os simbolismos maternos em medeia

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Artigo Analisando a tragédia de Eurípedes na perspectiva de Medeia como mãe.

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46 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador OS SIMBOLISMOS MATERNOS EM MEDEIA: A ME BONDOSA E A ME DESTRUIDORA Amanda Rosa de Bittencourt1 Resumo O mito de Medeia um dos mais trabalhados, recriados, recontados e modificados de todos osmitosgregos.Nestetrabalho,consideraremosarelevnciadelerMedeiacomolhos incondicionadospelocontextosciohistricoemquevivemosatualmente,buscandouma interpretaosimblicadatragdiadeEurpedes.Paratanto,analisaremosMedeiacomo smbolodeMedaVidaeMedaMorte,atravsdarelaocomsuafiliaodivina:a deusaHcate,adeusaCirceeodeusHlio,mostrandoqueMedeianocometefilcidio apenascomoumatodevingana,mascomoumatodivinoquetrazinterpretaes simblicaseespirituais.AleituradeMedeia,quecostumaserfeitaatravsdeideias preestabelecidaspelasociedade,leva-nosaoutraperspectivadeanlisepormeioda simbologiamticaqueconsideraremosnessetrabalho.Utilizaremoscomoembasamento terico:Hesodo,Vernant,Campbell,Eliadeeoutros,natentativadetraduzirtodaa complexidade que esse mito nos apresenta. Palavras-chave: Medeia. Eurpides. Simbologia. 1 Introduo: a crtica subjetiva da mitologia A mitologia existiu em todos os povos primitivos e possui representaes importantes noimaginriodahumanidade.Campbell(2007)escreveque,emtodasaspocasesob todasascircunstncias,osmitossempresedesenvolveram.Nacontemporaneidade,a mitologiaapareceemfilmes,seriados,revistaselivrosficcionais,atravsdostemas variadosqueelaapresenta.Porm,comumente,amdiaabordaomitonaformaliteral, realizandoumaanlisesuperficialdosensinamentosalidescritos;omitodemonstrado comofoiapresentadoaomundoporhistoriadoresetragedigrafos,seminterpretaes crticas ou reflexes profundas, e o resultado que muitas pessoas veem a mitologia como um conjunto de histrias irrelevantes ou partes de religies obsoletas.Devidosopiniesdepreciativasacercadaimportnciadosmitos,muitosignorama suasimbologia,asuainfluncia eousoprtico queosconhecimentosdessespoderiam trazer-lhes.Campbell(2007,p.21)dizqueafunoprimriadamitologiaedosritos semprefoiadefornecerossmbolosquelevamoespritohumanoaavanar,opondo-se quelasoutrasfantasiashumanasconstantesquetendemalev-loparatrs.Eliade 1 Acadmica de sexto semestre do curso de Letras da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul PUCRS. Email: [email protected]. Orientada nesse artigo por Lgia Svio, professora doutora do curso de Letras da Faculdade Porto-Alegrense FAPA. E-mail: [email protected]. 47 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador (1979a)escrevequepesquisasrealizadasexplicamcomoomitodesenvolveuo pensamentoprimitivo,equeessedesenvolvimentoaindatempapelfundamentalna construodanossasociedade.Aindasegundoomesmoautor,osmbolodentrodomito expe os aspectos mais profundos da nossa realidade, e que as imagens, os smbolos e os mitosnosoinvenesinsensatasdaimaginao,[...]elesrespondemauma necessidadeepreenchemumafuno:pranuasmaissecretasmodalidadesdoser. (ELIADE, 1979a, p. 13). Pelamitologiapodemsercompreendidososprocessospsicolgicos,comoCampbell (2007)colocaqueumavezquerecordemosaslinguagenssimblicasdosmitos, aceitaremososensinamentosqueelestmaoferecer,poissoas[...]metforas reveladorasdodestinodohomem,bemcomodesuaesperana,feobscuromistrio. (CAMPBELL,2007,p.257).Osmbolodespertaoinconscientedosujeito,forando-oair almdospadrescondicionados.Campbell(2008,p.37)dizqueomitodevefazero indivduo atravessar as etapas da vida, do nascimento maturidade, depois senilidade e morte.Porm,asexperinciasnosoexplcitas,necessriaumaleiturareflexivaem cadamitoesuasignificaoparticular.Lerosmitoscomolhoscondicionadospelas refernciasdasociedadeemqueestamos,ondetudoprticoeobjetivo,limitaoseu sentido constitutivo e atemporal. importante ressaltar que, atualmente, a grande maioria das pessoas v Deus como nicoeabsoluto,eaolermosostermosdeusesedeusas,presentesnasmitologias antigas,comoagrega,esbarramosemconceitoscontemporneos.Esses condicionamentosoupreconceitos soumimpedimentoaumaanlise crticadamitologia, eleslimitam-nosapontoderealizarmospoucasinterpretaesdosdiversosmitosede contarmoscomideiaspreestabelecidassobreossmbolosalidescritos.Umdosprincipais pontos a se considerar que os deuses no so separados entre si, cada deus e deusa tm relao com os outros deuses. Todopanteo,comoosdosgregos,supedeusesmltiplos;cadaumtem suasfunesprprias,seusdomniosreservados,seus modosparticulares deao,seustiposespecficosdepoder.Essesdeusesque,emsuas relaes mtuas, compem uma sociedadedoalm hierarquizada, na qual ascompetnciaseosprivilgiossoalvodeumarepartiobastante estrita,limitam-senecessariamenteunsaosoutros,aomesmotempoque se completam.[...]. (VERNANT, 2006, p. 4). Muitospagos,inclusiveosgregos,viamosdeusesesemideusescomopartesda divindade primordial, como integrantes de um mesmo universo, nenhum podia existir sem o outro. Eles fazem parte de um conjunto em comum, pois so individuais, mas tambm so umcoletivo.Vernant(2006,p.5)afirmaqueemsuapresenanumcosmosrepletode deuses, o homem grego no separa, como se fossem dois domnios opostos, o natural e o sobrenatural. Estes permanecem intrinsecamente ligados um ao outro. [...]. 48 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador Vernant (2006) tambm diz que o leitor deve se prevenir contra a tentao natural de assimilar o mundo religioso dos antigos gregos com o mundo que nos familiar, concepo queenfatizamosveementemente,poisoentendimentodomitosvirsemascondies sociaispreviamenteestabelecidas.Oautortambmdestaca,assimcomoCampbelle Eliade,que[...]areligiogregaapresenta-secomoumavastaconstruosimblica, complexaecoerente,queabreparaopensamento,comoparaosentimento,seuespao em todos os nveis e em todos os seus aspectos, inclusive o culto. [...]. (VERNANT, 2006, p. 24). Paracompreenderummitoemparticular,devemosteremmentequenecessrio analisarossmbolosqueotornamperene,relacionando-ocomosrituaisenvolvidos(que realizamosensinamentos)eabrangerosdeusesrelativos.Apartirdessesconceitos, trabalharemosafiliaodivinadeMedeiaeosimbolismodeespecficaspartesdentrodo mito na obra de Eurpedes. 2 A significao divina de MedeiaAbibliografiautilizadatrazcomoaorigemfilialdeMedeia:Hlio,HcateeCirce.A seguir, falaremos sobre cada um deles, para aps relacionarmos suas significaes com o simbolismo da obra literria. 2.1 A luz de Hlio Todos oshistoriadores sounnimesemconsiderarHliocomoavde Medeia,no havendodivergnciashistoriogrficascomoacontececomoutros familiares.Hliopaide Eetes,avdeMedeia,Deus-Sol.Grimal(2005)dizqueeleum jovemdegrandebeleza, percorre o cu em um carro de fogo, todas as manhs, caminhando pelo dia e parando para descansar a noite. Ainda segundo o autor, Hlio uma divindade considerada como o olho do mundo, j que o sol quem v tudo que ocorre no planeta. De acordo com Hesodo (2007), ele uma dasdivindadesdageraodosTits,poisnageraodosOlimpianos,Apoloserodeus dominantedoSol,masHliojamaisperdeuamajestade.EleeApolocompartilhama simbologia de serem o Deus-Sol.SegundoChevaliereGheerbrant(1991),osolopai,ofogo,osmboloda criao/destruio/ressurreio. A simbologia do Sol relaciona-se com a fora de seu poder, que pode servir tanto para auxiliar no crescimento de uma planta quanto mat-la queimada; um poder gerador de vida e causador de morte. 49 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador 2.2 A sombra de Hcate HcateumadasdeusasanterioresgeraodosOlimpianos,pertencendo gerao dos Tits. Segundo Hesodo (2007), a deusa conserva seus dons originais, apesar dodeclniodageraodessesdeuses,eadquiremaisprivilgiosdeZeus,sendomuito respeitada entre os deuses imortais e entre os mortais, porque detm fora e poder. Grimal (2005, p. 293) diz sobre Medeia, que [...] atribui-se-lhe como me a deusa Hcate, patrona de todas as feiticeiras. [...]. O autor ainda explica que Hcate no possui mito propriamente dito,elacaracteriza-semaispelassuasfunesepelosseusatributosdoquepelassuas aparies nos mitos. Primeiramente, ela uma deusa de prosperidade material e, pouco a pouco,transforma-senadeusaquepresideostalentosmagsticos,ligadaaomundodas sombrasedamorte.Grimal(2005,p.193)dizqueHcate[...]surgeaosmagoses feiticeiras com um archote em cada mo, ou sob a forma de diversos animais: gua, cadela, loba. etc. [...].Hcateumadasdeusasdaantiguidaderelacionadasaoaspectotrilunar,ouseja, umadasdeusastrpliceslunares,porisso,elaaparecepersonificadadiferentedeoutras deusas:elasurge[...]sobaformadeumamulhercomtrscorposouentocomtrs cabeas. (Grimal, 2005, p. 193). Chevalier e Gheerbrant (1991) dizem que a deusa atua em todososaspectosfemininosinconscientes,epodemosrelacionaressesaspectoscoma morteinconscientepresentenocorpofeminino,strsetapasdocicloderenascimento: menarca,partoeamenopausa.Hcatearegentedavidaedamorte,umadasdeusas ancisquepersonificatodasasetapasdavida,oupelosconceitoslunaresfemininosde vida, e pode orientar a passagem da vida para a morte e da morte para o renascimento, j que uma deusa que apresenta os dois aspectos dialgicos. 2.3 A transformao de Circe Grimal(2005)explicaqueCircefilhadeHlioeseriatiadeMedeia;outra possibilidadelevantadapelomesmoautorqueHcateseriamedeCirce,e,por conseguinte,irmdeMedeia.OmitodeCirceestpredominantementeligadoaomitode Ulisses e tem uma passagem no mito dos Argonautas. Na Odissia, livro de Homero, Circe aparececomoa feiticeiraquetransformaoshomensemanimais(emalgumasversesdo mito,soporcos)atravsdeumapoo.ComodizemChevaliereGheerbrant(1991),os animais so os smbolos das camadas mais profundas do inconsciente e do instinto. O nico homemquenosetransformaOdisseu/Ulisses,quefoiauxiliadoporHermeseno sucumbiuaosartifciosdeCirce.Umadasversescolocaqueocasalseapaixona,vive junto e tm dois filhos e, aps esse perodo, Odisseu segue sua viagem. 50 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador CircepossuiumasimbologiaprximadeHcatecomodeusadamagia,dalua,do femininoedoinconsciente.SegundoChevaliereGheerbrant(1991),atransformaoem porcosouemoutrosanimaisrealizadaporela,sedardeacordocomatendncia inconscientedocarteredanaturezadotransformado;adeusaotransformar,e dependendo de seu esprito, o homem se transformar em um determinado animal. Circe adeusadatransformaoedorenascimento,smbolodatrocadepapisentrehomem racional e homem instintivo e do retorno aos conceitos mais profundos dentro do indivduo. 2.4 A diferena de Medeia Medeia,netadeHlio,filhadeEeteseHcate,irmdeCirce,possuisuahistria mescladacomoutrosmitos,oraodoVelocinodeOuro,oraodosArgonautas.Jasos possuiummitoporcausadeMedeiaevice-versa,ambosestointrinsecamenteligados, tanto que falar de um citar o outro tambm. No nos deteremos na anlise de Jaso, mas trataremosdeleconforme fornecessrioparaa compreensodatotalidadedomito,assim comoasdemaispersonagens.Realizaremosumresumotericodospontosmaiscentrais doenredomtico,citandoalgumasdassuasdiferentesversesparaummelhor entendimento da tragdia. O mito inicia-se com Medeia em Clquida. Ela conhece Jaso, o casal se apaixona e elaoauxiliaemtodasasprovasnecessriasparaaconquistadovelodeouro.Grimal (2005, p. 293) diz que [...] uma vez conquistado o velo de ouro, Medeia fugiu com Jaso.. O casal passa por muitas aventuras at voltar cidade-natal de Jaso. O que acontece com JasoeMedeianacidadedifere:Grimal(2005,p.293)comentaque[...]umasvezesele [Jaso] reina no lugar de Plias, [...]; Brunel (2005, p. 613) escreve que [...] de acordo com uma primeira verso do mito, Jaso e Medeia vivem em Iolco em bons termos com Plias; [...].Porm,emtodasasvariantes,ambosexilam-seporalgummotivo:Grimal(2005,p. 293) afirma que [...] Jaso deu o reino a Acasto, filho de Plias [...]; Brunel (2005, p. 613) argumenta que em [...] outra verso, no entanto, apresenta Plias como um usurpador que deufimaospaisdeJaso.[...];amaisconhecidadasversesrelataqueMedeia rejuvenesce o pai de Jaso, Esn, em um caldeiro, e o rei Plias deseja o mesmo. Atravs doauxlioinocentedasfilhasdeste,Medeiamataorei.Porcausadoassassinato,Grimal (2005,p.293)afirma que[...]Acasto, filhodePlias,baniuJasoeMedeiadeseureino. [...].SegundoGrimal(2005),ocasalvaiviveremCorinto,ondeelesvivemfelizese tranquilos durante dez anos. Dessa relao surgem os filhos, cujo nmero e sexos diferem em muitas tradies. Conforme Grimal (2005, p. 293), Hesodo refere um filho de Jaso e 51 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador Medeia. [...] Outros autores referem uma filha [...] Mais tarde, na tradio trgica, atribuem-se-lhes dois filhos [...].Depois de vrios anos, Jaso resolve separar-se de Medeia e casar-se com a filha do rei de Corinto. Grimal (2005) afirma que Jaso ficou noivo de Glauce (ou Cresa, a filha do reiCreonte).Apartirdessasituao,surgemosdiferentesfinaisdoqueaconteceucom Medeiaeseusfilhos.Todasasversessounnimesemdizerqueascrianasvma falecer;entretantoarespeitodecomoocorreessamorte,hdiversasvariantes:existea versodequeduranteumacerimniadeusaHera,Medeiaenterraascrianassobo templo, onde elas morrem; tambm existe em outra tradio, o relato que afirma serem os corintianos os responsveis pela morte das crianas no templo, como explica Brunel (2005). Apesardessasverses,amaisfamosaaquelaemqueaprpriamemataosfilhos. Grimal(2005)comentaquefoiEurpedesoprimeiroaapresentaroassassinatodosfilhos realizado por Medeia. 3 Anlise simblica de Medeia OtextoliterrioqueembasaestaanliseoescritoporEurpedes,datadode431 a.C. O enredoda tragdiaMedeiaconstituiumdosepisdios finaisdeumlongo mito, que foidescritoresumidamentenocaptuloanterior.Escolhemosanalisarofilcidioeo assassinatodePlias,comaintenodeexplicarsimbolicamenteosacontecimentosali descritos,relacionandoMedeiacomasuafiliaodivinaecomossimbolismosmaternos relacionados vida e morte, atravs de conceitos citados pelos autores Eliade, Campbell e Rinne. Conforme Rinne (2005), a atual Medeia a lembrana de uma deusa da sabedoria e da cura, dotada de poderes sobre a vida, a morte e o renascimento, descendente da antiga estirpedoSoledaLua.Entretanto,devidoamotivossociolgicoseantropolgicos ocorridos durante os sculos, a descendncia sbia e curativa se perdeu. Assim como sua me Hcate, os aspectos positivos declinaram e assumiram apenas os aspectos sombrios, sendo que esse estigma ainda perdura atualmente.Asconfusesecontradiesquejustamentenastradiesliterriasdos fragmentosreferentesaMedeiatantochamamaatenoprovm,antes detudo,dofatodequeosnarradores,intencionalouinconscientemente, interpretavammalasrepresentaessimblicasnopertencentesao sistemareligiosodasuaprpriapoca,masaumsistemaanteriorde referencia religiosa, que era a venerao da Grande Deusa. (RINNE, 2005, p. 38). Eurpedesescreveuumaelaboraoliterriabaseadanaslendastradicionaisde Medeia, adaptando-as sua poca e aos conceitos que desejava transmitir, realizando uma versodeacordocomasuaideologiaecoma suavisodemundo,escrevendoum texto que pertence ao sistema religioso de sua gerao. Para o autor grego, Medeia no era mais 52 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador uma deusa lunar e solar, e sim, uma mortal mais sbia e poderosa, embora ele no deixe de colocar os seus antigos parentescos. Nessa prxima passagem retirada da tragdia, vemos queoautortentamanternapersonagem,asqualidadesqueomitoanteriorrepresentava: Medeiadiz:Semdvidasoudiferenteemmuitascoisasdamaioriadosmortais (EURPEDES,2007,p.41),masnomaisumadeusaimortal.Elaaindaestavaacimada esfera dos mortais e no mesmo nvel dos heris semideuses, porm agora no os apoiava mais como deusa, mas como mulher mais desenvolvida que dispunha de poderes mgicos. Ospoderesmgicosestopresentesnoimaginriodasdeusascitadasnesse trabalho:Medeia,HcateeCirce.Deusasquecompemumatradelunarfemininapag atravs de seus poderes e simbologias. A trade a ideia de trs deusas, que assumem um papelbaseadonastrsfasesdalua,conceitorelevanteparaodesenvolvimentodecada passagem feminina: lua crescente, a juventude; lua cheia, a maternidade; e lua minguante, a menopausa. Rinne (2005) afirma que uma donzela surgia como uma jovem primaveril; uma mulhermaduracomovero;eumavelhaoutonalehibernalcomoinverno.Chevaliere Gheerbrant(1991)explicamquealuapossuiessasimbologiadeabrangerastrsesferas do mundo, o cu, a terra e o inferno. Essas correspondncias estavam dentro de um cosmo idealizadocompostodetrspartes:adeusa-jovemreinavasobreoareocu;adeusa madurasobreaterraeomar;eadeusaanci,sobreoinfernoeoreinodosmortos. Relacionando s deusas desse trabalho, Rinne (2005) escreve que Medeia a deusa-moa, Circe a ninfa orgstica e Hcate a velha deusa da morte e do inferno.Todas as deusas antigas possuam esses aspectos trilunares em si mesmas e, com o adventodopatriarcado,foramseparadosesuasrepresentaessimblicasinseridasem novos deuses. Rinne (2005) explica que, embora algumas deusas olmpicas, que ou como esposasoucomovirgens,conservarammuitasdesuasatribuies,elasperderam,ao contrriodeoutras,comoMedeia,HcateeCirce,oaspecto mortferoeinfernal.Notexto deEurpedes,Medeiaexpeasuarelaocomadeusaanci,[...]porminhasoberana, pela deusa mais venerada e que escolhi para ajudar-me Hcate [...] (EURPEDES, 2007, p. 35). A autora explicita na prxima passagem as divises que essas deusas sofreram:AquedadeHcate,arealizadoradosdesejos,oescurecimentodaCirce transformadoraeodesaparecimentodaMedeiaconselheiraexpressamo fato de que os contedose imagens dosvalores encarnados originalmente pelatradeeocaminharconscientepelociclodavida,mortee renascimentonopodiammaisserintegradosnaconscincia.Aimagem universaldadeusadividiu-senaimagemdaboameenadame devoradora.(RINNE, 2005, p. 84). AseparaoocorridamostraoquantoaDeusaUniversal,queenglobavaosdois aspectos, maternal e letal, se transformou para pertinncias em mais de uma deusa e como suasatribuiessimblicassemodificaram.SegundoChevaliereGheerbrant(1991),a prpria simbologia da me traz a vida e a morte correlatas, nascer sair do ventre da me e 53 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador morrer retornar terra. Campbell (2007) escreve que primeira figura, a me bondosa, ns atribumos a presena nutridora e protetora, visto que vinculamos relao da criana comame,eoimaginriocondicionadonopermitequevejamosaMealmdessa imagemperfeitaeconfortadora.Porm,comoomesmoautordiz,amedavida,ao mesmotempo,medamorte;[...](CAMPBELL,2007,p.295).Adeusaosmboloda terra, da vida, da morte e do planeta, tudo cresce e morre em seu tero, e o autor expressa essas ideias na citao abaixo: Elaabrangeoabrangente,nutreonutrienteeavidadetudooquevive. Ela tambm a morte de tudo o que morre. Todas as etapas da existncia sorealizadassobsuainfluncia,donascimentopassandopela adolescncia,maturidadeevelhicemorte.Elaoteroeotmulo:a porcaquecomeseusprpriosleites.Assimsendo,elauneo"bom"eo "mau",exibindoasduasformasqueamerememoradaassume,em termos pessoais e universais. (CAMPBELL, 2007, p. 115). Atualmente, muito complexo compreender que a Grande Deusa fosse venerada no apenas como a me que ama, que protege e que alimenta, mas tambm como a destruidora dessavida,comoumpodermrbidoqueagecomdestruio.Osantigospagosviama Terra dessa forma, como a me que d a vida e tambm capaz de tirar. Eurpedes coloca estestermosnaspalavrasdeMedeia.Sejacomofor,perecero!Ora:seamorte inevitvel,eumesma,quelhesdeiavida,osmatarei!(EURPEDES,2007,p.63);De qualquermodoelesdevemmorrere,seinevitvel,eumesma,queosdeialuz,os matarei. (EURPEDES, 2007, p. 69).E o prprio simbolismo lunar, como afirma Eliade (1992), j demonstra que a morte a primeira condio para a regenerao mstica, e as trs deusas citadas fazem relao direta comalua,poissoasimagensfnebreslunares:nascimento,morteeressurreio. Conforme Chevalier e Gheerbrant (1991), a lua para o homem o smbolo dessa passagem davidamorteedamortevida.SegundoEliade(1992),ossereshumanos conscientizaram-sedestespapeisgraasobservaodoscicloslunares,cujasimbologia permitiu-lhes compreender os casos abaixo: Graasaosimbolismolunar,foipossvelrelacionareestabelecer correspondncias entre fatos to heterogneos como o nascimento, o devir, amorte,aressurreio;asguas,asplantas,amulher,afecundidade,a imortalidade;astrevascsmicas,avidapr-nataleaexistnciaalm-tmulo, seguida de um renascimento de tipo lunar (luz saindo das trevas); a tecelagem, o smbolo do fiodaVida,o destino, a temporalidade, a morte, etc. (ELIADE, 1992, p. 77).Osantigospovosanalisaramessesacontecimentos,quenopossuemaparente relao entre si e os integraram em um nico entendimento. Rinne (2005) explica que isso deve parecer um absurdo a um pensamento abstrato dualista atual, que v a luz e as trevas, o bem e o mal, a felicidade e o sofrimento como antagonismos excludentes. Todavia, para o pensamentomtico,ocosmosordenadosobaformadepolaridadesquesereconciliam 54 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador reciprocamente: a escurido a condio anterior da luz; a felicidade impensvel sem o sofrimento,assimcomoavidanopodeserentendidasemamorte.ComodizEliade (1979b,p.47),nosuniversosimaginrios,assimcomoemmuitasmitologiasereligies, morte e vida esto dialeticamente relacionadas.O autor ainda diz que a Lua expe no somente a unio indissolvel entre a morte e a vida, mas tambm que a morte no decisiva, e sim, seguida de um novo nascimento. Em todasassociedadestradicionais,amortecomosegundonascimentoocomeodeuma novaexistnciaespiritual,porm,essenovonascimentonocomoobiolgico,ele criadoritualmente.Dessamaneira,amorte/renascimentoumainiciao,quedemandao falecimentodavidaprofanaanteriorearessurreioparaumavidasagradaposterior mortesimblicainicitica.Oautorcolocaquetodainiciaoprecisadamortesimblica seguidadorenascimento,jquedeve-semorrerparaacondioanteriorpararenascera umestadomaiselevado.Campbell(2007,p.20)explicaqueafunodos[...]rituais consistia em levar as pessoas a cruzarem difceis limiares de transformao que requerem uma mudana dos padres, no apenas da vida consciente, como da inconsciente. DeacordocomRinne(2005),amortenoseafiguravacomumaextinodefinitiva, umfinalsemesperana,mascomoumestgiodetransio,umafasedetransformao inseparavelmente associada ao ciclo da vida. E nos rituais antigos, a ideia de morte, vida e renascimento era muito utilizada como rito de passagem, vulgo iniciao. A morte precedia a vidarenovadaerejuvenescida.Eraprecisoderramarsanguepararenovarmagicamentea fecundidade da terra porque, para o pensamento mgico, a essncia da fora vital est no sangue.SacrifcioscruentoseramoferecidosDeusapararestituir-lhesimbolicamentea ddiva da vida. A morte e o sangue como ritos iniciticos faziam com que o participante se desenvolvesseerenascesseparaumanovaidentidade.Eurpedes(2007,p.63)escreve queMedeiacolocaaprximafraseaseusfilhosantesdemat-los:sedefelizes,ambos, mas noutro lugar [...]. A conscincia da morte como parte integrante da vida. Como diz Eliade (1992), a iniciao um retorno Me Csmica, um retorno s duas facetas maternas inicialmente separadas e a morte uma regresso ao estado embrionrio, aosestgiosanterioresaoprimeironascimento.Osimbolismodessavoltaaoventrea certezadepodersercriadodenovo,deserparidopelaMeparaumnovoestado consciente.EssaconscinciaestpresentenosimbolismodomitodanovavidadeEsn, paideJaso,enamortedePlias,reideIolco.Rinne(2005)relataqueMedeiatinhao poder de restaurar a vida e rejuvenescer e que, no caldeiro mgico, renasceu o velho pai deJaso.Atravsdessesacrifcionocaldeiro,elaobteriaorenascimentodoshomens. Ainda segundo a autora, de acordo com relatos antigos, Hlio, o deus-Sol, entrava todas as noites, ao atravessar o oceano escuro, num caldeiro de onde saa rejuvenescido na manh seguinte. O caldeiro da transformao, smbolo de Medeia, o recipiente que contm toda 55 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador a vida velha, que afunda e morre, e de onde ressurge a vida rejuvenescida; um smbolo do rito de passagem, essncia vital e sangue mortal, transformados simbolicamente pela me. Aimagemoriginaldessemilagrosorecipienteotero,olocalondeavidagerada. Segundo Chevalier e Gheerbrant (1991), o caldeiro detm a mesma simbologia do tero: o nascimentodeumnovoser.Seadeusacapazdeauxiliaroiniciadoarenascer,ela tambm pode ajud-lo a morrer, e isso acontece com o rei Plias. Com a ajuda das filhas do rei,aprolequehaviasidogestadaanteriormente,Medeianoorejuvenesce,elaodeixa morrer.Eurpedes(2007,p. 37)colocaemsuatragdia:[...] fizPliasmorrer tambm,da morte mais cruel, imposta pelas filhas [...].Campbell(2007,p.23)afirmaquepercorremosumcrculocompleto,dotmulodo teroaoterodotmulo[...].EEliade(1992)escrevequetodososrituaisesimbolismos exprimemumanicaideia:ohomemaindanoestacabadodepoisdoamadurecimento; eledevenascerumasegundavez,passandodeumestadoimperfeitoparaumperfeito. Segundooautor,ohomemschegaplenitudeatravsdosritosdepassagemoude iniciaessucessivas.Eparaalcanaresseestado,osernecessitadoauxiliodaMe Universal, que abrange o aspecto maternal e o aspecto mortfero, sendo que Medeia uma dasdeusasmticasquesimbolizaessaduplicidadeperfeitamente.Medeiaadeusaque dispe da fecundidade ctnica das profundezas e da fecundidade espiritual do cu, a deusa mtica que simboliza a superao da morte e da plenitude da vida. 4 Consideraes finais Eliade(1979b)enfatizaquegraasaossmbolos,ohomemsaideseumundo particular,despertandosuaconscinciaecompreendendoaespiritualidade.Tentar compreenderoqueasmitologiastmanosdizerumatarefarduaparaamaioriados mortais, a referncia de um deus ou uma deusa transcende os sculos e faz com que ns aindatentemosdescobriroqueelessignificam.Compreenderamitologia,apesardesuas diferentesverses,entenderossmbolosqueestonelarepresentados,comocolocaa autora Rinne abaixo: Aolidarcomamitologiagrega,umadasdificuldadesresideemqueos mitosoufragmentosdemitosdeorigensdiversas,quenelaseencontram fundidos,passamporumcontnuoprocessodeinterpretao,adaptao, arranjoseelaboraesliterrias,fazendocomquesuaformaoriginals seja reconhecvel quando se recorre a smbolos mais antigos e se compara os mesmos com mitos semelhantes ou paralelos. (RINNE, 2005, p. 19).Ossmbolospresentesnasmitologiassouniversaiseentend-losfazpartedeum processo lento que exige do pesquisador pacincia e uma mente aberta, sem os conceitos preconcebidosdenossapoca.Aautoraaindadizqueosmitoseossmbolosmticos podemrepresentarumavaliosaajuda,quandosetratadetrazerprocessosinconscientes 56 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador paraaesferadaconscincia,deintegr-lospersonalidadeederestabelecerassima totalidadepsquica.Eliade(1979a)argumentaque,atualmente,iniciamosoprocessode compreenderalgoquenossculosanterioresaindanoramoscapazes:queomitoeo smbolopertencemsubstnciadavidaespiritual,quesepodecamufl-los,mutil-los, degrad-los, mas nunca extirp-los. Campbell (2008, p. 45) diz que os arqutipos mitolgicos o ajudaro a refletir sobre o conhecimentodessadimensotranspessoal,trans-histricadoseuseredasua experincia,poissosmboloseternosquevivememtodasasmitologiasdomundo,os modelosquesemprederamapoiovidahumana.Amitologiafazpartedetodasas culturas e seus smbolos so vistos e trabalhados h muito tempo, justamente pela relao quepossuemcomosnossosprocessosindividuais.Mesmocomopassardossculos,os mitos no desaparecem do imaginrio humano, eles fazem parte do ser e impossvel no os encontrar em alguma situao existencial do ser humano. RelacionandoessesconceitosaomitodeMedeiaeaosciclosdevidaemorte, buscamosentender queamorteinseparveldavidaeestpresente dentrode todosos seres. A arte est em no fechar os olhos diante dos ciclos da vida e da morte, ciclos que estopresentesdiariamentenasnossasvidas,emtodaaviolnciaqueassistimosno cotidiano. O ser humano plenamente capaz de matar e destruir-se, como tambm de dar a vidaedesenvolver-se.Campbell(2007)escrevequetodoprincipiobsicodamitologia isso, o incio no fim. ComodizEliade(1992),oiniciadodeviasairvitoriosodamorte/ressurreio,ou iniciao,paraconseguirviverdeformaplenaasuaexistnciaterrena,eissosignifica, atualmente, vencer o seu prprio inconsciente, repleto de monstros mitolgicos e integrar os seusdoisladospsquicos.Ainiciaoesttoprximadarealidadedohomem contemporneoqueinmerasaesdesseaindareproduzemosquadrosmticose iniciticos, a existncia fundada pela iniciao; quase se poderia dizer que, na medida em que se realiza, a prpria existncia humana uma iniciao (ELIADE, 1992, p. 100). Campbell(2008)teorizaquetradicionalmente,aprimeirafunodamitologiaviva conciliar a conscincia com as preocupaes da sua prpria existncia quer dizer, com a natureza da vida. Para entend-la e dar-lhe o devido valor, precisamos entender a natureza da morte, e tambm dar-lhe a devida importncia, aceitar os processos mortais e vitais que ocorremcomcadaumdenserenascer,comoauxliodossmbolosmticos,parauma novaperspectiva.SegundoEliade(1992),amehumanareproduzoatodopartodavida como a Me Terra, e por isso, ela deve-se deixar levar pela matriz universal para realizar o grande mistrio que o nascimento de uma vida, compreendendo assim o papel que essa representa como smbolo da vida/morte/ressurreio. 57 Revista Historiador Nmero 04. Ano 04. Dezembro de 2011Disponvel em: http://www.historialivre.com/revistahistoriador Referncias BRUNEL, Pierre. Dicionrio de mitos literrios. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2005. CAMPBELL, Joseph. Mito e transformao. So Paulo: gora, 2008. CAMPBELL, Joseph. O heri de mil faces. So Paulo: Pensamento, 2007. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de smbolos. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1991. ELIADE, Mircea. Imagens e smbolos. 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