agora sou medeia · zero em lugar nenhum. medeia, de olhos bem fechados. aos seus pés, um...

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AGORA SOU MEDEIA LUÍS MESTRE

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AGORA SOU MEDEIA

LUÍS MESTRE

PERSONAGENS: Medeia, Jasão, Creonte e Glauce

Algumas porções do diálogo aparecem em parêntesis, e servem para marcar uma pe-quena mudança de perspectiva por parte do emissor – uma mudança momentânea para um modo mais introspectivo.

AGORA SOU MEDEIA

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ZERO

Em lugar nenhum. Medeia, de olhos bem fechados. Aos seus pés, um belíssimo manto. Ao fundo, começa a revelar-se um vulto. É Jasão, sem boca. Silêncio.

MEDEIApara que possacircular livrementeentre as três zonascósmicas:infernoterrae céu.para que possapenetrar impunementenos lugaresaos quaissó os mortose os deusestenham acesso.para que os espíritosque o habitamsaiame vão apegar-se ao traje novo.para que o corcelgalopea uma velocidadevertiginosa.para que voe.para atravessar as três regiões cósmicas.para oferecer aos deuses celestes.

AGORA SOU MEDEIA

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para o topo da montanha,o umbigo do céu.para a Casa do Monte de Todas as Terras.para o zigurate.pedrasfogoarsanguetudo juntoaqui reside a ciênciainvoco todos os elementos silênciolonge da minha terra.

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UM

O dia nasce. Numa das alas da sua casa, em Corinto, Medeia fala com Hécate, sua mãe, logo após ter cometido o infanticídio. Está em enorme sofrimento. Segura um belíssimo manto. Silêncio muito longo.

MEDEIAMãe...pausaperdoa-me.tinha que o fazer.olhaolha para estas mãos.elas ainda têm o toque da pele dele,confudem-se agora com o cheiro a sangue.estas mãos tocaramcada centímetrotodo o corpo de Jasão,elas ainda sentem a pele,como se tivesse sido ontem à noite.mas hoje já é manhãe que dia será.(onde estás?concentra-te.)Mãe,ensinaste-me a ler as palmasdas minhas mãosmas agora não consigoelas são tão diferentesestão tão diferentesmas… interrompe-seeu seieu sei o que fazer.não preciso que me guiem.eu agi como uma princesa

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porque é isso que sounão é, Mãe?filha de uma rainha.de uma grande rainha.já passei a primeira das provas,foi a mais difícil? pausa curtaajuda-me agora nas outras.(onde estou?acalma-te.)se eu virar assim a minha cabeçaconsigo ver através da janela,mas onde estou?que se passa com a minha cabeça.ouves o zumbido.ouves?onde estou?tenho que limpar a minha cabeça.zumbe com montes de pensamentos.o ruído no meu cérebro.a sede.tenho que acordar.abrir os olhos.o que se passa com a minha cabeça? silênciorecordo-me agora.o meu horrorfoi rapidamente substituídopor pânico,havia qualquer coisasilenciosamisteriosasobrenaturalarrepianteali,algo de que tenho de me esconder.

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aprendi o que queria saber,e prometi a mim própriaque esqueceriao mais rapidamente possível.mas desde entãonão consigo pensarsenão naquelesdescarnados...crânios infantis,naquelas omoplatasperfeitas,aquelas frágeis e quebradiçascolunas vertebrais.eu... interrompe-seeu portei-me como uma princesa.porque é isso que eu sou, Mãe.sabes onde estou? pausaseguro as minhas mãosdefronte dos meus olhosmostram-me as linhas das palmasprimeiro a esquerdadepois a direita.como são diferentes.ensinaste-me a ler as linhas.mas,nem tu Mãe,serás capaz de me aconselhar agora,posso ver as linhas das minhas mãose revere rever as vezes que quisermas por mais distintas que sejamnão me dizem nadao que fazer ou para onde ir.o que é que isso quer dizer, Mãe?

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eu posso...eu consigo sondaros segredos profundos das doenças,mas sei fazê-lo melhorpara curar os outrosnão para me curar.deixo-me abandonar,Mãe,para a febre que sobe pelo meu corpo,levando-me por uma onda de fogo,e que me revela imagens,pedaços de imagens,fragmentos, faces.onde estou?ah,é Corinto.(terra de europeus). pausanão foi difícil para mimatrair a atençãoe exigir respeito,nesta terra estrangeira.já não sou uma mulher jovem,mas segundo os Coríntiossou selvagemirreflectida,no que lhes diz respeitouma mulher é irreflectidase pensa pela sua cabeça.estas mulheres assemelham-sea animais de estimação.um país desconhecidoestrangeiropara mime é assim que ficarápara sempre.

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o que eu fizaquilo que eu fiznão o poderão explicarmas também não o poderão negar.os alicerces desta cidadeacentam agoranum acto monstruoso.e eu preciso do choquepara finalizar o meu caminho.mas até onde conseguirei ir? silênciodisseste-me uma veze eu nunca o esqueci,que quem quisermatar-meterá que golpear mais o meu orgulhoque outra coisa qualquer.pois aquinesta terraninguém o poderá fazer.a cidade está agora em festaeste é o dia...e logo será a noitede núpcias.ah Jasão,ainda te sinto.cá dentro.como pudeste fazê-lo.partilhar a tua pele,com essa...filha de um rei.ah Jasão,como pudestedeixar as criançasassim.quero que as minhas mãos

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que as linhas das minhas mãossejam guiadaspelo odor do teu corpopela textura da tua pele.ah Jasão...eu...que nunca quis ser mãetive os nossos filhos contigofilhos que já não são.olha para as minhas mãospodes ver nelasaquilo que nos uniadentro dos seus corpos:o sangue que era delasteuemeu. pausa longaolho pela janelajá é manhãos gritos de festa ecoam pela cidade,ouves, Mãe?o dia será longoa espera dolorosaainda não é o momento.quando o sol cairsaírei à rua.até lálimparei o ruído do meu cérebroo zumbido dos meus pensamentos.ouves o zumbido, Mãe.ouves?

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DOIS

Creonte, numa das salas do seu palácio, em Corinto. Uma sala onde as paredes estão completamente escondidas por espelhos de todos os tamanhos e feitios.

CREONTEmarquei a história desta cidade.este diaesta festaeste casamentoa cidade em festatoda a cidade.nada poderá alterara marca familiarque agoraeste estado tem.herdou de mim.este casamentoserá lembradoe contadopassará de gerações em gerações.hoje é um dia de festa.o sol põe-se agora.mais um diaprestes a terminarnesta vida pesada.quantos anos já passaram? pausaa meia luzas minhas rugasparecem sulcoscomo um olivallongos sulcosde Delfosaté ao mar.como gostaria de viver

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muitos mais anosestes anos.estes serão os melhores anos.esta cidadetransformar-se-á.uma nova Atenas.a minha identidade fundir-se-ácom Corinto.ai... quantos mais anosterei.quantos mais poderia ter.deveria ter. pausaCreonte e Corinto...Creonte éCorinto.

GLAUCE entrandoPai...ela não cumpriu o decreto. e agora estána festa.toda a gente fala dela.e pediu para te ver. silêncioPai...porque veio ela aquipara me humilhar.a cidade vai zombar de mim. pausaonde estão os teus homensos teus soldados? silêncioquero...quero sangue.carne e sangue.

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o dela.é esse oo meu presentede núpcias.quero que esta cidadea terra debaixo desta cidadeprove o sangue bárbaro.quero que o fogolhe transforme a carne em cinzas.e que as cinzas se juntem ao sanguebem fundobem debaixo dos alicerces da cidade. silêncio

CREONTEmanda-a entrar. silêncio

GLAUCE sai silêncio

CREONTE(és uma mulher inteligente, Medeiamas eu não tenho medo de ti.)

MEDEIA entra, segura um belíssimo manto silêncio

CREONTEpeço-te que saiase que leves os teus filhos para longe daqui.vaie não paresnem te voltes para uma última mirada a esta cidade.

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MEDEIAporque me mandas embora?eu que nada te fiznem aos teus,que aceiteipacificamenteo teu desejodesta festa.este festejo.

CREONTEtemopela minha filha.temopela minha cidade.não me faltam motivos de temor.és astutae conhecedorade mundosque são desconhecidospara os demais mortais.e agoraés uma mulher torturada.corre por toda a cidadeque ameaçastenum dos teus prantosnum dos teus lamentos agudosque castigariaso teu marido.protejo-me disso.e aos meus.agora vai-te.

MEDEIAa minha fama precede-me.e tem-me causado

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bastantes males,eu sei.aquilo a que chamasmundos desconhecidosesta ciênciafaz com seja objectode inveja e troça.mas,para outros,tenho um carácter amávele para outros aindaainda é outro o meu carácter.para os que sobramsou desagradável.e não sou assim tão astuta. pausaentão, tens medo de mim. pausaolha-me.sou apenas uma mulheruma estrangeira.com um manto nos braços.também temes o manto? pausanão me fizeste nenhum mal.cuidaste dos teus.deste a tua filha ao melhor homem da cidade.a esse meu esposo,é ele que eu desprezo.mas peço-teque me deixes ficar.que os meus filhosfiquem junto do pai.e cresçam perto dele.prometovivermos calados.

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sem queixumesnem contestações.

CREONTEsurpreendes-mecom as tuas palavras.são ternas e racionais.mas temo que a tua alma,caminhe numa direcção oposta.onde estão os teus filhos?se os tivesses contigoestariam agora mais perto do pai.

MEDEIAnão os quis aquia ver uma mãe suplicante.também tenho o meu orgulho.

CREONTEvai-te embora o mais depressa possível.

MEDEIAsuplico-te.

CREONTEnão gastes palavras.

MEDEIAexpulsas-me,não atendes à minha prece?

CREONTEprefiro a minha casae a minha cidade.

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MEDEIAjá não me resta nenhuma pátria.não tenho para onde ir.

CREONTEvai-te.

MEDEIApeço aos deuses que me são caros...

CREONTEnão te poderão salvar.

MEDEIA...que me ajudem nesta hora.

CREONTEserás levada à força.

MEDEIAnão,isso não. silênciopeço-te então algumas horas.apenas o tempode me prepararde preparar os meus filhos.e decidir para onde iremosprometemos não olhar para trás.tem pena deles.o pai não se prestou a prepará-lospara a despedida. pausaCreonte,também és pai.

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sê bondoso.umas horas apenas.ajuda-me não a mim,mas aos meus. silêncio longodeve haver algo que possa dizerou fazerque te faça ceder. pausajá não te peço para ficar.peço-te apenas uma réstia de tempo. silêncio

CREONTErumoressão apenas rumores que chegaram a esta cidademesmo antes de ti:é verdade que rejuvenesceste o pai de Jasão?

MEDEIAÉson é seu nome.sou portadora desse tipo de ciência, sim.

CREONTEcomo o fizeste?a quem tiraste os anos para lhe dar?

MEDEIAJasão queria transferi-los.esse é um processo proibido.

CREONTEcomo o fizeste então?

MEDEIAcortando-lhe a garganta.

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e ressuscitando-o de seguida. silêncio

CREONTEpor certo não o fizeste sozinha.

MEDEIAnão são permitidas testemunhas. silêncio

CREONTEquantos anos rejuvenesceu?

MEDEIAos suficientes para ser confundidocomo gémeo falso de seu filho. silêncio

CREONTEMedeia,sabes bem que não sou um tirano.e embora vá contra a minha natureza,serei compassivo com os teus.o tempo que me pediste ser-te-á concedido.terás até ao nascer do sol.quando este astro acordar quero-te jáa uma distância superior a dez léguas imperiais.assim não serás vista dentro dos limites desta terra.pois se isso acontecer, seja no final das horas que te dou,ou nos muitos anos que esta cidade terá de vidaa tua sentença será a morte. pausae por fim, em troca,quero os teus préstimos como...cientista.

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pausarejuvenesce-me.mas não penses que me enganes.se ficar sem vida,perderás também a tua.e agora vai.prepara-te pois mandar-te-ei chamar.

MEDEIAa ciência não permite que o faça aqui.

CREONTEcomo assim?

MEDEIAa este da cidadehá uma pequena floresta.no seu centro,uma clareira.estarei láassim que as núpcias terminarem. sai

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TRÊS

Nos seus aposentos. Glauce está sentada, em silêncio, algo perturbada.

JASÃO entrandoprocurei-te por todo o palácio.não sabia que me esperavas aqui.teria sido mais lesto… interrompe-se. pausa curta. envolve-a energicamente com os braços e beija-a sofregamente durante um longo momento. Glauce corresponde inicialmente, mas depois pára de o beijar, desviando um pouco a face. Jasão fica surpreendido. silêncio

GLAUCEela está cá.

JASÃOquem?

GLAUCE silêncio

JASÃOMedeia?

GLAUCEsim.

JASÃOe o decreto?

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GLAUCEignorou-o. JASÃOnão faças nenhum escândalo,Glauce,não hoje.sabes o que está em jogo.o rei não pode ficar mal-vistodiante dos convidados.

GLAUCEtens sempre uma resposta pronta.

JASÃOquero que aplaques a tua...

GLAUCE interrompendo-oela faz o meu sangue ferver.

JASÃOonde está agora?

GLAUCEpediu que o meu Pai a recebesse.ele assim fez.

JASÃOvai expulsá-la.

GLAUCEjá desobedeceu uma vez.quantas mais o fará?

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JASÃOnão perceb...

GLAUCE interrompendo-o de novoela segurou-te nas mãos antes de mim.e gerou rebentos.esteé um dia únicoo mais feliz da minha vida.a nossa vida.esta estrangeirailegalé para mim um embaraço.olhapara o nosso futuro leito...não o quero assombrado.apenas isso.será esse o teu dote.

JASÃO silêncio longosonhei esta noite.estava num lugarque era lugar nenhum.e ela estava lá.a falar uma língua antigaque eu não entendia.sons estranhos saíam-lheda boca.chamei-a mas a minha voz não se ouviu.nem eu a ouvi.havia um som abafadoum zumbidoque fazia com que...havia um calor abafadoque fazia com que...

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havia...fazia comque... silêncioela continuava lá.e... sem dar conta,num momento,num instante,vi sanguesangue nas minhas mãos.sangue que não era meumas que me pertencia.que não era vermelhomas azul.e senti uma dor lancinanteaquina cabeçaonde a carótida termina. silênciotemo por nós.temo por ti.

GLAUCEmeu amor,não temas.

JASÃOfalarei com ela,uma última vez.

GLAUCEnão será necessário convencê-la...

JASÃO interrompendo-afarei com que me oiça. pausa

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ainda esta noite. pausa. sai

GLAUCE silêncioé tarde demais.será transformadaem cinzas.a meu pedido.(a nossopedido.) silêncionão não não não nãoo que fui eu fazero que fui eu… interrompe-se. chamando-oJasão… silêncio longodesta noiteem dianteque os meus ouvidos que sejam moucosao ouvir o nome dela.

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QUATRO

Numa das alas da sua casa, em Corinto. Medeia espera, sentada. Fala com Hé-cate, sua mãe. Ao seus pés, um belíssimo manto. Silêncio muito longo.

MEDEIAMãe,a espera dói.ensaio novos cadáveresvezes e vezes na minha cabeça.por ordens diferentes.a quem dar a morte em primeiro.quem ficará por último.apago constantemente uma vontade iminente de...enfiar uma espada afiada no coração dos noivosdeitar fogo ao palácioe queimar aquele leito nupcial.mas a altura não é propíciadecerto apanhar-me-iam a entrar na casa reale depois seria motivo de chacota por toda a cidade.para além do mais, teria a morte como fim.o melhor é, pacientemente, urdir este planopela via em que sou mais sábia,a da ciência.consulto as minhas mãose não vejo o fim.não vejo uma cidadenão vejo hospitalidadenão há ninguémnão há um porto seguro.mas coragem,não me pouparei.no final de tudo terei o meu cérebro limpo de ruído.o zumbido fora dos meus pensamentos.ouves, Mãe.

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É ele.

JASÃO entra silêncioporque não me largas a mão? silêncio

MEDEIAcobarde dos cobardes.injurias assim a tua mulher. pausafui eu que te salveiquando foste lavrar aquele campo mortíferocom aqueles dois touros monstruososindomáveiscom cascos de bronzee fogo pelas narinas.fui eu que te salveiquando tentaste semearos dentes do dragãoque fora morto por Cadmo.fui eu que te salveiquando a seara de soldadoscresceu para te matar.fui eu que... interrompe-se. pausatu conheceste o rei,meu pai.tive que lidar com aquilo que ele era,dentro de mim.(não me traias, minha filha.)eu sabia que tu querias o velo de ouro.o meu pai,o rei,não o queria dar,

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também o sabia.não perguntei porquê.o meu dever eraajudá-loa fazer cederum homem inofensivo.tu.a qualquer preço.eu vi onde ele tinha imposto esse preço,demasiado alto,para nós todos.a coisa que me restava fazerera traí-lo. pausafui eu que sacrifiqueiApsirtoo meu irmãocortando-o em pedaçosatrasando a ira e perseguiçãoque o meu pai nos moviasalvando assim a nau Argo.foi então que ouvipela primeira veza palavra refugiada.para os Argonautaséramos refugiados.o meu coração doía.eu traí a minha família.perdi a minha pátria. pausa curtaagora,só desejoque nunca tivesses chegado à Cólquida.

JASÃOnão cessarás nunca

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de dizer que sou o pior dos homens?

MEDEIAtu,que me atraiçoastee que contrais novas núpcias tendo filhos.se ainda ao menosnão os tivesses,a um homem sem descendênciasseria... pausa curtaperdoável aquilo que fizeste. (já esqueceste o juramento.)sim, para mim,és o pior dos homens.mas vamos,conversarei contigo,como se ainda fosses meu amigo.

JASÃO pausaesta não é a primeira vezque te vejo envolta em cólera.este país seria o teu,não fosse a tua contestaçãoaos mandamentos e leis dos mais poderosos.mas pelas tuas palavras,o decreto surgiu:a todos os estrangeirose seus descendentestrês dias para abandonar a cidade,não contando o de hoje.acredita que tentei dissipara ira das tuas palavras junto dos soberanos,pedi-lhes que te deixassem ficar.e tu sempre a dizer mal.

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e agora, o decreto que não cumpriste. silêncioporque foste ao palácio?perder o teu orgulho e suplicarpara ficares? silênciopois eu também venho agoraaqui,visto que o meu pecado não é o orgulho...

MEDEIAé a luxúria...

JASÃO...pedir-te que te vás e não voltes.

MEDEIAé assim mesmo.vou-me embora.voltar para a casa paternaque traí pelo meu amor por ti.ou preferes que vá para junto das orfãs de Pélias,depois do que lhes fiz ao pai,haviam gostar de me ver. aos meus,tornei-me odiosa,e nos que não devia ter feito mal,criei inimigos.tudo por ti.que marido admirável.e pai.já que abandonas os teus filhos.que homem honradoé este recém-casado.

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JASÃOfalaste neles,os nossos filhos,onde estão eles?

MEDEIAcriaste um súbito interesse por...

JASÃO interrompendo-aquero vê-los.

MEDEIAnão podes.

JASÃOporquê?

MEDEIA silêncio curtovês este manto?ajudaram-me a bordá-lo.para o pai que... pausa curtaestá longe.é teu.peço-te que o leves. silêncio

JASÃOtudo o que fiz,foi com a ideia de os ajudar.

MEDEIAnão percebocomo isso pode ser possível.

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JASÃOdesde que saí de Iolcosminha terra natale que aqui chegueitransportei montes de desgraças.e para as colmatar,que melhor coisa para um exilado,que desposar a filha do rei?não por te odiarou abominar,ou mesmo pelo desejode um corpo mais jovemmas com a aspiração de nos proteger.os amigos fogem de quem é pobre,de quem sofre privações,como nós,e eu,para que pudéssemos viver bem,decidi que o melhorseria dar-lhes irmãos.assim as crianças de ti nascidas,estariam no mesmo grau,dos novos rebentosecom essa aliança,seríamos felizes. silênciopara que precisas tu de filhos?o que importa é queos que estarão para virajudarão os que já cá estão. silênciopensei mal? silênciomas tu,preferiste deixar abrir

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uma ferida no teu orgulho.

MEDEIAtens uma lacuna nesse plano.

JASÃOqual?

MEDEIAse não tivesses maldade alguma,farias esse casamentodepois de me teres convencido.

JASÃOe tu,pacificamente,terias favorecido essa proposta.tu,que agoranão acalmas essa ira.

MEDEIAisso não te deteve.

JASÃOpois digo-te:não é por amor que faço esta nova aliança. esta aliança real.mas como te disse,com a vontade de te salvare aos nossos filhos.mas tu deitaste tudo a perder.tu que tiveste a oportunidadede viver nas terras dos helenosem vez da dos bárbaros.

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(quem não seria europeu,se pudesse?)todos os gregos te conhecem,ou pelo menos conhecem o teu nome,se habitasses nos confins da terra,ninguém falaria de ti.poderias ter tudo,se fosses mais sensata.

MEDEIAsimplesmente não aceiteiessa vida de dor.

JASÃOo que é útilnão é doloroso.nem te trará a infelicidade,visto que a utilidade aquié a fortuna.

MEDEIAmostras-te arrogante.tu,que tens um tectoreal.eu,tenho que me evadir desta terra.

JASÃOfoi esse o decreto que redigiste. silênciose algum auxílio pedirespara ti ou para os nossos filhosou para a partida,digo-te,estou pronto a dar a minha mão.

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MEDEIAnão pedirei coisa alguma.e agora vai-te.vai celebrar as tuas núpcias.

JASÃO veste o manto e sai

MEDEIAvaivai.depois de terminarem as núpciasjá perto do leitosaberás o destinoda tua aliança real.agora aguardarei emboscadaque o tempo passe.

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CINCO

Nos seus aposentos, após o término do festejo. Glauce espera Jasão.

GLAUCEfinalmente,arranquei-o dos braços daquela mulher.ah Jasão,agora és meu.o juramento foi feito.nada nos separará.teremos todos os herdeirosque desejares.será uma nobre casta.sangue guerreirocomsangue nobre Coríntio.agora que aquela mulher já não o é,cujo nome me é inaudívele que já esqueci,podemos celebrara noite de núpcias.a partir de agoradormiremos juntos,Jasão.oiço a cidadea acalmar-se.as festas terminaram.onde estás?porque te demoras?agora que vem a noite,sabes que te esperoe que te desejocada vez maisa cada momento que passa.

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sou fogo, Jasão.sou fogo. pausa curtaparece-me ouvir passos… escuta. silênciosão passos, sim.os seus.aí vem ele.

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SEIS

Na floresta, a este de Corinto. Creonte, munido com uma luz de fogo, procura a clareira.

CREONTEtudo correu como esperava.as núpcias terminaramsem mais sobressaltos.a história de Corinto está traçada.por mim.nunca esta cidadeteveouteráum reinado tão longo.com um rei tãoeternamente jovem...e belo.serei quase imortal.marcarei a memóriade gerações de cidadãos.os meus netosparecerão meus filhos. silênciomas afinal onde estou.e onde está essa maldita clareira. silêncioMedeia.Medeia?

MEDEIAaqui.

CREONTEuh?

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MEDEIA aparecendo, segurando um punhalaqui,Creonte.

CREONTEdevo dizer-teque tenho esta florestacompletamente cercada.a tua vidadependerá da minha.

MEDEIA aproximando-se delenão temo,confio na minha ciência. CREONTEe agora?

MEDEIAe agora? levantando o braço, para desferir o golpea tua garganta.

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SETE

Numa das alas da casa de Medeia, em Corinto.

JASÃO fora de cena, em enorme sofrimento. gritandoME-DEIA. entrandoonde estás? gritaME-DEIA. silêncio. ajoelha-se ao lado da cadeira onde Medeia esteve sentada. silêncio longoassim que cheguei ao leito nupcialela, cheia de desejo,finalmente,agarra-me para unir os nossos corpos.já há muitoqueesperava este momento.albergar-me no delicioso ventreque a princesa desta terrapossui.um corpo novopor um velho e gasto.mas quando...mas quando ela decidepôr-me a descoberto,começando por me tiraro manto que me cobria...então um espectáculo terrível se pôde ver:a cor muda-lhe,os membros tremem ea todo o custotenta escapar do leitoe do manto que agora a envolvia.

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até que tomba por terra,soltando ao mesmo tempo,um gemido pavoroso,como que um zumbido.que ainda ecoa na minha cabeça.assim que me aproximo dela,vejo sair-lhe pela bocauma alva espuma,os olhos em brancoas meninas tinham desaparecido,e o corpo exangue.o zumbido ressoava agora por todo o palácio.e de repente,silêncio.e no meio deste silêncio,despertou,e olhou-me como um último fôlego.e foi então que,o manto se transforma em chamas,largando uma torrente mágica de fogoconsumidor de pele e carne.o corpo dela estava a ser lacerado.corpo que se apresentava agoracomo um cadáver,que não consegui tocar.estava completamente irreconhecível.já lá não estavam a beleza do seu rosto,a bela forma,e a nobreza da sua pele.mas sangue e fogo.um espectáculo pavoroso.tentei aproximar-me dojá velho corpomas o medo fora a minha sorte.jazia ali o cadáver da noiva real. silêncio.

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gritandoME-DEIA.rainha dos horrores.se ainda estiveres debaixo deste tectonão haverão forças ocultasque te salvem das minhas mãos. grita ME-DEIA. levanta-se e sai. grita de novoME-DEIA. entre silêncios e gritos por Medeia, percorre as outras divisões da casa até que encontra os seus filhos assassinados. solta um enorme, longo e pavoroso gritoMEUS FILHOS.MEUSFILHOS. reentra agoniado e cambaleante. traz agora parte das suas vestes ensanguentadas. em sofrimento cai e vomita. arranca parte das vestes ensanguentadas e deita-se já sem forças. silênciomeusqueridosfilhos. geme. silêncio longopercebo agora,que os meus dias chegam ao fim.já nada me resta,excepto deixar esta vida.seguir a minha noivae os meus filhospara o túmulo.

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OITO

Na floresta, a este de Corinto. Creonte está deitado, aparentemente morto. Si-lêncio. De repente, meio aturdido, começa a mexer-se e muito lentamente, levanta-se. Como reflexo, coloca a mão na garganta. Percebe que ainda vive. Tem parte da cabeça e das suas vestes com sangue misturado com algo viscoso, que parece ser um líquido amniótico.

CREONTE REJUVENESCIDO com as mãos, tocando no seu pescoço e depois na face. pausa. grita

GUARDAS.GUARDAS. a floresta começa a ser invadida por luzes de fogo. ouvimos os guardas a aproximarem-sea luz do diabrilhará de uma forma maisaprazível.agora que estou bemserei mais solicito em cuidar da minha saúdedo que melhorar quando estou doente. pausavaidade das vaidades:tudo é vaidade.(um espelho...)um espelho.(a minha cidade e um espelho.)

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NOVE

Fora dos limites da cidade, a este de Corinto. O dia nasce. Medeia olha, pela últi-ma vez, para a cidade de Corinto.

MEDEIAo dia nasce,já a mais de dez léguas imperiais,como se fez a combinação.a minha vingança está feita.o castigo está completo.a cidade jaz agora em ruínas,está transformada num cemitério.governa agora,Creonte Rejuvenescido.governa, se souberes,por muitos e muitos anos.aos meus filhos,aqueles que gerei,que estão noutro género de vida,espero que me perdoem.mas não podia deixar-vosà insolência de estranhos.era absoluta a necessidadede vos matar,e já que era forçoso,quem melhor para o fazerdo que aquela que vos gerou.a Jasão...o amor de uma mulher por um homemexplica e desculpa tudo. silênciosilêncio. silêncio longoa tudo o que fiz até agorachamo-lhe

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obra de caridade... pausaagora sou Medeia. pausa curtaa minha natureza cresceu pelo sofrimento.

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© LUÍS MESTRE [email protected]@gmail.com

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ISBN 978-989-98123-3-8

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