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PALAVRA DAS EDITORAS

Copa para quem?Marcela Donini - [email protected] da Cartola - Agência de Conteúdo

Não, este não é mais um texto anti-Copa, pelo contrário. Somos a favor da Copa do Mundo - tanto que queríamos credenciamento para

todo mundo da redação!

O desejo de participar de alguma forma desta cobertu-ra veio ao encontro de outro sonho, bem mais antigo: lançar um núcleo de cursos e oficinas da Cartola. Nos demos conta de que, se a gente estava louquinho para trabalhar na Copa, imagina um estudante ou colega recém-formado!

E assim nasceu nosso primeiro curso, com a vontade de proporcionar uma experiência memorável para quem fi-cou de fora do credenciamento - e pelo viés de que ficou de fora do estádio. Nossos 12 repórteres acompanharam o primeiro jogo da Copa do Mundo 2014 em Porto Ale-gre dos mais variados lugares: de um piquete do Acam-pamento Farroupilha à Sauna Guaíba, passando ainda pela Festa da Bergamota, no Vale do Taquari.

Nos encontros pré-jogo, falamos sobre lide, texto e pau-ta. Durante o jogo, resolvemos pequenos pepinos que fazem parte de uma cobertura desse tamanho - como uma pauta que cai e obriga o repórter a correr para outro lugar da cidade. Por fim, no último encontro presencial, com a redação da Cartola cheinha e os textos em edição, enquanto os repórteres trocavam suas experiências, per-cebemos quanta história tínhamos para contar.

Esperamos que se divirtam com a leitura como nos di-vertimos naquele inesquecível 15 de junho.

Expediente

Cartola - Agência de Conteúdowww.cartolaconteudo.com.brwww.facebook.com/cartolaconteudo55 51 3377-5341 3557-5341

Curso Seleção Cartola de RepórteresRepórteres: Camila Capelão, Diogo Zanella, Juliana Spitaliere, Kathlyn Moreira, Luiza Menezes, Marcelo Rota, Mariana Staudt, Marília Pereira, Renata Fernandes, Rodrigo Sartori, Thais Böhm e Vinícius BühlerEditores: Clarissa Barreto, Marcela Donini e Sebastião RibeiroDesigner: Marcelo Brocker

Uma escola com conteúdoClarissa Barreto - [email protected] da Cartola - Agência de Conteúdo

Em 2014, a Cartola - Agência de Conteúdo faz cinco anos. Nesse período, além de termos es-capado da estatística que indica que 60% das

empresas fecham antes de completarem meia década, nós escrevemos. E muito. E desenhamos, fotografamos, diagramamos, filmamos. E dividimos tudo isso em re-vistas, livros, portais de notícias, campanhas publicitá-rias, fanpages.

Mas a gente percebeu que só estávamos dividindo o bolo quentinho, lindo e delicioso, pronto para ser consumido. E se começássemos a dividir as receitas? E se, mais do que isso, criássemos essas receitas com mais gente, que sugerissem novos ingredientes, novos formatos?

É dessa vontade de dividir e aprender, de ensinar e ab-sorver conhecimento que surge a Escola com Conteú-do, o braço de aprendizagem da Cartola, para quem qui-ser vir com a gente.

Nosso primeiro curso, a Seleção Cartola de Repórteres, pro-pôs um jeito diferente de olhar um dos maiores eventos que já aconteceram em Porto Alegre. Para os próximos, já estamos bolando novidades cheias de conteúdo.

Esse é só o começo.

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Sumário

O jogo a 148 metros de altitude....................................................................................................................4O jogo a 160 quilômetros da capital...........................................................................................................7O jogo dentro do Acampamento Farroupilha........................................................................................10O jogo em uma quadra de samba.............................................................................................................13O jogo pelos olhos dos vovôs......................................................................................................................16O jogo dentro da Fan Fest............................................................................................................................19O jogo em Porto Alegre - em números...................................................................................................22O jogo no meio de um (míni) protesto...................................................................................................25O jogo ao longo dos 3,5km do Caminho do Gol................................................................................28O jogo pelas câmeras de segurança.........................................................................................................31O jogo dentro dos shoppings.....................................................................................................................34O jogo dentro de uma “casa de espetáculos”.....................................................................................37

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o jogo a 148 metroS de altitudeNo Morro Santa Tereza, a vista para o estádio divide

a atenção com o pôr do sol no GuaíbaDiogo Zanella - diogoz [email protected]

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licial da Brigada Militar há 28 anos. “Estamos fa-zendo ronda para o jogo. A comunidade é grande, aqui é uma área de risco”, diz sobre um dos bairros mais violentos da capital gaúcha. No local, também há uma unidade móvel da 8ª companhia do Bata-lhão Copa, do Exército, com 30 homens de Bento Gonçalves.

São 16h e começa o jogo lá embaixo. Ao lado do mi-rante, o pipoqueiro Maicon Pinto Nunes, 29 anos, bota fogo na 17ª panela de pipoca - já ultrapassou a média de 12 em um dia normal de trabalho, que dura das 10h às 17h30min. Acompanhado da avó Catharina Fernandes Pinto, 68 anos, da irmã Cas-siana Pinto Nunes e da pequena Mônica, sua so-brinha de nove meses, ele não para um segundo de trabalhar para dar conta do movimento. O cunha-do, Robson Vieira da Silva, o ajuda na demanda.

No mirante, os comentários são sobre o som do estádio que falhou e impossibilitou a execução dos hinos das duas seleções. Com poucos minutos de jogo, já tem gente deixando o Morro Santa Tereza. Uma Kombi com quatro chilenos, vinda de Santia-go do Chile e dirigida por Oliver Kittsteiner, de 24 anos, troca a vista do estádio pela estrada, rumo a Florianópolis, em Santa Catarina.

Os chilenos não eram os únicos estrangeiros no mirante. Um dos clientes de Maicon neste dia é o norte-americano Will Duggan, 24 anos. Vindo do Uruguai, Will está há dois meses no Brasil. Hoje mora na Cidade Baixa e trabalha como barman num bar da rua João Alfredo, uma das mais agita-das do bairro. Ele pretende ficar mais um mês na cidade antes de partir para Florianópolis. Mesmo destino dos chilenos, a ilha que não receberá ne-nhum jogo da Copa costuma encantar mais turis-tas gringos do que a capital gaúcha, distante a cerca de 100 quilômetros do mar.

Will conta à Cassiana que mora em Washington, onde seu pai é proprietário de um bar chamado Madam Organ. Com Mônica no colo, enrolada num cobertor para enfrentar os 19ºC, Cassiana se esforça para entender o portunhol do americano, que explica que o bar da família é “conhecidíssi-mo” e, há 23 anos, reúne apreciadores de blues. Apoiado na bicicleta trazida dos Estados Unidos

Início da tarde do dia 15 de junho de 2014. No Morro Santa Tereza, na zona sul de Porto Ale-gre, uma movimentação atípica. Do alto dos

seus 148 metros de altitude, é possível enxergar o estádio Beira-Rio, onde, em poucos minutos, co-meçaria a primeira partida do mundial da FIFA, França X Honduras.

Lá em cima, o capitão do Tetra e treinador do insu-cesso brasileiro na Copa de 2010, Dunga, concede entrevista para a rede de televisão mexicana Azteca, enquanto fãs aguardam em fila indiana para conse-guir uma foto com o ídolo. No parquinho, crianças brincam nos balanços e gangorras. Adultos tomam chimarrão perto do mirante, de onde se vê não só o estádio, mas parte do Centro e o Guaíba.

Enquanto o jogo não começa, boa parte da vizi-nhança bebe cerveja, fuma e joga conversa fora no “bar do seu Dilson”, o Pôr do Sol. Morador da co-munidade, Dilson Lemos, 51 anos, mantém o bar há duas décadas. Entre as mesinhas de ferro, uma mesa de sinuca, quatro máquinas caça-níquel e al-guns quadros pendurados nas paredes, um deles exibe um típico gaúcho do campo que lembra Dil-son, o empresário que atende os clientes e amigos de bombacha e alpargata.

Do lado de fora, Wellinton, 13 anos, aguarda para bater uma foto com Dunga. É mais um dia de sorte para o guri, que ganhou um par de ingressos para assistir ao jogo do dia 22 de junho, entre Argélia e Coreia do Sul. Ele estuda na escola estadual Santa Rita de Cássia, que fica ali no bairro e foi uma das 901 instituições de ensino públicas das 12 cidades-sede nas quais o Ministério da Educação sorteou ingressos. Wellinton foi um dos 5.814 sortudos de Porto Alegre. Mas hoje, vai curtir a Copa do Mun-do no morro.

A única bola rolando por enquanto é a dos qua-tro meninos que jogam futebol na rua de baixo. Ao lado de uma viatura da Brigada Militar, dois poli-ciais conversam alheios às três meninas com idades entre nove e 13 que oferecem pedaços de bolo e de pizza por R$ 3 cada. Perto dali, um trio de garotos brinca de flanelinha, fazendo sinais para os moto-ristas que não param de chegar e já não encontram mais vagas. Luís Fernando da Silva, 50 anos, é po-

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e com a qual se desloca em Porto Alegre, ele conta que, em 12 de junho, dia do jogo de abertura da Copa, entre Brasil e Croácia, o pneu de sua bicicle-ta foi furado por manifestantes quando ele passou pelo Mercado Público e se deparou com um protes-to contra a Copa.

Com uma câmera fotográfica pendurada no pes-coço e os olhos divididos entre a movimentação no mirante, o estádio e a vista para a cidade, Will come a pipoca comprada por R$ 2 no carrinho do Maicon. O papo foi longo, e a partida já está em 3 a 0 para a França.

Às 17h30min, o jogo se encaminha para o final, mas é para o pôr do sol no Guaíba que Will mira sua câmera, chamando a atenção da criançada e do vendedor de pipoca, que recomenda ao gringo guardar seu equipamento, pegar sua bicicleta e re-tornar à Cidade Baixa. Will sorri, despreocupado. Maicon também ri - fez 25 panelas de pipoca. “Já estamos nos recolhendo. Nunca passamos das seis horas (da tarde)”.

A noite chega, o jogo termina, e as pessoas come-çam a sair do local. O pipoqueiro e sua família tam-bém. Will ainda fotografa. Ao lado da mãe, Wellin-ton volta para casa com a foto tirada com Dunga no celular e a expectativa para o jogo do dia 22, que acompanhará de dentro do estádio. Will não para de tirar fotos. Os carros vão descendo o morro; o Exército deixa o local. Com as luzes do Beira-Rio ainda acesas, só permanecem no mirante o gringo e sua câmera.

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o jogo a 160 quilômetroS da capitalNa Festa da Bergamota, dono de tradicional lanchonete removida

dos arredores do Beira-Rio não quer saber de CopaRodrigo Sartori - [email protected]

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onde ficava a lanchonete é pública. Segundo a Pro-curadoria Geral de Porto Alegre, Aurio é o loca-tário do espaço desde 1989 e teria contrato para permanecer até 2017. Já para a prefeitura municipal de Porto Alegre, a permissão de uso na área foi concedida em 1993 para Aurio, que poderia ficar lá por cinco anos.

O empresário conta que se sentiu surpreso quando recebeu o aviso prévio de que a lanchonete seria colocada abaixo, em abril de 2014. “Fui surpreen-dido com a notificação. O que eles tinham me dito era que eu não poderia trabalhar. Estávamos nego-ciando para mudar o local para a Rua A”, relembra. No entanto, a prefeitura garante que, desde 2009, conversa com o empresário, e que naquele ano ain-da avisou Aurio que ele deveria deixar o local vi-sando reformas para a Copa do Mundo. Depois de uma longa discussão entre as partes, foi acertado que o novo Mek Aurio será construído na Rua A, ao lado do Beira-Rio, entre as avenidas Padre Ca-cique e Edvaldo Pereira Paiva. Com uma ressalva: a construção só poderia ser iniciada depois do tér-mino do torneio.

Expectativa, realidadeAntes de saber que o Mek Aurio não estaria em pé nos dias de Copa do Mundo, o empresário resolveu preparar os funcionários. Todos os trabalhadores da lanchonete fizeram cursos de qualificação para receber melhor os turistas. “Padrão FIFA” para o restaurante, segundo ele.

Longe de Porto Alegre, em Vila Fão, Aurio lamen-tava ter sido excluído da Copa do Mundo em Porto Alegre. “Todo mundo está fazendo festa, e eu estou triste em não poder trabalhar. Era uma chance de ser mais conhecido. De mostrar a cultura do nosso xis para o resto do Brasil e para o mundo”. Em dias de grandes jogos do Inter no Beira-Rio, Aurio che-gava a vender até 80 caixas de cerveja, sem contar as outras bebidas e os lanches. Imagina na Copa.

Embora a expectativa de Aurio fosse grande, o reflexo do primeiro jogo da Copa do Mundo no Beira-Rio no entorno do estádio não foi como o esperado. O Tele-X, lanchonete que fica em frente ao antigo Mek Aurio, sofreu prejuízo no dia da par-tida entre França e Honduras. “Como foi colocado

Enquanto a bola rolava para França e Hon-duras no Beira-Rio, na primeira partida da Copa do Mundo 2014 em Porto Alegre,

a banda Tchê Sarandeio tocava mais uma música na Festa da Bergamota, na pequena cidade de Vila Fão, com menos de 300 habitantes, no interior de Lajeado, região do Vale do Taquari no Rio Grande do Sul.

Na tarde de 15 de junho, milhares de pessoas come-moravam a goleada da França em cima de Hondu-ras por 3 a 0 na capital gaúcha, que voltava a receber um jogo de Copa após 64 anos. Já em Vila Fão, a 160 quilômetros dali, o clima de Copa do Mundo não conseguiu superar os balaios cheios de berga-motas, os chopes gelados e os produtos coloniais que rolavam aos montes na Festa da Bergamota. Sem televisores ou rádios que pudessem transmitir os lances da partida histórica, os participantes da “Fão Fest” não se preocupavam com o vencedor entre França e Honduras, nem com as camisetas do Brasil e bolas de futebol sorteadas no evento. Só queriam saber quem levaria o grande prêmio do fim da tarde: uma moto de 125 cilindradas.

Enquanto o estádio colorado vibrava com o ter-ceiro gol francês, o ginásio municipal de Vila Fão explodia em aplausos ao anúncio do vencedor do tão esperado prêmio: o único anão da cidade, Luiz da Costa. Entre o público extasiado, estava Aurio Giovanella.

Aurio é o proprietário da lanchonete Mek Aurio, que ficou por mais de 20 anos ao lado do Beira-Rio, na avenida Padre Cacique. No mesmo dia em que a França bateu Honduras, Aurio celebrou seu aniver-sário de 48 anos em Vila Fão, o mais longe que con-seguiu ir do estádio. Queria passar a data ao lado dos familiares, na sua cidade natal. Além disso, não poderia trabalhar mesmo: no dia 7 de maio, o Mek Aurio foi demolido. “Quando vi as máquinas, me deu um aperto no peito. Senti vontade de chorar”, disse Aurio, que acreditava que o ponto seria um dos grandes destinos dos torcedores que chegassem ao Beira-Rio durante o Mundial.

O Mek Aurio foi demolido para a instalação de estruturas temporárias para a Copa do Mundo. O imbróglio se arrastou por um bom tempo. A área

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um cordão de isolamento na avenida Padre Caci-que, as pessoas não puderam nem chegar perto do estabelecimento. Para o nosso comércio foi péssi-mo. Pensamos que íamos faturar mais do que o es-perado, por isso contratamos pessoas para esse dia em especial, mas acabamos perdendo muito mais”, reclamou a funcionária Gabriela Souza. Normal-mente, 12 funcionários trabalham no Tele-X; para a ocasião, foram contratadas mais cinco pessoas.

O maior descontentamento de Aurio não é com o fato de não poder trabalhar, nem com a FIFA. O que mais aborrece o empresário são os políticos, que, segundo ele, agiram “fora da lei” para tirar o Mek Aurio do seu tradicional ponto. Essa mágoa tirou o seu entusiasmo com a Copa do Mundo. Além de desistir de comprar ingressos e de fazer os tradicionais churrascos em uma das quadras de futebol de que é dono, Aurio não quis nem saber dos jogos, principalmente em Porto Alegre. Assis-tiu somente à festa de abertura da Copa do Mundo. O jogo do Brasil contra a Croácia apenas espiou. Durante a partida entre França e Honduras, ficou todo o tempo longe de qualquer televisor. Só ligou o rádio nos últimos cinco minutos, quando seu ir-mão pediu para saber do resultado.

Apesar do desinteresse pelos jogos, Aurio garan-te que não torce contra o Brasil, mas também não quer que a seleção de Luiz Felipe Scolari conquis-te o título. “Se o Brasil ganhar, vai encobrir muita coisa que tem de errado na nossa política. Não te-mos saúde e nem segurança. E existe muita corrup-ção. As pessoas vão esquecer os problemas sociais com o título da Copa. Mas, se o Brasil perder, acho que o povo pode refletir um pouco mais sobre a situação do país”, idealizou, em meio aos balaios de bergamotas.

Com ou sem o hexacampeonato, o empresário pro-jeta o novo Mek Aurio, que começará a ser cons-truído nos últimos dias de julho, depois do Mun-dial, na Rua A, ao lado do Beira-Rio. A abertura no novo endereço deve acontecer em agosto, quando a lanchonete completará 29 anos. Longe do trabalho e das televisões, Aurio torce mesmo é para que a Copa acabe logo.

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o jogo dentro do acampamento farroupilha

Fora do estádio mas dentro da porteira, o carteado vale mais que o futebolLuiza Menezes - [email protected]

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sava eram os turistas. Bastava entrar, conversar e experimentar: o chimarrão estava à disposição para provar, além de roupas típicas para os estrangei-ros vestirem e tirarem fotos. Na decoração, qua-tro pôsteres que falam da carne de charque e do carreteiro. O piquete DTG Morro Tapera oferecia aos visitantes a Oficina de Charque, que conta a história da iguaria gaúcha, mas desde o dia que o acampamento começou, nenhum visitante se inte-ressou pela atividade.

Passados 50 minutos, o almoço estava pronto. No cardápio, coxa e sobrecoxa de frango assadas com batatas no forno e moranga caramelada. Só desvia-ram os olhos dos pratos para a televisão por causa da falha técnica que impediu a execução dos hinos de França e Honduras.

A bola já rolava há 15 minutos quando todos, quer dizer, quase todos enfim estavam em frente à TV. O patrão, Paulo Olympio, 63 anos, fala ao celular. Na varanda do piquete, duas pessoas conversam alheias ao jogo.

“Tá torcendo para quem, Tom?”. “Tô torcendo para a França, não quero que o Brasil ganhe”. “Mas tu não é brasileiro?”“Não. Sou gaúcho!”.

O movimento de visitantes no DTG Morro Tapera era fraco. Surgiam apenas vendedores de doces e gente que já faz parte da associação. Mas do lado de fora, havia um público significativo caminhan-do pelo acampamento - não tanto quanto em se-tembro, mas considerado bom para um evento fora de época. Ainda nos 45 minutos iniciais, a França fez o seu primeiro gol, e uma comemoração tími-da foi registrada no local. Poucos minutos depois, começava o intervalo. Hora de colocar na panela o pinhão, que só ficaria pronto no final da partida.

Times em campo, começava o segundo tempo e, de repente, ouviu-se sons estranhos... As pessoas se entreolharam dentro do piquete, alguns riram. Era o patrão, Paulo Olympio, que dormia e roncava na frente da TV. Nem os dois gols da França o acorda-ram. Mas bastou um vivente deixar cair uma forma de metal no chão para ele despertar.

Parece que São Pedro sabe quando o gaúcho se prepara para o Acampamento Farroupi-lha. Mesmo quando ele ocorre três meses

antes. Organizado especialmente para o período de Copa do Mundo no Brasil, o Acampamento Far-roupilha Extraordinário foi inaugurado no dia 12 de junho e contou com a presença do seu visitante mais inconveniente logo no segundo dia: a chuva.

O domingo 15 de junho entrou para a história de Porto Alegre e do acampamento. O primeiro jogo da Copa 2014 na capital gaúcha encheu de esperan-ça os patrões dos piquetes em receber mais turis-tas, mesmo que a movimentação não tenha sido tão intensa.

Com os caminhos cobertos de brita e ao som de músicas gauchescas, o Parque Harmonia estava mais brasileiro do que nunca. A tradicional fumaça do churrasco recebia o público como todos os anos, mas o que chamava a atenção nessa edição eram as bandeiras do Brasil espalhadas pelos piquetes e lo-jas, lado a lado com as do Rio Grande do Sul, além, é claro, de TVs, telões e rádios ligados nos jogos do Mundial.

Frequentado normalmente pelas famílias donas dos piquetes e seus convidados, os piquetes do Acampamento Farroupilha estavam de portas aber-tas pela primeira vez, à espera de visitantes locais e estrangeiros interessados em conhecer um pouco mais sobre a cultura gaúcha. A trilha sonora tam-bém era diferente. Com a FIFA Fan Fest a 1 qui-lômetro dali e sua intensa programação de shows e performances, novos sons invadiam o acampamen-to sobrepondo as músicas tradicionalistas emitidas pelas caixas espalhadas pelo parque. Mesmo assim, isso não desanimava os patrões dos piquetes e dava até um ar mais descontraído a um ambiente nor-malmente tão regrado pelas tradições gaúchas.

Faltava pouco mais de uma hora para começar a partida de França e Honduras, no estádio Beira-Rio, marcado para as 16h, e o piquete DTG Morro Tapera, da Associação dos Servidores da Justiça do Rio Grande do Sul, começava os preparativos para o almoço. O jogo que estava por vir não chamava muito a atenção de quem se encontrava no piquete. Ali e nos outros 75 montados, o que mais interes-

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Durante todo o jogo, apenas um visitante entrou para assistir à partida. Não se manifestou muito, bebeu duas latinhas de cerveja e foi embora antes de transcorridos os 90 minutos. O movimento no Acampamento Farroupilha foi aumentando, e o in-teresse pelo jogo era cada vez menor.

“Quem tá a fim de jogar uma cartinha?”.

Duplas feitas, cartas embaralhadas, e o morto sepa-rado. Começava então, o jogo de canastra, a salva-ção dos dias de chuva na praia e dos jogos desinte-ressantes da Copa.

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o jogo em uma quadra de SambaAo lado do estádio Beira-Rio, na Saldanha, a batucada abafou os gritos de gol

Kathlyn Moreira - [email protected]

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que estavam junto desistiram de ir. Desapontada, não quer voltar nos dias de jogos. Além de Cíntia, cinco passistas foram barradas pe-los policiais na passagem para a sede da Saldanha. Elas estavam próximo ao Parque Marinha do Bra-sil. “Explicamos que íamos trabalhar, mas mesmo assim não liberaram. Daí vimos um casal pulan-do a grade e decidimos pular também”, confessa Fernanda Rocha, umas das sambistas. Enquanto contavam a história da entrada, as meninas se pre-paravam para “quebrar tudo” com a Banda da Sal-danha mais tarde. O frio que vinha do Guaíba não intimidou as moças, que pareciam estar a caminho de um desfile no Porto Seco: muito brilho, maquia-gem caprichada, braços e pernas de fora.

Enquanto isso, a partida entre França e Honduras já havia começado no estádio Beira- Rio. As tele-visões de plasma nas churrasqueiras mostravam o jogo, além de um telão na área coberta da qua-dra. As atitudes dos frequentadores não mudaram quando o juiz apitou para a bola rolar. As mais de 50 pessoas seguiram conversando, bebendo cerve-ja e acompanhando com o corpo o ritmo da ban-da. Apenas um homem estava sentado em frente ao telão, mas parecia mais interessado na cadeira disponível do que no jogo. Da TV, não se ouvia a narração esportiva. Em vez de Galvão Bueno, o batuque dos músicos servia de trilha para os chutes e dribles. Quem olhasse a quadra diria que era um dia normal de festa na Saldanha, exceto pela gran-de quantidade de bandeirinhas do Brasil espalha-das pelo lugar. O samba não morreu com a Copa - mas abafou os gritos de gol no vizinho Gigante.

Em uma das churrasqueiras, um grupo grande estava animado com copos nas mãos. Era o ani-versário de Rodrigo Rodrigues. Eles também não vieram muito interessados no jogo, apenas aprovei-taram a movimentação para comemorar na Salda-nha. Quando questionados sobre para que seleção estavam torcendo, o amigo de Rodrigo, Vinícius, é enfático: “Honduras claro! França nunca! Não es-queço que ela eliminou a gente em 1998”. Os dois amigos tinham esperança de que os turistas fossem participar da festa mais tarde. E garantiram que iriam ficar até o final.

É o primeiro dia de jogo da Copa do Mun-do 2014 em Porto Alegre. Uma massa de gente se aproxima em fila do estádio Bei-

ra-Rio. Eles riem, tiram fotos, observam o estádio e a multidão que se forma enquanto caminham. É uma mistura de gringos e brasileiros. Passando o palco onde a bola vai rolar em poucas horas, o sam-ba começa a ser ouvido na avenida Padre Cacique. Na quadra da Banda da Saldanha, o dia também é de festa, mas não é o futebol que é destaque, e sim a ceva gelada e o ritmo de carnaval. Se logo no início da cerimônia de França e Hon-duras o hino não tocou, na Saldanha, a técnica ga-rantiu o samba durante a tarde toda. A banda não parou nem na hora do jogo - para a alegria dos visi-tantes, que não estavam preocupados com a partida ali do lado. Luciane Ribeiro já é frequentadora da Saldanha, mas era a primeira vez que levava a mãe, Cleuza Ribeiro. A estudante de Administração nem sabia quem estava jogando. “Eu gosto é do samba, da ceva gelada e de encontrar meus amigos”. Já Cleuza resolveu que não ia ficar muito, queria ver o movi-mento no entorno do Beira-Rio. E por falar em movimentação, o acesso a pedes-tres, que era para ser liberado pela Brigada Militar, dificultou a entrada na quadra. O jeito foi usar a criatividade ou pedir ajuda de fora. Luciane pensou rápido. “A gente viu o pessoal chegando em um dos ônibus e se misturou. Daí começaram a revistar o pessoal e eu só disse para ela (Cleuza) ‘vem comigo’! Passamos caminhando e conseguimos entrar. O que não dá é pra sair correndo” – ensina, piscando o olho. Depois disso, ela exigiu uma foto: “Como assim reportagem sem foto?!”, reclamou, já posan-do em frente ao símbolo da Banda da Saldanha na parede. Cíntia Vargas também teve problemas na hora de chegar na Saldanha. Ela é namorada de um dos cantores da banda e estava fazendo churrasco com mais 15 pessoas. “Tivemos que ficar 40 minutos es-perando próximo ao viaduto novo (viaduto Abdias Nascimento na avenida Pinheiro Borda). O dono da es-cola teve que vir e dar uns telefonemas para libe-rar”. A comerciante ainda lamentou que 30 pessoas

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Um futuro para a Saldanha

Quase que a festa não saiu. A quadra da Banda da Saldanha e a das escolas de samba Praiana e Impe-radores deveriam ter sido retiradas do entorno do Beira-Rio. O plano era que a área fosse um esta-cionamento para os dias de jogos. Em troca pelo terreno, seria construído um Centro Cultural a cer-ca de 200 metros da frente da sede da Saldanha na avenida Padre Cacique. Dedicado ao samba, deve-ria integrar todas as quadras, mas o projeto não foi adiante a tempo. O vice-presidente da Saldanha, Diogo da Fonse-ca, acredita que a banda ficará com a sede até de-zembro, mas o futuro depende da prefeitura. Para a Copa, houve um investimento do governo muni-cipal para a manutenção da quadra. “Não foi um investimento de construção ou alvenaria, foi mais de limpeza do espaço mesmo”, esclarece. No dia da estreia do Brasil na Copa, mil pessoas estavam na quadra. Diogo observa que o público se empolga mais quando a seleção brasileira joga. A ideia é continuar realizando festas nos dias de jogos, mas ainda não havia sido decidido se todos os eventos teriam entrada franca, como é usual.

Já estava quase no final do jogo em Porto Alegre. A França vencia Honduras por três a zero. Uma voz no microfone chamou a bateria da Banda Saldanha para o centro da quadra. As cinco passistas desce-ram a escada do mezanino. A banda se reuniu e seguiu para fora da sede. No caminho, as meninas são abordadas para tirar fotos várias vezes, como celebridades. Parecem estar desfilando, só que não na passarela do samba, mas na avenida do futebol. Durante o trajeto, o ritmo da bateria é tímido, mas cresce no momento em que o grupo chega em fren-te ao estádio. Os torcedores que saíam foram rece-bidos com um carnaval fora de época. Os gringos enlouqueceram com as sambistas. Tiravam fotos, gravavam vídeos, dançavam junto.

Ter ingresso na mão já não fazia mais diferença para participar da megafesta.

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o jogo peloS olhoS doS vovôSNo Asilo Padre Cacique, vizinho do Beira-Rio, telão,

pipoca, a Copa de 1950 e AznavourJuliana Spitaliere - [email protected]

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uma das laterais, um casal chamava atenção pela cumplicidade. De braços dados e vidrados na tela, aguardando o início da partida, o casal septuage-nário Paulo Meirelles e Shirley Pereira torcia pela seleção de Honduras apenas por um motivo: as cores da bandeira do país latino-americano são as mesmas do time do coração de ambos, o Grêmio.

Do lado oposto, Maria Beatriz Habbib, 65 anos, é a que mais espera pela execução do hino da Fran-ça - que acaba não vindo. Sua adoração pelo país a acompanha mesmo antes de nascer, diz ela. Espí-rita, tem absoluta certeza de que fez parte da elite europeia em vidas passadas. “Adoro músicas fran-cesas. Às vezes escuto Charles Aznavour, fecho os olhos e me imagino dançando, em um daqueles grandes bailes, usando belos vestidos e joias bri-lhantes. Me sinto francesa, torço pela França”.

Mesmo após o início da partida, o movimento fora do refeitório ainda é grande. Alguns idosos descan-sam no jardim, outros se dirigem para seus quartos. Na ala masculina, o eco produzido pelos diversos rádios ligados ao mesmo tempo sugere a preferên-cia por acompanhar o jogo no conforto do próprio quarto. De um deles, emana apenas a luz de um abajur, que desvela timidamente uma grande quan-tidade de fotografias, documentos e máquinas de escrever em um pequeno recinto. O jornalista Her-mínio D’Andrea, 89 anos, faz questão de mostrar o local onde, há nove anos, produz o jornal O Ca-cique, publicação voltada a moradores e visitantes do asilo. A última edição, recém impressa, estampa manchetes sobre a Copa 2014, acompanhadas de textos em inglês e espanhol pensados para os turis-tas. Apesar de reconhecer a grande importância do evento, principalmente para a cidade, revela que já não tem mais tanto fascínio pelo esporte.

“Infelizmente o futebol se transformou em um mercado, em dinheiro. São milhões de reais envol-vidos, antes não era assim”, conta Hermínio, lem-brando dos tempos em que foi correspondente de diversos jornais gaúchos. O relógio de cabeceira marca 16h23. Ao se dar conta de que o jogo já ha-via começado, decidiu ir até o refeitório, precisava ficar por dentro do que estava acontecendo. Entra-va em campo seu espírito jornalístico.

No topo da escadaria de entrada, que al-terna degraus verdes e amarelos, três ca-deiras estão posicionadas para o estádio

Beira-Rio, a 500 metros dali. Apenas o assento do meio está ocupado. Jethro Santa Helena assiste atenciosamente à movimentação, que marca a volta da Copa do Mundo a Porto Alegre, enquanto apro-veita para tomar sol após o almoço de domingo. Hoje com 84 anos, tinha apenas 20 quando acom-panhou pelo rádio os jogos realizados na capital em 1950. Essa é sua quinta Copa dentro do Asilo Padre Cacique, uma instituição sem fins lucrativos, refe-rência no acolhimento e inclusão social de idosos há 116 anos. Nunca o cenário de uma partida esteve tão próximo.

Cores, batuques, gritos e sorrisos. Os olhos de Je-thro não desgrudam dos milhares de torcedores, vindos por todos os lados, convergindo ao Beira-Rio. Visões do presente mesclam-se a lembran-ças de um passado que cobria de água a área que atualmente é ocupada pelo estádio. Era naquela vizinhança que seu pai costumava comprar porcos para alimentar os 14 filhos. Porto-alegrense, acom-panhou todas as mudanças que viriam nas décadas seguintes: o aterramento do local, a construção do estádio, o desenvolvimento das vias de acesso. Gre-mista, nunca pisou naquele campo.

“Alguns dos meus colegas foram conferir mais de perto essa festa toda. Eu prefiro ver tudo daqui mesmo”, conta ao justificar os lugares vazios ao seu lado.

Falta meia hora para o jogo entre França e Hondu-ras quando os colegas de Jethro retornam ao asilo após um passeio pelos arredores do estádio. Acom-panhados de funcionários, cerca de 10 moradores caminharam pela avenida Padre Cacique encanta-dos com a multidão que se aglomerava na entrada do estádio e com a festa dos estrangeiros. Agora, voltavam para acompanhar tudo pelo telão instala-do no refeitório especialmente para o campeonato. O verde e o amarelo ainda tomavam conta do sa-lão, resquícios da decoração para o primeiro jogo do Brasil, três dias antes.

No estádio, os jogadores entram em campo; no refeitório, o cheiro de pipoca invade o local. Em

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Na área feminina, predominam as rodinhas de conversa e de chimarrão. Em um dos quartos, uma janela vertical apresenta uma vista privilegiada para o estádio. Capaz de dar inveja a qualquer colora-do, era, porém, vislumbrada todos os dias por uma gremista. Iracema Pires, 71 anos, não desgruda de seu cachecol estampado com bandeiras brasileiras e conta que adora esses momentos de descontração no asilo. Apesar de acompanhar a disputa, não tem preferência por nenhum dos dois times. Na parti-da, há algo que desperta mais sua atenção. “Olha esse juiz, que bonito!”, brinca, já se dirigindo ao refeitório para assistir ao restante do jogo.

Segundo tempoJá no segundo tempo, o refeitório começa a lotar. E o segundo gol de Benzema, o terceiro da França, não é o ponto alto do final da tarde. Às 17h27min, chegam as cumbucas de sopa quentinha, abrindo o jantar. Os idosos dividem seus olhares entre a TV, em um lado do salão, e o telão, do outro. Nadir Jardim, 77 anos, parece ser um dos poucos impres-sionados com o placar e o repete várias vezes, en-toando “Três a zero”. Só tem algo que o deixa mais deslumbrado: o fato daquelas imagens transmiti-rem uma partida realizada tão perto dali. “Como colorado, fico muito feliz de um jogo assim estar acontecendo em nossa casa”, conta, ao lembrar que ainda não visitou o Beira-Rio depois das reformas, algo que fará assim que acabar a Copa.

A noite cai, e as colheres já raspam os pratos de inox quando o apito final ressoa. Timidamente, os torcedores vão saindo do salão já se preparan-do para dormir. Pelos corredores, os chinelos ar-rastando interrompem vez ou outra o silêncio, que predomina à medida em que as portas dos quartos batem. De um lado, apenas uma imagem de Santo Antônio iluminada por uma luz artificial. De ou-tro, a voz rouca de um torcedor:

“Terça-feira tem mais!”.

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o jogo dentro da fan feStEvento oficial da Fifa reuniu hondurenhos, franceses e fãs do Belo

Mariana Staudt - [email protected]

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Quando a bola começou a rolar, até o sol resol-veu aparecer. O público já era grande no anfiteatro, mas, no meio da multidão, três pessoas chamavam a atenção de todos por serem talvez os únicos hon-durenhos na Fan Fest. “Vamos Honduras! Vamos a ganar”, cantavam. Com os rostos pintados, pu-lando, batendo palmas e enrolados nas bandeiras de Honduras e do Brasil, a animação era tão conta-giante que outros torcedores se uniam a eles.

Há 30 anos, Oscar Sevilla foi para a cidade gaúcha de Pelotas fazer um intercâmbio, quando se apai-xonou pela brasileira Magda Garcia. Deste encon-tro que se transformou em casamento, nasceram Gabriela, Francis e Shani. Hoje, vivem em cidades diferentes: o casal mora em Dom Pedrito, a filha do meio em São Paulo e o mais novo em Rio Grande. E o local escolhido para torcer por Honduras foi a cidade da filha mais velha, na Fan Fest, o mais per-to que conseguiram chegar de onde a sua seleção tentava quebrar a superioridade da França.

Para Oscar, é normal ouvir que Honduras é consi-derada a seleção mais fraca da Copa. “Temos muita garra, mas falta futebol”, admite. O que não tira as esperanças da família. “Vamos passar para as oitavas”, diz Oscar. A filha Francis é ainda mais otimista. “Não só isso, vamos até a final!”. Entre gritos de “olé”, apostavam em um simples e sufi-ciente 1x0.

Entre o público, a torcida se dividia e, apesar dos olhos atentos ao telão, rolavam muitas fotos entre grupos de diferentes países e figuras caracterizadas de formas inusitadas para representar suas nações. Já tinham se passado 30 minutos desde que o árbi-tro brasileiro apitou o início da partida, e a família hondurenha continuava vibrando a cada ataque do seu time. Aos 43 minutos, porém, as mãos que se agitavam no ar foram à cabeça e os cânticos cessa-ram. Um pênalti foi marcado para a França, e um jogador de Honduras foi expulso. Muitas vaias para o craque Benzema e olhos atentos ao telão de novo. Não adiantou. França um, Honduras zero.

Outro uniforme amareloNo intervalo da disputa, o acúmulo da chuva dos dias anteriores em Porto Alegre fez com que come-

Quem queria encontrar pessoas de diversas nacionalidades no primeiro jogo de Porto Alegre na Copa do Mundo de 2014, mas

não tinha ingresso para ir ao estádio, era só passar na Fan Fest. Gringos e brasileiros reuni-dos em um mesmo local, sem qualquer tipo de riva-lidade e com um objetivo em comum: fazer festa. O evento oficial da FIFA, realizado no Anfiteatro Pôr do Sol, foi uma combinação de shows e transmis-são das partidas do Mundial. Além disso, o público foi, igualmente, atração. Australianos, argentinos, mexicanos, uruguaios e, claro, franceses e hondu-renhos, os donos do combate do Beira-Rio daquele domingo.

A Fan Fest agradou tanto aqueles que vieram de longe só para assistir aos jogos e sentir o clima de uma cidade-sede, quanto os grupos de meninas porto-alegrenses que não se importavam com o futebol que se fazia presente por todos os lados. Só queriam saber de curtir o show do cantor Belo, marcado para aquela tarde.

Enquanto o confronto entre França e Honduras não começava, o movimento nos estandes dos pa-trocinadores e na praça de alimentação era grande. Tinha brincadeira de “gol ao alvo”, informações turísticas, espaço para as crianças, distribuição de adereços verde e amarelo de todos os tipos e muitos litros de cerveja. Se a bateria do celular terminasse na hora da selfie com os novos amigos estrangeiros, não tinha problema. Um dos locais disponibilizava cabos USB para a recarga e pufes para relaxar en-quanto se esperava.

Difícil saber quem era turista ou não, pois muitos brasileiros vestiam camisetas de outras seleções. A maioria dos franceses e hondurenhos que vieram a Porto Alegre estavam ali perto, a pouco mais de dois quilômetros de distânica, no Beira-Rio, mas alguns marcaram presença na Fan Fest. O francês Didier Martin, morador há 20 anos do Brasil, conta que acompanhou um grupo de conterrâneos até o entorno do estádio e se arrependeu de não ter ga-rantido o ingresso para a partida. Antes mesmo de o jogo começar, o professor de francês e torcedor do Rennes vibrava animado com sua bandeira da França e apostava em um resultado de 2x0 para a sua seleção.

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çasse a “chover” em uma parte do palco, seguin-do assim até os shows da noite. Grudadas na gra-de bem em frente, com casacos na cabeça para se proteger da água que respingava, estavam Mariana, Juliana, Deise e Katiele. O uniforme era amarelo, mas não era da seleção brasileira. A camiseta era do fã clube Além do Limite do cantor de pagode Belo.

Elas chegaram à Fan Fest às 11h para assistir ao show que começaria somente às 18h. Perguntadas se estavam acompanhando a partida, a resposta foi negativa. “A gente ficou conversando, mas quando deu o gol, até comemoramos junto com o pessoal aqui”. Antes de chegar, nem sabiam qual jogo es-taria acontecendo. “Só estou acompanhando os do Brasil. Acho que a Copa não deveria ser aqui, foi um investimento errado, não tem nenhuma pre-paração e o país só vai passar uma imagem ruim para o resto do mundo”, comenta Deise. As meni-nas podiam não gostar nada de futebol, mas sabiam qualquer coisa sobre o Belo. Inclusive que o cantor tem um time com o qual joga com os amigos, o Belo Futebol Show.

O placar da segunda etapa, que logo passou a ser dois a zero para a França, deixou os hondurenhos preocupados, mas não os impediu de continuarem a curtir a Fan Fest. Colorados presentearam a fa-mília de Honduras com uma camiseta do Interna-cional e celebraram todos juntos como se fosse gol classificatório e, claro, com muitas fotos.

Registrando tudo em sua filmadora, um grupo pe-ruano, mesmo sem ter sua seleção na Copa ou in-gresso, também quis acompanhar o evento de per-to. “Es muy hermoso”, dizia um deles, ressaltando que o Mundial no Brasil é muito importante para os sul-americanos. Alguns deles estavam torcendo pela França, outros por Honduras, mas a aposta de quem seria o campeão era unânime: Brasil. Durante as 10 horas de evento, mais de 17 mil pessoas passaram pelo Anfiteatro Pôr do Sol. Es-tivessem elas sentadas apreciando um chimarrão, pulando com a torcida de algum país, curtindo as atrações nos intervalos dos jogos, treinando o in-glês, falando portunhol ou arranhando o francês, o final em três a zero para a França pouco importou - com exceção dos franceses que comemoravam e

dos poucos hondurenhos que, apesar de insatisfei-tos com o resultado, seguiam esperançosos com o futuro da sua seleção na Copa. Mas certeza mesmo, só uma: a Fan Fest vai até o final.

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o jogo em porto alegre - em númeroSVeja os números que marcaram o dia 15 de junho de 2014 dentro e fora do estádioVinícius Bühler - [email protected]

Números do jogo

3 x 0 fraNça - hoNduras

Porto Alegre não parou para assistir ao primeiro jogo da Copa do Mundo na capital. Enquanto 43 mil torcedores miravam as equipes de França e Honduras dentro do campo, fora do estádio, números de to-dos os tipos não pararam de crescer. Nas redes sociais, nos hospitais, nos bares e, claro, dentro do estádio Beira-Rio, algarismos e mais algarismos acumulavam-se servindo como mais uma forma de registrar o dia histórico.

Nosso contador só não girou no entorno do estádio, onde não se registrou nenhum acidente durante os 90 minutos, segundo a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC). Mas no resto da cidade, contabilizamos um nascimento na hora do jogo, 17,5 mil pessoas na Fan Fest, 80 voluntários no estádio Beira-Rio e 200 litros de chope vendidos em um restaurante onde 240 pessoas assistiram ao jogo.

Confira, no infográfico, números curiosos que marcaram o dia 15 de junho em Porto Alegre:

Karim Benzema (pênalti)

45’

Karim Benzema

72’

noel Valladares (Gol Contra)

48’

43.012 mil pessoas compareceram, sendo o público máximo de 43.394

HAVIA 80VoluntárIosno EstAdIo

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Fora do estádio, durante os 90

minutos...

ZERO aCidentes nas imediações do Estádio

(Centro HistóriCo, Menino Deus e orla Do Guaíba) 1 nascimEnto nastrês principaismaternidades públicas

10 ChEGAdAS e 9 PARTidAS no aeroporto SALgADO FILhO

*ao longo do diaFontes: eptc, assessoria de imprensa do aeroporto salgado Filho, restaurante barranco

200 L de chope vendidos nO BARRAncO, um dos RESTAuRAnTES mAIS TRADIcIOnAIS DA cIDADE

são 2,2 L por minuto e 800 mL por cliente

17.500 pessoas passaram pela FiFa Fan Fest*

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nas REdES SOCiAiS739 MENçõES ao jogo no TwiTTER, Na região de porto alegre, durante

OS 90 mInuTOS dA PARTidA**

22,4%

dos tweets eram originais ou compartilhados de portais dE notícias

21,5% citaram a Falha na execução dos hinos

18,4% disseram que França e honduras era o pior jogo da copa até então

10,2% dos posts maniFestavam apoio a honduras.9,3% dos posts maniFestavam apoio à França.

10,3% dos tweets citavam jogadores (o mais citado foi Karim BeNzema)

Foto: portal da copa

** Foram contabilizados tweets com as palavras ‘França’, ‘honduras’ e ‘copa’

8,3% citaram outros assuntos

Para cAdA tweet elogiando a Partida, 12 eram Postados criticando

o desemPenho das duas equiPes.

X

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o jogo no meio de um (míni) proteStoCom manifestantes divididos, marcha que se dirigiu até o estádio foi fraca

Renata Fernandes - [email protected]

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ao Monumento ao Expedicionário, popularmente conhecido como Arco da Redenção, ele convocou: “Pessoal, vamos marchar até o Beira-Rio em instan-tes. Quem vai conosco?”. Confusos, alguns questio-navam: “Vão marchar com essa miséria de gente? Nunca vão conseguir! Vão apanhar da polícia”.

Para virar o jogo, um representante do Bloco de Lutas decidiu repetir o ato e subir no mesmo pilar. “Galera, faremos uma votação. Quem quiser ficar e participar das atividades culturais que levante a mão”, pediu. O placar terminou empatado. Metade foi às ruas onde a polícia estava a postos, a outra pre-feriu ficar no zero a zero e permaneceu na Redenção.

A marchaComo bom brasileiro, Arriens não desistia. Discur-sou mais uma vez na tentativa de ampliar o time que seguiria para o Beira-Rio: “Não seremos ouvidos se ficarmos parados aqui. Se não temos força para caminhar, pelo menos teremos força para dialogar com a polícia”.

Mesmo sendo alvo de comentários do tipo “meia dúzia de gato pingado marchando?” e “mas já está tendo Copa, o que eles querem agora?”, os manifes-tantes não se micharam. O fominha Arriens, que ha-via chegado à Redenção por volta das 14h, coman-dou todo o trajeto e não largou um minuto a bola de futebol com o símbolo do anarquismo desenhado. Ao longo de toda a marcha, ele fazia embaixadinhas e ensaiava dribles em frente ao Batalhão de Choque.

Ao passarem pela avenida João Pessoa, a impressão era de que o grupo teria facilidade para chegar ao Beira-Rio. Mas foi só virar à direita na rua Venâncio Aires que os problemas começaram. Ao fundo, na esquina com a rua General Lima e Silva, já era possí-vel ver filas de policiais do Batalhão de Choque a pé, a cavalo e dentro de viaturas. Pela proporção de mi-litares, mais parecia uma marcha de 7 de setembro.

O trajeto, então, precisou ser mudado. Obrigados a entrar na Lima e Silva, os manifestantes aumenta-ram a voz e se fizeram vistos e ouvidos pelos turistas que estavam dentro dos bares para assistir ao jogo. A marcha tirou a atenção das televisões e encheu as janelas dos prédios de curiosos. “No Beira-Rio, en-quanto a bola rola, não tem saúde, não tem emprego,

A concentração era grande no início do dia 15 de junho de 2014. O time já se reunia no Parque Farroupilha horas antes do evento.

Em clima de descontração, batiam uma bola. Pode-ria ser um pré-jogo da Copa não fosse essa versão de Gal Costa: “Ô balancê, balancê. Escuta o que eu vou lhe dizer: polícia fascista, vai se fuder e leva a Copa com você!” No caminho do Beira-Rio, onde aconteceria o primeiro jogo da Copa do Mundo 2014 em Porto Alegre, entre França e Honduras, a cada esquina, dezenas de viaturas da polícia já aguardavam os ma-nifestantes anti-Copa. O jogo deles demorou para começar. Até então unido e com apenas uma bandei-ra, o grupo acabou dividindo-se em dois: havia aque-les que torciam pela marcha em direção ao estádio e os que preferiam continuar o bate-bola ali mesmo, no parque. Apesar disso, ambos compartilhavam do mesmo objetivo - criticar consequências da Copa do Mundo, como as remoções forçadas e os gastos abu-sivos. Mesma causa que, no dia 12, data da abertura da Copa, havia mobilizado 300 pessoas em um só ato no centro de Porto Alegre que gritavam “Copa sem povo, estamos na rua de novo”.

Três dias depois, a situação era diferente. Enquanto o Bloco de Luta pelo Transporte Público propunha um ato cultural distante do estádio - com teatro, mú-sica, capoeira e até futebol -, grupos independentes queriam uma caminhada com o objetivo de chegar o mais perto possível do Beira-Rio. No Facebook, desde a madrugada de 14 de junho, os dois eventos online tiveram a presença confirmada por cerca de 700 pessoas. Mas nem 10% apareceram no ato. E das menos de 100 pessoas que se encontraram na Redenção por volta das 13h, apenas metade decidiu tentar chegar perto do estádio.

A assembleiaO capitão a favor da marcha era Fabrizio Arriens, que vestia uma camisa 7 verde e amarela, com a hashtag #naovaitercopa estampada e uma másca-ra de carnaval azul brilhante. Os representantes do Bloco de Luta, que eram maioria, vestiam camisetas de partidos e pediam a atenção dos manifestantes a todo momento. O primeiro a conseguir ser ouvi-do foi o camisa 7. De cima da escultura em frente

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não tem escola”. O cerco só foi definitivamente fechado quando o grupo chegou à avenida Loureiro da Silva, por vol-ta das 15h40 - antes mesmo da partida no BeiraRio começar. Em roda, eles se questionavam: “pra onde vamos agora? Não acredito que vamos acabar aqui”, enquanto um helicóptero sobrevoava o lugar, e es-trangeiros fotografavam da porta de um hotel.

Bateram bola, conversaram, cantaram mais um pou-co e então resolveram voltar ao ponto de partida, re-signados. O caminho de volta foi quieto e um tanto triste, sem música de protesto e sem bola, que ficou para trás, junto com o Batalhão de Choque - mais um motivo de indignação para Arriens, autointutila-do Canarinho Block.

A partida dos manifestantes terminou exatamente às 16h28, quando o grupo retornou ao Parque Far-roupilha. Com aplausos, Arriens agradeceu a parti-cipação das cerca de 40 pessoas. Celebrou inclusive a desproporção entre o número de manifestantes e policiais. “Foi lindo. Tudo aquilo só para nós”.

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o jogo ao longo doS 3,5km do caminho do golNo Beira-Rio, 43 mil pessoas; no Caminho do Gol, o mundo inteiro

Marília Bissigo - [email protected]

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ano atrás havia sido palco de protestos populares e conflitos com a polícia dava lugar à alegria conta-giante do mundial.

Primeiro tempoA Brazuca, bola oficial desta edição do evento, ro-lava no campo. No asfalto, o burburinho em dife-rentes sotaques. Enquanto caminhava devagar em direção ao estádio, vi um grupo de argentinos se divertindo. Brasileiros passavam por eles e com-provavam a rivalidade entre os dois países: ouvi frases como “não trouxeram o Messi” e “não pas-sam das quartas de final”. O tom parecia de brin-cadeira saudável.

A proprietária da loja Cantinho da Gringa, Neli Guedes, tinha motivos extras para exibir o sorriso que não desaparecia nem quando colocava a boca na bomba do chimarrão: as vendas não poderiam ir melhores. O estabelecimento fica na Borges de Me-deiros e vende artigos como luvas, toucas, cache-cóis, brinquedos e eletrônicos. “Eu não achava que viriam tantos estrangeiros para a cidade. A maio-ria dos clientes de hoje são de outros países. Estou adorando”, comemorava. Ela não tinha intenção de abrir a loja no domingo, mas percebeu o movi-mento no Caminho do Gol e não se arrependeu. Sua única tristeza foi não ter produtos com as co-res das bandeiras estrangeiras à venda. “Queríamos mostrar aos turistas que não temos preconceitos e não vendemos só mercadorias verdes e amarelas.”

A vendedora de bebidas e pinhão Raquel Silvério compartilhava do sentimento de euforia. Apesar da burocracia para conseguir se cadastrar para traba-lhar no Caminho do Gol, Raquel diz que esse é o melhor momento dos três anos em que é ambulan-te. “Passei por um sufoco para estar aqui e agora estou muito satisfeita. A interação com os turistas é divertida. Não falo inglês, mas conseguimos nos comunicar. Muitas pessoas que passaram por aqui não conhecem pinhão, mas eu ofereço amostras e os ensino a comer.” A orientação se fez necessária depois que um australiano tentou comer o pinhão sem descascar.

Reconhecendo o gramado

Ao descer da Estação Mercado da Trensurb, no centro de Porto Alegre, por volta das 15h, foi possível perceber a movimentação

fora do comum para uma tarde de domingo. Aque-le realmente não era um domingo qualquer: era dia da cidade receber o seu primeiro jogo da Copa do Mundo de Futebol FIFA 2014, que começaria den-tro de uma hora.

As seleções da França e de Honduras já se encon-travam no estádio Beira-Rio, e as ruas se enchiam com o zum-zum-zum convidativo de torcedores e curiosos. As conversas e risadas alheias me acom-panharam durante os 3,5 quilômetros do Caminho do Gol, um trajeto para pedestres entre a prefeitura e o estádio pela avenida Borges de Medeiros, ex-clusividade da cidade-sede Porto Alegre. Nos dias de jogos da Copa no Beira-Rio, meia-pista ficava interditada para tráfego de veículos nessa região, deixando livre o acesso a pedestres, artistas de rua e vendedores ambulantes previamente cadastrados.

Para guiar os não-iniciados na geografia das ruas da capital gaúcha, um pórtico inflável próximo ao Largo Glênio Peres, próximo ao terminal , marcava o início da caminhada. A iniciativa foi inspirada em uma ação semelhante realizada na Copa do Mundo da África, em 2010, na Cidade do Cabo.

AquecimentoVinte e dois jogadores franceses e hondurenhos se posicionavam para cantar os hinos de seus países - que não foram reproduzidos por causa de uma falha técnica. Eles eram observados através de telas no mundo inteiro, enquanto eu cuidava o vai e vem de brasileiros e estrangeiros que optaram por ca-minhar pela avenida Borges indo ao encontro dos gritos cada vez mais altos que vinham do estádio e da Fan Fest. Nas cabeças, rostos e camisetas, a bandeira do Brasil predominava.

O Caminho do Gol iniciava com a subida e a curva da Avenida Borges de Medeiros. O centro da cida-de, que costuma ser cinza, neste dia recebeu pince-ladas coloridas que deram uma maquiada no mau estado do Viaduto Otávio Rocha. As pichações an-ti-Copa foram sobrepostas por camisas e perucas azuis. Allez les Bleus. Aos poucos a avenida que um

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intervaloMomento de fazer os ajustes nos times. Nas ar-quibancadas, tremulavam bandeiras francesas e hondurenhas. Do lado de fora, outras tantas eram erguidas. Aproveitando o aglomerado de gente, ati-vistas entregavam panfletos escritos em português e inglês com dicas para se levar uma vida vegana.Havia espaço também para a pregação. Com carta-zes e gritos que demorei para entender, um grupo de jovens se aproximou de mim. Chamavam a aten-ção porque pareciam participantes de uma peque-na manifestação política. Quando chegaram perto, pude ouvir: “Jesus te ama”. Li frases evangélicas em seus cartazes e, nas camisetas pretas, “Eu <3 Jesus”.

Até mesmo estrangeiros vieram a Porto Alegre mo-vidos não pelo amor ao futebol, mas por uma causa. Os peruanos Enrique Ormeno e Oscar Escate vie-ram com um grupo de 11 pessoas trabalhar como voluntários na distribuição de panfletos sobre a conscientização da exploração sexual de crianças e adolescentes. “Não estou acompanhando os jogos nem preocupado com os resultados das partidas”, declarou Enrique. “Vim para cá trabalhar com esse tema porque acredito na importância da proteção das crianças e também por solidariedade.” O pe-ruano trabalha como funcionário público do go-verno de seu país na área de educação e esportes e passou por uma capacitação antes de viajar. “Os brasileiros são bem receptivos”, elogiou.

Segundo tempoA Copa do Mundo no Brasil já era chamada pela imprensa internacional de “a melhor Copa de todos os tempos”, e até o sol, que andava escondido atrás das nuvens, apareceu para acompanhar o segundo tempo da partida entre França e Honduras no Bei-ra-Rio. A temperatura subia, apesar da brisa vinda do Rio Guaíba. Ouvi uma senhora falando ao tele-fone: “tem muito turista na rua para ficar em casa”.

A Polícia Militar estava presente a cada poucos me-tros no Caminho do Gol e no entorno do estádio. Policiais realizavam sua ronda a pé, a cavalo, em viaturas e camburões. “Pena que não vai continuar assim”, disse o vigilante Ângelo Amaral, que leva-va a sua filha, Natalia, 6 anos, para “ver coisa nova”. A esposa, Magela Costa, é uruguaia, mas mora no

Brasil há quatro anos. “Viemos passear, olhar a in-tegração dos povos, mas a Natalia está com medo de tanto policial”, disse Magela. Outro casal que queria “sentir o gostinho da Copa” eram os baianos residentes de Porto Alegre Micaela Souza e Manoel Luz. “Nós tentamos comprar ingresso para ir ao estádio, mas não tivemos condições”, lamentou ele. “Então estamos só do lado de fora, aproveitando a oportunidade para ver gente diferente.” Melhores momentosGente diferente não faltou. Uma adolescente de meia-calça preta rasgada e batom vermelho cami-nhava devagar com seu tênis All Star de caveiri-nhas; um grupo de hippies arrastavam as barras de suas roupas largas e de cores desgastadas pela ave-nida; prendas tomavam seu chimarrão; senhores com um uniforme amarelo canário tiravam fotos até da própria sombra; garotos com rostos pinta-dos com cerveja nas mãos falavam alto; casais se beijavam; homens cantavam mulheres; uma crian-ça aprendia capoeira. A diversidade daquele dia até era comparável a um típico domingo na Redenção, mas ganhava de longe no quesito sotaques e idio-mas diferentes.

A animação era visível nos rostos de brasileiros, uruguaios, argentinos, franceses, australianos. Pe-destres dividiam o espaço com bicicletas, patins, skates, carrinhos de bebês, cachorros e seus do-nos. Mesmo aqueles que estavam de certa forma alheios à muvuca, não pareciam deslocados da cena. É como se cada tribo e cada país estivessem representados por aquelas milhares de pessoas que percorreram o Caminho do Gol naquela tarde de domingo. Se o Beira-Rio só comportava as 43 mil pessoas com ingresso, na Borges de Medeiros, ca-bia o mundo inteiro.

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o jogo pelaS câmeraS de SegurancaNo Centro integrado de Comando, 40 monitores: 39 nas ruas da cidade e um no jogo

Thais Böhm - [email protected]

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dos 721 agentes da EPTC que foram habilitados nas línguas inglês ou espanhol para lidar com os estrangeiros em Porto Alegre.

Todos os movimentos - deslocamento de delega-ções, bloqueios de trânsito etc - são veiculado pelas mídias sociais da EPTC e do CEIC. Uma dessas movimentações coloca três telas em modo “priva-cidade”, quando as imagens deixam de ser visuali-zadas por todos e passam a ser de uso exclusivo da Polícia Militar. O alvo das câmeras era o pequeno número de pessoas em torno da placa “Não vai ter Copa”, que saía da Redenção. Nos computadores, é possível enxergar, de longe, o momento que a Bri-gada Militar, uns a pé, outros a cavalo, cercam os manifestantes e os obrigam a mudar de rota. Em marcha lenta, o protesto volta ao parque com escol-ta digna de chefes de Estado.

Uma hora antes do início do jogo é o momento de maior tumulto nas ruas que levam aos portões do Beira-Rio. A Brigada Militar montou uma barreira na rua Padre Cacique, próximo ao viaduto, onde limitava o acesso ao estádio. Passavam “apenas” os que tinham ingresso para assistir ao jogo. “Apenas” entre aspas mesmo, porque só esses contabilizavam 43.012 pessoas.

Às 16h, o CEIC se acalma. França e Honduras estão em campo, os torcedores dentro do estádio ou no anfiteatro Pôr do Sol, na Fan Fest. As ruas se esvaziam. Os policiais preveem 90 minutos de descanso.

Minutos antes de terminar o jogo, as câmeras já miram as pessoas que deixam o Beira-Rio. O es-coamento, jargão usado para se referir à saída de milhares de torcedores do estádio, termina às 18h40. Engana-se quem pensa que o trabalho aca-bou. Ainda há tempo para uma espiadinha na Fan Fest, que funciona até as 22h.

“O Centro Integrado de Comando é um auxílio para os que estão nas ruas e muitas vezes não con-seguem acompanhar tudo o que acontece. A partir do momento que as pessoas avisam, através de liga-ções, é possível focar no local, voltar nas imagens e interpretar o que aconteceu e como solucionar o problema”, garante Roberta Rodrigues Obelheiro,

Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, domingo, 15 de junho. Primeiro jogo da Copa do Mundo 2014 no Estado. França e

Honduras. Mais de 50 mil pessoas concentradas na região central da cidade, dentre elas um chefe de Estado e o secretário geral da FIFA. Ameaças de protestos. Como garantir a integridade física dos gaúchos e turistas?

Faltam três horas para o início do jogo e, no Centro Integrado de Comando (CEIC) da cidade de Por-to Alegre, já se encontram a Polícia do Exército, o centro de inteligência da Brigada Militar, o Servi-ço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), a Defesa Civil, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), a Polícia Rodoviária Federal, a Guarda Municipal, a Companhia de Processamen-to de Dados do Município de Porto Alegre (Pro-cempa) e o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU). Quarenta pessoas ao todo.

No CEIC, a situação é de alerta devido ao gran-de número de pessoas em um mesmo espaço. São mais de 800 câmeras espalhadas pela cidade, mas nos 39 monitores de LED 32’’ do centro, os locais de acompanhamento direto são as ruas Padre Caci-que, Olavo Dutra, José de Alencar, Borges de Me-deiros, Viaduto Açorianos e o Anfiteatro Pôr do Sol, local de realização da FIFA Fan Fest.

Uma câmera flagra uma placa no Parque Farrou-pilha em que se lê “Não vai ter Copa”. Todos os olhares se voltam para a pequena quantidade de pessoas em volta. Surgem as primeiras risadas en-tre os plantonistas: “Alguém, por favor, avisa que já está tendo Copa”.

Às 13h30min, o foco de atenção dos policiais mili-tares e civis muda. Um grupo de franceses consegue driblar a segurança e entrar com um Fusca conver-sível plotado com imagens de uma bola de futebol no Caminho do Gol, espaço da avenida Borges de Medeiros onde o trânsito foi interrompido em meia pista, como previsto para os dias de jogo na cidade.

Outra cena: quase em frente ao estádio, é possível ver um agente de trânsito abordando turistas e im-pedindo sua passagem. Pena que não tem áudio. Se tivesse, seria possível conferir o preparo - ou não -

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coordenadora de comunicação social do CEIC.

Forças armadasDe acordo com o tenente coronel Ferraz, da coor-denação de defesa de área, 3,8 mil homens do Exér-cito estavam na cidade divididos entre batedores, estratégicos, tropas de choque, defesa química bio-lógica nuclear e radiológica e operações especiais.

São homens de Pelotas, Sapucaia, São Leopoldo, Santa Cruz, São Gabriel, e Goiânia-GO. Segundo o coronel, a maioria dos militares não aparecem em frente ao público. Camuflados, são responsá-veis pela fiscalização do estádio antes da abertura dos portões. “Fazemos uma varredura, para ver se não há perigo aos turistas, se não existe nenhuma ameaça implantada. Somos nós que liberamos a en-trada ou não”.

A tropa de choque fica à espreita. O pelotão alojado dentro de um quartel só age quando há intervenção do Governador do Estado, em casos de crises onde exista perigo severo ao público.

Dentro do CEIC, dia 15 de junho de 2014, foi só mais um dia comum de trabalho. A diferença era a televisão ligada na Rede Globo para acompanhar, de rabo de olho, o que ficou fora do alcance das suas câmeras: o primeiro jogo de um mundial na sua cidade.

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o jogo dentro doS ShoppingSNem todo mundo gosta de Copa, nem todo mundo conseguiu ingresso

Camila Capelão - [email protected]

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Perto dali, três amigos ciclistas que aproveitavam o domingo para andar de bicicleta e conferir como estava a cidade no dia do jogo davam um tempo no shopping. Fernando Silveira, 32 anos, não fazia questão de ter ingresso, mas diz, sorridente, que gostaria muito que a cidade ficasse organizada as-sim mais vezes. “Mexe com a cultura, com as pes-soas, deixa-as mais educadas”, diz o engenheiro. Fernando também saiu da Fan Fest e passou pelo shopping com duas amigas para descansar.

Enquanto a maioria das pessoas que circulavam pelos corredores passeavam, a vendedora Giovana Martins, 27 anos, tirava a sua hora de folga. A jo-vem conta que o movimento do shopping durante a semana foi aumentando gradativamente. Turistas de vários lugares do Brasil e também estrangeiros se aproximaram do estande onde trabalha para, além de conhecer os deliciosos chocolates que vende, saber um pouco da cultura gaúcha. “Acho que o movimento vai aumentar assim que o jogo terminar”. E foi o que aconteceu.

Faltando 20 minutos para o fim da partida, o flu-xo de pessoas com rostos pintados, camisetas de times e seleções foi crescendo dentro do shopping. Enquanto torcedores entravam no local para se ali-mentar, buscar o carro ou até mesmo passear, um turista mexicano assistia a todo movimento de um canto. Ele conta que costuma ir todos os dias no centro comercial desde que está em Porto Alegre para conversar e conhecer pessoas novas. Andres Felipe, 26 anos, veio sozinho para o Brasil para acompanhar diversos jogos em vários Estados. Co-meçou a viagem por Porto Alegre, mas conta que não verá nenhum jogo no Beira-Rio. “Embarco na segunda-feira para Recife, desci aqui porque a diferença da passagem estava muito grande”, disse o mexicano, sem deixar de fazer uma provocação: afirmou que está torcendo para Argentina sair cam-peã do Brasil. Mas por que um mexicano torceria pela seleção de Messi? Os quatro anos que morou na Argentina foram suficientes para se apaixonar pelos hermanos e internalizar a rivalidade com os brasileiros.

Domingo, 15 de junho, quatro horas da tar-de em Porto Alegre. Depois de dois dias chuvosos, o tempo abriu para receber

França e Honduras no estádio Beira-Rio. É Copa do Mundo, amigos.

Não para todos. Enquanto o estádio enchia com o público, os shoppings da capital viviam um dia normal. “Só não trabalho em dias de jogos do Bra-sil. Quando é a Seleção, assisto no telão na rua”, explica Newton Boa Nova, 60 anos, o taxista que entrou no espírito da competição e fardou-se com as cores verde e amarelo, pintou as rodas do carro, colocou bandeiras e fitas e um altofalante na deco-ração de seu táxi, já acostumado a se camuflar em datas festivas.

Newton trabalha no ponto de táxi do Iguatemi, onde o comércio funcionava normalmente e muita gente foi passear. Na zona norte da cidade, tudo acontecia naturalmente. Nenhuma loja ou restau-rante transmitia o jogo. A maior movimentação era em uma loja de calçados com descontos de até 60%. Na porta, havia muitos homens, entediados à espe-ra de suas esposas e namoradas que aproveitavam a “Copa do Mundo dos Sapatos”. Pais e crianças, de mãos dadas, vestiam roupas casuais, nada de ca-misetas de seleções. E assim foram os 45 minutos do primeiro tempo do jogo em Porto Alegre, no Shopping Iguatemi.

No Shopping Praia de Belas, localizado na mesma avenida do estádio onde acontecia o jogo, o clima era um pouco diferente. No segundo tempo da par-tida, no térreo, os corredores estavam livres. Uma cantina com três televisões que passavam o jogo estava vazia, o movimento maior era na praça de alimentação, onde um casal de amigos, descansava depois de acompanhar o primeiro tempo do jogo na Fan Fest. “Vim para Porto Alegre para fugir da loucura do Rio de Janeiro, lá são muitas obras, mui-tas pessoas, muito tudo, não dá”, diz a estudante Letícia Kohler, 23 anos. O amigo que a acompa-nhava é o porto-alegrense Maurício Machado, 27 anos, que apresentou a cidade a Letícia. O advoga-do elogiou a festa e confessou que queria mesmo estar dentro do estádio, mas não foi sorteado para a compra de ingressos.

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Já são 18h, o shopping está lotado. Grande parte do movimento está na fila de pagamento do esta-cionamento. Segundo a segurança do local, desde três horas antes da partida, já não havia lugar para estacionar. Com as ruas bloqueadas somente para pessoas autorizadas, o Praia de Belas era uma boa alternativa para os motoristas. A fila atravessava o centro do saguão e seguia até o início de um dos corredores que dão acesso à rua.

Os 90 minutos de jogo transcorreram tranquila-mente para quem estava dentro do shopping. O problema começou mesmo depois que o juiz apitou o fim da partida: era hora de enfrentar a fila do estacionamento e, no caso da vendedora de choco-lates, voltar ao trabalho.

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o jogo dentro de uma “caSa de eSpetáculoS”Jogo? Que jogo?

Marcelo Rota - [email protected]

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da graça. Os poucos torcedores franceses que chegaram após o jogo foram o suficiente para que elas pudessem, enfim, dizer com propriedade um ça va, mon amour.“Somos especialistas numa linguagem que é

universal, meu bem, a linguagem do corpo”, resumiu a estudante de enfermagem que,

durante o dia, trabalha em uma conhecida “casa de es-petáculos” de Porto Alegre. O básico para executar o trabalho no dia do primeiro jogo da Copa do Mundo 2014 na capital gaúcha estava na ponta da língua: mon amour, oh my god, te quiero.

O domingo em que ocorreria a partida entre França e Honduras foi de grande expectativa na Sauna Guaíba. Às 15h, uma hora antes de começar o jogo, o local já estava com a televisão ligada em canal esportivo, car-tazes de mulheres seminuas segurando uma bola de fu-tebol com frases de efeito e bandeirinhas de países na decoração.

Além de um calendário específico para o maior evento esportivo do mundo, a empresa investiu até em uma campanha publicitária especial: “Seleção Brasileira – Confira nossa escalação especial para a Copa do Mun-do”. E já no domingo do primeiro jogo na capital gaú-cha, a casa contou com público acima da média, entre os quais alguns estrangeiros curiosos para conhecer essa seleção.

Para muitas profissionais do sexo, a visibilidade do tra-balho durante a Copa do Mundo no Brasil é mais do que sinônimo de aquecimento do mercado, representa também a oportunidade para se discutir a profissionali-zação da profissão. Entre as conversas naquele domin-go, algumas meninas até defendiam a legalização da atividade, mas o foco era outro: os franceses. “Estamos esperando o Didier Deschamps. Dizem que ele é bem chegado numa festa”.

Desde o começo da Copa, já haviam feito uma visita para conferir a “seleção especial da casa” turistas aus-tralianos, franceses, holandeses e argentinos. Segundo as prostitutas, todos muito gentis e rápidos. “Eles vêm aqui, fazem o que tem que fazer e vão logo embora”. Diferente de outras casas e de outras cidades sede, as profissionais não aumentaram o preço tampouco o lo-cal passou a cobrar mais do que os usuais R$ 110, com direito a chope livre.

Naquele domingo atípico de trabalho - a sauna não cos-tuma abrir no dia do churrasco da família -, com a TV ligada no jogo, ninguém ali se importou para os 3 gols da França em cima de Honduras, nem para a expulsão do Palacios tampouco para as 14 faltas do jogo. As gu-rias também não ligaram para a ausência do treinador da equipe francesa, Didier Deschamps, que não deu o ar

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