o jornalista e o cartola tese

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE COMUNICAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO E CULTURA CONTEMPORNEAS

Dissertao de mestrado

O JORNALISTA E O CARTOLA: O JORNALISMO ESPORTIVO IMPRESSO NA BAHIA E SUA RESISTNCIA AO CAMPO DA POLTICA

PAULO ROBERTO LEANDRO

Salvador Bahia DEZEMBRO/2003

PAULO ROBERTO LEANDRO

O JORNALISTA E O CARTOLA:O JORNALISMO ESPORTIVO IMPRESSO NA BAHIA E SUA RESISTNCIA AO CAMPO DA POLTICA

Dissertao Mestrado

apresentada em

ao

Curso e

de

Comunicao

Cultura

Contemporneas, rea de Concentrao em Mdia e Poltica, Universidade Federal da Bahia UFBA, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Elias Machado Gonalves

Salvador 2003

TERMO DE APROVAO PAULO ROBERTO LEANDRO

O JORNALISTA E O CARTOLA:O JORNALISMO ESPORTIVO IMPRESSO NA BAHIA E SUA RESISTNCIA AO CAMPO DA POLTICADissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de mestre em Comunicao e Cultura Contemporneas, rea de Concentrao em Mdia e Poltica, Universidade Federal da Bahia UFBA, examinadora: pela seguinte banca

Elias Machado Gonalves - Orientador ________________________________ Doutor Faculdade de Comunicao - Universidade Federal da Bahia - UFBA Decio Torres Cruz ________________________________________________ Doutor Instituto de Letras - Universidade Federal da Bahia - UFBA Sonia Serra _____________________________________________________ Doutora Faculdade de Comunicao Universidade Federal da Bahia - UFBA

Salvador, 3 de dezembro de 2003

LEANDRO, PAULO ROBERTO O jornalista e o cartola: O jornalismo esportivo impresso na Bahia e sua resistncia ao campo da poltica, 246 p., 297 mm, (UFBA, Mestre, Comunicao e Cultura Contemporneas, rea de Concentrao em Mdia e Poltica, 2003). Dissertao de Mestrado Universidade Federal da Bahia. Faculdade de Comunicao. 1. Jornalismo esportivo 3. Editoria de esportes I. UFBA-FACOM 2. Agremiaes desportivas 4. Jornalismo de base II. Ttulo (srie)

jornalista Mrcia Rocha, companheira das trilhas da existncia. Atualidade. Aos leandrinhos Vtor Rocha, Renata Amorim, Hugo e ris Moreira. Sntese. A Pedro, Socorro, Frana, Dagmar, Nazar, Rita, pela vida. Veracidade.

AGRADECIMENTOSAos camaradas trabalhadores, apoio, vigias, faxineiros, a nossa base. Empatia. Othon Jambeiro e Snia Serra, por alfabetizarem reprter e mestre. Objetividade. Dcio Torres nos apresentou Teun Van Dijk e Norman Fairclough. Antecipao. Ao perseverante guia desta trilha acadmica, doutor Elias Machado. Pesquisa. Aos 61 alunos de Off-sina e 48 de Estudo (Dez)orientado, da Facom. Preciso. Aos professores doutores da Facom, pela capacidade de trabalho. Profundidade. Aos colegas e s colegas de tantas redaes, abraos gerais. Fidelidade. Aos editores Antonio Luis Diniz, Roque Mendes e Gensio Ramos. Importncia. A todos os jornalistas esportivos, aos quais a pesquisa visa servir. Interesse. Cristina Damasceno, seu Lobo e Lidsy, pela fora e alerta dos prazos. Agenda. Ao jornalista e guru Alvinho, pelas caminhadas e toques certeiros. Observao. Aos torcedores de todos os clubes e leitores de pginas de esportes. Alcance. Ao povo de Lenis, na Chapada, onde estou, entre grutas e rios. Curiosidade. Ao compadre Renato Serqueira (Serqueira com esse mesmo, revisor). Raridade. Ao farol e companheiro chefe na profisso, jornalista Pedro Formigli. Clareza. Ao segundo guru, pessoa boa, talo-bonfinense Raul Moreira. Simplicidade. Terezinha Teixeira, Virgnia Andrade e Isabel Pedreira, pelos insights. Conciso.

i

A histria das relaes entre a imprensa e o esporte, tanto quanto se possa voltar no tempo, uma histria de amor. (Edouard Seidler)

ii

RESUMOEste trabalho contextualiza a imprensa esportiva no mbito do jornalismo geral desde os primrdios desta manifestao setorizada, em meados do sculo XIX. A seguir, visita as organizaes noticiosas em seus detalhes, a ponto de destacar um perfil do jornalismo esportivo impresso na Bahia, Brasil, abordando desde o relacionamento do reprter com a fonte at o processamento da notcia, a partir da extrao e seleo da informao esportiva considerada de qualidade. Por fim, analisa a relao do jornalista esportivo com o dirigente de clube que desenvolve carreira poltica a fim de extrair desta relao tensa as causas da utilizao da pgina esportiva para fins polticos e como o jornalista esportivo vem resistindo a esta invaso do campo da poltica ao seu ambiente de trabalho profissional. Palavras-chave: jornalismo esportivo informao Brasil poltica - profissional

iii

ABSTRACT

This work presents the sporting press in the extent of the general journalism from the origins of this manifestation, in the middle of the century XIX. To proceed, it visits the informative organizations in their politeness and details, to the point of to detach a profile of the journalism sporting printed paper in state of Bahia, Brazil, approaching from the reporter's relationship with the source until the processing of the news, starting from the extraction and selection of the considered sporting information of quality. Finally, it analyzes the sporting journalist's relationship with the club leader that develops political career in order to extract of this tense relationship the causes of the use of the sporting page for political ends and as the sporting journalist is resisting against this invasion of the field of the politics to his atmosphere of professional work. Key-words: journalism sporting information Brazil politics - professional

iv

SUMRIO

AGRADECIMENTOS.................................................................................................... EPGRAFE.................................................................................................................... RESUMO ...................................................................................................................... ABSTRACT................................................................................................................... SUMRIO ..................................................................................................................... LISTA DE FIGURAS..................................................................................................... LISTA DE ANEXOS...................................................................................................... LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS........................................................................ LISTA DE AGREMIAES DESPORTIVAS E ADJETIVOS CORRELATOS ............. INTRODUO .....................................................................................................

i ii iii iv vi vii ix x xi 1 1 6 12 13 15 17 36 41 51 52 54 75 90 96

1. Trajetria do jornalismo esportivo no mundo .................................................. 2. Escolha do campo e a classificao do estudo............................................... 3. Objetivos e hipteses ...................................................................................... 4. Metodologia de trabalho.................................................................................. 5. Organizao da dissertao............................................................................ CAPTULO I - A IMPRENSA ESPORTIVA NA BAHIA: O PONTAP INICIAL ............ CAPTULO II - JORNALISMO DE BASE E REVELAO DE TALENTOS ................. II.1 - Baixo nvel de significncia social ............................................................... II.2 - Espao de formao de talentos ................................................................ II.3 - Reduto para profissionais antigos .............................................................. CAPTULO III - O JOGO DO PODER NA EDITORIA DE ESPORTES ........................ CAPTULO IV - IMPACTO DOS PRAZOS NA ORGANIZAO DA EDITORIA.......... IV.1 - O jornalismo-calendrio e o domingo-maratona........................................ CAPTULO V - O PROCESSAMENTO DA NOTCIA ESPORTIVA .............................

CAPTULO VI - A HIPERFONTE E O SISTEMA DE AUTO-PAUTA ........................... 128 VI.1 - Predomnio do setorismo fortalece fontes dominantes.............................. 133 VI.2 - Soluo individual orienta relaes com cartolas ...................................... 138 VI.3 - O poder das personalidades .................................................................... 140 VI.4 - Jornalismo de rivalidade .......................................................................... 147 CAPTULO VII - O CARTOLA E A PAUTA ESPORTIVA DE CAMPANHA.................. 150 VII.1 - Por que os cartolas falam com reprteres ................................................ 154 VII.2 - Manobras de controle da imprensa .......................................................... 158

iv

VII.3 - Informao sobre o clube ......................................................................... 159 VII.4 - O cartola esclarecido: o Vitria sou eu. Carneiro e Leo ......................... 160 VII.5 - O cartola de impacto: somos da turma de Maracaj ................................ 167 VII.6 - Cartola sem-torcida: sombra do noticirio esportivo.............................. 171 VII.7 - Informao sobre opinio pblica............................................................. 173 VII.8 - A voz da fonte: o reprter-escudo e o contraditrio oculto ....................... 174 VII.9 - Reprter-amigo e reprter-famlia: derrame de elogios no textobandeira ..................................................................................................... 175 VII.10 - A pauta equilibrada: prs, contras, a investigao ................................. 176 VII.11 - A fonte-carona: o estranho penetra na pgina esportiva........................ 177 VII.12 - Fonte-dolo: o eleito pelos amigos e esportistas .................................. 179 VII.13 - A fonte-popular. Enfim, a voz do eleitor-leitor-torcedor..................... ..... 180 VII. 14 - voz da fonte e a pauta I.P. com efeito de mdia .................................... 180 VII.15 - Do torneio de bairro inaugurao do estdio: como acessar a pauta . 181 VII.16 - Do auge ao ostracismo: o que mudou na relao cartola x imprensa.... 184 VII.17 - Cartolas-santinho e a invaso da poltica na Era Maracaj.................... 187 VII.18 - Pgina de esporte como mosaico da democracia renascente ............... 188 VII.19 - Roteiro para escoar ou ecoar um texto. O plantio da matria ................ 191 CAPTULO VIII - CONCLUSES ................................................................................ 197 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................. 202 PERIDICOS......................................................................................................... ...... 209 ANEXOS ..................................................................................................... 218

v

LISTA DE FIGURAS

Figura

Pg.

1

Times para os quais os jornalistas esportivos baianos de meio impresso afirmam torcer........................................................................ 10

III.1

Fora de trabalho empregada na rea esportiva dos jornais baianos, nos anos de 1993 e 2003...................................................................... 56

III.2

Reduo da fora de trabalho empregada na rea esportiva por veculo, no perodo entre 1993 e 2003.................................................. 56

III.3

Noticirio esportivo em jornais do interior baiano (amostragem janeiro-2003) ......................................................................................... 58

III.4

Distribuio da editoria de esportes dos principais jornais da capital baiana, por faixa etria, setembro de 2003........................................... 67

III.5

Distribuio da editoria de esportes dos principais jornais da capital baiana, de acordo com o tempo de experincia do profissional ........... 71

III.6

Distribuio da editoria de esportes dos principais jornais da capital baiana, de acordo com a formao acadmica .................................... 72 74

III.7 IV.1

Local de formao profissional.............................................................. Distribuio dos trabalhadores no jornal A Tarde por setor em

janeiro de 2003...................................................................................... IV.2 Participao percentual por setor dos trabalhadores do jornal A Tarde, em janeiro de 2003. ...................................................................

77

78

vi

Figura

Pg.

IV.3

Distribuio das editorias de esportes por funo, para os principais jornais da capital baiana........................................................................ 90

IV.4

Escala de folgas dos principais jornais dirios de Salvador, em setembro de 2002 ................................................................................. 92

IV.5

Frequncia de pagamento de salrio de jornalistas dos trs jornais de maior circulao de Salvador em setembro de 2002 ....................... 93

IV.6

Remunerao em reais dos jornalistas esportivos da Bahia nos principais veculos de circulao estadual, em setembro de 2002. ...... 94 95

IV.7 VI.1

Horas de trabalho dirio. ....................................................................... Estratgias de apurao de notcias esportivas, de acordo com as respostas dos profissionais de editorias de esportes de Salvador, em abril de 2003..........................................................................................

130

VI.2

Segmento de atuao dos setoristas nas editorias de esportes dos jornais baianos em abril de 2003 .......................................................... 134 135 137 138 138 139

VI.3 VI.4 VI.5 VI.6 VI.7

Tempo de atuao do profissional como setorista................................ Profissionais que prestam servio paralelo s editorias dos jornais.. ... Assessorados pelos jornalistas esportivos............................................ Segunda profisso dos jornalistas de esportes..................................... Relao dos reprteres de esportes com os cartolas. ..........................

vii

Figura

Pg.

VII.1

Inseres de Maracaj e Carneiro em textos jornalsticos, nos seis perodos estudado, nos meses que antecederam eleies nos ltimos 20 anos, em jornais da grande imprensa baiana pginas de esporte .................................................................................................. 185

viii

LISTA DE ANEXOS

Anexo

Pg.

1 2

Questionrio.. .............................................................................. Grficos de inseres de polticos e cartolas nas pginas de esporte.........................................................................................

218

223

ix

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AABaneb ABCD ABI AFA AM CND CRD EBC Facom FBF FIFA FM IBGE IP IVC JBA PCB PDS PDT PFL PMDB PMN PP PRN PSDB PT PTB Sindiclub Sinjorba SMTU Sudesb TCM UERJ UFBA

Associao Atltica Banco do Estado da Bahia Associao Bahiana de Cronistas Desportivos Associao Bahiana de Imprensa Asociacin del Ftbol Argentino Ondas Mdias Conselho Nacional de Desportos Conselho Regional de Desportos Escola de Biblioteconomia e Comunicao Faculdade de Comunicao da Universidade Federal da Bahia Federao Bahiana de Futebol Fdration Internationale de Football Association Freqncia Modulada Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica Interesse do patro Instituto Verificador de Circulao Jornal da Bahia Partido Comunista Brasileiro Partido Democrtico Social Partido Democrtico Trabalhista Partido da Frente Liberal Partido do Movimento Democrtico Brasileiro Partido da Mobilizao Nacional Partido Popular Partido da Reconstruo Nacional Partido da Social Democracia Brasileira Partido dos Trabalhadores Partido Trabalhista Brasileiro Sindicato dos Clubes Sociais da Bahia Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado da Bahia Secretaria Municipal dos Transportes Urbanos Superintendncia dos Desportos do Estado da Bahia Tribunal de Contas dos Municpios Universidade Estadual do Rio de Janeiro Universidade Federal da Bahiax

LISTA DE AGREMIAES DESPORTIVAS E ADJETIVOS CORRELATOS

Amrica Bahia Bangu Ba-Vi Botafogo (BA) Botafogo (RJ) Catuense Corinthians Coritiba Cruzeiro Everton

Amrica Futebol Clube (RJ) Esporte Clube Bahia (BA) Bangu Atltico Clube (RJ) Esporte Clube Bahia e Esporte Clube Vitria Botafogo Sport Club (BA) Botafogo de Futebol e Regatas (RJ) Associao Esportiva Catuense (BA) Sport Club Corinthians Paulista (SP) Coritiba Foot Ball Club (PR) Cruzeiro Esporte Clube (MG) Corporacin Deportiva Everton (Chile)

Atltico de Alagoinhas Alagoinhas Atltico Clube (BA)

FlaFlamengo Fluminense (BA) Fluminense (RJ) Galcia Grmio Internacional Internazionale

relativo ao Clube de Regatas do Flamengo (RJ)Clube de Regatas do Flamengo (RJ) Fluminense de Feira Futebol Clube (BA) Fluminense Futebol Clube (RJ) Galcia Esporte Clube (BA) Grmio de Futebol Porto Alegrense (RS) Sport Club Internacional (RS) Internazionale Football Club (Itlia)

JuventusLenico Liverpool

Clube Atltico Juventus (SP)Associao Desportiva Lenico (BA) Liverpool Futbol Club (Uruguai)

NuticoNewells Old Boys Palmeiras

Clube Nutico Capibaribe (PE)Club Atletico Newells Old Boys (Argentina) Sociedade Esportiva Palmeiras (SP)

PearolPorco

Club Atletico Pearol (Uruguai)relativo Sociedade Esportiva Palmeiras

PortuguesaQueen's Park FC Rangers Real Madrid FC

Associao Portuguesa de Desportos (SP)Queen's Park Football Club (Esccia) Club Social de Deportes Rangers (Chile) Real Madrid Club de Ftbol (Espanha)

xi

River Plate Rubo-negro Santos So Paulo Sevilha Tricolor Vasco da Gama Vitria Wanderers Ypiranga

Club Atletico River Plate (Argentina) relativo ao Esporte Clube Vitria Santos Futebol Clube (SP) So Paulo Futebol Clube (SP) Sevilla Futbol Club SA (Espanha) relativo ao Esporte Clube Bahia Clube de Regatas Vasco da Gama (RJ) Esporte Clube Vitria (BA) Montevideo Wanderers Ftbol Club (Uruguai) Esporte Clube Ypiranga (BA)

Universidad de Guadalajara Universidad Autnoma de Guadalajara (Mxico)

xii

INTRODUO

1. Trajetria do jornalismo esportivo no mundo Homero pode ser considerado o pioneiro da crnica esportiva mundial especializada, por sua narrao, na Ilada, da corrida em que Ulisses venceu Ajax. Mas a publicao de material especfico sobre esporte, no formato de pgina impressa, dentro do que se convencionou chamar imprensa, um fenmeno muito mais recente na histria da civilizao. A rigor, o jornalismo esportivo mundial se origina do jornalismo geral, e no chegou ainda ao final de seu segundo sculo. Entre as raras referncias sobre o tema de que se tem notcia, o autor francs Edouard Seidler aponta como o mais antigo rgo esportivo no mundo, o ingls Bells Life. Fundado em 1838, depois passou a se denominar Sporting Life. Seu surgimento ocorre com o fortalecimento de clubes e federaes na era moderna do esporte mundial, caracterizada pela organizao em instituies. O jornalismo enquanto fenmeno moderno, portanto, somente veio se fortalecer com o advento do capitalismo1. Na Frana, Seidler registra a fundao do jornal Le Sport, editado por Eugene Chapus em 1854, com o objetivo de realizar a crnica do haras, do turfe e da caa, alm de oferecer sees sobre canoagem, natao, pesca, boxe francs e ingls, luta, bilhar e outros esportes 2. Nestes primrdios, o LEquipe, primeiro dirio esportivo do mundo, uma demonstrao, por seu estilo e linguagem, de que a tradio da crnica iniciada com Homero, antecede o jornalismo esportivo, enquanto gnero, comoGENRO FILHO, Adelmo. O Segredo da Pirmide. Para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Tch!. 1987, p. 55. 2 FONSCA, Ouhydes Joo Augusto da. O cartola e o jornalista (influncia clubstica no jornalismo esportivo de So Paulo). So Paulo. 1981, mimeo. p.191

1

campo especializado capaz de constituir editoria fixa. O hipismo entrou nas pginas dos jornais, no sculo XIX. At ento, s obtinham espao na imprensa o boxe ingls e francs, o iatismo e a esgrima. Os pioneiros do jornalismo esportivo despontam nos jornais populares. O neo-olimpismo do Baro Pierre de Coubertin, em sua luta por reorganizar os Jogos Olmpicos, foi decisivo para consolidar o esporte como tema social da mais alta relevncia, abrindo a trilha que levou at as pginas de jornais. A Revue Athletique, veculo prprio de Coubertin, serviu de incentivo para a imprensa esportiva francesa e mundial. De 1919 a 1939, o fenmeno registrado que o esporte, antes abordado de forma didtica pela imprensa, passa a ser encarado com autonomia e como informao especfica. O jornalismo esportivo se fortalece e os livros sobre esportes tambm comeam a se tornar mais lidos. A imprensa esportiva na Frana se consolida em um contexto de conscientizao da populao da importncia e do valor do esporte para a sade e o entendimento da cidadania. A crnica ainda o gnero preferido, ao invs da cobertura dos eventos esportivos. Nos Estados Unidos, a imprensa esportiva comeou a ganhar destaque apenas na dcada de 20 do sculo passado. Outro indcio da resistncia ao novo tema oferecido pela academia norte-americana. As pesquisas sociolgicas ou de comunicao, como seria de esperar num pas onde elas ocorrem com freqncia, so raras nessa rea. No Brasil, at escritores brasileiros renomados, como Graciliano Ramos3 e Lima Barreto4, viam no futebol uma importao desnecessria de valores estranhos pauta e combatiam o ludopdio, como denominavam o esporte. O incremento do jornalismo esportivo se deve em razo da nfase que a sociedade passou a dar s atividades fsicas e que levou cada vez mais as pessoas a praticarem esportes5. Por causa dessa expanso, muitos leitores de pginas esportivas so corrosivamente crticos, pois cada um se julga um

3

RAMOS, Graciliano. Linhas Tortas. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1976. P. 82 BARRETO, Lima. Feiras e Mafus. So Paulo: Brasiliense, 1956. 5 VINNAI, Gerhard. El Ftbol como ideologia. Madri: Siglo Veintiuno, 1974. p. 32.4

2

expert de seu esporte e clube favorito. Cada erro de um redator esportivo flagrado com rigor, com o agravante de que a paixo dedicada modalidade ou ao clube agrava o sentimento de revolta deste leitor implacvel contra o jornalista supostamente desinformado. Ainda assim, igualmente como atividade menor dentro da imprensa brasileira, o esporte foi achando seu espao, consolidado com a chegada do profissionalismo no futebol em 1933. A Gazeta j fazia sucesso com a publicao da pgina de esportes s segundas-feiras desde 1928, poca em que o precursor Jornal dos Sports j cumpria bem seu papel de promover o espetculo esportivo para conquistar mais leitores. Da chamada grande imprensa nacional, o jornal O Estado de S. Paulo foi o ltimo a dedicar poucas colunas ao futebol, poltica que viria a abandonar somente a partir dos anos 60, quando j no era possvel resistir, devido ao impacto proporcionado no pblico pela conquista do primeiro ttulo mundial de futebol pela seleo brasileira em 1958. A imprensa esportiva nacional desenvolveu-se, assim, a partir da percepo dos empresrios de que aquele tema interessava a um grande nmero de leitores, mas este processo lento ainda est em curso, observandose hoje uma tendncia de valorizao extrema do esporte mediante as necessidades de ampliao das vendas por parte dos veculos, dentro da lgica comercial do lucro. O enigma que se coloca hoje para a classe empresarial da comunicao como uma das sees mais lidas dos jornais atraem to poucos anunciantes, talvez como reflexo do perfil de jornalismo inferior ou alienante dentro do jornal-padro, como ser visto posteriormente. Desta imprensa esportiva se servem, com o objetivo de divulgao pessoal, os dirigentes dos clubes, chamados pejorativamente de cartolas,6 por sua identificao com o objeto que simbolizava o poder, na poca do fortalecimento do futebol como esporte de massas. O peso do cartola foi

6

NOGUEIRA, Armando. A ginga e o jogo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003. p. 157-158.

3

melhor definido pelo pensador do futebol Nenm Prancha7. Ele estabeleceu um paralelo entre o lance mais radical do esporte e o poder do dirigente: o pnalti to importante que quem devia cobrar era o presidente do clube 8 Dirigido por personalidades constantemente envolvidas em fatos ilcitos, mas que revelam habilidade incomum em permanecer no poder, o ambiente esportivo, em flagrante paradoxo, remete instigante frase de Albert Camus, pensador franco-argelino que jogou como goleiro: ... o que eu sei de mais certo sobre a moral e os homens, devo ao futebol.9 As controvertidas personalidades chamadas cartolas so contempladas com inegvel ascenso social, notadamente no decorrer deste processo de simbiose de suas atividades desportivas com o espao concedido pela mdia. Na Bahia, como craque da arte de identificar suas pretenses polticas com a capacidade de conquistar ttulos pelo Bahia, um especialista neste mister, o ex-policial Osrio Vilas Boas fez uma escola que resultou em alunos aplicados at os dias de hoje, transformando a carreira de vereador em um projeto de vida. Falecido em 2002, Osrio admitia seu talento na arte de persuadir os eleitores-leitores-torcedores, como pode ser designado o novo ser, por assim dizer, criado pela mdia esportiva: a partir de 1954, quando assumi a direo do Bahia e o popularizei, consequentemente meu nome ficou sendo mais conhecido e isto ajudou, claro que sim, para que me reelegesse vereador em 195410 O dirigente tem como rival nos anos 60, o rubro-negro Ney Ferreira, cujos mtodos de presso sobre a imprensa so, at os dias de hoje,Revelador de talentos para o futebol nas praia do Rio de Janeiro que se notabilizou pela produo de conceitos e frases de efeito sobre o ambiente esportivo, tornando-se referncia no setor. 8 ZAMORA, Pedro. Assim falou Nenm Prancha. Rio de Janeiro: Editora Crtica. 1975. p. 32. 9 ZAMORA (1975) p. 33.7

4

comentados pelos torcedores mais velhos. Raimundo Rocha Pires e Jos Rocha so outros cartolas que seguem esta tradio nos anos seguintes. O poder do Ba-Vi, como se denomina a rivalidade entre os grandes clubes de maior torcida baiana, Bahia e Vitria, no jornalismo esportivo impresso tem como principais herdeiros da tradio de Vilas Boas e Ferreira, os dirigentes Paulo Maracaj, hoje conselheiro do Tribunal de Contas dos Municpios, depois de vrias eleies como vereador e deputado estadual, e Paulo Carneiro, idem. No Bahia, vem se fortalecendo tambm uma nova linha de sucesso: Marcelinho Guimares, filho do presidente atual, deputado estadual Marcelo Guimares, foi eleito vereador, e hoje deputado federal, tendo se empenhado para ampliar bases eleitorais entre os torcedores do Bahia, embora trabalhe com mais freqncia junto ao pblico da pennsula de Itapagipe, subrbio de Salvador, pois j desenvolvia carreira poltica antes de chegar ao poder no clube. possvel observar, em uma anlise das informaes sobre a gnesis da imprensa esportiva no Brasil, no final do sculo passado, como o perfil do cartola foi se modificando. No incio, era o prprio atleta quem organizava os clubes. Mas no momento em que uma mdia especializada apresenta entre os diferenciais, a capacidade de veicular emoes, ao publicitar os resultados dos jogos entre os clubes e comentrios sobre o desempenho de dolos das multides, o cartola tambm passa a se modificar, ganhando mais poder nos clubes e, em conseqncia, uma maior visibilidade na pgina esportiva. O fenmeno aumenta de interesse quando se percebe que, do ponto de vista da histria, o futebol , desde sua origem, gerador de elementos de contradio capazes de provocar alteraes profundas em sua estrutura. Conhecido como esporte breto, por sua raiz inglesa, o futebol se consolidou na sociedade, permitindo o acesso dos trabalhadores a sua prtica, deixando a plebe de formar apenas a assistncia para se transformar em protagonista do espetculo. neste contexto de multiplicao de mitos via microfones e folhas de papel impresso que comea a se firmar a categoria do cartola, que passou do perfil de empresrio capaz de tirar dinheiro do bolso10

VILLAS-BOAS, Osrio. Futebol, Paixo e Catimba. Salvador. 1973. p. 22

5

para bancar o esporte para o de desconhecido capaz de construir carreira poltica, depois de obter a simpatia do pblico esportivo.

2. Escolha do campo e a classificao do estudo Nos procedimentos de pesquisa que exige aos seus orientados do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas da Faculdade de Comunicao (Facom) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o professor Elias Machado destaca a necessidade de se oferecer, ao final da dissertao, uma nova luz sobre o tema trabalhado, uma contribuio compreenso do tema em estudo, como forma de justificar o esforo pela produo conceitual, razo de ser da academia, no entender de Machado. Em relao seleo do tema, ele sugere que se busque o repertrio de idias em trs reas distintas: a experincia particular do mestrando; o setor profissionalizante de interesse do pesquisador; e uma problemtica social mais ampla e de cuja abordagem no se tem ainda grande profundidade. Foram estes princpios que serviram de diretriz para este trabalho. De fato, no momento do incio dos estudos de Ps-graduao na Facom, em novembro de 2000, o autor trouxe para o ambiente acadmico uma experincia de 18 anos na rea do jornalismo esportivo, pela atividade seqencial na edio de esportes dos extintos Bahia Hoje e Jornal da Bahia, bem como de revistas e jornais de agremiaes desportivas, como Vitria!, do Esporte Clube Vitria, e Bola Oficial, da Federao Bahiana de Futebol, onde exerceu a atividade de assessoria de imprensa. Essa experincia acrescentada de reprter esportivo do Correio da Bahia, Tribuna da Bahia, A Tarde, Agncia Estado, Jornal da Tarde e jornal O Estado de So Paulo. Mesmo em um jornal voltado para economia e negcios, como foi o caso do perodo em que o autor editava a Gazeta da Bahia, encartada na Gazeta Mercantil, a ateno com o tema esportes se justificou com a realizao de pginas temticas envolvendo negcios e o marketing esportivo. E no momento de concluso da dissertao, o convite para chefiar a equipe de esportes do jornal A Tarde e a criao do tablide dirio A Tarde Esporte Clube deu prosseguimento a esta trajetria iniciada em 1985 dentro do ambiente do jornalismo de esportes nos meios impressos baiano e paulista. O 6

reconhecimento devido a premiaes de reportagem11, nos principais concursos realizados na Bahia, alguns deles de mbito regional, bem como as promoes verticais e em espiral12, sinaliza a dedicao com que o autor se prope a levar adiante o projeto de fazer um jornalismo esportivo de qualidade. O jornalismo esportivo se apresenta como rea profissionalizante de intenso interesse. Levando em conta a importncia social do jornalista e do futebol em uma sociedade como a brasileira no se tem qualquer dificuldade em afirmar que foi atingida tambm a segunda das trs fontes de idias indicadas pelo professor da Universidade Federal da Bahia. Havia, portanto, toda uma articulao natural que se pode considerar uma tendncia para se decidir a realizar um trabalho envolvendo a atividade jornalstica no ambiente esportivo. Mas a deciso somente pde ser tomada depois de ter sido vislumbrada a certeza de se ter realmente como oferecer uma contribuio nova ao campo da comunicao. Esta certeza s veio com a constatao de que rara a bibliografia brasileira sobre o tema, e mesmo no exterior, o que h so obras editadas em poucos pases, como Frana, Espanha, Canad e Estados Unidos. Mesmo assim, a literatura permanece em grande parte restrita a informaes sobre tcnica, histria e regulamento. A vida de desportistas ou jornalistas importantes vem merecendo a preferncia dos escritores bem como as coletneas de artigos e crnicas sobre as diversas modalidades esportivas. A abordagem terica sobre o trabalho especializado do jornalista esportivo se encontra em raros captulos de livros13.Premiaes oferecidas em concursos administrados pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado da Bahia (Sinjorba), em parceria com grandes empresas, representam momentos marcantes do reconhecimento da categoria aos melhores trabalhos do jornalismo impresso baiano. Entre os mais representativos, conquistados pelo autor, destacam-se o Prmio Racimec Norte/Nordeste de 1988 com a matria A fora do plim-plim, Prmio Comit de Fomento Industrial de Camaari de Informao esportiva de 1988, matria Garibaldo est doente, e 1989, Futebol de Mesa Livre de Preconceito, as trs pela Tribuna da Bahia. Prmio Banco do Brasil 2001, matria Mercado baiano se abre para a fora do tnis, Gazeta Mercantil. Foi ainda meno honrosa no Prmio Banco do Brasil em 1999, Convnio auxilia clube a virar empresa, pela Folha de S. Paulo, e 2000, Uneb capacita administrador para gesto esportiva, publicada na Gazeta Mercantil. Foi o editor nas duas vezes em que uma matria de Esportes conquistou o prmio mensal da Associao Bahiana de Imprensa (ABI): O amor (rubro-negro) cego, reprter Dilton Cardoso, Jornal da Bahia, fevereiro de 1990, e Povo improvisa para no deixar o baba morrer, reprter Alan Rodrigues, Bahia Hoje, janeiro de 1994. Prmio nacional Bola de Ouro 1994 como editor de Esportes do Bahia Hoje. 12 RIBEIRO, Jorge. Sempre Alerta. So Paulo: Brasiliense. 1984, p. 102-104. 13 ERBOLATTO, Mrio. Jornalismo especializado. So Paulo: Atlas. 1981, p. 13-30. E BELTRO, Luiz. A imprensa informativa. So Paulo: Folco Masucci. 1969, Pp. 339-352.11

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Mas este quadro de abstinncia acadmica em relao ao esporte j mostra sinais de mudana. Na universidade espanhola, h um movimento para garantir ao jornalista esportivo um preparo profissional especializado14. A preocupao com o estilo deste jornalismo altamente especializado tambm j vem inspirando pesquisadores15. No Canad, o meio acadmico vem evidenciando avanos na absoro do jornalismo esportivo enquanto tema de estudo imprescindvel na contemporaneidade16. Na Frana, uma das principais publicaes voltadas para o jornalismo dedicou uma de suas edies mais recentes para o tema17. J na universidade brasileira, pelo menos at a concluso deste trabalho, foi registrado um exemplo isolado de dissertao de mestrado ou tese de doutorado concluda ou em andamento sobre o relacionamento entre jornalismo esportivo e dirigente de clube, apresentada em 1981, na Universidade de So Paulo, apesar de o futebol, como linguagem e fenmeno social, j ter merecido profundas abordagens acadmicas. Em So Paulo, o professor Ouhydes Fonsca esta grata exceo, ao abordar tema similar ao deste trabalho em sua dissertao O cartola e o jornalista (Influncia clubstica no jornalismo esportivo de So Paulo). No seu estudo, Fonsca (1981) aborda o relacionamento do jornalismo esportivo de So Paulo com as principais fontes de informao: atletas, tcnicos, dirigentes de clubes e entidades esportivas. O professor traa ainda uma trajetria desde as origens do esporte como auxiliar na luta pela sobrevivncia humana, atividade de lazer e como competio amadora ou profissional que levou os veculos de divulgao coletiva a se interessar pelo fenmeno. Tomando do professor Ouhydes este ponto de partida para reiniciar, 20 anos depois, a abordagem desta temtica especfica e tentar acrescentar contribuies compreenso da estrutura e funcionamento do ambiente esportivo impresso, tendo como cenrio os jornais impressos de Salvador e o relacionamento dos jornalistas com as fontes dirigentes de clubes na Bahia. No momento de concluso do trabalho, foi tomado como sinal de fortalecimento do tema nos cursos de Comunicao de nvel superior, a criao das cadeiras de Jornalismo Esportivo, naLOPEZ, Antnio. Como hacer periodismo deportivo. Madrid: Paraninfo. 1993. ALONSO, Nstor. El Lenguaje de las crnicas deportivas. Madrid: Ctedra. 2003. 16 LOWES, Mark. Inside the Sports Pages. Toronto: University of Toronto Press. 2000. 17 Revista Cahiers du jornalisme nmero 11. Decembre, 2002. Journalism Sportif: Le Dfi Ethique cole Superiore de Journalism de Lille.15 14

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Faculdade Social da Bahia, e Comunicao e Esporte, nas Faculdades Jorge Amado, ambas sediadas em Salvador. A preocupao mais intensa, no incio, era situar a atividade do jornalista esportivo em meio ao universo da comunicao de massa, constatar a extenso de sua relevncia, como se d sua evoluo e de que forma ele se cristaliza como agente de especializao dentro do jornalismo. Pela percepo que a vivncia traz, sabido que o jornalismo esportivo vem sofrendo mutaes nas duas ltimas dcadas em Salvador, mas quais foram as causas deste fenmeno? Quando estas alteraes teriam ocorrido? Quem ou o qu as teriam provocado e se ainda esto gerando as mudanas? Quais seus efeitos sobre a profisso, o veculo e o leitor e at onde elas podero ocorrer? No entanto, tornara-se necessrio estabelecer o recorte sobre o tema, o que significava evitar abordar o jornalismo esportivo em todas as suas inmeras ramificaes, ou cair no mero servio arquivstico de pesquisar a histria da atividade na Bahia, pois estas duas opes tornariam o trabalho incuo. Nesse recorte, portanto, foram descartados os meios eletrnicos de comunicao, focando a ateno no jornalismo impresso, com destaque para os jornais dirios que so editados em Salvador. Desta forma, buscou-se confirmao para a principal hiptese deste trabalho, qual seja, a de que o jornalista esportivo, em maior ou menor escala, vem ampliando a autonomia do noticirio em relao fonte representativa do clube, ou o dirigente esportivo candidato a cargo eletivo. Embora no se deva vincular em uma relao de causa e efeito, a derrota dos cartolas nas ltimas eleies coincide com a reduo no nmero de inseres nas pginas de esporte desta polmica figura do futebol brasileiro, o que poderia motivar novos trabalhos com esta temtica, apesar de ter sido extinta nesta ltima dissertao a linha de pesquisa Mdia e Poltica do Programa de Ps-Graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas da Faculdade de Comunicao (Facom) da UFBA. Para iniciar a compreenso do ambiente a ser estudado neste trabalho, vale a pena abordar uma questo que sempre esteve em discusso no jornalismo esportivo. uma inquietao bsica que parece se complicar medida em que se tenta explicar. O jornalista esportivo deve ter clube de

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preferncia? Pode este profissional pago para reproduzir a realidade esportiva em um discurso noticioso utilizar-se do direito cidado de ter um clube para torcer? O jornalista esportivo tem sempre um clube de preferncia, mas o problema decidir se quer deixar evidente tal preferncia. No h consenso sobre o tema. Entre os jornalistas, existem os que preferem ficar em segredo, alegando que este sigilo garante a imagem de imparcialidade perante o pblico. So os que se anunciam torcedores de times de pequena torcida, como Galcia, Ypiranga e Botafogo, na Bahia, ou preferem aderir a times de outros estados, a exemplo de Palmeiras, em So Paulo, e Fluminense do Rio de Janeiro. Mas outros preferem se declarar apaixonados por algum grande clube local, Bahia ou Vitria, acreditando que a omisso da informao ser uma mentira e isto afetaria mais a sua credibilidade. Pesquisa realizada entre os integrantes das editorias de esportes baianos, em 22 de fevereiro de 2003, revelou 100% de adeptos de clubes (Figura 1), em alguns casos, com preferncia mista por times locais e de outros estados.

4BAHIA

3 2 1 0

VITRIA PALMEIRAS SO PAULO CORINTHIANS FLUMINENSE (RJ) GALCIA YPIRANGA BOTAFOGO (BA) FLAMENGO

A TARDE

CORREIO

TRIBUNA

Figura 1 Times para os quais os jornalistas esportivos baianos de meio impresso afirmam torcer. Informaes coletadas em amostragem realizada na tarde de 22 de fevereiro de 2003 com os jornalistas que estavam a servio, nas redaes, nesse dia.

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A partir desta amostragem, foi possvel identificar trs tendncias: a) jornalistas que assumem torcer por um grande clube local e preferem ser honestos em expor sua preferncia, embora saibam que o custo das cobranas por parte dos leitores maior, pois sempre esto sendo questionados por sua imparcialidade em constante dvida, e ao menor indcio, passam a ser vistos como agentes de favorecimento a determinados times em detrimento de outros; b) jornalistas que dizem torcer por pequenos clubes locais e acreditam, com esta definio, construrem um escudo protetor imaginrio no qual garantem a exigida imparcialidade para o exerccio profissional, embora sintam-se acusados de enganar o pblico e os colegas que consideram estapafrdias ou sempre sob suspeita a identificao com os times de menor expresso e em processo de extino ou j extintos; c) jornalistas que afirmam torcer por grandes clubes de fora do estado e que na mesma construo realizada pelos jornalistas do item b, acreditam erguer uma cortina de fumaa imaginria para que no sejam cobrados de suas reais preferncias, mantidas em sigilo ou com maior discrio, embora sempre questionados pelos motivos que os levam a gostar de um time de fora do ambiente esportivo baiano, em flagrante contradio com uma viso regionalista que impera no meio, segundo a qual o jornal local tem de defender e noticiar com nimo positivo os assuntos dos times do estado em oposio aos de fora. Esta problemtica central nas preocupaes deste trabalho, uma vez que o amor do reprter por um determinado clube poder tambm envolv-lo de forma arriscada com seus diretores. Como inevitvel conseqncia destas relaes perigosas, as influncias negativas sobre a tica prejudicariam a qualidade da informao levada ao pblico. Ao definir o campo especfico desta pesquisa como complemento prtico a este trabalho, ficou entendido que seria mais importante estudar a questo da influncia que o jornalista sofre e exerce na convivncia com o cartola. Deve-se fazer a ressalva de que as influncias, cuja reciprocidade no pode ser descartada, no so sempre ms, bem como no se pode generalizar a fama negativa construda pelas atitudes polmicas da maioria dos cartolas. A tarefa deste trabalho se concentra, alm de situar o papel do jornalismo e do jornalista esportivo, em confirmar se h essa influncia, e de tal forma, que 11

possa ser identificada por meio dos textos publicados nos jornais, entrevistas com os atores da cena esportiva e a observao no cotidiano profissional. Mas como atividade humana de volume intenso de contradies, torna-se impossvel definir frmulas ou categorias que possam ser abrangentes na plenitude desta problemtica, pois os jornalistas esportivos no conseguem achar respostas satisfatrias para a busca pela definio clubstica e como se posicionar diante do pblico leitor. 3. Objetivos e hipteses As colocaes feitas at aqui revelam, de forma clara e concisa, os objetivos e hipteses deste trabalho. Uma ampla consulta bibliogrfica complementada com entrevistas aos profissionais do meio impresso baiano e a observao sistemtica, materializada em anotaes dirias de comportamento e atitudes dos jornalistas e acervo de pelo menos 1,5 mil peas documentais, acumulado em quase duas dcadas de experincia profissional pessoal, possibilitou estabelecer como objetivos: 1. situar o jornalismo esportivo no contexto do campo jornalstico na Bahia, e 2. investigar a evoluo do jornalista esportivo como profissional de jornalismo.

Tais objetivos surgiram em razo de hipteses que as investigaes preliminares indicaram e que parecem ser lgicas. So elas: a) o jornalismo esportivo uma das principais especializaes do campo jornalstico, e b) o jornalista esportivo hoje melhor preparado tcnica e culturalmente que em pocas anteriores. Numa segunda etapa da pesquisa, foram trabalhadas as anlises de contedo e de morfologia18 elaboradas sob a perspectiva histrica de um fato18

MARQUES DE MELO, Jos. Jornalismo comparado. So Paulo: Pioneira. 1972. p.23-31.

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poltico caracterizado, como as eleies realizadas em 1982, 1986, 1990, 1994, 1998 e 2002, e nas quais se envolveram cartolas ligados aos principais clubes baianos, Vitria e Bahia, quais sejam, Paulo Roberto de Souza Carneiro e Paulo Virglio Maracaj Pereira. Para esta fase, foram definidos os seguintes objetivos: 1. identificar a influncia do cartola e seu reflexo no relacionamento com o jornalista, e 2. analisar a relao do cartola com o jornalismo esportivo na Bahia. Foram trabalhadas as seguintes hipteses: a) o jornalismo e o jornalista esportivo exercem e sofrem influncia dos cartolas em uma situao com ora de antagonismo, destes dois ora de complementaridade, nuances extremos,

identificveis por meio da leitura dos veculos impressos, e b) a influncia do cartola no resultado do jornalismo esportivo impresso na Bahia vem sendo reduzida, ao passo em que aprimorada a formao do profissional do setor.

4. Metodologia de trabalho O grau de comprometimento do jornalista esportivo com os cartolas foi aferido por meio de uma anlise de contedo ou estudo de mensagem dos textos esportivos sobre futebol nos principais jornais baianos, A Tarde, Correio da Bahia, Tribuna da Bahia, e quando ainda estavam em circulao, Bahia Hoje e Jornal da Bahia, alm do estudo de perfil dos profissionais de meio impresso na Bahia, que constituem o corpus do trabalho, realizado a partir de questionrios aplicados aos jornalistas das redaes de Salvador (Anexo 1). A escolha dos jornais foi determinada pelo fato de serem os de grande circulao, ainda que a tiragem de A Tarde tenha sido sempre superior a de todos os outros juntos em todos os perodos. Os cinco refletem formas similares de fazer jornalismo esportivo, embora apresentem tambm suas

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peculiaridades: A Tarde refletia um comportamento excessivamente sbrio em busca de transmitir uma aparente neutralidade no noticirio, uma caracterstica de todas as suas sees at o final dos anos 90; o Correio da Bahia se tornou porta-voz dos interesses polticos do grupo que controla o jornal e mesmo na pgina de esportes, reproduzia esta inteno de dar visibilidade aos cartolas integrantes de sua corrente; a Tribuna da Bahia mistura uma tendncia oposicionista latente s necessidades de sobrevivncia; o Bahia Hoje e o Jornal da Bahia exerciam uma independncia menos calculada e talvez por isso mesmo, no estejam mais circulando. Os cinco jornais abarcam todo o espectro de receptores, indo desde o leitor das classes sociais melhor situadas at o das mais baixas, embora o pblico pagante seja mais restrito aos leitores de maior poder aquisitivo. Dessa forma, seria possvel testar as hipteses de maneira a mais abrangente possvel. Escolhidos os veculos a serem estudados, partiu-se para a definio de um tema apropriado, j que seria impossvel, no perodo de dois anos, trabalhar sobre uma temtica aberta, de assuntos gerais, pois ficaria impraticvel tabular elementos pinados a tantos textos diversos. Foi definida, portanto, a cobertura dos perodos pr-eleitorais em seis etapas: 1982, 1986, 1990, 1994, 1998 e 2002. Alm destes perodos definidos, os estudos de onde se extraiu estas hipteses e concluses foram feitos a partir da leitura de edies de jornais e revistas em pocas diversas, alm da coleo de textos produzidos pela assessoria de imprensa da Federao Bahiana de Futebol (perodo entre abril de 1995 e fevereiro de 1997), o jornal da FBF, Bola Oficial, entre 1996 e 1999, e a revista Vitria!, do Esporte Clube Vitria, de 1996 a 1999. Entre as colees pesquisadas, nesta mostra que pode ser considerada aleatria, esto o Correio da Bahia, de janeiro a dezembro de 1986, maro de 1995 a fevereiro de 1998; Tribuna da Bahia, de janeiro de 1987 a outubro de 1989, maro de 1995 a fevereiro de 1998; jornal A Tarde, agosto a outubro de 1989, maro de 1995 a fevereiro de 1998, janeiro, fevereiro, maro, junho de 2002 e maio de 2003; Jornal da Bahia, de setembro de 1989 a novembro de 1990; Bahia Hoje, de abril de 1993 a dezembro de 1994; a coleo completa da Revista Placar, a mais importante publicao esportiva do pas, entre 1970 e 2001, e o material 14

distribudo pela Agncia Estado ou publicado na pgina de esportes do jornal O Estado de So Paulo, entre 1990 e 2002, com foco no trabalho dos correspondentes de Salvador. Foram analisados textos, desde matrias menos importantes at as manchetes de caderno, com foco para o contedo relacionado ao noticirio esportivo detalhado a partir dos critrios adotados neste trabalho para identificao do perfil das editorias de esporte. A edio do texto foi avaliada para verificar desde o contedo dos discursos ao posicionamento da matria na pgina concluda. O aspecto visual ou grfico no parece ter tido influncia decisiva na seleo do noticirio, embora sua relevncia na valorizao ou no de determinados contedos no possa ser minimizada. A significncia se verifica ainda na intensidade do interesse pelo ngulo local ou proximidade do tema com a regio onde o veculo presta o servio jornalstico. Na aplicao destes critrios de identificao da notcia esportiva, coletados na anlise do discurso noticioso, ao funcionamento de uma editoria de esportes, pode-se testar como hiptese a pertinncia destes itens na elaborao do cardpio dirio oferecido ao consumidor da pgina. O contedo do noticirio sinalizador da utilizao dos princpios abordados, mas necessria a observao dos jornalistas em campo para se comprovar ou no se atendem ao que se pretende estabelecer como valores norteadores do jornalismo esportivo, como ser visto ao longo desta dissertao. 5. Organizao da dissertao No primeiro captulo, ser estabelecido o posicionamento da imprensa esportiva na Bahia dentro do contexto geral do jornalismo praticado no Estado e no Brasil, como forma de identificar as peculiaridades que compem o ambiente regional da prtica jornalstica de noticirio esportivo. A seguir, no captulo II, ser revelado o perfil bsico de uma editoria de esportes da Bahia como ncleo produtor de talentos para o jornalismo por ser considerada uma escola de base, a partir da absoro de mo-de-obra de iniciantes ou focas, como se costuma chamar, no jargo das redaes.

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No terceiro captulo, identificado o funcionamento das hierarquias e o jogo de poder dentro de uma editoria de esportes da Bahia, a partir do estudo do relacionamento entre editores, reprteres, fontes e dirigentes das empresas de jornal. J no captulo IV, a vez de se observar os efeitos da frico entre a redao de jornal, e dentro dela, a editoria de esportes, e outros setores vizinhos, como o parque industrial, a publicidade e o marketing, para da se extrair uma noo a mais prxima possvel da realidade de dificuldades oriundas do impacto dos prazos na organizao da editoria. Depois de delineado o perfil, o jogo de interesses e as dificuldades operacionais da editoria de esportes, o captulo V dedicado ao processamento da notcia esportiva e suas peculiaridades, como a delimitao dos ambientes onde o jornalista vai captar a matria-prima de seus textos, e as formas de proceder o servio, dentro dos prazos e dos critrios exigidos. O captulo VI aprofunda duas ocorrncias registradas no anterior e elaboradas a partir dos conceitos de hiperfonte, ou seja, aquela fonte com a qual o jornalista esportivo obrigado a se relacionar com freqncia, e o sistema de auto-pauta, construdo a partir dos desgastes gerados por este relacionamento e a conseqente necessidade de extrao diria de informaes para a redao das matrias. Por fim, o stimo e ltimo captulo dedicado a esmiuar a relao entre o jornalista e o cartola, com a identificao de categorias e formas de atuao das duas partes, analisadas a partir de um ponto de vista de complementaridade e disputa entre ambas, e no de predomnio esttico absoluto de um campo sobre o outro.

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CAPTULO I - A IMPRENSA ESPORTIVA NA BAHIA: O PONTAP INICIAL

O jornalismo esportivo impresso na Bahia foi se transformando medida em que se diferenciava, graas importncia crescente obtida junto comunidade, a partir do incio do sculo passado. O futebol impulsionou a prtica do esporte coletivo, at ento limitado ao prazer de grupos isolados adeptos de modalidades consideradas de bom gosto, mas de pblico restrito como o turfe, o cricket e a regata. Na Bahia, como em outros Estados, embora tenha se iniciado no ambiente da burguesia, o futebol, ou o esporte breto, por ser originrio da Gr-Bretanha, rapidamente conquistou as multides19. Logo, tornou-se um meio de fortalecimento de jornais e revistas por uma questo de mercado, pois passou a ser um tema fcil de ser consumido por leitores cada vez mais vidos por conhecer, repercutir e ressaltar o desempenho de seus dolos, os jogadores. O nmero de publicaes esportivas no Pas cresceu de 5 em 1912 para 58 em 1930, uma expanso de 1.060%, a maior registrada entre todos os itens de jornalismo especializado.20 Nos primrdios do esporte enquanto evento de projeo social no pas, no sculo XIX, so eventuais as referncias nos jornais da poca sobre a realizao de jogos ou competies ou mesmo encontros entre pessoas para prtica de alguma modalidade. O esporte sofria e ainda hoje sofre crticas das camadas mais intelectuais da sociedade. Os desportistas eram ridicularizados. O futebol era tido como atividade pouco socivel e compatvel com o perfil deSANTOS, Joel. Histria Poltica do Futebol Brasileiro. So Paulo: Brasiliense. 1981. p.1618. 20 SUSSEKIND, Hlio Carlos. Futebol em dois tempos. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1996. p.22.19

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homens rudes e de pouca instruo

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. A cavalhada, esporte medieval herdado

de Portugal, a regata, tida como nobre e praticada pelos jovens abastados, merecia pouca ateno, ou era noticiada em tom do que se convencionou chamar hoje coluna social, destacando grandes feitos dos heris da burguesia local ou da numerosa colnia inglesa que, poca, habitava Salvador. Nenhum espao se verifica para o ainda extico futebol, mesmo porque provavelmente era praticado de forma precria e espordica, nas praias, por jesutas ou operrios ingleses22. No havia notcia em se falar de um jogo em que as pessoas saam correndo atrs de uma bexiga de boi costurada ou uma bola improvisada de pano, de forma agressiva e pouco civilizada. Os jornalistas da virada do sculo XIX para o XX davam ao recente noticirio esportivo um tom de fait-divers23. As notas esportivas apareciam misturadas ao noticirio geral, tornando o aparecimento tardio da crnica dedicada ao esporte um indcio para este setor ser considerado um filho bastardo do jornalismo24. O que mais se aproximava da noo de esporte e tinha espao nos jornais eram jogos de salo e passatempos que a juventude preferia, a exemplo da cabra-cega e do chicotinho-queimado, entre outras brincadeiras25. A capoeira, praticada pelos ex-escravos e operrios, era discriminada e associada marginalidade. O que tornou o futebol noticivel e, por tabela, fortaleceu a busca de notcias de outros esportes pelos leitores nas pginas dos jornais foi a chegada das primeiras bolas de couro, trazidas da Europa em 28 de outubro de 1901, pelo jovem Jos Ferreira Jnior, o Zuza, que foi enviado para a Inglaterra pelos pais, por causa da dificuldade de enquadrar o rapaz no que eles consideravam uma educao decente26. A represso dos pais a um jovem rebelde, que se recusava a ser bonzinho, acabou criando o futebol na Bahia, e consequentemente, gerando as primeiras notcias de jornal, embrio do que hoje se denomina imprensa esportiva.21 22

FONSCA, O. (1981) p. 14. CADENA, Nelson. O futebol e a mdia. Correio da Bahia, 28/10/2001 23 LAGE, Nilson. Linguagem jornalstica. So Paulo: tica. 1987. p. 46. 24 FONSCA, O. (1981) p. 18. 25 Acervo da famlia Catharino, Salvador

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Zuza trouxe, alm da bola de couro, a bomba e a agulha de encher aquela ferramenta to inovadora quanto atraente e que reunia os rapazes para os primeiros babas, como o jogo passou a ser conhecido, no cotidiano vulgar das competies realizadas no Campo da Plvora, assim denominado por ter sido um fortim onde se guardava o arsenal nos tempos do Brasil Colnia. Antes se chamava Campo dos Mrtires, rea de execuo de revoltosos contra o jugo portugus. Foi l que explodiu o desejo popular de se correr atrs da bola e, na seqncia destes passes rpidos da histria, o jornalismo esportivo veio ocupar um espao vago, diversificando o noticirio para o pblico leitor. O batizado do futebol, nos idos de 1901, mereceu a estria do jornalismo esportivo, por meio de Alosio de Carvalho, redator do Jornal de Notcias, capaz de compreender a importncia da nova pauta, ao perceber a multido que se avolumava em redor do gramado, s para apreciar o quicar do balo de couro, como a bola tambm era chamada, em sua estria no Campo da Plvora. O assunto foi tratado em tom de curiosidade, como fait-diver27. Nesta poca, jogar futebol era uma atividade de projeo social entre os jovens privilegiados que dispunham de uma bola. Para se ter uma idia do requinte com que o jogo foi tratado, em contraste com o silncio quase absoluto dos jornais, os jogadores eram avisados em ofcios, escritos em tipos clssicos de letra, m uma linguagem erudita, como se fosse um convite para uma festa de alta sociedade28. A curiosidade dos baianos pelo novo jogo extrapolava os crculos fechados dos jovens ricos. Como ningum conhecia as regras direito, e as bolas improvisadas comearam a se multiplicar em vriosInformaes prestadas pelo bisneto de Zuza, Bayma Ferreira, em depoimento ao jornalista esportivo Paulo Csar Lafene, documentrio 100 anos de futebol na Bahia, Programa TV Revista, exibido pela TV Bahia no dia 28 de outubro de 2001. 27 CADENA, N. (2001). 28 PROTSIO, Fernando. Um menino de 84 anos. Salvador: produo independente, 1984.Tomo por base, neste livro, uma srie de documentos histricos relativos fundao do Esporte Clube Vitria, pioneiro no desporto baiano. O texto relaciona a evoluo dos clubes prtica do futebol no estado da fase gestacional do futebol, expresso utilizada pelo professor Gilmar Mascarenhas, em sua tese de doutoramento pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Os Esportes e a Modernidade Urbana: o Advento do Futebol no Brasil. Eis um exemplo de texto de convite para uma partida de futebol nesta fase gestacional: Bahia, 22 de junho de 1903/ ilustrssimo senhor: Temos a honra de convidar-vos para uma partida de football que se realizar no prximo domingo, 28 do corrente. Caso no possais comparecer referida partida, pedimos o obsquio de avisar-nos at o dia 25 do corrente. LUGAR Campo dos Martyres. HORAS 4 horas da tarde. VESTIMENTA Camisa verde e amarela (verde do26

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pontos da cidade, o futebol comeou a criar um problema de ordem pblica, devido s queixas dos transeuntes e proprietrios de casas e estabelecimentos comerciais contra os primeiros futebolistas baianos, que saam correndo desvairados, atrs das bexigas de boi, substitutas das bolas de couro, um privilgio dos jovens bem-nascidos, amigos de Zuza Ferreira, morador em um sobrado do Largo de Santana, no bairro do Rio Vermelho. O resultado que o futebol ganhou espao na incipiente mdia impressa da poca, primeiro como informao policial, devido s queixas dos cidados, diante do jogo extico capaz de apaixonar os baianos na mesma medida em que causava uma srie de transtornos. A Intendncia Municipal, estrutura antecessora da atual prefeitura, publicou uma nota no dia 1 de agosto de 1904, dando conta dos locais onde o futebol poderia ser disputado29. O estdio Arthur Moraes, que ficou mais conhecido como Campo da Graa, sucedeu o Rio Vermelho, antigo hipdromo, e o Campo da Plvora, onde o futebol foi praticado de 1901 a 1916, at o prefeito Pimenta da Cunha proibir o esporte em vrios pontos da cidade, colocando desportistas novamente na clandestinidade30. Neste perodo, a criao da Liga Bahiana de Desportos Terrestres, com a funo de organizar a prtica do futebol, fenmeno tpico da era moderna, aproveitou o impulso dos campos improvisados em ruas e praas para promover competies cada vez mais forte e capaz de mobilizar multides31. A idia veio da colnia paulista reunida no So Paulo Clube, e teve aceitao imediata dos outros clubes, o Bahiano de Remo, o Internacional de Cricket e o Sport Club Victoria. Os dirigentes destas agremiaes, que eram tambm os seus jogadores, se reuniram no dia 15 de novembro de 1905 e criaram esta primeira liga, na rua da Palma, na Mouraria.

lado esquerdo e amarelo do lado direito), cala branca e meias at o joelho. KICK-OFF 4 horas e meia da tarde. (aa) Alberto Martins Catharino e Alvaro Tarqunio. 29 A Intendncia Municipal publicou nos jornais baianos, a 1 de agosto de 1902, a seguinte nota: O FOOT-BALL Resolvendo o pedido feito pela Secretaria de Polcia, sobre pontos onde possa ser efetuado jogo de foot-ball, sem prejuzo da propriedade particular, conforme reclamaes levantadas, a Intendncia Municipal designou os seguintes locais para realizar-se aquela diverso: Campo dos Mrtires, no Distrito de Nazar, Quinta da Barra, no Distrito da Vitria, Fonte do Boi, no Distrito de Brotas, Largo do Barbalho, no Distrito de Santo Antnio, e Largo do Papagaio, no Distrito da Penha 30 FERNANDES, Bob. Bora Baheeea! So Paulo: DBA Drea Books and Art. 2003, p. 21. 31 PROTSIO, F. (1984) p. 14.

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Como o esporte no mobilizava uma opinio pblica favorvel, em razo dos problemas das vidraas quebradas e do prejuzo s propriedades, a adeso dos jovens baianos do Corredor da Vitria se tornou um fator preponderante para afirmao do futebol e sua aceitao na sociedade baiana. De um lado, o futebol era vigiado e restrito a algumas reas da cidade, por determinao da Intendncia Municipal. De outro, servia de tema de encontro da juventude baiana, que tentava se afirmar diante da colnia inglesa, bastante influente na poca, como se pode demonstrar com a exclusividade da prtica do cricket, tolerando como eventuais substitutos os brasileiros nativos, nos jogos realizados em suas chcaras32. As festas motivadas pelo futebol ajudaram a quebrar a dificuldade inicial do novo esporte em se estabelecer como modalidade praticada na cidade. Estimulante da evoluo do esporte, enquanto capaz de mobilizar paixes, a rivalidade no futebol baiano comeou entre os brasileiros e os ingleses. A fundao do Vitria, em 13 de maio de 1899, teve esta motivao de oferecer aos jovens baianos a oportunidade de praticar esporte, no incio o cricket, que era vedado a eles pelos ingleses. No mximo, era permitido que brincassem com o basto, antes das partidas, o que levou os jovens burgueses do Corredor da Vitria a aprenderem as regras e desenvolverem tcnicas bsicas do esporte33, jogado com um basto e uma bola pequena. Na reunio de fundao, chegaram a discutir a possibilidade de o clube se chamar Brasileiro34, para firmar esta oposio aos estrangeiros. O Vitria realizou alguns treinamentos de verde e amarelo, mas a falta de material esportivo suficiente nestas cores fez com que o clube vestisse preto e branco, at que a influncia do Flamengo do Rio na seo de regatas definiu o vermelho e preto como a padro do clube35. A rivalidade entre ingleses e brasileiros pode ser constatada nos avisos de apresentao dos jogos. Por meio destes avisos, o jornalismo esportivo baiano, enquanto conjunto de tcnicas, saber e tica voltado para a captao de informaes, sePROTSIO, F. (1984) p.10. Idem, ibidem. 34 Nasce o clube dos brasileiros. Vitria!, a revista do Esporte Clube Vitria. Ano 3 Nmero 12 Maio de 1999. P.14. Publicao comemorativa do centenrio da agremiao.33 32

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antecipou afirmao da imprensa, como divulgao peridica de notcias por meio impresso em formato revista ou jornal36. Antes de a imprensa se consolidar no modelo capitalista, estes avisos e cartas particulares entre atletas e familiares transmitiram informaes entre os desportistas pioneiros. Estes documentos relatam custos de equipamentos esportivos, jogadas que causaram mais admirao, atletas de destaque e serviam como divulgao dos regulamentos dos esportes. Neste sentido, a transmisso de informao por meio de relatos orais pode ser considerada antecessora do jornalismo que depois viria a ser praticado. A divulgao de informaes por meio deste protojornalismo esportivo contribua para atrair pblico ao Campo da Plvora, a fim de assistir ao clssico da poca, disputado entre o Internacional, representante dos ingleses, e o Vitria, o time dos baianos. O Correio do Brazil, jornal distribudo com assinantes de Salvador, noticiou o jogo, realizado no dia 10 de julho de 1904. A lgica dominante ainda no era a da empresa de jornal, como estrutura econmica voltada para a distribuio e venda de material impresso. A linguagem estava livre da imposio da objetividade e o jornal pde torcer abertamente para os nossos, os brasileiros do Vitria, contra os deles37. O Vitria dos brasileiros pagou com a inexperincia a coragem de ter se insurgido contra o domnio da colnia britnica no esporte e perdeu o primeiro ttulo em 1905. No havia outro meio de comunicao capaz de concorrer com

Idem, ibidem. Os avisos eram distribudos entre os jogadores, conforme se pode comprovar neste convite que integra o acervo deixado por Jos Martins Catharino, descendente dos fundadores do Vitria, falecido em 2003: Football- Realisar-se-h no Domingo 28 do corrente uma partida de FOOTBALL entre Brazileiros e Inglezes, a qual ter logar no CAMPO DOS MARTYRES, devendo comear s 4 horas da tarde. Abrilhantar a partida uma banda de msica do Corpo policial, havendo tambm cadeiras disposio das Exmas. Famlias que a desejarem assistir.O Partido Brazileiro ser chefiado pelo Snr. Alvaro Tarqunio. O dos inglezes pelo Snr. T. E. Terry Morrell. Jogaro para os Inglezes os seguintes Senhores: S. Orr, R. de C. Steel e F.G. May; A. E. Gleig, J. A. Trower, T. E. Terry Morrell, E. Hugh Benn, C.Calver, R.Smith, A.S. Tomlinson, R. McNair. Referre Jos de Oliveira Teixeira.E para os Brazileiros jogaro os senhores: Aydano de Almeida, Jos Ferreira, J. Tarqunio, A. Gordilho, Monteiro, J. Pereira, A. Martins, Pedro Ferreira, Arthur Moraes, Alvaro Tarqunio e Luiz Tarqunio Filho. Sero Linesman para os inglezes J.P.W. Rowe. Para os Brazileiros, D. McNair 37 PROTASIO, F. (1984) p.13. Foi um jogo emocionante. Os brasileiros do Victoria fizeram muito esforo, mas acabaram derrotados pelos ingleses do Internacional. Os nossos perderam muitos pontos quase concretizados. Pelo menos, deveria ter terminado na igualdade. McNair e Douglas marcaram os pontos deles, um em cada tempo36

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os jornais, e o Correio do Brazil publica sob o ttulo de Festas-Football, o texto de cobertura da primeira partida oficial de futebol em Salvador38. Em 1906, logo no ano seguinte criao da primeira Liga, o Campeonato Baiano de Futebol passou a inspirar uma coluna de esportes, embora nem sempre fosse publicada pelo editor Jos Alves Requio, na Revista do Brasil39. A indstria grfica cresceu e o mercado jornalstico se diversificou40. Os reprteres sobreviviam da imprensa, mas ainda conviviam com os publicistas, como podem ser chamados os jornalistas identificados com os polticos que usavam os jornais para ganhar visibilidade para suas propostas junto ao pblico41. O texto deste perodo se referia mais ao comportamento, estado de nimo, a moda que vestiam as senhorinhas da melhor sociedade e os detalhes da assistncia em carruagens42. Em sua origem, o jornalismo esportivo tinha como pressuposto que o leitor j conhecia os detalhes daIN PROTASIO, F. (1984) p.19. Extraordinria a concorrncia, ontem, no Campo dos Martyres ao primeiro match anunciado para o Campeonato este ano, organizado pela Liga Bahiana de Sports Terrestres, entre os cinco clubes a ela filiados. Iniciaram o Sport Club Victoria e o Clube Internacional de Cricket. Seriam 4 horas, quando os dois teams, respectivamente uniformizados, sob o sinal do referee sr. Anibal Peterson, se puseram em movimento, sendo atacante o Vitria. Bonita foi esta peleja durante uns 15 minutos. Dizer-se qual o mais forte era temer errar, tal a percia com que ambos manobravam a bola. Mais arrojadamente o Internacional arremessou-se ao goal do seu adversrio o qual foi ento vasado pelo forward A. Hayne. Vindo a bola para o centro do campo continuou o jogo com mais ardor; a linha de forwards do Vitria numa investida terrvel havia uns 10 minutos, avanou sobre o goal do internacional o qual ia sendo vasado com um certeiro shoot dado por Pedro Barbosa, no fosse a esperteza do goal keeper. Mas, encontrou ele outro forward temvel, J. Tarqunio que com p seguro, marcou o primeiro gol para o seu team. Apenas alguns minutos mais, e termina o half-time. Dado o sinal para o segundo half-time foram trocadas as posies e recomeado o jogo. No se sabia qual o vencedor, pois ambos contavam 1 goal. Da por diante, porm, o Internacional, redobrando esforos com sua linha de forwards bem coadjuvada pela de half-backs, atacou fortamente o goal do Vitria sendo marcados mais dois goals at finda a partida por A. Hayne e P. Stewart. Conquistou a vitria o Internacional. O retngulo do jogo estava repleto de cadeiras nas quais se achavam senhoras e senhoritas da nossa melhor sociedade, autoridades e diretores da Liga. A Banda de Msica Militar alegrou a festa durante todo o seu desenrolar. 39 Acervo famlia Catharino. 40 SODR, Nelson Werneck. Histria da Imprensa no Brasil. So Paulo: Martins Fontes. 1983. p.27. 41 RIBEIRO, J. C. (1994) p. 25. 42 PROTSIO, F. (1984) p.18. Autor cita texto publicado no Jornal de Notcias, em 12 de abril de 1905: A sociedade denominada Liga Bahiana de Sports Terrestres, resolveu efetuar entre ns, um interessante Campeonato de foot-ball que se compor de 20 partidas a realizarem-se entre o corrente ms e o de setembro. Todas as partidas sero disputadas no Campo dos Martyres (Campo da Plvora). No fim deste campeonato o clube vencedor receber uma riqussima Taa de Prata oferecida pela Liga. Para a festa de amanh, que promete ser38

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notcia e o texto vinha como suporte de amenidades apenas para complementar o que j se sabia. Chegava ao cmulo de sequer informar o resultado ou o escore, como se chamava na poca o placar do jogo, com base na palavra inglesa score. Escalao de jogadores raramente era publicada. O jornalismo esportivo nascente enaltecia figuras da alta sociedade que praticavam os esportes, fortalecendo assim um estilo que hoje se aproxima do texto das colunas sociais, herana dos publicistas43. O pblico crescente nos locais dos jogos fez os donos das empresas de jornal em fase gestacional perceberem no esporte um tema capaz de ampliar as vendas por atrair multides. A dimenso noticiosa dos reprteres ganhou espao em relao ao pendor literrio dos publicistas. O jornalista esportivo tambm ampliou o alcance de suas pautas, com novas linhas de navegao no recncavo e baixo sul baianos, instalao do telefone, telgrafo, cabo submarino e estradas de ferro44. Grficos experientes chegaram do exterior como imigrantes e deram mais qualidade ao produto final45. A publicao de textos sobre esportes estimulou a venda de jornais e formou um pblico assduo. Neste perodo, a empresa de jornal ainda enfrentava um forte preconceito que associava o lucro vergonha de mercantilizar o trabalho intelectual46. O analfabetismo, que chegava a 75% da populao brasileira, em 1920, representava ociosidade para o maquinrio da empresa de jornal47. A crnica esportiva, enquanto gnero opinativo e capaz de oferecer ao leitor comentrios sobre uma determinada competio, persistiu como herdeira de uma tradio literria que impregnava o texto jornalstico informativo com obrilhante e assaz concorrida, haver Banda de Msica Militar para tocar durante toda a partida assim como sero colocadas cadeiras para as excelentssimas senhoras... 43 Exemplo deste tom publicista para divulgao dos feitos de jovens de famlias tradicionais a nota publicada no Dirio de Notcias, de 6 de outubro de 1902: Hontem (5 de outubro de 1902), pela manh, aportaram Ribeira de Itapagipe as Guigas Tupy e Tabajara (primeiros barcos do clube), pertencentes ao Clube de Regatas do Victoria. Eram tripuladas por 8 rapazes pertencentes a famlias distintas e que se mostraram j muito acostumados com as evolues necessrias a esses delicados barcos quase que exclusivamente destinados a regatas. Venceram a distncia da Barra a Itapagipe dentro de pouco tempo relativamente. 44 ZORZO, Francisco Antnio. Ferrovia e rede urbana na Bahia. Feira de Santana: Uefs. 2002. 45 RIBEIRO, J. C. (1994) p.29 46 Idem, ibidem. p.31.

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beletrismo48. Esta forte influncia da crnica enquanto gnero predominante no jornalismo esportivo nascente est evidenciada na denominao da entidade que congregou os primeiros reprteres especializados no setor, a Associao Bahiana de Cronistas Desportivos (ABCD), fundada em 14 de abril de 1912. O cronista desportivo uma figura diferenciada do reprter, pois o assunto de seus textos so competies e atletas e o tom das matrias vem contaminado pela literatura. O jornalista esportivo desta poca faz do jornal um bico para complementar a renda mensal de outras atividades. difcil identificar com preciso os nmeros da mdia de remunerao, mas certo que esta baixa contrapartida era compensada com o prestgio da letra de frma49. A despeito da importncia do jogo, enquanto possibilidade de mercado para expanso de suas vendas, a tcnica do discurso noticioso permanecia fiel a uma estrutura hoje considerada arcaica. No se observa o menor esforo em buscar atender as demandas do lide clssico. Esta estrutura somente surgiria dcadas mais tarde, consolidando-se nos anos 3050. Jornal e revista que tratam do esporte firmam o papel social de fazer a intermediao da realidade entre os jornalistas, ou seja aqueles que detm o poder de escrever e noticiar, e a sociedade, o plo ao mesmo tempo receptor da notcia e gerador dos fatos51. Para as empresas de jornais, a busca da diferenciao da abordagem das notcias tem sido tambm a luta por conquistar mais leitores. Sair do convencional, sem extrapolar a proposta da objetividade e se tornar excessivamente passional, nem deixar de passar para o leitor a emoo de uma competio, o desafio enfrentado pelas editorias de esporte.

Idem, ibidem. p.32. Idem, ibidem. p.31. 49 Idem, ibidem. p.31. 50 BAHIA, Juarez. Jornal, histria e tcnica. Tomo I Histria da imprensa brasileira. So Paulo: tica. 1990, p. 31. 51 J se confirma a utilizao da tcnica do lead, na edio do Dirio de Notcias, 21 de junho de 1934, primeiro caderno, pgina 12: O Victoria conseguiu abater o S. C. Bahia pela contagem de 4x3, no embate principal, e 6x1 no secundrio.48

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Como o jornalismo esportivo impresso um meio em que o debate tico est inserido em cada produo de texto, visto que h uma fiscalizao permanente sobre privilgios ou no de clubes, atletas, dirigentes e torcedores, esta postura pela suposta iseno se tornou tambm um referencial de qualidade. Como foi visto, no h consenso entre os jornalistas se eles devem ou no confessar qual o time que torcem, pois h quem prefira ocultar a preferncia para manter-se imparcial aos olhos do pblico, enquanto outro grupo admite abertamente, pois assim supe conquistar a credibilidade do leitor52. Do jornalista esportivo cobrada uma imparcialidade implacvel, para evitar que um ou outro clube se destaque, por conta da preferncia do profissional, sem que haja um critrio de noticiabilidade que o sustente na manchete. Os leitores de pginas esportivas so altamente crticos, pois cada um se julga especialista de seu esporte favorito. Esta tendncia tem suporte no fato de a sociedade passar a dar nfase atividade fsica e os leitores se tornarem tambm atletas ou apreciadores das modalidades e clubes. Cada leitor de esportes um vigilante atento da qualidade da informao, por julgar conhecer com profundidade o tema abordado53. O jornalista Luiz Britto, 29 anos de profisso, v uma falta de iseno do torcedor no julgamento que faz do trabalho do reprter esportivo: Como j diz o nome, torcedor, ele distorce, torce a notcia, e s torce para o lado que lhe interessa54 No raro, o jornal condenado por ser tricolor, relativo ao Esporte Clube Bahia, ou rubro-negro, em aluso ao rival, Esporte Clube Vitria, pelos torcedores-leitores influenciados pelo corao. O jornalista esportivo Armando Costa Oliveira, reconhecido como um dos profissionais de maior discernimento, larga folha de servios prestados a alguns dos principais veculos impressos e com experincia de 46 anos no rdio esportivo, oferece uma viso de como difcil lidar com este pblico.FONSCA, O. (1981) p.80. GELFLAND, Louis e Harry E. Heath Jr. Modern sportswriting. Iowa: TheIowa State Universtiy Press. 1969, p. 23-25.53 52

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O esporte acessa coisas com esta paixo. difcil porque basicamente a paixo. Convivo com pessoas que so extremamente bem articuladas, mas quando se trata de futebol se tornam to passionais quanto o torcedor55 Oliveira herdeiro de uma tradio que fazia do jornalista uma personalidade forte, dotada de sentimentos humanitrios e cultura geral, hoje em extino56. Independente da perda do que se pode considerar o tipo grande figura humana57, que no caso de Oliveira, se agrega ao de redator exemplar, a formao do pblico esportivo avanou no ritmo da consolidao das empresas de jornal interessadas em fazer da imprensa um produto rentvel. Um exemplo a fundao da revista Renascena, j em 1916, editada pelos sucessores do famoso fotgrafo alemo Hermann Lindemann, apaixonado pela linguagem visual58. Antecessor dos atuais projetistas grficos que priorizam a importncia da imagem, partindo da mxima de que vale por mil palavras, Lindemann publicava em Renascena um encarte, j na dcada de 20, com fotos dos principais jogadores baianos, entre os quais o clebre Pop, megacraque do perodo de afirmao do futebol baiano e nico jogador com nome de rua (Apolinrio Santana, no bairro da Federao) em Salvador59. Precursor das atuais estratgias de marketing e vendas, o encarte de Renascena evidencia o rompimento da empresa de jornal com o pudor de evitar mercantilizar o trabalho intelectual. Lindemann j oferecia as imagens com a marca para serem recortadas, convidando o leitor a colecionar as fotos dos craques, e com isto, ampliou as vendas de Renascena. At hoje, as revistas especializadas em esporte ainda utilizam este expediente de Renascena para atrair mais leitores, por meio de

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Em depoimento ao estudante de Comunicao Augusto Rocha, em 30 de maro de 2003, com orientao do autor, professor da disciplina Estudo Orientado em Jornalismo, da Facom/Ufba. 55 Em depoimento ao autor, no playground do prdio onde mora, no Corredor da Vitria, centro de. Salvador, 7/10/2001 56 RIBEIRO, J. C. (1994) p.199-202. 57 NOBLAT, Ricardo. A arte de fazer um jornal dirio. So Paulo: Contexto. 2002, p.37. 58 CADENA, N. (2001) 59 Sobre Pop, ver Pop, o craque do Povo. A trajetria de Apolinrio Santana, livro de Aloildo Gomes Pires, produo independente, Salvador, 1999.

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psteres e fotos dos dolos. A importncia de Renascena rivaliza com o surgimento da Vida Sportiva, uma publicao inspirada em um similar lanado anteriormente no Rio de Janeiro com o nome de Semana Sportiva60. Os proprietrios da Vida Sportiva, Celestino Brito e Mrio de Oliveira, investiram na contratao de alguns dos melhores talentos da poca como o aquarelista Paraguassu e os fotgrafos baianos Jonas e T. Dias, que, a despeito das limitaes tcnicas dos anos 20, produziram peas de alta qualidade profissional. A Semana Sportiva pode ser considerada um orgulho para os jornalistas esportivos baianos, pois se tornou uma das melhores publicaes do pas no gnero, cobrindo futebol, xadrez, natao, atletismo, remo, boxe, tiro, turfe, tnis e j ensaiava at coberturas de automobilismo. O futebol no detinha a absoluta prioridade em detrimento de outros esportes. Considerado fenmeno, Pop teve seus feitos celebrados e repercutidos nas pginas da Semana Sportiva. Capa da edio nmero 26, que circulou em 1926, o jogador se tornou popular depois de atuar por 10 times baianos, com destaque para o Botafogo e o Ypiranga. A publicao exercia o papel de fiscal dos dirigentes de clubes, ao tomar partido em situaes em que o jogador tinha seus direitos agredidos. Ficou famoso o caso da suspenso de Pop por 120 dias, aplicada por seu prprio clube, o So Bento. Os dirigentes, possivelmente incomodados com a popularidade do dolo, acataram queixa do atacante e capito do time Nadinho, que acusou Pop de indisciplina ttica em uma partida contra o Botafogo61. O jornalismo esportivo impresso na Bahia ganhou na dcada de 20 um pouco mais de fora nas pginas de jornais, com a cobertura do Dirio de Notcias aos eventos, embora ainda no se tivesse um noticirio constante com mais destaque sobre o tema. Um concurso para escolha das mais belas torcedoras abre mercado para o futebol e espao nos jornais, que ainda resistem a considerar esporte como um tema relevante e se limitam a fazer chamadas curtas para as matrias sobre os jogos.

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Acervo famlia Catharino. PIRES, A. G. ( 1999) p. 70.

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Em 1925, surgiu a revista literria A Luva, de Severo dos Anjos, que aderiu ao esporte e ao futebol, mas procurava repercutir textos dos jornais e perdia em autonomia sem oferecer ao leitor matrias exclusivas62. As tecnologias voltadas para a comunicao permitiram uma faanha para os padres da poca: a transmisso da partida de futebol entre Santos e Bahiano de Tnis para a cidade de Santos, no Estado de So Paulo. O reprter do jornal A Tribuna, de Santos, Francisco Pinto, passava os lances por telefone para a agncia da Western, em Salvador. Da Western as informaes eram passadas por cabo submarino para a agncia de Santos, que as transmitia, por telefone, redao de A Tribuna. Um datilgrafo utilizava a mquina de escrever para bater a notcia, que era entregue a um locutor. Uma multido de 5 mil pessoas parou diante da sede do jornal santista para ouvir os lances, que demoravam cerca de minuto e meio de Salvador at Santos, na rua General Cmara. Esta foi a pioneira transmisso de uma partida de futebol a longa distncia de que se tem notcia no pas63. Em 1929, o lanamento da nica64, por Amado Coutinho, revela a dificuldade de manter a paixo sob controle no ambiente do jornalismo esportivo. Rubro-negro assumido, Coutinho exercitava a objetividade, aproximando o texto do discurso noticioso clssico, ao abrir espaos idnticos para Ypiranga, Botafogo, Bahia e Galcia, outros clubes que detinham contingentes expressivos de torcedores. Fundado em 1o de janeiro de 1931, o Bahia se firmou como o sucessor do Ypiranga na popularidade, tornando-se campeo em ttulos e em expectativa de vendas, tal o crescimento da torcida. Estava aberto o caminho para o que depois viria a se chamar reprter setorista, o profissional dedicado a cobertura de um determinado clube. A conscincia da necessidade de buscar o texto informativo, como forma de ganhar a credibilidade do grande pblico e aumentar as vendas, pode ter inspirado Coutinho, considerado um precursor do chamado tira-teima, hojeCADENA, N. (2001) FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. Histria do rdio e Tv brasileiras, So Paulo: Vozes. 1982, p. 51 e SOARES, Edileuza. O rdio e a bola. So Paulo: Summus Editorial. 2000, p. 54. 64 Acervo famlia Catharino.63 62

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popularizado pelo olhar eletrnico de cmeras instaladas em locais estratgicos do campo, e dos melhores momentos, o horrio televisivo mais esperado pelos torcedores vidos por acompanhar os gols e os lances mais importantes das partidas. Na dcada de 50, Coutinho contratou para nica um desenhista para ilustrar os textos em que se reportava aos jogos, oferecendo aos leitores uma viso aproximada do que aconteceu em campo65. O desenhista tinha de aguar sua sensibilidade de forma a captar como estava posicionado cada jogador no exato instante dos lances mais importantes. Um exerccio de memria fotogrfica que, no raro, era contestado pelos leitores, identificados com seu clube do corao. Mesmo hoje, com todos os recursos tecnolgicos que mostram como foi e como no foi cada lance, ainda pairam dvidas entre adeptos de clubes contrrios, na discusso de temas polmicos. Esta mesma polmica alimentava a venda de cada edio de nica que circulava na cidade e cuja distribuio variava entre 5 mil e 7 mil exemplares, a depender da expectativa de venda avulsa e do cadastro de assinantes. A regulamentao da profisso, em 1937, por meio do decreto-lei nmero 910, representou um avano, no sentido de tirar do jornalismo a caracterstica de bico ou subemprego, mas as relaes trabalhistas no acompanharam a letra da lei66. Persistia por este perodo uma poltica de favores, beneficiando fontes e prejudicando a qualidade do trabalho jornalstico, como ser visto ao longo deste trabalho. A publicao das notcias se transforma em moeda corrente e meio de troca para obteno de comida, hospedagem e transporte de jornalistas. Esta tradio ainda se mantm no rdio esportivo, com o pagamento de dirias em hotis e passagens areas por parte dos clubes de grande torcida, nas viagens dos times67. A despeito de alguns progressos, o jornal dirio ainda era tido como rea dominada por intelectuais que no se identificavam com a possibilidade de incorporar o esporte ao seu noticirio, mas j admitiam publicar chamadas na primeira pgina, embora discretas. A inferior qualidade grfica dos jornais65 66

CADENA, N. (2001) RIBEIRO, J. C. (1994) p. 52. 67 Armando Oliveira, em depoimento ao autor.

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contrastava com a busca de uma apresentao mais agradvel aliada ao contedo nas revistas especializadas em esporte. O jornal tambm veio a reboque desta mdia instantnea, que aderiu com mais intensidade ao futebol em meados da dcada de 40, com o surgimento das resenhas dos programas de rdio, embries das que at hoje, lideram as audincias nos horrios de meio-dia e 18 horas. A Rdio Sociedade passa a concorrer com a Excelsior pela audincia. Em 1951, a Cultura tambm disputa sua fatia de mercado. Neste mesmo ano, a inaugurao do estdio da Fonte Nova sucede o antigo Campo da Graa como principal palco do futebol baiano. J em 1953, o Vitria investe no profissionalismo e conquista o ttulo estadual, fortalecendo a rivalidade com o Bahia e ampliando o interesse do grande pblico, graas ao antagonismo entre as duas foras que formam o clssico denominado Ba-Vi, denominao surgida a partir da fuso das primeiras slabas dos nomes dos dois grandes clubes, Bahia e Vitria. Um novo esforo no sentido de dar ao esporte e ao futebol um tom diferenciado do noticirio corriqueiro, veio com o Esporte Jornal, fundado e dirigido por Luiz Eugnio Tarqunio, parceiro de Carlos Alberto Jesuno e Ruy Simes. Criado em 1965, se notabilizou por noticiar o bicampeonato conquistado pelo Vitria, que sofreu uma greve por parte da grande mdia esportiva impressa, em razo do espancamento de um radialista, atribuda direo do clube. Nenhum veculo impresso, exceto o Esporte Jornal, noticiou o ttulo do Vitria68, em um fato raro no mundo, seno indito, em se tratando de um grande clube, capaz de mobilizar multides e gerar um mercado rentvel. A publicao teve o mrito de formar ainda alguns dos jornalistas mais destacados das ltimas dcadas, como Fernando Escariz, correspondente em Salvador da revista Placar, de circulao nacional, e falecido em maro deste ano. O advento do Esporte Jornal coincidiu com a dcada de melhor distribuio de ttulos entre os clubes, como Fluminense de Feira, Lenico e Galcia, alm de Bahia e Vitria.

Informao confirmada em consulta coleo de jornais da poca, na Biblioteca Central do Estado da Bahia. Na Revista Vitria!, edio do centenrio, ano 3, nmero 12, maio de 1999, editada pelo autor, o texto Bicampeo 1965 faz referncia ao bicampeo do silncio.

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A hesitao do veculo jornal em se estabelecer como elo entre o esporte e a sociedade, possivelmente pela influncia da intelectualidade clssica no comando das redaes de jornal, estabeleceu um contraponto ao rdio, que mantm a seu favor o fato de ser a opo para o pblico analfabeto se informar. Ainda hoje jornalistas reconhecidos pelo mercado como de primeira linha69 consideram o esporte um tema de menor importncia, fcil de cobrir e exageradamente noticiado para a sua real dimenso, na viso destes crticos. Ainda nestes anos 60, a empresa de notcias se consolidava e crescia a importncia do objetivo econmico, as metas a cumprir. As empresas de jornal passam a calcular a viabilidade do veculo com predominncia no clculo monetarista da quantidade de anncios, venda em banca e expanso da carteira de assinantes. O jornal deixa de ser a razo de funcionamento da empresa e se transforma em um produto, entre tantos outros. Neste contexto baseado na expanso dos negcios, a notcia passou a ser tratada como mercadoria submetida lgica comercial. O objetivo claramente definido era fortalecer as empresas de jornal como estruturas capazes de contabilizar lucros com a venda do trabalho intelectual. Para atingir esta meta, as melhorias na tecnologia foram consideradas cada vez mais necessrias. At os anos 50, as ferramentas de transformao da realidade no discurso noticioso esportivo, via escrita, no evitavam que os reprteres redigissem matrias mo, apesar de as mquinas de escrever terem sido introduzidas 30 anos antes. O editor de esportes do jornal A Tarde at abril de 2003, Gensio Ramos70, lembra que o espao das matrias sequer era diagramado. Sujava minhas mos de tinta e o texto descia para as oficinas onde ia ser digitado para s ento, passar para a rea de impresso

Em depoimento ao autor, Biaggio Talento, h 18 anos na sucursal de Salvador do jornal O Estado de S. Paulo um dos que considera o jornalismo esportivo mais fcil. 70 Em palestra para alunos de Oficina de Comunicao Escrita, da Faculdade de Comunicao (Facom), da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no dia 5/8/2002, a convite do autor, professor da disciplina.

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