os sócios do

Instituto, recebiam destes, na prática, um aval da sua proficiência na matéria, que lhes

permitia, inclusive, influir na admissão de novos membros ao IHGB, especialmente

após 1850, por conta da reforma dos estatutos, que modificou tanto os critérios de

admissão quanto o caráter do Instituto.369

Em relação à admissão de sócios efetivos, essa reforma estabeleceu a

necessidade da apresentação de um trabalho sobre História, Geografia ou Etnografia que

fosse capaz de justificar sua admissão ao IHGB perante a Comissão de Sócios. A

necessidade dessa apresentação e, algumas vezes, de sua justificação perante o plenário,

terminou colocando sob a tutela indireta da Comissão de Geografia a admissão daqueles

que poderiam vir a participar do debate sobre o espaço nacional, já que, na prática, as

duas comissões ou o plenário poderiam, além da “aptidão” do candidato à temática em

questão, questionar ainda seus atributos pessoais, ampliando, assim, a aplicação do

poder de veto aos que fossem considerados divergentes ou recalcitrantes. Foi, por

exemplo, o caso de Bento da Silva Lisboa, Barão de Cairú, que, ao enfrentar o Parecer

da Comissão de Sócios, foi obrigado a demonstrar que não lhe cabia o epíteto de fraco,

adquirido por conta da sua atuação à frente da SNE e que ameaçava sua admissão no

IHGB: humilhantemente, Lisboa teve de fazer sua defesa perante o plenário do Instituto,

inclusive, através de uma cansativa leitura das notas que, como ministro, trocara com o

representante dos Estados Unidos.370

Quanto a modificação do caráter do Instituto em 1850, esta pode ser percebida

pela supressão no primeiro artigo dos estatutos da promessa dos cursos públicos de

história e geografia. Esta mudança refletia a idéia que nesse momento, a maioria dos

membros fazia de si e do próprio IHGB, como parte integrante da mobilização e do

mecanismo do Estado e que era compartilhada integralmente pela Comissão de

Geografia, segundo o seguinte raciocínio: uma vez que era presidido pelo Imperador e

369 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XIII, n° 6, 1850, p. 523.

370 Lisboa esta à frente da SNE entre novembro de 1846 e julho de 1847, período em que se desenrolou a chamada

Questão Wise, nome pelo qual ficou conhecido o problema decorrente da interpretação que o representante dos

Estados Unidos deu à detenção de um oficial e diversos marinheiros da corveta Saratoga. Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro tomo XIV, n° 4, 1851, p. 474-488.

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tinha por sócios os membros do Gabinete e do Conselho de Estado, as opiniões emitidas

pelo Instituto e suas iniciativas seriam interpretadas como precedidas de assentimento

do Governo, por conseguinte, o IHGB não deveria divulgar o que fosse atentatório a

esses interesses, concentrando ainda seus esforços na busca de insumos que lastreassem

as iniciativas do Estado.371

Assim, a Comissão de Geografia entendia que fazia parte de suas atividades a

censura e a correção das publicações que afrontassem a posição assumida pelo Conselho

de Estado e que, sobretudo, neste exercício, se deveria guardar silêncio sobre o Parecer

que as analisou,372

ou seja, o IHGB devia assumir a tarefa e também o ônus, de

“transmitir à posteridade o conhecimento dos fatos que a história deva registrar, e

impedir com a sua censura os erros a que os vindouros poderiam a ser induzidos por

inexatas ou exageradas referências”.373

Nesse sentido, a censura e a correção exercidas pela Comissão de Geografia

envolviam um esforço para circunscrever a narrativa cerceando a produção de novos

enunciados ou garantindo a sua assimilação à ‘‘norma narrativa’’. Ressalte-se que, no

caso, as idéias de ‘‘derivação’ e ‘‘norma narrativa’’ serão entendidas a partir da

conceituação de Gilbert Durand, que utiliza o termo ‘‘derivação’’ para designar as

derivações intraculturais que se desenvolvem de um eixo de tempo genérico literário a

outro, mas, situando-a como a variação de um outro conceito, que é o de ‘narrativa

canônica’, que é, para esse autor, a construção mais completa e que serve de modelo às

demais. Entretanto, como entendemos em nossa análise que a narrativa está em

permanente construção e em constante redefinição, preferimos utilizar o conceito de

‘norma narrativa’, para designar a construção que se situa no centro das estratégias e das

táticas dos operadores, mantendo em seu sentido geral a idéia de ‘derivação’.374

No caso da censura exercida pela Comissão Geográfica, seus critérios abrangiam

a competência lingüística dos autores, o pertencimento da argumentação à narrativa e

371 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Resumo da Memória apresentado ao Instituto Histórico sobre limites, por Ernesto

Ferreira França Filho’, 1849. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, Pasta 11,

Documento 2.

372 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Nota dos assuntos relativos a Geografia e História do Brasil, que tem sido publicado na

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro até o tomo 19 (sobre região do Brasil).’ AHI, Arquivo

Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 289, Maço 2, Pasta 3.

373 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Parecer do Sr. conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, sobre a referida Memória, lido na

sessão do Instituto Histórico de 17 de Junho de 1853,’ in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,

tomo XII, 3 (XII), 1853, p. 515-517.

374 Ver Gilbert Durand, Mito e Sociedade. Lisboa: A Regra do Jogo, 1983, p. 33-36.

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sua interpretação da ‘norma narrativa’, bem como incluíam juízos mais subjetivos, por

exemplo, se as obras apreciadas eram “contrárias a retidão que caracteriza a política do

Brasil com os Estados vizinhos”; se eram “prejudiciais aos direitos perfeitos do Brasil”;

e se eram “menos justas na apreciação dos atos do Governo Imperial”. Neste último

caso, ainda se deveria avaliar o nível de desvio em relação a ‘norma narrativa’:

primeiro, os escritos que “levavam a entender que os atos do Governo pretendiam

usurpar terrenos aos novos Estados”; segundo, os que davam como “ilegitimamente

adquirida uma parte do que se possuía”; terceiro, aqueles que consideravam ser

“verdadeiras as acusações contra os atos do Governo”.375

Ainda como parte do esforço de circunscrever a narrativa, Soares de Sousa

lembraria em 1850 de entronizá-la numa representação cartográfica, constituindo para

esse fim uma ‘Comissão de Limites’ na SNE, presidida por ele mesmo e composta por

Ribeiro e Pimenta Bueno, com o objetivo de recolher documentos e mapas que

possibilitassem, ao mesmo tempo, a composição de uma “Carta da Fronteira do

Império” e de uma “exposição histórica” para acompanhá-la.376

Entretanto, ainda que as atividades da Comissão de Geografia visassem

circunscrever a competência da produção da narrativa e as condições de sua

interpretação através de um argumento que evoluiria para sua constituição enquanto um

‘segredo de Estado’, as possibilidades de manutenção de uma estrutura simples num

modelo narrativo complexo são muito limitadas, como pode ser observado a partir dos

experimentos de Chomsky com modelos lingüísticos finitos, uma vez que os termos e as

‘palavras-raízes’ desse modelos podem formar derivações equivalentes ou não

equivalentes com os mesmos elementos daquela estrutura, criando-se assim uma

ambigüidade de interpretação mesmo na ‘norma narrativa’.377

Ora, as iniciativas da Comissão de Geografia derivavam, em parte, das intensas

criticas feitas no Parlamento, na Imprensa e no IHGB à aplicação estrita do uti

possidetis na resolução das questões de limites com o Uruguai, a Venezuela e o Peru, as

375 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Nota dos assuntos relativos a Geografia e História do Brasil, que tem sido publicado na

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro até o tomo 19 (sobre região do Brasil).’ AHI, Arquivo

Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 289, Maço 2, Pasta 3.

376 Correspondência entre Paulino José Soares de Sousa e Duarte da Ponte Ribeiro, citado em José Antônio Soares de

Souza, Um diplomata do Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, p. 275-276.

377 A esse respeito ver a análise dos modelos finitos e os problemas denominados da “homonímia de construção” nas

estruturas sintagmáticas em Noam Chomsky, Estruturas Sintáticas, Lisboa: Edições 70, 1980, p. 15-31.

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quais se concentravam, especialmente, sobre a questão da cessão de territórios,

entendida então como o cerne da política de negociações.

Estas críticas possuíam por base, justamente, os mesmos elementos que

compunham a ‘norma narrativa’ defendida pela Comissão de Geografia, sendo também

construída a partir do debate no IHGB, da divulgação das corografias do século XVIII e

utilizando ainda a representação cartográfica da Carta Niemayer de 1846, constituindo-

se, por conseguinte, numa ‘derivação’ da ‘norma narrativa’. Contudo, essa ‘derivação’,

era então menos elaborada e sua operação muito rarefeita, constituindo-se como uma

interpretação radical do ‘retorno à origem’, onde o espaço brasileiro identificava-se com

o limite máximo da expansão portuguesa na América verificado sobre aquelas obras.

Esse pensamento sobre o espaço tomou força, justamente, a partir da discussão de

limites no início da década de 1850, pois, como sua percepção do espaço nacional

diferia muito em relação ao que se propunha nas negociações, acreditava-se então que

todas as negociações envolviam grandes cessões do território nacional. Assim,

conforme Soares de Sousa, tornou-se até mesmo necessário que taticamente a SNE

tivesse de apresentar nas negociações as mesmas exigências dos seus críticos, só para

que depois se pudesse recuar, “convencida por fatos patentes”.378

Assim, tornava-se

urgente, conforme aconselhava Ribeiro, que a atividade da Comissão de Geografia fosse

centralizada no combate à ‘derivação’ da norma:

Creio que conviria modificar as suas pretensões, a fim de por termo

a uma questão que diferida para mais tarde quiçá arraste maiores embaraços

ao Império. É minha opinião que o Brasil deve sustentar a todo transe a

fronteira de que tiver efetiva posse, e buscar por transações razoáveis cobrir

melhor esses estabelecimentos sendo possível; mas que não deve insistir em

realizar uma fronteira ideal, iniciada em outros tempos, quando para efetuá-

la podiam dar-se noutra parte compensações que hoje são impossíveis com

os novos Estados.379

Mas, conforme pode se observar por esse enunciado de Ribeiro, a ‘norma

narrativa’ reconhecia na ‘derivação’ uma parte mesmo de sua estrutura, como, por

378 Carta de Paulino José Soares de Sousa para Duarte da Ponte Ribeiro, em 19/08/1852. AHI, Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 2, Pasta 40.

379 Carta de Duarte da Ponte Ribeiro para Paulino José Soares de Sousa, em 31/05/1852. AHI, Missão Especial nas

Repúblicas do Pacífico, 1851-52.

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228

exemplo, a idéia do ‘retorno à origem’. Entretanto, a ambigüidade dessa interpretação

transparece quando se verifica que esse reconhecimento se faz conforme a sintaxe da

‘norma narrativa’, equiparando-se as idéias da ‘fronteira ideal’ com a da ‘fronteira

natural’ a partir de sua estrutura sintagmática, no caso, entendida pela remissão ao

Tratado de Madri e às permutas territoriais. Ainda, procurar-se-ia demonstrar a

incompatibilidade da ‘derivação’ com as tensões do presente e a necessidade de sua

adaptação, explicitada pelo remetimento da argumentação à própria construção do Mito,

através da idéia do confronto ‘Caos – Cosmos’.

Portanto, na manutenção de uma ‘linguagem do espaço’ que acomodasse a

‘norma narrativa’ e a ‘derivação’, a conjunção das estruturas seria um processos mais

efetivos para a construção de novas frases num modelo sintagmático, mas enfrentaria aí

as limitações do conhecimento de sua forma efetiva, aqui entendida como em função de

sua ‘efetividade narrativa’, como também do conhecimento de sua forma constituinte,

desdobrada não só em sua forma final mas também em sua ‘história derivacional’, ou

seja, neste caso, ainda que a conjunção de suas estruturas fosse possível, a ‘norma

narrativa’ e a ‘derivação’ seriam incompatíveis por apresentarem processos de

transformação e de constituição diferenciados.380

Assim, se desenvolvermos a idéia da ‘Máquina Gramatical’ de Chomsky, a

saber, a regra que determinaria a instituição de constituintes para o estabelecimento do

processo de conjunção, o ‘cisma da narrativa’ deveria ser entendido aqui como uma

exigência mesma de seu desenvolvimento, uma vez que a conjunção tornava-se

desvantajosa tanto para a ‘derivação’ quanto para a ‘norma narrativa’, emasculando a

primeira e impedindo que se produzisse, a partir da segunda, uma ‘Máquina’ mais

poderosa e capaz de “olhar para trás” a fim de possibilitar, deste modo, o controle e a

reprodução da narração.381

Por conseguinte, para que a operação da narrativa se

consolidasse, sendo capaz de constituir uma unidade narrativa centralizada em torno do

IHGB, seria necessário estabelecer um controle pela regra em torno dos seus elementos

finais e iniciais, neste caso, entendido como o controle da produção das seqüências

anteriores da ‘derivação’, coadjuvado por uma reprodução eficiente das seqüências de

380 Noam Chomsky, Estruturas Sintáticas. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 41.

381 A representação de Chomsky da gramática enquanto ‘Máquina’, pode ser entendida como um experimento de

análise das derivações e sua produção composto sobre uma gramática de modelo sintagmático com um número

finito de estados internos, possuindo ainda um estágio final e um inicial. Ver Chomsky, Estruturas Sintáticas.

Lisboa: Edições 70, 1980, p. 42.

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229

frases da ‘norma narrativa’ e pela capacidade de retorná-las a fase inicial do processo,

justificando-se, assim, a efetivação da censura da Comissão de Geografia, a

normatização do espaço pela Comissão de Limites e a combinação de seus esforços no

já estreito teatro da narrativa.

Sob essas circunstâncias, o debate no IHGB seria direcionado justamente para

um interstício entre a ‘norma narrativa’ e a ‘derivação’, visando facilitar a conjunção de

suas estruturas. Assim, a discussão do espaço, sob a administração da Comissão de

Geografia, passaria a priorizar, no início da década de 1850, tanto a ligação com as

origens, através da publicação e discussão das colaborações enviadas por Varnhagen do

exterior,382

quanto a discussão da exploração dos limites e a análise dos problemas dos

territórios contestados. Neste último caso, o redirecionamento do debate se constituía

também como um esforço destinado a subsidiar as consultas do Conselho de Estado383

e

as negociações da SNE, como, por exemplo, no apoio às questões das Guianas, que

inclusive possuiriam preferência de publicação na Revista do IHGB.384

Deste modo,

através do desvelamento do desconhecido e de sua retirada da esfera do ‘Caos’

arquitetava-se uma ordenação possível do próprio espaço do ‘Cosmos’.

O cisma da narrativa

Apesar da importância da Comissão de Geografia para o esforço de controle e

reprodução da narrativa, o estabelecimento do segredo sobre seus Pareceres fez com que

restassem hoje apenas uns poucos registros de sua atividade, através dos quais nos foi

possível reconstruir apenas dois episódios de utilização da censura, o primeiro destes

sendo o dos ‘Apontamentos Diplomáticos’ de Ernesto Ferreira França Filho e o segundo

o da ‘Memória Histórica’ de Joaquim José Machado de Oliveira. Entretanto, por meio

da reflexão sobre estes episódios podemos descortinar as tensões existentes no interior

do IHGB que levaram ao confronto e ao cisma entre a ‘norma’ e a ‘derivação’, levando

382 Como, por exemplo o de um ‘resgate do ‘Tratado descritivo do Brasil’. Ver Gabriel Soares de Souza, ‘Tratado

descritivo do Brasil em 1587 ou Roteiro geral com largas informações de toda a costa do Brasil’, in Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IV, n° 14, 1851.

383 A respeito da influência do debate e da citação direta à Revista do IHGB vejam-se, por exemplo, Atas da Seção de

Justiça e Negócios Estrangeiros, consultas de 4/08/1854, 28/11/1854 e 20/11/1854.

384 Foi o caso, por exemplo, da ‘Memória’ de Joaquim Caetano da Silva, apresentada ao IHGB em 1851, mas,

publicada antecipadamente na Revista de 1850. Joaquim Caetano da Silva, ‘Memória sobre os limites do Brasil

com a Guiana Francesa, conforme o sentido exato do artigo oitavo do Tratado de Utrecht,’ in Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XX, n° 13, 1850.

Page 230: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

230

à constituição de um novo regime da narrativa, com o deslocamento do Debate e da

operação da narrativa para um outro local de enunciação, a SNE.

Os ‘Apontamentos Diplomáticos’, foram apresentados por Ernesto Ferreira

França Filho ao IHGB em 1849 e logo identificados pela Comissão como um trabalho

escrito por seu pai, antigo titular da SNE. Nesta memória Ernesto Ferreira França

apresentava para o Instituto três diretrizes que julgava apropriadas para a definição e

defesa dos limites: primeiro, a constituição de um comissão que coordenasse a

confecção de uma série de cartas onde se representassem os limites do Brasil, adotando-

se nestas o meridiano do Rio de Janeiro como sua referência central; segundo, que se

estabelecesse um plano de ocupação e manutenção sobre certos pontos estratégicos por

ele definidos por serem considerados essenciais para a ‘segurança e conservação dos

direitos’, ou seja, para a consecução do uti possidetis preemptivo; terceiro, aconselhava

a constituição de um ramo especial do serviço público para cuidar da segurança e

inviolabilidade das fronteiras.

Logo, Ferreira França foi censurado porque, além tornarem pública a discussão a

respeito do espaço e dos limites, suas diretrizes, se aproveitadas, devolveriam a

condução do debate ao plenário, diminuindo a atuação da SNE e da SJNE, por conta de

sugerir a constituição de órgãos autônomos e desvinculados destes.385

Sintomaticamente, para o entendimento do desdobramento subseqüente das tensões

internas no Instituto, a Comissão de Geografia entendeu, através de seu Parecer, que não

necessitava sequer de apresentar uma análise dos ‘Apontamentos Diplomáticos’, pois o

IHGB não possuía atribuição para tratar das questões ali discutidas, não podia divulgar

suas informações e menos ainda fazer uso desse escrito.386

Já a censura das ‘Memórias Históricas’ em 1853 acarretou uma querela que

colocou em cheque as atividades da Comissão de Geografia e envolveu a própria

autonomia do IHGB, uma vez que o livro de Joaquim José Machado de Oliveira era um

violento libelo contra a utilização do uti possidetis e a própria política de limites do

Governo, utilizando o Tratado de 1851 com o Uruguai como mote para discutir os

385 Os ‘Apontamentos Diplomáticos’ somente seriam publicados em 1870. Ver Ernesto Ferreira França Filho,

‘Apontamentos Diplomáticos Sobre os Limites do Brasil’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, tomo XXXIII, n° 41, parte II, 1870.

386 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Resumo da Memória apresentado ao Instituto Histórico sobre limites, por Ernesto

Ferreira França Filho’. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, Pasta 11,

Documento 2.

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231

“incontestáveis direitos” à verdadeira “amplitude territorial do Brasil”, perdida pela

“incúria de quem em outros tempos presidia a seus destinos”.387

Encaminhada conforme à praxe para a Comissão de Geografia, o trâmite das

‘Memórias Históricas’ seguiu o seu curso normal em direção ao veto, desta vez

merecendo uma análise circunstanciada, onde se procurava negar tanto a cessão de

território na política de limites, quanto os “direitos” alegados por Oliveira em relação ao

território cedido pelo Tratado de 1851. Seria sobre essa ambigüidade que Ribeiro

procuraria desenvolver os argumentos da censura à ‘derivação’, defendendo o uti

possidetis através de um redimensionamento do Tratado de Madri, cuja característica

mais marcante seria a de se ter consolidado a expansão do território nacional em relação

ao Tratado de Tordesilhas. Conquanto este território ainda fosse menor do que aquele

defendido pela ‘derivação’, estaria sendo avalizada inicialmente, se não uma expansão,

pelo menos a manutenção do território, dentro de uma estratégia maior de combate à

idéia da cessão de territórios. Na verdade, esta estratégia visava questionar diretamente

a narrativa do setecentos e negar vários de seus termos, os quais haviam sido utilizados

por Oliveira para sustentar a argumentação dos direitos sobre um território a partir do

qual poderia ser consolidada a idéia da regressão do território nacional desde suas

origens.388

Entretanto, ao tentar desenvolver a ‘norma narrativa’ sobre um aprofundamento

da ambigüidade em relação a sua estrutura sintagmática, Ribeiro atingiu os limites dessa

mesma estrutura, demonstrando-se em seus efeitos a inviabilidade da manutenção do

processo de conjunção e as limitações do controle e da censura sobre a produção e a

reprodução da narrativa.

Assim, o primeiro indício da revolta que se seguiu, surgiria através de uma

proposta, aparentemente inusitada, de Antônio Gonçalves Dias no sentido de que se

arquivassem tanto o Parecer quanto as ‘Memórias Históricas’. Entendendo estar sendo

retirada uma das prerrogativas da Comissão Geográfica, Ribeiro impugnou essa

proposta, o que resultaria na aquiescência da Mesa para que Gonçalves Dias passasse a

defender as ‘Memórias Históricas’ no plenário, e que mais dois sócios, Pedro de

387 Joaquim José Machado de Oliveira, ‘Memória histórica sobre a questão de limites entre o Brasil e Montevidéu’, in

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XII, n° 3, 1853.

388 ‘Parecer do Sr. conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, sobre a referida Memória, lido na sessão do Instituto

Histórico de 17 de Junho de 1853’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XII, n° 3, 1853,

p. 435.

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Alcântara Bellegarde e Candido Batista de Oliveira pudessem apresentar seus trabalhos

sobre o escrito de Oliveira, deste modo, coadjuvando Gonçalves Dias.389

Na verdade, Ribeiro estava obrigado tanto a defender o veto da Comissão de

Geografia quanto a própria ‘norma narrativa’ em plenário. Esta seria, no decorrer da

querela, associada eficazmente por Gonçalves Dias à argumentação empregada pelos

espanhóis contra a narrativa do setecentos, inclusive porque Ribeiro, em sua estratégia

de redimensionar o Tratado de Madri contra a narrativa do setecentos, estabeleceria os

limites do Tratado de Tordesilhas como a origem das questões de limites, buscando

caracterizá-los pelos cálculos mais propícios a afirmar a expansão do território com o

Tratado de Madri.390

Como resultado da discussão, romper-se-ia definitivamente a ligação da ‘norma’

com a ‘derivação’ e a narrativa do setecentos, se constituindo uma maior autonomia do

IHGB que resultaria, na prática, no seu esvaziamento. Este esvaziamento decorreria da

retirada do poder de censura que caracterizava as iniciativas da Comissão de Geografia

e pela anulação do segredo do Parecer, ao ser este, no caso, publicado conjuntamente às

‘Memórias Históricas’. Ainda, instituiu-se, por proposição plenária, a revisão da Carta

Niemayer sob os auspícios do IHGB, o que colocava o Instituto em contraposição à

Comissão de Limites da SNE. Seria mesmo aprovada a proposta de se estabelecer no

Instituto uma coleção dos tratados que envolviam o Brasil, criando-se, deste modo,

condições para que se pudesse organizar no IHGB uma base documental sobre os

limites e a política externa, exemplificando-se, com esta atitude, a disposição do

plenário de discutir abertamente os problemas de Estado.391

Esta vontade se verificaria

logo no ano seguinte pela proposta plenária de que o ‘Caso Maury’392

fosse discutido no

IHGB através da análise de um dos seus sócios: embora se prometesse limitar as críticas

389 Esta discussão será retomada no próximo capítulo, ‘O espelho de Jacobina’.

390 Ver Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Defesa do Parecer sobre a Memória Histórica do Sr. Machado’, in Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XII, n° 3, 1853; Antonio Gonçalves Dias, ‘A Memória Histórica

do Sr. Machado de Oliveira e o Parecer do Sr. Ponte Ribeiro’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, tomo XII, n° 3, 1853; Antonio Gonçalves Dias, ‘Resposta do Sr. A. Gonçalves Dias à Defesa do

Parecer sobre a Memória do Sr. Machado de Oliveira’, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,

tomo XII, n° 3, 1853.

391 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVII, n° 17, 1854, p. 77-102.

392 O caso Maury decorreu da publicação do livro ‘The Amazon and the Atlantic Slopes of South America’ pelo

tenente da Marinha dos Estados Unidos M. F. Maury, onde se pleiteava a livre-navegação do rio Amazonas,

procurando incentivar a colonização da Amazônia por sociedades norte-americanas, que se constituem

efetivamente em 1854, segundo informações da SNE, como grupos de pressão sobre o Congresso dos Estados

Unidos. Ver ‘Memorial apresentado ao Congresso dos Estados Unidos’. AHI, Arquivo Particular de Duarte da

Ponte Ribeiro, Lata 265, Maço 8, Pasta 1.

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233

“às matérias que não fossem intimamente conexas com a política”, essa iniciativa se

constituía contra o debate já travado no âmbito da SNE e que era capitaneado também

por Ribeiro. A proposta foi aprovada no IHGB, contra a posição de Ribeiro, acarretando

assim a ruptura final com a Comissão de Geografia: embora seus integrantes houvessem

sido reconduzidos ainda em 1854, por boa maioria de votos, estes passariam a se

ausentar sistematicamente das sessões, inclusive, se afastando do próprio Instituto:

nenhum dos trabalhos da Comissão é levado a cabo durante os dois anos seguintes, nem

seus membros se candidatariam novamente à reeleição.393

Como visto, o esvaziamento do IHGB foi a conseqüência mais evidente do

‘cisma da narrativa’, mas, também em decorrência deste houve uma transformação

menos óbvia e mais profunda na representação do espaço, a qual será trabalhada no

próximo capítulo a partir do estudo das novas condições da operação e da produção da

narrativa, caracterizadas pela intensa utilização da cartografia e por uma transformação

no estilo corográfico.

393 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVII, n° 17, 1854, p. 579-583.

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234

9 — O ESPELHO DO JACOBINA: OS PROCESSOS DE PRODUÇÃO

CARTOGRÁFICA E O NOVO REGIME DA NARRAÇÃO.

“Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo:

uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... [...] A alma

exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto,

uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a

alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma

máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício

dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o

homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das

metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a

perda da alma exterior implica a da existência inteira.”

Machado de Assis. O Espelho.394

Como vimos, as tensões geradas pelas atividades destinadas a concentrar o

controle da produção, reprodução e aplicação da narrativa, terminaram por

reterritorializar o espaço do teatro da narração, fazendo com que lugar de operação da

narração fosse constituído na SNE e relegando o IHGB a um papel acessório e

secundário durante as décadas de 1860 e 1870.

Por conta das características desse novo lugar de operação da narrativa, a

cartografia passaria a substituir a corografia como o medium por excelência de inscrição

da narrativa, o que nos leva a também ter de analisar os processos de produção

cartográfica tendo-se em vista o que Jacques Derrida chamaria de sociabilidade da

escrita, ou seja, entendendo-se que o cartógrafo é um sistema de relações entre os

diversos estratos do processo cartográfico, composto pela sua seleção, composição,

inscrição e divulgação.395

Utilizando-nos de tal enfoque, pretendemos discorrer sobre o emprego e as

condições de leitura dos produtos cartográficos pelos historiadores, procurando, ao

mesmo tempo, demarcar tanto seus limites quanto suas possibilidades.

394 'O Espelho' in Machado de Assis, Obra Completa v. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

395 Conforme a apropriação que fizemos desses conceitos sugeridos por Derrida a partir de sua leitura da obra de

Freud. Ver Jacques Derrida, ‘Freud e a Cena da Escritura’, in A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora

Perspectiva, 2002, p. 221-223.

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235

Nesse sentido, J. B. Harley foi o único autor a propor uma leitura dos produtos

cartográficos capaz de ultrapassar os métodos e a interpretação costumeira dos

historiadores da cartografia, que visariam, segundo este autor, apenas investigar e

catalogar os mapas segundo suas características técnicas e de produção. Esta atitude,

segundo Harley, refletiria a adesão de seus cultores a um “positivismo cartográfico” que

deveria ser confrontado e substituído por uma interpretação baseada, por sua vez, numa

teoria iconológica e semiológica da natureza dos mapas.396

Para esse fim, Harley proporia a utilização dos conceitos anteriormente

desenvolvidos por Erwin Panofsky para o estudo dos níveis dos temas ou significados

na arte,397

visando com estes, identificar através dos elementos simbólicos e estruturais

dos mapas certas disposições qualificadas como “eminentemente retóricas”, as quais

seriam capazes de explicitar relações de ‘Poder e Saber’, conforme a definição

foucaultiana, bem como certos condicionamentos sociais.398

Entretanto, ainda que reconheçamos a pertinência da teorização de Harley,

acreditamos que, por conta da grande abertura e universalidade de seus conceitos, esta

deva ter seu uso condicionado a análises e enfoques que, por sua vez, devam estar

orientados e direcionados por um método que permita perscrutar o símbolo a partir de

uma pesquisa do contexto que envolve a composição cartográfica, já que a entendemos,

de acordo com os conceitos de Schopenhauer, como um ato de representação que

objetiva a Vontade de certos indivíduos ou grupos.

Em nosso entender, este ato de representação está conectado a propósitos,

conveniências e circunstâncias que, para serem alcançados, demandariam tanto a

constituição de certas mecânicas de produção, quanto a consecução de certos processos

de escolha, cuja compreensão combinada permitiria uma leitura dos significados dos

elementos e das estruturas técnicas do mapa enquanto participantes do processo criativo,

a composição cartográfica, uma vez que sua efetivação está conectada diretamente à

396 Ver J. B. Harley, ‘Maps, Knowledge and Power’, e ‘Deconstructing the Map’ in The new nature of maps: essays

in the History of Cartography Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001. 397 Erwin Panofsky, ‘Iconografia e Iconologia: Uma introdução ao Estudo da Arte da Renascença’ in Significado nas

Artes Visuais São Paulo: Perspectiva, 1976. 398 No caso, Saber e Poder se implicam mutuamente: não existiria relação de poder sem a constituição de um campo

correlato de saber, assim como não existiria saber que não pressuponha e constitua relações de poder. Ver J. B.

Harley, ‘Text and context in the interpretation in early maps’ e ‘Silences and secrecy - The hidden agenda of

cartography in early Europe’ in The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography Baltimore: The

John Hopkins University Press, 2001, respectivamente p. 37 e p.87.

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236

objetivação do ato de representação. Portanto, entendemos que o estudo da composição

do mapa pode ser tão ou mais significante que a interpretação do mapa em si.399

Ainda, este método também permitiria trabalhar os textos referentes ao esforço

da composição cartográfica em relação com os produtos resultantes, o que pode

possibilitar leituras que não estão diretamente relacionadas com a utilização do mapa ou

com os efeitos de sua divulgação, mas com um contexto partilhado pelas dinâmicas da

mecânica de produção ou pelos processos de escolha, permitindo ao historiador, por

exemplo, inferir a episteme relativa a um determinado período, grupo ou lugar, objetivo

também perseguido por Harley, ainda que mais pontualmente.400

Finalmente, falta-nos definir, utilizando os argumentos anteriores, que se o

mesmo ato de representação está relacionado a determinados propósitos, conveniências

e circunstâncias, insertos em determinada condição, este ato ou se objetiva através da

competição ou pelo ajustamento a outros atos também objetivados pela motivação, o

que, por sua vez, leva a estabelecer para o historiador novos lugares para a leitura de

contextos e referências da produção cartográfica.401

O processo interno e o processo externo

O estudo do processo de produção cartográfico será, portanto, constituído sobre

o método anterior, utilizando a premissa, desenvolvida nos capítulos precedentes, de

que o esforço de construção do Estado nacional e de produção da sua representação

cartográfica utilizou os mapas e as corografias dos séculos anteriores, adaptando-as à

narração de seu próprio passado e em prol de seus objetivos, visando assim estabelecer

uma legitimidade narrativa. Por meio desta, o espaço foi sucessivamente apagado e

reescrito em torno de um eixo vertical que ia de encontro a um corpo de indivíduos

capazes de constituir o Estado, por conseguinte, entendemos que a representação da

Nação incluirá também uma representação das ‘relações de força e de soberania’.

Ainda, é necessário explicar que, durante os séculos XVII e XVIII a cartografia

se constituiu numa escrita coletiva por excelência, organizada em torno da produção em

399 Em relação a teoria da representação e correlata objetivação da Vontade, ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica

do Belo. São Paulo: Editora Unesp, 2003, cap. 2.

400 J. B. Harley, in The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography. Baltimore: The John Hopkins

University Press, 2001, p. 87-88.

401 Ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo. São Paulo: Editora Unesp, 2003, cap. 2 e O Mundo como

vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, § 56- 57.

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escala e adotando práticas diversas e complexas, tornando necessário que a leitura do

processo de produção dos mapas seja feito através da apreensão de estratégias e táticas

que incluem tanto o agenciamento das técnicas e das condições da escrita quanto a

distribuição e atribuição de tarefas.

Nesse sentido, entendemos ser necessário distinguir na leitura dos mapas a

existência simultânea de dois processos de produção, um processo externo, relativo às

relações com as Instituições e o Estado, por conseguinte, a um ‘saber sobre o espaço’ e

outro processo interno, que diz respeito à natureza das práticas e procedimentos

cartográficos, ou seja, das classificações, generalizações, hierarquizações, divisões de

trabalho e formalização das decisões, que remete, portanto a um ‘saber cartográfico’.

Nesse sentido, utilizaremos a metáfora do conto ‘O Espelho’ de Machado de

Assis: segundo este, existiria uma dualidade na natureza dos objetos a ser pensados,

uma interioridade, equivalente, conforme Schopenhauer, à coisa-em-si, e uma

exterioridade, equivalente à representação. Nesse sentido, o objeto somente poderia ser

pensado conjuntamente, porquanto o pensamento não se dá somente em relação à coisa-

em-si, uma vez que esta já é intuição, já foi tornada experiência, já é também uma

representação do objeto mesmo esta consciência da completude das duas naturezas

foi que o Jacobina admirou, fardado, frente ao espelho.402

Estes dois processos simultâneos se distinguiriam do que Harley definiu como

poder interno e poder externo, entendidos por esse autor como a contraposição de uma

instância de poder local e descentralizado em relação a uma outra, centralizada e

concentrada. Para Harley, a convivência entre estas duas instâncias faria parte das

relações de poder que penetrariam os interstícios da prática e da representação

cartográfica, permitindo assim que os mapas pudessem ser lidos como textos que

legitimariam a relação ‘Poder Saber’ de Foucault.403

Contudo, entendemos em nossa idéia do processo interno e processo externo

que, além das relações apontadas por Harley, a construção da representação cartográfica

esteja sujeita, primeiramente, a um ‘saber sobre o espaço’, responsável pela elaboração

e reelaboração do espaço, entendido então, conforme Schopenhauer, como uma

402 Arthur Schopenhauer, 'Crítica da Filosofia Kantiana', in Os Pensadores - Arthur Shopenhauer. São Paulo: Editora

Nova Cultural, 1997, p. 145-147.

403 J. B. Harley, ‘Power and legitimation in the english geographical atlases of the eighteenth century,’ in in The New

Nature of Maps: Essays in the History of Cartography Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001, p.

111-113.

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construção contínua a partir de um lugar de representação. Em segundo lugar,

compreendemos que a representação cartográfica pode ainda ser transformada, alterada

ou limitada por circunstâncias inerentes às propriedades e características das técnicas e

procedimentos cartográficos, devendo-se estender ainda essa lógica às leituras daí

resultantes. Nesse sentido, deve-se salientar que o agenciamento das técnicas faz parte

de um processo de escolhas que não é apenas subjetiva, mas que também se constitui

num procedimento ligado às estratégias e táticas dos operadores das representações

cartográficas, sendo que estas, por sua vez, estão sujeitas ainda às capacidades técnicas

ou operacionais dos últimos.

Nesse sentido, ainda pretendemos que a interpretação semiológica e iconológica

não deva ser constituída isoladamente, mas entronizada no método, para que,

ultrapassando os aspectos imediatos do mapa, dê conta dos processos de objetivação do

ato de representação, permitindo mesmo a utilização dos recursos levantados pela

História da Cartografia tradicional. Em razão disto, a interpretação semiológica e

iconológica dos produtos cartográficos deve se basear nos significados percebidos

através do estudo das relações desenvolvidas entre o processo interno e o processo

externo, bem como da compreensão de sua inserção no problema geral da forma

cartográfica.

No caso da apropriação da cartografia por parte do Estado brasileiro no século

XIX, adiantaremos que as finalidades operacionais da narrativa ultrapassaram os

procedimentos técnicos da cartografia, ou seja, entendemos que as técnicas foram

agenciadas para que se facilitasse um medium para a entrada em cena do objeto no

mundo da representação. Assim, o ‘saber cartográfico’ constituiu, ele mesmo, parte da

operação de representação, visando-se uma inscrição do Estado no espaço. No caso,

utilizando-se a comparação da retórica com a representação feita por Schopenhauer, o

medium constituiu o objeto através de uma “dissimulação” de sua forma, uma vez que o

objeto tornar-se-ia a representação do sujeito mesmo.404

Entretanto, se utilizarmos nossa idéia de processo externo e processo interno

para compreendemos a objetivação da inscrição do Estado no espaço, aquele medium,

que foi primeiramente entendido como condicionado, na medida o processo externo

agenciou as técnicas cartográficas, também é entendido como condicionante, na medida

404 Ver Arthur Schopenhauer, O Mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, § 47 e A

Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 48-49.

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em que certas características do processo interno, seja sua constituição autônoma, sejam

as limitações técnicas, imporem restrições à representação pura, constituindo-a no

medium como uma objetividade imperfeita da Vontade, que, em tese, deveria ser

complementada ou mesmo substituída por outras representações.

Finalmente, em relação ao medium, e novamente remetendo ao caso da

apropriação da cartografia pelo Estado, se as táticas ou estratégias dos operadores

exigirem um sacrifício intencional da forma, ou seja, se as finalidades operacionais

ultrapassarem as condições técnicas pode produzir-se através do medium, uma alteração

do objeto não prevista pelos operadores, constituindo-se esta alteração do objeto, ela

mesma, como uma representação mais ou menos independente da objetivação da

Vontade, ou no caso, do espaço em produção.

Assim, o medium é entendido em nosso método como um facilitador da

apreensão da Idéia pelos outros, sendo que esta apreensão da Idéia será condicionada

pela natureza ou característica do medium, ligando-se, ainda, o processo interno ao

processo externo pelo gênio do operador.405

Em respeito a importância do medium para a representação, podemos citar o

adendo de Schopenhauer à célebre discussão sobre a razão de não se representar o grito

do personagem ferido no grupo escultural de Laocoonte. Enquanto Winckelmann e

Lessing atribuíram tal característica, respectivamente, ao estoicismo do personagem ou

à incompatibilidade da beleza com a dor, para Schopenhauer a ação de gritar não fora

representada “pela simples razão de que o grito é inteiramente rebelde aos meios de

imitação da escultura”. Portanto, para Schopenhauer, era impossível tirar do mármore

um Laocoonte a gritar, entendendo assim, existirem limites para a representação, os

quais estariam impressos nas possibilidades mesmas do medium.406

Portanto, para se entender a representação é necessário antes compreender as

técnicas que a originaram e as condições do gênio, já que este é dependente de uma

apreensão intuitiva das Idéias dos objetos e de uma intelecção das mesmas Idéias e

objetos, a fantasia.407

405 O gênio é entendido por Schopenhauer como uma capacidade de conhecimento inata e que se encontra em

diversos graus em todos os homens, o que pressupõe lhe serem inerentes as habilidades da criatividade e do

entendimento. Ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 83-87.

406 Arthur Schopenhauer, O Mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, § 46.

407 Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 61-65 e 166-169.

Page 240: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

240

Assim, a inscrição da representação do espaço nacional não se fez apenas pela

apropriação da cartografia pelo Estado: a inscrição da representação do espaço nacional

foi feita no cruzamento de diferentes processos externos e processos internos, com suas

dissimulações e alterações proporcionando distintas leituras e a conseqüente

necessidade de sua normatização, no caso, através do esforço de construção de uma

carta geral brasileira. Do mesmo modo, a utilização dessa representação pela

historiografia não foi determinada somente pela disponibilidade dos objetos

cartográficos: a cartografia foi, na maioria das vezes, o medium de um ‘saber sobre o

espaço’, que constituiu o mapa como um lugar privilegiado de sua leitura no centro

mesmo da narrativa historiográfica.

O processo cartográfico nos séculos XVII e XVIII

Até o século XIX o método usual para a reprodução de mapas e Atlas era o da

gravação em cobre: os mapas manuscritos tinham seus detalhes copiados para uma

placa desse material, na qual eram gravados em alto-relevo propiciando-se assim uma

matriz de impressão passível de receber alterações e capaz de permitir seguidas

reimpressões. Nesse sentido, estima-se que uma matriz de cobre bem cuidada e que

recebesse uma manutenção regular do traçado de seu relevo podia ser utilizada até três

mil vezes, possuindo comumente uma durabilidade capaz de ultrapassar a centena de

anos.408

Entretanto, a gravação em cobre era um processo caro, trabalhoso e altamente

especializado e, por conta destas características, o processo cartográfico consolidou-se,

nos séculos XVII e XVIII, apenas onde o Estado foi capaz de arcar com seus custos ou

onde existisse um mercado capaz de atrair empreendimentos particulares que

possibilitassem, sobretudo, a manutenção dos melhores profissionais.

Mas, ainda que se estabelecesse nesse período uma nova tradição no processo

cartográfico com uma separação e uma estandardização rigorosa das tarefas entre

astrônomos, desenhistas, gravadores e impressores, que consolidou o controle do

processo interno nas mãos dos editores (o que pode ser exemplificado, inclusive,

408 Coolie Verner, ‘Copperplate Printing,’ in Five centuries of map printing. Woodward, David. Chicago: University

of Chicago Press, 1975, p. 72.

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241

através da prevalência do anonimato no processo cartográfico),409

alguns cartógrafos,

como Gerhard Mercator, John Thornton e John Arrowsmith foram capazes de dominar

todos as instâncias do processo cartográfico, estabelecendo-se privativamente e

disputando o mercado de Mapas e Atlas com trabalhos de sua autoria.410

Portanto, uma das principais características da cartografia antes do século XIX, é

a existência de diferentes centros fora do controle direto do Estado, capazes de produzir

em escala e em disputa pelo controle de um mercado, em busca de uma lucratividade

que se devia ao fato de que os produtos cartográficos não eram apenas utilizados como

fonte de informação para o Estado ou para o investidor, mas também eram parte de uma

cultura de consumo que se estabeleceu no período, impulsionada pelas transformações

culturais decorrentes da difusão da tipografia e das notícias das viagens transatlânticas,

popularizadas pelas corografias e narrações dos viajantes.411

O desenvolvimento da gravação em cobre foi decisivo para o estabelecimento

das condições desse novo mercado, proporcionando que a cartografia se tornasse,

durante o século XIX, parte mesmo da cultura material, com seus produtos circulando

nas mais variadas formas, tanto como Atlas e mapas de diversos tamanhos quanto como

decoração em utensílios e vestimentas. Contudo, essa popularização dos produtos

cartográficos e corográficos, que compunham uma cultura de elite até o século XVIII,

somente se tornou possível pelo desenvolvimento de uma nova técnica nas primeiras

décadas do século XIX: a litografia.

O processo cartográfico no Brasil do início do século XIX

A técnica litográfica consistia na escrita diretamente sobre uma matriz de pedra

calcária ou zinco ou pelo transporte dessa escrita para a pedra através de uma folha

especial, quando então utilizava-se um processo químico que tornava a sua superfície

capaz de permitir sucessivas impressões.

409 J. B. Harley, ‘Power and legitimation in the english geographical atlases of the eighteenth century,’ in The new

nature of maps: essays in the History of Cartography. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001, p. 113-

115.

410 Coolie Verner, ‘Copperplate Printing,’ in Five Centuries of Map Printing, Woodward, David. Chicago: University

of Chicago Press, 1975, p. 70.

411 Ver ‘Pictorial prints and the growth of consumerism: class and cosmopolitanism in early modern culture’ e ‘A

new world picture: maps as capital goods for the modern world system’ in Chandra Mukerji, From graven images:

patterns of modern materialism. New York: Columbia University Press, 1983, p. 30-130.

Page 242: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

242

Além de tornar a composição dos mapas mais rápida, pois exigia uma menor

especialização de tarefas, ao eliminar, por exemplo, a obrigação que estes fossem

desenhados em reverso como na gravação em cobre, a litografia também possibilitou

uma diminuição acentuada dos custos materiais na cartografia. Estas características

tornaram possível, no século XIX, disponibilizar os produtos cartográficos a um público

imensamente maior e mais diversificado que nos séculos anteriores, ao mesmo tempo

que permitiriam que países sem tradição de produção cartográfica em escala, como era o

caso de Portugal e depois do Brasil, pudessem desenvolver uma incipiente produção

cartográfica em escala.

A criação do Arquivo Militar, já no mesmo ano da chegada da Corte ao Brasil,

serve para aferir a existência de uma percepção, no bojo da transferência do Estado

português, de que a produção cartográfica em escala poderia coadjuvar a ação do Estado

trazendo vantagens administrativas e servindo como um instrumento prático para a

centralização da autoridade. Nesse sentido, essa instituição teria a função de centralizar

a guarda, a organização e a classificação dos produtos cartográficos, para que fosse

possível então, utilizando-se os critérios da utilidade e da necessidade administrativa,

escolher o material a ser vulgarizado.

O principal objetivo dessa iniciativa foi o de recolher todos as cartas, os mapas

topográficos e os planos iconográficos trazidos de Portugal para que fossem juntados

aos que se encontravam dispersos no Brasil entre várias repartições, acabando-se assim

com a descentralização documental que imperava até então nas Secretarias de Estado

portuguesas. Entretanto, essa primeira iniciativa de centralização cartográfica no Brasil

estaria fadada ao fracasso por dois motivos; primeiro, porque a organização de um

arquivo cartográfico único seria paulatinamente abandonada, sendo que, durante o

Segundo Reinado se constituiriam ao lado do Arquivo Militar outros dois grandes

arquivos cartográficos, um na Secretaria de Estrangeiros e outro na de Obras Públicas.

Em segundo lugar, grande parte da documentação que fora reunida no Arquivo Militar,

retornou a Portugal junto com D. João VI em 1821, sem que se distinguisse critério

algum nesse repatriamento, o que tanto acarretou a permanência no Brasil de muitos

produtos cartográficos relativos a Portugal e seus domínios, quanto a ida para Portugal

de muito do que fora produzido sobre o Brasil. Este problema somente seria sanado em

1867 com uma permuta documental efetuada pela ‘Comissão investigadora de Mapas e

Memórias concernentes ao Brasil’, negociada e acompanhada em Portugal diretamente

Page 243: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

243

por Duarte da Ponte Ribeiro, que também foi o responsável pela seleção desses

documentos nos arquivos dos dois países.

Embora se pensasse, quando da criação do Arquivo Militar, em utilizar a

gravação em cobre na produção cartográfica em escala, as vantagens da litografia se

tornariam óbvias, tanto para o Estado português quanto para seu sucessor, a partir da

divulgação dessa técnica no final da segunda década do século XIX. Essa opção se

consolidou na prática com a criação em 1825 da Oficina Litográfica do Exército,

quando se importaria todo o material necessário a sua operação junto com dois técnicos

estrangeiros responsáveis por sua utilização, os quais deveriam atuar também como

professores junto a um corpo de aprendizes composto por soldados do Exército.

Entretanto, ainda que com estas iniciativas o Estado buscasse resguardar para si

o controle da vulgarização dos mapas, não foi possível consolidar uma centralização da

produção cartográfica, uma vez que em Portugal este processo não havia se

transformado em consonância com as mudanças que acompanharam o desenvolvimento

da cartografia nos séculos anteriores, a saber, a especialização e a estandardização das

tarefas cartográficas. Nesse sentido, preservar-se-iam no Brasil as condições

tecnológicas e culturais herdadas de Portugal, as quais impuseram ao processo de

produção a composição cartográfica manuscrita, com suas características de

individualização, setorização, sigilo e repetição de padrões, onde cada cartógrafo era

acima de tudo o membro de uma escola e um transmissor de padrões estabelecidos.412

Em conseqüência, a parte mais representativa da produção cartográfica em escala no

Brasil durante o século XIX ou foi uma reprodução direta do manuscrito ou foi uma

composição sob as técnicas da reprodução manuscrita, ou seja, submeteu-se o medium

litográfico às regras, às limitações e aos condicionamentos culturais do medium

manuscrito.

Por outro lado, o controle da produção cartográfica pelo Estado seria dificultado

pela constante defecção dos quadros da Oficina para a atividade privada, uma vez que o

custo e a adaptabilidade da técnica litográfica a outras tarefas tornavam este ofício

muito lucrativo. Mesmo assim, alguns poucos profissionais bastante qualificados

fizeram parte dos quadros da Oficina, como Pedro Torquato Xavier de Brito, autor da

redução da Carta do Império de 1856 e Carlos Abeleé, que produziu a ‘Coleção dos

412 A respeito da influência dos estilos e da transmissão de padrões na cartografia manuscrita, ver Alfredo Pinheiro

Marques, ‘The dating of the oldest Portuguese charts,’ in Imago Mundi, 41, 1989, p. 87-97.

Page 244: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

244

figurinos dos uniformes dos corpos do Exército’, significativa como demonstração do

controle pela Oficina da técnica de impressão litográfica a cores, a chamada cromo-

litografia.413

Embora muito criticados na época, estes profissionais seriam responsáveis

por reproduções litográficas de bom nível técnico, como, as cartas dos rios Uruguai, Içá

e Javari e os Mapas Provinciais do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio de Janeiro,

Mato Grosso, Sergipe, Piauí, Ceará, Espírito Santo, Minas Gerais, Maranhão e Paraná.

Entretanto, cabe salientar algumas cifras em relação à Oficina: em primeiro

lugar, os mapas e cartas compuseram apenas uma parte muito restrita de sua produção,

uma vez que apenas cerca de 3% do acervo do Arquivo Militar no século XIX era

composto por aqueles itens, sendo o restante integrado em pouco mais de 90% por

plantas e projetos. Em segundo lugar, pode-se observar nesse rol, que a participação de

documentos anteriores ao século XIX é minoritária compondo apenas cerca de 10% do

total do mesmo acervo.

Assim, conclui-se que no século XIX, embora a produção cartográfica do

Exército tenha sido importante, compreendida enquanto tal o somatório dos esforços de

seus oficiais engenheiros, do Arquivo Militar e da Oficina Litográfica, ela se concentrou

mais na elaboração de plantas e projetos em geral.

Em terceiro lugar, observe-se que a produção do Exército apresentou maior

atividade entre 1850 e 1889, com seu apogeu entre 1860 e 1889, data a partir da qual a

sua produção decresce entre cinco e até sete vezes. Nesse período, as Províncias do Rio

de Janeiro e do Rio Grande do Sul foram o foco da produção cartográfica do Exército,

correspondendo, respectivamente, por 26% e 16% de todos os projetos e plantas,

seguidas de longe pelas Províncias da Bahia e do Pará com 9%.414

Por conseguinte,

dada a natureza dessa produção e se entendermos que sua origem foi a necessidade do

Estado em utilizar diretamente a produção cartográfica no esforço de governo, podemos

deduzir que essas províncias concentraram os interesses da administração e os esforços

para a centralização da autoridade.

413 Pedro Torquato Xavier de Brito, ‘História da Litografia’. IHGB, Lata 26 Pasta 1; Pedro Torquato Xavier de Brito,

‘Notícia acerca da introdução da arte litográfica e do estado de perfeição em que se acha a cartografia no Império

do Brasil, in ‘ Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXXIII, n° 41, parte II, 1870.

414 Estes dados foram tabulados a partir da descrição pormenorizada dos produtos cartográficos constantes do acervo

pertencente ao Arquivo Militar, realizada por Cláudio Moreira Bento, pouco antes deste ser confiado ao Arquivo

do Exército no Rio de Janeiro. Ver Cláudio Moreira Bento, ‘Cartografia histórica do Exército,’ in Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Vol. 41, Abr. - Jun. 1985.

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245

Em quarto lugar, constata-se que o esforço o processo de produção de vários dos

mapas provinciais escapou do controle direto do processo externo e passou às mãos de

particulares, como, por exemplo, no caso do Mapa da Província do Rio de Janeiro de

1863, que foi elaborado por Conrado Jacob de Niemeyer e Pedro de Alcântara

Bellegarde415

e dos mapas das províncias do Paraná, Espírito Santo e Santa Catarina, os

quais foram impressos pelo Imperial Instituto Artístico. Ainda, a lucratividade do

mercado litográfico permitiu que a iniciativa particular se dedicasse também à

impressão e ao comércio de vários outros tipos de mapas, como, por exemplo, a ‘Planta

da Cidade do Rio de Janeiro’ produzida por Steinmann em 1831 e o ‘Mapa Geral do

Império do Brasil’, composto por J. H. Leonhart em 1851.

Portanto, se relacionarmos estes exemplos com as cifras anteriormente citadas e

os problemas acerca da manutenção dos quadros do Arquivo Militar, confirma-se no

Brasil tanto a tradição européia de descentralização da produção cartográfica de escala,

bem como a constituição de um mercado capaz de suportar uma produção litográfica

independente e em contato com o exterior, com a subseqüente necessidade do Estado

em se adaptar às características do mercado, o que resultaria no esvaziamento das

atribuições e funções do Arquivo Militar.

O processo de produção e a Carta Niemeyer de 1846

Na década de 1840, a consolidação de um teatro da narrativa bem definido, a

descentralização da produção cartográfica e o esvaziamento das funções do Arquivo

Militar, fizeram com que a primeira Carta Geral do Brasil não nascesse a partir de uma

iniciativa do Estado, mas de uma contribuição para o debate do IHGB. Composta por

Conrado Jacob de Niemeyer durante os anos de 1842 a 1846, a ‘Carta corográfica do

Império do Brasil’ estabeleceu padrões técnicos e estéticos que seriam endossados tanto

pelas cartas gerais posteriores quanto pelos demais mapas, condicionando-se assim o

processo externo às interpretações e limitações do processo interno.

Nesse sentido, a composição da Carta de 1846 envolveu um processo de escolha

do padrão técnico que pode ser caracterizado em três níveis de apreensão: o primeiro

destes níveis, relacionado à inserção desta Carta no universo conhecido das

representações cartográficas; o segundo, relacionado com a escolha do repertório a ser

415 Pedro de Alcântara Bellegarde & Conrado Jacob de Niemeyer, Carta Corográfica da Província do Rio de Janeiro

(Relatório). Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Artístico, 1863.

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246

utilizado em sua composição; o terceiro, relacionado à divulgação e exposição da forma

do espaço nacional que foi percebida e extraída pela intuição de Niemeyer.

Assim, em relação ao primeiro nível, Niemeyer procurou inicialmente basear sua

representação do território brasileiro sobre o que chamou de “Mapa Geral”, ou seja, o

produto resultante da reunião dos traçados de duas cartas estrangeiras, a ‘Carta da

América Meridional’ da casa editorial Arrowsmith e a ‘Carta da Costa brasileira’ do

Almirante Roussin, buscando legitimar sua carta frente aos atlas e outras representações

européias e norte-americanas.

Em relação ao segundo nível, o “Mapa Geral” foi modificado e complementado

através da consulta a diversos mapas, Roteiros, Memórias e Descrições, sendo que,

dentre este último tipo de corografias textuais, Niemeyer utilizaria especialmente os

trabalhos de Cerqueira e Silva, Cunha Mattos e Aires de Casal.416

Os limites nacionais

foram inscritos sobre o produto resultante segundo o ‘Programa Geográfico’ de

Pinheiro, sendo que a divisão das províncias foi feita de acordo com a ‘Corografia

Brasílica’ de Aires de Casal. No caso, Niemeyer procurava legitimar sua Carta pela

utilização dos trabalhos cartográficos acreditados no debate do IHGB e pela remissão ao

cânone ali consagrado.

Em relação ao terceiro nível, o processo de escolha do padrão estético derivou

da decisão de se compor o “Mapa Geral” a partir da redução e transformação da sua

base de dados a uma escala (1:3.000.000) que possibilitasse a composição da Carta

Geral em quatro folhas iguais, de acordo com a maior capacidade de impressão da

litografia mais bem aparelhada no Brasil naquele momento, a Litografia Rensburg,

possibilitando assim que a Carta pudesse atingir o tamanho de 1,50 m de altura por 1,50

m de largura.

A decisão de orientar todo o projeto cartográfico da Carta de 1846 pelo tamanho

da maior folha que fosse possível imprimir foi tomada por Niemeyer em função de três

objetivos: primeiro, tornar certos detalhes distinguíveis em relação a outros e “dignos de

atenção”, especialmente aqueles relativos aos limites com o Paraguai; segundo, diminuir

o problema dos erros através do maior dimensionamento dos elementos geográficos,

416 Respectivamente, a ‘Corografia Paraense’, a ‘Corografia histórica da província de Goiás’ e a ‘Corografia

Brasílica’. Ver: Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva, Corografia Paraense ou Descrição física, histórica e política

da Província do Grão-Pará. Salvador: Tipografia do Diário, 1833; Raimundo José da Cunha Matos, ‘Corografia

histórica da Província de Goiás,’ in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXXVII, n° 48,

1874; Manoel Ayres de Casal, Corografia Brasílica ou Relação Histórico-geográfica do Brasil. São Paulo: Edições

Cultural, 1943.

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247

especialmente da hidrografia; terceiro, equiparar a representação cartográfica do espaço

nacional às cartas de grande dimensão impressas na Europa.417

Quanto a este último objetivo, o modelo para Niemeyer eram justamente as

grandes cartas gravadas pela casa editorial Arrowsmith, as quais chegavam a medir até

dois metros de altura por um metro e quarenta de largura (ver Figura 23). Estas cartas

eram também impressas em várias folhas e juntadas para formar o produto final, o qual

se destinava a ser exposto emoldurado em grandes paredes, geralmente em órgãos

públicos e escolas, diferentemente dos demais mapas que simplesmente eram enrolados

após a consulta.

Portanto, o padrão estético inaugurado por Niemeyer buscava não apenas

formatar e inserir o Estado brasileiro no espaço, mas ainda construir sua presença,

centralidade e monumentalidade através da imposição de sua representação,

produzindo-se assim um mediador que buscava interagir nas relações do indivíduo com

o meio social e que seria imposto por um ordenamento das próprias relações do Estado

com o indivíduo.418

As funções específicas deste mediador derivam das transformações

culturais e tecnológicas do século XIX que aumentaram a distinção entre criação e

produção419

ao dinamizar os processos de construção e operação da representação,

possibilitando a sua constituição enquanto um produto do artifício, ou seja, como uma

representação tornada ilimitadamente disponível e que adquire novas funções,

justamente porque essa característica se adequava às estratégias do Estado.

Finalmente, a Carta Niemeyer expressa também as ‘relações de força e de

soberania’ que constituíram o Estado, por meio da inscrição ou da negação da

417 ‘Carta de Conrado Jacob de Niemeyer ao IHGB oferecendo a Carta Corográfica do Império Brasileiro’, 1846.

IHGB, Lata 510, Pasta 5; ‘Nota de Conrado Jacob de Niemeyer, dizendo estar quase pronta a carta corográfica do

Império do Brasil’, 1844. IHGB, Lata 142, Pasta 49 e ‘Carta de Jacob de Niemeyer para o Visconde de São

Leopoldo’, em 20/9/1843 in Geraldo José Pauwels, Algumas notas sobre a gênese dos números para as áreas do

Brasil e seus Estados. Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1924, p. 7-8.

418 Procuramos aqui adaptar a idéia de mediador de Abraham Moles, desenvolvida por este autor para explicar as

transformações da representação e de sua operação nas sociedades de consumo. Ver Abraham Moles, O Kitsch.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1986, p. 12-19.

419 Esta distinção pode ser pensada também a partir da teorização de Abraham Moles, no sentido de que o processo de

criação seria correlato à idéia de introdução, invenção e produção ao ato de copiar, reproduzir, e que as

transformações do século XIX dinamizaram a produção substituindo a criação por uma cadeia operatória, mas,

entendendo-se esta como um desdobramento da operação da representação em vários níveis visando a reprodução

em escala e não necessariamente como parte de um processo de alienação. Ver Abraham Moles, O Kitsch. São

Paulo: Editora Perspectiva, 1986, p. 15-22.

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248

inscrição420

dos elementos disponibilizados pelo ‘saber sobre o espaço’ sobre o

território, através de “alegorias” ou “representações simbólicas” remetidas a uma

‘linguagem sobre o espaço’, por conseguinte, condicionadas historicamente.421

Por exemplo, na Carta Niemeyer a utilização do meridiano que passa pela cidade

do Rio de Janeiro é a origem de todo o sistema de coordenadas, refletindo a questão da

420 Essa idéia corresponde aproximadamente ao que Harley denomina de ‘Silêncios’ [Silences]: para este autor, o

espaço vazio nos mapas estaria ligado a um discurso político e à legitimidade de seu status, enquanto que em nossa

idéia da negação da inscrição, o ‘Silêncio’ não corresponderia a um vazio mas, a um espaço preenchido por uma

continuação ou um desdobramento daquele discurso. Ver, J. B. Harley, ‘Silences and Secrecy’, in The new nature

of maps: essays in the History of Cartography. Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001, p. 99-100.

421 Arthur Schopenhauer identifica a historicidade das ‘alegorias’ e ‘representações simbólicas’ como parte mesmo do

problema da compreensão da Representação. Ver Arthur Schopenhauer, O Mundo como vontade e representação.

Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, § 50.

FIGURA 23 CARTA MURAL ARROWSMITH

Fonte: Aaaron Arrowsmith, South America. London: A. Arrowsmith, 1814.

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centralização do Estado e distinguindo-se do que então era utilizado usualmente nos

outros mapas, a saber, referenciados pelos meridianos de Paris ou de Londres.

Por outro lado, o destaque dado à divisão provincial pela utilização do colorido

quase que a equipara à divisão internacional. Este destaque pode ser entendido tanto

pela ênfase com que o autor que serviu de base à divisão provincial, Manoel Ayres de

Casal, trata da questão, quanto pela sobrevivência das construções locais de espaço.

Exemplo disso, é que apesar de outras cartas da mesma época disporem mapas menores

ou mesmo desenhos dentro ou ao redor do mapa principal, na Carta Niemeyer as plantas

das capitais das Províncias do Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas

Gerais, Bahia, Pernambuco, Maranhão, Pará e a planta da Corte verdadeiramente

emolduram o mapa do Brasil.

Finalmente, podemos compreender as distintas implicações sociais e políticas da

inscrição do território por meio das ‘relações de força e de soberania’, especialmente

através de certos exemplos de sua representação na Carta Niemeyer, como no registro

do território da periferia: “Gentio Jacundá tratável e que fala a língua geral”; “Sertão

ainda desconhecido e sem cultura”; “Terrenos inteiramente desconhecidos e ocupados

por diversas tribos de índios selvagens que embaraçam a navegação fluvial” e “Paritins,

Andiras, Araras, Mundrucus e outras nações - Em grande parte domesticados”.

O processo de produção e a construção concorrencial

Embora já tenhamos desenvolvido nos capítulos anteriores a idéia de que a

percepção do espaço brasileiro pelos atlas estrangeiros influenciou a construção do

espaço nacional e de que a cartografia brasileira se desenvolveu em concorrência com

essas representações, ou seja, numa construção concorrencial,422

a ligação dessas

representações com as cartas gerais brasileiras deve ser pensada também segundo os

desdobramentos das operações de representação, que estudaremos através de nossa idéia

de processo interno e processo externo e através dos problemas da reprodução em

escala.

Inicialmente, os padrões estéticos dos Atlas estrangeiros diferiam, sobretudo, por

conta da competição pelo mercado cartográfico, uma vez que as grandes editoras

422 Ver nesta tese o problema da disseminação e da construção concorrencial nos capítulos ‘O tempo do espaço e os

espaços do tempo’, ‘Rumo à ilha deserta’ e ‘O mapa antes do território’.

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buscavam tanto identificar novas técnicas que permitissem o barateamento dos custos

quanto consolidar um estilo de representação que lhes permitisse diferenciar o seu

produto final dentre o dos concorrentes, atendendo-se ainda a certas demandas de

consumo. Por conseguinte, o meio técnico e as escolhas decorrentes de sua utilização

passariam a ter uma importância capital por emprestar ao produto cartográfico

vantagens competitivas no mercado, sendo que o custo e a forma podiam importar mais

que a qualidade e a informação.

No primeiro caso, a litografia seria a escolha da maioria da casas editoriais no

início do século XIX como a Arrowsmith e a Brué, que já produziam mapas e atlas

litografados desde meados da década de 1830,423

conseguindo, deste modo, ainda que

ao custo do sacrifício da qualidade dos atlas, baratear seus preços de venda,

popularizando seus produtos. Por conta do menor custo e também pela rapidez de

composição, a litografia permitiu a essas casas editoriais lançar produtos que possuíam

uma obsolescência rápida, como os mapas de ferrovias,424

e ainda atender à demanda

por uma atualização constante dos produtos cartográficos ocasionada pela expansão

européia sobre a África e a Ásia.

A utilização da litografia permitiria também o surgimento de edições em fac-

símile de antigos mapas ou atlas, possibilitando assim sua popularização e divulgação,

sendo que a primeira iniciativa feita nesse sentido foi a de Manuel Francisco de Barros,

o Visconde de Santarém, que publicou entre 1840 e 1849, em francês e português, três

edições sucessivamente aumentadas e revistas da ‘Memória sobre a prioridade dos

descobrimentos portugueses na costa de África Ocidental’, patrocinadas e financiadas

pelo estado português, ainda que seu autor vivesse exilado em Paris. A partir destes

mapas, sintomaticamente chamados por Barros de “Monumentos”, dever-se-ia constituir

uma memória da presença portuguesa no continente africano, balizando-se, assim, a

ação diplomática de Portugal através de uma História da Cartografia.425

Nesse sentido, a

423 Por exemplo: South America. London: John Arrowsmith, 1838; A. Bruè, Carte du Brésil. Paris: Chez l’Auteur,

1826.

424 Walter W. Ristow, ‘Litography and maps’, in Five centuries of map printing, Woodward, David. Chicago:

University of Chicago Press, 1975, 102.

425 A ‘Memória sobre a prioridade dos descobrimentos portugueses na costa de África Ocidental, para servir de

ilustração á «Crônica da Conquista da Guiné» por Azarara’, publicada em Paris no ano de 1841, foi ampliada em

1842 sob o nome de ‘Recherches sur la priorité de Ia découverte des pays situés sur la côte Occidental d'Afrique,

au-delà du cap Bojador, et sur les progrés de la science qéographique, aprés les navigations des portugais au XV

siécle, acompagnées d'un Atlas composé de mappe-mondes, et de cartes pour le plupart inedites, dressées depuis le

XI jusqu'au XVII siècle’.

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251

‘Memória’ de Barros fazia parte de um projeto maior que incluía o estabelecimento de

uma História Diplomática como recurso da argumentação diplomática, através da

publicação de todos os tratados e convenções de Portugal.426

Entretanto, os atlas gravados ainda sobreviveriam até o final do século, pois

alguns grandes editores só adotariam a litografia mais tarde, como foi o caso de A. K.

Johnston em 1846, de George Philip em 1855 e de John Bartholomew, em 1880.427

A

utilização da cor se constituiu como um dos fatores determinantes para a diferenciação

dos estilos de representação cartográfica nos atlas, permitindo, em larga medida, que a

gravação em cobre fosse capaz de sobreviver à litografia.

Um destes exemplos é caso dos mapas e atlas gravados totalmente em cores

pelos editores americanos Mitchell e Finley entre as décadas de 1820 e 1840,428

que

podem ser distinguidos imediatamente dos demais atlas do período ou posteriores,

mesmo por um observador casual, já que a maioria dos atlas somente utilizava a cor

para distinguir os limites internos e as fronteiras entre os Estados (ver Figura 24).429

Este estilo de representação foi possível porque a utilização da cor não

implicava num aumento muito grande do custo dos atlas gravados, raramente

ultrapassando um quarto do preço total, uma vez que esse processo era em grande parte

manual, resultando da utilização de trabalhadores temporários. Por outro lado, a

litografia não conseguia lidar satisfatoriamente com a aplicação da cor em grandes

áreas, por conta da incompatibilidade entre as tintas a óleo utilizadas na base dos mapas

e as tintas à base de água utilizadas para a cobertura de cor, garantindo-se, assim, a

426 Esta iniciativa incluía a publicação da obra de José Ferreira Borges de Castro - 'Coleção dos tratados, convenções,

contratos e atos publicados entre a Coroa de Portugal e as mais potências desde 1640 até o presente' publicada

entre 1856 e 1879; e dois outros trabalhos da autoria de Barros, o 'Quadro elementar das relações políticas e

diplomáticas de Portugal', que cobria em 19 volumes as relações com a Espanha, Inglaterra, França e o Vaticano; e

o 'Corpo diplomático português', em 12 volumes, contendo todos os documentos diplomáticos entre Portugal e

esses países desde o princípio da monarquia até o século XIX. Ver Portugal - Dicionário Histórico, Corográfico,

Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Volume VI, Lisboa: João Romano Torres, 1904, p.

602-606 e Walter W. Ristow, ‘Litography and maps’, in Five centuries of map printing, Woodward, David.

Chicago: University of Chicago Press, 1975., p. 97-99.

427 Walter W. Ristow, ‘Litography and maps’, in Five centuries of map printing, Woodward, David. Chicago:

University of Chicago Press, 1975, p.100. Segundo Jeremy Black, Johnston adotaria a litografia em 1865, e Philip

em 1846. Jeremy Black, Maps and History - Constructing Images of the Past. New Haven: Yale University Press,

1997, p. 49.

428 Por exemplo: A New American Atlas. Philadelphia: Anthony Finley, 1826; A New Universal Atlas. Philadelphia:

S. Augustus Mitchell, 1846.

429 No caso do exemplo da Figura 22, note-se a diferença de quase cinqüenta anos entre os dois atlas, no caso,

observe-se que a carta de Martin de Moussy fazia parte também do primeiro atlas da Argentina que teve suas

matrizes vendidas para a casa editorial Phillips.

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manutenção de um nicho de mercado para os atlas gravados, especialmente entre os

consumidores de maior poder aquisitivo. 430

Ainda, a construção concorrencial das cartas gerais brasileiras deve ser pensada

levando-se em conta a necessidade do processo externo em contrapor uma

representação eficaz do espaço nacional às produções cartográficas dos Estados

limítrofes. Esta idéia de eficiência da representação cartográfica, está relacionada aos

problemas anteriormente abordados, ou seja, as cartas gerais deveriam ser compostas

dentro de uma estética e um padrão inseridos nos estilos de representação dos grandes

editores estrangeiros e utilizando a reprodução em escala a fim de divulgar sua versão

do espaço.

Assim, a primeira representação cartográfica de um Estado sul-americano foi o

atlas da Colômbia de 1827, confeccionado por Jose Manuel Restrepo e impresso através

da técnica de gravação em cobre, utilizando a cor apenas para distinguir os limites

departamentais e nacionais, os quais nesse momento incluíam ainda a Venezuela e o

Equador.431

Dessa tradição surgiriam duas outras produções, a primeira delas relativa à

Venezuela e confeccionada por Agustín Codazzi em 1840 utilizando a técnica da

litografia, mas totalmente colorida à mão,432

que, inclusive, antecedeu em seis anos o

primeiro atlas produzido nos Estados Unidos através dessa técnica. A segunda daquelas

produções foi a edição oficial dos mapas da Colômbia, publicada em 1864 sob a direção

de Tomás Cipriano de Mosquera e que se aproveitava dos dados reunidos entre 1850 e

1859 pela ‘Comisión Corográfica’, responsável por dez expedições ao interior do país,

levadas a cabo também por Agustín Codazzi, agora exilado na Colômbia. No ano

seguinte, seria ainda publicado o Atlas do Peru, confeccionado por Mariano Felipe Paz

Soldan e litografado em preto e marrom, mas que inovadoramente introduzia um novo

estilo de representação, o sombreado, para destacar o relevo.433

430 Ulla Ehrensvärd, ‘Color in Cartography: a Historical Survey’, in Art and Cartography - Six Historical Essays,

Woodward, David. Chicago: University of Chicago Press, 1987, p. 139-141.

431 Jose Manuel Restrepo, Historia de la revolucion de la Republica de Colombia, por Jose Manuel Restrepo,

Secretario del Interior del poder ejecutivo de la misma Republica. Paris, Libreria Americana, 1827.

432 Atlas fisico y politico de la Republica de Venezuela dedicado por su autor, el Coronel de Ingenieros Agustín

Codazzi al Congreso Constituyente de 1830. Caracas: Agustín Codazzi; Paris: Thierry Freres, 1840.

433 Mariano Felipe Paz Soldan, Atlas geografico del Peru, publicado a expensas del Gobierno Peruano, siendo

Presidente el Libertador Gran Mariscal Ramon Castilla, por Mariano Felipe Paz Soldan. Paris: Imprenta de Ad.

Laine y J. Havard, 1865.

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253

Esses condicionantes permitem, por exemplo, explicar a manutenção e o

aprimoramento dos padrões estéticos da Carta Geral de 1846 nas cartas gerais

brasileiras posteriores, tanto em relação à dimensão (possuiriam em média 1,36 m de

altura por 1,40 m de largura) quanto em relação à utilização da cor, ainda que estes

padrões tornassem extremamente difícil sua composição e produção, por conta de exigir

um detalhamento geográfico muito aquém dos conhecimentos que até então se possuía e

de se necessitar de uma qualidade técnica impossível de ser alcançada por quase todas

as litografias brasileiras e pelo Arquivo Militar, que teve que se conformar doravante

em imprimir apenas as ‘Reduções’, que eram reproduções diminuídas,

proporcionalmente, do produto original, possuindo, em relação às cartas gerais,

aproximadamente um terço de suas dimensões.

Este problema pode ainda ser exemplificado pela eficácia das representações

cartográficas dos atlas e das produções cartográficas dos países vizinhos: a ‘Carta da

América Meridional’ publicada pela casa editorial Arrowsmith, foi escolhida pela

‘Comissão Investigadora de Limites’ como principal instrumento para a análise dos

limites brasileiros em 1837 e para basear tecnicamente a Carta Niemeyer de 1846,

também por conta da eficácia de sua divulgação, comprovada pela cultura material do

período, já que era comumente estampada em lenços pelos ingleses.434

Outro mapa, a

‘Carta da América do Sul’, inclusa no Atlas Finley de 1833, foi defendido pelo governo

da Bolívia como devendo ser o documento ajuizador das questões de limites com o

Brasil, porque, além de ter sido impressa por uma nação amiga, separava com diferentes

cores a extensão e limites dos novos Estados.435

Finalmente, como já vimos, as

discussões de limites entre o Brasil e a Venezuela em 1839 foram acordadas, não sobre

um esboço comum ou um mapa proveniente de um terceiro país, mas sobre uma

Redução do mapa oficial daquela República.

Portanto, por conta da necessidade de concorrer eficientemente com as outras

representações de espaço, a inscrição do Estado no espaço teve que acompanhar os

estilos de representação dos atlas, mapas e corografias e utilizar métodos de reprodução

em escala para sua divulgação, ainda que estas características não correspondessem ao

desenvolvimento da cartografia no Brasil. Este problema conduziria uma tensão

434 José Saturnino da Costa Azevedo, ‘Memória sobre os limites do Brasil ao Sul e Oeste’, 1837. AHI, Lata 268 Maço

2, p. 10 e 16.

435 AHI, Legações estrangeiras, Bolívia, Nota de 5/11/1834, citada em José Antônio Soares de Souza, Um diplomata

do Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, nota 162.

Page 254: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

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permanente entre o processo externo e o processo interno, resultando em certas

escolhas e estratégias na operação da narrativa e no processo de produção das cartas

gerais, os quais trabalharemos a nos próximos itens deste capítulo.

O novo regime da narração

Como vimos no capítulo anterior, a ‘Comissão de Limites’ foi esboçada em

1850 por Paulino José Soares de Sousa em meio ao debate entre a ‘norma narrativa’ e a

‘derivação’ como um projeto destinado a recolher subsídios documentais que

possibilitassem a composição de uma representação cartográfica da ‘norma narrativa’ e

que permitissem acompanhá-la de uma construção narrativa das origens, a “exposição

histórica”.436

Diferentemente de Niemeyer e dos padrões estéticos de sua Carta Geral, Paulino

José Soares de Souza, José Antônio Pimenta Bueno e Duarte da Ponte Ribeiro

entendiam então que a representação cartográfica decorrente dos esforços da Comissão

436 Ver capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.

Fontes (da direita para a esquerda): ‘South America’, in A New American Atlas. Philadelphia: Anthony Finley, 1826; Martin de Moussy, 'Carte de l'Amerique du Sud' in Maps of America, S/lugar: Phillips, 1873.

FIGURA 24 COMPARAÇÃO ENTRE ATLAS COM MAPAS

GRAVADOS E ATLAS COM MAPAS LITOGRAFADOS

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de Limites deveria ser compartimentada em várias seções. Estes espaços destacados

seriam, por sua vez, reconhecidos por uma delimitação estabelecida por meio de certos

marcos geográficos específicos, a saber: a primeira seção seria aquela inclusa entre os

rios Oiapoque ou Calçoene até a cidade de Tabatinga; a segunda seção incluiria o

espaço entre Tabatinga e a confluência do rio Mamoré com o rio Beni; a terceira seção

iria do rio Mamoré até o Salto grande do Paraná e a quarta seção deste último até o

arroio Chuí. Faz-se necessário notar que esta compartimentação cartográfica é

praticamente idêntica à percepção do espaço da América portuguesa pelos atlas do

século XVIII e XIX437

e à divisão do território a ser demarcado após os tratados do

século XVIII, distribuído em vários ‘Continentes do Domínio português’,

demonstrando-se tanto a pertinência de nossas observações quanto a sobrevivência da

idéia do antigo de espaço da América portuguesa.438

Com a separação dos teatros da narrativa, a Comissão de Limites não chegou a

ser instituída oficialmente, mas, durante as décadas seguintes esses objetivos foram

levados a cabo na SNE por Duarte da Ponte Ribeiro, através de um processo de

produção cartográfica que se intensificaria com sua aposentadoria em 1853, envolvendo

a confecção, a impressão e a publicação, separada ou conjunta aos Relatórios

ministeriais, de trinta e três esboços, mapas e cartas439

que somados a 179 memórias

destinavam-se a coadjuvar a ação política do Estado.

Porém, tanto a Comissão de Limites quanto os esforços daí originados

provavelmente tem como seu principal antecedente o próprio Ribeiro: na sua

correspondência com Soares de Sousa,440

Ribeiro já sugeria a este que os trabalhos da

Comissão de Limites deveriam tomar como base a sua ‘Resenha do estado da fronteira

do Império’ de 1842 e a análise que fora feita desta, as ‘Observações aos apontamentos

sobre o estado atual da fronteira do Brasil’ de Francisco José de Sousa Soares de

Andréa.441

437 Ver, nesta tese, os capítulos ‘Rumo à ilha deserta’ e ‘O tempo dos espaços e os espaços do tempo’.

438 Ver, nesta tese, o capítulo ‘Riscando o passado’.

439 Conforme relacionado pelo próprio autor. Ver Duarte da Ponte Ribeiro, Memórias e mapas do Barão da Ponte

Ribeiro - Relação das Memórias e mais papéis reservados, que se acham no Arquivo do Ministério dos Negócios

Estrangeiros, alguns escritos por ordem do Governo Imperial, e outros oportunamente apresentados. Rio de

Janeiro: s/editor, 1873.

440 AHI, Paulino José Soares de Sousa, citado em José Antônio Soares de Souza, Um diplomata do Império. São

Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, p. 275-276.

441 Francisco José de Sousa Soares de Andréa, ‘Observações aos apontamentos sobre o estado atual da fronteira do

Brasil’, 1847. IHGB, Lata 289, Pasta 9.

Page 256: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

256

Entretanto, como o próprio título indica, as ‘Observações’ de Andréa visavam

outro texto de Ribeiro, os ‘Apontamentos sobre o estado atual da fronteira’,442

somente

composto em 1844 pela fusão de dois outros escritos, denominados por Ribeiro como

‘Resenha da Fronteira do Império’ e ‘Apontamentos anexos’, ambos entregues no

mesmo ano a Ernesto Ferreira França quando este era Ministro dos Negócios

Estrangeiros.443

Estes dois escritos se originam por sua vez de um texto anterior, datado

de 1842 e catalogado no Arquivo Histórico do Itamaraty como ‘Exposição do estado em

que se achavam as questões de limites’,444

mas que está nomeado, no catálogo editado

pelo próprio Ribeiro em 1873, pelo título de ‘Resenha do estado das relações do Brasil

com os Estados vizinhos’.445

Assim, como não há uma correspondência de nome ou data entre o trabalho

indicado por Ribeiro na sua correspondência com Soares de Sousa e os que foram

verificados por nossa pesquisa, parece razoável supor que o engano de Ribeiro parece

refletir tanto uma origem comum dos escritos, que seria corroborada pela semelhança

entre seus títulos, quanto poderia sugerir que o autor percebera haver uma ligação entre

os objetivos da Comissão de Limites e o seu texto de 1842.446

Foi justamente nesse

texto que Ribeiro utilizou a cartografia pela primeira vez, sendo nesta o mapa não foi

juntado ao texto escrito apenas como um anexo, mas combinado com uma descrição do

território constituindo uma argumentação somente legível em seu conjunto.447

A inter-

relação entre a descrição do território e o registro cartográfico possibilitava a Ribeiro

442 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Apontamentos sobre o estado atual da fronteira do Brasil’, 1844. IHGB, Lata 289, Pasta

9.

443 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Resumo da Memória apresentado ao Instituto Histórico sobre limites, por Ernesto

Ferreira França Filho’, 1849 AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 2, Pasta 11,

Documento 1.

444 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Memória n. 4 - Exposição do estado em que se achavam as questões de limites entre

Espanha e Portugal relativas às fronteiras do Brasil com as províncias do: Paraguai, Bolívia e Peru, depois da 2ª

guerra de 1801 que anulou o Tratado de Santo Ildefonso’, 1842. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte

Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Documento 2.

445 Duarte da Ponte Ribeiro, Memórias e mapas do Barão da Ponte Ribeiro - Relação das Memórias e mais papéis

reservados, que se acham no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, alguns escritos por ordem do

Governo Imperial, e outros oportunamente apresentados. Rio de Janeiro: s/editor, 1873, p. 14.

446 Poder-se-ia também aventar a hipótese de ter ocorrido um lapso da escrita, um ‘ato falho’ no qual se notaria ‘a

influência dos sons, da semelhança das palavras e das associações habituais suscitadas pelas palavras’ e onde se

acrescentaria um segundo sentido ao que se pretendia originalmente por meio de uma substituição denunciadora da

intenção. Ver especialmente as p. 88-90 em referência aos lapsos de escrita e ao exemplo da substituição no texto:

Sigmund Freud, Parte I. Parapraxias (1916 [1915]) in Conferências Introdutórias sobre Psicanálise (Partes I e II),

Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora

Ltda, 1976, p. 27-104.

447 Carta de Duarte da Ponte Ribeiro para Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho, 10/04/1842. AHI, Arquivo

Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Doc. 2.

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257

constituir tanto uma historicidade do espaço quanto uma espacialização da história por

meio da possibilidade de inscrever os elementos da narrativa junto a um registro do

momento: o texto de 1842 era, por conseguinte, um exemplo concreto da viabilidade do

projeto de Paulino José Soares de Sousa.

Nesse sentido, a fusão entre o texto escrito e o mapa operada por Ribeiro iria

inaugurar, com o ‘cisma da narrativa’ em 1854, um novo regime da narração

centralizado na SNE, em substituição ao velho regime consubstanciado no debate do

IHGB, que passaria a conjugar a utilização da cartografia com as corografias.448

Este novo regime da narração foi em grande medida condicionado pela

dinâmica do debate no IHGB, sendo que sua transformação a partir deste pode ser

emblematizada pela querela entre a ‘norma da narrativa’ e a ‘derivação’ acontecida no

Instituto entre abril e outubro de 1853: neste caso, o velho regime da narração não

deixaria de imprimir sua marca no novo regime, exemplificada pela incorporação por

este de grande parte da estrutura narrativa anterior, nem o novo regime deixaria de

acusar perdas, no caso, problematizadas pelo esvaziamento das possibilidades de

construção da narrativa.

Esse esvaziamento pode ser observado por meio da Querela de 1853, que

compreendeu tanto a leitura e o debate de textos preparados por Duarte da Ponte Ribeiro

e Gonçalves Dias, quanto a apresentação e a discussão de propostas baseadas naquele

debate, sempre para uma audiência composta pelos membros do IHGB e numa rotina

repetida em várias sessões. Por conseguinte, a análise argumentativa, a oralidade e a

gestualidade foram componentes intrínsecos das discussões, por serem minuciosas e

prolongadas, obrigaram ambos os debatedores a lançar mão de certos recursos que

possibilitavam a articulação e a organização de seus argumentos, como a Retórica e a

Poética. Contudo, talvez a característica mais da Querela é que esta reuniu, nesse

momento, provavelmente a parte mais significativa da intelectualidade do Império,

permitindo a incorporação de subsídios e de elementos que enriqueceriam a discussão,

alargando os conceitos discutidos e permitindo a reelaboração da narrativa sobre bases

mais amplas.

Com respeito às várias impressões da Querela de 1853, talvez a que mais nos

salte à vista é que esta opunha duas personalidades absolutamente díspares: enquanto

448 Em relação ao debate do IHGB e à idéia de regime da narrativa ver, nesta tese, o capítulo ‘A descrição do

contemplador’.

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Duarte da Ponte Ribeiro era afeito às conversações de gabinete, às negociações e aos

detalhes, Gonçalves Dias era mais acostumado às frases de efeito, ao gestual e à

declamação, o que poderia sugerir que a vitória de seus pontos de vista dever-se-ia a

uma utilização mais eficiente desses recursos contra um desempenho frio de Ribeiro.

Entretanto, durante o desenvolvimento da querela, ambos os debatedores lançaram mão

de diferentes recursos retóricos, demonstrando habilidades semelhantes em sua

utilização, como também dispuseram igualmente de amplos recursos documentais,

diferenciando-se entre si apenas quanto ao emprego do argumento histórico. No caso,

sua utilização por Gonçalves Dias se basearia na investigação do fato e do documento

histórico segundo uma técnica que perscrutava as condições de sua época e de sua

escrita, enquanto que Ribeiro utilizar-se-ia dos mesmos fatos e documentos para

enfatizar uma dedução a partir da disposição dos fins do Estado e de seu arranjo,

articulação e composição, como, podemos entender a partir do exame, feito por

Gonçalves Dias, do uti possidetis, um dos pontos centrais do argumento defendido por

Duarte da Ponte Ribeiro:

Se a linha divisória tivesse de ser trazida para a atualidade, é claro

que ela não deveria ser demarcada pelas idéias geográficas que hoje temos,

nem pelos mapas americanos traçados depois das observações de Humboldt.

Deveria ser tirada com as das idéias do tempo em que foi estipulada [...].

Destruídas as pretensões que se pudessem originar dessa linha, o tratado de

1750 não pode também perdurar, porque, reconhecendo em toda a sua

amplitude a doutrina dos limites naturais, esqueceu-se de que o Brasil tem

em seu seio rios e montanhas, que apenas bastam para discriminar os limites

entre uma e outra das suas providências, e apesar disso, mais importantes do

que aqueles que, segundo o tratado, o extremariam. A doutrina dos limites

naturais foi na Europa substituída pelo sistema do equilíbrio europeu, pelo

qual vem a ser pouco importante que a raia seja extremada por uma ponte,

alfândega ou barreira, visto que as potências interessam em pôr obstáculos a

usurpações do território. Parecendo que em relação a nós Americanos, o

desideratum do equilíbrio deveria ser entre as duas grandes porções da

América, foi de absoluta necessidade recorrer aos fatos existentes, e invocar

o uti possidetis. Foi conveniente, mas foi principalmente necessário. O uti

possidetis não pode ser trazido para questões de limites definitivos, nem é

aplicável a todos os casos; porque é perigoso, quando não apoiado e

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fortalecido pelas conveniências hidrográficas ou topográficas; porque deixa

vasto campo aberto aos conflitos, sendo por outro lado de difícil verificação

e alcance, e reclamando uma atenção contínua para que não haja usurpações.

O uti possidetis é uma modificação da posse do direito, ou antes são

modificações variadíssimas, porque compreende todos os usos que se possa

dar, a um campo por exemplo, com todas as restrições estabelecidas pelo

gozo público ou particular, exclusivo ou promíscuo [...]. Concluo:

considerando que este Instituto não é um corpo político, mas uma

corporação meramente científica, que não deve passar o aresto de se

rejeitarem certos trabalhos; porque seus autores apresentando fatos sabidos,

tiram deles conseqüências que não quadram com a diplomacia, com a

política, ou com o nosso pensamento individual [...]. 449

Nesse sentido, a Querela remete a um certo aspecto iluminado por G. E. Lessing

em seu ‘Laocoonte’ a partir do estabelecimento da distinção entre a Poesia e a

Escultura: o de que a história, a geografia e a cartografia não deveriam ser mais

pensadas no domínio da Retórica, mas como pertencentes a novas técnicas e disciplinas

que então se consolidavam e constituíam os lugares de sua enunciação.

Assim, a utilização do argumento histórico por Ribeiro passaria a emblematizar

mesmo o novo regime da narrativa, pois demonstrava-se que sua escrita apartar-se-ia de

certas possibilidades de construção do espaço, especialmente das que dizem respeito à

inscrição dos dados coletivamente importantes e veiculados pela tipificação da vivência

do homem. Por conseguinte, impossibilitar-se-ia, daí em diante, a construção de uma

narrativa do espaço que pudesse ser enriquecida pela interpretação das experiências

coletivas e particulares, pois esta passaria a identificar-se, cada vez, com os objetivos do

Estado e com inscrição das relações verticais que o compunham. Por conta disso,

viabilizar-se-ia a organização de um Mito relativo à criação do espaço nacional que

dizia mais respeito a essas ‘relações de força e soberania’, inclusive, porque aquele Mito

seria caracterizado pela centralidade de uma figura representativa do arquétipo do Herói

construtor ou mantenedor, a ser consumada no século XX.450

449 Antonio Gonçalves Dias, ‘A Memória Histórica do Sr. Machado de Oliveira e o Parecer do Sr. Ponte Ribeiro’,

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XII, n° 3, 1853, p. 512-514. 450 Em relação à idéia de Mito enquanto narrativa aplicada e como estrutura de sentido ver Walter Burkert. Mito e

Mitologia. Lisboa: Edições 70, 2001.

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O novo regime da narração e a composição manuscrita

A instituição de um novo regime da narração baseado num debate internalizado

na SNE e diretamente destinado a suprir os problemas e necessidades do Estado, coloca

a questão da construção do espaço nacional diante do seguinte problema: esta seria mais

bem entendida se a definíssemos como uma nova inscrição do espaço junto a qual

persistiriam as tentativas de inscrição anteriores ou como uma transformação das

tentativas de inscrição anteriores e dos seus materiais constitutivos ?

Se desenvolvermos este problema por meio da comparação entre as construções

narrativas do novo e do velho regime da narrativa, encontraremos nesta similaridades e

diferenças que denotam tanto uma manutenção da gramática da ‘linguagem do espaço’

quanto mudanças táticas em sua sintaxe. Por conseguinte, esta ‘ambigüidade’ da

representação do espaço nos leva a acreditar que o problema da caracterização do novo

regime da narração somente possa ser contornado a partir do estudo das escolhas

conduzidas pela operação da narrativa para a inscrição do Estado no espaço e por uma

delimitação das suas possibilidades e condicionamentos, nossos objetivos nos próximos

itens deste capítulo.

Nesse sentido, a fusão entre texto e mapa característica da inscrição do espaço

no novo regime da narração seria operada dentro da necessidade de concorrer

eficientemente com as outras representações de espaço, acompanhando mesmo seus

estilos de representação e utilizando a produção em escala, mas, nos limites estreitos da

tradição cartográfica portuguesa, sendo, por conseguinte, influenciada pelos

condicionamentos culturais e tecnológicos da ‘composição cartográfica manuscrita’.

Na ‘composição manuscrita’, cada cartógrafo era, acima de tudo, um membro

de uma escola, um propagador de padrões e estilos, entretanto, se o mapa era desenhado

pelo especialista, sua composição era, muitas vezes, coordenada por uma operação

sigilosa e setorizada, onde se escolhiam, organizavam e administravam os elementos a

serem registrados. Esta operação era baseada na coleta dos elementos disponibilizados

pelos mais diversos agentes cartográficos e na sua organização a partir de um local de

enunciação central, processo utilizado, por exemplo, pela Espanha, pela França e por

Portugal.

Na Espanha, a ‘Casa de la Contratación de las Indias’ havia sido organizada em

1503 com o encargo de manter e retificar um mapa geral do Império, o chamado

‘Padrón Real’, materializado enquanto um mapa mural de grandes dimensões e mantido

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em completo segredo e sem cópias no centro físico mesmo do Estado Habsburgo. Sua

retificação era encetada continuamente através dos desenhos e rascunhos que todos os

pilotos eram instruídos a manter atualizados durante suas viagens e que eram depois

resgatados pela Casa de la Contratación. Entretanto, como não havia condições de se

estabelecer uma estandardização dos registros e mesmo a veracidade do conhecimento

resgatado, as condições da inscrição do espaço no Padrón incluíam também um

julgamento de ordem moral ou até mesmo política.451

Essa idéia da associação entre o Estado e um sigilo do conhecimento

cartográfico construiu suas raízes mesmo na França nos limiares do século XVIII, já na

vigência plena da reprodução cartográfica em escala: na década de 1670, estando Jean

Dominique Cassini à frente do ‘Observatoire Royale’, far-se-ia desenhar no chão de sua

torre, orientada em suas fundações pelos pontos cardeais, um planisfério terrestre

perfeitamente ordenado no qual seria materializado o conhecimento do espaço, sendo

que, somente no ano de 1692 este seria inscrito num mapa gravado.

Entretanto, as transformações dos meios e das técnicas cartográficas somadas à

concorrência dos Atlas, determinariam a estagnação e a decadência do conhecimento

nos países dependentes da ‘composição manuscrita’, problema que incluiu ainda a perda

de grande parte de sua base documental ocasionada pelo descaso, pela defasagem em

relação aos mapas estrangeiros ou pela política de destruição deliberada que fazia parte

do mecanismo de manutenção do sigilo.452

Assim, embora no final do século XVI a

península Ibérica fosse melhor representada do que qualquer parte da Europa, quase

duzentos anos depois, em 1770, sua base cartográfica ainda era a mesma.453

Já em Portugal, a existência dessa política de segredo, pode ser exemplificada

pela publicação em Roma, no ano de 1560, de um mapa daquele país e que foi atribuído

a Pedro Álvares Seco, incluindo 1.154 registros geográficos, os quais, com quase toda a

certeza, faziam parte de uma mapa padrão desse Estado, contudo, à exceção de duas

451 David Turnbull, Masons, Tricksters and Cartographers: Comparative Studies in the Sociology of Scientific and

Indigenous Knowledge. London: Routledge, 2003, p. 107-110.

452 Geoffrey Parker, ‘Maps and Ministers: The Spanish Habsburgs’, in Monarchs, ministers and maps: the emergence

of cartography as a tool of government in early Europe, Buisseret, David. Chicago: The University of Chicago

Press, 1992, p. 124-146.

453 Parker utiliza a comparação entre os mapas do início do século XVII, especialmente a edição de 1606 do atlas de

Mercator com publicações do final do século XVIII, entre elas a edição francesa de 1777 do atlas Mercator-

Hondius. Ver Geoffrey Parker, ‘Maps and Ministers: The Spanish Habsburgs’, in Monarchs, ministers and maps:

the emergence of cartography as a tool of government in early Europe, Buisseret, David. Chicago: The University

of Chicago Press, 1992, p. 134.

Page 262: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

262

cartas, todos os mapas portugueses anteriores a 1500 desapareceram. Outro exemplo

dessa política é o édito real de 1504, que proibiu a inclusão em qualquer carta náutica

das regiões abaixo do rio Congo e que, ao mesmo tempo, mandava destruir todos os

Globos existentes em Portugal.454

Além do sigilo e da setorização, outras características da cartografia manuscrita

influenciaram a produção do espaço a partir do novo regime da narração. Como vimos,

ao contrário da reprodução em escala, não havia na ‘composição manuscrita’ a

necessidade estrita de se estandardizar determinados padrões estéticos ou estilos de

representação, nem a divulgação era o seu objetivo principal, daí ocorrer que na

‘composição manuscrita’ fossem muito alargadas tanto a atribuição da condição de

cartógrafo quanto a própria definição do exercício cartográfico. Uma vez que não havia

uma estandardização dos padrões estéticos e técnicos, mas uma condição ditada pelo

pertencimento do cartógrafo a uma escola cartográfica, sua condição estava mais ligada

a uma atribuição da autoria do produto. Como vimos, esta atribuição já não era simples

quando a tarefa da composição era um exercício individual, quando a composição era

um exercício coletivo, a atribuição da autoria demandava menos do domínio

propriamente dito da técnica ou mesmo do esforço manual e mais da posição do

indivíduo no topo do processo de produção cartográfica e do seu domínio sobre um

saber geográfico que se constituía muitas vezes pelo controle do acesso à massa

documental abrigada nos arquivos.

Uma vez estabelecida a autoria, esta tendia a ser preservada, inclusive por conta

das grandes dificuldades inerentes à reprodução da ‘cartografia manuscrita’, a qual era

realizada apenas esporadicamente, por conseguinte, requerendo que, para sua

circulação, as cópias tivessem de ser autenticadas, ou seja, acompanhadas por um

certificado que as ligasse ao original, o que, ao mesmo tempo, contribuía também para

dificultar a retificação desses mapas.

Assim, quando se necessitava organizar a ‘composição manuscrita’ de um

grande território sobre o qual já houvessem sido realizados outros esforços manuscritos

menores, normalmente, nesse novo produto, se dava menos atenção à escala ou à

uniformização dos registros do que à autoria da fonte: o grande mapa daí resultante

pode ser comparado à confecção de um mosaico onde a partir do detalhe construía-se o

454 Geoffrey Parker, ‘Maps and Ministers: The Spanish Habsburgs’, in Monarchs, ministers and maps: the emergence

of cartography as a tool of government in early Europe, Buisseret, David. Chicago: The University of Chicago

Press, 1992, p.125 e 133.

Page 263: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

263

todo. Contudo, nesse exercício cartográfico a atribuição da autoria novamente recaía

sobre o indivíduo capaz de controlar as decisões relativas à composição e,

concomitantemente, o acesso à massa documental, pois este indivíduo podia escolher

tanto o repertório dos mapas que integrariam a confecção do mosaico quanto a inclusão

individual de cada uma de suas peças.

No caso do novo regime da narração, Duarte da Ponte Ribeiro seria o indivíduo

sobre quem recairiam essas atribuições, sendo seu esforço, por princípio, destinado a ser

mantido em sigilo, inclusive porque era setorizado na SNE, sendo somente divulgado na

medida dos interesses do Estado. Assim, praticamente todas as memórias, esboços

topográficos e mapas produzidos por Ribeiro foram mantidos em segredo, sendo que

cada esboço topográfico e mapa possuía apenas dois exemplares, um para a SNE e outro

para a SJNE.455

No caso dos mapas seria feita exceção a apenas quatro espécimes de um

número total de trinta e três, os quais seriam litografados cada qual por conta de uma

diferente necessidade do Estado. Por conta dessas características da produção

cartográfica no novo regime da narração, quando se tornou necessária a produção de

uma representação do espaço nacional, ainda que esta não fosse produzida pela SNE,

sua organização seria confiada a Ribeiro pelo Estado, como foi o caso das Carta Geral

de 1875, centralizada no Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras

Públicas.

Portanto, os condicionamentos da ‘composição manuscrita’ sobre o novo regime

da narração possibilitaram que Ribeiro pudesse tanto organizar o processo da inscrição

do Estado no espaço quanto interferir nas produções cartográficas divergentes da

‘norma narrativa’, uma vez que, por conta do prestígio e posição adquiridos, era julgado

por seus contemporâneos o maior especialista em cartografia brasileira, mesmo que

tivesse grande dificuldade para traçar, ele mesmo, seus mapas e, por conta disso,

dependesse de colaboradores, conforme pode ser observado através de seus desenhos

autógrafos.456

Na verdade, para a execução da maioria de seus trabalhos, Ribeiro contou

com o auxílio de engenheiros militares lotados exclusivamente com esse propósito na

455 'Carta de Duarte da Ponte Ribeiro, para Joaquim Maria Nascentes de Azambuja', em 1861. AHI, Arquivo

Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 3, Pasta 3.

456 Em relação à dificuldade de Ribeiro com o desenho, ver, por exemplo, o mapa de uma parte da região amazônica

juntado ao material anexo à ‘Memória n. 134 – 2. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 288,

Maço 2.

Page 264: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

264

SNE, que foram, sucessivamente, Frederico Antônio de Seweloh e Izaltino José

Mendonça de Carvalho.

Ainda, o sigilo e a setorização geraram distorções que se aprofundaram no longo

prazo: o controle da massa documental pelos funcionários e ministros agregados à SNE

consolidaram o sigilo mesmo em meio ao próprio Estado. Como exemplo dessa

distorção, é ilustrativo que certas informações sobre os problemas de limites nas

Guianas e na fronteira com a Bolívia que estavam disponíveis na SNE não

compusessem as discussões do Conselho de Estado, como, por exemplo, pode ser

facilmente depreendido pelo exame das Atas da Seção dos Negócios Estrangeiros do

Conselho de Estado referentes aos limites com a Grã-Bretanha na década de 1850 e em

praticamente todas as consultas a respeito dos limites com a Bolívia e mais tarde o Peru.

Em relação aos limites com a Grã-Bretanha, as discussões não incluem os mapas e

relatos de Antônio da Silva Pires Pontes Leme sobre a exploração do território

disputado então existentes no Arquivo da SNE.457

Já no que diz respeito aos limites com

o Peru e Bolívia, as memórias sobre o Javari existentes na SNE davam certeza da curta

extensão desse rio, o que ainda no século XX foi refutado oficialmente pelo Ministério

das Relações Exteriores, sendo que estes arquivos permaneceram secretos até 1990.458

Também em relação às distorções geradas pelo controle da massa documental,

deve se salientar que essa política de sigilo se desdobrou ainda para o interior da própria

SNE, uma vez que certas informações existentes em seus Arquivos não estiveram

disponíveis para alguns de seus Ministros: nesse ponto, deve ser levado em

consideração que, embora Ribeiro não descurasse em constituir o arquivo da SNE,

cuidaria de manter um outro arquivo particular ainda maior.

Portanto, a questão da caracterização do novo regime da narração encadeia,

justamente, os condicionamentos da ‘composição manuscrita’, utilizando um repertório

recolhido, selecionado, organizado e sob o controle dos seus operadores, a partir da

necessidade de concorrer eficientemente com as outras representações de espaço,

acompanhando seus estilos de representação e utilizando a produção em escala

457 Ver Atas da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros, consulta de 28/09/1854.

458 Ver, por exemplo, AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 266, Maço 5, Documento 1; AHI,

Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 265, Maço 10, Documento 8.

Page 265: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

265

O novo regime da narração e o Arquivo da SNE

Continuando nosso raciocínio a respeito das escolhas conduzidas pela operação

da narrativa em relação à inscrição do Estado no espaço e à delimitação das suas

possibilidades e condicionamentos, devemos considerar que, ao contrário do velho

regime da narração, que foi referenciado por um cânone constituído através do debate

no IHGB, o novo regime da narração consolidaria um novo material. Este, seria

organizado por Duarte da Ponte Ribeiro no Arquivo da SNE e em seu arquivo

particular: note-se que Ribeiro ficou lotado na Chefia da Seção da América Latina da

SNE desde 1844 até o ano de 1851, em vez de exercer algum posto diplomático no

exterior, ainda que fosse um dos mais experientes diplomatas do Império e sendo

favorável ao Partido Liberal, naquele tempo no poder, contasse com a proteção dos seus

principais políticos. Durante esse período, uma das tarefas de Ribeiro foi ordenar o

material remetido da Europa para a SNE, especialmente de Portugal e da França, um

esforço que foi iniciado em 1837 por Antônio Peregrino Maciel Monteiro e do qual

também faria parte Varnhagen.459

A partir de 1853, Ribeiro foi designado por ordem do Imperador, através de

ofício de Paulino José Soares de Souza, como o encarregado de recolher para o Arquivo

da SNE “papéis e mapas existentes nela e noutras Repartições Públicas, que dêem a

conhecer a história, geografia, estatística e as questões de fronteiras”, sendo ainda

reconhecido como “o mais habilitado nestes conhecimentos especiais”. Nesse sentido

seriam expedidas ordens para que lhe fossem franqueados em todas as repartições

públicas os papéis e mapas que julgasse adequados a esse fim, sendo mesmo a SNE

incumbida de prestar a cooperação que requisitasse.460

Deste modo, por exemplo, os

documentos referentes às Demarcações decorrentes dos Tratados de Madri e a

correspondência havida entre as autoridades portuguesas da Capitania de Mato Grosso e

as autoridades espanholas das províncias vizinhas foram requisitados em 1854 por

459 A esse respeito, ver nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível.’ 460 Carta de Paulino José Soares de Sousa para Duarte da Ponte Ribeiro, em 15/02/1853. AHI, Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 4, Pasta 1.

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266

Ribeiro junto com alguns mapas da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e

transferidos para o Arquivo da SNE.461

Entretanto, a maior parte do material que iria constituir o Arquivo da SNE já

fora selecionada entre 1841 e 1850 por Ribeiro no Arquivo Militar, uma vez que seu

acesso a todos os registros, correspondências e mapas lhe fora franqueado desde o ano

de 1844, sendo inclusive permitido a Ribeiro retirar este material do seu acervo, sob a

premissa de que seriam copiados para a SNE.462

Contudo, alguns desses documentos

teriam o mesmo destino que o ‘Diário da segunda partilha da divisão da América’,

vindo da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e o ‘Diário Científico da

Demarcação de Limites da Província de S. Pedro do Sul até o Paraná em 1784 a 1787’,

vindo da Secretaria de Estado de Guerra e juntados ao Arquivo da SNE respectivamente

em 1844 e 1836.463

Outros documentos foram ainda reunidos fora do Brasil pelo próprio Duarte da

Ponte Ribeiro, tendo sido juntada, por exemplo, durante sua estada na Argentina entre

1842 e 1843, uma pequena, mas importante parte do Arquivo, no caso, os documentos

referentes à demarcação espanhola dos limites do Tratado de Madri e vários mapas da

região amazônica.

Finalmente, o restante do material do Arquivo da SNE foi adquirido através do

‘Convênio Luso-brasileiro de Cartografia’ de 1867, que consistiu numa troca de

produtos cartográficos entre Portugal e Brasil, idealizada e posta em prática por Ribeiro,

que, pessoalmente havia vasculhado as coleções documentais daquele país em 1863 no

âmbito da ‘Comissão investigadora de Mapas e Memórias concernentes ao Brasil’.464

461 ‘Ofício de Duarte da Ponte Ribeiro ao Ministro Limpo de Abreu referente a dois manuscritos que estão no

Arquivo da Marinha: o Diário do exame e Demarcação da Fronteira entre os rios Uruguai e Iguaçu e assinado

pelos comissários portugueses e espanhóis e outro extrato da correspondência entre autoridades da Capitania de

Mato Grosso e as Espanholas, incumbida a Leverger. Menciona mapas da Bahia e do Rio de Janeiro,’ 7/01/1854.

AHI, Arquivo particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 5.

462 Carta do Ministro dos Negócios Estrangeiros para o Ministro da Guerra, 21/08/1844. AHI Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 5, Pasta 4, Documento 8.

463 Ver Carta de Antonio Francisco de Paula e Holanda Cavalcante de Albuquerque, Ministro e Secretário de Estado e

Negócios da Marinha para Duarte da Ponte Ribeiro,' 21/09/1844. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte

Ribeiro, Lata 286, Maço 4, Pasta 1; e 'Elenco Histórico das discussões dos Comissários portugueses sobre a

desnecessária substituição do Rio Iguatemi e Iponé-guassu ao Igurey e Corrientes que existiam onde os mostrava o

Mapa de 1749, que serviu de base ao de Limites de 13 de Janeiro de 1750' AHI, Arquivo Particular de Duarte da

Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Documento 1.

464 Correspondência entre o Barão de Itamaracá e Duarte da Ponte Ribeiro. AHI, Arquivo Particular do Barão da

Ponte Ribeiro, Lata 287, Maço 4. Com referência à constituição do Arquivo da SNE, ver também Joaquim Maria

Nascentes de Azambuja, ‘Catálogo de mapas da secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros,’ IHGB, Lata 6,

Pasta 3; Isa Adonias, O acervo de documentos do Barão da Ponte Ribeiro. Rio de Janeiro: S/editor, 1984, p. 28-48

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267

O novo regime da narração e a ambigüidade da narrativa

Finalizando nosso raciocínio a respeito das escolhas conduzidas pela operação

da narrativa em relação à inscrição do Estado no espaço e à delimitação das suas

possibilidades e condicionamentos, verificamos que o material reunido por Ribeiro no

Arquivo da SNE estava focado basicamente nas atividades da antiga Metrópole e seria

conectado pela operação da narrativa a uma inscrição do Estado no espaço segundo os

condicionamentos da ‘composição cartográfica manuscrita’.

Por outro lado, observamos também que estas escolhas e ainda certas

características do novo regime da narração se definem na Querela de 1853, sendo

confrontadas, a partir daí, com a concorrência de outras representações do espaço e com

a necessidade de adotar-se seus modelos e estilos. Ainda, como vimos nos capítulos

anteriores,465

a construção do espaço foi feita por meio de um ‘saber sobre o espaço’ e

relacionada a uma inscrição no espaço internacional que contrastava com as inscrições

das ‘relações de força e soberania’, conforme exemplificaremos no próximo capítulo.

Produzir-se-ia, por conseguinte, uma ambigüidade na representação do espaço

que remeteria ao problema da ambigüidade das relações entre o Estado e as elites

expressa por José Murilo de Carvalho através da representação do político pela metáfora

do teatro.466

Assim, entendemos que poderíamos procurar entender esta ambigüidade

segundo uma análise da representação no espaço desse poder.

No caso, a fusão entre texto e mapa característica do novo regime de narração,

seria aprofundada após 1850 pela conjunção das corografias com a cartografia, visando-

se enfatizar a ligação do Estado com suas origens, mas, ao invés de identificar a ligação

do homem com a terra, como na narrativa do setecentos, esta operação da narrativa

apontava para uma transformação do Estado em relação às suas origens: ainda que

imaginado sobre as fundações da antiga metrópole, o Brasil não compartilhava de sua

“desmedida e insaciável ambição”, conforme frisaria Duarte da Ponte Ribeiro,

consolidando-se assim um dos arcabouços da narrativa do século XIX.467

Deste modo, a

e José Antônio Soares de Souza, Um diplomata do Império. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, p.

332-334. 465 Ver, por exemplo, os capítulos ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’ e ‘O assento central’.

466 José Murilo de Carvalho, A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 417-423.

467 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Parecer do Sr. conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, sobre a referida Memória, lido na

sessão do Instituto Histórico de 17 de Junho de 1853,’ Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo

XIII, n° 3, 1853, p. 436.

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268

operação da narrativa inscreveu em suas representações do espaço um aparente

paradoxo que consistiria na fixação da escrita sobre um material rejeitado em sua

historicidade durante a interpretação, mas que se destinava a consolidar uma narrativa

adequada à política de limites do Estado.

Por outro lado, a conjunção entre as corografias e a cartografia visava ainda

preservar e ampliar a construção de uma centralidade que precisaria ser satisfeita pela

conexão entre o centro e a periferia. Assim, a operação da narrativa inscreveria em suas

representações do espaço outro aparente paradoxo que consistiria em não pretender

representar apenas uma inserção no território, como nas representações do antigo

modelos, mas, por sua resignificação segundo as ‘relações de força e soberania’,

sublinhado-se nesta, entretanto, um retorno ao passado que possibilitaria constituir e dar

sentido do Mito.

Portanto, viabilizar-se-ia, assim, uma narrativa em que os registros dos

monumentos do passado inscrevem uma interpretação do território unida pela

construção de uma historicidade do todo, a qual pode ser analisada como um ‘desejo do

eterno presente’. Nesta construção se constitui a idéia de um tempo imobilizado que une

o presente ao passado, uma eternidade que não se move pela necessidade e que é

representada como um momento que não tem relação com o Outro, mas apenas com seu

próprio ideal.

Por conseguinte, um ‘movimento único’ que vai do momento ao ideal constitui a

espacialização da história sobre o território eliminando-se os aparentes paradoxos da

inscrição do espaço pelo remetimento dessa história apenas ao ideal.468

Nesse sentido, a

operação da narrativa pode ser explicada a partir da idéia indicada por Søren

Kierkegaard no início de sua obra ‘Fragmentos filosóficos’, a saber, que o ponto de

partida para uma consciência eterna pode ter um interesse que não seja meramente

histórico, mas, no caso, intratextual, situado na convergência entre a ocasião e o ato de

representação:

“A eternidade [...] expressamente torna-se o momento, onde a

ocasião e o que é ocasionado correspondem igualmente, tão igualmente

como a resposta ao grito no deserto, o momento não aparece mas é tragado

468 Søren Kierkegaard, ‘The God as Teacher and Savior’ in Philosophical Fragments. Princeton, New Jersey:

Princeton University Press, 1987, IV 193 e 194.

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269

pela lembrança para dentro de sua eternidade. O momento emerge

precisamente na relação da resolução eterna para a ocasião desigual.”469

O momento, originado do ‘movimento único’, contém a verdade em si, uma vez

que advém do mesmo ideal que participa de sua eternidade e não se constitui pela

instrução socrática, mas por um ato de compreensão que elide a instrução e engendra a

experimentação, permitindo, assim, a criação: essa compreensão não se expressaria por

uma relação entre o aluno e o professor, mas pela relação de um autodidata com uma

beleza apenas inspirada por esse mesmo ato e com as formas externas que dela

participam, cuja expressão seriam seus produtos.470

A partir da idéia do momento de Kierkegaard, poder-se-ia explicar porque

Duarte da Ponte Ribeiro, ao contrário de Conrado Niemeyer, não se guiaria na

composição de seus mapas pelas cartas provinciais, nem pelas cartas gerais, nem pelos

Atlas ou ainda pelos relatos e escritos dos viajantes estrangeiros, mas apenas por uma

tradição enxergada tão-somente nos documentos recolhidos aos seus arquivos, de onde

adviria todo o conhecimento julgado essencial e exato.471

A inscrição do espaço, caracterizar-se-ia então como uma antevisão da própria

nação desligada de seu tempo, um espaço construído antes do seu território, uma nação

sem o lugar de seus habitantes, o Jacobina sem seu espelho a inscrição do espaço

constrói-se, na verdade, a partir da inscrição de um momento que permite o registro

contínuo das ‘relações de força e de poder’, as quais se consolidam, justamente, por sua

ambigüidade.

469 ‘Eternity [...] it expressly becomes the moment, for where the occasion and what is occasioned correspond equally,

as equally as the reply to the shout in the desert, the moment does not appear but is swallowed by recollection into

its eternity. The moment emerges precisely in the relation of the eternal resolution to the unequal occasion.’ Søren

Kierkegaard em ‘The God as Teacher and Savior’ in Philosophical Fragments. Princeton, New Jersey: Princeton

University Press, 1987, p. 25.

470 Ver Søren Kierkegaard, ‘The God as Teacher and Savior’ in Philosophical Fragments. Princeton, New Jersey:

Princeton University Press, 1987, IV, 199; Søren Kierkegaard,’The Contemporary Follower’ in Philosophical

Fragments. Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1987, IV, 229.

471 Ver, por exemplo, as críticas de Ribeiro ao Atlas Cândido Mendes e o seus comentários sobre a construção do

‘Mapa da Fronteira Norte do Império’, onde além de descrever suas fontes Ribeiro repudia a utilização do material

oriundo dos viajantes estrangeiros em face da existência dos documentos do arquivo. AHI, Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 288, Maço 2.

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10 — EM AMPLEXO FRATERNAL: A LUTA DE REPRESENTAÇÕES E A

PRODUÇÃO DAS CARTAS GERAIS.

“Ao cruzar nesta tentativa os paramos do Atlântico, reconcentrava o coração no

grêmio da Mãe comum. Nascido na margem do Jaguarão, na raia meridional do

Brasil, deleito-me em circungirar a vista por todos os remotos confins deste vosso

vastíssimo Império; e enlevado pelas pomposas maravilhas de sua inefável

magnificência, ensoberbeço-me com a idéia de que todo ele é minha Pátria. Cioso

da mínima leiva deste território paradisíaco, empenho votos para que todos os

Brasileiros, desaferrolhando-se para sempre das masmorras do provincialismo,

sublimem-se de uma vez às olímpias assomadas de seu âmbito completo, e sem

distinção de Rio-grandense, nem Paraense, o abarreirem impenetravelmente em

amplexo fraternal; e quando as Nações gigantes porfiam em perpétuos omnímodos

esforços para mais se engrandecerem, não nos apresentemos nós ao Mundo

ostentando por alvo glorioso o apigmear-se.”

Joaquim Caetano da Silva. Memória.472

Nosso objetivo neste capítulo é, a partir do conceito de momento desenvolvido

no capítulo anterior, analisar a influência do princípio subjetivo no processo de

produção das cartas gerais. Pretendemos ainda analisar a presença do Estado e de suas

necessidades como um dos elementos instigadores da construção corográfica e

cartográfica e entender quais foram as influências que incidiram sobre a composição

desses mapas. Finalmente, pretendemos introduzir esses elementos como parte da

operação da narrativa e de sua consolidação numa ‘Mitologia do espaço nacional’, que

será o assunto central do próximo capítulo.

Inicialmente, ao cotejarmos a cartografia manuscrita com a cartografia

reproduzida em escala, podemos perceber, na passagem do primeiro para o segundo

processo de produção, uma diminuição gradativa do valor do indivíduo em favor de

uma cadeia operatória que por suas características enfatiza a separação das tarefas e o

anonimato. Nesse sentido, a derrota do princípio subjetivo na cartografia está

relacionada à supressão de uma autonomia da experiência visual daquele que representa

e do espectador, bem como à diminuição da mobilidade autônoma do espaço a ser

472 Joaquim Caetano da Silva, ‘Memória sobre os limites do Brasil com a Guiana Francesa, conforme o sentido exato

do artigo oitavo do Tratado de Utrecht’, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XX, n° 13,

1850, p. 512.

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271

representado, por meio de uma crescente normatização no processo de produção que

incluiu, por exemplo, a padronização da escala e a estandardização dos símbolos e das

cores.

Esta derrota do princípio subjetivo, que se desenrolou ao longo dos séculos

XVIII e XIX, foi justamente o inverso do que, segundo Panofsky, teria acontecido na

arte, uma vez que a transformação das manifestações artísticas, que foi estudada por

este autor a partir das modificações ocorridas na teoria das proporções, resultou numa

ênfase da subjetivação do objeto por parte do artista, denotando uma maior importância

do sujeito a partir da diminuição da intromissão do Estado na Arte.473

Deste modo, se relacionássemos os dois problemas poderíamos entender que as

tensões, contradições e transformações na operação da narrativa estariam intimamente

conectadas com a consolidação progressiva nos séculos XVIII e XIX de um estatuto

técnico e científico, ao redor do qual se passaria a normatizar a cartografia, e que esta

consolidação pode ser identificada com uma diluição progressiva do indivíduo no

Estado, “excluído de mil maneiras da ação”, conforme salientaria Jacob Burckhardt.474

Assim, a ascensão do Estado brasileiro no século XIX estaria diretamente

relacionada com a derrota do princípio subjetivo na operação da narrativa, que

materializar-se-ia, inclusive, na escrita das corografias, a partir de 1850, através da

progressiva predominância de um novo modelo que passou a pormenorizar e delimitar o

espaço pela sua subordinação a uma observação a partir de um centro no Estado

claramente identificável no espaço.

Esta transformação verdadeiramente panóptica do espaço estava ligada tanto à

divulgação e à pedagogia de uma construção historiográfica da Nação quanto a uma

crescente necessidade de projetar interna e externamente a representação do espaço

nacional, sob pena de não se conseguir consolidar e legitimar a inscrição do Estado

Brasileiro. Assim, a construção da representação do espaço nacional teve de ser

adaptada, primeiramente, uma competição interna, visando expandir e reforçar as

‘relações de força e soberania’ e a inscrição do Estado sobre o território e, em segundo

lugar, a uma competição externa, que visava registrar e autenticar uma inscrição do

Estado no espaço internacional.

473 Erwin Panofsky, ‘A História da teoria das proporções humanas como reflexo da história dos estilos’, in

Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976, pp. 89-148.

474 Carta de Jacob Burckhardt para Albert Brenner, 17/10/1855, in Jacob Burckhardt, Cartas - Jacob Burckhardt. Rio

de Janeiro: Topbooks, 2003, p. 228.

Page 272: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

272

A partir de Schopenhauer, podemos explicar esta competição como uma luta de

representações que, numa primeira consideração, se dá no curso da trajetória da

objetivação da Vontade rumo a um alvo que, no entanto, também será partilhado por

vários indivíduos.

Numa segunda consideração, nessa trajetória de objetivação da Vontade se

produzem Idéias que necessitam da matéria para se expressar, condição que, conforme a

primeira consideração, também será disputada por outros indivíduos para o mesmo fim,

portanto, todos tenderão continuamente a usurpar a matéria, cada qual podendo possuir

desta apenas o que pôde tomar aos outros indivíduos.

Numa terceira consideração, a disputa anterior se constituiria numa competição

contínua, uma vez que a Vontade é incapaz de ter uma finalidade última, já que se

constitui toda em desejo, desejando sempre, incapaz de satisfação, mesmo quando

conquiste seu objeto, produzindo, portanto, um movimento contínuo como a Roda de

Ixião,475

que não se satisfaz, retornando sempre ao mesmo lugar.

Numa quarta consideração, entenderíamos que nesta competição contínua a

Vontade é impelida pela paixão, que definimos enquanto uma força criativa e um

movimento incessante, que através do pensamento visa “um esforço pela autonomia

inalterável, pela liberdade incondicionada e pela atividade ilimitada”,476

ou seja, a

paixão é entendida aqui em oposição à categorização aristotélica, aproximando-se tanto

do sentido que Schelling entendia ser a exigência máxima do criticismo kantiano,

quanto do sentido que lhe foi dado por Jakob Böehme,477

no caso, como uma tendência

universal de todos os corpos.

Numa quinta consideração, por conta do desejo constitui-se em torno do ato de

representação uma guerra eterna de vida ou de morte, com a oposição, por parte dos

outros indivíduos, de resistências e obstáculos à objetivação da Vontade, que, uma vez

concretizados, resultam na frustração do desejo, ocasionando o sofrimento. Entretanto,

como a paixão não se consome com a frustração do desejo e entende a impossibilidade

como uma prisão, irá impelir a Vontade novamente a desejar.

475 Por tentar raptar Hera, Ixião, rei dos lápidas, foi atado por Zeus a uma Roda flamejante e condenado a girar sem

cessar.

476 Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, Nona Carta in ‘Cartas filosóficas sobre o dogmatismo e o criticismo,’ Os

Pensadores - Schelling, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 33

477 Místico e filósofo alemão do século XVI cuja obra foi bastante popular entre os meios românticos e que

influenciou Schelling e Schopenhauer, dentre outros autores românticos.

Page 273: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

273

Numa sexta consideração, como o esforço da objetivação da Vontade no mundo

se dá impelido pela paixão, esse esforço não consente em abandonar tudo aquilo que

constitui seu ser inteiro como desejo, lutando pela matéria e pela expressão de sua Idéia

mesmo em meio à resistência e aos obstáculos. Portanto, através da paixão, a Vontade

busca ao menos materializar em parte seus desejos ainda que ao custo da transformação

e do ajustamento dessa materialização aos desejos dos outros. Contudo, como essa

materialização imperfeita do desejo também traz sofrimento e insatisfação, a paixão

impelirá novamente a Vontade a desejar, reconduzindo-a ao seu alvo, a novos atos de

representação e à luta para representá-los.478

Portanto, a disputa em que o Estado, através do processo externo, necessitou

engajar-se, não era apenas a competição concorrencial que motivava a organização do

processo cartográfico, mas era uma luta de representações da qual tanto os projetos de

construção historiográfica da Nação quanto as operações de inscrição do Estado no

espaço, incluídas aí as corografias, participavam em relação às outras construções e

inscrições equivalentes, cuja expressão era então materializada nas cartas gerais e nas

corografias de novo modelo.

Contudo, se remontarmos, conforme proposto, ao conceito de momento que

acreditamos estar inserto na construção da narrativa, entenderemos que também sobre

aquela materialização incidem as tensões que opõem a Vontade do indivíduo, resistindo

à derrota do princípio subjetivo, à ascensão do Estado. Por conseguinte, através do

exame da materialização decorrente da luta de representações travada pelo processo

externo, ou seja, dos produtos corográficos e cartográficos, acreditamos ser possível

distinguir, por conta do esforço da paixão em se fazer reconhecer, diferentes graus de

objetivação da Vontade nas operações de inscrição do Estado no espaço.

Por outro lado, também a partir de Schopenhauer, conforme sua idéia da Obra de

Arte enquanto um meio facilitador do conhecimento da Idéia, poderíamos tentar

compreender, por meio da tensão entre a Vontade do indivíduo e a ascensão do Estado,

como se daria a passagem da construção da narrativa para sua consolidação no Mito .

Para este intento, partiremos de dois pressupostos, o primeiro destes o de que “os

objetos (Objekte) são diretamente objetos (Gegenstände) da intuição, não do

pensamento, e todo conhecimento de objetos (Gegenstände) é, originariamente, e em si

478 Ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, cap. 2-3 e O Mundo como

vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001, § 56-57.

Page 274: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

274

mesmo, intuição”. Portanto, é necessário que as intuições sejam constantemente

reconduzidas e trabalhadas, e que nesse processo estas intuições não sejam diminuídas,

assim, o pensamento é novamente restabelecido.479

O segundo pressuposto o de que na Obra de Arte a Idéia é exposta de maneira

pura, mas que é necessário para a facilitação de sua apreensão o “silêncio completo da

Vontade, e que este só é alcançado com segurança se o objeto intuído não se situar no

domínio das coisas que possam ter uma relação possível com a Vontade, portanto que

não sejam nada de efetivo mas sua mera imagem.”480

Entretanto, se a Obra de Arte possui um valor permanente e indelével e

utilizável em todos os tempos, esta é realizável apenas pelo gênio, o “puro sujeito que

conhece, claro olho cósmico”,481

pois se origina de um conhecimento que permanece

por inteiro o mesmo em todas as épocas e que, por conseguinte, não se situa

propriamente no tempo, definido como “o conhecimento das Idéias, das formas

permanentes, essenciais em todas as coisas.”482

Assim, poder-se-ia entender que, para se tornar mais efetiva a materialização

decorrente da luta de representações, seria preciso que a derrota do princípio subjetivo

fosse alargada até o ponto em que se rompesse o encadeamento da Memória e assim se

pudesse identificar essa obra com a essência, a Idéia da humanidade, com o imutável,

aquilo que é igual por todos os tempos.483

Novamente remontando a Schopenhauer, entende-se que através da

contemplação estética da Obra de Arte, seja pelo poder de sua figura significativa seja

por uma disposição interna do indivíduo, o conhecimento libera-se “da escravidão da

vontade e existe para si de maneira livre, não mais apreendendo as coisas conforme elas

digam respeito à vontade, conforme sejam seus motivos”: o conhecer tornar-se-ia livre

de toda a relação com o querer.484

Portanto, uma materialização da Vontade sublimada à altura das idéias retiraria o

sujeito da luta de representações, consolidando a derrota do princípio subjetivo, seja

479 Arthur Schopenhauer, ‘Crítica da Filosofia Kantiana’, in Os Pensadores - Arthur Schopenhauer, São Paulo:

Editora Nova Cultural, 1997, p. 176-177.

480 Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 86.

481 Ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 66.

482 Ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 77-78.

483 Ver Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 79-81.

484 Arthur Schopenhauer, A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003, p. 91.

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por relacionar as representações com um objeto (Objekte) cuja forma do conhecimento

já tenha sido intuído, o que inibe, por conseguinte, a abstração do conhecimento pelo

pensamento, seja por trabalhar pedagogicamente estes objetos (Gegenstände) ante o

sujeito.

Ainda, para melhor estabelecermos a idéia de uma passagem da narrativa do

século XIX para uma ‘Mitologia do espaço nacional’ por meio da tensão entre a

Vontade do indivíduo e a ascensão do Estado, precisaremos trabalhar a idéia da Obra de

Arte e do puro sujeito do conhecimento de Schopenhauer conforme suas origens

intelectuais, no caso, a idéia da intuição intelectual eterna de Schelling.

Para Schelling, a capacidade da intuição do eterno se diferencia de qualquer

intuição sensível na medida em que é produzida apenas por liberdade, “e é alheia e

desconhecida a todos os outros, cuja liberdade, sobrepujada pela potência impositiva do

objeto, mal basta para a produção da consciência”. Portanto, a intuição do eterno surge

“quando deixamos de ser objeto para nós mesmos, e quando, retirado em si mesmo, o eu

que intui é idêntico ao eu intuído.”

Nesse sentido, para Schelling, desapareceriam “tempo e duração”, portanto, “não

somos nós que estamos no tempo, mas o tempo — ou antes, não ele, mas a pura

eternidade absoluta — que está em nós. Não somos nós que estamos perdidos na

intuição do mundo objetivo, mas é este que está perdido em nossa intuição.”485

Do mesmo modo que na idéia da Obra de Arte de Schopenhauer, a idéia da

‘intuição do eterno’ de Schelling compreende uma identificação do que intui com o que

foi intuído, por meio da cessação da relação daquele que intuí com o objeto, que impele

o eu a uma dissolução na eternidade, em um espaço sem tempo.

Entretanto, a ‘intuição do eterno’ de Schelling é mais próxima à nossa idéia de

momento construída a partir de Kierkegaard, um vez que esse momento é

potencialmente criativo e intrinsecamente ligado a um ideal, admitindo assim que a

idéia de cessação da relação possa ser criada. Ainda, em Schelling, a ‘intuição do

eterno pela arte’ tem como precondição a identificação do que intui com o que é

intuído, pois entende a Mitologia, condição necessária e matéria primeira da arte,

também como uma criação. Assim, a partir de Schelling, entendemos que o eterno e a

Idéia, como o momento, também podem ser criados.

485 Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, ‘Oitava Carta sobre o dogmatismo e o criticismo’ in Os Pensadores -

Schelling, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 24-25.

Page 276: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

276

Nesse sentido, a Mitologia foi compreendida por Schelling como o “único

mundo” onde “são possíveis figuras duradouras e determinadas, unicamente por meio

das quais os conceitos eternos podem ser expressos”,486

mas, que é, ao mesmo tempo,

também uma invenção cujos termos constituintes e modelos devem ser entendidos

histórica e simbolicamente,487

uma criação coletiva, não apenas intencional mas também

incondicionada, que pode ser entendida como a criação de um momento.488

Portanto, a partir de Schelling podemos trabalhar a idéia do momento como parte

do processo criativo que deriva do pensamento, o qual pressupõe a possibilidade de

construção do Mito e de uma Mitologia, com o propósito de tornar a identificação

suportável “justamente por haver surgido de um ilusão, e ainda mais suportável por essa

ilusão ser indestrutível”.

Esta idéia permitiria compreender porque o pensamento, mesmo enquanto

identificado “no objeto absoluto”, continua intuindo “ainda a si mesmo” e permitindo a

contínua reprodução do Mito: uma vez que o pensamento não pode “pensar-se como

anulado sem pensar-se, ao mesmo tempo, como existente,” este mesmo pensamento

toma “a intuição de si mesmo pela intuição de um objeto fora de si, a intuição do mundo

intelectual interior pela intuição do mundo supra-sensível fora de si.”489

Portanto, a paixão e o alargamento da derrota do princípio subjetivo estão

conectados na luta de representações através da tensão entre a Vontade do indivíduo e a

ascensão do Estado: esta tensão delimita as passagens da construção da narrativa para

sua sublimação numa Mitologia do espaço brasileiro. Entende-se, portanto, que essa

Mitologia não foi construída apenas pelo sujeito nem pelo gênero, mas por um gênero

que se individualiza e por um indivíduo que se generaliza, numa operação de construção

da narrativa que congrega e dissemina: na verdade, a Mitologia se constrói a si

mesma.490

486 Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 38-42.

487 Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 133 p. 300.

488 Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 39.

489 Friedrich Wilhelm Joseph Schelling, ‘Oitava Carta sobre o dogmatismo e o criticismo’ in Os Pensadores -

Schelling, São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 25.

490 Ver Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 41-42.

Page 277: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

277

A Nova Carta Niemeyer de 1857

Conforme vimos nos capítulos anteriores,491

estabeleceu-se, durante o final da

década de 1840 e o início da década de 1850, uma disputa em torno do regime da

narrativa que somente seria resolvida após a Querela que envolveu Gonçalves Dias e

Duarte da Ponte Ribeiro em 1853 no IHGB. Por conta da Querela, a organização de

uma inscrição do Estado no espaço, ensaiada desde 1850 pela ‘Comissão de Limites’,

somente pode ser posta em prática, através das composições de Ribeiro, após se

consolidar um novo regime da narração em torno da SNE.

Nesse sentido, a utilidade da cartografia já havia se tornado evidente, para o

Estado centralizado que então se formava, desde o começo das grandes revoltas

provinciais, especialmente a Balaiada, que passaram a impor um novo raio de ação ao

seu Exército. Já em 1840, Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, diante

da mobilidade das forças combatentes e do tamanho e complexidade do teatro de

operações, necessitaria mandar confeccionar um mapa da Província do Maranhão,

composto com dados e subsídios fornecidos por elementos de sua confiança, para que

lhe fosse possível organizar a logística e os deslocamentos de suas tropas, bem como a

administração das áreas sob seu controle.

Nesse sentido, a produção da Carta Niemeyer de 1846 chamaria a atenção dos

militares para a possibilidade de melhor utilizar os recursos do próprio Exército,

notadamente do seu corpo de Engenheiros e da sua Oficina Litográfica, visando com

isso proporcionar às atividades militares e administrativas um registro útil, adequado e

confiável do espaço. Caberia novamente a Lima e Silva implementar essa iniciativa,

uma vez designado Presidente da Província do Rio Grande do Sul: Niemeyer seria

chamado para trabalhar diretamente com o seu Estado-Maior, sendo encarregado de

compor um mapa que englobasse aquela Província junto com o Uruguai e o sistema

fluvial adjacente, o qual seria utilizado na campanha dos Farrapos e nas guerras contra

Oribe e Rosas nos anos 1851 e 1852.492

Passando a ocupar a função de Ministro dos Negócios da Guerra, Lima e Silva

incumbiria Niemeyer de produzir uma Carta Geral do Império do Brasil, a qual

491 Ver nesta tese os capítulos ‘Um itinerário do valioso ao possível’ e ‘O espelho do jacobina’.

492 Carta de Conrado Jacob de Niemeyer ao secretário do IHGB Manuel de Araújo Porto Alegre, em 12/12/1857.

IHGB, Documento 42 Lata 310; A ‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar pelo

Tenente General Marquês de Caxias em 1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre

geografia e cartografia realizado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944, p. 14.

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278

começou a ser composta, pelo menos, em 1855.493

Assim, este mapa, doravante

chamado de ‘Nova Carta’, deve ser entendido em razão das experiências anteriores, até

mesmo porque, quando de sua composição, tinha-se em vista a possibilidade de um

contencioso com o Paraguai,494

ocasionando que a representação do espaço brasileiro

fosse feita através de um enquadramento que continha o território daquele país.495

A partir deste caso, podemos entender a utilização dos símbolos e recursos

técnicos na cartografia enquanto recursos retóricos, desde que, a partir de

Schopenhauer, a retórica não seja entendida apenas como no edifício aristotélico, ou

seja, como um sistema ordenado e dividido em categorias formais, mas, também como

uma intelecção da linguagem segundo a liberdade da Vontade, ou seja, como um

facilitador da representação, uma criação que, adaptada às circunstâncias, utiliza um

repertório conhecido, aceito e legitimado.

Portanto, utilizaremos a idéia de recurso retórico conforme este raciocínio, ou

seja, entendendo que a retórica aristotélica é um estilo da ‘gramática da linguagem’ já

legitimado pelas elites intelectuais, incorporado à ‘linguagem do espaço’ e registrado na

composição cartográfica, nas corografias e na operação da narrativa, mas, entendendo

também que a intelecção da linguagem utilizará recursos retóricos que não estavam

apenas ligados à Retórica aristotélica, mas que se constituíram segundo a liberdade da

Vontade e conforme a paixão, repetimos, numa criação adaptada às circunstâncias e que

poderemos entender também conforme a idéia de uma sociabilidade da escrita.496

Assim, a ‘Nova Carta’ de 1857 utilizava o enquadramento como um recurso

retórico, visando não só divulgar as pretensões brasileiras na região do Paraguai497

ou

493 No início de 1856 já haviam sido reduzidas várias das cartas provinciais utilizadas por Niemeyer, o que recua o

início da composição da Carta para, pelo menos 1855. Ver Ofício n° 1 de Conrado Jacob de Niemeyer para Luís

Alves de Lima e Silva, 2/05/1856, in A ‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar pelo

Tenente General Marquês de Caxias em 1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre

geografia e cartografia realizado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944.

494 Segundo Ribeiro, a ‘Nova Carta’ Niemeyer foi ‘construída positivamente para mostrar a fronteira do Império com

a República do Paraguai’. Ver Duarte da Ponte Ribeiro, Exposição dos trabalhos geográficos e hidrográficos que

serviram de base à Carta Geral do Império exibida na Exposição Nacional de 1875. Rio de Janeiro: Tipografia

Nacional, 1876, p. 88.

495 Em relação ao conceito de enquadramento ver, nesta tese, o capítulo ‘Mapeando o vazio’.

496 Ver, nesta tese, o capítulo ‘A descrição do contemplador’.

497 A Nova Niemeyer utiliza, com esse propósito, os trabalhos do Barão de Caçapava, o demarcador dos limites com

o Uruguai e os trabalhos do Brigadeiro Bellegard na exploração do rio Paraguai. Ver Ofício n° 1 de Niemeyer para

Luís Alves de Lima e Silva, 2/05/1856, in A ‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar

pelo Tenente General Marquês de Caxias em 1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta

sobre geografia e cartografia realizado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944.

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os limites acertados no Tratado com o Uruguai de 1851, mas de acordo com os

condicionamentos do processo externo e do processo interno. Por conseguinte, a

composição da ‘Nova Carta’ deve ser entendida também como uma atualização da Carta

de 1846, uma vez que consolidava e divulgava novas formas de intuição do espaço

então circulantes no teatro da narrativa.498

Estas novas intuições do espaço relatadas no

IHGB,499

seriam integradas à ‘Nova Carta’ através dos elementos proporcionados pelas

recentes explorações no interior do Paraná, de São Paulo e de Mato Grosso, conduzidas

por João Henrique Elliot e subvencionadas pelo Barão de Antonina, que visavam a

ocupação daquelas áreas e o aproveitamento de sua comunicação com Cuiabá.500

Uma conexão entre esta nova intuição do espaço e o registro dos seus elementos

na ‘Nova Carta’ pode ser exemplificada por deste ter gerado diferentes percepções do

espaço, sendo que a primeira destas foi inscrita por meio da utilização de um recurso

retórico distinto, o elemento narrativo misto.501

No caso, este representava à área

imediatamente visada pela expansão agrícola, o interior de São Paulo, percebida

enquanto “Sertões inteiramente desconhecidos e ocupados por índios ferozes”, por

conseguinte, um território entendido como aberto à intervenção ‘civilizadora’ do Estado

e dos particulares. A segunda percepção do espaço foi inscrita por meio de elementos

narrativos puros,502

no caso, representando as regiões adjacentes àquela primeira área,

especialmente no Paraná, percebidas através de uma ligação com a ocupação anterior,

por exemplo, as “Ruínas do Loreto” e o rio Pirapó, “descoberto pela segunda vez em

498 A ‘intuição’ deve ser entendida a partir de Schopenhauer, como uma intelecção do pensamento, integrando o

terceiro nivel de apreensão do ‘processo interno’, ligado à percepção das formas de intuição do espaço. Ver nesta

tese o capítulo ‘O espelho do Jacobina’.

499 Ver João Henrique Elliot, ‘Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão de Antonina para

descobrir uma via de comunicação entre o porto da vila de Antonina e o Baixo Paraguai na província de Mato

Grosso: feitas nos anos de 1844 a 1847 pelo sertanista o Sr. Joaquim Francisco Lopes, e descritas pelo Sr. João

Henrique Elliot’, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 10 (X), 1848; John Henrique Elliot,

‘Resumo do itinerário de uma viagem exploradora pelos rios Verde, Itareré, Paranapanema, e seus afluentes, pelo

Paraná, Ivary e Sertões adjacentes, empreendida por ordem do Ex. Sr. Barão de Antonina’, in Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo IX, n° 5, 1847.

500 Os rascunhos das Cartas Corográficas da Província do Paraná, e do Mato Grosso, indicando as vias de

comunicação com o Paraná, por João Henrique Elliot. Ver Ofício n° 1 de Conrado Jacob de Niemeyer para Luís

Alves de Lima e Silva, 2/05/1856, in A ‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar pelo

Tenente General Marquês de Caxias em 1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre

geografia e cartografia realizado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944.

501 ‘Elemento narrativo puro’ é entendido como a identificação de elemento geográfico específico através da

disposição sobre o mapa de uma frase narrativa, isto é, ligada à narrativa ver o capítulo ‘Mapeando o vazio’.

502 ‘Elemento narrativo misto’ é entendido como a fusão entre um ‘símbolo cartográfico’ e uma frase narrativa, que,

ao invés de identificar um elemento geográfico, designa um espaço específico ver o capítulo ‘Mapeando o

vazio’.

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1852”, territórios então entendidos como devendo ser incorporados através da

colonização.

Portanto, podemos entender que a nova intuição do espaço e os novos elementos

foram transpostos para a ‘Nova Carta’ num registro simultaneamente descritivo e

enunciador do espaço, disponibilizado por uma ‘linguagem do espaço’ constituída por

um ‘saber sobre o espaço’ que refletia as condições da ‘gramática da linguagem’.

A Carta Geográfica de 1856

Na verdade, o conflito com o Paraguai estava pendente desde o ‘Tratado de

Aliança Defensiva’ assinado com aquela República em 1850, já que o Brasil entenderia

que este lhe assegurara o direito ao livre trânsito pelo rio Paraguai, negado

sucessivamente em 1853 e em 1855, quando teria sido atrelado pelo Paraguai a uma

discussão de limites a ser efetivada somente em 1856. Nesta discussão o livre trânsito

seria novamente protelado por um prazo de seis anos, ou seja, até 1862, até quando se

combinara respeitar o uti possidetis de 1856.503

Após as discussões de limites entre o Brasil e o Paraguai acontecidas em abril de

1856, foi composta pela SNE a “‘Carta Geográfica’ de uma parte do Império do Brasil

confinante com a Confederação Argentina e a República do Paraguai”, doravante

referida como ‘Carta Geográfica’, sendo impressa já em agosto de 1856 no Arquivo

Militar e contando com uma tiragem de 1.550 exemplares, muito alta para a época.504

Como na ‘Carta Geográfica’ se procuraria privilegiar o registro dos elementos

geográficos que compunham o uti possidetis brasileiro, sua composição, feita por

Ribeiro segundo a orientação de José Maria da Silva Paranhos, então Ministro dos

Negócios Estrangeiros, desconsideraria problemas de ordem de grandeza, escala e

importância geográfica, destacando rios, serra, povoações e postos militares que

normalmente não seriam registrados num mapa que considerasse tal escala. Assim,

qualificar-se-ia e ordenar-se-ia a presença da Nação e do Estado no espaço através da

criação de uma grande variedade de símbolos cartográficos, na verdade, recursos

503 Ver ‘Tratado de Aliança Defensiva’, 25/12/1856; ‘Correspondência entre o Encarregado de Negócios do Brasil em

Assunção e o Governo Paraguaio’, 10/12/1853; ‘Correspondência relativa à Missão Especial do Chefe de

Esquadra Pedro Ferreira de Oliveira’, Abril de 1855; ‘Tratado de Amizade Comércio e Navegação’, 27/04/1855 e

‘Convenção de limites entre Brasil e Paraguai’, 6/04/1856 in José Manoel Cardoso Oliveira, Actos Diplomáticos

do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1997

504 Conforme carta de Duarte da Ponte Ribeiro para José Maria da Silva Paranhos, s/data. AHI, Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 3, Pasta 27.

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retóricos que permitiriam que fossem abrangidos na ‘Carta Geográfica’ os menos

significativos assentamentos humanos, permitindo qualificá-lo ainda enquanto civis ou

militares e, respectivamente, ordená-los em cidades, vilas, povoações, aldeias, fazendas

e estabelecimentos ou fortalezas, fortins, guardas e destacamentos.505

A centralidade da argumentação do uti possidetis na composição do mapa

levaria mesmo à utilização de referenciais comuns aos dois países em lugar de

referenciais particulares, como a utilização do Meridiano de Paris ao invés do

Meridiano do Rio de Janeiro, bem como à citação no rodapé da ‘Carta Geográfica’ de

todas as fontes cartográficas utilizadas na sua composição, visando, deste modo,

emprestar-lhe autoridade e credibilidade.

Por outro lado, passar-se-ia a substituir os topônimos usuais ou tradicionais por

topônimos novos, apenas utilizados pelo Brasil durante a discussão de limites de 1856,

assim, registrando-se o território por meio da inscrição também da percepção do Estado.

Seria, por exemplo, o caso do vocábulo Iguatemy, carregado de conteúdo simbólico por

conta de ligação nas corografias ao episódio do ‘martírio’ no Presídio de Nossa Senhora

dos Prazeres.506

Assim, o vocábulo Iguatemy seria utilizado pela primeira vez num

mapa, em lugar de Guatemy, empregado pela Comissão Demarcadora de 1754;

Guatemi, como na Correspondência oficial de 1767; Igatemi, usado no Tratado

Acessório de Santo Ildefonso em 1778 ou Iguatemi e Igatemi conforme a Comissão

Demarcadora de 1787.507

A concorrência entre a Nova Carta e a Carta Geográfica

Tendo-se explicado a composição da ‘Nova Carta’ e da ‘Carta Geográfica’,

algumas questões precisam ser levantadas: sabendo-se que a composição da ‘Nova

Carta’ começou pelo menos em 1855 e que a composição da ‘Carta Geográfica’

somente teve início após abril de 1856, como é possível explicar que esta última tenha

sido impressa um ano antes da primeira? Seria possível entender que a construção das

505 Duarte da Ponte Ribeiro & Izaltino José Mendonça de Carvalho. Carta geográfica de uma parte do Império do

Brasil confinante com a Confederação Argentina e a República do Paraguay.1856

506 Ver o capítulo ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’.

507 Correspondência entre Duarte da Ponte Ribeiro e José Maria da Silva Paranhos, Agosto de 1856. AHI, Arquivo

Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 3, Pasta 27.

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duas cartas foi concorrencial ? Quais as diferenças e semelhanças entre as duas cartas e

o que isso implicaria ?

Através do exame da correspondência interna da SNE pudemos verificar que,

pelo menos uma vez, a SNE deliberadamente atuou no sentido de atrasar ou tornar

indisponíveis os recursos para o término da ‘Nova Carta’. No caso, em julho de 1856,

após ser alertado por Ribeiro de que “o único bom gravador disponível” no Arquivo

Militar iria ser empregado na litografia da ‘Nova Carta’, Paranhos contatou o Diretor do

Arquivo Militar, pedindo-lhe que aquele servidor fosse alocado exclusivamente na

litografia da ‘Carta Geográfica’, tornando necessário que a ‘Nova Carta’ fosse impressa

na Litografia Rensburg.508

Ainda, o exame dos Ofícios enviados por Niemeyer a Lima e Silva sugere que a

SNE utilizou sua influência para que os registros da ‘Nova Carta’ correspondessem aos

anseios presentes durante a composição da ‘Carta Geográfica’. Em Ofício de agosto de

1856, Niemeyer justificaria para Lima e Silva o atraso da ‘Nova Carta’ por conta de

ainda estar lhe faltando a coordenação de parte do mapa, “cujo esboço se acha em poder

do Conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro”. Já no Ofício seguinte, Niemeyer relataria a

Lima e Silva ter recebido de Paranhos, por empréstimo, a ‘Carta Geográfica’, “para que

fosse extraído o que convier”.509

Finalmente, pelos Ofícios enviados por Niemeyer a Lima e Silva entre outubro e

dezembro de 1856 compreende-se que, após estarem ultimadas todas as correções e já

estando adicionados os quadros estatísticos, última etapa da construção da carta,

decidir-se-ia, na ultima hora, acrescentar-se uma planta do Rio de Janeiro ao corpo da

carta. Esta adição da planta do Rio de Janeiro resultou num acréscimo às dimensões da

carta e num subseqüente aumento das despesas para a impressão, tornando preciso

aguardar-se sua autorização pelo Ministério dos Negócios da Guerra, após o que ainda

necessitou-se esperar pela aquisição na Europa do restante do papel necessário.510

Por

508 Conforme troca de correspondência entre Duarte da Ponte Ribeiro e José Maria da Silva Paranhos, 22/07/1856.

AHI, Arquivo particular, Lata 286, Maço 3, Pasta 27.

509 Ver Ofícios n° 6 e 7 de Conrado Jacob de Niemeyer para Luís Alves de Lima e Silva, 2/08/1856 e 8/08/1856, in A

‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar pelo Tenente General Marquês de Caxias em

1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre geografia e cartografia realizado no Rio

de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944.

510 Ver Ofícios n° 9, 10 e 13 de Conrado Jacob de Niemeyer para Luís Alves de Lima e Silva, 1/10/1856, 3/11/1856 e

2/03/1857, in A ‘Nova Carta’ Corográfica do Império do Brasil mandada organizar pelo Tenente General Marquês

de Caxias em 1856 Notícia apresentada à II Reunião Pan-Americana de consulta sobre geografia e cartografia

realizado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1944.

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conta desse atraso, o Relatório da SNE onde se incluiu a ‘Carta Geográfica’ como anexo

e que, por conseguinte, circularia apenas no início de 1857, foi impresso antes da ‘Nova

Carta’, constituindo-se, na primeira representação oficial do espaço nacional

reproduzida em escala.

Portanto, podemos supor, através das circunstâncias que explicam o atraso na

impressão da ‘Nova Carta’, que sua construção foi entendida pela SNE como

concorrencial em relação à ‘Carta Geográfica’, mas, por conta desse entendimento,

existiria alguma característica que as distinguisse quanto ao regime da narrativa ?

Nesse sentido, as cartas divergem em três pontos: em primeiro lugar, em relação

à intuição dos limites do espaço nacional. Enquanto a ‘Carta Geográfica’ se atinha à

‘norma narrativa’ e aos propósitos e esforços do novo regime da narração de diminuir

os contenciosos mesmo que ao preço de uma interpretação mais liberal dos limites, a

‘Nova Carta’ registrava limites mais dilatados e, por conseguinte, próximos daqueles da

‘derivação’,511

reativando as diferenças explicitadas na Querela de 1853.

Em segundo lugar, as duas cartas ainda divergem em relação ao repertório

documental utilizado como base de suas composições: enquanto na ‘Nova Carta’ este

repertório consistiu, preferencialmente, em reduções de cartas provinciais produzidas

por Engenheiros Militares, na ‘Carta Geográfica’, à exceção dos trabalhos sobre o

Paraná de João Henrique Elliot e Henrique de Beaurepaire Rohan512

e das plantas

hidrográficas do rio Paraguai de Augusto Leverger, todos as outras fontes de sua

composição eram mapas do século XVIII. Deste modo, enquanto a ‘Carta Geográfica’

remetia à construção do momento, apenas utilizando trabalhos que dissessem respeito

aos registros de seus elementos narrativos, a ‘Nova Carta’ remetia a uma composição

baseada em baseada em critérios que se contrapunham àquela construção e limitavam a

capacidade de operação da narrativa, evidenciando uma reelaboração da ‘derivação’

em torno de argumentos que remetiam ao novo estilo cartográfico e geográfico.

Em terceiro lugar, como recurso retórico, em cada carta foram incluídos outros

trabalhos cartográficos mais pontuais em quadros menores, no caso, visando-se

emblematizar através da parte o todo. Contudo, a objetivação do recurso retórico em

cada uma das cartas visou diferentes finalidades da Vontade: enquanto na ‘Nova Carta’,

511 A respeito da ‘norma narrativa’ e da ‘derivação da norma’ ver, nesta tese, o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao

possível’.

512 Respectivamente, o ‘Mapa Corográfico da Província do Paraná’, de 1855 e o ‘Reconhecimento dos Campos de

Guarapuva’, de 1847-1848.

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sua finalidade era apenas demonstrar a centralidade do Rio de Janeiro em relação ao

território nacional, na ‘Carta Geográfica’ pretendia-se enfatizar a legitimidade mesma

da ‘norma narrativa’. Nesse sentido, na ‘Nova Carta’ foi juntada, como vimos, uma

‘Planta do Rio de Janeiro’, enquanto que na ‘Carta Geográfica’, foi juntado o trabalho

topográfico de Augusto Leverger,513

situado no cerne das controvérsias de limites com o

Paraguai, já que parte do arrazoado brasileiro consistia em tentar demonstrar que o Rio

Branco, base dos limites paraguaios, não passava de uma pequena baía do Rio Paraguai

que havia sido explorada por Leverger e, portanto, não deveria ser considerado nas

discussões entre os dois países. Por conseguinte, a utilização do recurso retórico na

‘Nova Carta’ evidencia a inauguração de novas possibilidades na construção da

narrativa do século XIX, através da inscrição deliberada da operação da narrativa na

representação mesma do Estado.

Portanto, nessa análise determinada pelo exame do regime da narração,

verificamos que a construção do espaço nacional se inicia por volta de 1855, ligada por

seus operadores à ‘norma narrativa’. Podemos entender que também se consolida, desta

vez no novo regime da narração, um repertório ligado à interpretação do arquivo da

SNE, privilegiando uma visão a partir do centro do Estado em detrimento de uma

organização do espaço construída a partir do local. Finalmente, compreendemos que

este repertório estará ainda ligado pelo regime da narração à constituição mesma da

operação da narrativa e à consecução do momento, conforme explicitado no capítulo

anterior.514

A Teoria do Desempenho de Noam Chomsky e a narrativa do século XIX

Conforme observado pela análise anterior, as idéias da ‘visão do espaço a partir

do centro’ e da ‘consolidação de uma construção do espaço nacional’, se tornaram as

partes essenciais da estrutura da narrativa do século XIX. Através da mesma análise

podemos ainda entender que essas idéias se desdobrariam nas práticas do ‘registro da

centralização do Estado’ e da ‘inscrição do Estado no espaço’.

A ascensão destes componentes estruturais da narrativa revela a integração de

uma percepção panóptica do espaço ao novo regime da narração que se consolida nas

513 ‘A Sanga que denominam rio Branco, conforme os reconhecimentos que dela fizeram o Capitão de Fragata

Augusto Leverger em 1846, e o Tenente de Artilharia Francisco Nunes da Cunha em 1855’.

514 Ver nesta tese o capítulo ‘O espelho do jacobina’.

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corografias e na cartografia pelo incremento dos estatutos normatizadores e do controle

sobre aquelas atividades.

Utilizando novamente as idéias de Humboldt e Noam Chomsky acerca da

linguagem, se entendermos que numa comunidade que utilize a mesma língua possa

existir um grupo de membros onde o conhecimento dessa linguagem seja

uniformemente representado, poderíamos distinguir esse grupo como ‘falantes ideais’

[ideal speaker-hearers] e a representação daquele conhecimento como ‘gramática do

lingüista’ [linguist’s grammar].

Assim a ‘gramática da linguagem’ internalizada pelos demais falantes seria

verificada por uma ‘gramática do lingüista’, uma teoria científica, correta apenas

enquanto corresponda à internalização daqueles ‘falantes-ideais’, consistindo numa

teoria explicitamente articulada visando expressar precisamente as regras e princípios da

gramática nas suas mentes. Dir-se-ia então, que a ‘gramática do lingüista’ seria capaz de

gerar a linguagem apenas no sentido de que esta é capaz de determinar que suas

sentenças [sentences of the language] correspondam à ‘gramática da linguagem’, no

caso, através do controle de suas ‘descrições estruturais’ [structural descriptions].

Assim, podemos entender que, na ‘gramática da linguagem’, as sentenças e suas

descrições estruturais [structural descriptions] são geradas de modos diferenciados:

enquanto as sentenças são geradas de modo mais fraco [weakly generate], as suas

descrições estruturais são geradas mais fortemente [strongly generate].515

Contudo, para Chomsky, é necessário ter em mente uma distinção conceitual

fundamental entre a geração das sentenças pela ‘gramática da linguagem’ e a produção

e interpretação das sentenças pelo falante, uma vez que este faz uso dos recursos de sua

própria gramática visando suas necessidades. Este ‘aspecto criativo do uso da

linguagem’ [creative aspect of language use] é uma característica distintiva da espécie

humana516

e que serve para a livre expressão de seus pensamentos, uma vez que é

ilimitada em seus objetivos, não é controlada por estímulos e é utilizável em qualquer

contingência que nosso processo de pensamento possa compreender.

Por conseguinte, teremos de considerar a existência também de uma outra

gramática distinta, presente na mente de cada um daqueles que são capazes de

515 Noam Chomsky, ‘Language and unconscious knowledge’, in Rules and representations. New York: Columbia

University Press, 1978, p. 220-221.

516 Em relação à idéia do ‘aspecto criativo do uso da linguagem’ e seu desenvolvimento, ver nesta tese o capítulo

‘Mapeando o vazio’.

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compreender e interpretar integralmente a ‘gramática da linguagem’ e que sujeitaria a

‘gramática do lingüista’ ao ‘uso criativo da linguagem’.

Esta gramática de cada um dos falantes ideais, que denominaremos doravante de

‘gramática mental’, seria articulada por duas ‘competências’: a ‘competência

gramatical’ [grammatical competence], o conhecimento da forma e do sentido das

sentenças obtidas a partir das estruturas gramaticais; e a ‘competência pragmática’

[pragmatic competence], o conhecimento das condições e modos do uso apropriado em

conformidade com vários propósitos.

Assim, se a ‘gramática do lingüista’ irá caracterizar a linguagem determinando

as propriedades intrínsecas das sentenças através de suas ‘descrições estruturais’ e

determinando a ‘competência gramatical’, a ‘competência pragmática’ é que finalmente

determinará como a linguagem será efetivamente estruturada.

Consequentemente, como a ‘competência pragmática’ advêm do uso criativo da

linguagem por parte do falante ideal a partir de sua ‘gramática mental’ e esta determina

a estruturação efetiva da linguagem, o estudo das competências pode ser feito através da

construção de uma ‘teoria do desempenho’ que deve levar em conta a estrutura da

gramática do ‘falante ideal’ e o modo pelo qual este organizou as experiências.517

Deste modo, consideraremos que a estrutura da narrativa do século XIX foi

constituída pelo exercício das várias ‘competências’ expressas no teatro da narrativa e

que, a partir do novo regime da narração, sua estrutura deve ser estudada em função de

uma ‘teoria do desempenho’ de seus operadores, que delimite e caracterize essas

competências, conforme as idéias expostas na abertura deste capítulo, levando em conta

a idéia da resistência a uma derrota do princípio subjetivo.

Portanto, a inscrição do espaço e a ‘inscrição do Estado no espaço’ foram

constituídas também a partir das experiências e oportunidades dos operadores,

determinando que a estas inscrições correspondam certas características somente

verificáveis a partir de uma ‘linguagem sobre o espaço’ que incorpore as contribuições

desses operadores e que considere a pertinência de suas interpretações da língua.

Por outro lado, entendemos que as partes estruturais da narrativa estreitamente

ligadas a uma descrição do Estado e a um ‘registro da centralização’ foram constituídas

mais fortemente pela ‘gramática do lingüista’ que as sentenças dependentes da

517 Noam Chomsky, ‘Language and unconscious knowledge’, in Rules and representations. New York: Columbia

University Press, 1978, p. 220-225.

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‘gramática mental’, deste modo, compreendemos que a ‘inscrição do Estado no espaço’

através da cartografia foi constituída mais fracamente que a visão do espaço a partir do

centro’ e o ‘registro da centralização do Estado’ nas corografias.

Assim, como primeiro passo para a construção de uma ‘teoria da competência’

na narrativa do século XIX começaremos, a seguir, pela exposição na cartografia e nas

corografias, da ‘visão do espaço a partir do centro’ e do ‘registro da centralização do

Estado’, ou seja, de um espaço constituído a partir da intelecção do Estado e a partir dos

esforços daqueles que o constituíram. Em seguida, passaremos ao estudo da constituição

da ‘inscrição do Estado no espaço’, ou seja, do registro da representação do Estado nas

corografias e na cartografia segundo as características dos seus processos internos e

segundo a competência gramatical e pragmática dos seus operadores.

A visão do espaço a partir do centro e o registro da centralização do Estado

Em relação à ‘visão do espaço a partir do centro’, entendemos que esta possa ser

definida a partir da leitura mais conhecida do panoptismo de Jeremy Bentham, que foi a

realizada por Michel Foucault em seu livro ‘Vigiar e Punir’,518

e que efetivamente

relaciona, como o próprio Bentham,519

a figura arquitetural do panóptico a um princípio

de controle social que automatiza e desindividualiza o poder, entendendo o centro do

panóptico como um lugar de onde a vista se estende continuamente. Então, a partir da

leitura de Foucault, podemos entender que as corografias e a cartografia são lugares do

discurso a partir dos quais o panoptismo se inscreve nas relações de conhecimento e

também instrumentos para que essa prática fosse exercida sobre o espaço.

Além disto, Bentham previa ainda uma segunda utilização do panóptico, no

caso, como um experimento capaz de viabilizar o estudo dos indivíduos através da

observação do desenvolvimento de sua linguagem. Nesse sentido, um indivíduo que

fosse destinado ao panóptico desde o seu nascimento poderia ser testado pela

administração ou subtração metódica de informações e insumos, visando-se, com isso,

conhecer “a genealogia de cada idéia observável” e observar-se e entender-se sua

518 Michel Foucault, ‘O panoptismo’, in Vigiar e Punir. Petrópolis: Ed. Vozes, 1987, p. 162-187.

519 ‘[...] ver-se-á que ele é aplicável, penso eu, a todos e quaisquer estabelecimentos, nos quais, [...] queira-se manter

sob inspeção um certo número de pessoas.’ Jeremy Bentham, O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 17.

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transformação “com o máximo de detalhe”, contando-se que se pudesse conhecer,

numerar e encadear suas origens e construções.520

Os princípios dessa preocupação de Bentham pela organização de uma

‘administração da língua’ seriam também os mesmos de sua idéia de se constituírem leis

capazes de reunir todo o conjunto de leis, no caso, condensadas no ‘Panomion’:

subordinar o indivíduo aos fins últimos do Estado pela observação racional da patologia

da mente humana.521

Assim, as atividades do centro do panóptico visavam também entender

circunscrever e reduzir o desvio e a divergência, podendo-se, a partir de uma análise

contínua do experimento, excluir-se e modificar-se o que não fosse desejável. Podemos,

por conseguinte, entender o panoptismo também enquanto uma reeducação contínua do

indivíduo que visa subordiná-lo a uma entidade única e controlar a inscrição e o registro

de suas representações, compreendendo-se também, neste sentido, o controle da

inscrição das suas idéias e do registro de suas intelecções.

Por conseguinte, a inscrição da ‘visão do espaço a partir do centro’ através da

cartografia e das corografias visava também reavivar continuamente os laços dos

indivíduos com o centro do panóptico, mas, para isto, o centro teria de ser claramente

identificável e a sua identidade necessariamente sempre distinguida. Portanto, a

linguagem seria responsável por dar existência às partes através do registro contínuo

destas junto ao centro, mas, classificando e numerando as partes, distinguindo suas

propriedades e reconduzindo-as ao centro, enfim, enfatizando uma centralidade e

ligando-a às relações de força e soberania.

520 Jeremy Bentham, O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 69.

521 Jeremy Bentham, Pannomial Fragments, Chapter I. ‘Bentham Project’ in http: // www.la.utexas.edu / labyrinth.

FIGURA 25 - O RIO DE JANEIRO NOS ATLAS ESTRANGEIROS:

Detalhe da ‘Carta Laurie’. Fonte: General Chart of The Coasts of Brasil. London: Richard H. Laurie, 1853.

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No caso das cartas gerais brasileiras, durante o novo regime da narração, o

mapa deixaria de ser referenciado pelos meridianos das capitais estrangeiras, ou de

pontos significativos do território, como, por exemplo, o Cabo de Santo Agostinho, para

ser identificado com um centro físico do Estado, a Corte. Por sua vez, na Corte, a

definição exata do Meridiano Zero não seria o centro político nem o centro científico do

Estado, o Senado ou Observatório Imperial, mas, o Pão de Açúcar, um marco

geográfico presente na maior parte das gravuras que eram insertas em detalhe nos atlas

estrangeiros. Em última análise, a referenciação dos mapas no novo regime da narração

enfatizava uma idéia da centralidade, relacionando o centro com a inamovibilidade da

natureza e com o reconhecimento a partir do estrangeiro, ambos intuídos no Pão de

Açúcar (ver Figura 25).

Por outro lado, a idéia da centralidade também pode ser observada na

discrepância dos resultados obtidos nos cálculos da área do território nacional em

relação ao mesmo cálculo das Províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo. Ainda, que

essa discrepância possa ser atribuída a algum erro de cálculo dos autores ou a utilização

de dados defasados, o fato é que essa discrepância é bastante homogênea no tempo,

especialmente se comparada com os dados de duas outras Províncias, Goiás e Bahia,

conforme podemos observar na tabela seguinte:

Tabela: Renato Amado Peixoto — Áreas em Léguas². Fontes: Carta de Jacob Conrado de Niemeyer para o Visconde de São Leopoldo, 20/9/1843 in Geraldo José Pauwels, Algumas notas sobre a gênese dos números para as áreas do Brasil e seus Estados. Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1924, P. 7-8; Thomaz Pompêo de Souza Brasil, Compêndio elementar de Geografia Geral e Especial do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo &

Henrique Laemmert, 1864, 4ª Edição; Candido Mendes de Almeida, Atlas do Império do Brazil. Rio de Janeiro: Litografia do Instituto Philomathico, 1868; O Império do Brasil na Exposição Universal de 1873 em Viena D'áustria. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1873; Diretoria Geral de Estatística, 1920 In Geraldo José Pauwels, Algumas notas sobre a gênese dos números para as áreas do Brasil e seus Estados. Porto Alegre:

Tipografia Do Centro, 1924, P. 7-8.

TABELA 3 — ÁREAS DO BRASIL E DE ALGUMAS PROVÍNCIAS:

Niemayer Compêndio C.Mendes Corografia D. E.

1843 1864 1868 1873 1920

SP 12.000 10.200 10.300 10.120 7.980

RJ 6.200 1.440 2.400 2.400 1.370

BA 14.000 14.836 14.836 14.836 17.090

GO 25.000 25.000 26.000 26.000 21.320

BR 270.000 277.350 291.018 290.047 270.008

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290

Na avaliação de área feita por Niemeyer, embora a superfície do território

brasileiro tenha sido avaliada com uma aproximação bastante grande em relação aos

cálculos feitos em 1920, as superfícies das Províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo

tiveram seu tamanho muito aumentado, respectivamente, em 452% e 50%: ressalte-se,

contudo, que nenhuma das duas Províncias foi representada segundo essas grandezas na

Carta Niemeyer de 1846. Mesmo que ao longo do século XIX a avaliação da superfície

dessas duas Províncias diminua constantemente, conforme o cálculo de outros autores

(Souza Brasil, Candido Mendes e segundo a Corografia de 1873), suas áreas ainda

continuaram bem maiores do que na avaliação de 1920. Já para as outras duas

províncias que figuram na tabela como instrumento de controle (Goiás e Bahia) os

cálculos de suas superfícies apresentam um resultado praticamente constante durante o

século XIX e que é bastante compatível com a avaliação de 1920: poderíamos assim

entender que o ‘registro da centralização do Estado’ implicava em distinguir nos

elementos do espaço uma relação idealizada que se expressava também por uma

idealização de suas grandezas.

O esquadrinhamento do centro antecedeu mesmo a organização de um esforço

semelhante em relação ao espaço nacional: enquanto em 1861 já havia sido requisitada

pelo Ministério da Fazenda a organização de uma carta cadastral da Corte ao Ministério

da Agricultura, a mesma requisição em relação à organização de uma Carta Geral do

Brasil só se daria um ano depois, sendo que, somente em 1870 seria instituída uma

comissão destinada a produzir a Carta Geral do Império.

A prioridade na demanda pela Carta Cadastral pode ser explicada em função das

necessidades do Estado, no caso, a modernização do centro, que podemos entender

como fazendo parte de uma construção da centralidade.

Em primeiro lugar, havia necessidade de uma nova planta do Rio de Janeiro

onde os traçados das ruas fossem mais claros e pudessem servir de base às concessões

de bonde e aos projetos das empresas que visavam outros trabalhos de melhoria urbana.

Enquanto que nas primeiras plantas do Rio de Janeiro os elementos geográficos

foram mais destacados que o traçado urbano, inclusive pela recepção do espaço exterior

à carta no enquadramento, nas novas plantas, coincidindo com o ritmo da centralidade,

o traçado urbano seria mais enfatizado e a natureza tornar-se-ia apenas sua coadjuvante.

Em segundo lugar, era necessário organizar registros cadastrais oficiais, os quais

especificassem os números das casas e os nomes das ruas, especialmente confusos nos

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subúrbios, tendo em vista o desenvolvimento das atividades de crédito bancário, já que

a certidão extraída de um registro geral provaria os direitos de propriedade e facilitaria

as transações.

O território da cidade do Rio de Janeiro era, até então, distinguido pela

experimentação humana, sendo que seus elementos, na maioria das vezes, não possuíam

denominações outorgadas pela administração, mas, designações que se transferiam ou

eram trocadas de acordo com aquela experimentação, como era o caso, por exemplo, do

Beco do Teles, associado com o juiz de órfãos Francisco Teles Barreto de Menezes ou

da Rua de Mata-Cavalos, que esburacada e lamacenta, representava um perigo real para

os cavalos daqueles que por ali transitavam. Do mesmo modo, grandes blocos da cidade

eram reconhecidos pela associação com certos esquemas mentais estabelecidos pelo uso

cotidiano, como, por exemplo, a Rua do Mercado e o Largo do Mercado, assim

designados pela sua localização junto ao mercado da cidade, por conseguinte,

consubstanciando-se uma vivificação do território que não poderia ser transposta para

outros modelos se a respectiva atividade ou comunidade de idéias não fosse também

transportada e estabelecida no centro mesmo da construção cartográfica.

A partir do novo regime da narração, a construção da centralidade desdobrar-

se-ia numa inversão da relação do indivíduo com o território a partir da constituição do

Estado mesmo no centro da construção cartográfica. Nesse sentido, dar-se-ia sua

inscrição no plano privado pela associação de suas atividades e de sua narrativa com as

denominações urbanas, resultando no que poderíamos chamar de uma ‘territorialização’

do indivíduo por conta de sua associação com a inscrição do Estado. Assim, os blocos

urbanos passariam a ser distinguidos em circunscrições, enquanto que, as ruas

passariam a ser numeradas e novamente nomeadas, como, por exemplo, a Rua de Mata-

Cavalos, que teria seu nome trocado para Rua do Riachuelo por conta do registro da

narrativa da Guerra do Paraguai.

Em terceiro lugar, havia ainda a necessidade da expansão da arrecadação de

impostos que deveria fazer-se pela verificação rigorosa do tamanho das propriedades

urbanas e pela definição das freguesias da cidade com vistas a definir o valor da

taxação.

Os trabalhos da ‘Triangulação do Município da Corte’ destinados à confecção

da carta cadastral se iniciaram em 1866 e terminaram em 1874 empregando apenas 6

pessoas, sendo um engenheiro, um desenhista, um ajudante desenhista, dois copistas e

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um servente subordinados à Inspetoria Geral das Obras Públicas. Já em 1868 a

confecção de plantas cadastrais da cidade e subúrbios abrangia 34 folhas ou 22.000.000

m², sendo que esse trabalho não se deu sem a resistência da população, que impedia os

trianguladores de penetrar no interior de algumas casas para levantar a planta dos

quintais, uma vez que estes aumentariam da área dos imóveis. Outros inquilinos e

proprietários se opunham mesmo ao levantamento da planta dos seus prédios,

especialmente aqueles que esperaram a passagem dos trianguladores para poderem

expandir suas construções.

Como ainda em 1868 o esforço de organização da Carta Geral praticamente não

havia saído das intenções por conta “da dificuldade de encontrar desenhistas com

habilitações especiais para este gênero de trabalho e em segundo lugar da carência de

informações indispensáveis para o preenchimento de várias lacunas”,522

em 1870

resolveu-se fundi-lo com a ‘Triangulação do Município da Corte’, formando-se assim a

chamada ‘Comissão da Carta Geral do Império’ sob a direção de Antonio Maria de

Oliveira Bulhões, então engenheiro-chefe da Estrada de Ferro D. Pedro II.

Entretanto, ainda em 1870, os seis funcionários que passaram a se dividir entre a

Carta Cadastral e a Carta Geral receberiam outra tarefa: executar uma planta topográfica

detalhada da Corte que substituísse o antigo trabalho feito pelo Arquivo Militar. Esta

nova planta compreenderia a parte então denominada Intra-muros, ou seja do Arpoador

até Jacarepaguá, mas, por exigência do Ministério da Fazenda, seria incluída nesta mais

uma légua adicional em direção a parte Extra-muros para que se alcançasse Santa Cruz.

Esta exigência nunca seria cumprida, por conta da absoluta falta de meios e recursos,

acarretando que a planta ficasse incompleta quando da extinção da ‘Comissão da Carta

Geral do Império’ em 23 de fevereiro de 1878.523

Entretanto, haja vista a escassez de recursos da Comissão e a necessidade de se

constituir mais rapidamente um ‘registro da centralidade do Estado no espaço’,

conforme explicitaremos mais adiante, foi necessário possibilitar que os objetivos da

Comissão fossem circunscritos pelas iniciativas do novo regime da narração,

522 Relatório do Ministério dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, 1868, p. 10.

523 Em relação à ‘Triangulação do Município da Corte’ ver Relatório do Ministério dos Negócios da Agricultura,

Comércio e Obras Públicas, 1868, p. 10-13; A Exposição de Obras Públicas em 1875. Rio de Janeiro: Tipografia

Acadêmica, 1876, p. 423; José Manoel da Silva, Relatório Final da Seção de Triangulação do Município da Corte.

Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878, p. 5-14 e 37-40.

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constituindo-se aquele registro, por conseguinte, mais fracamente que outros registros

da centralidade, como verificaremos a seguir.

O registro da centralidade do Estado e as novas corografias

‘A visão a partir do centro do espaço’ também seria definida através de

iniciativas destinadas a popularizar as corografias além dos grêmios literários, que

denominaremos de novas corografias. Esta iniciativa, operada pelos próprios ‘literatos’,

compenetrados “da necessidade de ensinar ao povo”, seria então exaltada pela elite

letrada que a entendia como um esforço literário menor, mas, necessário, visando

disseminar o saber e o amor à pátria, “que é o céu do coração dos bons, como o céu é a

pátria da alma dos justos”.524

‘O ensaio corográfico do Brasil’ e as ‘Lições de História do Brasil’, escritas em

1854,525

foram os primeiros exemplares dessa linhagem divulgadora, que estaria então

incumbida da “missão de espalhar as primeiras e mais indispensáveis noções de nossa

história e corografia pela massa da população menos instruída”. Segundo seus pares do

IHGB, aqueles autores o faziam “mais pelo amor de seus concidadãos, do que por glória

própria,” ou antes ainda, convertendo “a glória própria naquele amor”, obra muito pia e

notável, uma vez que “a glória que não se converte em amizade é semente que não

germina, e flama que não aquece.”526

Assim, o conteúdo das novas corografias era um resumo das obras que

constituíam o cânone da narrativa, conforme definido no IHGB, e eram destinadas a um

público menos letrado, “a massa da população menos instruída” através de tiragens mais

baratas e menos volumosas, com uma linguagem acessível, didática e imagética,

destinada até mesmo à instrução infantil: “no berço ainda, e no regaço materno

adormeça o menino ao som das batalhas, ou ouvindo as lendas, e os contos forjados

com as tradições do país, e desde que possa soletrar um nome, soletre-o no livro da

história da terra em que nasceu.”527

524 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVIII, suplemento, 1855, p. 25-26.

525 Alexandre José de Mello & Ignácio Accioli de Cerqueira Silva Moraes. Ensaio Corográfico do Império do Brasil.

Rio de Janeiro: Emp. Typ. P. Brito, 1854; Antônio Alvares Pereira Coruja, Lições de História do Brasil, Rio de

Janeiro: s/editor, 1854.

526 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVIII, suplemento, 1855, p. 24.

527 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVIII, suplemento, 1855, p. 25-26.

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Contudo, como em poucos anos as novas corografias, de um gênero simples,

mas imaginativo, converter-se-iam a um estilo quase catequético, que privilegiava

apenas a repetição e memorização? Por que as novas corografias se constituiriam

exclusivamente num ‘registro da centralidade do Estado’?

Na verdade, esta transformação foi facilitada pela contribuição de uma obra que

pretendia então se filiar à geografia política que começava a ser produzida na Europa e

que era divulgada em anais estatísticos, revistas e tratados. Essa obra, pioneira nessa

área no Brasil, foi o ‘Compêndio elementar de Geografia Geral e especial do Brasil’,

sintomaticamente adotado na década de 1860 pelo Colégio Pedro II e pelos demais

seminários e liceus do Império,528

que também utilizava o cânone definido pelo IHGB

como as novas corografias, mas que, a exemplo das obras européias, se utilizava

também dos relatórios ministeriais e outros dados oficiais.

Por conseguinte, o ‘Compêndio’ possuía uma construção onde, primeiramente, o

território nacional (TN) seria descrito conforme o cânone (D), e depois conforme

qualidades (Q) enquadradas nos princípios geográficos. Depois, cada uma de suas

partes, definidas segundo o critério político, as Províncias (P), seriam descritas pelas

mesmas qualidades anteriores (Q).

A estrutura dessa construção do ‘Compêndio’ (E2) pode ser exemplificada

segundo o seguinte modelo: TN = {D + Q + P} TN = D TN = Q1TN + Q2TN +

etc. TN = P1 + P2 + etc. P1 = Q1P1 + Q2P1 + etc. P2 = Q1P2 + Q2P2 + etc.

Esta relação do todo com as partes foi facilitada pelo modelo então

predominante na geografia européia e que a pretendia conciliar a geografia (G) com a

corografia (C),529

definindo esta última como uma de suas grandezas, contida na

Geografia Geral (GG), mas, por sua vez, contendo a Topografia (T). Segundo este

esquema, adotado pelo ‘Compêndio’, caberia à Geografia Geral descrever “as coisas

principais da terra considerada em sua totalidade”, enquanto que a Corografia relataria

“as coisas principais de cada região”, sobrando para a Topografia o encargo de “descer

às miudezas locais”.530

528 Thomaz Pompêo de Souza Brasil, Compêndio elementar de Geografia Geral e especial do Brasil. Rio de Janeiro:

Eduardo & Henrique Laemmert, 1864, 4ª Edição.

529 A relação entre a Geografia e a Corografia foi trabalhada nesta tese no capítulo ‘A descrição do contemplador’.

530 Thomaz Pompêo de Souza Brasil, Compêndio elementar de Geografia Geral e especial do Brasil. Rio de Janeiro:

Eduardo & Henrique Laemmert, 1864, 4ª Edição, p. 6.

Page 295: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

295

Essa estrutura da construção predominante na geografia européia (E1) pode ser

exemplificada segundo o seguinte modelo: G = {GG C T} GG = C1 + C2 +

etc. C1 = T1 + T2 + etc.

Assim, comparando-se a estrutura do ‘Compêndio’ (E2) com a estrutura do

modelo geográfico (E1), podemos entender que a estrutura de E2 é derivada de E1, se

considerarmos, conforme a idéia da ‘Economia da Derivação e da Representação’ de

Chomsky, que a linguagem é um ‘conjunto de especificações de parâmetros’ [set of

specifications for parameters] e não um sistema de regras para os modelos.531

Assim, a

partir dessa idéia, entendemos que estes parâmetros surgiriam a partir das interações

com certos princípios fixos da gramática, no caso, da estrutura da narrativa: a ‘visão do

espaço a partir do centro’ e o ‘registro da centralização do Estado’.

Portanto, conforme a definição da ‘Economia da Derivação’, entendemos que

nas novas corografias não houve simplesmente uma transformação para um sistema de

regras causador do enrijecimento da sua estrutura, mas que, por um novo ‘conjunto de

especificações de parâmetros’ houve a intelecção da necessidade de se ‘minimizar as

derivações’ [minimazing derivations] que poderiam resultar das novas corografias.532

Por conseguinte, se procurava evitar a divergência diminuindo-se o processo subjetivo,

semelhantemente ao que iria ser operado na cartografia após a consolidação da

‘inscrição do Estado’ e de acordo com a nossa idéia do panóptico de Bentham.

Contudo, para que possamos distinguir o parâmetro da derivação das novas

corografias (E3) produzidas após a publicação do ‘Compêndio’ (E2), precisamos antes

compreender como se deu a intelecção da necessidade de se ‘minimizar as derivações’.

Nesse sentido, se analisarmos a derivação da estrutura de E2 a partir de E1, podemos

distinguir como primeira especificação de parâmetro uma repartição do ‘sistema de

representação’ [D-Structure] em partes menores capazes de se conterem

sucessivamente. Já como segunda especificação de parâmetro, observamos que cada

uma das ‘descrições estruturais’ [Structural Descriptions - SD] dessas partes menores

deve ser obrigatoriamente definida em relação ao ‘sistema de representação’ como um

todo.

531 Noam Chomsky, ‘Some notes on economy of Derivation and Representation’, in The Minimalist Program.

Cambridge: The MIT Press, 2001, p. 129.

532 Ver Noam Chomsky, ‘Some notes on economy of Derivation and Representation’, in The Minimalist Program.

Cambridge: The MIT Press, 2001, p. 138-143.

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296

Conforme essa aproximação em relação ao problema, podemos distinguir, em

relação à derivação da estrutura de E3 a partir de E2, a necessidade de se reduzir o

desvio, diminuindo-se ao máximo o espaço do princípio subjetivo através de uma

delimitação das sentenças [sentences of the language] que poderiam ser geradas. No

caso, as sentenças seriam geradas estritamente em função das qualidades enquadradas

nos princípios geográficos (Q) e hierarquizadas sucessivamente conforme o modelo

então dominante na geografia européia, ou seja, seriam geradas qualidades específicas

do território nacional, depois seriam geradas qualidades específicas das Províncias

relacionadas às qualidades do território nacional.

Por outro lado, havia a necessidade de se distinguir continuamente o registro da

centralidade, em razão das transformações da narrativa e da modernização do Estado, o

que somente poderia se consubstanciar nas corografias através de uma descrição do

território nacional conforme o Cânone (D). Este problema poderia levar,

consequentemente, a se buscar sempre novas intelecções da centralidade em relação ao

Cânone, continuamente se adicionando as novas obras e as antigas corografias que

continuavam sendo resgatadas, especialmente pelo IHGB. Como as novas corografias

destinavam-se a alcançar um público maior e mais disperso no território nacional do que

os modelos corográficos anteriores, especialmente por conta da subvenção do Estado e

de sua distribuição pelas bibliotecas e governos das províncias,533

esperava-se que as

novas corografias atingissem leitores mais propensos a interpretar o espaço a partir de

uma visão local e que, ao mesmo tempo não participassem de um conteúdo gramatical

mínimo (aqui entendido como o conteúdo didático da narrativa).534

Assim, a descrição

do território nacional conforme o Cânone (D), ou seja, a nova intelecção da

centralidade deveria ser apenas desdobrada em relação a cada província, ligando-se

assim cada uma das partes através de uma narração de seu pertencimento ao centro.

A estrutura da construção das novas corografias (E3) pode ser exemplificada

segundo o seguinte modelo: TN = {D + Q + P} {TN = D} {TN = Q1TN + Q2TN

+ etc.} {P1 = DP1 D / P1 = QP1 QTN + etc.} {P2 = DP2 D / P2 = Q1P2

QTN + etc.}

533 Foi o caso, por exemplo da ‘Corografia histórica’ de Mello Moraes, subscrita pela Assembléia Nacional em 1864

e 1866. Ver Alexandre José de Mello Moraes, Corografia histórica, genealógica, nobiliária e política do Império do

Brasil. Rio de Janeiro: Typ. de Pinheiro & Comp, 1866.

534 A respeito da visão local de espaço ver nesta tese o capítulo ‘O mapa antes do território’.

Page 297: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

297

Portanto, mesmo que as sentenças não se tornassem mais curtas, estas deveriam

ser firmemente ligadas à ‘gramática do lingüista’ e administradas segundo uma estrutura

rígida que orientasse sua composição, o que asseguraria que se permitisse a enunciação

das sentenças apenas conforme o registro da centralidade, tornando as novas

corografias meros registros mnemônicos da ‘centralidade do Estado no espaço’ (ver

Tabela 4).

TABELA 4 EXEMPLO DA ESTRUTURA DA ‘NOVA COROGRAFIA’:

Tabela: Renato Amado Peixoto. Fonte: Raul Villa Lobos, Corografia do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Mont’alverne, 1886.

A representação da nação nas Exposições Internacionais

As Exposições Internacionais desempenharam um papel extremamente

importante na formação da identidade cultural das nações européias durante o século

XIX, seja consolidando a imagem da nação junto aos seus cidadãos seja diferenciando

sua imagem das demais representações. Para que isto se tornasse possível, os Estados

que sediaram as Exposições despenderam somas vultuosas para que estas fossem

capazes de atrair grandes públicos: os cinco principais eventos do século XIX, Londres,

em 1851; Paris, em 1855; Londres, em 1872; Viena, em 1873 e Filadélfia, em 1876,

mobilizaram, em média, cerca de sete milhões de visitantes, sendo que, somente as

Exposições de Viena e Filadélfia custaram aos organizadores perto de 22 milhões de

dólares. Nesse sentido, deve-se observar que foram raras as Exposições Internacionais

O BRASIL EM GERAL:

— Descrição física (Limites) (Situação) (Superfície) (Aspecto) (Clima) /Hidrografia (Vertentes) (Baías e Portos) (Rios) / Sistemas de Montanhas / Ilhas / Cabos e Pontas.

— Descrição Política (Noções históricas) (Religião) (Forma de governo) (Divisão administrativa) (Divisão judiciária) (Divisão eclesiástica) (População) (Instrução) / Marinha / Exército / Colonização e Emigração.

PROVÍNCIAS:

— Descrição Física (Limites) (Situação) (Superfície) (Aspecto [Relevo]) (Clima [Salubridade]) / Hidrografia / Orografia.

— Descrição Política (Capital) (Cidades principais) (População) (Força Pública) (Representação Nacional) (Divisão Judiciária) (Divisão Eclesiástica) (Estradas de Ferro) (Faróis) (Agricultura, Comércio e Indústria).

— Produções (Reino Mineral) (Reino Vegetal) (Reino Animal) (Homens ilustres).

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298

que não geraram grandes prejuízos, mesmo que ficassem abertas à visitação, em média,

durante seis meses.535

Cada Exposição era emblematizada por uma estrutura arquitetônica que

destinava-se a rivalizar com as anteriores e caracterizada como uma representação da

em si mesma do Estado que sediava o evento, promovendo-se a integração da arte e da

indústria, destinadas, em sua comunhão, a caracterizar o desenvolvimento espiritual e

material da nação e a personificar seus avanços tecnológicos, dramatizando-se a idéia de

progresso e de civilização.536

Estas idéias destinavam-se a envolver a nação como um todo, soldando num só

os meios rural e urbano, através de um modelo de organização derivado do evento de

Londres em 1851, onde se passou a dividir os produtos expostos por cada país segundo

oito categorizações principais, por sua vez subdivididas em trinta classes, 251 seções e

mais de 3.000 subseções. Estas categorizações principais, conforme o sistema de

Frédéric Le Play, um dos organizadores do evento de Paris em 1855, eram as seguintes:

primeiro, indústrias dedicadas à extração ou produção de materiais não acabados;

segundo, indústrias dedicadas à engenharia mecânica; terceiro, indústrias baseadas em

agentes químicos ou físicos ou relacionadas à ciência e ao ensino; quarto, indústria

relacionadas ao aprendizado de profissões; quinto, manufaturas de produtos minerais;

sexto, manufaturas de tecidos; sétimo, mobiliário, decoração, pintura e música; oitavo,

artes de excelência.537

Cada um dos produtos expostos segundo essa categorização não estava

destinado inicialmente para a venda, mas, disposto nos estandes de cada país admitido à

participação como artefatos fora-de-série, peças consideradas em estado-de-arte e

capazes de, por si só, representarem toda uma faceta da nação, fosse o engenho humano,

fosse a perfeição da natureza, mas que demonstravam, sobretudo, o esforço humano

incentivado pelo Estado ou a capacidade de organização de esforço humano enfeixado

no Estado. Assim, nestes eventos, os visitantes admiravam a capacidade de organização

da diversidade pelo Estado, confrontados com amostras e retratos de um universo que se

535 Conforme informações estatísticas disponíveis em Donald G. Larson Collection on International Expositions and

Fairs, 1851-1940, Henry Madden Library, California State University, in http://www.lib.csufresno.edu /

subjectresources / specialcollections / worldfairs / welcome.html

536 Margarida de Souza Neves, As vitrines do progresso. Rio de Janeiro: Editora PUC-RJ, 1996.

537 Citado com a autorização do autor: Michael J. West, Spectacular ideology: the Expositions Universelles de Paris

and the formation of French Cultural Identity, 1855-1937, Projeto de Pesquisa, Department of Modern Languages,

Carnegie Mellon University, Pittsburg (manuscrito não-publicado), primeiro capítulo: ‘The End’.

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299

estendia muito além da Europa e dos Estados Unidos, consagrando, assim, a habilidade

da tecnologia e da cultura européia em se projetar e em absorver esses novos espaços do

globo, inclusive, através da inclusão de exibições etnográficas, os zoológicos humanos.

Nesse sentido, a Exposição Internacional, era então entendida também como um evento

educativo e de entretenimento, faceta que foi, no caso dos eventos em Paris,

reconhecida, inclusive, pela elite intelectual francesa: escritores como Baudelaire,

Hugo, Flaubert, Maupassant e os irmãos Goncourt, escreveram sobre as Exposições

expressando admiração e divertimento.538

Contudo, os artefatos expostos não se

destinavam apenas à observação desinteressada do público, pois deveriam também ser

legitimados ou não pelo julgamento de uma Comissão de Premiação, que os inseria, a

seguir, no universo do mercado, facilitando e divulgando seus novos atributos —

fabricantes como Schneider, Krupp, Singer e Christofle e produtos como a lâmpada, o

estetoscópio, o rifle e até a Sopa Campbell’s se inseriram no mercado de consumo

graças às Exposições Internacionais.539

Ainda, num momento em que os contatos entre os Estados se tornavam cada vez

mais dinâmicos, graças às crescentes transformações nas comunicações e nas finanças,

as Exposições serviram para que se intensificassem os contatos entre os países e se

possibilitasse a divulgação das suas possibilidades comerciais. Então, a participação do

Brasil nas Exposições Internacionais estava condicionava não apenas à constituição de

uma representação da nação mas também à consolidação de uma percepção de si mesma

conforme os insumos fornecidos pelo ‘saber sobre o espaço’.

Nas Exposições Internacionais, a aceitação de um país como expositor pela

Comissão Organizadora, significava que aquele estava obrigado a orientar sua

participação no evento segundo o sistema de divisão em categorias discernido por

Frédéric Le Play. Assim, a representação da nação nos eventos seria definida pelo modo

como o problema da participação houvesse sido discernido e encaminhado pela

comissão organizadora brasileira, por conseguinte, conforme uma ‘linguagem do

espaço’.

538 Citado com a autorização do autor: Michael J. West, Spectacular ideology: the Expositions Universelles de Paris

and the formation of French Cultural Identity, 1855-1937, Projeto de Pesquisa, Department of Modern Languages,

Carnegie Mellon University, Pittsburg (manuscrito não-publicado), segundo capítulo, ‘1855: Brave New Global

Capital’.

539 Citado com a autorização do autor: Michael J. West, Spectacular ideology: the Expositions Universelles de Paris

and the formation of French Cultural Identity, 1855-1937, Projeto de Pesquisa, Department of Modern Languages,

Carnegie Mellon University, Pittsburg (manuscrito não-publicado), primeiro capítulo, ‘The End’.

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300

Depois da participação no evento de Paris em 1855, ocasião em que o Brasil foi

admitido pela primeira vez numa Exposição Internacional, passou-se a organizar uma

Exposição Nacional antecedendo o evento internacional, de modo que, pudessem ser

coletados e organizados os materiais e produtos destinados à próxima Exposição

Internacional.

Para isto, era definida uma ‘Comissão Diretora da Exposição Nacional’,

presidida por um membro de destaque da realeza, por exemplo, o Duque de Saxe ou o

Conde d’Eu, e composta por sócios do IHGB e figuras de destaque do meio político,

que eram encarregados da Premiação, sendo coadjuvados nas tarefas de organização por

‘Auxiliares Técnicos’, escolhidos dentre engenheiros e especialistas vários. Essa

‘Comissão Diretora da Exposição Nacional’ cedia lugar, por sua vez, a uma ‘Comissão

de Representantes na Exposição’, que era composta por um responsável pela

manutenção do material remetido durante o evento, geralmente um sócio do IHGB, e

por diversos outros representantes, geralmente jovens, filhos de membros preeminentes

da sociedade Imperial, que eram designados para o evento dentro de uma composição

que visava aumentar o seu prestígio interno, fosse através da concessão de Comendas,

então muito disputadas como símbolo de ascensão social, fosse pela oportunidade de

viajar por um longo período ao exterior com parte de seu custo bancada pelos cofres

públicos.

Nesse sentido, a participação brasileira na Exposição de Viena em 1873

(Weltausstellung) seria emblemática, uma vez que todos os membros da ‘Comissão de

Representantes na Exposição’ tomaram o rumo de Paris, tão logo chegaram, sendo que

somente Manuel de Araújo Porto Alegre, que, aliás, recusou sua Comenda, foi obrigado

a permanecer durante sete longos meses junto ao estande brasileiro na Exposição:

Todos passeiam, e todos de altamente serem premiados. Queriam-

me dar uma Comenda e eu pedi para que riscasse o meu nome, prefiro voltar

como vim ao ser menoscabado. O que te deve dar prazer, é que não deixei

abater minha dignidade.540

Além disso, seria ainda desenvolvido um intenso esforço diplomático por parte

de Varnhagen, então ministro plenipotenciário na Áustria, para que o Governo daquele

540 Correspondência entre Manuel de Araújo Porto Alegre e sua esposa, Ana Carolina, por ocasião de sua estada em

Viena, durante a Exposição Internacional de 1873. IHGB, Lata 355, Pasta 18.

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301

país concordasse em condecorar, pelo menos, quatorze membros da representação

brasileira, porquanto somente haviam sido concedidas cinco Comendas para a Comissão

que, no entanto, possuía vinte e três membros.541

Ainda, por conta das características da participação do Brasil nas Exposições, a

construção de uma representação cartográfica e corográfica da nação foi conectada à

‘inscrição do Estado no espaço internacional’ e, como vimos, deveria incluir o registro

da centralidade do Estado e da centralidade no espaço. Podemos, assim, ligar as

iniciativas das comissões organizadoras brasileiras com certas idéias que exemplificam

o ‘saber sobre o espaço’ e que foram esboçadas anteriormente no Conselho de

Estado,542

compreendendo que a representação cartográfica da nação somente poderia

ser satisfeita pelas iniciativas do novo regime da narração.

A participação brasileira nas Exposições Internacionais

A primeira participação do Brasil numa Exposição Internacional se deu em 1855

no evento realizado em Paris (Exposition Universelle), consubstanciando-se através de

uma das idéias de inscrição do Estado no espaço internacional que vimos debatida no

Conselho de Estado, no caso, o pertencimento, pela origem e pelos costumes, a uma

‘comunidade idealizada’ que nos reunia com os países europeus. Assim, a representação

da nação naquele evento decorreria de uma interpretação que assemelhou, segundo o

sistema de categorização de Le Play, a participação brasileira à das nações européias,

decidindo-se então apresentar as realizações de nossa indústria na Exposição.

O relato dessa participação feito pelo representante brasileiro, Guilherme

Schuch, futuro Barão de Capanema, dá conta do estranhamento decorrente dessa

iniciativa: além do desconhecimento demostrado pelos europeus em relação ao Brasil e

de uma completa ausência de meios para suprir essa lacuna, percebeu-se então que o

modelo industrial exibido pelas nações européias sequer poderia ser comparado ao que

o Brasil pretendia exibir:

Brasil está nela dignamente representado - mostra ser país muito

esclarecido por expor velas de sebo, cera estearina e carnaúba, estas últimas

541 Correspondência entre Francisco A. de Varnhagen e B. Franklin Ramiz Galvão, 1873-1874. IHGB, Lata 419,

Pasta 8.

542 Veja-se nesta tese o capítulo ‘O assento central’.

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302

horríveis, dois vasos com flores de escamas já muito rafadas e umas

amostras de chá, dois lenços de crivo ou guardanapos de dessert,

remendados, vê V. Ex.a. que para um soirée nada falta, e soirées são provas

de adiantada civilização, além disso figura a nossa pátria com um chapéu de

palha de 160 rs. todo amarrotado, umas folhas de coqueiro idem, uma

célebre caixinha de costura intitulada ‘Império do Brasil’ contendo umas

meadas de seda o que no Rio causou assombro e para o que aqui ninguém

olha, e por fim há lá exposta uma secretária de pau brasileiro o

Muirapinima, com o endereço do marceneiro em Paris que a fez. E nada

mais consta da terra de Sta. Cruz.543

Segundo Schuch, dever-se-ia ter seguido o exemplo dos demais países

americanos expondo-se produtos que representassem a riqueza natural e cuja divulgação

no evento pudesse representar um incremento no comércio com outras nações. Por

conseguinte, é diante da experiência desse estranhamento no evento que se deve

interpretar a decisão da legação brasileira na França de pedir a exclusão do Brasil da

Exposição Internacional, nem sequer comunicando-a ao representante brasileiro,

expulso do seu estande à baioneta calada sob o seguinte argumento: “Ces bougres! Et

deux ans pour nous dire cette sottise là — a bas leur drapeau.”544

A partir deste acontecimento, decidiu-se pela organização de Exposições

Nacionais que antecedessem as Exposições Internacionais, sendo que o primeiro destes

eventos, realizado na Escola Central do Rio de Janeiro, já receberia a visitação de

cinqüenta mil pessoas. Neste evento seria enfatizada a participação das Províncias,

visando-se selecionar dos produtos por elas enviados, para com estes procurar-se

compor o estande brasileiro na Exposição de Londres (International Exhibition) de

1862, onde, ao contrário do evento anterior, a presença brasileira assemelhar-se-ia, em

sua composição, à participação dos demais países americanos, expondo-se,

principalmente, amostras minerais. Podemos entender que, em função das experiências

anteriores, a representação do Brasil no evento se aproximava agora também de uma

outra idéia de ‘inscrição do Estado no espaço’, no caso, aquela que entendia existir

543 ‘Correspondência do Barão de Capanema descrevendo a vida em Paris e a parte do Brasil na exposição universal

na mesma cidade’, 1855. IHGB, Lata 351, Pasta 37.

544 Tradução livre: ‘Estes bugres! Tiveram dois anos lá para nos dizer esta estupidez - Abaixem sua bandeira.’ Ver

Cartas do Barão de Capanema descrevendo a vida em Paris e a parte do Brasil na exposição universal na mesma

cidade, 1855. IHGB, Lata 351, Pasta 37.

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303

semelhanças entre o Brasil e os demais países da América, levando, por conseguinte, à

necessidade de uma convivência pacífica e à procura de novas oportunidades no espaço

internacional fora daquelas que tradicionalmente defendiam o pertencimento do Brasil a

uma ‘comunidade idealizada’ com a Europa.

Entretanto, já a partir da Exposição de Paris (Exposition Universelle) em 1867,

ganharia corpo uma nova idéia de ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, a qual

procurava distinguir o Brasil dentre as outras nações do continente, buscando uma

‘afirmação nacional’. Nesse sentido, preparar-se-ia para o evento de 1867 tanto uma

corografia quanto um mapa para que fossem distribuídos entre aqueles que

manifestassem ou o desconhecimento ou o interesse em melhor conhecer o Brasil.

A corografia seria denominada de ‘O Império do Brasil na Exposição Universal

em 1867’,545

copiando o modelo e o conteúdo das novas corografias e constituindo-se

no que se poderia chamar de ‘primeira corografia oficial do Brasil’, uma vez que seria

sucessivamente atualizada e aumentada antes de cada Exposição Internacional.

Embora sua estrutura não diferisse muito das novas corografias, duas idéias

sobressaíam da corografia de 1867: primeiramente, se buscava enfatizar a idéia da

grandeza do Brasil em relação ao resto do mundo e à América do Sul: “[O Brasil]

compreende 1/15 da superfície terrestre do globo, 1/5 do novo mundo e mais de 3/7 da

América Meridional”.546

Entretanto, a afirmação dessa grandeza dependia de que sua

aceitação superasse a incredulidade e o desconhecimento do europeu, por conseguinte,

passar-se-ia a utilizar como fonte o cálculo de Alexander Humboldt, dado o prestígio

que seu autor usufruía. Este primeiro cálculo da superfície do Brasil, foi provavelmente

realizado no início da década de 1830 e estimava o território nacional em 6.167.664

Km², ou seja, com um erro a menor de cerca de 2.000.000 de km² em relação aos

cálculos feitos por Niemeyer em 1843 e Thomaz Pompêo de Souza Brasil em 1864,547

os quais, se fossem levados em conta, aumentariam muito as relações de grandeza

descritas no ‘Império do Brasil’ de 1867.

545 O Império do Brasil na Exposição Universal de 1867 em Paris. Rio de Janeiro: Typografia Universal de

Laemmert, 1867.

546 O Império do Brasil na Exposição Universal de 1867 em Paris. Rio de Janeiro: Typografia Universal de

Laemmert, 1867, p. 1.

547 Niemeyer estimou o território nacional em 8.318.512 Km² e Thomaz Pompêo em 8.382.216 Km². Ver Geraldo

José Pauwels, Algumas notas sobre a gênese dos números para as áreas do Brasil e seus Estados. Porto Alegre:

Tipografia do Centro, 1924, p. 7-8.

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304

Em segundo lugar, destacava-se nesta corografia a idéia, retirada de Ayres de

Casal, de que o Brasil constituía um corpo separado fisicamente da América, “uma ilha

oceano-fluvial”, que era enformada pelos rios Tapajós e Paraguai e pela pouca distância

que os separava,548

por conseguinte, o Brasil era constituído geograficamente como um

corpo destacado e diferenciado do restante da América.

Por sua vez, o mapa do Brasil a ser divulgado na Exposição de Paris deveria ser

a carta geral do Brasil que, como visto anteriormente, era uma tarefa que havia sido

destinada ao Ministério da Agricultura desde 1862. Como esta carta geral ainda não

tinha sido sequer composta, o Ministério da Agricultura encaminhou ao Arquivo Militar

a requisição de uma Carta do Império em escala reduzida, de modo que, pelo menos

esse mapa pudesse ser encartado na corografia de 1867. Entretanto, como também não

existia tal carta reduzida no Arquivo Militar, pediu-se a um de seus engenheiros, Pedro

Torquato Xavier de Brito, que cedesse ao Ministério da Agricultura um dos desenhos

que havia feito como exercício da prática cartográfica, no caso, uma redução da ‘Nova

Carta’, doravante chamada de ‘Carta Brito’.

Aceito este arranjo por todas as partes, ordenou-se que os recursos do Arquivo

Militar fossem empregados, inclusive nos finais de semana e feriados, para que, com

urgência, se litografassem e imprimissem 2.000 exemplares da ‘Carta Brito’.549

Entretanto, após um mês, quando o trabalho de litografia da ‘Carta Brito’ já havia sido

terminado e necessitou-se conduzir a matriz de pedra para a sala de impressão, aqueles

que a conduziam deixaram-na cair no meio do caminho, despedaçando e inutilizando

todo o esforço feito pelo Arquivo Militar.550

Por conta deste insucesso, o Ministério da Agricultura decidiu enviar para a

França os 800 exemplares da ‘Nova Carta’ que haviam ficado dez anos estocados no

Arquivo Militar por conta de sua divergência com a ‘Carta Geográfica’. Mas, como

ainda faltavam 1.200 mapas para se completar o total de 2.000 necessários para a

divulgação na Exposição, mandou-se que Brito refizesse em cinco dias todo o serviço

anterior. Como foi impossível terminar a carta nesse prazo, utilizar-se-ia o rascunho

548 O Império do Brasil na Exposição Universal de 1867 em Paris. Rio de Janeiro: Typografia Universal de

Laemmert, 1867, p. 12-13.

549 Pedro Torquato Xavier de Brito, ‘Breve notícia acerca da Carta Corográfica do Império do Brasil’. IHGB, Lata 3,

Pasta 10, documentos anexos 1, 2 e 3.

550 Pedro Torquato Xavier de Brito, ‘Breve notícia acerca da Carta Corográfica do Império do Brasil’. IHGB, Lata 3,

Pasta 10, documentos anexos 4, 5 e 6.

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305

inacabado de Brito para se litografar, assim mesmo, todas as 1.200 cartas restantes. Por

conseguinte, todos os exemplares da ‘Carta Brito’ que foram remetidos a Paris estavam

incompletos, faltando-lhes um pouco de praticamente tudo: os nomes dos rios, muitos

topônimos e várias indicações geográficas.551

Para a Exposição de Viena (Weltausstellung) em 1873, a idéia da ‘afirmação

nacional’ seria mais desenvolvida, inclusive, através da sugestão de Manuel de Araújo

Porto Alegre para que, através da mostra de espécimes da literatura e das artes

brasileiras, fosse demonstrada uma ‘autonomia intelectual’, capaz de permitir a

superação do que chamava de “prejuízos coloniais”.552

Assim, foram levados para a

Exposição vários quadros de Pedro Américo e mandou-se imprimir em Viena toda a

obra de Joaquim Manuel de Macedo em inglês, francês e alemão, cada uma dessas

edições possuindo uma tiragem de 2.000 exemplares a serem distribuídos durante o

evento.553

Ainda, pleitear-se-ia a constituição de um Museu “exclusivamente brasileiro”,

que servisse “de inventário e depósito constante de nossas preciosidades naturais”, um

mostruário da natureza e dos reservatórios da nação que poderiam ser disponibilizados a

qualquer tempo na geração de riquezas pela sua exportação.554

Deste modo, a

participação brasileira na Exposição de Viena prestigiaria iniciativas destinadas a fazer

com que a produção cultural figurasse no evento junto às produções agrícola, mineral e

industrial, tendo-se em vista materializar um registro da nação capaz de distinguí-la das

áreas coloniais pela antigüidade e enraizamento da ‘Civilização’.

Ao mesmo tempo, um dos objetivos centrais da participação do Brasil na

Exposição era a promoção da imigração, entendendo-se ser também necessário

constituir a representação do Brasil enquanto uma nação moderna e aberta a novas

oportunidades. Por conseguinte, já durante a organização da Exposição Nacional que

antecedeu o evento de Viena, começara a ser preparada uma nova versão da corografia

de 1867, desta vez com o objetivo de orientar a imigração. Por esse motivo, uma carta

551 Pedro Torquato Xavier de Brito, ‘Breve notícia acerca da Carta Corográfica do Império do Brasil’. IHGB, Lata 3,

Pasta 10, documentos anexos 7 e 8.

552 ‘Parecer de Manuel de Araújo Porto Alegre à Comissão superior da Exposição Nacional sobre o que lhe pareceu

mais útil nos impressos à mesma remetidos pela Comissão Imperial da Exposição de Viena’. IHGB, Lata 653,

Pasta 26.

553 Correspondência entre Francisco A. de Varnhagen e B. Franklin Ramiz Galvão, 1873-1874. IHGB, Lata 419,

Pasta 8.

554 ‘Parecer de Manuel de Araújo Porto Alegre à Comissão superior da Exposição Nacional sobre o que lhe pareceu

mais útil nos impressos à mesma remetidos pela Comissão Imperial da Exposição de Viena’. IHGB, Lata 653,

Pasta 26.

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306

geral deveria ser encartada nesta corografia junto a outros dois mapas que registravam o

progresso material do Brasil, no caso, um que delineava as linhas de telégrafos e outro

que indicava as Estradas-de-ferro.555

Ao ser novamente designado para essa tarefa, o Diretor do Arquivo Militar

retorquiu que não haveria tempo hábil para que se confeccionasse tal carta geral. Por

conta disso, lembrou-se de oferecer novamente aos organizadores a ‘Carta Brito’ de

1867, desta vez assegurando que ela seria completamente corrigida e que Pedro

Torquato Xavier de Brito seria encarregado pessoalmente da execução deste serviço.

Logo ao início desse trabalho, Pedro Torquato Xavier de Brito verificou que o

seu mapa original não fora corretamente conservado pelo Arquivo Militar, estando

então completamente imprestável para a litografia. Assim, seria necessário empreender

mais uma vez todo o trabalho de redução da ‘Nova Carta’, para que somente depois

fosse empreendido o serviço de litografia que antecedia a impressão.

Ao ser informada do problema, a comissão organizadora julgou que esta nova

redução deveria ser aproveitar os dados referentes às linhas de navegação e às Estradas-

de-ferro, além do que, também se deveria assinalar convenientemente os novos limites

com as nações limítrofes, no caso, segundo a ‘norma narrativa’.

Por conta dessa nova demanda Duarte da Ponte Ribeiro foi convidado para

assessorar os trabalhos da ‘Carta Brito’, mas, ao assumir essa função, declarou ser

impossível trabalhar sobre uma redução que se baseasse na ‘Nova Carta’, por conta dos

muitos erros que aquela continha, entretanto, como Brito já havia aprontado uma grande

parte da redução, Ribeiro ordenou que esse trabalho fosse adaptado às suas

especificações.

Como Brito julgou que o produto resultante dessa adaptação seria incompatível

com o que se pretendia a início, solicitou ao Diretor do Arquivo Militar que fosse

dispensado dos trabalhos da Carta. Tendo sido imediatamente aceita sua dispensa, outro

militar, o Capitão Carlos Nunes de Aguiar, ficou encarregado de atender todas as

solicitações de Ribeiro, transformando, por conseguinte, a redução de Brito conforme o

traçado idealizado por Ribeiro.556

Este produto final, doravante denominado de ‘Carta

555 Ver ‘Linhas da repartição geral dos telégrafos’ e ‘Mapas das ferrovias’ in O Império do Brasil na Exposição

Universal de 1873 em Viena d'Áustria. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1873, p. 203 e 228.

556 Pedro Torquato Xavier de Brito, ‘Breve notícia acerca da Carta Corográfica do Império do Brasil’. IHGB, Lata 3,

Pasta 10, documento anexo 10.

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307

de 1873’, foi litografado e impresso no Arquivo Militar, sendo depois encartado na

corografia distribuída na Exposição de Viena.

Para que seja possível esclarecer melhor este episódio e encadeá-lo com o estudo

da ‘teoria do desempenho’, é importante ressaltar que além das reduções serem produtos

cartográficos dependentes da representação original, numa relação que implica

fidelidade de forma e conteúdo, estas também eram obras de autoria, uma vez que a

transposição de uma proporção a outra e a transcrição correta dos dados dependiam da

perícia de um técnico capaz e acreditado. Embora fosse aceito que esse técnico pudesse

efetuar uma correção dos dados anteriormente inscritos e ainda inscrever novas

informações, normalmente havia um limite às mudanças que poderiam ser

empreendidas, após o que poderiam se consideravam desvirtuados tanto a escala do

mapa quanto a localização dos pontos geográficos. Portanto, mesmo que fosse

considerado normal o descarte de certos elementos geográficos durante o processo de

transcrição ou que se inserissem certos quadros no corpo do mapa, modificações de

grande monta eram consideradas, via de regra, incompatíveis tanto com o rigor

cartográfico quanto com a condição da autoria.

No caso da ‘Carta de 1873’, por exemplo, as mudanças impostas por Ribeiro na

redução original acabaram, inclusive, criando-se uma alteração do objeto não prevista

por seus operadores,557

como pode ser verificado através do resultado dos cálculos da

superfície do território nacional que foram feitos sobre a leitura do mapa. Este resultado,

obtido pela diretoria geral de estatística, foi então divulgado na corografia de 1873: ao

lado da área atribuída a Humboldt, 7.952.344 Km², se registrava um número

verdadeiramente superlativo — 12.634.477 Km².558

A Teoria do Desempenho pelos trabalhos de Duarte da Ponte Ribeiro

Conforme visto, a ‘inscrição do Estado no espaço’ foi também constituída em

torno de uma ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, determinada por certas

interpretações do ‘saber sobre o espaço’. Nesse sentido, observe-se ainda que as

iniciativas destinadas a inscrever o Estado dependeram de certos objetivos e estratégias

557 Ver o capítulo ‘O espelho do Jacobina’.

558 O Império do Brasil na Exposição Universal de 1873 em Viena d'Áustria. Rio de Janeiro: Typografia Nacional,

1873, p. 5-6.

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condicionados pela disponibilidade de recursos e esforços, o que enfatiza a importância

do processo interno.

Por este motivo, a ênfase no estudo dessas iniciativas através de uma ‘teoria do

desempenho’ tem como propósito situar as tensões entre a Vontade dos operadores e a

interesses do Estado na ‘inscrição do Estado no espaço’ através da idéia da resistência

do princípio subjetivo. Assim, nesta ‘teoria do desempenho’ buscaremos privilegiar o

entendimento do processo interno da cartografia, ou seja, suas técnicas,

condicionamentos e características, buscando distinguir na ‘construção do espaço

nacional’ uma ‘linguagem do espaço’ que justifique, no próximo capítulo, a pertinência

da idéia de Schelling sobre a Mitologia, no caso, para que se discuta a constituição de

uma ‘Mitologia do espaço nacional’.

Identificados nossos propósitos na construção de uma ‘teoria do desempenho’,

falta-nos então explicitar as questões a serem perseguidas durante essa construção, a

saber: identificar uma estrutura da ‘gramática do falante ideal’; distinguir o modo como

este ‘falante ideal’ organizou a estrutura de sua gramática em relação às suas

experiências; demonstrar e caracterizar a modificação da ‘gramática do lingüista’ em

função da ‘gramática do falante ideal’.

Definidas as questões a serem perseguidas na construção de uma ‘teoria do

desempenho’, determinaremos que o ‘falante ideal’ sobre o qual procederemos a

construção desta teoria será Duarte da Ponte Ribeiro. Decidimos concentrar os esforços

sobre este ‘falante ideal’, uma vez que somente por meio dele poderíamos demonstrar

integralmente modificações na ‘gramática do lingüista’ que caracterizassem uma

resistência do princípio subjetivo através dos dois instrumentos de leitura utilizados em

nosso trabalho, a cartografia e as corografias.

Neste sentido, a idéia Romântica da construção da representação na linguagem,

conforme Humboldt e Chomsky, nos permitirá desdobrar e conectar o problema da

‘linguagem do espaço’ em direção ao problema da representação na cartografia e

corografia, no caso, atendido a partir de Schopenhauer e Schelling, para que, no

próximo capítulo possamos desdobrar ambos os problemas em direção ao problema da

representação do Mito, segundo a teorização de Schelling.

O primeiro objeto de nossa investigação será a participação de Ribeiro nas

discussões do Terceiro Conselho de Estado ainda na década de 1840, quando atuaria

Page 309: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

309

enquanto consultor da SJNE.559

Nestas discussões, o pensamento das diferentes idéias

da ‘inscrição do Estado no espaço’ e o legado da participação de José Feliciano

Fernandes Pinheiro no Segundo Conselho de Estado, seriam examinados sobre os

principais problemas de política externa, então relativos à participação brasileira na

questão do Prata e, no caso, especificamente sobre a questão de limites com o Uruguai.

Nesse sentido, um dos trabalhos de Ribeiro, o ‘Memorando 37’, é emblemático para

nossa investigação, pois nos permite iniciar as investigações para a construção da ‘teoria

do desempenho’.

O ‘Memorando 37’ foi escrito no ano de 1847 com o objetivo de servir como

orientação à SNE para as conversações de limites com os representantes da República

do Uruguai., já que cabia a Ribeiro, após reunir as opiniões dos Conselheiros que

compunham a SJNE, elaborar sobre estas um documento que integrasse também suas

contribuições e seus conhecimentos sobre a questão. A partir dessas opiniões e dos

pontos de vista do Ministro dos Negócios Exteriores, Ribeiro escreveria uma memória e

compôs um mapa, no qual as opiniões da SJNE foram relacionadas com as

contribuições da SNE por meio de símbolos e recursos retóricos, tornando a leitura do

texto escrito, assim, dependente de uma leitura do texto gráfico (ver a Figura 26).560

Observe-se que Ribeiro representaria neste mapa o espaço do Rio Grande do Sul

segundo uma orientação cartográfica diferente daquela utilizada pela cartografia da

época, utilizando certos recursos para transformar suas escalas, destacando

determinados elementos geográficos e registrando seus topônimos segundo a utilização

de rotinas anormais na cartografia.

Assim, a orientação do chamado ‘Mapa do Rio Grande’, ao contrário de

praticamente todas os outras cartas do século XIX, não foi feita pelo Norte, mas pelo

Sul, representando, no caso, o espaço nacional, literalmente, de cabeça para baixo. Essa

orientação heterodoxa demonstraria, em nosso entender, uma intelecção da ‘inscrição

do espaço’ por parte de Ribeiro que seria agregada à sua ‘gramática mental’ e que se

produziria a partir da intuição dos problemas da política externa através das discussões

no Conselho de Estado. Analisando esta intelecção a partir de uma interpretação

559 Veja-se, nesta tese, o capítulo ‘O assento central’.

560 Ver as implicações dessa construção que denominamos texto-mapa, no capítulo ‘O espelho do Jacobina’.

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310

iconológica e semiológica,561

podemos entender que sua intenção seria relacionar o

território situado fora do enquadramento do mapa, a região do Prata, como a real

preocupação da ‘inscrição do Estado no espaço’.

Veja-se também que, relacionando-se com ainda a intuição das discussões, o

espaço da República do Uruguai foi representado com uma superfície bem menor da

que também era usual, por conta de uma transformação da escala do mapa que

acentuava tanto a curvatura do rio Uruguai quanto a inclinação da costa em direção ao

interior. Embora esta inclinação fosse um problema comum na cartografia do início do

XIX, por conta do problema da medição das longitudes, Ribeiro aumentaria ainda mais

esta inclinação no mapa, possibilitando materializar-se, assim, uma representação da

idéia do espaço uruguaio como que a desligar-se do espaço do Rio Grande, construindo

a impressão deste ter sido arrancado por uma ação centrífuga originada no Prata.

Contudo, Ribeiro realizaria sobre esta intuição uma outra intelecção da

‘inscrição do espaço’: no território do Uruguai, o Rio Negro foi inscrito

deliberadamente como um elemento organizador do espaço, através do prolongamento

exagerado de seus afluentes em direção ao centro mesmo do território do Rio Grande do

Sul. No caso, esta inscrição amplifica a idéia da drenagem fluvial, possibilitando

materializar-se uma representação da idéia de penetração no espaço brasileiro e de sua

subsequente absorção pelo território situado fora do enquadramento.

561 Quanto às definições que utilizaremos a seguir na interpretação semiológica e iconológica do ‘Mapa do Rio

Grande’, ver nesta tese o capítulo ‘Mapeando o vazio’.

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Em outra intuição das discussões no Conselho de Estado, certos topônimos do

território inscrito foram registrados numa quebra da rotina cartográfica, a saber, esses

topônimos foram registrados ao contrário da orientação do mapa, ou seja, de cabeça

para baixo. Este registro inusitado foi justamente o das áreas onde haviam se

estabelecido brasileiros, ou seja, em que se configurava o uti possidetis, mas que haviam

sido entendidas pela maioria dos conselheiros como fazendo parte do território

uruguaio. Entretanto, uma outra intelecção seria feita por Ribeiro a partir deste registro:

dois dos topônimos que deveriam ter acompanhado a quebra da rotina topográfica

foram registrados conforme a rotina, no caso, o registro das cidades de Bagé e Alegrete

foi feito de cabeça para cima, por conseguinte, compreende-se que Ribeiro sugeria

através da composição do mapa que se deveria contrariar a opinião predominante na

discussão, mantendo-se estas cidades no interior do espaço nacional.

Cartografia: Renato Amado Peixoto, redução do mapa anexo ao 'Memorando 37'. AHI, Arquivo Particular de Duarte

da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 4, Pasta 3.

FIGURA 26 - 'MAPA DO RIO GRANDE' DE DUARTE DA PONTE RIBEIRO.

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Assim, podemos entender que, na ‘gramática mental’ de Ribeiro, o Prata foi

interpretado como um espaço além das possibilidades brasileiras, que, ao nortear as

iniciativas de política externa, minaria os recursos de um território maior, o Rio Grande

do Sul, em detrimento de um pequeno espaço, o Uruguai. Por conseguinte, dever-se-ia

privilegiar na discussão dos limites uma interpretação do espaço que então se

consolidava na ‘linguagem do espaço’ em torno do conceito do uti possidetis.

Finalmente, quando Ribeiro inscreve no mapa duas sugestões de limites por

meio de linhas coloridas, no caso, as opiniões de Bernardo Pereira de Vasconcelos e de

Ernesto Ferreira França, estas são ligadas ao registro de três outros elementos

geográficos, as ilhas de Castilhos Grandes, as ilhas de Castilhos Pequenos e a

“Cuchilera Geral do Rio Grande”. O registro destes elementos deve ser interpretado

segundo o sentido de uma interpretação iconológica: as ilhas eram antigos marcos da

reivindicação portuguesa sobre o litoral, enquanto que a ‘Cuchilera’ era o limite mais

natural de uma região que carecia desses marcos geográficos. Assim, a sugestão de

Vasconcellos apesar de acompanhar antigas reivindicações contrariava o sentido dos

limites naturais, considerado na linha de limites de França. Pode-se ainda fazer uma

analise semiológica da inscrição dessas sugestões a partir da interpretação anterior: a

opinião de Vasconcelos seria apontada em vermelho, ou seja, negativamente, enquanto

que a opinião de França seria apontada em azul, ou seja, positivamente. Note-se que a

linha do Tratado de Santo Ildefonso foi registrada como a base dos limites, sendo que

esse registro não foi feito em cores por Ribeiro, mas utilizando-se de pequenas cruzes, o

que dava ainda mais destaque ao colorido das inscrições anteriores (em nossa redução

do ‘Mapa do Rio Grande’ utilizamos o pontilhado verde para salientar os demais

aspectos da interpretação do mapa).

Portanto, na ‘gramática mental’ de Ribeiro, a ‘inscrição do Estado no espaço’

não deveria depender das antigas reivindicações de limites mas apenas ser constituída

segundo a interpretação mais vantajosa à consolidação do Estado.

O segundo objeto de nossa investigação será a participação de Ribeiro nos

aspectos que envolveram o Parecer de Alexander Von Humboldt acerca da posição

brasileira nas negociações do tratado de limites negociado entre o Brasil, a Venezuela e

Nova Granada em 1854.562

Esse Parecer, que foi divulgado pela SNE enquanto

corroborando as pretensões brasileiras, na verdade era necessário apenas para fortalecer

562 Ver AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Documento 2.

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a posição do Governo contra os críticos que no Brasil entendiam aquele Tratado como

mais uma cessão do território nacional que apenas endossava as reivindicações

venezuelanas, abrindo mão de territórios mais avançados e que até então eram

considerados como fazendo parte do espaço nacional, no caso, o Canal Cassiquiari e o

alto Rio Negro.

No caso, Ribeiro fora o responsável por avalizar junto ao Conselho de Estado e

na SNE os defensores do Tratado, lançando mão para isso da documentação colonial

que havia reunido no Arquivo da SNE. Através desses documentos Ribeiro demonstrava

que Portugal já havia entendido ser necessário abrir mão das pretensões a limites mais

avançados e considerados naturais no Rio Negro para em troca garantir pacificamente

os direitos à divisão de águas na região do Rio Branco.563

Após a experiência do Parecer e depois de consolidar no centro do processo de

inscrição do espaço nacional a construção do momento a partir do Arquivo da SNE,

Ribeiro passaria a somente evocar Humboldt e os demais exploradores estrangeiros do

século XVIII e XIX na medida em que estes corroborassem as informações e opiniões

coloniais, discriminando aqueles cientistas como meros repetidores de autores

portugueses e brasileiros:

Os mapas geográficos do Brasil feitos por estrangeiros, não são os

mais próprios a consultas para conhecer o território do Brasil de modo a

poder ser exibido em um Atlas categórico. Mesmo os hidrográficos da nossa

costa levantados por eles para servir à navegação, pouco tem adiantado [...].

Alguma coisa nova em geografia se deve a La Condamine ainda que

bastante desfigurada, e um pouco a Humboldt. Neste ramo de conhecimento

repetiu Spix, e Martius os que os nossos geógrafos tinham adquirido.

Castelnau referiu o que era por nós sabido: outro tanto fizeram Herndon e

Gibbon, como confessaram nos Relatórios aos seus Governos; e até

Quevedo se convenceu de que só era novo para ele o conhecimento que quis

dar do rio Madeira e das suas cabeceiras.564

563 Carta de João Pereira Caldas para Martinho de Melo e Castro, em 27/06/1784. AHI, Arquivo Particular de Duarte

da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 6, Pasta 8.

564 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Memória n° 134 - 2’. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 288,

Maço 2.

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Assim, os juízos desses exploradores seriam utilizados para apenas exaltar o

saber obtido no âmbito dos esforços governamentais ou que estava contido no Arquivo

da SNE, como foi, por exemplo, o caso do elogio de Humboldt ao ‘Plano geográfico do

Rio Branco’ composto por Antonio Pires da Silva Pontes Leme.565

A opinião de

Alexander von Humboldt, que considerou esse mapa como tendo sido melhor executado

que o de muitas áreas da Europa, seria repetida inúmeras vezes tanto no IHGB quanto

pela SNE, sendo então utilizada fora de seu contexto como um elogio a toda a

cartografia portuguesa do século XVIII, no caso, diligentemente coletada por Ribeiro.

Na verdade, através dessa comparação, Alexander von Humboldt apenas lamentava ter

sido despendido tanto esforço numa região completamente inóspita em lugar de

empregá-lo em áreas povoadas.

Esse libelo contra os viajantes estrangeiros e às suas obras se tornaria comum

também no IHGB, onde, inclusive, em 1856, se decidiu criar uma ‘Comissão de

exploração do interior do Brasil’ por conta da “multidão de absurdos, de incongruências

e contradições, e não poucas vezes de imerecidas injúrias, com que desfiguram e

caluniam o Brasil homens, que escondem o que vêem, que improvisam o que não existe,

e que para escrever invocam a musa da mentira.”566

Portanto, o descrédito dos autores estrangeiros somado com a deficiência de

trabalhos nacionais sobre grande parte do território, conduziu Ribeiro a criticar e

corrigir, citando suas fontes, o saber científico personificado naqueles viajantes. Por

conseguinte, seja na confecção das suas cartas parciais, seja nas cartas gerais, como na

‘Carta Brito’, os trabalhos dos engenheiros foram, menosprezados e, muitas vezes,

corrigidos por Ribeiro mesmo que de memória.

O terceiro objeto de nossa investigação será a produção cartográfica de Ribeiro,

inserida no esforço do novo regime da narração,567

conforme já foi feito nesta tese

através do exame da ‘Carta Geográfica’. Assim, com o propósito de equiparar esta

nossa investigação com o estudo anterior da ‘Carta Geográfica’, distinguiremos agora

apenas os mapas de Ribeiro que foram litografados, ou seja, aqueles que também

tinham, como a ‘Carta Geográfica’, a divulgação por finalidade última.

565 Antonio Pires da Silva Pontes Leme, Plano geográfico do Rio Branco e dos rios Uraricapará, Majari, Parimé,

Tucutú e Mahu; que nele desaguam, 1781.

566 Ver Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XVIII, suplemento, 1855, p. 28; Revista do

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XIX, suplemento, 1856, p. 11-82.

567 Ver nesta tese, o capítulo ‘O espelho do Jacobina’.

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O primeiro destes trabalhos a ser analisado é o ‘Mapa da Fronteira Norte’ de

1863, cuja tiragem foi de quinhentos exemplares e que também ligado por Ribeiro a um

texto produzido para a SNE, no caso, a ‘Memória 103’. No ‘Mapa da Fronteira Norte’,

apenas 18% dos mapas utilizados como fontes fossem de autores estrangeiros, contra

10% de brasileiros do século XIX e 72% provenientes da cartografia colonial, sendo que

estes últimos, segundo Ribeiro, não podiam ser postergados “pelas opiniões dos sábios

Condamine, Humboldt, e outros, quando estas se referem a territórios onde eles não

estiveram [e] descreveram só por informações.”568

No argumento de Ribeiro somente as

fontes coloniais e os esforços de exploradores brasileiros contemporâneos possuíam

legitimidade, uma vez que estavam relacionadas ao exame do território, sendo que, esta

legitimidade podia ser transferida para o mapa através de um esforço de síntese e

compilação. Por conseguinte, o ‘Mapa da Fronteira Norte’, demonstrava que o Brasil

possuía legitimamente direitos “consignados em tratados ou em virtude de posses

adquiridas” e que seu exame das fontes permitia abandonar-se “como insustentáveis as

antigas pretensões”, já que não condiziam com aquelas fontes.569

Nesse sentido, a lista completa das fontes do ‘Mapa da Fronteira Norte’ foi

publicada, por sugestão de Ribeiro, nos jornais de maior circulação do Rio de Janeiro

junto com uma ‘Exposição Explicativa’ dos motivos da publicação do Mapa, tornando

explícito o propósito de consolidar esta representação do espaço nacional contra as

“opiniões desvairadas dos nacionais e estrangeiros”.570

Esta iniciativa visava, por um

lado, as pretensões territoriais da Colômbia sobre grande parte da Província do

Amazonas e por outro, a derivação da norma narrativa571

que se consolidara no IHGB.

Neste instituto, a ‘Comissão de Geografia’ fora ocupada por elementos que, se não eram

antagônicos ao novo regime da narração, também não lhe eram simpáticos. Henrique

de Beaurepaire Rohan, Niemeyer, Pedro Torquato Xavier de Brito, Cândido Mendes de

Almeida, eram então sócios ativos do IHGB e haviam feito do Instituto uma tribuna

contra a construção do espaço operada pela SNE.

568 AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 288, Maço 2.

569 Exposição do Mapa da Fronteira Norte, citada in A Exposição de Obras Públicas em 1875. Rio de Janeiro:

Tipografia Acadêmica, 1876, p. 446-450.

570 'Carta de Duarte da Ponte Ribeiro para Miguel Calmon du Pin e Almeida', 1863. AHI, Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço 5, Pasta 1.

571 Ver nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.

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316

O segundo dos trabalhos litografados de Ribeiro a ser analisado é na realidade

um conjunto composto por três mapas: o ‘Mapa especial da fronteira do Brasil com as

Repúblicas do Peru, Nova Granada e Venezuela’, o ‘Ajuste pelo Tratado de 1750’ e o

‘Borrador Topográfico’. Este conjunto teve uma tiragem de 1.200 exemplares e também

estava ligado a um texto produzido para a SNE, a ‘Memória 151’ que foi desdobrada em

outro texto, as ‘Razões explicativas’, o qual foi juntado com o conjunto de mapas ao

Relatório da SNE de 1870.

Pela primeira vez, Ribeiro utilizaria para efeito da sua argumentação, comparar

um mapa de sua autoria com dois outros velhos mapas coloniais, no caso, visando

articular a defesa das pretensões brasileiras contra as reivindicações de limites

colombianas, baseadas no Tratado de Tordesilhas e seus desdobramentos, representados

numa carta geral da Colômbia.

Primeiramente, através das ‘Razões Explicativas’, Ribeiro buscaria demonstrar

que a legitimidade dos mapas coloniais estaria assegurada junto às duas partes porque

naqueles se consubstanciava o pensamento que embasara os acordos entre as antigas

Metrópoles. Portanto, o ‘Ajuste pelo Tratado de 1750’ e o ‘Borrador Topográfico’,

representando respectivamente o Tratado de Madri e o Tratado de Santo Ildefonso,

deveriam servir como “auxiliares” para se interpretar e conhecer o pensamento de

Portugal e Espanha. Depois de assegurada essa legitimidade, buscava-se encontrar os

princípios e idéias do pensamento das Metrópoles através daqueles “auxiliares” e

transportá-los para o ‘Mapa Especial’, para que fossem adequados aos novos

conhecimentos cartográficos. Finalmente, no ‘Mapa Especial’ seria demonstrado que o

princípio da ‘Divisão de Águas’, que separava o território das Metrópoles através das

bacias hidrográficas, reservava para o Brasil o domínio sobre a Bacia Amazônica,

permitindo que seus limites fossem estendidos praticamente até a cidade de Bogotá,

mas, como estava demonstrado sobre o mapa, o Brasil abria mão desse velho direito em

função de fronteiras mais razoáveis. Deste modo, através da inscrição da idéia que fora

defendida pela Espanha em seguida às demarcações do Tratado de Santo Ildefonso, a

‘Linha de Requeña’, demonstrava-se no ‘Mapa Especial’ que aquela Metrópole havia

sido mais comedida que a própria Colômbia (ver Figura 27). Portanto, a argumentação

de Ribeiro visava demonstrar a extravagância das proposições colombianas em

contraste com a reserva da posição brasileira.

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317

Ainda, para que fosse possível contestar a argumentação colombiana, Ribeiro

articula em profundidade, também pela primeira vez, a construção de uma ‘Mitologia do

espaço nacional’, que se basearia numa “expansão natural dos povos”, a saber, que o

condicionalismo geográfico determinaria a conquista e a posse do território pelo

colonizador, no caso, consolidada pelos tratados do setecentos. A demonstração destes

argumentos foi desdobrada nos seguintes passos: como a “expansão natural dos povos”

erradicara a linha de Tordesilhas, esta foi consumada em sua substância pelo Tratado de

Madri através da “usucapião” (Ribeiro evita utilizar a idéia do uti possidetis em virtude

do diferente entendimento dado a esta pela Colômbia), finalmente, a “expansão natural

dos povos” estabeleceria, racionalmente, determinados princípios e certas idéias, que

seriam registrados no Tratado de Santo Ildefonso.572

572 Duarte da Ponte Ribeiro, 'Razões Explicativas dos mapas anexos à presente exposição sobre os limites do Império

do Brasil com a República de Nova granada, hoje Estados Unidos de Colômbia' in Relatório da Secretaria dos

Negócios Estrangeiros. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1870.

FIGURA 27 'MAPA ESPECIAL' DE DUARTE DA PONTE RIBEIRO

Cartografia: Renato Amado Peixoto, redução do ‘Mapa espacial’ com seleção de elementos. Fonte: Relatório da Secretaria dos Negócios Estrangeiros, 1870.

Page 318: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

318

Portanto, podemos compreender que a argumentação de Ribeiro deixou de

pertencer apenas à lógica do processo diplomático e da ‘gramática do lingüista’ para

identificar-se com os esquemas anteriormente recolhidos pela sua experiência, passando

a ser expressos segundo a ‘linguagem do espaço’ nesta oportunidade. Para Ribeiro, a

cartografia, a história cartográfica e a história pátria confundiam-se enquanto um

mesmo instrumento da argumentação que situava-se não mais em continuidade, mas em

contigüidade com a diplomacia: as soluções e os critérios de escolha de Ribeiro

remetem agora à uma nova estruturação da ‘gramática da linguagem’, determinada pelo

‘uso criativo da linguagem’ articulado pela sua ‘gramática mental’.

O terceiro trabalho litografado de Ribeiro não será propriamente analisado, mas

introduzido neste estudo de modo a podermos começar a demonstrar a caracterização e

a modificação da 'gramática do lingüista' em função da 'gramática mental' de Ribeiro.

Este trabalho, a ‘Carta da fronteira do Brasil com a República do Paraguai’ de

1872, teve uma tiragem de 2.300 exemplares e também estava ligado a um texto

produzido para a SNE, no caso, a ‘Memória 167 C’. Esta carta, que tinha o objetivo

declarado de mostrar a linha de fronteira conforme havia sido estipulada pelo Tratado

de 9 de janeiro de 1872, nada mais é que a atualização da ‘Carta Geográfica’ de 1856,

repetindo seus traçados e suas fontes, à exceção de algumas poucas áreas no interior

daquele país que foram inscritas no mapa a partir de trabalhos executados durante a

Guerra do Paraguai, ironicamente, quando se perseguia Solano Lopez.573

Contudo, outros textos conexos escritos por Duarte da Ponte Ribeiro, no caso, os

‘Limites do Brasil com o Paraguai’ e a ‘Exposição da Carta da Fronteira’,574

explicitam

que as fontes utilizadas para a composição da ‘Carta da Fronteira’ eram, na verdade,

parte de um esforço antigo da Metrópole visando o esquadrinhamento do território

brasileiro, por conseguinte, Ribeiro instituía suas fontes como documentos formadores

da própria nacionalidade, com a ‘Carta da Fronteira’ servindo não apenas para

confirmar uma compreensão do espaço, mas também para afirmar todo um saber

compreendido no Arquivo da SNE.

573 Exposição da ‘Carta da Fronteira’ in A Exposição de Obras Públicas em 1875. Rio de Janeiro: Tipografia

Acadêmica, 1876, p. 442.

574 Duarte da Ponte Ribeiro, 'Limites do Brasil com o Paraguai', in Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, tomo XXXV, n° 45, parte II, 1872; Exposição da ‘Carta da Fronteira’ in A Exposição de Obras Públicas

em 1875. Rio de Janeiro: Tipografia Acadêmica, 1876, p. 439-445.

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Exemplarmente, este trabalho de Ribeiro receberia prioridade de execução sobre

a própria ‘Carta do Império do Brasil: a ‘Carta da Fronteira’ foi litografada e impressa

pelos mesmos seis funcionários que desde 1870 se dividiam entre a Carta Cadastral, a

Carta Geral e ainda executavam a Planta Topográfica da Corte.

A Carta do Império do Brasil de 1875

Vimos que, desde 1867, a participação do Brasil nas Exposições internacionais

passou a incluir em lugar central uma carta geral do Brasil e uma corografia oficial,

buscando com isso se fazer reconhecer e, ao mesmo tempo, legitimar uma ‘inscrição do

Espaço no espaço’.

Antes disso, acompanhamos que desde 1862 havia sido determinada a

organização de uma ‘Carta Geral do Brasil’, e que, em 1870 esse esforço seria reunido

ao da ‘Comissão da Carta Cadastral’, no âmbito da Secretaria da Agricultura. Assim, em

1873, ano em que se realizou a Exposição de Viena, embora já existisse uma corografia

oficial organizada e já houvesse sido iniciado o esforço de organização da ‘Carta Geral

do Brasil’, o mapa que seria destinado à Exposição de Viena, a exemplo da ‘Carta

Brito’ de 1867, foi ainda o resultado de uma iniciativa extraordinária, que, no caso,

resultou na ‘Carta de 1873’, organizada no Arquivo Militar e terminada sob a

intervenção de Ribeiro.

Por outro lado, sabemos também que, desde 1872, já existia uma forte

ascendência de Ribeiro sobre a ‘Comissão da Carta Geral do Império’, capaz de lhe

permitir, inclusive, interromper os vários afazeres de seus integrantes para que estes

concluíssem sua ‘Carta da Fronteira’. Como explicar a existência dessa convergência de

interesses e desses campos de atuação?

Em busca dessa explicação precisamos retroceder até 1853 quando na SNE já se

entendia ser necessário impedir que se formasse um pensamento de espaço local

divergente de uma ‘visão do espaço a partir do centro’. Nesse sentido, se compreendeu

ser necessário consolidar essa ‘visão central do espaço’ através do estabelecimento de

uma comunicação regular e uniforme com os Presidentes das Províncias, e que esta

deveria ser reforçada quando da transição dos governos provinciais. Assim, em 1859, o

ministro da SNE, José Maria da Silva Paranhos, decidiu que a ‘Memória 128’ de Duarte

da Ponte Ribeiro onde se expunham as linhas de fronteiras segundo o uti possidetis,

deveria se tornar o padrão a ser seguido em todas as instruções a serem passadas

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futuramente, não só para os Presidentes de Províncias, mas também para os Comissários

Demarcadores de Limites e outros agentes do Governo. A este padrão seriam ainda

subordinados, em 1871, todos os militares diretamente encarregados da defesa nos

limites do território nacional. Junto às regulamentações de 1859 e de 1871 seguiam

também instruções para que Ribeiro organizasse tanto um mapa geral das fronteiras

quanto os mapas de limites provinciais e locais que fossem necessários para atender aos

propósitos de consolidação da ‘visão central do espaço’.575

Além disso, em 1868, José Maria da Silva Paranhos, mais uma vez ministro da

SNE, expediu outra regulamentação que visava terminar com as confusões decorrentes

da substituição dos Presidentes de Províncias: para cada uma das Províncias seria

remetido um ‘Projeto de Instruções’ no qual estaria expressa a ‘visão central do espaço’

e que deveria ser guardado na sede do governo Provincial para ser lido logo em seguida

à posse, sendo, daí em diante, estritamente observado. Por esta regulamentação, Ribeiro

também foi expressamente designado para escrever todos os ‘Projetos de Instrução’,

sendo que o primeiro destes viria à luz já em 1871, sendo logo encaminhado à Província

do Rio Grande do Sul.576

Nesse sentido, cuidando da preservação da ‘norma narrativa’, o ministro da SNE

resolveu que os ‘Projetos de Instrução’ deveriam ser feitos de acordo com a ‘Carta

Geral do Império’, solicitando então ao Ministro da Agricultura que ordenasse ao

pessoal encarregado daquele mapa dispensar todos os meios necessários para que

Ribeiro pudesse exercer seus encargos, estabelecendo assim sua ascendência junto à

‘Comissão’. 577

Mas, apesar de já se ter estabelecido essa ascendência de Ribeiro sobre a

‘Comissão’, pudemos verificar, através dos rascunhos dos encarregados da construção

da ‘Carta Geral do Brasil’, que esse mapa, em 1872, estava sendo composto de acordo

com a derivação da norma narrativa, ainda que grande parte dos mapas utilizados pela

575 'Correspondência de Duarte da Ponte Ribeiro com Manoel Francisco Correa', 1871. AHI, Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 5, Pasta 8.

576 'Carta de Duarte da Ponte Ribeiro para Manoel Francisco Correa', em 10/12/1871. AHI, Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 5, Pasta 8.

577 'Ofício de Manoel Francisco Corrêa para Duarte da Ponte Ribeiro sobre a expedição da instrução às Províncias

confinantes com outros Estados, fazendo acompanhar de mapas especiais', 26/07/1871. AHI, Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 287, Maço 5, Pasta 1.

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Comissão pertencesse ao arquivo particular de Ribeiro.578

Deste modo, no contrato para

a publicação da Carta Geral feito com o ‘Instituto Artístico’, em 27 de dezembro de

1871, estipulava-se que, em metade dos 5.000 exemplares da tiragem da ‘Carta Geral do

Império’, as Províncias deveriam destacadas no mapa “com toda a nitidez e

regularidade, assim na cor como no contorno”, através da técnica da cromolitografia, ou

seja, a partir do estilo adotado por Cândido Mendes em seu atlas que adotara o mesmo

padrão dos atlas gravados.579

Essa influência pode ser explicada, pela consolidação da derivação da norma

narrativa no IHGB a partir de meados da década de 1860, como já fora apontado

anteriormente. Neste instituto a derivação passaria a contar com vários simpatizantes

como, por exemplo, Pedro Torquato Xavier de Brito e Candido Mendes de Almeida.

Este último elaboraria em 1868 uma obra bastante importante pela sua extensão e

oportunidade, o ‘Atlas do Império do Brasil’, destinado pelo autor “à instrução pública

no Império com especialidade à dos alunos do imperial Colégio de Pedro II”, recebendo

um Parecer extremamente favorável da ‘Comissão Geográfica’ do IHGB, que era

composta então por Pedro Torquato Xavier de Brito e Henrique de Beaurepaire Rohan:

Esta obra primorosa é o resultado do mais paciente estudo sobre

todos os documentos que o autor pode adquirir relativamente à nossa

corografia, e prova sua notável aptidão para os trabalhos deste gênero. Suas

apreciações sobre nossos limites, quer internacionais, quer interprovinciais,

são feitas com notável critério, e nisso como em tudo o mais revela o autor o

seu acrisolado patriotismo. Em suma o - Atlas do Império do Brasil - é obra

não somente útil à mocidade, a quem o autor a destina, como também a

todos os homens versados na Ciência.580

Na prática, o IHGB legitimava a derivação da norma narrativa e ao mesmo

tempo, através do Parecer da ‘Comissão de Geografia’ endossava as críticas ao novo

regime da narração expostas por Cândido Mendes na primeira folha de seu Atlas:

578 [José Ribeiro da Fonseca] Silvares, 'Apontamentos corográficos para carta geral do Brasil', [1872]. BN,

Iconografia, I - 46, 11, 11.

579 'Termo do contrato para a publicação do esboço da Carta Geral do Império por Henrique Fleiuss', em 27/11/1871.

IHGB, Lata 345, Pasta 21.

580 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXXII, parte II, 1869, p. 298.

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Pelo que respeita aos limites internacionais do Império procuramos

tratá-los de forma a não se tornarem um segredo de que alguns entendidos

mais pacientes estão de posse. O conhecimento desta matéria, tanto quanto

possa tornar-se necessário ao comum dos nossos concidadãos, pode ser

adquirido com facilidade no nosso Atlas.581

No sentido de divulgar esses conhecimentos, a discussão geográfica seria

incentivada durante o ano de 1869 no IHGB dando origem, inclusive, à idéia de que se

publicassem os manuscritos do Instituto, criando-se assim uma “Biblioteca Brasileira”,

destinada a tornar mais acessíveis ao público as informações geográficas, segundo o

espírito do seu primeiro Estatuto.582

Também em 1870, sintomaticamente, o IHGB

publicaria em sua ‘Revista’ os ‘Apontamentos’ de Ernesto Ferreira França, obra que

havia sido censurada em 1849 pela Comissão de Geografia comandada por Duarte da

Ponte Ribeiro, justamente porque condenava a centralização e o segredo na condução da

inscrição do espaço.

Não bastasse o apoio entusiástico do IHGB à derivação, em 1871 Ribeiro ainda

se envolveria numa polêmica aberta através dos principais jornais do Rio de Janeiro

com José da Costa Azevedo, Demarcador-chefe dos limites com o Peru. Nesta

polêmica, Ribeiro censuraria Azevedo pública e severamente revelando ter ele

estipulado em segredo com os Comissários peruanos a divisão dos territórios bolivianos

limítrofes entre os dois países.

Azevedo entendia então que o Brasil havia novamente cedido grande parte de

seu território através do tratado que havia sido acertado com a Bolívia em 1867, e

acreditava que o seu entendimento secreto com os peruanos deveria ser reconhecido

pelo Governo, “cujos mútuos interesses repelem desassombrados o renascimento de tais

preconceitos” “que se reconhecem nos empoeirados papéis”.583

Além de criticar os

argumentos de Ribeiro e a documentação reunida em seus Arquivos, Azevedo propunha

ainda a utilização da cartografia para legitimar seus pleitos e descaracterizar os termos

do Tratado: “o atual ministro da fazenda do governo peruano, irmão do Dr. Paz Soldán

581 Candido Mendes de Almeida, Atlas do Império do Brazil. Rio de Janeiro: Litografia do Instituto Philomathico,

1868.

582 A respeito das mudanças no Estatuto do IHGB, ver, nesta tese, o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.

583 José da Costa Azevedo, Defesa da Comissão Mista demarcadora dos limites do Brasil e Peru ao Sr. Conselheiro

Duarte da Ponte Ribeiro. Rio de Janeiro: Tipografia da Reforma, 1871, p. 4.

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323

[o Comissário-chefe peruano] que escreveu a notável obra 'Geografia del Peru' não

deixará de sustentar a opinião enunciada [...].”584

Portanto, a ‘Carta Geral do Império’, doravante chamada de ‘Carta Geral’,

estava referida a um projeto endossado pela derivação que a dividia em 42 folhas

separadas, das quais já estavam prontas 31. Contudo, utilizando-se do fato de já se haver

um contrato firmado para a impressão da ‘Carta Geral’, sugerir-se-ia em 1871 que se

iniciasse a impressão imediata da ‘Carta Geral’.585

Como esta impressão somente seria

viável se todo o trabalho da Comissão fosse reduzido em escala para apenas quatro

folhas, sabidamente Ribeiro assumiria a organização da carta, conduzindo sua

composição segundo a ‘norma narrativa’.

Entretanto, utilizando-se o pretexto de equiparar a ‘Carta Geral’, ao menos

parcialmente, com os outros trabalhos semelhantes que até então haviam sido realizados

na Europa, decidiu-se adiar a publicação para que fosse aplicado no levantamento do

território nacional o método da ‘geodésia expedita’, o qual já havia sido antes utilizado

no levantamento da carta da Etiópia.586

Assim, em lugar das fontes sabidamente

utilizadas por Ribeiro e que este havia disponibilizado para a ‘Comissão da Carta

Geral’, resolveu-se pela construção da ‘Carta Geral’ através da utilização de um método

científico de medição e cálculo diretamente sobre o território. Deste modo, em 1873,

João Nunes de Campos, orientando-se pela decisão anterior, ordenou que o projeto da

‘Carta Geral do Brasil’ voltaria a constar de 30 folhas as quais seriam preenchidas na

medida em que as medições tivessem lugar.587

Portanto, podemos concluir que a intervenção de Ribeiro fazia parte de uma luta

de representações entre a ‘norma da narrativa’ e a ‘derivação’, que também levaria

Henrique de Beaurepaire Rohan, um dos simpatizantes da ‘derivação’ a assumir a

presidência da ‘Comissão da Carta Geral do Império’, após a morte de João Nunes de

Campos em 1874.

584 José da Costa Azevedo, Defesa da Comissão Mista demarcadora dos limites do Brasil e Peru ao Sr. Conselheiro

Duarte da Ponte Ribeiro. Rio de Janeiro: Tipografia da Reforma, 1871, p. 11.

585 Isa Adonias, A Cartografia da Região Amazônica: 1500-1691 v. I). Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Pesquisa

da Amazônia, 1963, p. 353-355.

586 O método da ‘geodésia expedita’ era uma simplificação dos métodos geodésicos, diminuindo-se os procedimentos

no terreno e a subsequente qualidade dos cálculos em razão de ser agilizar a produção da carta.

587 Isa Adonias, A Cartografia da Região Amazônica: 1500-1691 v. I). Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Pesquisa

da Amazônia, 1963, p. 353-355.

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324

Em reação à posse de Rohan, Ribeiro seria tornado conselheiro da ‘Comissão da

Carta Geral’, na posição de ‘Chefe da Seção’, sob a alegação de que esta deveria ser

impressa a tempo de participar em 1875 da quarta Exposição Nacional. Por conseguinte,

a intervenção de Ribeiro garantiu que a ‘Carta Geral’ fosse construída segundo a visão

de espaço central e elaborada conforme suas fontes. Com o nome de ‘Carta do Império

do Brasil’ este mapa seria posteriormente remetido para a Exposição Internacional da

Filadélfia (Centennial Exhibition) em 1876 quando, conjuntamente com a ‘Corografia

de 1876’,588

seria consagrado como a representação oficial do espaço nacional.

Neste Evento, onde a participação brasileira fora exaustivamente preparada,

inclusive tendo sido antecedida pela ida do próprio Imperador, procurava-se reparar a

imagem brasileira, seriamente arranhada pela Guerra do Paraguai, objetivo que havia

sido plenamente alcançado segundo Felipe Lopes Neto, responsável pelo estande

brasileiro na Filadélfia:

A crença geral aqui é que no continente americano só há dois

governos sérios, o dos Estados Unidos e o do Brasil. As repúblicas sul-

americanas estão eclipsadas pelo Império: ninguém se ocupa delas [...].

Contra o nosso costume, estamos, pois, fazendo aqui excelente figura.

Nacionais e estrangeiros, todos reconhecem e confessam, que, das nações

modernas, é o Brasil que mais há progredido nas vias da civilização e mais

rica de produtos naturais se mostrou na Exposição de Filadélfia.589

Após a intervenção de Ribeiro, a ‘Comissão da Carta Geral’ continuaria a existir

ainda sob o comando de Rohan, que insistia em organizar uma ‘Carta Geral’ através de

sua composição endossada pela ‘derivação’, segundo este, dividindo-se o espaço em

diversas cartas que empregassem somente “documentos dignos de crédito”, não se

confiando, para este trabalho, “nos elementos existentes, pela maior parte pouco exatos,

por terem sido obtidos em épocas mais ou menos afastadas.”590

Logo, Rohan

constataria, com base em dados enviados das Províncias, uma enorme quantidade de

588 Atualizada por Luís Pedreira do Couto Ferraz, Visconde do Bom Retiro. O Império do Brasil na Exposição

Universal de 1876 na Filadélfia. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1875.

589 ‘Correspondência entre Lopes Neto e José Antônio Saraiva’, em 09/07/1876 e 06/08/1876. IHGB, Lata 273 Pasta

12.

590 Henrique de Beaurepaire Rohan, Estudos acerca da organização da ‘Carta Geográfica’ e da História física e

política do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877, p. 10-11.

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erros na ‘Carta do Império do Brasil’: povoações e acidentes geográficos inexistentes,

topônimos trocados, “cidades que haviam deixado de existir há 100 anos” e uma divisão

interprovincial completamente falha, especialmente se fosse comparada “com os Mapas

que compõem o Atlas do Ex. Senador Cândido Mendes de Almeida”.591

Portanto, estaria plenamente justificada a iniciativa destinada a produzir uma

nova carta geral, baseando-a numa processo sintomaticamente denominado por Rohan

de ‘Carta Arquivo’, já que visava substituir o material reunido no Arquivo da SNE. Esta

‘Carta Arquivo’, seria composta por diversos mapas, cada qual referente a uma parcela

do território, que somente deveriam ser preenchidos na medida em que se fizessem

progressos no levantamento topográfico do país, especialmente através do método da

‘geodésia expedita’ e de acordo com as informações que fossem prestadas pelas

Províncias. Mas, Rohan não aguardaria estas providências para dar início ao trabalho da

‘Carta Arquivo’, conseguindo aprontar rapidamente 22 folhas desta, nas quais utilizaria

apenas fontes que considerava modernas e de cunho científico, no caso, segundo os

planos topográficos e as cartas provinciais construídas por engenheiros.

Ainda, Rohan acreditava que a ‘Corografia de 1876’ deveria ser substituída por

uma outra obra, “empreendida por homens competentes”, segundo o princípio da

“divisão de trabalho” e que receberia a denominação de ‘Corografia ou História física e

política do Brasil’, a exemplo “de uma obra corográfica semelhante, aquela de que deve

se gloriar o Chile”.592

Contudo, a ‘Comissão da Carta Geral’ seria extinta em 2 de março de 1878 pelo

Ministério da Agricultura, sob a alegação de ser “contrária às circunstâncias financeiras

atuais, a conservação de serviços que não são urgentes,” ainda que, naquele tempo, só

restassem, sob a chefia de Rohan, dois desenhistas e dois ajudantes.

591 Henrique de Beaurepaire Rohan, Relatório final da Comissão da Carta Geral do Império apresentado ao Ministério

da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878, p. 5-49; Henrique de

Beaurepaire Rohan, Estudos acerca da organização da ‘Carta Geográfica’ e da História física e política do Brasil.

Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877, p. 10-11.

592 Henrique de Beaurepaire Rohan, Estudos acerca da organização da ‘Carta Geográfica’ e da História física e

política do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877, p. 9-18; 20-22; Henrique de Beaurepaire Rohan,

Relatório final da Comissão da Carta Geral do Império apresentado ao Ministério da Agricultura, Comércio e

Obras Públicas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1878, p. 62.

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O legado de Duarte da Ponte Ribeiro

A ‘Carta do Império do Brasil’ continuou sendo a única representação

cartográfica oficial do Brasil até 1922, quando foi organizada pelo Clube de Engenharia

do Rio de Janeiro, a ‘Carta Geográfica’ do Brasil’, que aliás, continuava ainda sendo

baseada na ‘Carta do Império do Brasil’ e na ‘Carta de 1873’.593

Nesse sentido, após a apresentação da ‘Carta do Império do Brasil’ na Exposição

Nacional de 1875, Ribeiro deixaria publicado o seu legado, a ‘Exposição dos trabalhos

que serviram de base à Carta Geral do Império’,594

consagrando as fontes pelas quais se

empreendeu a ‘inscrição do espaço nacional’, agora tornadas oficiais pela ‘Carta do

Império do Brasil’. À publicação desta ‘Exposição’, que uniformizava, de fato, as fontes

para a produção cartográfica, somava-se a organização pelo Arquivo Militar de um

‘Plano geral de convenções topográficas’595

que uniformizava também todas as

convenções utilizadas nos produtos cartográficos, o que estendia, na prática, o controle

da visão central sobre a ‘inscrição do espaço’.

Portanto, entendemos que as iniciativas que visavam inscrever continuamente a

centralidade através da reeducação constante de seus membros, impulsionaram Ribeiro

a ter uma participação privilegiada na organização da ‘inscrição do Estado no espaço’.

Entretanto, ainda que esse privilégio delegado pelo Estado visasse resguardar as

estratégias e interesses da centralidade, a ‘inscrição do Estado no espaço’ foi feita

através de uma estruturação da ‘gramática do lingüista’ a partir do uso criativo da

‘gramática mental’ de Ribeiro. Esta ‘gramática mental’, resistindo a uma derrota do

princípio subjetivo, materializou sua intelecção do espaço nacional através da luta de

representações.

Portanto, a representação do ‘espaço nacional’ através da ‘Carta de 1873’ e da

‘Carta do Império do Brasil’ foi ligada indelevelmente a sua intuição do ‘Programa

Geográfico’ e das fontes coloniais. No caso, entendemos, a partir de Schopenhauer, que

esta coleção de intuições e de experiências amadureceu seu pensamento, tornando

593 Carta geographica do Brasil em comemoração do primeiro centenário da Independência. Paris: Imp. De l’Institut

catographique de Paris, 1922.

594 Duarte da Ponte Ribeiro, Exposição dos trabalhos históricos, geográficos e hidrográficos que serviram de base à

Carta Geral do Império exibida na Exposição Nacional de 1875. Rio de Janeiro: Typ. Nacional, 1876.

595 Por Antonio Pinto de Figueiredo Mendes Antas, na Oficina litográfica do Arquivo Militar.

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possível sua combinação, o que ampliou sua aplicabilidade para que este pudesse ser

aplicado quando as oportunidades surgiram.596

Nesse sentido, na ‘gramática mental’ de Ribeiro a nacionalidade passou a ter

uma via própria e independente daquela disseminada pela visão do centro: a Nação para

Ribeiro foi constituída nas localidades mais remotas por heróis quase anônimos que

experimentaram a terra e a desbravaram. Assim, não importava que o Brasil como tal

não existisse anteriormente: a experimentação da terra tornou esses heróis brasileiros

antes de seu tempo, fazendo desaparecer nessa apreciação a própria noção de tempo —

a terra, somente a terra era capaz de unir o presente, o passado e o futuro.

Assim, Ribeiro, representou na ‘Carta de 1873’ e na ‘Carta do Império’ a

importância dessas experimentações da terra para que se pudesse dotar a Nação de um

sentido que perpetuasse sua existência, ainda que, por exemplo, com isso fosse

necessário representar cidades que não existissem mais ou monumentos que não mais

fizessem sentido para os contemporâneos.

Portanto, registrar os limites brasileiros significava na ‘gramática mental’ de

Ribeiro reconhecer os esforços daqueles heróis, desenhando a terra além das razões do

presente: a ‘inscrição do Estado no espaço’ devia ser registrada segundo as narrativas

organizadas em seu Arquivo, consagrando através dessa releitura a presença idealizada

dos Lacerdas, dos Lemes, dos Serras e de outros anônimos nos recônditos remotos onde

estiveram sob a ameaça dos selvagens e dos bárbaros espanhóis. Esta releitura importou

também em inscrever no mapa as epopéias formadoras do espaço, registrando-se, no

caso, os Guarajús, como uma cidadezinha construída em meio à floresta pela audácia do

nacional; o martírio dos patriotas da Praça dos Prazeres, no caso, descrito como um

definhamento de crianças e homens sob os rigores da natureza; a bravura do Forte de

Coimbra, onde um punhado de brasileiros resistiu à vilania dos inimigos; o destemor da

resistência contra os espanhóis no Rio Guaporé, quando alguns valentes foram capazes

de destroçar um Exército — ou seja, fazer a terra voltar a viver através de suas histórias,

possibilitando-se a construção de um momento.

Ainda, ‘inscrever o Estado no espaço’ significou também para Ribeiro, fazer

desaparecer os registros dos esforços inúteis como aqueles representados em Castilhos

Grandes e Castilhos Pequenos, riscados do mapa ante a enormidade dos esforços que

596 Arthur Schopenhauer, ‘Crítica da Filosofia Kantiana’ in Os Pensadores - Arthur Schopenhauer, São Paulo: Editora

Nova Cultural, 1997, p. 176.

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representavam, ou evitar a inscrição de esperanças fúteis, como no caso do sugestivo

Rio dos Enganos, apagado do mapa porque nada podia significar para a Nação, ou do

rio Javari, substituído em sua importância pelo rio Purus, consagrando-se, deste modo,

uma representação da ‘norma narrativa.

Finalmente, a ‘inscrição do Estado no espaço’ demonstrou, inclusive, que o

princípio subjetivo podia resistir ao esforço da centralidade, registrando outros heróis e

inscrevendo outras idéias, mas, facilitando-se também sua passagem para o Mito.

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11 — A MÁSCARA DA MEDUSA: A PERSPECTIVA DA CENTRALIDADE E A

CONSTRUÇÃO DA MITOLOGIA DO ESPAÇO NACIONAL

“IT lieth, gazing on the midnight sky,

Upon the cloudy mountain peak supine;

Below, far lands are seen tremblingly;

Its horror and its beauty are divine.

Upon its lips and eyelids seems to lie

Loveliness like a shadow, from which shine,

Fiery and lurid, struggling underneath,

The agonies of anguish and of death.

Yet it is less the horror than the grace

Which turns the gazer’s spirit into stone;”

Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,

In the Florentine Gallery.597

No capítulo anterior vimos que a construção da representação do espaço

nacional incluiu, por conta da resistência a uma derrota do princípio subjetivo, o

registro da intelecção do espaço feita por Ribeiro através de sua ‘gramática mental’. Já

neste capítulo, nossa intenção é, primeiramente, demonstrar que na representação do

espaço nacional, a intelecção do espaço feita por Ribeiro foi apenas registrada junto a

uma intelecção do espaço nacional a partir da perspectiva da centralidade.

Esta perspectivação598

do espaço resultou tanto de uma intuição da ‘inscrição do

Estado no espaço nacional e internacional’ quanto de uma intelecção da ‘inscrição do

espaço’ desenvolvida através da ‘gramática da linguagem’ e da ‘gramática do lingüista’,

no caso, da narrativa do século XIX. Assim, entendemos que esta perspectivação,

597 ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’ in Posthumous Poems of Percy Bysshe Shelley,

Mary W. Shelley (Edited). London: John and Henry L. Hunt, 1824, p. 139-140. Nossa tradução: ‘Ela jazia, voltada

para cima, fitando o céu noturno sobre um enevoado cume; abaixo, terras distantes são vistas tremeluzindo; seu

horror e sua beleza são divinos. Sobre seus lábios e suas pálpebras parece repousar o encanto como uma sombra,

onde, lutando por debaixo, se irradiam, ardentes e pálidas, as agonias da angústia e da morte. Contudo, é menos o

horror que o encanto que transforma o espírito do observador em pedra;’.

598 Ver a idéia da perspectivação, ou seja, da constituição e desenvolvimento de uma gramática da visão, no capítulo

desta tese ‘A descrição do contemplador’.

Page 330: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

330

doravante denominada de ‘visão central do espaço’, importou em determinadas

características e conseqüências na formação do Estado Nação as quais mantiveram sua

influência até hoje por conta de sua entronização como elementos de uma ‘Mitologia do

espaço nacional’.

Deste modo, estudaremos em segundo lugar neste capítulo, o desenvolvimento e

a consolidação dessa ‘Mitologia do espaço nacional’ relacionando-a com os esforços

que constituíram a representação do espaço nacional, ou seja, com a ‘visão central do

espaço’, mas entendendo que a intelecção do espaço feita por Ribeiro também participa

dessa ‘Mitologia’.

Nesse sentido, pretendemos que a formação da ‘Mitologia do espaço nacional’

resultou da própria narrativa do século XIX, mas, a partir de uma intuição dos produtos

cartográficos e corográficos utilizados pela narrativa e de uma intelecção de seus

elementos, após a consolidação da representação do espaço nacional. Este produto final

da narrativa do século XIX é a ‘História das Fronteiras’, que foi disseminada pela ‘visão

central do espaço’ na História Diplomática, na História da Política Externa, na História

Militar, na Geopolítica e mesmo na História do Brasil.599

Assim, como a ‘Mitologia do

espaço nacional’ resulta de um conteúdo enformado na História das Fronteiras pela

‘visão central do espaço’, esta compreensão do problema nos leva a ter de empreender o

estudo da ‘Mitologia do espaço nacional’ já não mais como separada da História das

Fronteiras, mas como parte desta.

Portanto, numa primeira aproximação do problema, consideramos que essa

construção historiográfica ao incorporar os termos da narrativa do século XIX, envolve,

por conseguinte, certos aspectos que podem ser mais bem compreendidos a partir da

lingüística, no caso, nos levando a ter de utilizar novamente a idéia de Chomsky a

respeito da ‘Economia da Derivação e da Representação’ na linguagem, já utilizada no

capítulo anterior.600

Conforme o conceito da ‘Economia da Representação’ na linguagem, devemos

entender que somente em último caso serão empreendidas mudanças na narração, uma

vez que estas implicam na constituição de uma derivação. Por conseguinte, a supressão

de elementos ou termos na narração somente se dará quando estritamente necessária,

599 A respeito da disseminação, ver nesta tese o capítulo ‘O mapa antes do território’.

600 A respeito da ‘Economia da Derivação e da Representação’ na linguagem, ver nesta tese a utilização dos conceitos

da ‘Economia da Derivação’ no capítulo ‘Em amplexo fraternal’.

Page 331: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

331

condição esta que também se repete em relação às inserções na narração. Contudo,

deve-se também considerar que o custo dessa transformação diminui na medida em que

se distinguem as necessidades de grupos de falantes específicos e as oportunidades da

sua efetivação, neste caso, as considerações locais imprimem uma dinâmica específica

na faculdade de formulação da linguagem que deve ser considerada.

Assim como as transformações da narração somente serão empreendidas

segundo condições especiais, também os novos elementos de representação na

linguagem somente surgirão se forem propriamente legitimados perante o ‘sistema de

representação’ [D-Structure] da narração, ou seja, desde que sejam preenchidas as

condições que permitam a conexão de sua sintaxe com as outras formas constituintes

daquele sistema.601

De acordo com nosso problema, podemos então pressupor que a construção da

‘História das Fronteiras’ privilegiou a manutenção das condições da narrativa do século

XIX, uma vez que, já em 1875, estavam constituídos os controles da ‘visão central’

sobre a ‘inscrição do espaço’ e uma representação do espaço nacional oficialmente

reconhecida.

Entretanto, como a operação da narrativa no novo regime passou a se realizar

num teatro de dimensões muito reduzidas, no caso, a SNE e seu sucessor, o Ministério

das Relações Exteriores, a transformação da narrativa do século XIX numa ‘História das

Fronteiras’ seria ensejada pelas necessidades operacionais desse órgão e pelas

oportunidades encontradas pelos operadores para legitimar novos elementos de

representação a partir da narrativa do século XIX.

Esta transformação da narrativa, legitimada segundo a ‘visão central do espaço’

foi enformada numa ‘Mitologia do espaço nacional’, sendo então disseminada e

novamente transformada nos teatros secundários de produção da narrativa em

narrativas heróicas dependentes da forma mitológica original. Por exemplo, nas

corporações militares foram escritas narrativas heróicas do espaço enfatizando a

participação de seus membros na construção do espaço nacional.

Finalmente, esta atualização e particularização da ‘História das Fronteiras’ foi

racionalizada por cada uma das diversas disciplinas afins, sendo seu conteúdo

disponibilizado e transmitido por uma pedagogia enraizada nesses locais de enunciação.

601 Noam Chomsky, ‘Some notes on economy of Derivation and Representation’ in The Minimalist Program.

Cambridge: The MIT Press, 2001, p. 150-151.

Page 332: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

332

Numa segunda aproximação do problema, daremos prosseguimento à proposta

também apresentada no capítulo anterior de encaminhar o estudo da ‘História das

Fronteiras’ segundo as idéias de Schelling acerca da Mitologia.

Conforme este autor, a Mitologia seria o “único mundo” onde é possível uma

representação duradoura e determinada objetivamente, sendo, ao mesmo tempo, uma

invenção, cujos termos constituintes e modelos devem ser entendidos histórica e

simbolicamente e uma criação coletiva, não apenas intencional mas também

incondicionada.602

Nesse sentido, para que seja possível a afirmação e a ascensão de uma

Mitologia, é necessário, em primeiro lugar, que seus protagonistas sejam reais,

porquanto somente assim seriam objetos possíveis em sua invenção; em segundo lugar,

que nessa objetivação esteja incutida uma limitação dos potenciais do protagonista; em

terceiro lugar, que as incertezas e deformidades das origens da narrativa mitológica

sejam eliminadas e, em quarto lugar, que o mundo de atuação dos protagonistas da

narrativa mitológica somente possa ser interpretado através da criação intelectual sobre

o próprio ‘mundo mitológico’.603

Este ‘mundo mitológico’ seria então organizado sobre a afirmação da “beleza de

seus protagonistas”, ou seja, sobre a afirmação das potencialidades e qualidades dos

protagonistas da narrativa mitológica, eliminando-se nesse processo o que não

condissesse com esta ‘beleza’. Estes mesmos protagonistas formariam então, através da

narrativa mitológica, uma “totalidade entre si”, o que determinaria que no ‘mundo

mitológico’ “tudo passasse a ser determinado reciprocamente”, ou seja, através de uma

relação entre estes mesmos protagonistas. Finalmente, essa “relação de dependência”

entre os protagonistas mitológicos deveria ser somente representada através de uma

“relação de geração”, onde cada um dos protagonistas teria sua origem determinada pela

ação ou atuação anterior de outro protagonista. Esta “relação de geração” seria

inteiramente necessária à organização do ‘mundo mitológico’ uma vez que é o único

modo de dependência no qual “o dependente permanece absoluto em si”.604

De acordo com nosso problema, podemos então pressupor que a transformação

da narrativa se realizaria tanto pela legitimação direta de novos termos e elementos

602 Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 38-42 e § 133 p. 300.

603 Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 30-35.

604 Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 36.

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333

representativos quanto por uma apropriação destes apenas ativada por certas condições

relacionadas à operação da narrativa. Por exemplo, a penetração da geopolítica no

Itamaraty e no Exército agregaria à ‘História das Fronteiras’ e à ‘Mitologia do espaço

nacional’ certos elementos mais em função da aproximação desse conteúdo com a

narrativa do que propriamente de um exercício de legitimação realizado pelos seus

operadores.

Ainda, a partir das idéias de Schelling, entendemos que, para que se tornasse

possível a afirmação e a ascensão de uma ‘Mitologia do espaço nacional’, foi necessário

retirar seus protagonistas da própria narrativa do século XIX, sendo seus personagens

idealizados a partir de certas características inerentes a essa mesma narrativa. Depois,

estes mesmos protagonistas foram despidos de características pessoais que eram

contrárias à afirmação mitológica e formariam “uma totalidade entre si” através de sua

participação no enredo mitológico numa “relação de dependência e de geração”. Assim,

Alexandre de Gusmão e o Barão do Rio Branco, foram relacionados entre si pela sua

atuação e ação na ‘História das Fronteiras’, sendo seus personagens corriqueiramente

descritos na ‘Mitologia do espaço nacional’ enquanto patriotas que desinteressadamente

se investiram da responsabilidade de afirmar a Nação e de inscrevê-la num espaço

nacional.

No sentido de ressaltar essa “totalidade entre si”, é interessante citar a

importância atribuída por Claude Levi-Strauss à incorporação da idéia dos gêmeos na

construção dos mitos: a gemeidade seria o sinal de um parto perigoso ou heróico,

“porque a criança tomará a iniciativa e tornar-se-á uma espécie de herói, um assassino

em certos casos; mas de qualquer modo ela realiza uma façanha muito importante”.605

Os gêmeos desempenhariam, então, o papel de intermediários entre o poder divino e a

Humanidade, no que poderiam ser representados de várias maneiras, mas sempre

relacionados entre si e realizando uma façanha benéfica para a comunidade ou o grupo.

Entretanto, frisa Levi-Strauss, existe a conveniência em apenas sugerir a

gemeidade, uma vez que a divindade não seria dividida em duas metades: se os

personagens do mito não forem verdadeiramente gêmeos, não existirá a possibilidade

desses gêmeos personificarem, cada um deles, a oposição de polaridades. Por

conseguinte, mantendo-se apenas a sugestão da gemeidade constitui-se uma não-

605 Claude Levi-Strauss, Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 50.

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divisão, onde “as características opostas podem permanecer fundidas numa única e

mesma pessoa”.606

Assim, em nosso caso, Alexandre de Gusmão e Rio Branco seriam ‘relacionados

em dependência e em geração’ mas apenas seria sugerida sua gemeidade, tornando-se,

assim, mais forte o sentido da ‘totalidade entre si’ no mito da construção do espaço

nacional. Por exemplo, note-se, na citação abaixo, em primeiro lugar, a identificação em

duplo sentido de Rio Branco como o “deus término” das fronteiras, tanto como a

divindade romana protetora dos limites e das propriedades, que era adorada em

cerimônias sobre os marcos dos terrenos quanto como o finalizador de uma obra, no

caso em ‘relação de dependência’ com Alexandre de Gusmão. Em segundo lugar,

observe-se a identificação de Alexandre de Gusmão em ‘relação de geração’, como

aquele que projeta e idealiza a obra de construção das fronteiras; finalmente, veja-se a

construção de uma relação de gemeidade entre Alexandre de Gusmão e Rio Branco,

através da afirmação de uma identidade de pensamento entre os dois personagens:

Por isso mesmo, em 1894, o Barão do Rio Branco, “deus término”

de nossas fronteiras, considerava que os dois grandes tratados de limites da

América Portuguesa, [...] erigiram em princípio indestrutível o “uti

possidetis”, por ser a “única regra razoável e segura para a determinação das

fronteiras”. Já o “Tratado” de 1750, onde se espelha, com nitidez, a

orientação jurídica de Alexandre de Gusmão, consignava expressamente no

“Preâmbulo”: “Cada parte há de ficar com o que atualmente possui”.607

Contudo, como compreendemos através das aproximações com a ‘Economia da

Representação’ e com as idéias de Schelling, tanto a ‘Mitologia do espaço nacional’

quanto a narrativa compreendida na ‘História das Fronteiras’ enfeixam as intelecções do

espaço realizadas pela ‘visão central do espaço’, ajudando a perpetuá-las.

Portanto, para que se possa entender a ‘História das Fronteiras’ e a ‘Mitologia do

espaço nacional’ menos como descrições do que como representações do espaço, deve-

se entender suas arquiteturas enquanto representações de uma outra representação, ou

seja, ‘mis-en-abysme’, derivada sucessivamente de uma representação anterior, como

606 Claude Levi-Strauss, Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 2000, p. 43-51.

607 João Gualberto de Oliveira, Gusmão, Bolívar e o Princípio do ‘Utis Possidetis.’ São Paulo: s/editor, 1958, p. 69-

70.

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335

algumas vezes na heráldica medieval se registrava repetidamente, no quartel de um

brasão, sua própria imagem em escalas cada vez menores.

Por conta dessa dificuldade adicional, buscaremos então uma terceira

aproximação do problema, desta vez através de um enfoque sobre a questão da

representação, procurando utilizar os recursos retirados de nossa aproximação com a

cartografia nos capítulos anteriores. Nesse sentido, buscaremos trabalhar nosso

problema através da discussão da ‘ekphrasis’, termo grego cuja tradução significa ‘fazer

falar’, e que vem a ser a descrição poética de uma obra de arte, visando com isto,

ultrapassar a limitação de seu medium, seja a pintura ou a escultura.

Para esta aproximação do problema escolhemos como objeto de trabalho um dos

exemplos de ‘ekphrasis’, o poema ‘On The Medusa of Leonardo da Vinci, In the

Florentine Gallery’ de Percy Bysshe Shelley, que foi escrito em 1819 a partir de um

quadro que retrata a figura da Medusa degolada.

Este poema de Shelley, além de situar a dinâmica da representação sobre outro

objeto que não a cartografia, permite-nos, em primeiro lugar, trabalhar o problema

aludido anteriormente, ou seja, da representação sobre outra representação, ‘mis-en-

abysme’, a partir da ‘ekphrasis’, uma vez que existe todo um jogo de intuições e

intelecções em sua escrita, capaz de nos remeter, inclusive, à idéia de texto-mapa, já

discutida no capítulo ‘O espelho do Jacobina’ e que será retomada adiante.

Em segundo lugar, através deste poema trabalharemos a dinâmica da

representação, uma vez que estudaremos a discussão do poema de Shelley realizada em

meados da década de 1990 no âmbito do ‘Romantic Circle’ da University of

Maryland,608

que gerou, por sua vez, várias publicações sobre o assunto.609

O estudo

608 Esta discussão foi realizada sobre os seguintes textos: James Heffernan. Museum of Words: The Politics of

Ekphrasis from Homer to Ashberry. Chicago: University of Chicago Press, 1993, p. 119-124; Neil Hertz.

‘Medusa's Head: Male Hysteria under Political Pressure.’ Representations IV, 1983, p. 27-54; Daniel Hughes.

‘Shelley, Leonardo, and the Monsters of Thought.’ Criticism XII, 1970, p. 195-212; Carol Jacobs. ‘On Looking at

Shelley's Medusa.’ Yale French Studies 69, 1985, p. 163-79; Jerome McGann. ‘The Beauty of the Medusa: A

Study in Romantic Literary Iconology.’ Studies in Romanticism XI, 1972, p. 3-25; W. J. T., Mitchell. ‘Ekphrasis

and the Other.’ The South Atlantic Quarterly 91.3 Summer 1992, p. 695-719; Mario Praz. ‘The Beauty of the

Medusa.’ in The Romantic Agony. [Carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica.] Trans. Angus

Davidson. 2nd ed. with corrections; foreword by Frank Kermode. London, New York: Oxford University Press,

1970 (1933), Chapter One.

609 Por exemplo: Jay Clayton. ‘Concealed Circuits: Frankenstein's Monster, the Medusa, and the Cyborg.’ Raritan

XV, Spring 1996, p. 53-69; John Hollander. Gazer's Spirit: Poems Speaking to Silent Works of Art. Chicago:

University of Chicago Press, 1995. p. 142-46; Grant Scott. ‘Shelley, Medusa, and the Perils of Ekphrasis.’ The

Romantic Imagination: Literature and Art in England and Germany, Ed. Frederick Burwick and Jurgen Klein:

Amsterdam and Atlanta, 1996, p. 315-332.

Page 336: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

336

desta formulação nos permitirá estudar o problema da recepção da ‘ekphrasis’ e da

importância do medium para esta recepção.

Em terceiro lugar, o poema de Shelley nos permitirá estudar a partir de sua

própria composição o conceito da ‘ekphrasis’ e o problema da representação e da

narrativa. Este estudo será feito a partir da utilização, que reconhecemos ser imperfeita

para este objeto, do método e das definições anteriormente trabalhadas na cartografia a

partir das nossas noções de processo externo e processo interno.

Nesse sentido, a composição de ‘On the Medusa’ será estudada através do

seguinte método:

A partir de um processo externo, que, no caso, entendemos dizer respeito à

intuição feita pelo pensamento de Shelley das representações anteriores da Medusa na

literatura inglesa, da leitura dos clássicos e de uma enorme literatura que neles se

baseiam, inclusive, das releituras feitas por outros Românticos no período.

A partir de um processo interno, no caso, compreendido como a intelecção do

processo externo pelo pensamento de Shelley. No caso, o pensamento foi amadurecido

por conta de suas experiências, utilizando o conhecimento das condições e modos do

uso apropriado da poesia e em conformidade com os seus propósitos. Assim, ‘On the

Medusa...’ pode ser incluído num grupo de obras da qual faria parte, por exemplo,

‘Prometheus Unbound’, e que refletiriam seu idealismo político, as possibilidades de

sua expressão e sua intelecção.

A partir de uma interpretação semiológica e iconológica que estaria ligada ao

entendimento do processo interno e do processo externo, no caso, relacionando a

Medusa e outros símbolos retirados da cultura clássica por Shelley aos símbolos

utilizados pela literatura política da época, que identificava, por exemplo, a Medusa

com o Jacobinismo e Atenas com a Grã-Bretanha (ver figura 28).

Se utilizarmo-nos dos elementos anteriores, poderíamos fazer num primeiro

nível de leitura, uma interpretação dos elementos semiológicos e iconológicos

privilegiando o processo externo.

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337

Por conseguinte, podemos entender a composição do poema de Shelley como

uma intelecção da lenda clássica, a saber: Medusa, jovem de beleza exemplar, fora

transformada em um monstro por Atenas, o qual jamais poderia ser confrontado por

nenhum observador, sob pena deste ser transformado em pedra. Logo, relacionando a

figura da Medusa com os ideais jacobinos e a figura de Atenas com os ideais

conservadores, Shelley retrataria a Medusa como a vítima da opressão de um tirano.

Portanto, após a morte descobrir-se-iam no seu rosto morto os encantos e a beleza

negados em vida a ela, ao lado de uma força vital que não podia ser destruída: morta,

sua face continuava a possuir o poder de petrificar, jorrante, seu sangue foi capaz de

gerar Pégaso, que em sua natureza personificava a própria liberdade.

Fonte: Fonte: W. J. T. Mitchell, ‘Ekphrasis And The Other.’ in The South Atlantic Quarterly, 1992.

FIGURA 28 — ATENAS E MEDUSA_

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Num segundo nível de leitura, utilizando os mesmos elementos anteriores, mas,

privilegiando o processo interno para sua interpretação, seremos obrigados a discutir o

próprio processo de composição, no caso, a ‘ekphrasis’, nos reportando ao medium

original, a pintura atribuída a Leonardo da Vinci.

Nesse sentido, aproveitaremos para incluir nesta digressão o objetivo

anteriormente citado de relacionar a dinâmica da representação com a discussão do

poema de Shelley realizada no âmbito do ‘Romantic Circle’. Essa discussão utilizou

como suporte uma reprodução em preto-e-branco da pintura onde apenas se pode

observar com clareza a figura da Medusa. Seja pela qualidade da reprodução seja pela

ação do tempo que obscureceu esta obra de arte desde a leitura efetuada por Shelley,

durante a discussão, praticamente todos os outros elementos do quadro que não fossem

a Medusa seriam minimizados na interpretação da ‘ekphrasis’ (ver Figura 29).610

Sobre esta reprodução seria ainda produzido um esquema que visava conter os

principais elementos da pintura atribuída a Leonardo da Vinci, a fim de que estes

pudessem ser acompanhados mais facilmente por todos os debatedores, a partir das

leituras recomendadas (ver Figura 30).

610 A fonte dessa reprodução foi W. J. T. Mitchell ‘Ekphrasis And The Other’ in Picture Theory, Chicago:The

University of Chicago Press, 199, p. 174.

Fonte: W. J. T.,Mitchell, ‘Ekphrasis And The Other’ in The South Atlantic Quarterly, 1992 .

FIGURA 29 — MEDUSA (ROMANTIC CIRCLE)

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Para que possamos continuar nossa digressão, comparem-se as Figuras 29 e 30

com o esquema de nossa autoria, a Figura 31, que desenhamos após termos recuperado

os elementos originalmente pintados ao redor da Medusa, valendo-nos, para isto, de

uma outra fonte, desta vez colorida, a qual manipulamos através de um programa de

edição de imagens. Podemos perceber, através dessa comparação, que a condição

principal do esquema, a centralidade da Medusa, não foi alterada, mas que seu

enquadramento,611

atividade central na composição do poema de Shelley, já difere das

formulações baseadas nos Esquemas anteriores: vários elementos do entorno da Medusa

foram ignorados ou transformados, todos eles ligados direta ou indiretamente com a

intuição da pintura por Shelley e subseqüentemente também com a interpretação

semiológica e iconológica do autor, na qual, no caso, baseamos nossa idéia do processo

interno.

611 Com relação à nossa idéia de enquadramento ver nesta tese o capítulo ‘Mapeando o vazio’.

FIGURA 30 — ESQUEMA (ROMANTIC CIRCLES)

Arte: Melissa J. Sites. Fonte: ‘Romantic Circles’, University of Maryland, in www.rc/umd.edu.

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Em relação à distribuição dos elementos, veja-se que, à volta da Medusa podem

se contar oito animais: à esquerda, dois lagartos e um morcego; à direita, dois sapos e

outro morcego; acima, um rato e uma salamandra [poisonous eft — linha 25]. Os

olhares destes animais convergem para o rosto da Medusa, ignorando as víboras que

adornam sua cabeça, que aliás, foram retratadas quase que destacadas de sua cabeça.

Numa análise puramente iconológica, à exceção da salamandra, que, através de

uma projeção da rocha parece projetar-se da boca da Medusa, todos os outros animais

são símbolos da decadência e da Morte. Esta discrepância pode ser relacionada com o

nosso primeiro nível de leitura, uma vez que na Antigüidade a salamandra era vista

como um animal que era capaz de viver no fogo e também de apagá-lo, sendo utilizada

na iconografia medieval para identificar a condição do “justo que, em meio às

tribulações, não perde a paz da alma e a confiança em Deus”.612

Assim, a salamandra

significaria a ascensão da Medusa rumo a uma área de escape, situada no centro

superior do quadro, região que é adornada por dois morcegos que estão voando na

direção da Medusa. Note-se, que na Figura 30 a salamandra é substituída por outro

612 Chevalier, Jean & Gheerbrandt, Alain. Dicionário de Símbolos. José Olympio Editora: Rio de Janeiro, 1988, p.

798.

Arte: Renato Amado Peixoto. Fonte:‘The Head of the Medusa’, Uffizi Gallery, in

www.Barca.Net / Uffizi.

FIGURA 31 — ESQUEMA (DESTA TESE)

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elemento que mantém o mesmo significado, o hálito da própria Medusa, que se eleva

seguindo também na direção da área de escape.

Em relação ao enquadramento, na base da pintura espalha-se o sangue

congelado da Medusa que se derrama em direção às extremidades do quadro buscando

misturar-se à névoa que concentrada nestas áreas emoldura toda a pintura. Por sua vez,

o rosto da Medusa, situa-se na zona central, mas, à beira de um precipício, de onde

domina um outro setor, desenhado num plano diferente e abaixo da Medusa e dos

animais que a cercam. Neste plano inferior se vislumbram algumas construções

humanas do meio das quais se destaca um torreão. Este conjunto de construções

humanas é dirigido através do torreão por uma ponte que segue na direção do pescoço

secionado da Medusa, onde, conjuntamente com a única víbora que se destaca de sua

cabeça nesta parte do quadro, sugere um prolongamento da Medusa rumo a esse plano

inferior.

Feita essa descrição da Figura 31, o nosso esquema da pintura atribuída a

Leonardo da Vinci, procederemos à comparação desta descrição com a Figura 30, tendo

em vista entender suas diferenças.

Mesmo através de um exame sucinto, fica bastante claro que no esquema do

‘Romantic Circle’ se mantém a centralidade do tema ainda que alguns dos elementos

originais tenham sido substituídos. Por exemplo, na Figura 30, em lugar da salamandra

que vemos na Figura 31, houve o registro de uma exalação vinda da Medusa: apesar

deste registro poder substituir com vantagem o significado simbólico do registro

original em alguns aspectos, ele se constituiu sobre uma alteração da compreensão do

poema, originada pela reprodução em preto-e-branco que vemos na Figura 29.

Esta alteração foi registrada num dos textos que introduzem a discussão, quando

seu autor entende que a impressão do ambiente, descrita por Shelley [Which makes a

thrilling vapour of the air (36)],613

era originada da exalação vinda da Medusa [thrilling

vapour of the air (36)].614

Na verdade, na estrofe final do poema, Shelley conjuga a impressão que deseja

ver causada pelo relato da observação da cena [Which makes a thrilling vapour of the

613 Nossa tradução: ‘O que cria um excitante vapor do ar’ — ‘Which makes a thrilling vapour of the air’ — Percy

Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery, v. 36.

614 ‘Out of the half-open mouth issues a whitish cloud of breath, the ‘thrilling vapour’ referred to by Shelley’ — nossa

tradução: ‘Da boca meio aberta emana uma nuvem esbranquiçada, o ‘vapor excitante’ referido por Shelley’ —

Jerome McGann. ‘The Beauty of the Medusa: A Study in Romantic Literary Iconology’ in Studies in Romanticism

XI, 1972, p. 3-25

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air (36)] com a imagem da névoa que se espalha pela pintura e se mistura com o sangue

congelado da Medusa (ver Figura 31), promovendo um efeito que deve ser

compreendido como ‘uma atmosfera de excitação’. Inclusive, o registro de uma

exalação vinda da Medusa na pintura atribuída à Leonardo da Vinci é negada pelo

próprio Shelley, como podemos compreender através da estrofe adicional do poema,

que não foi publicada nas obras completas de Shelley e que permaneceu desconhecida

até 1961:

O sangue está congelado -- mas a Natureza inconquistada

parece estar lutando até o final -- sem uma respiração615

(48)

Através desse exemplo podemos notar que a substituição ou a omissão de certos

elementos na reprodução da pintura atribuída a Leonardo da Vinci (Figura 29) mitigou a

compreensão da ‘ekphrasis’, induzindo os participantes da discussão a uma

compreensão que mesmo não sendo contraditória, diverge do sentido empreendido por

Shelley em sua composição do poema.

Por outro lado, notamos que esta substituição deve-se à utilização da reprodução

em preto-e-branco (Figura 29) e que esta substituição consolida-se pela disseminação de

uma intuição a partir do medium, no caso, o esquema disponibilizado (Figura 30) e dos

textos que serviram de base para a discussão.

Por conta desse raciocínio, podemos entender que a dinâmica da ‘ekphrasis’

compreende tanto uma perda ou transformação dos elementos que é causada pela

limitação do medium616

quanto uma compensação relativa feita através de outros

conteúdos ou baseada num conhecimento afim que resulta numa disseminação da

narrativa.617

Portanto, como no problema da ‘História das Fronteiras’ já possuímos o

conhecimento do registro original, no caso, a narrativa do século XIX, será possível

entender sua representação como uma dinâmica ‘mis-en-abysme’ ou em ‘ekphrasis’ a

ser explorada através de um exame das origens ou causas de suas compensações

615 Nossa tradução a partir de: ‘The blood is frozen--but unconquered Nature / Seems struggling to the last--without a

breath’ — Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery, v. 48. Esta estrofe foi

divulgada por Neville Rogers a partir das anotações da esposa de Shelley, Mary Shelley. Neville Rogers, ‘Shelley

and the Visual Arts’, in KSMB 12, 1961.

616 Em relação à limitação do medium ver nesta tese o capítulo ‘O espelho do Jacobina’.

617 Em relação à disseminação ver nesta tese o capítulo ‘O mapa antes do território’.

Page 343: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

343

relativas. Entretanto, ainda nos restaria, a partir da ‘ekphrasis’, resgatar a questão da

centralidade do tema, no caso da História das Fronteiras, a manutenção e perpetuação

das intelecções do espaço realizadas pela ‘visão central’.

Nesse sentido, embora nosso objetivo não seja contrariar aqui a discussão do

‘Romantic Circle’, aliás, muito mais competente que a nossa nos termos estritamente

literários do problema, necessitamos de sua ajuda para voltar a ressaltar a importância

do teatro da narrativa para a compreensão da dinâmica da representação, no caso, para

se discutir as condições da interpretação da ‘ekphrasis’.

A chave dessa interpretação está justamente em voltarmos à nossa análise do

poema de Shelley no segundo nível de leitura, ou seja, utilizando os elementos

semiológicos e iconológicos para sua interpretação segundo um privilégio do processo

interno.

Numa das observações que derivaram da discussão, constata-se que, desde a

publicação do ‘Laocoonte’ de Lessing, havia se delineado uma separação moral e

estética entre as artes, isto, justamente num período em que a ‘ekphrasis’ era

incentivada como gênero, como, por exemplo, podemos constatar através da decisão das

Universidades de Oxford e Cambridge em promoverem concursos para premiar os

melhores poemas sobre obras de arte ou culturas antigas.618

Ainda, é necessário salientar que havia toda uma estética consolidada para a obra

de arte que impunha padrões tanto para aqueles que se dispusessem à sua apreciação

quanto à sua produção. Por um lado, o público da ‘ekphrasis’ estava condicionado a

perceber essas obras segundo certas condições ligadas à compreensão do seu conteúdo,

por outro lado, existia todo um padrão de apreciação fundamentado pela obra de Joachin

Winckelmann no qual se estabelecia que o branco era a cor da beleza ideal e que a

utilização do colorido nas esculturas não condizia com a arte clássica. Ainda, havia todo

um saber consolidado das Mitologias grega e romana que impunha dificuldades à

compreensão e à aceitação de uma intelecção deste saber, ou seja, de uma composição

que se constituísse numa derivação da norma.

Assim as intuições do poema de Shelley foram prejudicadas pelas condições

anteriormente assinaladas, seja impelindo essas intuições rumo a um conteúdo já

esperado numa ‘ekphrasis’, seja fazendo-se a intuição de seu poema em relação ao saber

618 Grant Scott. ‘Shelley, Medusa, and the Perils of Ekphrasis.’ The Romantic Imagination: Literature and Art in

England and Germany, Ed. Frederick Burwick and Jurgen Klein: Amsterdam and Atlanta, 1996, p. 315-332.

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344

mitológico estabelecido ou ainda remetendo essa intuição a uma experiência

compartilhada,619

no caso, os padrões de apreciação da arte.

Desenvolvendo o raciocínio exposto no parágrafo acima, podemos

primeiramente voltar a lembrar a questão da reprodução da pintura da Medusa atribuída

a Leonardo da Vinci (Figura 29). O fato de que, no ‘Romantic Circle’, uma discussão

aprofundada sobre um tema tão complexo tenha se contentado em servir-se apenas de

uma reprodução em preto-e-branco, pode ser explicado a partir da prevalência desses

padrões de apreciação da arte e de que se satisfazia através desse padrão o

conhecimento do objeto julgado essencial à intuição do problema pelo saber mitológico

estabelecido, no caso, a figura da Medusa degolada.

Em segundo lugar, podemos entender que se tenha privilegiado a interpretação

do poema em relação ao esperado na ‘ekphrasis’, ou seja, segundo uma descrição

poética do quadro atribuído a Leonardo da Vinci, negligenciando-se outras

interpretações possíveis, como por exemplo a leitura que faremos a seguir, que remete à

intelecção da própria dinâmica da representação, no caso, entendendo a composição de

Shelley como remetendo ao próprio conceito da ‘ekphrasis’ através de uma intelecção

semiológica e iconológica da Medusa a partir do seu pensamento.

Nesse sentido, para Shelley, a Medusa repartia duas condições, uma humana

outra monstruosa, consistindo esta segunda condição num efeito da transformação da

narrativa operada por Atenas, no caso, uma representação de sua Vontade, que

continuou sendo operada por Atenas mesmo no seu desenlace, uma vez que Teseu, o

assassino da Medusa, foi guiado pela mão da mesma Atenas.

Entretanto, ainda que na Medusa existissem duas condições, a condição

monstruosa mantinha seus atributos sobre a condição humana, que por sua vez

impressionava a condição monstruosa “um espelho em permanente mutação” [ever-

shifting mirror (37)].

Assim, se o encanto da condição humana sobressai nos lábios e pálpebras da

Medusa a despeito de sua condição monstruosa, também será sua “beleza” o artifício

capaz de burlar a vigilância do pensamento do observador e instaurar neste a condição

monstruosa que o transformará em pedra.620

Deste modo, os traços da Medusa se

619 Ver o problema da experiência compartilhada nesta tese no capítulo ‘4.1’.

620 ‘Contudo, é menos o horror que o encanto que transforma o espírito do observador em pedra’ — Yet it is less the

horror than the grace / Which turns the gazer's spirit into stone;’ — Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da

Vinci, In the Florentine Gallery, v. 9-10.

Page 345: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

345

reproduzem no observador através dele mesmo, por uma suspensão de seu

pensamento,621

que também permite a absorção da “suave nuança da beleza”,

“humanizando e harmonizando” a sua deformação,622

que se esconde, portanto atrás de

sua ‘Máscara da Medusa’.

Observe-se que o poema de Shelley assemelha-se com o estudo que fizemos no

capítulo ‘Em amplexo fraternal’ sobre a luta de representação e a resistência do

princípio subjetivo a partir de Schopenhauer e Schelling, especialmente se o

comparamos com sua estrofe perdida:

É um semblante divino de mulher (41)

Com uma incessante beleza ali respirando

Que de um cume tempestuoso, voltado para cima,

Fixa seu olhar no [ ] ar tremeluzente da noite.

Ela é uma cabeça sem tronco, mas em seus traços (45)

A Morte encontrou a vida, mas existe vida na morte,

O sangue está congelado -- mas a Natureza inconquistada

parece estar lutando até o final -- sem uma respiração

O fragmento de uma criatura não criada.623

Por conseguinte, na discussão do ‘Romantic Circle’ as interpretações enveredam

mais pela condição literária de Shelley ou por uma intuição da lenda da Medusa, do que

pelo modo que esse autor era capaz de entender o saber mitológico estabelecido,

contestá-lo e sobrepor a este uma intelecção baseada no amadurecimento de seu

pensamento a partir de sua experiência e da sua percepção das oportunidades e modos

de expressá-la.

Assim, podemos entender que, no caso da dinâmica da representação da

História das Fronteiras, a questão da centralidade do tema e a manutenção e

perpetuação das intelecções do espaço realizadas pela ‘visão central’ foram garantidas

621 ‘Os traços daquela face morta são gravados, até que os caracteres tornem-se nele mesmo e o pensamento não mais

possa mais seguir’ — Whereon the lineaments of that dead face / Are graven, till the characters be grown / Into

itself, and thought no more can trace;’ — Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine

Gallery, v. 11-13.

622 Nossa tradução: ‘É a suave nuança da beleza arremessada contra a escuridão e o clarão da dor, que humaniza e

harmoniza a tensão’ — 'Tis the melodious hue of beauty thrown / Athwart the darkness and the glare of pain, /

Which humanize and harmonize the strain.’ — Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the

Florentine Gallery, v. 14-16.

623 Nossa tradução de Percy Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 45-49.

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346

pela consolidação de uma ‘gramática da linguagem’ no teatro da narrativa. Esta

‘gramática’ relaciona-se a uma experiência compartilhada pela maioria daqueles que

participavam do teatro da narrativa e expressa por meio de uma linguagem e de um

‘‘saber sobre o espaço’’. Assim, a partir da compreensão do poema de Shelley, podemos

entender que as características dessa ‘visão central do espaço’ foram preservadas na

‘História das Fronteiras’ e consolidadas numa ‘Mitologia do espaço nacional’, nossa

‘Máscara da Medusa’.

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A visão central do espaço e a Comissão de Limites

And from its head as from one body grow, (17)

As [ ] grass out of a watery rock,

Hairs wich are vipers, and they curl and flow

And their long tangles in each other lock,

And with unending involutions shew

Their mailed radiance [...]

Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da

Vinci, In the Florentine Gallery624

No capítulo anterior mostramos que a experiência compartilhada no Conselho

de Estado e na SNE, foi responsável por gerar diversas idéias de ‘inscrição do Estado no

espaço internacional’, que interagiram com a construção da representação do espaço

nacional. Entretanto, como essas idéias interagiriam com a intelecção do espaço

realizada a partir da ‘visão central’? Até que ponto a construção da ‘visão central do

espaço’ foi influenciada pela ‘inscrição do Estado no espaço internacional’?

Essas questões podem ser analisadas tanto a partir dos problemas gerados pelo

estreitamento do teatro da narrativa625

e de sua ligação com a administração da política

externa pela SNE quanto pela sua inserção num circuito da centralidade, ou seja, no

registro contínuo das atividades da SNE junto à ‘visão central’, que classificava,

distinguia e reconduzia a operação da narração rumo ao centro. Este circuito da

centralidade, por sua vez, estaria também ligado diretamente a uma ‘inscrição do

Estado no espaço internacional’: reavivar continuamente os laços dos indivíduos com o

centro do panóptico, significava também inserir estes indivíduos numa nova dinâmica

da representação do Estado no espaço internacional, ligada à modernização e às

transformações desse espaço.

Assim, visando uma primeira aproximação com o problema, entendemos que os

limites eram compreendidos como um espaço que intermediava a ligação entre a

624 Nossa tradução: ‘E de sua cabeça como se fosse de um só corpo nasce, / Como ervas [ ] de uma pedra úmida, /

Cabelos que são víboras, e eles se enroscam e escorrem / E seus longos emaranhados em cada outro se fecha, / e

com involuções sem fim mostravam / Sua radiação metálica [...]’ — Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da

Vinci, In the Florentine Gallery, v. 17-22.

625 Ver o capítulo ‘O espelho do Jacobina’.

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‘inscrição do espaço nacional’ e a ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, que no

caso denominaremos de espaço intermédio. No caso do Brasil, na década de 1850

inúmeros contenciosos ligavam esse espaço intermédio com as grandes potências e os

diversos países latino americanos. Desenvolver-se-ia então uma enorme atividade

diplomática que visava diminuir os efeitos dos atritos com a Inglaterra no caso do

Tráfico e da neutralização do território do Pirara; resolver o problema da ocupação do

Amapá pela França; desestimular o ímpeto norte-americano sobre a Amazônia; e

resolver os muitos problemas ainda referentes às indenizações das presas de guerra da

Cisplatina.

Como segunda aproximação do problema, deve-se perscrutar qual o status que

se havia resolvido dar a esse espaço intermédio.

Através de sua pesquisa no Arquivo da Marinha, quando da constituição do

Arquivo da SNE, Duarte da Ponte Ribeiro encontrara a documentação relativa às

demarcações de 1750, resgatando para a operação da narrativa626

a certeza de que o

Tratado de Madri fora repudiado desde o seu nascimento por ser completamente

prejudicial às posses portuguesas. Do mesmo modo, através do estudo do Tratado de

Badajoz de 1681, confirmou-se que Portugal repudiara anteriormente o Tratado de

Tordesilhas, nunca tendo existido qualquer consenso, nem mesmo entre os Espanhóis,

sobre o traçado dessa linha, que havia sido, inclusive, identificada com o Meridiano de

Greenwich.

Portanto, na década de 1850, ainda não existia o mito da origem do território

nacional pelo Tratado de Madri, que era então entendido na SNE como “uma tentativa

da Espanha em restringir o direito de primeira posse que então era o único admitido

pelos Portugueses”, mas que podia ser identificado com o uti possidetis, como um

“eqüitativo princípio de posse efetiva”.627

Assim, Ribeiro recuperava também o sentido original do Tratado de 1750, no

qual um ‘princípio eqüitativo de posse’ deveria ser obtido a partir de cessões territoriais

visando tanto “arredondar” o território quanto eliminar o contencioso com a Espanha,

na realidade, o objetivo maior de Alexandre de Gusmão, como pôde ser compreendido

626 Ver o capítulo ‘O itinerário do valioso ao possível’.

627 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Apontamentos de Duarte da Ponte Ribeiro sobre as possessões portuguesas e espanholas

na América’, 1840-1850?. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 289, Maço 3, Pasta 5.

Page 349: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

349

através da leitura do seu ‘Extrato da Resposta’, publicado pela Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro.628

O espaço intermédio era considerado assim, um espaço destinado à cessão ou à

troca, que deveriam se consubstanciar por um ajustamento às fronteiras naturais ou ao

argumento da autoridade, abandonando-se, por conta disso, determinadas pretensões e

racionalizando-se outras — em síntese, o ‘princípio eqüitativo de posse’ era o

ajustamento da doutrina do uti possidetis de Ribeiro aos escritos de José Antônio

Pimenta Bueno.629

Assim, por exemplo, enquanto a região do Rio dos Enganos foi

considerada pela SNE como área destinada à cessão, o território dependente do rio

Javari sempre foi considerado como uma ‘moeda de troca’ com o Peru e a Bolívia.630

Como terceira aproximação do problema, deve-se compreender que dar-se-ia

uma transformação do status do espaço intermédio a partir da transformação das idéias

da ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, sendo que o grande marco dessa

mudança foi a viagem que Paulino Soares de Souza fez à Paris em 1855, em virtude de

ter sido designado para discutir a questão do Amapá com os representantes franceses.

Ainda em 1853, a cessão de territórios era, de fato, o programa de negociação de

limites seguido pela SNE em resposta a determinados problemas como a ocupação

francesa do Amapá ou as pretensões colombianas sobre o Estado do Amazonas, como

assinalamos, em acordo com o entendimento de então da doutrina do uti possidetis.

Assim, quando Paulino Soares de Souza foi enviado à França, a estratégia de

negociação que lhe fora confiada constava em oferecer sucessivas cessões do espaço

intermédio, conforme a resistência francesa à argumentação brasileira, visando, com

isso, satisfazer o apetite territorial daquela potência. Contudo, nem a proposta menos

vantajosa para o Brasil, que acordava em ceder toda a região até o rio Calçoene, foi

capaz de impressionar positivamente a diplomacia daquele país. Como conseqüência da

viagem de Soares de Souza, que constatou o verdadeiro ânimo das potências européias

em relação ao Brasil, passar-se-ia a considerar na discussão do espaço nacional o

628 Alexandre de Gusmão, 'Extrato da resposta que Alexandre de Gusmão, Secretário do Conselho Ultramarino, deu

ao Brigadeiro Antonio Pedro de Vasconcellos sobre o negócio da praça de Colônia.' Revista do Instituto Histórico

e Geográfico Brasileiro, tomo I, n° 1, 1839, p. 337-344.

629 Veja-se nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.

630 Veja-se, por exemplo: Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Memória n. 4 - Exposição do estado em que se achavam as

questões de limites entre Espanha e Portugal relativas às fronteiras do Brasil com as províncias do: Paraguai,

Bolívia e Peru, depois da 2ª guerra de 1801 que anulou o Tratado de Santo Ildefonso’, 1842. AHI, Arquivo

Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Documento 2, p. 39.

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350

Tratado de Santo Ildefonso, até então descartado por conta de um entendimento que o

considerava mais desfavorável que o Tratado de Madri.

Para esta transformação contribuíram dois acontecimentos diferentes, sendo o

primeiro destes, a constatação feita por Ribeiro de que a argumentação a partir do

Tratado de Santo Ildefonso poderia ser benéfica para o Brasil em certas áreas se

combinada com a política de cessões, por conta das vagas instruções constantes no

Tratado e do desconhecimento do espaço, como, por exemplo, em relação com a

Venezuela, onde o princípio de divisão de águas consolidava a posse da região do Rio

Branco para o Brasil.631

O segundo acontecimento que contribuiu para essa transformação foi a

publicação em Montevidéu da ‘Historia de las Demarcacionaes en la America entre los

Dominios de España e Portugal’, que havia sido escrita no século XVIII por um dos

Demarcadores espanhóis do Tratado de Santo Ildefonso.

Esta publicação se deu porque o Encarregado de Negócios do Governo da

Bolívia no Rio de Janeiro, General Guilarte incumbiu D. Florencio Varela, um dos

maiores editores da região do Prata, de imprimir essa Memória em 1846 como parte de

sua ‘Biblioteca de Comercio’. Dedicada ao dirigente do Paraguai, Carlos Lopez, sua

publicação visava despertar contra o Brasil a solidariedade dos demais países latino-

americanos e, uma vez estando instruídos das condições das Demarcações do Tratado

de 1777, pudessem se pôr de acordo, obrigando o Brasil a demarcar com todos estes, em

conjunto, a respectiva fronteira indicada pela Memória.

Segundo Ribeiro, essa Memória mostrava apenas que, tendo o Governo

Espanhol julgado conveniente reunir um elenco da correspondência oficial dos

Comissários encarregados da Demarcação do Tratado de 1777, havia encarregado desse

trabalho um dos Comissários, o Brigadeiro Francisco Requeña. Este, que havia sido

participante da Quarta Partida das Demarcações, as quais se desenrolaram na região do

rio Amazonas, foi autorizado a emitir sua opinião sobre os argumentos controversos do

Tratado e a traçar um mapa de toda a Fronteira, a fim de que pudessem ser utilizados em

futuras negociações. Entretanto, esta condição da Memória, explícita no seu prólogo,

631 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Resumo histórico dos Convênios, Tratados, e Discussões entre a Espanha e Portugal

relativamente à possessão do território no continente americano e demonstração de que ambos conheciam pouco as

localidades por onde descreveram a mútua fronteira dando lugar a questões que ainda duram’, 1853. AHI, Arquivo

Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 289, Maço 3, Pasta 7.

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351

não chegaria ao conhecimento dos leitores, já que Varela e Guilarte intencionalmente

não o incluíram junto ao resto do livro.632

Assim, por conta desses acontecimentos, seria iniciada por Ribeiro a construção

de uma ‘História das Demarcações’ referente aos Tratados de 1750 e 1777, uma vez que

se tornara necessária para contestar a Memória de Varela. Essa ‘História das

Demarcações’ começou a ser escrita em 1855, por ordem de José Maria da Silva

Paranhos, em seguida às primeiras pendências desencadeadas pela Memória, no caso,

em relação a Argentina.633

A partir da ‘História das Demarcações’, o espaço intermédio começa a ser

consolidado junto ao espaço nacional, fazendo parte de uma construção coordenada por

Ribeiro e inserta na narrativa do século XIX, no caso, como vimos, remetida por

Ribeiro a uma ligação com um passado ancestral e formador da nacionalidade.

Contudo, como esta construção, apesar de ter sido incluída posteriormente na

‘História das Fronteiras’, ainda é bastante diferente desta ou de uma ‘Mitologia do

espaço nacional’, procuraremos através de uma quarta aproximação do problema,

entender como essas idéias interagiram com a construção de uma intelecção do espaço

realizada a partir da ‘visão central’

Vimos no capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’ que em 1850, o IHGB

ganha um feição mais conservadora a partir da reforma de seu Estatuto, extinguindo-se

nesse processo a promessa de cursos públicos de História e Geografia e se instituindo

um controle mais rígido sobre a entrada de novos sócios.

Esta reforma, que bem pode ter sido inspirada por Varnhagen, marca também

uma virada no perfil das corografias publicadas pelo Instituto. Se até 1849 a grande

maioria dos trabalhos publicados na Revista do IHGB consistia de corografias curtas do

século XVIII, após a Reforma de 1850 passou-se a dar preferência tanto à publicação

dos trabalhos recolhidos por Varnhagen na Europa, como foi o caso, por exemplo, do

‘Roteiro de Gabriel Soares’ cuja publicação integral cobriu mais de um exemplar da

Revista ou ainda, quanto à publicação de trabalhos contemporâneos sobre o território,

como, por exemplo, as ‘Memórias históricas das aldeias de índios da Província do RJ’.

632 Duarte da Ponte Ribeiro, ‘Apontamentos de Duarte da Ponte Ribeiro sobre as possessões portuguesas e espanholas

na América’, s/data. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Documento 1.

633 Correspondência de Duarte da Ponte Ribeiro com José Maria da Silva Paranhos, 1855. AHI, Arquivo Particular de

Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 3, Doc. 27.

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Como também já vimos, a participação de Varnhagen no Instituto está

diretamente relacionada ao seu engajamento no esforço da constituição do acervo

documental da SNE, que havia sido iniciado por Antonio Peregrino Maciel Monteiro

em 1839.634

Portanto, a partir desses condicionamentos, entendemos que, quando Varnhagen

escreve o seu ‘Memorial Orgânico’ em 1849, este estaria expressando uma intelecção

do espaço a partir da intuição de uma experiência compartilhada que, no caso,

identificamos com a ‘visão central do espaço’.

Ao contrário de Ribeiro, a intelecção de Varnhagen não está apenas relacionada

com o espaço intermédio, nem se preocupa diretamente em construir uma relação do

nacional com a terra: para Varnhagen a ‘inscrição do Estado no espaço’ é uma relação

de conquista, de incorporação, de estreitamento a todo custo da ligação da terra e de

seus habitantes com o Estado e com o circuito da centralidade.

Nesta intelecção, Varnhagen aponta a necessidade de racionalizar a ‘inscrição do

Estado no espaço’ através de uma melhor organização do seu território, da elaboração

de um plano de Defesa que visasse a conservação das comunicações internas e da

transferência da capital para uma localização capaz de fomentar o desenvolvimento e de

resguardar o centro do poder de um ataque dos seus inimigos.

Nesse sentido, Varnhagen destaca a importância da centralidade, enfatizando a

necessidade de seu registro no centro mesmo da inscrição do Estado e da construção de

uma representação própria: a capital deveria ser transferida para um local de clima “já

não tropical”, onde a altitude propiciasse “ares mais finos e correspondentes aos da

Europa”. Em torno dessa cidade, para a qual Varnhagen propunha o sugestivo nome de

“Imperatória”, se deveria redesenhar o território do Estado em dezenove

“departamentos” visando com isso proporcionar “mais harmonia” ao seu conjunto,

eliminando a “monstruosidade” de algumas províncias e a “quase nulidade de outras.”

E isto quando as estrelas do Império para o seu uniforme regime e

movimento devem constituir uma constelação regular. E isto quando as

diferentes peças da monarquia brasílica para que se sustente em equilíbrio

devem ser, quanto possível, de igual força e resistência, à maneira das

634 Veja-se nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.

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pedras de uma abóbada de volta inteira, que sustentando-se e apoiando-se

umas nas outras, conseguem sustentar o edifício todo.635

Esse equilíbrio em torno da centralidade deveria ser cuidado através da

constituição de “defesas interiores” do Estado, ou seja, a ocupação de pontos

geográficos estratégicos a partir dos quais se pudesse controlar e resguardar as

comunicações internas. Ao mesmo tempo dever-se-ia procurar expandir seu espaço

sobre determinadas áreas externas que, inclusive, Varnhagen não esqueceria de incluir

na sua redivisão territorial, a saber, o Uruguai, as vertentes e cabeceiras do rio Purus e

todas as vertentes da margem esquerda do rio Guaporé, oferecendo-se em troca, os

territórios dependentes do rio Javari.

Portanto, a ‘inscrição do Estado no espaço’ de Varnhagen visa aumentar o raio

de eficiência da centralidade através de uma ação sobre o território, que compreende

sua ocupação, organização e controle.

O alcance dessa eficiência comportava ainda uma ação sobre os habitantes desse

território, já que a população era entendida por Varnhagen como sendo um dos

principais recursos do Estado. Entretanto, no caso do Brasil, esta seria muito pequena

em relação a seu território e pior ainda, heterogênea: “Temos cidadãos brasileiros;

temos escravos africanos e ladinos, que produzem trabalho, temos índios bravos

completamente inúteis ou antes prejudiciais, e temos pouquíssimos (infelizmente)

colonos europeus”.636

Assim, o aumento da eficiência da centralidade legitimava uma desqualificação

da condição dos seus primitivos habitantes engendrando a passagem para uma ação de

conquista e colonização:

O Brasil pertence-nos pela mesma razão que a Inglaterra ficou

pertencendo aos Normandos quando a conquistaram. Pela mesma razão que

Portugal ficou pertencendo a Affonso Henriques e seus sucessores e

vassalos que o tomaram dos mouros. O primeiro direito de todas as nações

conhecidas foi o da conquista. Nós proclamamos para o Império

(compreendendo o território de que eles estão senhores) o nosso chefe e a

nossa lei. Todo o que não obedece a uma e ao outro rebela-se e é criminoso.

635 Francisco Adolfo de Varnhagen, Memorial Orgânico. S/lugar: s/editor, 1849, p. 6.

636 Francisco Adolfo de Varnhagen, Memorial Orgânico. s/lugar: s/editor, 1849, p. 1.

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E para o crime não vale em direito a alegação de ignorância; pois em tal

caso não haveria negro fugido, nem ladrão de estrada e canhambola que não

fosse ignorante.637

Deste modo, “civilizar o Império” significava estender sobre toda a extensão de

seu espaço as ‘relações de soberania’ que já compunham o circuito da centralidade,

fazendo com que todos passassem a ser inseridos na tradição e nos pactos já

estabelecidos pela experiência compartilhada. Nesse sentido, por exemplo, em relação

aos indígenas, Varnhagen acreditava que já havia sido suficientemente demonstrado que

os meios brandos não deveriam ser considerados nessa ação sobre o território, uma vez

que os mesmos indígenas haviam instituído o que era por ele qualificado como “uma

rebelião armada dentro do Império”:

E desenganemo-nos: as raças bravias, que se declararam inimigas de

morte de nossos antepassados, serão até os últimos descendentes bravios,

nossos inimigos de morte: e não temos outro recurso, para não estarmos

séculos à espera que eles queiram civilizar-se, do que declarar guerra aos

que se não resolvam submeter-se, e ocupar pela força essas terras pingues

que estão roubando à civilização.638

Uma vez que nós entendemos que ação sobre o território compreendia uma

generalização das ‘relações de soberania’, vale a pena remontarmos rapidamente à idéia

do ‘colonialismo interno’ de Foucault que estudamos no capítulo ‘Mapeando o vazio’.

No caso da construção do Estado no Brasil, as ‘relações de soberania’ não se constituem

por um acordo mútuo entre as partes, mas através de uma legitimação feita pelo Estado

da tradição e dos pactos já estabelecidos pela experiência compartilhada, a qual, por sua

vez, estabeleceria essas ‘relações de soberania’ como parte do circuito da centralidade.

Portanto, essas ‘relações de soberania’ já haviam sido constituídas desde a colonização

nos termos da ‘conquista do espaço’, consolidando-se sob a forma da subordinação e da

escravidão.

Essa intelecção de Varnhagen se desenvolveria quando este foi chamado a

participar como consultor da ‘Comissão de Limites’ que havia sido constituída em 1850

637 Francisco Adolfo de Varnhagen, Memorial Orgânico. s/lugar: s/editor, 1849, p. 53-54.

638 Francisco Adolfo de Varnhagen, Memorial Orgânico. s/lugar: s/editor, 1849, p. 54.

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por Paulino Soares de Souza,639

sendo então encarregado de elaborar uma ‘Memória’

que relacionasse e opinasse sobre os mapas e os documentos que poderiam ser

utilizados nas negociações de limites.

Nesta ‘Memória’, Varnhagen, pela primeira vez, sugeriria a composição de uma

“História das Fronteiras”, onde se estabelecesse uma relação entre a ‘inscrição do

Estado no espaço internacional’ e a ‘visão central’, definindo-a então enquanto parte da

História do Brasil e considerando que deveria alcançar até os “primeiros anos de

existência colonial”.

Nesse entendimento Varnhagen passava a definir os pactos entre as Metrópoles

enquanto os verdadeiros marcos da construção do espaço nacional, imprimindo-se,

através destes, um vínculo que transmitia a legitimação e a soberania. Esse vínculo era

definido como tendo sido construído através de um acordo entre as partes, como pode

ser compreendido, por exemplo, pela sua descrição do Tratado de Madri, “negociado

com tanta sabedoria, tanta boa fé e lisura [...] que os negociadores de parte a parte se

mostraram com ele superiores ao seu século”.640

Portanto, enquanto a ação do Estado sobre o território na segunda metade do

século XIX era definida e defendida por Varnhagen como uma ação de conquista e de

expansão das ‘relações de soberania’, a ‘História das Fronteiras’ era baseada numa

elisão dessa mesma conquista, vinculando-a a uma transmissão legitimada. Assim,

através da ‘História das Fronteiras’ se construía o arcabouço de que se valeria a

‘Mitologia do espaço nacional’ para elidir o conflito e estabelecer a legitimidade do

Estado através de sua ‘inscrição do Estado no espaço internacional’.

Essa construção da ‘História das Fronteiras’ continuaria a ser desenvolvida no

âmbito de sua ‘História Geral do Brasil’, uma vez que os pactos entre as Metrópoles e

seus protagonistas seriam considerados como marcos históricos da nacionalidade, como,

por exemplo, se depreende através do mapa incluso nessa obra, onde o Tratado de

Tordesilhas foi registrado e identificado como sendo o “Meridiano da Primitiva

Demarcação”.641

639 Ver nesta tese o capítulo ‘Um itinerário do valioso ao possível’.

640 Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘Memória sobre os trabalhos que se podem consultar nas negociações de limites

do Império, escrita por ordem do Conselheiro Paulino José Soares de Sousa', 1851. IHGB, Lata 340, Pasta 6, p. 1.

641 Ver a discussão desse registro nesta tese no capítulo ‘Riscando o passado’.

Page 356: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

356

Do mesmo modo, Varnhagen também desenvolveria o argumento da

desqualificação do indígena, considerando ser impossível o reconhecimento destes

como os “legítimos donos das terras”, uma vez que estes não a habitavam sendo apenas

nômades. Neste raciocínio, os indígenas sequer mereciam o nome de bárbaros, sendo

apenas selvagens incapazes de ultrapassar esse estágio, uma vez que os “elementos

dissolventes de sua sociedade” levavam esta, em certos casos, a “exterminar-se e a

tragar-se a si própria, como os filhos de Saturno”.642

Citando Azeredo Coutinho, Varnhagen advogaria então a escravidão e a

subordinação como o “primeiro passo para a civilização das nações” e por conta desse

remédio, entendia serem os bandeirantes os grandes alargadores da raia da civilização

“da pátria dos dois Gusmões”, todos, tão paulistas como ele próprio.643

Varnhagen prosseguiria trabalhando até a sua morte nesse seu intento de

equilibrar, através da História do Brasil, a desqualificação dos indígenas com a ‘História

das Fronteiras’, sendo da sua última fase os dois trabalhos mais relevantes para este

nosso estudo. A primeira destas obras é ‘Les américains tupis-caribens et les anciens

eyptiens’, publicada na Europa e a segunda é o artigo ‘Biografias de Francisco José de

Lacerda e Antonio Pires da Silva Pontes Leme pelo Barão de Porto Seguro’, publicado

na Revista do IHGB.644

Em ‘Les américains’, Varnhagen, ao mesmo tempo em que defende a

necessidade do estudo e ensino das línguas indígenas do Brasil para “alimentar o

espírito da nacionalidade”, também pretende provar através da lingüística que os Tupis

não eram verdadeiramente nativos da América, mas originários da Europa. Os Tupis

teriam chegando à América pelas ilhas Canárias e pelo Caribe, como seriam capazes de

demonstrar a filologia e o estudo comparado dos costumes, que ainda comprovariam

sua ascendência da mesma raça que teria gerado os egípcios.

Do mesmo modo, para Varnhagen, a presença e a parecença dos mitos e dos

vocábulos Tupis com a Mitologia e a língua egípcia e de outras antigas culturas

642 Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert, 1854, p. XVI-XVIII.

643 Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert, 1854, p. XXI-

XXVIII.

644 Francisco Adolfo de Varnhagen, Les américains tupis-caribens et les anciens eyptiens. Viena: Librairie I. et R. de

Faesy & Frick, 1876; Francisco Adolfo de Varnhagen, ‘Biografias de Francisco José de Lacerda e Antonio Pires da

Silva Pontes Leme pelo Barão de Porto Seguro’ in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo

XXXVI, parte 1, 1873.

Page 357: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

357

européias e asiáticas, comprovariam que a origem dos Tupis estava no Velho Mundo,

decorrendo deste raciocínio serem os Tupis tão brasileiros quanto os portugueses.

Já nas ‘Biografias’, Varnhagen procuraria incorporar a ‘História das

Demarcações’, começada por Ribeiro, à História do Brasil, alçando dois de seus

participantes à condição de protagonistas principais da ‘História das Fronteiras’.

Neste artigo, Francisco José de Lacerda e Antonio Pires da Silva Pontes

Leme,645

demarcadores do Tratado de Santo Ildefonso, foram descritos enquanto

patriotas abnegados que enfrentaram grandes riscos e sacrifícios para colaborar numa

‘política de demarcação das fronteiras brasileiras’. Nas ‘Biografias’, seria ainda

destacada por Varnhagen a fidelidade do paulista Lacerda à derradeira missão que lhe

fora designada, quando faleceria, orgulhoso até o fim, de estar a serviço do Estado

português, no afã de atravessar o Continente africano de lado-a-lado.

A escolha de Lacerda e Leme dentre outros participantes das demarcações do

século XVIII, atendia a diversos propósitos de Varnhagen, primeiramente, como os dois

foram os únicos brasileiros que receberam o grau de doutores em matemática pela

Universidade de Coimbra, visava-se exaltar essa condição. Em segundo lugar,

procurava-se através de seus exemplos exaltar o patriotismo e a figura dos

demarcadores, isto num momento em que se procuravam demarcar as insalubres

fronteiras amazônicas. Em terceiro lugar atendia-se a idéia de se acrescentar mais algum

elemento à construção do mito do paulista enquanto desbravador e alargador das

fronteiras. Por último atendia-se aos interesses internos da própria SNE, já que o filho

de Leme era então um dos seus funcionários mais proeminentes.

Entretanto, as ‘Biografias’ acrescentariam ainda mais um elemento à ‘Mitologia

do espaço nacional’, por conta de Varnhagen elidir o verdadeiro contexto das atividades

de Leme e Lacerda, já que muitos dos trabalhos destes não podiam ser propriamente

conectados a uma ‘política de demarcações’ e menos ainda a um ‘esquadrinhamento do

espaço nacional’, como ecoaria mais tarde Sérgio Buarque de Holanda.646

Nesse

sentido, Varnhagen ainda despiria Lacerda e Leme de suas características pessoais por

conta destas serem contrárias à afirmação mitológica da ‘História das Fronteiras’, assim,

deve-se salientar, inclusive por conta de um resgate da memória de Lacerda e Leme, que

645 Ver o capítulo ‘A descrição do contemplador’.

646 Sérgio Buarque de Hollanda (org.), História Geral da Civilização Brasileira (I), Vol. 1. Ed. Bertrand Brasil: Rio de

Janeiro, 2003, p. 297-298 — a edição original é de 1961.

Page 358: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

358

os dois astrônomos eram extremamente críticos à sociedade portuguesa da época e a seu

Estado, sendo apenas tolerados pela raridade de seu saber. Exatamente por conta disto,

ambos foram mantidos sob a vigilância estreita das autoridades locais, sendo que as

críticas abertas de Lacerda e Leme aos costumes e à administração eram a principal

razão dos astrônomos serem mantidos o maior tempo possível em atividade fora dos

núcleos urbanos, mesmo que em trabalhos secundários.647

Podemos, inclusive, aventar

que a missão de Lacerda à África se constituiu numa punição dada a este astrônomo, já

que a debilidade de sua saúde, decorrente das atividades prolongadas na floresta

amazônica, era do conhecimento de todos.

Por último, acrescentamos ainda que a escolha desses astrônomos por

Varnhagen, pode ter decorrido por conta da posição do filho de Leme na hierarquia da

SNE e de uma necessidade de transformar a memória da família, tornando-a aceitável

no circuito da centralidade, uma vez que algumas das maiores críticas de Leme e

Lacerda dirigiam-se ao tratamento dispensado aos indígenas, que consideravam

degradante e inumano:

Viam-se pelas barreiras de Barcelos, chorando, algumas índias e

mamelucas, e faziam chorar a quem pensasse na grande miséria em que vive

esta gente toda, fazendo um jejum que passa de magno, ou abstinência de

toda a carne, a ser a xerofagia da Igreja Grega, não tendo mais que beiju e

pimentas para comer. Também os oficiais que nos fizeram a honra de vir até

a escada, mostravam sentimento, creio de nos verem apartar e que

desejavam vir também. Eu não pude ter a mesma alegria de me ver fora de

um cárcere do gênero humano, em que todos sofrem e muito mais os índios

que andam buscando tartaruga do rio Solimões e do rio Branco, e farinhas

da Cachoeira, para ter mão da vida dos que ali se acham por mero

capricho.648

647 Correspondência do Capitão-general Luis de Albuquerque com Martinho de Mello, 1787. AHI, Arquivo Particular

de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 266, Maço 1, Pasta 10.

648 Antonio Pires da Silva Pontes, ‘Diário histórico e físico da viagem dos oficiais da demarcação que partiram do

quartel general de Barcelos para a capital de Vila Bela da Capitania de Mato Grosso, em 1° de setembro de 1781’

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n° 262, Jan. - Mar 1964, p. 344-345.

Page 359: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

359

O território dos filhos de Saturno

And from a stone beside, a poisonous eft (25)

Peeps idly into these Gorgonian eyes;

Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,

In the Florentine Gallery 649

Podemos entender a ‘História das Fronteiras’ que começou a ser construída em

meados do século XIX como uma representação da episteme da sociedade brasileira, da

qual a cartografia do espaço nacional era uma das intelecções mais importantes. Assim,

pela ‘História das Fronteiras’ se legitimariam os espaços coloniais, as ‘relações de

soberania’ e a elisão dos espaços indígenas, enquanto que, por meio da cartografia se

organizariam e se planejariam as ações do Estado. Contudo, Varnhagen intuiria a

relação entre as várias partes do território nacional através da cartografia, descobrindo

desproporções que justificavam sua intelecção da ocupação do vazio e o planejamento

de uma ‘inscrição do Estado no espaço’ verdadeiramente panóptica.

Portanto, como pudemos observar na relação existente na ‘ekphrasis’ entre a

pintura e sua descrição poética, a cartografia não apenas reproduz a ‘História das

Fronteiras’, mas também a constrói. Neste sentido, juntaremos a argumentação

constituída no capítulo anterior: embora as Cartas Gerais fossem uma representação

gráfica daquela episteme, estas eram também uma contingência da ‘inscrição do espaço

nacional’, recebendo as diversas contribuições da resistência a uma derrota do

princípio subjetivo e da disseminação cartográfica, já que, como vimos anteriormente, a

partir da concepção renascentista da geografia ptolemaica se entendia a composição

cartográfica enquanto uma representação construída a partir da reunião de um mosaico

de outras representações.650

Por conseguinte, como visto através do estudo da ‘ekphrasis’, o espaço era

apenas acertado por uma Carta Geral para logo em seguida ser reorganizado por outra,

sendo que os participantes dessas inscrições ainda competiam entre si no sentido da luta

de representações. Ainda, apesar das representações do espaço nacional terem sido

649 Nossa tradução: ‘E de uma pedra ao lado, uma salamandra venenosa / Espia negligentemente para dentro destes

olhos Gorgonianos;’ — Percy Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 25-26.

650 Ver nesta tese os capítulos ‘A descrição do contemplador’ e ‘O espelho do Jacobina’.

Page 360: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

360

abstraídas de mapas e corografias que muito diferiam temporal e conceitualmente entre

si, elas também incorporariam preocupações contemporâneas e pontuais, como a

incerteza, o desconhecimento e a experimentação do território. Esta última, por

exemplo, estava diretamente relacionada à construção da centralidade, que em nossa

compreensão buscava menos constituir um Brasil-Ilha, como considerou Jaime Cortesão

em suas versões da ‘História das Fronteiras’,651

que reproduzir nesse processo as

‘relações de soberania’ já existentes, por meio de uma organização continuada da

subalternidade de sua periferia.

Portanto, por conta dessa extensão continuada do circuito da centralidade,

convinha elidir quaisquer narrativas que implicassem numa descrição do processo de

construção do espaço, substituindo-as por uma outra narrativa do espaço nacional que

enfatizava sua estabilidade e sua antiga consolidação, no caso, através de uma ‘História

das Fronteiras’. Neste sentido, seria elidida também a velha idéia de espaço da América

portuguesa, onde se justificava a manutenção de diferentes espaços por conta de suas

qualidades,652

sendo esta substituída por um modelo estruturado segundo classificações,

ordenações e territorializações que se remetem entre si, representando a extensão do

circuito da centralidade, conforme exemplificamos no capítulo anterior por meio do

estudo das novas corografias.

Assim, entendemos poder remeter este estudo à idéia de Schelling sobre a

Mitologia, compreendendo que a ‘História das Fronteiras’ irá também se construir a si

mesma, uma vez que as representações utilizadas serão reinterpretadas e reconstruídas

por meio de outras representações, ‘mis-en-abysme’.

Entretanto, novamente através da idéia de Schelling sobre a Mitologia,

ressaltaremos que o princípio da construção dessas representações e conseqüentemente

o da ‘História das Fronteiras’ será o mesmo que o da Física antiga, onde “a natureza tem

horror ao vazio, onde houver um vazio no universo, a natureza o preencherá”.653

Assim, a partir dos raciocínios anteriores, podemos entender que devemos

procurar nas Cartas Gerais o registro de ‘vazios’ e devemos esperar que estes tenham

651 A idéia do Brasil-Ilha, presente em várias obras de Jaime Cortesão, entendia que a constituição do Estado

brasileiro foi pensada enquanto um espaço separado da América e de voltado para a Europa. Ver, por exemplo:

Jaime Cortesão, ‘História da Cartografia Política do Brasil, Apostilas de aulas do Instituto Rio Branco’, 1945.

IHGB, Lata 668, Pasta 7; Jaime Cortesão, O Tratado de Madrid v. 1, Brasília: Senado Federal, 2001; Jaime

Cortesão, História do Brasil nos velhos mapas, Rio de Janeiro: Instituto Rio Branco, s/data.. 652 Ver nesta tese o capítulo ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’.

653 Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 42.

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361

sido inscritos por meio de um ‘preenchimento’. Devemos também compreender,

seguindo o raciocínio exposto, que estes ‘vazios preenchidos’ são um lugar de

intercessão onde poderemos observar a fratura entre os dois modelos de espaço

anteriormente citados e que seu estudo nos possibilitará verificar o espaço elidido pela

‘História das Fronteiras’. Consideramos ainda nessa investigação que estes ‘vazios

preenchidos’ foram inscritos nas Cartas Gerais preferencialmente através da utilização

de elementos narrativos e da simbolização,654

por isso, buscamos o auxílio das

corografias e de uma leitura semiológica e iconológica das Cartas Gerais para a

verificação do espaço elidido pela ‘História das Fronteiras’.

Assim, pudemos entender que o espaço elidido pela ‘História das Fronteiras’ era

verdadeiramente rizotômico, ou seja, múltiplo, conexo e heterogêneo, podendo ser

reconstruído apenas através de sua subtração de uma multiplicidade, como bem foi

salientado por Deleuze e Guattari.655

Este espaço é então entendido por nossa

investigação enquanto capaz de se interpenetrar e se determinar reciprocamente,

ressaltando, porém, que estas condições não são sempre de todo absolutas. Por

conseguinte, propomos que o espaço elidido seja estudado principalmente em sua

heterogeneidade e multiplicidade, e através de sua relação com ambos os modelos, ou

seja, pretendemos explorá-lo através do recolhimento das percepções do velho modelo

de espaço da América Portuguesa contrapondo-as ao modelo da centralidade. Nesse

sentido, acreditamos poder demonstrar que as razões da elisão do espaço no novo

modelo teriam acontecido em virtude dos limites que as antigas percepções imporiam à

construção da centralidade e à extensão do circuito da centralidade os quais, por sua

vez, dependiam de uma representação do espaço nacional que contivesse uma

delimitação clara e inequívoca das Províncias e do Estado. Por fim, propomos ainda um

resgate da própria idéia do ‘limite militar’ do velho modelo de espaço,656

entendendo

que o novo modelo de espaço também possuía ‘limites’, os quais foram elididos para

que não se representasse a guerra, a ocupação e a incorporação do território à

‘civilização’.

654 A respeito dos elementos narrativos e da simbolização ver nesta tese o capítulo ‘Mapeando o vazio’.

655 Gilles Deleuze & Félix Guattari, Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia, V. 1, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995, p.

11-38.

656 Ver nesta tese o capítulo ‘O tempo do espaço e os espaços do tempo’.

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362

Segundo esta nossa proposta, entendemos, em primeiro lugar, ter havido a elisão

de uma percepção dos ‘limites econômicos’ que muitas vezes teriam seus registros

simbolizados nas Cartas Gerais embora sua inscrição não remeta imediatamente ao

antigo modelo de espaço.

Acreditamos que a determinação destes ‘limites econômicos’ implicava numa

relação determinada pelos custos de sua ultrapassagem, ou seja, a ultrapassagem desses

‘limites’ somente se realizaria quando seus benefícios fossem maiores que os custos,

circunstância esta que poderia se alterar quando da incorporação de uma nova

tecnologia, pela descoberta de um novo recurso ou de uma nova utilização para um

recurso já conhecido. No caso, talvez os melhores exemplos de ultrapassagem desses

‘limites’ no século XIX sejam, a nova utilização da borracha, rompendo os ‘limites’ na

Amazônia e a expansão da cultura do café em São Paulo, fazendo com que se

ultrapassassem os ‘limites’ na direção do interior dessa Província.

Por outro lado coexistiria ainda na determinação dos ‘limites econômicos’ a

idéia das chamadas ‘barreiras econômicas’, ou seja, obstáculos naturais que mais

dificultavam que impediam o trânsito e o comércio. Através desse raciocínio, podemos

definir, ‘grosso modo’, que essas ‘barreiras’ separariam do espaço nacional a maior

parte da Amazônia e do Mato Grosso (ver Figura 32), sendo estes ‘limites’ descritos em

várias corografias por sua relação com o estabelecimento humano. Neste caso, por

exemplo, a comparação do preço, nestas regiões, de certos produtos essenciais, como o

sal e o ferro, com o preço de seus múltiplos na Europa, era utilizada para exemplificar a

dificuldade de se promover a ocupação do território.657

Por conseguinte, em decorrência

das ‘barreiras’, os preços dos gêneros, os problemas de abastecimento, a dificuldade

mesma das ligações comerciais e do custo da manutenção do esforço de ocupação é que

determinariam as fronteiras flutuantes dos ‘limites’.

657 Veja-se John Henrique Elliot, ‘Resumo do Itinerário de uma viagem exploradora pelos rios Verde, Itararé,

Paranapanema e seus Afluentes, pelo Paraná, Ivary e Sertões adjacentes, empreendida por ordem do Ex. Sr. Barão

de Antonina’ in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo V, n° 9, 1847; Ricardo Franco de

Almeida Serra, ‘Memória ou informação dada ao Governo sobre a Capitania de Mato Grosso, por Ricardo Franco

de Almeida Serra, Tenente Coronel Engenheiro em 31 de Janeiro de 1800’, in Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, tomo II, n° 5, 1841.

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363

Em segundo lugar, especialmente através de sua descrição nas corografias e sua

simbolização nas Cartas Gerais, entendemos ter havido uma elisão da percepção do

‘limite das Sezões’ (ver Figura 33), uma vez que a ultrapassagem deste ‘limite’

significava a sujeição do viajante a moléstias que dificultavam o estabelecimento, o

trânsito e o comércio, constituindo-se numa ‘barreira biológica’ capaz de dificultar a

penetração ou o estabelecimento no território tanto do homem branco quanto do

indígena proveniente de outra região. Embora houvesse um incremento geral de várias

moléstias que afetavam o ser humano, a mais temida de todas estas era a ‘Sezão’,

doença indeterminada que não se assemelhava à Malária, mas se manifestava através de

FIGURA 32 - LIMITES ECONÔMICOS

Cartografia: Renato Amado Peixoto.

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364

sintomas semelhantes à Cólera: suores frios, vômitos, dores de cabeça, diarréias e

prostração.658

O ‘limite das Sezões’ segregava então uma vasta área que possuía como seu

marco geográfico ao norte a Cachoeira do Ribeirão, que vem a ser a décima queda

d’água do rio Madeira, sendo que no sul este ‘limite’ se iniciava a partir do rio Tietê na

altura de Guamicanga. No primeiro caso, a ultrapassagem do ‘limite’ impunha ao

trânsito proveniente do Vale amazônico um custo muito alto em vidas, principalmente a

dos índios reduzidos nas Missões e que eram utilizados no apoio da Administração

como correios e canoeiros, enquanto que, no segundo caso, a ultrapassagem desta

barreira biológica durante os meses de outubro a março provocava o surgimento dos

sintomas das ‘Sezões’ em até 75% dos viajantes.

Em terceiro lugar, entendemos haver a elisão da percepção de um espaço misto

que combinamos neste estudo como os ‘limites do desconhecimento’ e os ‘limites do

território restrito’, ou seja, as regiões desconhecidas ou pouco conhecidas e as áreas

indígenas que não eram controladas pelo Estado (ver Figura 34).

Este espaço era percebido então como um lugar da exclusão dos indesejáveis

sociais por meio dos desterros ou colônias penais, enquanto um território possível de

nele serem estabelecidos os quilombos dos negros em fuga ou ainda como um espaço

proibido para penetração pela resistência dos indígenas.

Neste sentido, os ‘limites’ podem ser considerados também como um mapa da

resistência indígena à ocupação do território, por exemplo, dos Xavantes em Goiás e

Mato Grosso; dos Pataxós e Botocudos do sul da Bahia até o norte do Rio de Janeiro e

Minas Gerais; dos Timbiras no interior do Maranhão; dos Caiapós em parte de Goiás e

interior do Paraná; dos Muras, Monducrús e muitos outros na Amazônia Ocidental; dos

Guaiacurús e Payagoás no Mato Grosso e de diversas tribos menores no Paraná e Santa

Catarina.

Contudo, enquanto nos mapas do século XIX este espaço era registrado por meio

do recurso a elementos narrativos que o identificavam como ‘terreno desconhecido’ ou

‘Sertão’, nas corografias este espaço já vinha sendo representado segundo um registro

do alcance das ‘relações de soberania’. Este alcance das ‘relações de soberania’ sobre os

658 Ver, por exemplo, João Ferreira de Oliveira Bueno, ‘Simples narração da viagem que fez ao rio Paraná o

Tesoureiro-mór da Sé desta cidade de S. Paulo João Ferreira de Oliveira Bueno, acompanhado de seu irmão o

Capitão Miguel Ferreira de Oliveira Bueno, aos 3 dias do mês de setembro de 1810’ in Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, tomo I, n° 2, 1839.

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365

‘limites’ fazia parte da extensão do circuito da centralidade, que se distendia dos

centros habitados para o ‘Sertão’ e infletia-se de volta ao ponto de partida. Nesse

sentido, por um lado, o recurso ao mundo antigo para a descrição dos ‘limites’ estreitava

os pontos de referência entre uma geografia dos confins e uma topografia das cidades,

ou seja, ver os selvagens e descrevê-los mediante referências ao mundo antigo, servia

para aumentar a distância em relação aos antigos e tornar ainda mais viva a idéia

moderna da diferença entre os tempos.659

A água aqui em tempo de seca é longe, e várias vezes encontrei com

jovens índias conduzindo cântaros, alguns de formas extravagantes e

ornados com uma espécie de baixo relevo, vestidas unicamente com suas

julatas, que sempre deixam parte do seio descoberto: seus compridos

cabelos (pretos como ébano), arranjados com gosto e ornados com flores e

outros enfeites, me fez recordar os tempos clássicos da antiga Grécia.

Imaginei por um momento que estava na ilha de Chipre encontrando as

ninfas de Vênus quando iam buscar água às fontes da Idália.660

Essa identificação do indígena, com a representação de uma idealidade do

mundo antigo, servia para justificar a questão da ociosidade do aculturado e o recurso

ao trabalho compulsório e educador. Louvava-se a industriosidade do índio aculturado

porquanto este havia internalizado a civilização, justificando-se assim a guerra de

ocupação e a catequese como recursos válidos da incorporação do indígena à sociedade.

Por outro lado, consolidava-se também o contato do antigo com o novo modelo

do espaço, uma vez que se passou a equiparar os selvagens, os indesejáveis e os

desvalidos na exclusão e na reclusão, ou seja, incluiu-se a domesticação dos selvagens

no mesmo circuito que a expulsão dos vagabundos e que a manutenção dos agregados.

Assim, pode-se também compreender que os ‘limites’ ocupados e a periferia eram então

entendidos através do amálgama entre a idéia do novo lugar do mundo do trabalho e a

velha idéia do controle social, que era capaz de garantir a inclusão de novos integrantes

ao centro e uma subseqüente extensão da centralidade mesmo em sua periferia.

659 François Hartog, ‘Uma Modalidade do confronto: os Antigos, os Modernos e os Selvagens’ in Os Antigos, o

Passado e o Presente. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003, pp. 128-138.

660 João Henrique Elliot, ‘Itinerário das viagens exploradoras empreendidas pelo Sr. Barão de Antonina para

descobrir uma via de comunicação entre o porto da Vila de Antonina e o baixo Paraguai na Província de Mato

Grosso: feitas nos anos de 1844 a 1847, pelo sertanista o Sr. Joaquim Francisco Lopes, e descritas pelo Sr. João

Henrique Elliot’ Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, tomo X, n° 10, 1848.

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366

Ainda, como a guerra de ocupação contra os habitantes dos ‘limites’ produziu como

resultado a morte dos indígenas ou sua rendição, houve, em decorrência. uma cessão do

território e o estabelecimento de ‘relações de dominação’ fundamentadas nos efeitos da

guerra, substanciadas na obrigação do trabalho e na obediência. Por conseguinte, estas

relações consolidadas nos ‘limites’ se inflectiram também na compreensão do modelo

de espaço baseado na centralidade, consolidando-se mesmo no centro do espaço através

de uma ordenação baseada na subalternização.

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367

Portanto, a identificação entre a ocupação dos ‘limites’ e a expansão da

‘civilização’ garantiu tanto o alargamento quanto a consolidação de um circuito da

centralidade, que necessitaria ser garantida pela elisão tanto da percepção mesma dos

‘limites’ quanto de sua inscrição na representação do espaço nacional.

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A expansão e reelaboração das relações de soberania

And he comes hastening like a moth that hies (30)

After a taper; and the midnight sky

Flares, a light more dread than obscurity.

Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,

In the Florentine Gallery661

No capítulo anterior desta tese passamos a discernir uma inscrição da

centralidade junto a constituição da ‘visão central’ e relacionamos esta idéia com os

problemas da construção do Estado e da ‘inscrição do espaço nacional’. Segundo este

raciocínio, a inscrição da centralidade aconteceria de uma forma contínua decorrendo

da necessidade de se identificar o lugar de enunciação da ‘visão central’ e de situá-lo

sempre no centro do panóptico, redefinindo continuamente para esse mesmo lugar de

enunciação a sua função.

Deste modo, cabia à inscrição contínua da centralidade esquadrinhar o centro,

reavivar continuamente o centro através da educação e reeducação de seus integrantes e

buscar pela modernização de suas funções uma ampliação de seu alcance. Finalmente,

por conta desses deveres da centralidade, compreender-se-ia que o sentido principal da

sua inscrição contínua era entender e reduzir o desvio, analisar e esclarecer as

transformações, modificar e excluir da própria inscrição da centralidade aquelas

condições que não se prestassem ao exercício de enunciação da ‘visão central’.

A partir desta análise da inscrição da centralidade, entendemos que do lugar de

enunciação da ‘visão central’, consolidou-se também um circuito da centralidade, ou

seja, um alargamento do exercício de enunciação e o estabelecimento dos enunciados da

‘visão central’ sobre a periferia compreendendo-se neste exercício a disseminação das

‘relações de soberania’.

Entretanto, como os ‘limites’ que restringiam esse circuito foram ultrapassados

por conta de transformações relacionadas com a modernização do Estado e a ocupação

661 Nossa tradução: ‘E ele chegou apressando-se como uma traça / Buscando a vela; e o céu noturno / Flameja, uma

luz mais terrível que a obscuridade.’ — Percy Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine

Gallery’, v. 30-22.

Page 369: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

369

do espaço, compreendemos que também houve, conseqüentemente, uma reelaboração

das ‘relações de soberania’ através da inscrição contínua da centralidade.

O pensamento dessa reelaboração das ‘relações de soberania’ pode ser

acompanhado através de um estudo dos debates e das diversas iniciativas realizadas no

âmbito do Ministério da Justiça durante as décadas de 1850 e 1860, destinados tanto a

incrementar e a gerar subsídios para a ocupação do espaço quanto para adequar as

penas, penalidades e o sistema penitenciário às novas realidades sociais decorrentes da

modernização do Estado.662

Nesse estudo destacamos as discussões realizadas no Ministério da Justiça

durante as décadas de 1860 e 1870, que, a nosso ver, seriam emblemáticas para a

formulação e aplicação da política penal e judiciária durante o século XIX e XX e as

Comissões realizadas por José de Miranda Falcão aos Estados Unidos em 1854 e Felipe

Lopes Neto à França, Inglaterra e Bélgica em 1866, ambas destinadas a observar e à

analisar as experiências penais desses países. Nossa preferência por essas Comissões e

discussões deveu-se, em primeiro lugar, à sua influência sobre a constituição de um

pensamento da ocupação do espaço e do lugar neste espaço das ‘relações de soberania’.

Em segundo lugar, nossa preferência por essas Comissões e discussões se deve à relação

que entendemos haver entre estas e a ‘inscrição do Estado no espaço’, no caso, através

da participação brasileira nas Exposições Internacionais e do problema da consolidação

de uma representação do espaço nacional brasileiro.

Por este estudo, entendemos que o debate da reforma das penas e do sistema

penitenciário deve ser inserido em nossa discussão da inscrição da centralidade e da

expansão e reelaboração das ‘relações de soberania’, já que a modernização e o

aparelhamento do Estado implicaram em tensões que geraram o compromisso de se

articular as antigas estruturas herdadas da Colônia com as transformações capitalistas.

Contudo, compreendemos também que, em lugar desse debate gerar estímulos para a

reforma ou a substituição do corpus jurídico e penal herdado da Colônia, consolidar-se-

ia paulatinamente a idéia de se ajustar as mais recentes experiências européias e norte-

americanas à estrutura já existente. Como resultado deste arranjo, acreditamos que se

consolidou ainda mais o cerne de um pensamento autoritário e elitista que influenciou

as relações entre o Estado brasileiro e o indivíduo tanto no Império como na República.

662 IHGB, Coleção Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2 .

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370

Nesse sentido, compreendemos, em primeiro lugar, que a questão da ocupação

dos ‘limites’ estava no centro do debate da reforma das penas e do sistema

penitenciário, uma vez que os institutos penais anteriores, o Degredo e o Presídio

Militar, eram meios utilizados tradicionalmente pela Metrópole visando a ocupação e a

projeção sobre o território. No primeiro dos institutos penais do modelo antigo de

espaço, o Degredo, o indesejável era destinado para as áreas do ‘limite’, onde, privado

das condições da civilização, penaria pela lembrança e pelo desejo de retornar ao centro.

Já no segundo caso, no Presídio, as sanções penais contra os militares eram então

convertidas em tempo de serviço nas fortificações que serviam de base à fronteira

militar nos ‘limites’.

Portanto, já estava consolidado um princípio através do qual se entendia que a

reforma das penas e do sistema penitenciário deveria ser gestada no sentido de oferecer

também, através da adaptação do sistema penal, uma base contínua para a manutenção

do esforço de ocupação dos ‘limites’.

Esta adaptação do sistema penal, debatida e discutida nas gestões Nabuco de

Araújo, estava ligada à observação das experiências européias dos ‘Bagnes’ e da

‘Transportation’. Estes institutos penais haviam se originado da antiga figura jurídica do

‘Forçado’ que, por sua vez, dependia do ‘Estatuto das Galés’, por meio do qual os

infratores podiam ser condenados vitaliciamente ao trabalho braçal como remadores dos

navios de guerra. A partir do aprimoramento das técnicas de construção naval, as quais

tornaram obsoletos os navios de guerra a remo, os infratores passaram a ser obrigados a

servir, no mesmo regime de trabalho braçal, como mão-de-obra para os Estaleiros

Reais. Posteriormente, na Inglaterra e na França, o ‘Estatuto das Galés’ combinar-se-ia

paulatinamente com o Desterro, permitindo com isso a constituição de centros penais

ultramarinos baseados no trabalho coletivo obrigatório, denominados, no caso francês,

como ‘Bagnes’ e no caso inglês, como ‘Transportation’.663

Assim, a partir dessa influência européia, o debate da reforma das penas e do

sistema penitenciário no Brasil passou a pensar o trabalho como o elemento central de

um novo instituto penal, entendido então como uma experiência capaz de reeducar e

reformar o indivíduo. Deste modo, a exemplo dos congêneres europeus, este novo

instituto, a Colônia Penal, deveria ser instalado num terreno isolado, de difícil acesso e

663 J. J. Baude, ‘Estatística moral do sistema penal em França: a pena de Morte, Galés e Prisão’, s/data. IHGB,

Coleção Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.

Page 371: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

371

em meio a um ambiente hostil, destinando-se a receber os infratores nos estágios médio

e final do cumprimento da punição, onde, em substituição ao regime comum de

ociosidade das cadeias públicas, o trabalho obrigatório e coletivo seria a norma.664

Entretanto, no debate brasileiro se considerava que após a penalidade prisional

deveria suceder-se ainda um período de restrição da liberdade de trânsito, durante o qual

o sentenciado ficaria ligado indefinidamente às dependências da Colônia Penal a que

fora destinado. Deste modo, poder-se-ia compreender que, após o sentenciado ter sido

‘civilizado’ pelo trabalho, ainda restaria a este o encargo de ‘civilizar’ o território. Nesta

idéia da extensão e da incerteza da penalidade, poder-se-ia entender também a

influência de outro instituto penal do antigo modelo de espaço, o Calabouço, onde, em

vez da pena prisional, remetia-se o indesejável ao esquecimento e ao encerramento, já

que o processo nem sempre era certo ou determinado. Nesse sentido, veja-se, por

exemplo, a exposição que consta da 11ª sessão do Conselho de Estado em 1828, a

respeito de um escravo já idoso, de nome Antônio da Cunha, que desde 1811 estava

preso na Ilha das Cobras e a respeito do qual não existia nem processo nem sentença,

unicamente constando que havia sido enviado de Ouro Preto para aquele lugar.665

Portanto, no caso do debate sobre a Colônia Penal, contava-se também com a

vastidão e a inacessibilidade do espaço para conter e imobilizar o indesejável após o

cumprimento da pena, substituindo-se assim, com vantagem, as grades, os grilhões e o

esquecimento do Calabouço. Contudo, deve-se salientar que a diferença fundamental

entre os institutos penais europeus e a Colônia Penal brasileira é que, enquanto nos

‘Bagnes’ franceses e na ‘Transportation’ inglesa as Colônias eram o destino dos

sentenciados, no caso, a Guiana ou a Austrália, na Colônia Penal enviar-se-iam os

sentenciados para o interior de seu próprio território.

Portanto, se por um lado a Colônia Penal destinava-se a ocupar os ‘limites’ com

o duplo objetivo de civilizar o indivíduo e o espaço, por outro lado, a Colônia Penal

legitimava epistemologicamente esse mesmo espaço em relação à centralidade.

Em segundo lugar, compreendemos que o debate da reforma das penas

vinculava a expansão e reelaboração das ‘relações de soberania’ ao processo de

modernização do Estado e às transformações capitalistas daí decorrentes que

664 ‘Relatório de Felipe Lopes Neto acerca do Sistema Penitenciário’, 22/1/1866. IHGB, Coleção Senador Nabuco,

Lata 384, Livro 2.

665 Atas do Conselho de Estado, 11ª Sessão, 21/08/1828.

Page 372: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

372

modificariam gradualmente as relações e a composição social. Entretanto, se a expansão

das ‘relações de soberania’ foi efetivada com êxito, sua reelaboração se

consubstanciaria apenas como um arranjo em relação às experiências européias.

A modernização do Estado, como já vimos, decorria da necessidade de se

constituir tanto o aparelhamento urbano das principais cidades quanto uma infra-

estrutura de comunicações e transportes no país. No caso do aparelhamento das

principais cidades desencadear-se-iam transformações profundas no cotidiano urbano e

na organização social, por conta de iniciativas como a reorganização cadastral,

relacionada com o aumento e a cobrança de impostos e a organização das plantas

urbanas, destinadas a facilitar a remodelação do perfil urbano e os investimentos

particulares em serviços e transportes nas cidades.

Também no caso da constituição da infra-estrutura do Estado a relação dos

indivíduos com o espaço seria bastante alterada, uma vez que se modificaria sua

mobilidade, sua inserção e inclusive sua compreensão daquele. Podemos destacar dentre

as iniciativas organizadas pelo Estado: a introdução dos telégrafos facilitando a

comunicação com o interior e o exterior, o estabelecimento de linhas marítimas ligando

a capital com a região do Prata e o norte do país, a manutenção de linhas fluviais

regulares em alguns rios, especialmente na Amazônia, e a construção de ferrovias,

escoando a produção agrícola para o exterior.

Assim, estaria em questão uma reelaboração das ‘relações de soberania’ já que

esta emergia em meio as transformações desencadeadas pelo processo de modernização

do Estado, que, em tese, se contrapunham à classificação dos indivíduos que se

encontravam incluídos no circuito da centralidade e à uma desclassificação daqueles

que se achavam fora das alianças verticais que haviam se desenvolvido na sociedade

brasileira tradicional. Esta organização do circuito da centralidade possibilitava tanto

uma alienação social dos pobres, negros, mulatos e indígenas, quanto a inscrição dos

desvalidos numa esfera de disponibilidade.

Em relação a esta esfera de disponibilidade, entendemos que, uma vez fora das

alianças verticais que ligavam as elites locais aos ocupantes do território, esses

indivíduos, os desvalidos, poderiam ainda ser incluídos no circuito da centralidade

através de sua disponibilização para certas atividades do Estado. Por exemplo, podemos

dizer que este circuito se completava através da utilização do desvalido no Exército e na

Marinha, onde sua desclassificação era novamente corroborada por sua sujeição a uma

Page 373: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

373

ampla faculdade de aplicação, por parte do Estado, de variadas formas de aplicação do

castigo corporal, por meio dos estatutos, dos regulamentos ou mesmo dos usos dessas

instituições.

No caso da reforma das penas, necessitava-se tanto de uma legislação que

coibisse a destruição dos equipamentos recém-instalados pelo Estado, quanto se definir

o tipo de penalidade que seria aplicada a essa nova situação.

Assim, o debate da reforma das penas combinou-se com o problema da

manutenção das ‘relações de soberania’, gerando propostas que variavam desde a pena

pecuniária até a ampliação da esfera de disponibilização, incluindo-se nesta esfera,

além do infrator, também os seus filhos ou mesmo os filhos daqueles que estivessem

apenas ligados ao delito pela coincidência de habitarem no local onde este fora

cometido. Esta era a idéia, por exemplo, de Guilherme Schuch a respeito da legislação

sobre telégrafos: se alguém fosse encontrado “tocando na linha de qualquer maneira” ou

“amarrando animais aos postes” este seria punido com pena de prisão de um até seis

meses. Caso houvesse interrupção no serviço sem que se descobrisse o autor, os

moradores mais próximos, se pertencentes à Guarda Nacional, seriam penalizados

pecuniária e executivamente, sendo depois ainda designados para trabalho compulsório

na mesma linha de telégrafos. Caso não pertencessem à Guarda Nacional, ou seja,

havendo sido comprovado seu desvalimento, os moradores seriam disponibilizados para

o recrutamento do Exército, sendo ainda seus filhos igualmente disponibilizados para o

serviço nos navios da Marinha de Guerra.666

Deste modo, o mesmo Guilherme Schuch que antes havia verificado e deplorado

a distância tecnológica existente entre os países europeus e o Brasil durante a Exposição

Internacional de Paris em 1855, propunha-se agora a reduzir essa distância através da

introdução e da defesa do telégrafo, mas apenas adaptando a modernização tecnológica

às velhas ‘relações de soberania’.

Não se buscava alterar fundamentalmente o circuito da centralidade mas apenas

ajustá-lo às experiências e idéias européias e norte-americanas mais recentes, facilitando

assim a ‘inserção do Estado no espaço internacional’. Por exemplo, novamente nos

servindo do estudo sobre a reforma das penas no caso da legislação sobre telégrafos,

veremos que as outras propostas visavam tão somente traduzir as leis européias, como

666 Guilherme S. de Capanema, ‘Necessidade de legislação sobre o serviço dos Telégrafos’, 1867. IHGB, Coleção

Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.

Page 374: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

374

no caso de Nabuco de Araújo que gostaria de aplicar a Lei francesa das Estradas de

Ferro de 1851 ao problema dos telégrafos no Brasil.667

Seria também através desse

ajuste que a questão do trabalho seria adaptada ao arranjo com as ‘relações de

soberania’, no caso, através do ‘Projeto de Regulamento sobre Telégrafos’, que

finalmente regularia a punição às infrações sobre o serviço de telegrafia através da pena

de prisão com trabalho. Esta penalidade obrigaria o infrator a ocupar-se diariamente do

trabalho que lhe fosse destinado dentro do recinto das prisões, nas casas de correção ou

“em qualquer trabalho público nos lugares em que não houver tais casas”.668

Portanto, as ‘relações de soberania’ foram apenas elididas dos termos jurídicos,

sendo seus termos práticos ajustados através dos arranjos feitos pela inscrição contínua

da centralidade e mantidos na relação entre o Estado e o circuito da centralidade. A

reforma das penas e do sistema penitenciário não passaria a ser mais do que um dos

circuitos dessa inscrição, mantendo-se as condições de classificação ou

disponibilização dos indivíduos perante as alianças verticais que ligavam as elites locais

aos ocupantes do território.

Por exemplo, a disponibilização dos desvalidos para o Exército e a Marinha de

Guerra manter-se-ia ainda durante a República, assim como os castigos corporais, que

na Marinha seriam aplicados diretamente sobre o corpo através da chibata, enquanto

que no Exército as ‘varadas’ e ‘bolos’ foram sendo substituídos pelos castigos físicos,

como o ‘sarilho de armas’, que consistia em “colocar quatro fuzis sobre os ombros” do

castigado, dois destes em posição perpendicular à linha dos ombros e dois outros

“dispostos perpendicularmente aos dois primeiros, um atrás e outros à frente do

pescoço”, sendo que, “alguns capitães e sargentos usavam um maior número de armas,

para aumentar o peso a ser sustentado pelo indivíduo que cumpria o castigo”. Havia

ainda o ‘marche-marche’ que consistia em fazer o recruta “correr duas horas pela manhã

e duas à tarde, equipado em completa ordem de marcha, isto é, com a mochila cheia

como se fosse para a guerra, com armas e tudo mais” e a ‘célula’, que era um “pequeno

667 J. T. Nabuco de Araújo, ‘Voto manuscrito sobre a legislação de Telégrafos’, 1867. IHGB, Coleção Senador

Nabuco, Lata 384, Livro 2.

668 Augusto José de Castro Silva, ‘Projeto de regulamento para o serviço dos telégrafos’, 1867. IHGB, Coleção

Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.

Page 375: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

375

compartimento mais ou menos privado de luz, no qual se prendiam os delinqüentes a

pão e água”.669

Em terceiro lugar, entendemos que o debate da reforma das penas e do sistema

penitenciário vinculava, através da questão da ocupação do espaço, as ‘relações de

soberania’ com uma indistinção do espaço individual em sua relação com o espaço

público. Esta indistinção permitia que os arranjos atendessem tanto à ‘inscrição do

Estado no espaço internacional’ quanto à manutenção do circuito da centralidade.

As Comissões e o debate no âmbito do Ministério da Justiça nas décadas de

1860 e 1870 estavam também inseridos na questão da substituição da mão-de-obra

negra que fora imposta pelas implicações das relações externas da década de 1840 e

1850. Este problema teria especial significação por estarem sendo discutidos, no âmbito

do Ministério da Justiça, dois projetos de colonização, sendo o primeiro destes o

‘Projeto de Colonização’ de iniciativa de José Vergueiro, que visava a cooptação e a

instalação de imigrantes europeus. O segundo projeto era o ‘Regulamento das Colônias

Indígenas’, de autoria do Barão de Antonina, que tinha por objetivo a atração e o

aldeamento de indígenas através da catequese.670

Através do debate e principalmente pela experiência européia relatada pela

comissão de Felipe Lopes Neto, ficaria demonstrada que os projetos de colonização

eram alternativa superior às idéias de ocupação do espaço e de utilização do trabalho

contidas na Colônia Penal. No caso, através do trabalho da Comissão enviada à França,

à Bélgica e à Inglaterra verificou-se que nesses países estava acontecendo um gradativo

afastamento em relação aos antigos modelos de sistema penal, no caso, o Desterro e o

Trabalho Forçado e uma aproximação em direção ao modelo penitenciário, inclusive,

porque este era então entendido como um modo de se democratizar a pena. Além disso,

o aperfeiçoamento dos meios técnicos haviam tornado ineficiente o modelo do Trabalho

Forçado, antes entendido como gerador de riqueza, dando lugar a um novo tipo de

punição, o Trabalho Apenado, compreendido como regenerador e reintegrador do

indivíduo à sociedade, sendo a prisão celular o seu modelo.

Felipe Lopes Neto constataria que na Europa de 1860 não havia mais prisões

destinadas unicamente aos militares, nem ‘colônias militares’ ou ainda ‘colônias de

669 Francisco de Paula Cidade. ‘Verbetes para um dicionário biobibliográfico brasileiro’, in Revista Militar Brasileira,

56 (1-2), VII, Rio de Janeiro, Jan. / Jun. 1956.

670 ‘Projeto de Colonização de José Vergueiro’, 1855; ‘Regulamento para as Colônias Indígenas’, 1855. IHGB,

Coleção Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.

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376

liberados’, sendo estas indistintamente julgadas ineficientes em todos os casos, sendo

que as instaladas nas Colônias eram consideradas, mesmo, como corruptoras dos

colonos. A supressão do Degredo era então praticamente geral, sendo a liberdade

tornada imediata após o término da pena, neste caso, a Inglaterra já havia substituído as

suas ‘colônias de liberados’ do Cabo da Boa Esperança, da Austrália e das Bermudas

pelo regime de prisão com trabalho em penitenciárias no próprio Reino Unido. Dos

outros países europeus, somente a França ainda preservava os seus ‘Bagnes’ na Guiana,

contudo, mesmo nesse país, este instituto penal era criticado abertamente e considerados

em extinção pela maior parte de seus juristas.671

Entretanto, ainda que os projetos de colonização considerados pelo Ministério da

Justiça fossem de encontro às experiências recolhidas pela Comissão, em ambos os

casos seriam absorvidos as idéias e conceitos do debate a que já nos referimos. De

acordo com os projetos, o colonizador seria automaticamente incluído nas relações

verticais que haviam se desenvolvido na sociedade brasileira por meio de uma ligação

acordada com o território, mais uma vez se verificando o ajuste das experiências

européias ao circuito da centralidade. Essa ligação, novamente um arranjo das antigas

‘relações de soberania’, consubstanciar-se-ia através dos contratos de trabalho, no caso

do ‘Projeto de Colonização’ ou pela categorização das tarefas e atividades, no caso do

‘Regulamento das Colônias Indígenas’.

Ainda, as experiências européias não seriam absorvidas plenamente nem mesmo

nas instituições prisionais urbanas que já haviam sido construídas segundo o modelo da

prisão celular. A indissociação entre o espaço público e o individual no Brasil

possibilitava que na instituição prisional se constituísse uma intromissão dos interesses

e das relações dos presos que também espelhava as ‘relações de soberania’. Por

exemplo, o ‘Regulamento da Casa de Detenção’, escrito por Nabuco de Araújo em

1856, operacionalizava um espaço onde se mantinham regalias, separações e

convivências que em nada se pareciam com as instituições penais européias,

permitindo-se, por exemplo que os castigos corporais fossem aplicados somente aos

negros ou que o consumo de vinho fizesse parte das refeições de quem pudesse comprá-

lo. Conquanto a idéia da classificação e da ordenação fosse relacionada à manutenção

do regime prisional ela se prestava mais a discriminar as ‘relações de soberania’, uma

671 Correspondência entre Filipe Lopes Neto com J. T. Nabuco de Araújo e outros titulares da pasta do Ministério da

Justiça, 1865-1866. IHGB, Coleção Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.

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377

vez que serviam para a administração das regalias, das separações e das convivências

antes assinaladas. Neste caso, na Casa de Custódia, por exemplo, além de ser feita uma

separação baseada em critérios raciais, se permitia o acesso de serviçais para quem

pudesse mantê-los. Mesmo uma delineação do instituto do trabalho enquanto forma de

recuperar e integrar o preso a sociedade, seria apenas esboçada a partir do recurso de se

recorrer a determinadas experiências ‘civilizadoras’, mas, sempre se ressalvando às

diferenças do “caráter” ou dos “costumes” dos reclusos.672

Esse espírito do arranjo feito entre as experiências européias e as ‘relações de

soberania’ foi, ele mesmo, incorporado ao circuito da centralidade e adentraria na

República, como podemos entender a partir da definição do que Américo Brazílio

Silvado chamava de ‘bacharelismo’:

Classifico de bacharelismo o espírito achincalhador e chicaneiro que

existe em todas as classes que compõem o nosso meio social e que procura

adulterar todas as leis e regulamentos no sentido de subordinar sempre o

interesse público ao mais egoísta interesse individual. É esse mal crônico

que nos entorpece os movimentos desde o Império e que proíbe que a

República progrida livre e desembaraçada, executando a sua lei base, até

hoje mais posta em vigor em sua parte negativa.673

Ilustrativamente, a comissão de Lopes Neto, por um lado, concluiria finalmente

pela condenação das Colônias Penais, entendendo que a vantagem em se afastar os

indesejáveis do centro era anulada pelo sacrifício da colônia, pelo risco militar e pela

despesa, considerando ser mais interessante para o Estado a adoção plena do modelo da

prisão celular.674

Por outro lado, estas conclusões de Lopes Neto se confundiriam com

uma outra atividade cumprida por sua Comissão: buscar dentre os apenados das

‘colônias agrícolas’ dos países europeus, candidatos dispostos a vir para o Brasil.

Prometia-se então a estes condenados uma cidadania que era negada àqueles que no

672 J. T. Nabuco de Araújo, ‘Notas manuscritas sobre a Casa de Detenção, 1856’; J. T. Nabuco de Araújo,

‘Regulamento da Casa de Detenção’, 1856; ‘Nota e ofício ao Cons. Nabuco de Araújo sobre a Casa de Correção’,

1864-1866; IHGB, Coleção Senador Nabuco, Lata 384, Livro 2.

673 Américo Brazílio Silvado, A Nova Marinha. Rio de Janeiro: Typ. Lith. Carlos Schmidt, 1897, p. 19.

674 ‘Relatório de Felipe Lopes Neto acerca do Sistema Penitenciário’, 22/1/1866. IHGB, Coleção Senador Nabuco,

Lata 384, Livro 2.

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Brasil não haviam cometido crime algum, em solenidades nas quais se exaltava a

civilização e os recursos naturais do Império:

Se isto chegar a realizar-se, como espero, ficará lançada uma ponte

entre o Brasil e a importante colônia de Mettray, cujos filhos, bem

informados das condições do país e certos de encontrarem nele amigos e

vantagens, que a França lhes não dá, estabelecerão a corrente de uma

imigração espontânea de grande proveito para eles e para nós.675

Se foram ainda comparadas as opiniões de Lopes Neto com as de um dos

expoentes da derivação da norma narrativa, Henrique de Beaurepaire Rohan, que

também escreveu a respeito da ocupação do território e do problema do sistema penal,

podemos compreender que a divergência a respeito da representação do espaço nacional

não implicava igualmente numa discordância sobre a transformação das ‘relações de

soberania’. Escrevendo a respeito do ‘Memorial acerca da colonização e cultivo do

Café’, também de José Vergueiro, Rohan discorreria então que a cessão do domínio útil

da grande propriedade territorial era uma condição indispensável ao desenvolvimento da

cultura do Café, mas, também asseverou que “este sistema não importa a destruição da

grande propriedade; muda-lhe apenas o regime”, uma vez que se continuava

conservando o domínio direto das terras.676

Se analisarmos ainda os relatos do mesmo Lopes Neto a respeito da Exposição

Internacional da Filadélfia, onde foi Vice-presidente da representação brasileira,

podemos entender que, se a elisão das ‘relações de soberania’ atendia aos propósitos da

‘inscrição do Estado no espaço internacional’, também os arranjos em relação à

inscrição em uma comunidade idealizada com a Europa satisfaziam a intuição que se

fazia então do Brasil. Nesse sentido, a correspondência de Lopes Neto dá conta de que

esta havia sido a melhor apresentação do Brasil em todas as Exposições Internacionais,

superando, inclusive, a participação de 1873 em Viena — o Brasil havia sido

“considerado por todos” como “a nação moderna que mais há progredido nas vias da

675 Carta de Felipe Lopes Neto para J. T. Nabuco de Araújo, 21/12/1865. IHGB, Coleção Senador Nabuco, Lata 384,

Livro 2.

676 Henrique de Beaurepaire Rohan, O Futuro da grande lavoura e da grande propriedade no Brasil - Memória

apresentada ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional,

1878, p. 6-10.

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civilização”.677

A respeito dessa compreensão recíproca realmente não podem existir

dúvidas, pois uma de nossas peças mais admiradas e premiadas foi a estátua que atendia

pelo singelo nome de ‘Índio à espreita’.678

As condições da reelaboração da ‘História das Fronteiras’

Become a [ ] and ever-shifting mirror (37)

Of all the beauty and the terror there –

Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,

In the Florentine Gallery679

Procuramos anteriormente neste capítulo, através dos estudos sobre a

reelaboração e expansão das ‘relações de soberania’ e sobre a percepção do território

nos modelos de espaço, mostrar que a ‘visão do espaço a partir do centro’ se consolidou

na narrativa e na cartografia pela elisão dos termos que não se coadunavam com a

inscrição da centralidade.

Antes mesmo desses dois estudos, observamos neste capítulo que a ‘História das

Fronteiras’ começou a ser constituída já como uma intelecção da ‘inscrição do Estado

no espaço’ a partir da ‘visão central’. Ainda, salientamos que esta ‘História das

Fronteiras’, conforme nosso estudo da ‘ekphrasis’ e das postulações de Schelling, seria

constituída paulatinamente por meio de intuições e intelecções sucessivas sobre

representações anteriormente construídas, ou seja, ‘mis-en-abysme’.

A partir do raciocínio acima apresentado, buscaremos desenvolver um estudo

dessas representações, ‘mis-en-abysme’, que entendemos serem constituidoras da

‘Mitologia do espaço nacional’, privilegiando uma investigação da produção

cartográfica dela decorrente.

Nossos motes para esta discussão serão os dois últimos capítulos do livro

‘Capítulos de História Colonial’ de Capistrano de Abreu, a saber, ‘Formação dos

677 Carta de F. Lopes Neto para José Antônio Saraiva, 6/8/1876. IHGB, Lata 273, Pasta 12.

678 Carta de F. Lopes Neto para José Antônio Saraiva, 9/7/1876. IHGB, Lata 273, Pasta 12.

679 Nossa tradução: ‘Tornar-se um [ ] e espelho em permanente mutação / De toda a beleza e terror ali -’ — Percy

Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 37-38.

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Limites’ e ‘Três séculos depois’, escritos em 1907.680

Nestes, Capistrano repete a

narrativa do século XIX conforme Pinheiro e Ribeiro, embora ambos não sejam citados:

‘Formação dos Limites’ é a sua versão da ‘História das Fronteiras’, constituída numa

narração que envolve os Tratados do século XVIII onde, por conta de seus defeitos, se

enfatiza sua nulidade sucessiva, conforme a construção de Pinheiro. Dentre as tramas

desta narração de Capistrano, incluem-se ainda os problemas das Demarcações ligadas a

esses Tratados, compreendidos através de sua descrição e de uma compreensão do seu

legado, o uti possidetis, enquanto elemento definidor do território, desta vez conforme a

construção de Ribeiro.

Entretanto, apesar da ‘História das Fronteiras’ de Capistrano utilizar a fórmula

da SNE, ainda não estavam definidos em ‘Formação dos Limites’ os protagonistas da

‘Mitologia do espaço nacional’, note-se, por exemplo, a ausência de Alexandre de

Gusmão no relato de Capistrano, que não corrobora a inclusão anterior daquele

personagem na ‘História Geral do Brasil’ de Varnhagen. Do mesmo modo, também

observamos que em ‘Três séculos depois’ Capistrano utiliza-se da velha idéia de espaço

da América portuguesa, enfatizando um entendimento do espaço nacional a partir de

uma descrição do território e de seus habitantes conforme suas qualidades. Por

conseguinte, podemos entender que a estrutura da ‘Mitologia do espaço nacional’ e

vários de seus termos ainda não haviam sido consolidados na primeira década de 1900,

embora a maior parte dos seus elementos já estivesse então disseminados, como

podemos verificar a partir dos ‘Capítulos de História Colonial’.

Por conta desse novo problema, remeteremos este raciocínio sobre a

consolidação da ‘Mitologia do espaço nacional’ ao raciocínio que empreendemos no

início deste capítulo a partir da idéia de Noam Chomsky sobre a ‘Economia da

Representação’ na linguagem.

Conforme aquele raciocínio, a operação da narrativa no novo regime havia se

conformado a um teatro de dimensões muito reduzidas, no caso, o Ministério das

Relações Exteriores, órgão sucessor da SNE, doravante referido como MRE. Deste

modo, conforme a idéia de Chomsky, entendemos que a transformação da narrativa do

século XIX numa ‘Mitologia do espaço nacional’ foi ensejada pelas necessidades

operacionais daquele órgão e pelas oportunidades encontradas pelos seus operadores

680 J. Capistrano de Abreu, ‘Formação dos Limites’ in Capítulos de História Colonial. Brasília: Conselho Editorial do

Senado Federal, 1998, p. 183-197.

Page 381: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

381

para que fossem legitimados novos elementos de representação adequados à narrativa

do século XIX.

Nesse sentido, em primeiro lugar, entendemos que as necessidades operacionais

do MRE estavam ligadas à ‘inscrição do Estado no espaço internacional’, operada desde

meados do século XIX também através das Exposições Internacionais, visando uma

legitimação da ‘representação do espaço nacional’ junto às demais ‘representações do

espaço’. Assim, buscava-se ainda na primeira década do século XX, a construção de

uma reciprocidade entre a intelecção do espaço nacional feita pela ‘visão central’ e a

intuição do Brasil feita externamente. Deste modo, compreendemos a construção da

reciprocidade como um processo continuado e ainda em curso na primeira década do

século XX, sendo enfatizado então pela decisão do Brasil de recorrer a um instituto

jurídico do Direito Internacional da época, o ‘Arbitramento’, para a resolução dos seus

problemas de limites.

Este instituto jurídico havia sido consolidado no Direito Internacional a partir da

declaração dos plenipotenciários presentes ao Congresso de Paris de 1856, quando estes

se comprometeram a recorrer, sempre que fosse possível, ao Arbitramento para a

resolução das suas controvérsias. Informado da resolução tomada pelas Potências

européias, o Brasil imediatamente aderiu à Declaração, enunciando compartilhar “em

toda sua extensão” dos seus princípios.681

Segundo estes, um Chefe de Estado de

qualquer país podia ser considerado como juiz competente para a resolução de questões

internacionais desde que acreditado por todas as partes do litígio.

No final do século XIX, a ‘prova cartográfica’ já havia se tornado o elemento

central para a resolução dessas questões, com o ‘Processo do Arbitramento’ girando em

torno de sua comprovação e discussão. A incorporação da cartografia ao Processo do

Direito Internacional está diretamente vinculada ao desenvolvimento da litografia

ocorrido a partir do início do século XIX, permitindo a divulgação dos mapas antigos.

Esta popularização, por sua vez, decorreu do esforço encetado pelo Visconde de

Santarém, como vimos no capítulo ‘O espelho do Jacobina’, que com aquele material

construiu toda uma argumentação baseada na utilização dos mapas, entendidos

enquanto ‘monumentos’ da posse portuguesa na África, ou seja, possibilitando que os

681 Conforme ‘Ofício de José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco, ao representante francês no Brasil’,

citado por Delgado de Carvalho in História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959,

p. 256.

Page 382: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

382

mapas antigos se tornassem provas da presença material do Estado no território. Tendo

sido disseminada a partir de então, esta argumentação tornar-se-ia aceita como parte

integrante do Processo de Direito Internacional, no que se passou a compreender a

História da Cartografia enquanto uma disciplina capaz de embasar as iniciativas

diplomáticas do Estado.

Mais especificamente, no ‘Processo do Arbitramento’ a cartografia era entendida

enquanto uma atividade derivada da ação do Estado, portanto devendo constituir uma

prova da ‘verdade’ histórica de sua atuação no território. Entretanto, a ‘prova

cartográfica’ deveria ser discutida à luz do progresso científico, ou seja, dever-se-ia

proceder à interpretação dos mapas antigos segundo a idéia de que sua composição

envolvera técnicas e tecnologias defasadas. Assim, no ‘Processo do Arbitramento’

legitimava-se um raciocínio jurídico que incorporava a análise historiográfica das fontes

cartográficas e que entendia o problema cartográfico enquanto incorporado à questão do

‘progresso científico’ por meio da transformação das técnicas e da absorção da

tecnologia.

Portanto, no contexto da construção da reciprocidade entre a intelecção do

espaço nacional feita pela ‘visão central’ e a intuição do Brasil feita externamente, a

cartografia pode ser entendida como o principal instrumento da reafirmação da

‘inscrição do Estado no espaço internacional’, propiciando a reatualização da inscrição

da centralidade, no caso, a afirmação de continuidade da ‘visão central’ após a

Proclamação da República. Nesse sentido, inclusive, poder-se-ia salientar que alguns

dos operadores da narrativa no período, eram monarquistas convictos ou convertidos,

como, por exemplo, Joaquim Nabuco, João Pandiá Calógeras e o Barão do Rio Branco.

Em decorrência, podemos compreender que a reatualização da inscrição da

centralidade foi propiciada pela inscrição de novos elementos que, por sua vez,

transformaram a narrativa do século XIX e que esta transformação foi registrada na

‘História das Fronteiras’, numa construção ‘Mis-en-abysme’.

Em segundo lugar, novamente conforme a idéia de Chomsky sobre a ‘Economia

da Representação’ na linguagem, entendemos que o registro da transformação da

narrativa do século XIX numa ‘História das Fronteiras’ demandaria que as

oportunidades da sua efetivação ultrapassassem os custos de transformação da narrativa.

Neste sentido, as oportunidades da efetivação das transformações na narrativa

decorreram do posicionamento excepcional de um dos seus operadores, Rio Branco,

Page 383: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

383

como titular da pasta das Relações Exteriores durante um longo período sem

interrupções, de 1902 até 1912. Devido às condições históricas do período, ou seja, pelo

forte controle do poder político exercido por um grupo político afinado com suas idéias

num período sintomaticamente denominado de ‘República dos Conselheiros’, Rio

Branco possuiu poderes que lhe possibilitaram efetivar determinadas iniciativas e para

constituir um legado que seria responsável pelo registro dos novos elementos da

narrativa numa nova forma da ‘História das Fronteiras’, a ‘História Diplomática’, como

veremos mais adiante.

Esse legado foi originalmente constituído pelo arranjo corporativo no MRE;

depois pela inserção institucional de Rio Branco no IHGB, onde assumiu as funções da

Presidência de 1908 até sua morte em 1912; em seguida pela defesa e organização da

remodelação do Exército e da Marinha, iniciativa que lhe valeu uma posição de

prestígio tanto na Marinha quanto no Exército; finalmente pela construção ainda em

vida de seu personagem e legenda, capazes de garantir a credibilidade da construção da

‘Mitologia do espaço nacional’.

Portanto, o legado constituído por Rio Branco permitiu que se propiciassem as

condições para a consolidação de uma ligação corporativa entre o MRE, o IHGB, o

Exército e a Marinha que mais tarde, se desdobrariam em determinados centros de

‘legitimação do saber’, as Universidades e o IBGE, o que permitiria através do contato

com a geopolítica brasileira, com que a ‘História das Fronteiras’ fosse novamente

reatualizada numa ‘Mitologia do espaço nacional’. Esta, por sua vez, também teria seus

elementos registrados na ‘História das Fronteiras’ sendo a partir daí disseminados pela

historiografia nacional, mais uma vez, numa construção ‘Mis-en-abysme’.

Adotamos aqui a idéia de Corporação para definir o MRE, o Exército e a

Marinha, a partir da idéia de ‘cultura regimental’ de John Keegan,682

entendendo que

estas Corporações possuem suscetibilidades que as impelem à autonomia no corpo do

Estado a partir da construção de seus próprios costumes, relações e cognição. Esta

definição se mostra pertinente, uma vez que entendermos existir nestas Corporações,

lugares autônomos de produção, codificação e exteriorização de uma gramática própria.

Em terceiro lugar, novamente conforme a idéia de Chomsky sobre a ‘Economia

da Representação’ na linguagem, entendemos que as considerações locais, no caso do

MRE, imprimiram uma dinâmica específica na faculdade de formulação da narrativa do

682 John Keegan. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 13-40.

Page 384: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

384

século XIX. Assim como as transformações da narrativa somente foram empreendidas

segundo condições especiais, os novos elementos de representação somente ficaram

registrados na ‘História da Fronteiras’ por conta de terem sido propriamente legitimados

perante o ‘sistema de representação’ [D-Structure] da narrativa, ou seja, por terem sido

preenchidas as condições que permitam a conexão de sua sintaxe com as outras formas

constituintes daquele sistema.

Assim, entendemos que os novos elementos da narrativa criados pelas

necessidades do MRE foram compostos sobre uma sintaxe existente, no caso, a da

narrativa do século XIX, a partir de suas formas constituintes, no caso, de acordo com

uma estrutura que incorporava tanto a inscrição da centralidade quanto a discussão

cartográfica e geográfica do espaço segundo o legado da Metrópole, ou seja, no estilo e

modelo determinados pela sobrevivência das idéias de Ribeiro na narrativa.

Decorrentemente, o registro dos novos elementos da narrativa ligados à

reatualização da inscrição da centralidade, ainda que facilitado pelas oportunidades

ensejadas pelo legado constituído por Rio Branco, teriam de ser inscritos a partir da

sintaxe construída anteriormente.

Por conta desse raciocínio, Rio Branco foi um dos principais responsáveis pela

consolidação da reatualização da inscrição da centralidade, uma vez que dotaria o

MRE das condições que permitiriam a esta corporação uma inscrição contínua da

‘História das Fronteiras’, como veremos mais adiante, através do novo modelo da

‘História Diplomática’, possibilitando que fossem atendidos os interesses corporativos e

a manutenção de sua autonomia no aparelhamento do Estado.

Por outro lado, incorporado ao IHGB, o legado de Rio Branco se afinaria de

modo permanente com a agenda do Instituto e garantiria sua própria sobrevivência na

República, uma vez que possibilitou a este também uma identificação com as

corporações militares e com o MRE, inclusive pela atração de seus quadros para o

Instituto, por meio da conversão de certos termos da narrativa do século XIX oriundos

daquelas corporações no seu legado institucional. Muitos desses termos tinham sido

constituídos justamente pelo próprio Rio Branco e seriam disseminados por conta das

necessidades do IHGB e do MRE, através da oportunidade de identificar o personagem

de Rio Branco enquanto um dos protagonistas da ‘Mitologia do espaço nacional’.

Ainda, a fixação da forma narrativa no modelo da ‘História Diplomática’

permitiu conectá-la com a construção geopolítica feita no Exército para uma construção

Page 385: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

385

continuada da ‘Mitologia do espaço nacional’. Esta conexão estaria ligada, portanto, a

uma convergência de interesses entre as duas corporações que diminuiria os custos de

transformação da narrativa e permitiria a legitimação de sua sintaxe.

Portanto, o legado de Rio Branco seria responsável primeiramente pela fixação

de uma forma narrativa, a História Diplomática, em seguida, ajudaria a consolidar a

autonomia corporativa do MRE, do Exército e da Marinha durante a República;

finalmente garantiria a sobrevivência institucional do IHGB, exemplificados no caso,

pela consolidação de um monumento ao ideário monárquico e pela instituição do mais

monárquico dos Ministérios da República.

Em decorrência, devemos articular este raciocínio para facilitar os estudos que

faremos a seguir: a reatualização da ‘História das Fronteiras’ foi empreendida a partir da

reatualização da inscrição da centralidade, pelas oportunidades constituídas pelo

legado de Rio Branco e pela consolidação corporativa e institucional desse legado, do

qual fez parte a fixação de um novo modelo da narrativa, a História Diplomática e sua

transformação numa ‘Mitologia do espaço nacional’.

Essa ‘bella chimera’: os arbitramentos e a reatualização da inscrição da

centralidade

[...] D’Anville, cedendo a sugestões de autores espanhóis que não

abandonaram a antiga lenda, introduziu na sua carta o lago Parima, eliminado da

primeira decerto pelas informações de La Condamine que não parecia acreditar

nessa bella chimera. Colocado assim o Lago Parima abaixo da serra que na sua

primeira carta separa o Orinoco do vale do Amazonas, D’Anville teve que

prolongar as nascentes do Maú para o fazer sair daquele lago [...]

Joaquim Nabuco. O direito do Brasil.

And their long tangles in each other lock, (20)

Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da

Vinci, In the Florentine Gallery.683

683 Nossa tradução: ‘E seus longos emaranhados em cada outro se fecha,’ — Percy Shelley. ‘On the Medusa of

Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 20.

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386

Para compreendermos como a reatualização da inscrição da centralidade será

registrada na ‘História das Fronteiras’, estudaremos, num primeiro momento, a

construção dos novos termos e do novo modelo de espaço da narrativa do século XIX

através das ‘provas cartográficas’ utilizadas por Rio Branco e Joaquim Nabuco nos

‘Processos de Arbitramento’. Conforme o raciocínio exposto anteriormente, este estudo

será feito a partir da premissa de que os ‘Arbitramentos’ participam de uma construção

da reciprocidade que legitima interna e externamente a inscrição da centralidade.

Começaremos então pelo estudo da argumentação utilizada por Rio Branco no

primeiro ‘Arbitramento’ em que participou o Estado brasileiro, a saber, o da região de

Palmas, em litígio com a Argentina.

Para este ‘Arbitramento’ Rio Branco dividiria as provas cartográficas em quatro

conjuntos diferentes: o primeiro destes era o dos ‘Mapas Jesuíticos’, cartas anteriores à

composição de representações que poderiam ser atribuídas às Metrópoles; o segundo

conjunto era de mapas que expressavam as ‘Visões das Metrópoles’, no caso,

entendendo que teria havido uma mudança na intuição do território e uma

transformação da intelecção do espaço; o terceiro conjunto era referente ao ‘Trabalho

dos Demarcadores do século XVIII’, entendendo que a presença imediata dos

representantes da Metrópole no território intensificou aquelas relações; o quarto

conjunto consubstanciava a ‘Visão dos novos Estados’, ou seja, entendendo sua

compreensão do território como sendo derivadas do legado colonial.

A argumentação de Rio Branco seria constituída frente à construção da

reciprocidade, entendendo que, relativamente ao litígio de dois Estados formados a

partir de territórios coloniais, dever-se-ia provar ao ‘árbitro’ norte-americano a

pertinência de uma sucessão de direitos baseada pela transmissão da legitimidade.684

Assim, Rio Branco compararia entre si as ‘provas cartográficas’ dos quatro conjuntos

procurando demonstrar que o Estado brasileiro sucederia ao Estado português,

incorporando seus títulos e corroborando pelas suas ações as antigas iniciativas da

Metrópole.

Portanto, a estrutura dessa narração ainda não diferia muito da ‘História das

Fronteiras’ de Pinheiro, Ribeiro ou Capistrano, inclusive porque grande parte do

material utilizado por Rio Branco havia sido coletada anteriormente por Ribeiro.

684 José Maria da Silva Paranhos Jr., ‘Questões de Limites - República Argentina’ in Obras do Barão do Rio Branco,

vol. I, Rio de Janeiro: MRE, 1945.

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387

Porém, no segundo ‘Arbitramento’ em que participou o Estado brasileiro, o da

região do Amapá, em litígio com a França, não bastaria apenas apresentar uma hipótese

baseada na sucessão de direitos e na transmissão da legitimidade. Desta vez, como o

litígio envolvia uma nação na qual o Brasil sempre pretendeu se espelhar e a partir de

onde provinham os critérios que se acreditavam então definir o ideal de civilização, era

necessário, em relação à construção da reciprocidade, equiparar através das provas

cartográficas uma nação moderna, o Brasil, com a nação antiga, a França.

Neste caso, Rio Branco necessitava constituir sua argumentação a partir de uma

remissão às provas cartográficas que resgatassem uma ‘antigüidade’ do Brasil, no caso

buscando-se demonstrar que a construção do espaço brasileiro remontava à própria

ocupação do território por Portugal e que este espaço já teria sido consolidado no século

XVIII, época em que as partes litigiosas acordavam ter-se iniciado o litígio.

Nesse sentido, a argumentação através das ‘provas cartográficas’ foi então

trabalhada por Rio Branco em dois Atlas que foram apresentados ao Conselho Federal

Suíço, o ‘árbitro’ da questão, contudo, um dos Atlas não estava destinado a ser utilizado

no Processo do ‘Arbitramento’. Este Atlas, focado nos séculos XVI e XVII, foi

composto com poucas cartas portuguesas do início do século XVI, alguns outros mapas

portugueses e franceses do final do século XVI e início do século XVII e em sua

maioria, quase 66%, por mapas retirados de Atlas franceses, ingleses e holandeses,

todos estes gravados e abrangendo um período histórico que ia do final do século XVI

até o início do século XVIII. Na composição deste Atlas, Rio Branco visou a escolha de

mapas que enquadravam e registravam um espaço brasileiro utilizando-se, para isso, de

provas cartográficas compostas nos centros possuidores de maior tecnologia

cartográfica e com uma circulação atestada.685

Portanto, Rio Branco procurava demonstrar junto ao ‘árbitro’ a ‘inscrição

precoce’ de um espaço brasileiro ao qual o território litigioso já estaria originalmente

ligado, constituindo-se não numa ‘prova’ do litígio, mas, de uma igualdade de

condições entre as duas Nações.

Já na composição do outro Atlas, exclusivamente focado nos séculos XVIII e

XIX, Rio Branco procuraria estabelecer, ao lado da ‘prova cartográfica’ do litígio, a

idéia de um espaço já consolidado e reconhecido. Para isto, Rio Branco organizaria o

685 José Maria da Silva Paranhos, Atlas contenent un choix de cartes antérieures au traité conclu a Utrecht, Annexe au

Memoire présente par les État-unis du Brésil au Gouvernement de la Confédération Suisse. Paris: A. Lahure,

Imprimeur-éditeur, 1899.

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Atlas situando o ‘Mapa das Cortes’ como iniciador de uma série de outros mapas, todos

eles escolhidos por conta de enquadrarem o Brasil também em posição central.

Ressaltemos para o entendimento de nosso raciocínio, que o ‘Mapa das Cortes’

era desconhecido no século XIX até ter sido resgatado, por Rio Branco, durante as

pesquisas feitas para o primeiro Arbitramento, quando então utilizou esta carta para

basear o seu conjunto das ‘Visões das Metrópoles’. Entretanto, no arbitramento com a

França, a utilização do ‘Mapa das Cortes’ visava integrar a idéia da ‘inscrição precoce’

construída num Atlas, com a idéia de uma ‘fundação do território nacional’ no século

XVIII, construída no outro, relacionada com o Tratado de Madri do qual aquele mapa

fora o esboço.

Seguindo-se ao ‘Mapa das Cortes’, vinha uma série composta por vários mapas

retirados de Atlas franceses, onde, através da repetição de registros do enquadramento

do território nacional, procurava-se construir a idéia do reconhecimento da ‘fundação do

território nacional’ pela cartografia francesa. Para consolidar ainda mais esta idéia, Rio

Branco incluiria a ‘Carta Niemeyer de 1846’ em meio aos mapas franceses, por conta de

ser a única representação do espaço nacional anterior à neutralização do território em

litígio.

Ainda, a inscrição dos registros do ‘Mapa das Cortes’ e da ‘Carta Niemeyer de

1846’ nessa série de mapas, tinha o objetivo de subordinar a intelecção do espaço

nacional feita pelos mapas franceses a uma intuição do espaço nacional brasileiro a

partir do Tratado de Madri. O propósito de se constituir essa subordinação era contrapor

essa intuição à da maioria dos mapas franceses, fossem anteriores a 1820, quando

registravam o espaço da América Meridional em relação ao antigo modelo de espaço da

América portuguesa, ou seja, dividido em regiões; fossem posteriores a 1820 a partir do

que registravam o espaço brasileiro conforme sua intuição do Tratado de Santo

Ildefonso.

Finalmente, Rio Branco buscou delimitar o problema do litígio através de uma

interpretação da cartografia histórica onde utilizaria diversos recursos visando provar

sua adequação aos argumentos da posse brasileira do território, recorrendo ainda aos

mapas das ‘Comissões Exploratórias’. Deste modo, lançou mão da superposição de

mapas antigos com mapas modernos, da reconstrução cartográfica de roteiros antigos e

de comentários impressos sobre os mapas antigos, terminando com a apresentação de

cartas modernas feitas por nacionais.

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Portanto, manter-se-iam os termos da narrativa da SNE, ou seja, a ‘sucessão dos

tratados’ e uma ‘remissão a um histórico de demarcações’, mas introduzir-se-ia uma

nova estrutura, construída por meio de novos elementos, que, por sua vez, já haviam

sido constituídos durante o Arbitramento anterior.686

Já o terceiro ‘Arbitramento’ em que participou o Estado brasileiro, o da região

do Pirara, em litígio com a Inglaterra, ocorreria já durante a gestão de Rio Branco no

MRE, sendo então Joaquim Nabuco indicado como representante brasileiro.

Neste caso, a argumentação de Joaquim Nabuco utilizaria a idéia da ‘expansão

natural dos povos’ que Ribeiro havia desenvolvido anteriormente para contestar as

pretensões colombianas sobre o Estado do Amazonas. Mas, neste caso, Joaquim Nabuco

descreveu a penetração portuguesa sobre um espaço ‘naturalmente’ brasileiro, uma vez

que se desenvolveria através do domínio ininterrupto ou intermitente do curso dos

principais rios. Assim, a ‘ocupação’ desdobrar-se-ia do rio Amazonas para seus

afluentes maiores, como o Rio Negro ou o Rio Branco e destes rumo aos menores

recônditos, como, no caso, o Pirara: esta ‘expansão natural’ da ocupação portuguesa

constituiria a ‘fundação do espaço nacional’ e o seu direito natural à expansão.

Assim a construção da reciprocidade entendia também uma extensão dos

direitos coloniais e das suas ‘áreas de influência’, já que havia poucos ‘títulos’ que

podiam ser apresentados junto ao ‘árbitro’ da questão, o Rei da Itália. Nesse sentido, a

composição das ‘provas cartográficas’ de Joaquim Nabuco foi organizada em seu Atlas

em cinco conjuntos.

O primeiro conjunto, Nabuco visava demonstrar o que entendia como a antiga

percepção na cartografia européia da ‘projeção natural’ da ocupação portuguesa, através

de linhas imaginárias que segundo Nabuco resistiriam “às próprias divisões políticas, às

ocupações e aos tratados”. Este conjunto incluía basicamente cartas retiradas de Atlas

holandeses, franceses e ingleses do século XVI até o início do século XVIII.

O segundo conjunto, visava demonstrar o assentimento das principais potências

da Europa e dos Estados vizinhos à ‘projeção natural’ da ocupação portuguesa, logo,

contava com trabalhos de diversas origens, mas todos com a chancela oficial daqueles

países. O terceiro conjunto foi composto por mapas em que se procurava demonstrar “as

várias idéias correntes na geografia” européia contemporânea e a opinião dos seus

686 José Maria da Silva Paranhos Jr., ‘Atlas’, Tome VI, in Second Memoire présente par les État-unis du Brésil au

Gouvernement de la Confédération Suisse. Paris: A. Lahure, Imprimeur-éditeur, 1899.

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390

principais geógrafos sobre a divisão política da área. Já no quarto conjunto Nabuco fez

constar a idéia da ‘fundação do espaço nacional’ e seu desenvolvimento pelas ‘provas

cartográficas’, novamente remetendo à idéia de Rio Branco. Este conjunto incluiria o

‘Mapa das Cortes’, relacionado com o Tratado de Madri; o ‘Borrador Geográfico’,

relacionado com o Tratado de Santo Ildefonso; a ‘Carta da Nova Lusitânia’, relacionado

com a inscrição do espaço nacional pela Metrópole e o Mapa do Brasil do ‘Atlas

Cândido Mendes’, relacionado com uma inscrição contemporânea do espaço nacional.

Finalmente, seguir-se-ia a este um último conjunto no qual se juntaram diversos mapas

pertencentes às comissões demarcatórias holandesas, britânicas e brasileiras.687

Portanto, na argumentação de Joaquim Nabuco, novamente manter-se-iam os

termos da narração da SNE, mas modificar-se-ia novamente sua estrutura, por conta da

inclusão de novos elementos, no caso, a ‘projeção natural’ da ocupação portuguesa de

Nabuco, que foi desenvolvida a partir das idéias construídas nos arbitramentos

anteriores, a saber, a ‘inscrição precoce’ e a ‘fundação do espaço nacional’.

Deste modo, compreendemos que os novos elementos da narrativa do século

XIX foram construídos ‘Mis-en-abysme’ sobre representações anteriores, constituindo-

se no final da primeira década do século XX em novos termos da estrutura narrativa e

em um novo modelo de espaço, ambos capazes de elidir as antigas percepções de

espaço do modelo da América portuguesa.

Por conseguinte, os novos elementos da narrativa, conformados com a inscrição

continuada da centralidade e a elisão das ‘relações de soberania’ seriam inscritos na

narrativa do século XIX. Esta nova inscrição pode ser confirmada na ‘Exposição de

Motivos’, apresentada por Rio Branco ao Presidente Nilo Peçanha em 1909, tendo-se

em vista outro problema de limites, para o qual, sintomaticamente, não foi considerado

o instituto jurídico do Arbitramento, a saber, a ‘Anexação do Acre’:

O Tratado de Petrópolis é, em grande parte, a restauração de nossos

verdadeiros limites no sul, a que tínhamos direito pela projeção de nossa

687 Joaquim Nabuco. Atlas accompagnant le Premier Mémoire du Brésil. Paris: Ducourtioux et Huillard, Graveurs-

imprimeurs, 1903; Joaquim Nabuco, ‘O direito do Brasil.’ in Obras completas de Joaquim Nabuco, vol. VIII. São

Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1949.

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jurisdição ao longo dos rios e segundo a orientação da marcha do povo

brasileiro na conquista das matas desertas.688

A reelaboração corporativa e institucional do legado de Rio Branco

And from its head as from one body grow,

Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,

In the Florentine Gallery 689

Visando entender, num segundo momento, como os novos termos e o novo

modelo de espaço foram registrados na ‘História das Fronteiras’, estudaremos as

condições de operação da narrativa constituídas pelo legado de Rio Branco.

Conforme o raciocínio anterior, este estudo será feito a partir da premissa de que

estando os novos elementos da narrativa conformados com a inscrição continuada da

centralidade e com a elisão das ‘relações de soberania’, possibilitar-se-ia o

desdobramento da reatualização da narrativa, ‘Mis-en-abysme’, sobre outras

representações. Por conseguinte, como estas representações foram constituídas sobre os

interesses corporativos a partir da reatualização da narrativa, se faz necessário focar

este estudo no exame da reelaboração dos legados corporativos e institucionais de Rio

Branco, enfatizando-se, neste exame, os aspectos que nos permitirão entender a

constituição da ‘Mitologia do espaço nacional’.

Nesse sentido, começaremos examinando as condições de reelaboração do

legado de Rio Branco pelo Exército, ressaltando que, neste caso, essas condições

antecedem sua própria posse como titular do MRE.

Logo no início de 1902, o Exército e a Marinha pleiteavam que o MRE

intermediasse a ida de alguns de seus oficiais para estabelecimentos militares alemães

com vistas a praticarem naqueles, as novas técnicas e estratégias que estavam sendo

desenvolvidas. Esta demanda já refletia então uma preocupação com a

profissionalização das Forças Armadas, decorrente tanto da preocupação do Governo

688 Citado em Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959,

p. 227.

689 Nossa tradução: ‘E de sua cabeça como se fosse de um só corpo nasce,’ — Percy Shelley. ‘On the Medusa of

Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 17.

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392

com o envolvimento político dos oficiais quanto de uma movimentação interna nessas

corporações.

Coube então a Rio Branco, embaixador brasileiro na Alemanha, sugerir que, ao

invés de atitudes isoladas como a que estava sendo proposta, se adotasse a prática do

envio de estagiários para as Forças Armadas daquele país, visando-se assim criar um

precedente que possibilitasse a continuidade no processo de organização e

aparelhamento das Forças Armadas.690

O acatamento de sua sugestão pelo MRE, possibilitaria que na sua gestão à

frente do ministério, Rio Branco conseguisse estabelecer uma continuidade da prática

do estágio junto ao Exército alemão.691

O concurso desses oficiais, alguns dos quais

indicados pelo próprio Rio Branco, permitiu que se alicerçasse um núcleo de oficiais

conhecidos como ‘Jovens Turcos’, e que, a partir de sua atuação à frente do periódico

fundado por estes em 1913, ‘A Defesa Nacional’, assumissem a liderança dos grupos

renovadores no Exército.692

A pauta de reivindicações dos setores reformistas do

Exército, aos quais se juntariam os ‘Jovens Turcos’, ajustava-se então aos interesses

estratégicos da política externa, o que propiciou o apoio implícito e explícito de Rio

Branco, inclusive através de um de seus auxiliares diretos, o deputado João Pandiá

Calógeras, mais tarde Ministro do Exército.

O interesse de Rio Branco pelo programa de estágios na Alemanha, junto com as

condições a serem criadas pela aplicação da ‘Lei do Sorteio Militar’ e pelo rearmamento

da Forças Armadas, visava ultrapassar, num prazo de três anos, a superioridade militar

da Argentina e do Chile na América do Sul.693

Nesse sentido, com o apoio do Presidente Rodrigues Alves e de uma parte da

oficialidade do Exército e da Marinha, Rio Branco tentou implementar a ‘Grande

Missão’, ou seja, uma Missão Militar alemã dirigida para ambas as corporações e a

compra em grande escala de armas e equipamentos naquele país, objetivos que já seriam

690 AHI, Arquivo Barão do Rio Branco, Lata 854, Maço 1; Ofícios da Legação brasileira em Berlim para o Ministro

das Relações Exteriores, 17/04/1902 e 30/04/1902, AHI Lata 203 Maço 2 Documento 10.

691 Telegrama da Legação em Berlim para Rio Branco em 31/12/1905, AHI Lata 203, Maço 2, Documento 10;

Telegrama da Legação em Berlim para Rio Branco em 16/12/1906. AHI, Arquivo Barão do Rio Branco, 1ª seção,

Lata 854, Maço 2, Documento 9.

692 Ver José Murilo de Carvalho, ‘As Forças Armadas na Primeira República: o Poder Desestabilizador,’ in O Brasil

Republicano: Sociedades e Instituições (1889-1930) vol. 9. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 1997, p. 198-199, 231-

234; Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na

política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 45-64; 101-107.

693 Telegrama de Rio Branco a Joaquim Nabuco em 07/12/1908. AHI Lata 235, Maço 4, Documento 1.

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393

perseguidos desde 1907. Segundo o relatório final da ‘Comissão Militar brasileira de

compras de material bélico na Europa’, somente o Exército teria recebido 110 mil fuzis

e 200 canhões de campanha, isto para uma corporação cujos efetivos em 1920 não

ultrapassavam 16 mil homens.694

Apesar da iniciativa da vinda da Missão Alemã não se concretizar por conta da

morte de Rio Branco em 1912 e da resistência de certos setores da sociedade e das

Forças Armadas ligados aos interesses franceses e ingleses, ficaria desde então

consolidada a idéia da necessidade da vinda de uma Missão Militar e do reequipamento

do Exército.

Já o núcleo formado por Rio Branco ampliaria consideravelmente sua influência

no Exército a partir do apoio do Estado-Maior do Exército, que estimularia seus

membros a organizarem a reforma da ‘Escola Militar de Realengo’, no que ficaria

conhecido como a ‘Missão Indígena’. Com a negociação da ‘Missão Militar francesa’

por João Pandiá Calógeras e Malan d’Angrogne, simpatizantes dos ‘Jovens Turcos’,

alterar-se-ia a composição das forças que operavam no interior do Exército, com os

‘Jovens Turcos’ alinhando-se definitivamente com o Estado-Maior do Exército, o que

fez com que sua revista, ‘A Defesa Nacional’, se tornasse um porta-voz autorizado da

Escola de Estado-Maior. Este arranjo somente se tornou possível na medida em que, a

partir do legado de Rio Branco, se deu a intervenção direta das elites dirigentes, a quem

interessava a ‘profissionalização’, entendida, no caso, como a ‘despolitização’ do

ensino militar, notando-se que nesse processo, a ‘Escola Militar’ seria mudada da Praia

Vermelha para Realengo, longe portanto do centro da cidade. Nesse sentido, a

centralização do controle político do Exército em torno do Estado-Maior, junto com o

novo currículo, mais profissional, e uma nova instrução, mais militarizada, ajudou a

ampliar uma coesão da oficialidade em torno do aperfeiçoamento da organização

militar.

Contudo, graças aos alinhamentos anteriormente referidos, a ‘Missão Militar

Francesa’ ficou impedida de reformar o próprio Estado-Maior do Exército, o qual desde

logo considerou essa ‘Missão’ como um simples órgão consultivo. Por outro lado, a

‘Escola Militar de Realengo’, porta de entrada para o corpo de oficiais do Exército,

continuou nas mãos da ‘Missão Indígena’, sabidamente composta, em sua maioria,

694 Ver Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na

política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 76-105.

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394

pelos ‘Jovens Turcos’. Por conseguinte, a Missão Militar Francesa teve seus trabalhos

limitados à ‘Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais’ e à Escola de Estado-Maior do

Exército, cabendo-lhe, na prática, a reciclagem da oficialidade brasileira, ao impedir a

ascensão ao generalato daqueles que divergiam daqueles grupos.

O controle do mecanismo pelo qual os afastamentos ou os impedimentos

periodicamente se processariam, definiu a longo prazo o processo de centralização

decisória no Estado-Maior do Exército, uma vez que tanto a entrada para o Corpo de

Oficiais, na Escola Militar de Realengo, bem como as promoções destes, passaram a ser

controladas por grupos que se apoiavam mutuamente e que a curto prazo conseguiram

constituir e estabilizar uma doutrina de Estado-Maior.

A inexistência de qualquer ‘Doutrina de Guerra’ no Estado-Maior brasileiro

facilitou a assimilação e a aceitação da doutrina expressa pela Missão Militar Francesa,

bem como a acomodação com certos conteúdos oriundos da experiência dos estágios na

Alemanha. Assim seria dado grande enfoque à Geografia Militar, disciplina cujo

aprendizado passou a ser considerado como essencial para o concurso de admissão à

Escola de Estado-Maior e que portanto seria disseminada também junto às outras

Escolas formadoras de oficiais. Em todos os conteúdos, sobretudo pela sua

concatenação com o estudo de Tática e Estratégia, a influência da geopolítica, tanto nas

vertentes alemã ou francesa, era decisiva, como pode ser verificado através de um

excerto da Ementa desta disciplina na década de 1940:

O estudo da Geografia Militar de um país, deve ser feito

principalmente no quadro de suas relações e compromissos internacionais,

de suas dependências e amarrações ao sistema mundial de forças a que se

filia ou a que se opõe.695

Portanto, combinar-se-iam na ‘gramática’ do Exército as influências da

geopolítica com uma ‘memória’ de Rio Branco, identificada com o apoio dado

anteriormente à transformação da corporação. Essa ‘memória’ seria constituída ainda

pela assimilação da ‘História das Fronteiras’ no currículo da ‘Geografia Militar’ e por

um ensino da ‘História Militar’ focada nas glórias da corporação no Segundo Reinado.

Conseqüentemente, a ‘memória’ de Rio Branco evocava certos papéis que o Exército

695 João Batista Magalhães. ‘Sobre os fundamentos para o estudo dos aspectos militares da Bacia do Prata’, in Revista

Militar Brasileira, 49 (1-2), Jan./Jun. 1949.

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pretendia se atribuir, como o da ‘mantenedor’ do ‘corpo da pátria’ pela defesa das

fronteiras e do território, bem como o de ‘garante’ da integração nacional por conta de

uma participação no processo de desenvolvimento e formação da nacionalidade.696

Já as condições de reelaboração do legado de Rio Branco na Marinha

relacionam-se com a própria decadência desta corporação após a ‘Revolta da Armada’,

o que, no caso, levou grande parte da oficialidade a se identificar apenas com os

propósitos do rearmamento naval, que apesar de também ser defendido por vários

setores das elites políticas, foi ligado inequivocamente pela oficialidade da Marinha a

Rio Branco.

Ainda que o objetivo de Rio Branco fosse apenas o de criar uma equivalência

militar com a Argentina, o ‘Programa de Rearmamento Naval’ levado ao Congresso era

uma proposta que incluía a reestruturação de toda a frota brasileira. Assim, a ratificação

desse ‘Programa’ pelo Senado envolveria a negociação dos termos da proposta visando

sua aprovação. Neste caso, para se garantir o aval de Pinheiro Machado substituíram-se

as unidades que constavam na primeira proposta por três ‘dreadnoughts’, os quais, por

conta dos termos do empréstimo obtido da casa bancária Rothschild, deveriam ser

obrigatoriamente comprados na Inglaterra. Os ‘Dreadnoughts’ eram uma classe de

navios absolutamente nova e que modificava todas as noções de combate naval. Assim,

a mudança na natureza do ‘Programa’ implicava na transformação abrupta do Brasil

numa das maiores potências navais do planeta, subvertendo a balança de forças na

América e desencadeando uma escalada militar e política com a Argentina.

Contudo, Rio Branco não procuraria se desvincular das mudanças feitas no

‘Programa’, ainda que preferisse a antiga configuração da frota: com o fato consumado

da compra dos ‘Dreadnoughts’ apenas intensificou-se a ‘campanha de imprensa’

destinada a conquistar apoios para a Missão Militar alemã, inclusive, dela participando

diretamente sob a proteção de pseudônimos.

Como a Marinha possuía uma estrutura hierárquica mais segmentada e uma

composição social mais homogênea entre seus oficiais que o Exército, havia nesta

corporação uma resistência muito maior às mudanças. Em resultado dessa

particularidade, passou-se a dar ênfase na ‘campanha de imprensa’ à ‘Reforma

Compulsória na Marinha’. Segundo o Projeto proposto pelo Almirante Alexandrino, um

696 Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na

política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 20-118.

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396

dos principais colaboradores de Rio Branco, os postos que compunham o alto oficialato

deveriam ter sua reforma antecipada, em média, seis anos, enquanto que os oficiais

subalternos teriam sua reforma postergada, em certos casos, em até dez anos.697

Ficava

claro, por conseguinte, que o objetivo desse Projeto era facilitar a ascensão dos oficiais

mais jovens em detrimento daqueles que, na maioria dos casos, haviam alcançado o

oficialato ainda pela época da Guerra do Paraguai.

Como visto, a campanha de imprensa em 1910 visava criar as condições para

que fosse possível instaurar a ‘Grande Missão’, desacreditando os grupos que a ela se

opunham. Para alcançar este objetivo, a linguagem utilizada passou a enfatizar então a

incapacidade profissional, o anacronismo e o desvio de função como características

quase que absolutas da alta oficialidade da Marinha e em parte, do Exército.698

Neste sentido, a ‘Grande Missão’ passaria a ser concebida também como uma

recomposição em profundidade das corporações militares, tendo-se em vista

incrementar sua capacidade combativa por conta da sua adequação aos novos

armamentos adquiridos. Esta recomposição das corporações militares era então

defendida como um imperativo da Política Externa, conforme se pode entender a partir

dos artigos publicado na campanha de imprensa: “Nós não temos que conquistar uma

soberania; temos que defendê-la e devemos assegurar nosso posto no concerto

americano”,699

ou ainda, “a preparação de uma Nação para a guerra está subordinada

absolutamente a sua política exterior [...] a ela, pois, compete esclarecer os órgãos que

têm de criar os elementos materiais e morais com que se conta proteger o

desenvolvimento pacífico de um povo”.700

Sintomaticamente, nenhum dos artigos, supostamente reformadores, sequer

comenta os códigos disciplinares utilizados pelas Forças Armadas brasileiras que, por

697 Jornal do Commercio, 17/08/1910. A proposta de Alexandrino visava alterar o Decreto n° 108 de 30 de dezembro

de 1889 que regulava os critérios para reforma. Respectivamente, a Reforma Compulsória passaria a acontecer

para Almirante aos 65 anos em vez de 70, Vice-almirante 62/68, Contra-almirante 60/66, Capitão-de-mar-e-guerra

56/62. Capitão de Fragata, Capitão de Corveta e Capitão-tenente que segundo o antigo Decreto se reformavam

entre os 58 e 52 anos de idade, pela nova proposta passariam, indistintamente, a serem reformados aos 50 anos. Por

sua vez, os Tenentes que se reformavam entre os 46 e 40 anos de idade, seriam beneficiados pelo adiamento da

reforma até os 50 anos. Jornal do Commercio, 17/08/1910 e Decretos do Governo Provisório, 1889.

698 ‘A maior parte de nossos oficiais superiores são incapazes para a manobra da esquadra que acaba de exigir cerca

de 150 mil contos para sua construção [...] [devemos] pedir ao Congresso uma lei excepcional de reforma, baseada

na incapacidade, por velhice ou atraso, de grande parte dos oficiais generais e superiores’ – Jornal do Commercio,

11/07/1910.

699 Jornal do Commercio, 06/08/1910.

700 Jornal do Commercio, 10/08/1910.

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exemplo, permitiam na Marinha, entre outras punições, o uso da chibata, que, no

entanto, seria, nesse mesmo ano, o estopim da revolta dos marinheiros que tripulavam

os barcos que representavam então a renovação da corporação e a supremacia naval

brasileira.

Por conseguinte, a ‘Revolta da Chibata’ terminaria com as críticas nos jornais,

sendo, inclusive, destinado à Marinha um programa de estágios como no Exército. Este

programa de Estágios, a ser cumprido na Marinha americana, formaria um núcleo de

oficiais, que à exemplo dos ‘Jovens Turcos’, ficaria conhecido na Marinha como ‘Grão-

duques’ ou ‘Arquiduques’. Embora os ‘Grão-duques’ não tivessem na Marinha a

influência que os ‘jovem turcos’ tiveram no Exército, aqueles seriam responsáveis pelo

preterimento da vinda de uma ‘Missão Militar’ britânica em favor de uma ‘Missão’

americana, definindo uma influência precoce a ser exercida a partir dos Estados Unidos

nas Forças Armadas brasileiras.

Alguns dos elementos apoiados por Rio Branco chegariam aos postos mais altos

da carreira naval, sendo que o Almirante Alexandrino alcançaria o comando da pasta da

Marinha ainda durante a permanência daquele à frente do MRE. Alexandrino,

empreenderia nada menos do que duas reformas na corporação naval, onde se

encarregaria de salvaguardar a distinção hierárquica que havia sido ameaçada pela

‘Revolta da Chibata’, implicando que as mudanças na Marinha tivessem um alcance

menor que as do Exército.701

Portanto, no caso da Marinha se preservaria uma ‘memória’ de Rio Branco mais

ligada à defesa mesma dos interesses corporativos, dentre os quais se entendia a

manutenção de uma tradição ameaçada pela competição com o Exército e pelo assalto

dos marinheiros à hierarquia. Inclusive, nesse processo, alguns episódios da História

Corporativa seriam elididos, como o ‘Motim de 1919’,702

ou requalificados episódios,

como a ‘Revolta da Chibata’,703

enquanto que, ao contrário, seria enfatizada a

‘memória’ de certos personagens, como Saldanha da Gama, um dos líderes da ‘Revolta

da Esquadra’, de reconhecidas ligações monárquicas, depreciando-se, no mesmo

processo, o papel do Ministro da Marinha que ficara então fiel ao Governo republicano.

701 Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na

política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 64-99.

702 A única referência ao motim de 1919 encontra-se em Robert L. Scheina, Latin America: a Naval History.

Annapolis, Maryland: Naval Institute Press, 1987, p. 106-107.

703 Ver, por exemplo, Hélio Leôncio Martins, A Revolta dos Marinheiros. São Paulo: Editora Nacional, 1988.

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Já a participação de Rio Branco no IHGB inicia-se ainda muito cedo, em 1867, e

foi bastante assídua até 1876, quando seguiria para preencher o posto de cônsul em

Liverpool. A partir de então e até a sua nomeação como Presidente do IHGB, já no final

de 1907, as ligações entre o Instituto e Rio Branco tornaram-se muito rarefeitas,

somente se restabelecendo após as homenagens que lhe foram prestadas por seu

desempenho nos Arbitramentos de Palmas e do Amapá. Provavelmente pesava nesse

distanciamento entre Rio Branco e o Instituto o mesmo julgamento de ordem moral que

tanto pesou a favor de sua ida para o exterior quanto contra sua nomeação pelo

Imperador para o posto na Inglaterra. No caso, sua vida pregressa e sua situação

conjugal eram consideradas imorais pelos padrões da época, impondo o ‘ostracismo

social’ ao filho de um dos mais importantes políticos da época.

Por conta deste julgamento moral, a ascensão política de Rio Branco somente se

iniciou realmente aos cinqüenta anos de idade, já na República, quando aceita, sem

vacilar, por conta de sua penúria financeira, todas as oportunidades que lhe são

oferecidas, até que fosse apontado diretamente, por conta de sua colaboração com o

novo regime, para o Arbitramento de Palmas pelo Presidente em exercício Floriano

Peixoto.

Assim, o IHGB elege Rio Branco para a Presidência por unanimidade, mas

contra suas convicções mais íntimas, levado pela necessidade de sobrevivência em meio

à República. A prova mais sincera desse conflito de consciência é o discurso do próprio

orador oficial do Instituto, o Conde de Afonso Celso, durante a posse de Rio Branco:

Notório é que insuperáveis barreiras de hombridade e convicção me

arredam do sistema político a que o barão do Rio Branco emprestou o sólido

sustentáculo do seu nome e da sua competência.

Mas não estou falando em caráter individual: represento uma

coletividade alheia à política.

Falasse, entretanto, individualmente e nada importava!

Prezo-me de ser, acima de tudo, bom brasileiro, isto é, patriota; e

nenhum bom brasileiro, nenhum patriota deixará de reconhecer a seguinte

verdade, banal de tão repetida, quero dizer, de tão incrustada na consciência

pública: o barão do Rio Branco é um dos padrões de justo orgulho nacional.

E, se alguém o calasse, chamá-lo-iam as pedras de milhares de

quilômetros por ele adicionadas ao Brasil.

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Vilania fora apregoá-lo só porque S. Excia. é o poder; vilania maior

negá-lo ou omiti-lo sob pretexto de oposição a este Poder, do qual coisa

alguma pretendo, e que nada me poderá conceder, pois repito, lhe sou

adversário leal, mas radical e irredutível!704

Contudo, na sua Presidência, Rio Branco recuperaria a inserção social do IHGB

através de sua projeção pessoal, das atividades internacionais em que insere o Instituto e

acima de tudo porque redirecionou o foco da atuação do Instituto e de suas publicações

para o período Colonial, esvaziando-se, através desta atitude, um espaço que então

podia ser utilizado para a contestação à República.

Rio Branco também passaria a utilizar o IHGB como palanque para as suas

declarações mais importantes e de maior repercussão, como a que aconteceu durante a

crise aberta com a Argentina pelo chamado ‘Telegrama n° 9’, fazendo com que a

Imprensa passasse a divulgar a nova imagem do Instituto cunhada por ele. Em

reconhecimento, o IHGB elevaria Rio Branco à condição de ‘Presidente Perpétuo’ em

1909, honraria somente concedida anteriormente ao fundador do Instituto, José

Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de São Leopoldo.

Portanto, a reelaboração do legado de Rio Branco no IHGB deve ser entendida

em razão do esforço que o Instituto fará para se associar com a própria figura de Rio

Branco, construindo-se assim uma ‘memória’ conjunta, um legado institucional, capaz

de lhe garantir a sobrevivência no novo regime e que se construiu em associação com o

legado corporativo do MRE.

Note-se que tanto a reincorporação de Rio Branco ao IHGB quanto a

constituição do seu legado no MRE somente acontecem após 1907, depois da morte de

Joaquim Tomás do Amaral, o Visconde de Cabo Frio, Diretor-Geral do MRE desde

1865. Durante os quase quarenta e dois anos à frente da Diretoria-Geral, especialmente

na República, Tomás do Amaral havia consolidado, através do controle do expediente

interno, poderes capazes de rivalizar com os dos seus ministros. Assim, o falecimento

daquele funcionário serviria para que Rio Branco pudesse intensificar uma série de

iniciativas destinadas a concentrar internamente o controle do ministério nas mãos do

titular da pasta e a consolidar corporativamente o MRE. Sintomaticamente, somente na

cerimônia de homenagem a Tomás do Amaral, também sócio do IHGB, transcorrida no

704 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXXI, 1908, p. 421-432.

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Instituto, é que Rio Branco seria, pela primeira vez, convidado para exercer a

Presidência.

As iniciativas de Rio Branco seriam impulsionadas sobretudo, por um longo

período no qual se quebrou o antigo preceito de se apresentar anualmente o Relatório do

Ministério, uma vez que somente um único relatório foi apresentado durante os dez anos

em Rio Branco esteve à frente da Chancelaria. Nesse sentido, os recursos e esforços não

justificados, provavelmente destinaram-se a possibilitar tanto a reforma da sede da

corporação quanto a instalação de um aparelho administrativo conforme o modelo

europeu, de acordo com seus hábitos e idiossincrasias.

Constituir-se-ia deste modo no MRE um circuito de sociabilidade que visava

atrair os intelectuais e a alta sociedade, aumentando assim tanto a projeção corporativa

do MRE quanto a inserção do diplomata na sociedade civil.

Por outro lado, a ausência dos Relatórios ministeriais possibilitou também que se

consolidasse durante a condução da política externa no período a velha idéia do segredo

diplomático, ou seja, a idéia de que política externa devia se constituir numa matéria

que somente devia ser debatida em todas as suas conseqüências dentro de um hermético

circuito diplomático.

Por último, consolidar-se-ia a formação na imprensa de um circuito de sanção à

política corporativa do MRE através da manipulação do noticiário que talvez nunca

possa ser completamente comprovado por vias documentais, haja vista que Rio Branco

possuía o hábito, registrado em várias circunstâncias por seus biógrafos, de destruir

parte de sua correspondência.705

Contudo, esse circuito pode ser reconstruído em parte,

por exemplo, pelo estudo de certas iniciativas do período, como as ‘campanhas de

imprensa’, movidas de encontro aos interesses do MRE, como pudemos comprovar em

relação à ‘Grande Missão’ ou ainda durante o ‘Caso Panther’. Mas, nesse sentido, talvez

o indício mais relevante da formação desse circuito seja a própria relevância dada por

Rio Branco, durante os dois episódios citados, à formação de uma ‘influência’ a ser

exercida pelo MRE sobre a imprensa, tanto no Brasil quanto no exterior.706

705 Alvaro Lins. Rio Branco (o Barão do Rio Branco): Biografia Pessoal e História Política. São Paulo: Companhia

Editora Nacional, 1965, 2ª Edição (revista); Luiz Viana Filho. A Vida do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro:

Livraria José Olympio Editora, 1959.

706 Renato Amado Peixoto. 'As influências recíprocas entre a política externa e a interna - o Caso Panther', Lições de

Relações Internacionais, n° 1, Rio de Janeiro: UniverCidade Editora, 2004.

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Este circuito de sanção à política corporativa seria ainda mais intensificado a

partir da construção do personagem Rio Branco pela imprensa, o qual foi identificado

então tanto com o nacionalismo, no caso, “o anseio de vitória, de expansão, de glória de

um povo jovem”,707

quanto com a religiosidade, no caso, a capacidade de renúncia, a

predestinação, o desinteresse do mundo terreno.

Ainda, a longevidade de Rio Branco no jogo político da época permitiu que se

fizesse a identificação de seu personagem com a própria idéia da representação do

espaço nacional, o que, aliás, era muito do agrado de Rio Branco. “Eu já fiz o mapa do

Brasil” é uma fala que além de lhe ter sido atribuída mais de uma vez, vai de encontro

ao epíteto que lhe foi ofertado em tributo, por um agradecido Rui Barbosa, seu antigo

adversário: o de “Deus Terminus” das fronteiras.708

Note-se, finalmente, que este personagem foi construído em parte pelo próprio

Rio Branco, utilizando-se para isto da manipulação da notícia, através de seu prestígio

pessoal, como pudemos comprovar anteriormente, ou talvez pelo aliciamento, acusação

que lhe foi constantemente lançada em vida, inclusive no Congresso.709

A reelaboração do legado de Rio Branco pelo MRE, compreenderia, além da

ampliação destes circuitos, uma transformação da estrutura da corporação, através da

ênfase em uma hierarquização e centralização que na época chegou a ser apodada de

“regime de validismo e abafamento”.710

Esta transformação da estrutura corporativa chegou a ser transcrita, sob a

orientação de Rio Branco, pelo diplomata José Manuel Cardoso de Oliveira, na

‘Remodelação dos quadros do Corpo Consular brasileiro’, em 1911. Ainda que a morte

de Rio Branco impedisse que esta ‘Remodelação’ fosse sancionada pelo Congresso,

grande parte de suas instruções seria implementada apenas um ano depois pelo seu

sucessor, Lauro Müller, através da ‘Consolidação das leis, decretos e decisões referentes

ao Corpo Consular brasileiro’.

Na ‘Consolidação’, por exemplo, seriam normatizadas as relações dos

empregados consulares com os seus superiores, regulamentadas a disponibilidade e a

707 Alvaro Lins, Rio Branco (o Barão do Rio Branco): Biografia Pessoal e História Política. São Paulo: Companhia

Editora Nacional, 1965, 2ª Edição (revista): p. 474.

708 Luiz Viana Filho, A Vida do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959, p. 420.

709 João Moura Dunshee de Abranches, Rio Branco - Defesa de Seus Atos. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1911.

710 Graça Aranha, citado em Luiz Viana Filho, A Vida do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro: Livraria José

Olympio Editora, 1959, p. 379.

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aposentadoria dos servidores e estabelecer-se-ia a nomeação, sem exame, dos

empregados do MRE, desde que estes candidatos já fossem habilitados como “doutores

ou bacharéis em direito”.711

Já uma outra iniciativa de Rio Branco destinada a consolidar corporativamente o

MRE insere-se também na reelaboração do legado no IHGB. Esta iniciativa consistia na

recuperação e adaptação de um antigo projeto pessoal de Rio Branco, a organização de

uma ‘História Diplomática do Brasil’. Sob suas ordens, José Manuel Cardoso de

Oliveira também redigiria, entre 1908 e 1911, os ‘Atos diplomáticos do Brasil’, obra em

que juntaria, através de mais de seis mil páginas, todos os acordos internacionais do

Brasil desde o Tratado de Tordesilhas.

Através dessa iniciativa, consolidar-se-ia a idéia da construção de uma ‘História

das Fronteiras’ sob a perspectiva corporativa, a partir da enunciação e descrição dos

tratados e da atuação de seus negociadores. Sintomaticamente, na obra de Cardoso de

Oliveira, cada um dos titulares das Chancelarias foi relacionado junto aos tratados

assinados nas suas gestões, sendo que esta remissão era ainda acompanhada por um

sumário do histórico pessoal daqueles titulares.

Neste sentido, a iniciativa coordenada por Rio Branco visava reforçar a idéia da

centralização dos laços corporativos no MRE ao mesmo tempo em que se recriava a

idéia de uma construção do espaço dirigida pelos esforços diplomáticos. Deste modo,

construía-se uma representação do espaço nacional conjugada com a própria

representação corporativa: o projeto pessoal de Rio Branco incorporava uma operação

narrativa que anteriormente já havia sido feita pela Chancelaria portuguesa, quando,

após financiar a impressão dos Atlas do Visconde de Santarém, organizou-se a

publicação da íntegra dos acordos internacionais de Portugal .712

Esta idéia da construção de uma História Diplomática transitaria do MRE para o

IHGB. Logo no ano da morte de Rio Branco, em 1912, foi publicada pelo MRE a

versão condensada dos ‘Atos diplomáticos’, sendo que, Artur Guimarães de Araújo

Jorge, oficial-de-gabinete de Rio Branco, publicaria no mesmo ano os ‘Ensaios da

história diplomática do Brasil no regime republicano’ e logo depois, em 1914 e 1915, a

‘História Diplomática do Brasil holandês’ e a ‘História Diplomática do Brasil francês’.

711 Decreto 10.384 de 06/08/1913, art. 177, 129, 141 e 12.

712 Ver nesta tese o capítulo ‘O espelho de Jacobina’.

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403

Por sua vez, o IHGB também publicaria, em 1916, a ‘História Diplomática do

Brasil’, de autoria de Arthur Pinto da Rocha, na verdade uma transcrição de suas

conferências feitas anteriormente no Instituto. O IHGB ainda consolidaria seu legado

institucional através da criação e manutenção de uma ‘memória’ de Rio Branco,

primeiro, publicando em 1917 sua obra ‘Efemérides brasileiras’ e depois, em 1919,

incorporando o ritual da leitura obrigatória das ‘Efemérides’ ao início de cada uma de

suas Sessões.

Seguindo a convergência entre a consolidação corporativa do MRE e a

constituição de um legado institucional no IHGB, surgiria em 1927 a primeira obra de

longo fôlego da História Diplomática, sintomaticamente atendendo a um chamado feito

pelo Instituto, no sentido de se celebrar, através da publicação de diversas obras sobre o

Império, o centenário do nascimento de D. Pedro II em 1925.

O autor da ‘História da Política Exterior do Império’, João Pandiá Calógeras, era

um antigo sócio do IHGB e como vimos, havia sido também um dos maiores

colaboradores de Rio Branco na Câmara dos Deputados. Além disso, Calógeras era

também um dos maiores discípulos e amigos de Capistrano de Abreu, que, por sua vez

também havia participado da intimidade de Rio Branco. Ainda, Capistrano

provavelmente deve ter colaborado nas discussões da ‘História da Política Exterior do

Império’ uma vez que esta obra começaria a ser escrita quatro anos antes de sua morte e

esse diálogo intelectual fazia parte dos hábitos de Calógeras .

Deste modo, podemos compreender como a dupla influência de Capistrano de

Abreu e de Rio Branco foi exercida sobre a ‘História da Política Exterior do Império’ e

que esta influência pode ser depreendida a partir da descrição neste livro de uma

expansão das Fronteiras como obra exclusiva do Estado, sendo ainda ressaltada a

pertinência da diplomacia e a importância do diplomata, substituindo o papel atribuído

por Varnhagen aos Bandeirantes.

A partir da correspondência de Calógeras com o IHGB, podemos compreender

que o registro dos novos elementos da narrativa constituídos nos Arbitramentos,

antecedeu mesmo ao desenvolvimento do conteúdo histórico da ‘História da Política

Exterior do Império’. Neste caso, por exemplo, já que a intenção de vincular o uti

possidetis aos tratados do século XVIII precedeu mesmo a pesquisa destes, podemos

Page 404: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

404

entender que a História Diplomática foi escrita mesmo em função de consolidar o

registro dos novos elementos da narrativa.713

A constituição de uma convergência entre o legado institucional no IHGB e a

consolidação corporativa do MRE inclui mesmo certos esforços precoces destinados a

recuperar as discussões anteriores sobre o espaço feitas no Instituto, através de sua

publicação na Revista do IHGB. Deste modo, por exemplo, o ‘Programa geográfico’ e a

‘Vida e os feitos de Alexandre de Gusmão’, de Pinheiro, foram publicadas juntamente

com ‘As primeiras Negociações diplomáticas respectivas ao Brasil’, de Varnhagen, em

1902.

Nesse sentido, também o personagem de Alexandre de Gusmão já começaria a

ser recuperado neste período, inclusive, ressaltando-se a incorporação do personagem

de Bartolomeu de Gusmão à sua inscrição. Esta recuperação da incorporação

anteriormente feita por Pinheiro, seria desenvolvida no IHGB através da construção de

uma relação entre Bartolomeu de Gusmão e Santos Dumont, quando se passaria a

apontar aquele padre como o antecessor direto do pioneiro da aviação.714

Posteriormente, vários outros sócios do IHGB avançariam ainda no propósito de

construir uma História Diplomática e de ligá-la, por sua vez, à historiografia. Nesse

sentido, podemos distinguir, dentre outros, os esforços feitos por Macedo Soares,

escrevendo ‘Fronteiras do Brasil Colonial’, em 1939; Pedro Calmon, escrevendo a

‘História diplomática do Brasil’, em 1941; Hélio Vianna, com a ‘História das Fronteiras

do Brasil’, em 1948; e Teixeira Soares, que redigiu tanto a ‘Diplomacia do Império no

Prata’, em 1955 quanto ‘História da Formação das fronteiras do Brasil’, uma obra

tardia, em 1970.

Portanto, podemos compreender que se construiu em torno da reelaboração do

legado de Rio Branco e da construção de sua ‘memória’ um circuito corporativo e

institucional e que neste circuito passar-se-ia a partilhar uma gramática que permitia o

entendimento, a colaboração e a cooperação entre todas essas entidades. Esta comunhão

de uma gramática comum propiciaria que a reatualização da inscrição da centralidade

fosse registrada na História Diplomática e que depois essa reatualização fosse

novamente reelaborada por meio de sua inscrição numa ‘Mitologia do espaço nacional’.

713 Carta de João Pandiá Calógeras para Max Fleiuss, 7/8/1924. IHGB, Lata 342, Pasta 66.

714 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXX parte 2, 1908, p. 765-766.

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405

A moldura que enquadra a pátria: o circuito de inscrição da Mitologia do espaço

nacional

Fronteira! moldura em que se enquadra a Pátria; zona em que se esbatem as

vibrações que vêm de fora e de onde as ondas de trepidação interna se exaltam;

[...] linha de baluartes vivos que impedem a infiltração de ideologias exóticas, de

credos que não nos pertençam, de expressões carentes de significado nos nossos

sentimentos. [...] A fronteira do Brasil, em qualquer latitude ou longitude, não foge

à sugestão das dos outros países do Ocidente. Há nela qualquer coisa de romance.

Sua própria evolução no curso dos séculos é motivo de encantamento e orgulho.

Castilhos Goycochêa. Fronteiras e fronteiros.

‘Tis the melodious hue of beauty thrown (14)

Athwart the darkness and the glare of pain,

Which humanize and harmonize the strain.

Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,

In the Florentine Gallery715

Visando entender, num terceiro momento, como os novos termos e o novo

modelo do espaço foram registrados na ‘História das Fronteiras’, buscaremos definir

como o saber do espaço nacional se consolida paulatinamente num circuito de inscrição

de uma nova centralidade.

A ‘Mitologia do espaço nacional’ será construída com a incorporação de

elementos recolhidos das várias gramáticas corporativas e institucionais, que

entendemos como as representações dos interesses corporativos, construídas sobre a

gramática compartilhada. Esta, por sua vez, é a reatualização da ‘visão central’ que se

imbricaria em cada um dos vários lugares de produção, codificação e exteriorização das

representações autônomas destas corporações.

Portanto, conforme pudemos observar, constituiu-se na primeira metade do

século XX, um circuito de inscrição percorrendo as diversas corporações e instituições,

permitindo que os operadores da ‘Mitologia do espaço nacional’ pudessem

715 'É a suave nuança da beleza arremessada / Contra a escuridão e o clarão da dor, / Que humaniza e harmoniza a

tensão.' — Percy Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 14-16.

Page 406: A máscara da Medusa a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX - Renato Amado Peixoto

406

compartilhar os vários espaços corporativos, buscando inscrever através dessa interação

uma representação do espaço nacional capaz de registrar a nova e difusa centralidade.

Assim, podemos observar através da consolidação da História Diplomática até

1945, a inserção daqueles que serão operadores da mitologia em locais onde se

legitimou um ‘saber sobre o espaço’, baseado na História Diplomática e na geopolítica

brasileira, no caso, a Universidade do Brasil (a atual UFRJ) que abrigou Pedro Calmon,

Delgado de Carvalho, Macedo Soares, Hélio Vianna; e a PUC, que abrigou Everardo

Backheuser. Também podemos observar sua inserção no IBGE, onde esse ‘saber sobre

o espaço’, além de ser legitimado, passará a ser utilizado como instrumento de estudo e

de planejamento da política de desenvolvimento regional, no caso, abrigando neste

esforço Delgado de Carvalho e Everardo Backheuser.

Esta inserção dos operadores da mitologia, somada à cooperação e o

entendimento com o MRE, permitiriam que já em 1936 se consolidasse uma outra

intervenção desse ‘‘saber sobre o espaço’’ na produção historiográfica. Esta intervenção

ocorreria por conta do entendimento a respeito das ‘Normas da Revisão dos textos de

ensino de História e Geografia’, negociadas entre o MRE e o Ministério das Relações

Exteriores da Argentina e chanceladas por Pedro Calmon e Raja Gabaglia,

representando a Universidade. Por estas ‘Normas’, o Governo Federal e os governos dos

Estados não poderiam mais permitir que, nos estabelecimentos públicos de ensino ou

fiscalizados pelo poder público, fossem adotados compêndios de História e Geografia

cujos conteúdos se desviassem dos conceitos de ‘solidariedade’, ‘idealismo’,

‘americanidade’ e ‘veracidade’ entre os dois países.

Segundo as ‘Normas’, os compêndios de História deveriam conter capítulos

referentes às relações de paz e comércio entre o Brasil e as nações estrangeiras,

notadamente as americanas. Também se deveria salientar nestes compêndios “as

tradições de desinteresse e idealismo da nossa política exterior, e a coerência dos seus

sentimentos de conciliação e cordialidade”.716

Ainda, dever-se-iam destacar no ensino da História, atitudes, iniciativas e fatos,

que visassem formar uma “consciência americanista da civilização brasileira” e que

constituíssem “uma segurança dos destinos pacíficos do novo mundo.”

716 Ministério das Relações Exteriores, Revisão dos textos de ensino de História e Geografia. Rio de Janeiro:

Imprensa Nacional, 1936.

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407

Estranhamente, no item das Normas destinado à ‘veracidade’, considerava-se

que nos textos históricos, dever-se-iam excluir “sistematicamente” os “temas

controversos comentários e divagações, limitando-se à indicação dos fatos.” E mais,

quando se tratasse de assuntos internacionais, dever-se-ia evitar “qualificações

ofensivas” e “conceitos que atinjam a dignidade dos Estados e os seus melindres

nacionais.”

Segundo as mesmas ‘Normas’, os compêndios de Geografia deveriam ser

compostos principalmente, pelas “estatísticas oficiais mais modernas”, no caso,

centralizadas no Instituto Nacional de Estatística e no Conselho Nacional de Geografia,

fundados naquele ano e que seriam reunidos no Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística (IBGE) em 1938, onde se passaria a centralizar também a pesquisa e a

produção da Cartografia.

Ainda, segundo as ‘Normas’, o objetivo central do ensino da Geografia deveria

ser o de estabelecer para os alunos uma “noção aproximada da riqueza e capacidade de

produção dos Estados estrangeiros”,717

aproximando-se, por conseguinte, daquele ‘saber

sobre o espaço’ que se organizava no circuito de inscrição da centralidade.

Entendemos que este ‘saber sobre o espaço’ que se formou a partir do conteúdo

da narrativa e da ‘História Diplomática’ e nas diversas contribuições dos lugares de

produção corporativos e institucionais, amoldar-se-ia aos poucos sob o guarda-chuva de

uma disciplina que então se pretendia enquadrar como ciência, a geopolítica.

Nesse sentido, os contributos iniciais da geopolítica de Mahan e da sua

interpretação germânica, feita por Tirpitz, haviam sido disseminados pela elite política a

partir dos interesses corporativos da Marinha, anteriormente apontados, encontrando em

Rui Barbosa e em Rio Branco alguns de seus interpretes.718

Esses contributos foram

então recolhidos no IHGB e na Universidade, aonde inclusive chegariam a se consolidar

sob a forma disciplinar na PUC, através do esforço de Everardo Backheuser, sendo por

sua vez divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística e pelo Conselho Nacional de

Geografia.

Seria através das traduções e pela construção teórica de Backheuser que o ‘saber

sobre o espaço’ consolidar-se-ia no Exército em contato com os contributos dos ‘Jovens

717 Revisão dos textos de ensino de História e Geografia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1936.

718 Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na

política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 38-48.

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Turcos’ e da Missão Francesa, sendo assim novamente enformados na ‘geopolítica

brasileira’, cuja primeira grande composição foi a ‘Projeção Continental do Brasil’,

escrita em 1938 por Mario Travassos com a colaboração de Delgado de Carvalho, por

conseguinte constituindo outra construção ‘Mis-en-abysme’.719

Assim, podemos notar o livre trânsito dos operadores da mitologia entre os

diversos locais autônomos de produção, codificação e exteriorização das ‘gramáticas

corporativas’, no caso, do MRE para o IHGB, deste para a Universidade e dali para o

Exército. Este trânsito aumentaria sobretudo pela criação de locais autônomos de

produção de suas representações, a partir de 1945, no caso, o Instituto Rio Branco e a

Escola Superior de Guerra (ESG), o que incrementaria a cooperação entre as

corporações.

Por conseguinte a produção da nova centralidade constituiria exemplos

dramáticos do trânsito no circuito de legitimação e produção. Por exemplo, José Carlos

de Macedo Soares, que escreveu ‘Fronteiras do Brasil colonial’, foi durante muitos anos

diretor da ‘Liga de Defesa Nacional’, que havia sido fundada pelos ‘Jovens Turcos’,

exerceu duas vezes o posto de Ministro das Relações Exteriores, foi Presidente do

IHGB, Presidente do IBGE e ainda Professor e primeiro Diretor da Faculdade de

Ciências Econômicas e Administrativas da Universidade do Brasil. Outro destes

exemplos é o de Delgado de Carvalho, que escreveu a ‘História Diplomática do Brasil’,

participou do círculo de Rio Branco quando foi redator da ‘Revista Americana’ junto

com Artur Guimarães de Araújo Jorge, tornou-se palestrante da Escola de Intendência

do Exército a convite de João Pandiá Calógeras, sendo que esta Escola era então

chefiada por simpatizantes dos ‘Jovens Turcos’, foi Professor Extraordinário de Altos

Estudos no IHGB, participou do IBGE, tornou-se depois catedrático de História

Contemporânea da Universidade do Distrito Federal, catedrático de História Moderna e

Contemporânea da Universidade do Brasil e por fim, Professor do Instituto Rio Branco.

Portanto, entendemos que um circuito de inscrição do ‘saber sobre o espaço’ foi

construído a partir da reelaboração corporativa do legado de Rio Branco, desenvolveu-

se a partir de certas iniciativas organizadas no Governo Vargas, mas somente se

consolidou após 1945, quando o ‘saber sobre o espaço’ foi inscrito numa ‘Mitologia do

espaço nacional’.

719 Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na

política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 111-130.

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409

A Mitologia do espaço nacional e a consolidação dos locais de reprodução

autônoma no MRE e no Exército

A woman's countenance, with serpent locks, (39)

Gazing in death on heaven from those wet rocks.

Percy Shelley. On the Medusa of Leonardo da Vinci,

In the Florentine Gallery.720

Finalmente, num quarto momento, buscaremos entender como as 'gramáticas

corporativas' desenvolvidas a partir da 'História Diplomática' constituir-se-iam, sob a

coordenação do MRE, numa 'Mitologia do espaço nacional'. Entendemos, nesse sentido

que a produção da ‘Mitologia do espaço nacional’ está diretamente relacionada com a

construção das autonomias corporativas do Exército e do MRE, que constituíram, para

isto, locais de produção autônoma das suas representações a partir de 1945.

Compreendemos, ainda, que essa ‘Mitologia do espaço nacional’ será disseminada a

partir do desenvolvimento da cooperação dessas corporações na década de 1950.

A consolidação da ‘Mitologia do espaço nacional’, a partir do ‘saber sobre o

espaço’, se daria no início da década de 1940, quando o grande mantenedor e

centralizador da ‘memória’ de Rio Branco, o IHGB, passaria a planejar a comemoração

do centenário de Rio Branco, que no Instituto seria organizada através de sessões

solenes, contatos com outras entidades e desembocaria na publicação em sua Revista de

todos os textos desenvolvidos por seus sócios sobre a ‘memória’ de Rio Branco.

Por sua vez, o MRE acompanharia o planejamento dessa comemoração,

convidando Álvaro Lins, ainda em 1940, para escrever a primeira biografia oficial de

Rio Branco, “que se destinava a torná-lo mais conhecido e compreendido”,721

franqueando-lhe seu Arquivo e disponibilizando outros recursos. Nesta obra, Álvaro

Lins, antigo professor de geografia e ‘civilização brasileira’, enfatizaria o papel de Rio

Branco para a ‘construção da pátria’ através do esforço da ‘retificação das fronteiras’

obtido por uma ‘renúncia à vida pessoal’.

720 Nossa tradução: ‘Um semblante de mulher, com cachos de serpente, / Daquelas rochas úmidas, contemplando na

morte, o paraíso.' — Percy Shelley. ‘On the Medusa of Leonardo da Vinci, In the Florentine Gallery’, v. 39-40.

721 Alvaro Lins. Rio Branco (o Barão do Rio Branco): Biografia Pessoal e História Política. São Paulo: Companhia

Editora Nacional, 1965, 2ª Edição (revista): p. XVI.

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410

Esta reelaboração do personagem de Rio Branco seria ainda endossada por Artur

Guimarães de Araújo Jorge em ‘Rio Branco e as Fronteiras do Brasil’, escrita como

introdução à ‘edição completa’ das ‘obras’ de Rio Branco, promovida pelo MRE. Neste

livro, o antigo auxiliar de Rio Branco lembraria de seu chefe como o “cidadão que

consagrou a existência inteira a serviço de sua terra, legando soberba e luminosa lição

de patriotismo” que assume o “caráter augusto dum símbolo vivo da própria pátria”,

“sem guerra nem conquistas” por meio do “segredo das vitórias diplomáticas”.722

Portanto, por conta das iniciativas em torno das comemorações do centenário de

Rio Branco, empreendia-se uma releitura do personagem que fora construído no início

do século, relacionando-a com a consolidação corporativa e com antigos elementos

desenvolvidos por Ribeiro, como, a desvinculação do Estado Brasileiro em relação ao

expansionismo português.

Contudo, se não tivesse havido paralelamente a constituição e cooperação dos

locais de produção autônoma das representações do MRE e do Exército sobre uma

gramática compartilhada, esta reelaboração do personagem Rio Branco teria levado

apenas a uma formação mitológica semelhante a que foi feita em torno de Caxias, onde,

provavelmente enfatizar-se-ia o legado corporativo por meio da constituição de uma

relação de gemeidade entre Rio Branco e seu pai, o Visconde de Rio Branco, construção

que chegou a ser ensaiada ainda pelo próprio Rio Branco (ver Figura 39 no final deste

capítulo).

A constituição de um lugar de produção autônoma de representação no MRE

remete ao ano de 1944, quando Jaime Cortesão, refugiado da ditadura salazarista,

principia o curso de História da Cartografia do Brasil e História da formação territorial

do Brasil, desdobrados ainda, no ano seguinte nos cursos de Geografia das Fronteiras do

Brasil e Mapoteconomia, que tinham como objetivo inicial a formação de funcionários

para o Arquivo do MRE.

No entanto, o sucesso deste curso fez com que servisse como um ensaio para a

instalação do que na época começou a ser chamado de ‘Instituto Barão do Rio Branco’ e

que devia se destinar “ao preparo e aperfeiçoamento crescente da mocidade com destino

722 Artur Guimarães de Araújo Jorge. Rio Branco e as fronteiras do Brasil (uma introdução às obras do Barão do Rio

Branco). Brasília: Senado Federal, 1999, p. 7.

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à diplomacia, às atividades consulares, às econômicas e comerciais, e às culturais, na

vida de relação da nação brasileira”.723

Por conta da abrangência desses objetivos, o curso de Jaime Cortesão seria

franqueado, independentemente de inscrição, aos “funcionários ou pessoas ligadas a

serviços federais ou estaduais e instituições cujas atividades se relacionassem com as

matérias lecionadas”. Esta característica seria continuada mesmo após Cortesão ter

deixado o Brasil em 1953, continuando-se assim a formar o pessoal oriundo de outras

instituições, disseminando-se o ‘saber sobre o espaço’ condensado por Cortesão.

Nesse sentido, Jaime Cortesão foi o pioneiro do estudo sistemático e cronológico

da cartografia, ou como ele preferia, da ‘Cartologia’ no Brasil, já que entendia que os

mapas deveriam ser utilizados metodologicamente na interpretação e esclarecimentos de

fatos e momentos históricos. Por conseguinte, seriam desenvolvidas nos cursos de

Cortesão, segundo essa perspectiva, as interpretações dos seguintes problemas: os

fundamentos geográficos e pré-históricos do Estado brasileiro; as antigas interpretações

do Meridiano de Tordesilhas; a influência da geografia nas relações entre África, Brasil

e Portugal; a manipulação da cartografia pelos portugueses visando, com isso, ampliar o

território brasileiro; o avanço dos Bandeirantes no século XVII; a intercomunicação das

bacias platina e amazônica; a penetração portuguesa no vale amazônico; as fontes

cartográficas do Mapa das Cortes; e a presença dos ‘padres matemáticos no Brasil’.724

Portanto, o Curso de Cortesão compreendia tanto o ‘saber sobre o espaço’

consolidado na História Diplomática como também incluía neste as preocupações de

ordem da ‘geopolítica brasileira’ juntamente com interesses próprios, relacionados com

a construção de uma ‘memória’ das glórias do passado português. Nesse sentido,

Cortesão casaria esta ‘memória’ das glórias do passado português com a idéia de

‘momento’ de Ribeiro e sua iniciativas anteriores no MRE, visando consolidar na

corporação a sua ‘Mitologia do espaço nacional’.

Com a abertura do ‘Instituto Rio Branco’ em 1946, o curso de Jaime Cortesão,

foi transformado em disciplina obrigatória do curso destinado à formação de

diplomatas, juntamente com a geopolítica de Everardo Backheuser, o que, no caso,

723 ‘Memorando do Serviço de Documentação do MRE’, de 04/05/1944, citado em Isa Adonias. Jaime Cortesão e

seus mapas. Rio de Janeiro: s. n., 1984, p. IX.

724 Isa Adonias. Jaime Cortesão e seus mapas. Rio de Janeiro: s/editor., 1984, p. XI-XV.

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412

relacionaria diretamente as duas construções teóricas com a reelaboração do

personagem de Rio Branco.

Deste modo, Rio Branco foi nomeado por Backheuser como o primeiro

“geopolítico” brasileiro, entendendo que a originalidade de seu pensamento era

constituída pela caracterização das fronteiras, pelo interesse na Viação, pelo foco no

reaparelhamento das Forças Armadas e por uma utilização da argumentação do uti

possidetis capaz de definir uma ligação do homem à terra pela ocupação.725

Por sua vez, se a reelaboração do personagem de Rio Branco foi adensada pela

idéia de Backheuser, este autor seria também endossado por Jaime Cortesão, que

instituiria a geopolítica já no século XVI, norteando as decisões do Estado português e a

constituição do território desde o início da ocupação. Veja-se, por exemplo, este excerto

da sua aula do curso de Cartografia Política do Brasil em 1945:

Após a última bandeira de Raposo Tavares que, em meados do

século XVII, revelava a imensa profundidade dos territórios inocupados na

América do Sul, aos lusos e luso-brasileiros apresentava-se como da maior

urgência a ocupação de posições estratégicas essenciais, como afirmação da

soberania sobre a Ilha-Brasil.726

Baseando-se nos textos de Pedro Calmon, Jaime Cortesão construiria a idéia de

que a conquista do território pelos portugueses fora precedida por uma estratégia

apoiada no esquadrinhamento do território e da sua ocupação, e que a diplomacia,

sempre a diplomacia, orientava e mantinha esse processo. Cortesão endossava assim,

com novos elementos, a idéia original da História Diplomática, consolidando

corporativamente o MRE através de seu remetimento a uma ‘tradição diplomática’ que

podia ser perfeitamente delineada e delimitada por essa mesma História. Esta idéia da

‘tradição diplomática’ foi constituída por Jaime Cortesão através de seu encadeamento

com a figura do diplomata e de um sentido de nacionalidade precoce, ambos enfeixados

na figura de Alexandre de Gusmão. Já em 1945, baseando-se na obra ‘Limites do

Brasil’, escrita por Hildebrando Accioly em 1938, Jaime Cortesão sugeriria que “quem

725 Everardo Backheuser. ‘Rio Branco, geógrafo e geopolítico’ in Revista da Sociedade de Geographia do Rio de

Janeiro. LII. 5-29: Rio de Janeiro, 1945, p. 5-29.

726 Jaime Cortesão, ‘Apostilas de aulas do Curso de História da Cartografia Política do Brasil do Instituto Rio

Branco’, aula de 24/08/1945. IHGB, Lata 668, Pasta 7.

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413

porém mais concorreu para o resultado a que se chegou com o Tratado firmado em

Madri [...] parece ter sido o famoso estadista e diplomata brasileiro que se chamou

Alexandre de Gusmão”.727

Para isso, Gusmão teria tido a “intuição” de que através do enlace entre os rios

Paraguai e Madeira se formaria uma “gigantesca unidade geográfica formada pelos dois

Estados do Brasil e do Maranhão” e que este enlace seria a “condição essencial para a

integração do território num sólido bloco.” Por conseguinte, a preocupação fundamental

de Alexandre de Gusmão durante a negociação do Tratado teria sido a de “garantir uma

personalidade orgânica e viável à porção compartilhada e a estabilizar ainda pela

individuação americana”, sendo que este mesmo diplomata tinha já em “mente o

advento próximo do Brasil livre”.728

Deste modo, Cortesão entendia que Alexandre de Gusmão pretendia através do

Tratado, “dar fundo grande e competente” ao Brasil e “arredondar e segurar o país”,

sendo para isto necessário que fossem partilhadas tanto a Bacia Amazônica quanto a

Bacia do Prata, realizando territorialmente o que denominaria de ‘Ilha-continente’ ou

‘Ilha Brasil’, destacada do resto da América mas unida pela ligação entre essas duas

bacias existente no interior do Brasil.

Assim, o Tratado de Madri seria uma operação realizada por Alexandre de

Gusmão visando, ao mesmo tempo, dar viabilidade orgânica ao Brasil e estabilizar sua

soberania com a utilização do uti possidetis.

Estas afirmações, segundo Cortesão, podiam ser comprovadas por uma nova e

inédita documentação que estava em seu poder, a qual “patenteava, sem a menor

dúvida” que a criação diplomática e científica do Tratado de 1750 teria pertencido a

Alexandre de Gusmão.

Para isto, Alexandre de Gusmão teria se utilizado do conhecimento geográfico

superior que teria sido adquirido pelos ‘padres matemáticos’, os quais já tinham sido

enviados anteriormente para o Brasil de acordo com a antiga estratégia portuguesa do

esquadrinhamento do território, garantida por uma grande superioridade científica sobre

os espanhóis.

727 Jaime Cortesão, ‘Apostilas de aulas do Curso de História da Cartografia Política do Brasil do Instituto Rio

Branco’, aula de 30/08/1945. IHGB, Lata 668, Pasta 7.

728 Jaime Cortesão, ‘Apostilas de aulas do Curso de História da Cartografia Política do Brasil do Instituto Rio

Branco’, aula de 6/09/1945. IHGB, Lata 668, Pasta 7.

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Assim, o Mapa das Cortes, esboço do Tratado de Madri, teria sido

propositadamente adulterado por Gusmão, possibilitando-se, com isso, induzir os

Espanhóis a cederem todo o território necessário para a ‘constituição orgânica do Brasil

livre’.729

Portanto, a construção narrativa feita por Rio Branco durante os Arbitramentos

foi retomada por Cortesão, utilizar-se-ia do mesmo método argumentativo centralizado

em torno da ‘prova cartográfica’, legitimado pelo ‘Processo de Arbitramento’, no caso,

por meio do recurso ao chamado ‘Mapa das Cortes’. Note-se que, quando Jaime

Cortesão se refere à obra que baseou sua construção historiográfica, ‘Limites do Brasil’,

ele utiliza nessa referência a argumentação retórica da autoridade, a saber: “Um mestre

do Direito Internacional, Hildebrando Accioly, escreveu [...]”.730

Entretanto, ao basear essa construção mitológica do espaço nacional sobre a

idéia de uma composição cartográfica do gênio de Alexandre de Gusmão, Cortesão

elide duas circunstâncias: a primeira é a de que não havia apenas um ‘Mapa das Cortes’,

mas vários, cada qual com uma composição diferente, sendo que o mapa composto

pelos espanhóis (ver Figura 36) era ainda mais benéfico a Portugal do que o que teria

sido composto por Gusmão (ver Figura 35).

729 Jaime Cortesão, ‘Apostilas de aulas do Curso de História da Cartografia Política do Brasil’ do Instituto Rio

Branco, aula de 30/08/1945. IHGB, Lata 668, Pasta 7.

730 Jaime Cortesão, ‘Apostilas de aulas do Curso de História da Cartografia Política do Brasil’ do Instituto Rio

Branco, aula de 30/08/1945. IHGB, Lata 668, Pasta 7.

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415

A segunda circunstância elidida por Cortesão em sua construção mitológica é a

de que o Mapa das Cortes utilizado por Rio Branco não foi aquele composto pelos

portugueses, mas o que havia sido composto pelos espanhóis (Figura 36), o que

novamente invalidaria a ‘prova cartográfica’ de Cortesão, descaracterizando as idéias da

expansão territorial e da consolidação do espaço desde Tordesilhas.

Enquanto a construção mitológica de Backheuser e Cortesão consolidava-se no

Instituto Rio Branco, Hélio Vianna começaria a ministrar em 1947, na Escola de Estado

Maior do Exército, um curso sobre a História das Fronteiras que já no ano seguinte seria

publicado pela Biblioteca Militar. A ‘História das Fronteiras’ de Hélio Vianna tornar-se-

ia a primeira obra na qual se estabeleceria uma continuidade plena da História

Diplomática e seu envolvimento com a História Pátria na qual se priorizava as ações do

Estado na preservação da pátria, juntando-as desde as negociações do Tratado de

Tordesilhas até a política externa da República.

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416

Esta construção da História Diplomática atendia então aos interesses

corporativos do Exército, que visava consolidar sua representação enquanto

‘mantenedor do corpo da pátria’, pela defesa das fronteiras ameaçadas, bem como o de

‘garante da integração nacional’, pela sua participação no processo de ocupação do

território e defesa do Estado, que o Exército endossava plenamente.

Logo, Hélio Vianna, que já era membro da ‘Comissão de Estudo dos Textos de

História do Brasil do MRE’, também seria incorporado ao Instituto Rio Branco como

professor em 1950, quando desenvolveria sua ‘História das Fronteiras’ num curso de

História Diplomática destinado ao aperfeiçoamento dos diplomatas.

A partir do interesse demonstrado no Instituto Rio Branco pela conexão evidente

entre a construção mitológica de Hélio Vianna e a de Jaime Cortesão, este último seria

convidado pelo MRE para escrever uma obra que vinculasse Alexandre de Gusmão ao

Tratado de Madri e que se adequasse a assinalar as passagens tanto do segundo

centenário do Tratado quanto do falecimento de Gusmão.

Deste modo, Jaime Cortesão escreveria ‘Alexandre de Gusmão e o Tratado de

Madri’ inscrevendo na ‘Mitologia do espaço nacional’ o personagem de Alexandre de

Gusmão através da ênfase em sua obra de “definição geográfica do Brasil” através do

Tratado de Madri, construindo-lhe um “corpo viável”, insuflado “da consciência do

espaço próprio e de seus limites legítimos e inalienáveis”. Esta obra somente seria

possível pela renúncia de Alexandre de Gusmão à sua vida pessoal, doravante

consagrada ao serviço de sua terra, o Brasil, no que ser tornar-se-ia seu “anjo tutelar”

velando pela saúde e segurança do “moço gigante” que caminhava, “ainda titubeante

para sua independência”.

Assim, a constituição do personagem de Alexandre de Gusmão por Jaime

Cortesão seria feita pelo patriotismo, pelo pacifismo, por uma genialidade impressa no

“segredo” de suas vitórias diplomáticas e, sintomaticamente, por sua capacidade

“geográfica e geopolítica”.731

Portanto, se voltarmos à construção conceitual de Schelling, fecha-se com esta

obra de Jaime Cortesão os termos que constituem a “Mitologia do espaço nacional”,

inicialmente, através da eleição de personagens reais para seus protagonistas, no caso,

Rio Branco e Alexandre de Gusmão, ambos delimitados por potenciais e identificados

731 Jaime Cortesão, O Tratado de Madrid v.1. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 9-11.

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417

por qualidades que afirmam a organização de um ‘mundo mitológico’. A seguir, estes

personagens formaram através dos termos da narrativa mitológica, uma ‘totalidade

entre si’ capaz de determinar o ‘mundo mitológico’, no caso, com Alexandre de

Gusmão ‘definindo o espaço brasileiro’ e Rio Branco ‘retificando suas fronteiras’.

Depois, foi também determinada uma ‘relação de dependência’ constituída pela

afirmação de uma gemeidade entre os dois protagonistas, tanto por uma ‘relação de

geração’, na qual a atuação de Rio Branco seria determinada pela atuação anterior de

Gusmão, quanto através das qualidades compartilhadas como o pacifismo, o patriotismo

e a religiosidade. Finalmente, o mundo da atuação desses protagonistas da narrativa

mitológica passaria ainda a somente poder ser interpretado através da criação sobre o

próprio ‘mundo mitológico’, no caso, restrito por um ‘saber sobre o espaço’ agora

encerrado na História Diplomática e na geopolítica brasileira, cuja enunciação passou a

pertencer a certos locais bem demarcados pelo circuito de inscrição da centralidade.

Por conseguinte, ainda que entendamos estarem constituídos os termos da ‘Mitologia do

espaço nacional’ deve-se salientar que seu registro na geopolítica brasileira e na História

Diplomática e sua disseminação na historiografia dependeriam de uma colaboração

bastante estreita entre o MRE e o EMFA.

Nesse sentido, a publicação em 1958 da ‘História Diplomática do Brasil’ de

Hélio Vianna seria um dos elos que demonstrariam essa colaboração, já que esta obra

incorporava as contribuições de seu curso na Escola de Estado Maior ao conteúdo da

disciplina ministrada no Instituto Rio Branco.

Do mesmo modo, certas disciplinas ministradas na Escola de Comando e Estado

Maior do Exército (ECEME) já eram muito semelhantes às ministradas no Instituto Rio

Branco, como por exemplo, quando comparamos o exame da ementa da disciplina

‘Geografia’ do Instituto Rio Branco com a ementa da disciplina ‘Geopolítica’ da

ECEME. As únicas diferenças entre as duas disciplinas é que, enquanto no Instituto Rio

Branco se enfatizavam as teorias geopolíticas de Ratzel, Mackinder, Kjellén e

Haushofer, e o estudo destas teorias sobre certas regiões, como, a URSS, os Estados

Unidos e o Prata, na ECEME trocava-se o estudo das teorias de Mackinder pelas de

Mahan e Spykman, preferindo-se o enfoque dessas teorizações sobre os continentes.732

732 Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na

política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 203-204.

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418

Na verdade, a cooperação entre o MRE e o Estado Maior do Exército já vinha

sendo constituída desde 1948, quando se passou a tratar, nesta última entidade, da

organização de um Estado Maior geral, que reunisse todas as Corporações militares. Ao

mesmo tempo, pensava-se que este Estado Maior Geral deveria possuir um instituto que

desenvolvesse e divulgasse o pensamento dessa nova corporação militar. Por

conseguinte, a cooperação entre o Exército e o MRE se tornaria ainda mais prestigiada a

partir da consolidação desses objetivos no novo instituto, a ESG.

Neste sentido, utilizaremos como exemplo uma comparação entre o quantitativo

de diplomatas do MRE em 1971 e o número destes que haviam cursado a ESG até esse

mesmo ano. Inicialmente, podemos observar que os ex-alunos da Escola Superior de

Guerra compunham apenas 6,7% do quantitativo de diplomatas, entretanto, destes

foram escolhidos mais da metade dos diplomatas que exerceram o cargo de ministro

efetivo ou interino das relações exteriores após o ano de 1964. Este número se torna

ainda mais significativo se consideramos que apenas 0,5% do mesmo quantitativo de

diplomatas havia escolhido freqüentar o ISEB e se consideramos que o posto de

Ministro das Relações Exteriores não era privativo de funcionários de carreira, sendo

que, desde o Império, quase sempre se preferiram políticos para ocupar esse posto.

A partir destes dados iniciais, podemos indicar algumas conclusões que dizem

respeito à consolidação da ‘Mitologia do espaço nacional’ no século XX: em primeiro

lugar, a importância que foi atribuída à freqüência na ESG para o preenchimento dos

principais postos no MRE durante os Governos militares.

Ainda, se em lugar destes dados do período 1964-1971 utilizarmos os dados do

período que vai de 1950 até 1964, e focarmos a função de ministro interino, privativo

dos funcionários de carreira, podemos notar que 33% dos que exerceram a função já

haviam cursado a ESG. Observe-se que este total não inclui aqueles que fizeram o curso

da Escola Superior de Guerra após terem exercido a função, o que se fosse calculado,

elevaria ainda mais nosso percentual. Note-se que estes diplomatas foram pinçados de

um universo proporcionalmente menor, uma vez que os dados disponíveis para 1959

apontam que apenas 4,69% dos diplomatas haviam cursado a ESG até então. Por

conseguinte, podemos concluir que esta formação, já era considerada importante para a

ascensão funcional no MRE desde a década de 1950.

Notaremos ainda que o quantitativo de diplomatas dentre os alunos da ESG caiu

abruptamente após 1959: se compararmos o período 1950-1959 com o período 1960-

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419

1969, podemos observar que 69% do total de diplomatas que cursaram a Escola

Superior de Guerra o fizeram nos primeiros dez anos de sua existência, caracterizando-

se uma queda de 55,3% na sua freqüência durante o segundo período. Deste modo,

podemos concluir que as oportunidades oferecidas pelo título obtido nesta escola junto à

hierarquia do MRE continuaram estáveis ou aumentaram. Observe-se nesse sentido, que

a definição da distribuição relativa do quantitativo anual das vagas da ESG para cada

um dos ministérios era uma atribuição do comandante da Escola Superior de Guerra,

que ainda deveria ser depois homologada pelo EMFA. Por outro lado, o preenchimento

das cotas disponibilizadas era responsabilidade da direção de cada órgão ou instituição,

no caso, os diplomatas que cursaram a ESG o fizeram por designação do próprio

Ministro das Relações Exteriores.733

Poderíamos, ainda ficar tentados a apontar, a partir

dos dados anteriores, para uma perda relativa do prestígio do MRE junto a ESG, mas,

devemos considerar que, desde 1953, com a chegada de Juarez Távora ao Comando da

Escola Superior de Guerra, houve um decréscimo progressivo nas vagas oferecidas para

os funcionários do Estado, atingindo diplomatas e militares praticamente na mesma

proporção, em razão de um aumento cada vez maior nas vagas oferecidas para a

sociedade civil.734

Portanto, a cooperação entre o MRE e o Exército pode ser entendida

a partir de uma reunião dos interesses corporativos na Escola Superior de Guerra que

resultaria no incremento à preferência dos funcionários de carreira para ocupar o posto

de Ministro.

No caso do Exército, estes interesses corporativos podem ser ainda remetidos ao

período anterior à constituição do Estado Maior Geral, em 1946, pois já se pensava

então em se criar uma entidade que congregasse tanto o Exército quanto a Marinha, e

que, ao mesmo tempo, fosse um lugar de pensamento dos problemas brasileiros. Atrás

da divulgação e desenvolvimento desse pensamento, havia o interesse corporativo de

consolidar o papel das Forças Armadas enquanto ‘educadora das massas’ e como ‘fator

de união nacional. Seria inclusive a partir desse esboço de uma representação da união

das Forças Armadas que se difundiriam, do Clube Militar e sob a liderança de Castelo

733 As fontes são os relatórios de pessoal do MRE e as relações de formandos da Escola Superior de Guerra, ver:

Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na

política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 198-199.

734 Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na

política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 263-264.

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Branco, os ‘Centros Militares de Estudo’, um movimento que se confundiu com a

organização da Escola Superior de Guerra a partir de seus congêneres estrangeiros.735

A partir do que vimos no caso do MRE, entendemos que seus interesses

articular-se-iam com os do Exército no sentido de tornar possível um aumento do

prestígio dessas corporações e de sua influência sobre o Estado, o que explicaria tanto a

relativa autonomia do MRE durante os Governos Militares quanto uma construção

compartilhada da política externa no âmbito da ESG. Nesse sentido, a Reforma do MRE

em 1952, já seria planejada a partir da Escola Superior de Guerra, em uma iniciativa que

reuniu diplomatas, militares e políticos, tais como: Jorge Emílio de Sousa Freitas,

Golbery do Couto e Silva, Heitor Almeida Herrera, Vasco Leitão da Cunha, Cordeiro de

Farias, Arízio de Vianna, San Thiago Dantas, Hermes Lima, Rômulo de Almeida,

Roberto Campos e Azeredo da Silveira. Nesta reforma se enfatizaria sobretudo a

importância da política externa para a condução do Estado, entendendo-a como “um

instrumento de suprema relevância para a consecução dos objetivos nacionais”, com a

subseqüente necessidade de se estabelecer um lugar de “planejamento da política

externa”, no caso, deveria ser preenchido pela Escola Superior de Guerra, consolidando-

se, assim, um ‘saber sobre o espaço’ enfeixado na geopolítica. Nesta Reforma, pensava-

se, inclusive, em adensar o papel do MRE a partir das muitas afinidades que se

entendiam haver com a corporação militar, no caso, como o ‘planejamento da política

externa’ dependeria, em grande parte, da “Informação Estratégica”, dever-se-ia

constituir no MRE tanto um serviço de interpretação das informações quanto uma rede

de coleta de elementos informativos, quer no exterior, mediante o serviço diplomático,

quer na própria sede da Secretaria de Estado das Relações Exteriores.736

Portanto, entendemos que a articulação corporativa entre o MRE e o Exército se

estabeleceu ainda na década de 1950 e foi incrementada a partir da ascensão do Regime

Militar, quando a ‘Mitologia do espaço nacional’ seria fixada nas produções da Escola

Superior de Guerra e da ECEME, ligadas à geopolítica brasileira e à História Militar

(ver Figura 37). Por sua vez, o MRE manteria também, através do Instituto Rio Branco

e de outras entidades a ele ligadas, a capacidade de inscrever continuamente esse ‘saber

735 Note-se nesse caso, que a criação da Escola Superior de Guerra não foi um mero decalque do ‘National War

College’, mas uma construção verdadeiramente híbrida, que privilegiou o pensamento militar anterior. Ver Renato

Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na política

externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 151-166.

736 Renato Amado Peixoto, 'Terra Sólida: a influência da geopolítica brasileira e da Escola Superior de Guerra na

política externa do governo Castelo Branco', Dissertação de Mestrado em História, UERJ, 2000, p. 202-203.

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421

sobre o espaço’ através da História Diplomática737

e de várias outras iniciativas que se

destinavam a manter aberto o circuito de inscrição da nova centralidade, inclusive

através das universidades públicas e privadas. Por fim, a divulgação desses produtos

permitiria que a ‘Mitologia do espaço nacional’ fosse disseminada, a partir dos esforços

desse mesmo circuito, consolidando-se na produção historiográfica e nos compêndios

de História e Geografia.

737 Veja-se, por exemplo, o recente trabalho de Synesio Sampaio Góes, produzido no âmbito do Instituto Rio Branco:

Synesio Sampaio Goes, Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas: Aspectos da descoberta do Continente, da

penetração do território brasileiro extra-Tordesilhas e do estabelecimento das fronteiras da Amazônia. Brasília:

IPRI, 1991.

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O Medalhão dos Paranhos e o espelho de Nietzsche

O mundo subsiste; não é nada que vem a ser, nada que perece. Ou antes: vem a

ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nunca cessou de perecer —,

conserva-se em ambos... Vive de si próprio: seus excrementos são seu alimento.

E sabeis sequer o que é para mim “o mundo”? Devo mostrá-lo a vós em meu

espelho?

Nietzsche. A Vontade de Potência.738

Como última exploração deste nosso trabalho resta-nos enveredar, ainda que

brevemente, pelo problema que o iniciou e cruzou em todos os nossos capítulos, a

questão do poder enquanto representação, problematizando-a novamente em relação à

‘Mitologia do espaço nacional’ .

Deleuze, referindo-se a Foucault, apontou que uma de suas descobertas mais

importantes é a de que não é o esquecimento que se opõe à memória, mas sim o

‘esquecimento do esquecimento’, “que nos dissolve no lado de fora e que constitui a

morte”. Segundo Deleuze, o grande mérito de Foucault seria entender que este

‘esquecimento do esquecimento’ não é uma intencionalidade nem “uma experiência

selvagem que deixa-ser a coisa através da consciência”, mas, que antes remete a uma

‘linguagem’ e a um “ser-linguagem” que a experimenta e a define. O ‘esquecimento do

esquecimento’ seria então outra possibilidade da experimentação do ‘ser-linguagem’

que tanto preserva o passado na memória como um estímulo para o recomeço quanto

através do esquecimento impossibilita seu retorno. Na verdade, o ‘esquecimento do

esquecimento’ implicaria numa quebra da dobra da subjetividade que, girando de

encontro ao passado, constitui-se no ponto de contato entre a memória e o

esquecimento: rompida esta dobra, elide-se assim, de uma só vez, o esquecimento e a

memória.739

Nesse sentido, entendemos que este ‘esquecimento do esquecimento’ referido

por Deleuze está relacionado com o nosso problema da elisão das ‘relações de

738 Friedrich Nietzsche, ‘O Eterno Retorno’ in Os Pensadores - Nietzsche. São Paulo: Nova Cultural, 1996, § 1066-

1067.

739 Gilles Deleuze, Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 115-117.

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soberania’ e da construção do silêncio epistemológico pela cartografia e pela corografia,

mas, compreendemos também que esta relação evidencia tanto uma linguagem e uma

gramática da representação do espaço quanto o espaço dessa representação. Como este

último se constituí e se articula a partir das relações de força que elaboram

continuamente a memória e suas representações, institui-se, assim, a urgência de uma

investigação sobre as espacialidades do tempo, a qual requer que o esquadrinhamento

dos lugares da memória esteja umbilicalmente conectado ao estudo de suas produções.

Nesse sentido, entendemos que essas representações perdem suas forças desde que

desconectadas do ‘ser-linguagem’ e de seu lugar: desde que deixa de ser alimentada de

seus restos, a representação se assemelha aos antigos deuses que ao serem novamente

invocados já não são mais capazes de realizar seus antigos prodígios — são apenas

espectros resgatados do esquecimento. Deste modo, um lugar do tempo conectado às

suas representações torna-se também sujeito da investigação, já que a memória é apenas

o incenso queimado junto ao panteão de representações que se encontram na dobra da

subjetividade: aceso seu turíbulo recuperam-se as velhas sombras para deleite dos ainda

vivos, esquecido, estas mergulham, sem pena, de volta na noite mais longa.

Por conseguinte, Espaço e Tempo estão umbilicalmente ligados à questão da

subjetividade e Foucault entenderia poder trabalhar esta relação entre memória e

esquecimento a partir do conceito de força, no sentido nietzscheano, ou seja, como

poder, vontade de potência, necessidade de representação, para que se pudesse

redescobrir os limites da subjetividade e assim reconstruir-se um entrelaçamento entre o

visível e o enunciável, em outras palavras, reconstruir a linguagem, a gramática, a

sintaxe do ‘ser-linguagem’ que se representa. A crermos em Nietzsche, a reconstrução

desse ‘ser-linguagem’ pode ser pensada como uma entrevisão do seu mundo enquanto

“grandeza de força e como número determinado de força”, onde cada combinação de

elementos pode então ser usada e alcançada infinitas vezes.740

Portanto, a representação

não deve ser entendida fenomenologicamente, mas epistemologicamente, cabendo, pois,

nessa investigação, ultrapassar um campo de forças difusas e divergentes, rastrear,

pesar, sentir as palavras do ‘ser-linguagem’, entender a representação através de seus

experimentos e de suas definições.

Recolocar-se-ia, desta maneira, a questão da subjetividade na investigação dos

lugares de memória, que necessitariam ser entendidos tanto como lugares do

740 Friedrich Nietzsche, ‘O Eterno Retorno’ in Os Pensadores - Nietzsche. São Paulo: Nova Cultural, 1996, § 1067.

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entrecruzamento de forças, de resistências e de sobrevivências, quanto como

participantes da narrativa e da elaboração da gramática, como representações que

também se transformam e desaparecem. Enfim, recoloca-se a importância da

investigação da linguagem e da gramática porque estas determinam a espacialidade da

representação, o lugar do tempo, o olhar do investigador. Nesse sentido, dever-se-ia

observar o espelho de Nietzsche, pois nele o “mundo” se mostra numa monstruosidade

de força que não se consome mas apenas se transmuda, é um mar eternamente

mudando, eternamente recorrente, onde a ‘memória’ e o sujeito são agora possibilidades

infinitas, onde o ‘esquecimento do esquecimento’, elidido da memória e do

esquecimento, pode retornar tempestuoso e ondulante após a vazante, embora possa ser

perdido, elidido das representações e não fazer nenhum sentido mais para nós, que

tendo lidado por tanto tempo com alegorias, nos tornamos também uma delas.741

Assim como a Medusa, que deixa de ser registrada como uma figura ameaçadora

para se tornar uma imagem sorridente e bonachona (ver figura 38), o ‘esquecimento do

esquecimento’ também perde sua força com o passar do tempo, do mesmo modo,

mergulhando num morno desvanecimento até seu retorno, sua reelaboração, sua

transfiguração, conforme podemos entrever no espelho de Nietzsche. Por conseguinte, o

espelho de Nietzsche seria semelhante ao espelho com que Perseu pôde vislumbrar a

Medusa sem ser afetado por sua visão e sem que aqueles caracteres fossem nele

gravados e se reproduzissem pela suspensão do seu pensamento e pela absorção da

“suave nuança da beleza”, da “felicidade sem alvo, sem vontade”, que molda nos rostos

a ‘Máscara da Medusa’ e esconde nossa deformação.Então, o ‘esquecimento do

esquecimento’ pode ser entendido como um Duplo, uma força que se agita por detrás

das representações da memória, uma força viva que só consegue se fazer representar

pela crueldade, já que sua evocação não alcança mais nossa sensibilidade.

741 Friedrich Nietzsche, ‘O Eterno Retorno’ in Os Pensadores - Nietzsche. São Paulo: Nova Cultural, 1996, § 1067.

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Nesse ponto, o ‘Medalhão dos Paranhos’ (Figura 39) nos move em direção a um

reexame da ‘Mitologia do espaço nacional’: o ‘Medalhão’ não é apenas a representação

de uma possibilidade apócrifa de construção da narrativa mitológica, que foi remetida

ao esquecimento pelas transformações e experimentações da ‘Mitologia’. O ‘Medalhão’

não representa apenas uma tentativa malograda de construção mitológica em torno dos

personagens do Visconde do Rio Branco e de seu filho: é também uma representação

viva e incensada que também possui seu duplo, pois se movimenta através do

‘Medalhão’ um lugar de representação e mais importante, como dissemos

anteriormente, a continuidade de uma ‘linguagem’ e de um ‘gramática’ da

representação do espaço. Nesse sentido, podemos entender que a representação tornou-

se memória e a memória torna-se representação, daí a importância da narrativa

mitológica, afinal, nesta se registra um lugar onde se reconhecem as alianças e as

articulações e onde se estabelece o ‘momento’, conforme Schelling, um “reino ameno

dos deuses venturosos e duradouros”, que submerge “um mundo de figuras informes e

monstruosas”.742

742 Friedrich Schelling, Filosofia da Arte, São Paulo: Edusp, 2001, § 31.

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FIGURA 39 - ‘MEDALHÃO DOS PARANHOS’

Fonte: Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959, p. 249.

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APÊNDICE I: ‘ON THE MEDUSA OF LEONARDO DA VINCI, IN THE

FLORENTINE GALLERY’.

Percy Bysshe Shelley

IT lieth, gazing on the midnight sky,

Upon the cloudy mountain peak supine;

Below, far lands are seen tremblingly;

Its horror and its beauty are divine.

Upon its lips and eyelids seems to lie (5)

Loveliness like a shadow, from which shrine,

Fiery and lurid, struggling underneath,

The agonies of anguish and of death.

Yet it is less the horror than the grace

Which turns the gazer’s spirit into stone; (10)

Whereon the lineaments of that dead face

Are graven, till the characters be grown

Into itself, and thought no more can trace;

‘Tis the melodious hue of beauty thrown

Athwart the darkness and the glare of pain, (15)

Which humanize and harmonize the strain.

And from its head as from one body grow,

As [ ] grass out of a watery rock,

Hairs which are vipers, and they curl and flow

And their long tangles in each other lock, (20)

And with unending involutions shew

Their mailed radiance, as it were to mock

The torture and the death within, and saw

The solid air with many a ragged jaw.

And from a stone beside, a poisonous eft (25)

Peeps idly into those Gorgonian eyes;

Whilst in the air a ghastly bat, bereft

Of sense, has flitted with a mad surprise

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Out of the cave this hideous light had cleft,

And he comes hastening like a moth that hies 30

After a taper; and the midnight sky

Flares, a light more dread than obscurity.

‘Tis the tempestuous loveliness of terror;

For from the serpents gleams a brazen glare

Kindled by that inextricable error, 35

Which makes a thrilling vapour of the air

Become a [ ] and ever-shifting mirror

Of all the beauty and the terror there-

A woman’s countenance, with serpent locks,

Gazing in death on heaven from those wet rocks. (40)

Florence, 1819.

It is a woman’s countenance divine (41)

With everlasting beauty breathing there

Which from a stormy mountain’s peak, supine

Gazes into the [ ] night’s trembling air.

It is a trunkless head, and on its feature (45)

Death has met life, but there is life in death,

The blood is frozen--but unconquered Nature

Seems struggling to the last--without a breath

The fragment of an uncreated creature. (49)

Autumn, 1819.

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APÊNDICE II: ‘SOBRE A MEDUSA DE LEONARDO DA VINCE, NA

GALERIA FLORENTINA’.

Tradução de Percy Bysshe Shelley por Renato Amado Peixoto.

ELA jazia, voltada para cima, fitando o céu noturno

Sobre um enevoado cume;

Abaixo, terras distantes são vistas tremeluzindo;

Seu horror e sua beleza são divinos.

Sobre seus lábios e suas pálpebras parece repousar (5)

O encanto como uma sombra, onde, lutando por debaixo,

Irradiam-se, ardentes e pálidas,

As agonias da angústia e da morte.

Contudo, é menos o horror que o encanto

Que transforma o espírito do observador em pedra; (10)

Sobre o qual os traços daquela face morta

São gravados, até que os caracteres tornem-se

Nele mesmo, e o pensamento não possa mais seguir;

É a suave nuança da beleza arremessada

Contra a escuridão e o clarão da dor, (15)

Que humaniza e harmoniza a tensão.

E de sua cabeça como se fosse de um só corpo nasce,

Como ervas [ ] de uma pedra úmida,

Cabelos que são víboras, e eles se enroscam e escorrem

E seus longos emaranhados em cada outro se fecham, (20)

E com involuções sem fim mostram

Sua radiação metálica, de certo modo para zombar

Da tortura e da morte interior, e serram

O ar sólido com suas muitas mandíbulas denteadas.

E de uma pedra ao lado, uma salamandra venenosa (25)

Espia negligentemente para dentro destes olhos gorgonianos;

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Enquanto no ar um horripilante morcego, privado

De seus sentidos, tinha-se movido rapidamente com uma louca surpresa

Para fora da gruta que esta hedionda luz tinha penetrado,

E ele chega apressando-se como uma traça (30)

Buscando a vela; e o céu noturno

Flameja, uma luz mais terrível que a obscuridade.

Este é a tempestuosa beleza do terror;

Desde as serpentes brilha um fulgor de bronze

Ateado por aquele intricado erro, (35)

Que faz o excitante vapor do ar

Tornar-se um [ ] e espelho em permanente mutação (37)

De toda a beleza e terror ali -

Um semblante de mulher, com cachos de serpente,

Daquelas rochas úmidas, contemplando na morte, o paraíso. (40)

Florença, 1819.

É um semblante divino de mulher (41)

Com uma incessante beleza respirando ali

Que de um cume tempestuoso, voltado para cima

Fita o [ ] ar tremeluzente da noite.

Ela é uma cabeça sem tronco, mas em seus traços (45)

A Morte encontrou a vida, mas existe vida na morte,

O sangue está congelado -- mas a Natureza inconquistada

Parece estar lutando até o final -- sem uma respiração

O fragmento de uma criatura não criada. (49)

Outono, 1819.

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FONTES E BIBLIOGRAFIA

FONTES MANUSCRITAS

Arquivo do IHGB.

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