medeia de euripedes teatro

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Eurípedes Medeia

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Para estudar Euripedes

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Medeia

Eurpedes

Medeia

Introduo

A lenda de Medeia era muito antiga na mitologia grega, uma vez que essa figura se encontrava ligada expedio dos Argonautas,, que j devia andar na gesta dos aedos antes da composio da prpria Odissia. Por isso mesmo, no de estranhar que a histria da princesa brbara, que ajudara Jaso na conquista do velo de ouro e o seguira para Corinto, atravs de mil dificuldades, se tenha desdobrado numa pluralidade de incidentes, por vezes contraditrios. Em algumas dessas verses, aparece j a morte dos filhos, ou causada pelos Corntios, ou motivada acidentalmente pela prpria me. Talvez, como supem alguns, Eurpides tivesse dado o passo seguinte, de atribuir a Medeia o plano e execuo desse ato, para castigar a infidelidade do marido. O certo que, a partir desse ano de 431 a.C., em que a tetralogia a que pertencia a nossa pea ficou num modesto terceiro lugar no concurso das Grandes Dionsias, no mais esse novo elemento se desligou da histria da feiticeira da Clquida.

Mas o crime de Medeia o culminar de um processo que se vai desenvolvendo com implacvel violncia desde o princpio do drama. Logo no comeo do prlogo, quando a ama faz o retrato de sua senhora, depois de abandonada e trada pelo homem a quem tudo sacrificara, ns compreendemos que a sua reao vai ser terrvel. E,, desde que Medeia entra em cena, no primeiro episdio,, at aos breves momentos em que a deixa, j no final da pea, ns assistimos s suas diligncias para segurar a vingana (cena de Creonte, no primeiro episdio; dilogo com Jaso, no quarto episdio), ou aos amargos monlogos em que se dilacera a sua alma, presa entre a sede de revindita e o amor maternal. Assim a psicologia da protagonista domina todo o drama, com as suas alternativas de amor e dio, as sua atitudes de incontida fria ou de calculada submisso. um ser humano agitado por uma paixo indomvel - to humano,, que o motivo dos poderes mgicos quase completamente esquecido, e apenas aflora uma vez, nos venenos dos peplos com que mata a sua rival. Porm, ao chegar ao final da tragdia, a figura de Medeia evade-se do palcio no carro do Sol, como se fosse um deus ex machina; e, tal como se fora uma divindade, institui o culto dos filhos de Corinto. Todos estes processos, correntes nas peas de Eurpides, podem parecer ao leitor moderno como uma estranha maquinaria, sobre a qual pesa demasiado a marca do tempo. Mas representam, na verdade, um regresso da pessoa da protagonista aos quadros mticos de onde proviera, ligando simultaneamente a pea a uma tradio religiosa local.

Personagens

Ama

Creonte

Filhos de Medeia

Pedagogo

Jaso

Coro das Mulheres de Corinto

Egeu

Medeia

MensageiroPrlogo

(A Ama s,, em frente casa de Medeia.)

Ama

Quem dera que a nau de Argos1, quando seguia para a terra da Clquida, nunca tivesse batido as asas2 atravs das negras Simplgades3, e que nas florestas do Plion4 no houvesse tombado o pinheiro abatido, nem ele tivesse dado os remos aos braos dos homens valentes, que buscaram o velo de ouro para Plias. Assim no teria Medeia, a minha senhora, navegado para as fortalezas da terra de Iolcos, ferida no seu peito pelo amor de Jaso5. Nem depois de convencer as filhas de Plias a matar o pai6, habitaria esta terra de Corinto com o marido e os filhos, alegrando com a sua fuga os cidados a cujo pas chegara7, em tudo concorde com Jaso. Porque essa certamente a maior segurana, que a mulher no discorde do marido.

Agora tudo lhe odioso, e aborrece-a o que mais ama. Traindo a minha senhora e os seus prprios filhos, Jaso repousa no tlamo rgio, tendo desposado a filha de Creonte8, que manda nestas terras; e Medeia, desgraada e desprezada, clama pelos juramentos, invoca as mos que se apertaram9, esse penhor mximo, e toma os deuses por testemunhas da recompensa que recebe de Jaso. Jaz sem comer, o corpo abandonado dor, consumindo nas lgrimas todo o tempo, desde que se sentiu injuriada pelo marido, sem erguer os olhos, sem desviar o rosto do cho. Como uma rocha ou uma onda do mar, assim escutas os amigos, quando a aconselham. A no ser quando alguma vez, volvendo o colo alvinitente, de si para si lamenta o pai querido, a terra e a casa que traiu para vir com o homem que agora a desprezou. Sabe a infeliz,, oprimida pela desgraa,, o que no abandonar a casa paterna. Abomina os filhos e nem se alegra com v-los. Temo que ela medite nalguma nova resoluo10. que ela terrvel, e que a desafiar como inimiga no alcanar facilmente vitria.

Mas eis que os filhos, acabadas as corridas, se aproximam, sem nada saber da desgraa da me; que a mente juvenil no gosta de sofrer.

(Entra o Pedagogo com os filhos de Medeia.)

Pedagogo

velha guardi da casa da minha senhora, porque ests aqui porta, nesta solido, a gritar alto a tua dor? Medeia, como quer que a deixes s?

Ama

Velho companheiro dos filhos de Jaso, aos escravos fiis atinge-os duramente a desgraa de seus amos, e do seu corao se apodera. A tal ponto chegou a minha dor, que me veio o desejo de vir aqui clamar terra e ao cu a sorte da minha senhora.

Pedagogo

Ainda a pobre no cessou de gemer?

Ama

Invejo-te; o mal est no comeo, no vai ainda em meio.

Pedagogo

Pobre louca - se dos amos lcito diz-lo - que nada sabe de males mais recentes.

Ama

Que , ancio? No te negues a diz-lo.

Pedagogo

Nada. Arrependo-me at do que j disse.

Ama

No faas segredo, por quem s11, de uma companheira de servido; sobre isso manterei o silncio, se tanto for preciso.

Pedagogo

A algum ouvi dizer, sem parecer estar escuta, quando passava no lugar dos jogos dos dados12, onde afluem os ancios, junto da linfa sagrada de Pirene13, que Creonte, senhor destas terras, queria expulsar do pas de Corinto estas crianas com a me. Se o que se disse verdade, ainda no sei; quisera que o no fosse.

Ama

E Jaso, apesar da dissenso com a me, h de consentir que os filhos sofram tal?

Pedagogo

O antigo parentesco cede ao novo, e ele no amigo desta casa.

Ama

Estamos perdidos, se ao mal antigo juntamos um novo, antes de aquele ter murchado.

Pedagogo

Mas tu fica quieta e guarda silncio, que no o momento de a senhora saber.

Ama

filhos, ouvis como para vs o vosso pai? No lhe desejo a morte - o meu senhor. Mas a sua falsidade a perdio dos seus.

Pedagogo

E quem no assim dentre os mortais? Ainda agora que sabes coo cada um se ama mais a si do que ao prximo14, ao ver que por causa de novas npcias que o pai os no estremece...

Ama

Ide, filhos, para dentro de casa, que l tudo estar bem. E tu conserva-os parte o mais que for possvel, e no te aproximes da me em delrio; que eu j a vi olh-los com os olhos bravos de um toiro que vai fazer algo de terrvel; nem cessar a sua clera, eu bem o sei, sem se abater sobre algum. Que ao menos recaia sobre os inimigos, no sobre os amigos.

Medeia (de dentro)

Ai!

Desgraada de mim e dos meu males.

Ai, ai de mim, que fim ser o meu?

Ama

Vedes, caros filhos; a vossa me

o peito se lhe agita e move a ira.

Correi depressa para dentro do palcio,

e no vos acerqueis da sua vista,

nem vos aproximeis, mas defendei-vos

do carter selvagem, temeroso

de um nimo indomvel.

Ide, ento, correi cleres para dentro.

(Os filhos de Medeia entram no palcio.)

bem claro, em breve com maior paixo

inflamar a nuvem de gemidos

que comea a surgir; e que far,

to malferida, e inaplacvel

uma alma mordida pela desgraa?

Medeia

Ai! Ai!

Sofri, desgraada, sofri males muito para lamentar.

filhos malditos de me odiosa,

perecei com vosso pai, e a casa

caia toda em runas.

Ama

Ai ai de mim, desgraada!

Por que entram as crianas na culpa

que do pai? por que os odeias? Ai,

filhos, como eu temo que algo sofrais.

Duro dos soberanos o querer

e, pouco mandados, podendo muito,

dificilmente mudam suas iras.

Melhor o costume de viver

na igualdade; a mim me seja dada

velhice tranqila e sem grandezas.

Da moderao, vale nome mais que tudo.

Dela usar bem melhor para os mortais;

aos homens de nada serve passar tal medida.

Maior a pena da desgraa que sofrem, quando em fria

o demnio anda em casa.

Prodo

(Entra o Coro, formado por quinze mulheres de Corinto.)

Coro

Ouvi, ouvi a voz e o clamor

da Clquida infeliz e sem sossego.

Mas fala, anci,

que j minha porta e dentro do palcio

ouvi um gemido; e eu no folgo,

mulher,, com as dores desta casa,

de quem fiquei amiga.

Ama

Casa - j no ; isso j l vai,

que a um detm-no o leito dos reis,,

ela consome no tlamo a vida,

a senhora, sem que falas amigas

conforte o seu peito.

Medeia

Ai! Ai!

O fogo do cu me trespasse a cabea.

De que vale ainda viver? Ai, ai!

Quem me dera deixar a vida odiosa,

pela morte libertada!

Coro

Estrofe

Ouvis, Zeus terra,, luz,

que grito agora soltou

essa esposa desgraada?

Que desejo esse das npcias

que deves evitar15, louca?

Acaso tens pressa de chegar

ao termo da morte?

No peas isso.

Se o teu esposo

faz honra a novo leito,

isso comum; no te exasperes,

Zeus te far justia.

No te consumas, lamentando

demais teu companheiro.

Medeia

grande Tmis16, rtemis venervel,

vedes o que eu sofro, eu que prendi a mim,

com grandes juras17, o esposo maldito!

Que eu um dia o veja

a arder com a prpria casa,

ele e a sua noiva, que primeiro

ousou injuriar-me.

meu pai, minha terra que eu deixei,

matando com oprbrio meu irmo18!

Ama

Ouvis como fala e grita

por Tmis, patrona dos votos, e por Zeus,

que vale como guardio das juras para os mortais19

No com pouco que a minha senhora

acalmar a ira.

CoroAntstrofe

Como poderia ela vir

nossa vista, receber

das nossas palavras o som,

a ver se a pesada ira

e capricho abandonava?

Porque, dos amigos, o nosso zelo

no estar longe.

Mas anda, vai

dentro de casa

e leva-lhe estas palavras

amigas. Apressa-te j,

antes que o mal chegue

aos que l moram; que a dor

j cresce, desmedida.

Ama

Assim farei; mas temo no convencer

a minha senhora;

mas este penoso favor eu te concedo,

apesar de o seu olhar de leoa que pariu

ser bravo como um touro para os servos, quando algum,

para falar-lhe, se aproxima.

Se disseres inbeis e ignaros

os antigos mortais20, no erras;

eles que para festas, banquetes e ceias

acharam da vida suaves acentos,

compondo hinos.

Mas entre os mortais, nem um descobriu

como fazer cessar

com a musa e o canto multssino,

o hrrido desgosto, donde sai a morte

e o fado terrvel que as casas.

E contudo era bom

sarar com cantos os mortais.

Onde h lautos banquetes

para que em vo levantam clamores?

L esta a abundncia do banquete

que em si tem deleite para os mortais.

(A ama retira-se.)

Coro

Um grito ouvi

pleno de lamentos,

e agudos gritos de dor clamam

pelo esposo infiel ao seu leito.

A que sofreu o mal invoca a filha de Zeus,

dos juramentos guardi, Tmis21,

a que a trouxe

Hlade fronteira22,

atravs do mar escuro da noite,

para a entrada marinha do Ponto sem limites23.

Primeiro Episdio

(Entra Medeia.)

Medeia

Sa de casa, mulheres de Corinto, para que nada me censurei. Porque eu sei que muitos dentre os mortais so arrogantes, uns longe da vista, outros porta de casa; outros, atravessando a vida com passo tranqilo, hostil fama ganharam de vileza. Porque no h justia aos olhos dos mortais, se algum antes de bem conhecer o ntimo do homem, o odeia s de o ver, sem ter sido ofendido. Fora que o estrangeiro se adapte nao; tampouco louvo do cidado que acerbo para os outros, por falta de sensibilidade.

Sobre mim este feito inesperado se abateu, que a minha alma destruiu. Fiquei perdida e tenho de abandonar as graas desta vida para morrer,, amigas. Aquele que era tudo para mim (ele bem o sabe) no pior dos homens se tornou - o meu esposo.

De quanto h a dotado de alma e de razo, somos ns, mulheres, a mais msera criatura. Ns, que primeiro temos de comprar, fora de riqueza24, um marido e de tomar um dspota do nosso corpo - di mais ainda um mal do que o outro. E nisso vai o maior risco, se o tomamos bom ou mau. Pois a separao para a mulher inglria, e no pode repudiar o marido.

Entrada numa raa e em lei novas, tem de ser adivinha, sem ter aprendido em casa, de como deve tratar o companheiro de leito. E quando o conseguimos com os nossos esforos, invejvel a vida com um esposo que no leva o jugo fora; de outro modo antes a morte. O homem, quando o enfadam os da casa, saindo, liberta o corao do desgostos25. Para ns, fora que contemplemos uma s pessoa. Dizem: como ns vivemos em casa uma vida sem risco, e ele a combater com a lana. Insensatos! Como eu preferiria mil vezes estar na linha de batalha26 a ser uma s vez me!

Mas a vs e a mim no serve a mesma argumentao. Vs tendes aqui a vossa cidade e a casa paterna, a posse do bem-estar e a companhia dos amigos. E eu, sozinha, sem ptria, sou ultrajada pelo marido, raptada duma terra brbara, sem ter me, nem irmo, nem parente, para me acolher desta desgraa.

Apenas isto de vs quero obter: se alguma soluo ou processo eu encontrar para fazer pagar ao meu marido a pena deste ultraje27, guardai silncio. Alis, cheia de medo a mulher, e vil perante a fora e vista do ferro. Mas quando no leito a ofensa sentir, no h a outro esprito que penda mais para o sangue.

Coro

Assim farei. Com justia castigars o teu marido, Medeia. No me admiro que deplores a tua sorte.

Mas vejo tambm Creonte, o prncipe desta terra,, que se aproxima, mensageiro de novas deliberaes.

(Entra Creonte, acompanhado pelos seus guardas.)

Creonte

A ti, Medeia de olhar turvo, com teu esposo irada, eu digo que saias como exilada deste pas, levando contigo os teus dois filhos. E no hesites. Que eu sou de tal ordem o rbitro, e no voltarei para minha casa antes de te expulsar dos confins desta terra.

Medeia

Ai! Ai! Desgraada, que de todo estou perdida. O navio inimigo avana a todo pano, e no h sada deste mal, que seja fcil de abordar28. Mas, na minha desgraa,, mesmo assim te pergunto: porque me mandas embora desta terra, Creonte?

Creonte

Eu temo - no vale a pena dissimular as palavras - que faas minha filha algum mal irreparvel. Motivos de temor h-os de sobra. Tu s por natureza astuta e sabedora de muitos artifcios, e torturas-te por estares privada do tlamo conjugal. Ouo dizer - e anunciam-mo - que algo ameaas fazer ao que d em casamento, ao esposo e desposada. Disto me guardo, antes de o sofrer. Melhor para mim mostrar-me agora odioso, mulher, do que gemer depois de enfranquecido.

Medeia

Ai! Ai! No agora a primeira vez, Creonte, mas j muitas vezes a fama me foi nociva e me causou grandes males. Que jamais algum, que seja por natureza astuto, instrua os filhos mais do que o preciso, fazendo deles sbios. Porque, alm da mancha da inrcia, que tm, ganharo malevolente inveja dos seus concidados. que, para a multido ignara, quem for o portador de uma nova sabedoria, passar por intil,, e no por sbio. E quem, na cidade, for julgado melhor do que aqueles que aparentam saber muitas coisas ser tido como indesejvel29.

De tal sorte tambm eu mesma participo. A minha cincia faz com que eu para uns seja invejada30 para outros ainda desagradvel. E, contudo, no sou muito sbia. E ento tu tens medo de mim? Medo de sofreres algo desagradvel? No estou na disposio - ai! no temas Creonte - de me tornar culpada contra quem governa. Pois tu que mal me fizeste? Deste a tua filha a quem a alma te indicava. Ao meu esposo, e esse que eu detesto. Tu - creio eu - procedeste assim com sensatez. E agora, eu no invejo o teu bem-estar. Casai, sede felizes. Mas deixem-me habitar neste pas. Mesmo ultrajadas, calar-nos-emos, vencidas pelos ais poderosos.

Creonte

Dizes palavras brandas ao ouvidos, mas dentro da tua alma tenho o temor de que premedites algum mal para mim, e tanto mais que antes acreditei em ti. Porque a uma mulher irascvel, tal como a um homem, mais fcil guard-la do que a um sbio silencioso. Mas sai o mais depressa possvel, no discutas. assim que convm, e no ters artes de ficar junto de ns, tendo ms intenes contra mim.

Medeia

No, suplico-te31 pela tua filha h pouco desposada.

Creonte

Ests a gastar palavras; nunca me convencerias.

Medeia

Expulsas-me ento e no te amerceias das minhas preces?

Creonte

No te amo mais a ti do que minha casa.

Medeia

minha ptria, como eu agora me lembro de ti!

Creonte

Depois dos filhos, nada me mais caro.

Medeia

Ai! Ai! Que grande mal o amor para os mortais!

Creonte

Conforme a fortuna, ao que me parece.

Medeia

Zeus, no vos escape o causador desta desgraa!

Creonte

Vai-te, louca, e livra-me de trabalhos.

Medeia

Trabalhos sero os nossos e de mais no precisamos.

Creonte

Em breve sers levada fora, nos braos dos escravos.

Medeia

Isso, ao menos, no, suplico-te, Creonte.

Creonte

Tu causars dificuldades, ao que parece, mulher.

Medeia

Fugiremos; mas no era esse o objeto da minha splica.

Creonte

E ento por que insistes e no te afastas desta terra?

Medeia

Este dia s consente que eu fique, a pensar na maneira de nos irmos e na direo que ho de tomar os meus filhos, j que o pai nada se importa com o que h de arranjar para eles. Tem pena deles. Que tu tambm s um pai com filhos. natural que tenhas benevolncia. Pelo que me diz respeito, no tenho cuidados, quando nos formos, mas choro-os a eles, pela desgraa que os atingiu.

Creonte

A minha vontade e nada a de um dspota; mas muitas vezes arruinei a situao, por ser compassivo. E agora eu vejo que erro, mulher, mas, mesmo assim, ser-te- concedido. Mas previno-te, se a luz do sol32 que h de surgir te vir e s crianas dentro dos confins desta terra, morrers; est sentena iniludvel. E agora, se preciso ficares,, fica por um dia; que no fars nada do mal que eu temo.

(Sai Creonte.)

Coro

Pobre mulher,

Ai de ti! infeliz pela desgraa,

para onde hs de voltar-te? que hospitalidade33,

que casa, que pas salva teus males?

Como um deus te conduziu, Medeia,

por um mar sem fim de calamidades.

Medeia

De todos os lados a desgraa. Quem contestar? Mas ainda no fica assim, no suponhais. Ainda h lutas para os noivos de h pouco; para os sogros, no pequenos trabalhos. Ou pensais que, se o lisonjeei, no era para ganhar ou tramar alguma coisa? Nem lhe falava nem lhe tocava com as minhas mos35... E ele a tal loucura chegou que, sendo-lhe dado tolher os meus planos, expulsando-me do pas, concedeu-me ficar este dia, em que dos meu inimigos farei trs cadveres: o pai e a donzela e o marido - mas o meu.

Dispondo de muitos caminhos, para lhes dar a morte, no sei, amigas, qual ensaiar primeiro. Se hei de deitar fogo casa nupcial ou enterrar no corao36 uma espada afiada, entrando silenciosa no palcio no palcio, onde est armado o leito. Mas uma s coisa me adversa: se sou apanhada ao entrar em casa e ao preparar o ardil, a minha morte dar motivo ao escrnio dos meus inimigos. O melhor pela via ais direta, na qual somos mais sbias, suprimi-los com veneno. Seja. Eles esto mortos. E que cidade me receber? Quem, oferecendo uma terra imune de ofensa e uma casa fidedigna, salvar o meu corpo com a sua hospitalidade37? No h ningum. Espero ento ainda algum tempo, a ver se aparece algum baluarte seguro38, e com o dolo e o silncio executo este crime. E, se uma sorte irreparvel me atingir, eu mesma empunharei a espada, ainda quando tenha de morrer, e os matarei, e seguirei os caminhos violentos da ousadia. Porque, pela minha Senhora, a quem presto culto acima de todos, e que escolhi para me ajudar, por Hcate39, a que habita no recesso do meu lar, nenhum deles torturar inclume o meu corao. Amargos e funestos lhes farei os esponsais,, amarga a aliana e a minha fuga destas terras. Coragem, Medeia, no te poupes a nada do que sabes,, agora que j deliberaste e arranjaste um expediente. Avana para esse fim terrvel; agora a luta dos nimos fortes. Tu vs o que sofres. No deves oferecer motivos de escrnio por causa destas npcias entre a raa de Ssifo40 e Jaso, t que descendes de um pai nobre e do Sol41. Bem o sabes. Alm de que nascemos mulheres, para as aes nobres incapacssimas, mas de todos os males artfices sapientssimas.

Primeiro Estsimo

Estrofe

Coro

Para trs volvem as guas dos rios sagrados42,

ao contrrio andam justia e o mais;

nos homens, fraudulentas sentenas; nos deuses

no mais temos confiana.

A fama mudar, trazendo minha vida

glria; a honra vir para a raa das mulheres

e fama inglria no mais nos manchar.

Antstrofe

Dos velhos aedos as musas cessaro

de celebrar do eu sexo a infidelidade43.

O canto inspirado da lira,, no o quis

Febo, senhor dos sons44,

em nossa mente infundir45; que, se o fizera,

eu comporia um canto contra os homens.

Deles e de ns tem que dizer o longo Tempo.

Estrofe

Tu da casa paterna navegaste,

corao tresloucado, separando

do mar os dois escolhos46;

em terra estranha habitas,

o tlamo deserto,

infeliz, para o exlio,

sem honra, te atiraro.

Antstrofe

Do juramento partiu a lealdade;

na Grcia magna a vergonha nos ares

se evolou. Tu, coitada,

a ptria casa no tens,

para refgio das penas,

mas outra mais potente

reinar em teu lar.

2. Episdio

(Entra Jaso)

Jaso

no esta a primeira vez, mas j muitas eu vi como a clera violenta um mal irremedivel. Era-te permitido estar neste pas e nesta casa, se suportasses bem os desgnios dos mais poderosos, mas pelas ,tuas palavras estultas sers expulsas desta terra. Eu no tenho nada a ver com isso. no cessars nunca de dizer que Jaso o pior dos homens? Mas, quando ao que disseste contra os soberanos, fica sabendo que para ti grande lucro ser a fuga o teu castigo. E eu sempre a tentar dissipar as iras dos reis enfurecidos, e a querer que tu ficasses: e tu sem desistires da tua insensatez, sempre a dizer mal dos soberanos; por isso sers expulsa desta terra. Venho, no obstante, depois disto, sem me negar aos amigos, olhando pela tua sorte, mulher, para que no vs daqui para fora com as crianas, indigente ou necessitada. Muitos males carrega consigo o exlio. E, ainda que tu me odeies, jamais eu seria capaz de te querer mal.

Medeia

grande malvado que est a pior injria que a minha lngua tem para a tua covardia tu vieste ter conosco, tu vieste, odiosa criatura?47 Isto j no atrevimento, isto j no ousadia olhar de frente para os amigos a quem se faz mal mas a maior de todas as enfermidades humanas, a falta de vergonha. Mas fizeste bem em vir. Porque eu, injuriando-te, aliviarei a minha alma, e tu, ouvindo-me, passars pela tortura.

Pelo princpio principiarei a dizer. Fui eu quem te salvou, como sabem os Helenos quantos embarcaram na mesma nau de Argos, quando te mandaram por o jugo aos touros ignispirantes e semear o campo mortfero. E o drago, que, envolvendo o velo de ouro, enrolado em espiral, o guardava insone, matei-o levando tua frente a luz da salvao.

E fui eu que, traindo o meu pai e a minha casa, contigo vim para Iolcos do Plion, com mais paixo do que sensatez. E matei Plias, da maneira mais dolorosa, s mos das suas filhas, e toda a casa destru. E depois de teres recebido tais benefcios da nossa parte, tu, o mais celerado dos homens, atraioaste-nos e contraste novas npcias, havendo filhos; se ainda ao menos no tivesses descendncia, seria perdovel teres-te enamorado de um novo tlamo. Desvaneceu-se a f nos juramentos, nem sei se crs que os deuses de ento j no governam, ou que h novas leis agora para os homens, j que ao menos tens conscincia de no teres sido fiel ao juramento que me fizeste. Ai, minha mo direita, que tantas vezes apertaste, e este joelhos, como em vo se agarrou neles, como suplicante48, um homem malvado! Como no realizamos as nossas esperanas.

Mas vamos; conversarei contigo, como se meu amigo foras. Supondo que algum bem me vir da tua parte? seja como for. Sujeito a um interrogatrio, mas infame parecers. E, agora, para onde hei de voltar-me? para a casa paterna e para a minha ptria, que tra por amor de ti, vindo para este pas? Ou junto das desgraadas filhas de Plias? Sem dvida, elas haviam de receber-me bem na casa onde lhes matei o pai... assim mesmo. Aos da minha casa, que me eram caros, me tornei odiosa e, naqueles a quem no devia fazer mal, criei inimigos, para te favorecer a ti. Foi assim que, em troca de tudo isto, me fizeste feliz aos olhos das mulheres gregas; admirvel o marido que eu tenho e fiel desgraada de mim! Se me expulsarem e eu fugir desta terra, privada de amigos, sozinha, com os filhos, sozinhos, bela honra para o recm-casado, que vo errantes, como mendigos, os teus filhos e eu a que te salvei. Porque seria, Zeus, que do ouro falso deste humanidade indcio claro, e para conhecer nos homens a maldade no h contraste49 no corpo, que os distinga?

Coro

Terrvel a ira, e insanvel, quando amigos contra amigos lanam a discrdia.

Jaso

Fora , ao que parece, que eu no seja mau orador, mas, qual timoneiro de uma nau valente, com os extremos das velas me furte tua loquacidade temerria, mulher. Eu, por mim, j que tanto exaltas o teu favor, creio que, dentre os homens e deuses, foi Cpria a nica salvadora da minha viagem. Tu tens o esprito sutil, mas te desagradvel explicar como Eros te forou com armas iniludveis a salvar a minha pessoa. Mas no vou insistir por demais nesse argumento. Fosse qual fosse a tua ajuda, no est mal. Recebeste mais do que deste para me salvar, como te vou demonstrar. Em, primeiro lugar, habitas na terra dos Helenos, em vez da dos brbaros, conheces a justia e sabes usar das leis, sem recorrer fora50. Todos os gregos perceberam que eras sbia e tornaste-te famosa; se habitasses nos confins da terra, no se falaria de ti. Que eu no tivesse o oiro em casa, nem cantasse uma melodia mais bela que a de Orfeu51, se a fortuna insigne me no tocasse.

Tal o que eu tenho para dizer dos meus trabalhos, j que tu preferiste uma luta de palavras. Quanto ao que me censuraste sobre as npcias reais, nisso te mostrarei primeiro que fui sensato depois que fui esperto, depois que fui esperto, depois ainda que fui um grande amigo, para ti e para os meus filhos. Mas est quieta52. Desde que da terra dos Iolcos para aqui passei, transportando muitas desgraas irreparveis, que soluo podia achar mais acertada do que esta, de desposar a filha do rei, sendo um exilado? no da maneira pungente que supes, por abominar o teu leito, ou tomado pelo desejo de outra noiva, nem com a aspirao de rivalizar com os que tm muita descendncia. Bastam os que nasceram, nada tenho a censurar. Mas o que mais importante, para pudssemos viver bem, e no sofrssemos privaes, sabendo que todos os amigos fogem de quem pobre... e para criar os filhos como devido minha linhagem, dando-lhes irmo, s crianas de ti nascidas... para os colocar no mesmo grau e, aliando a raa, sermos felizes. Pois tu para que precisa dos filhos? A mim importa com os que ho de vir ser til aos que j existem. Acaso pensei mal? No eras tu que o dirias, se no te dilacerasse o novo tlamo. Mas a tal ponto chegastes que, estando o consrcio em boa ordem, vs, mulheres, supondes ter tudo; se, porm, surge algum contratempo no matrimnio, das melhores e mais belas relaes fazem as mais hostis. Deviam os mortais gerar os filhos de outra maneira, e no existir o sexo feminino. E assim no haveria mal para os homens.

Coro

Bem enfeitaste, Jaso, tuas palavras; mas a mim se me afigura, se bem que contra a tua opinio fale, que, traindo tua esposa, no fizeste justia.

Medeia

verdade que em muitas coisas sou diferente da maioria dos mortais. Para mim, quem, sendo injusto, hbil no dizer, merece muito maior castigo53. Com uma lngua artificiosa se gaba de enfeitar a injustia e ousa cometer o mal; mas ele no to destro como isso. Agora vais mostrar que no s hbil para mim, nem eloqente; porque uma s palavra te abater! Era preciso, se no fosses malvado, que fizesses esse casamento depois de me teres convencido, e no a ocultas dos que te amam.

Jaso

Belamente terias favorecido tal proposta, bem o creio, se eu te houvesse falado do casamento que nem agora te afoitas a depor a grande ira do teu corao.

Medeia

No foi isso o que te deteve, mas que no te pareceu que, na velhice, um tlamo brbaro te seria glorioso.

Jaso

Pois fica a saber duma vez para sempre: No foi por amor de uma mulher que eu fiz esta aliana com o leito real que agora tenho, mas, como j disse, com o desejo de te salvar e de gerar filhos rgios, da mesma origem dos mais, que sejam o sustentculo da casa.

Medeia

Que no me caiba em sorte essa prspera vida de dor, nem essa felicidade, que dilacera o meu esprito!

Jaso

Tu sabes como hs de mudar e mostrar-te mais sensata. Um dia o que til no te parecer doloroso, nem te julgars infeliz, sendo afortunada.

Medeia

Mostra-te insolente, tu que tens refgio, que eu sozinha hei de evadir-me desta terra.

Jaso

Tu mesma escolheste; no acuses mais ningum.

Medeia

Fazendo o qu? Casando, por ventura, e atraioando-te?

Jaso

Lanando maldies molestas aos soberanos.

Medeia

Sim, tambm para a tua casa eu sou uma fonte de maldies.

Jaso

No continuemos a questionar sobre isto. Mas, se algum auxlio queres dos meus haveres, para os filhos ou para a tua partida, fala, que eu estou pronto a dar com mo liberal, e a mandar senhas aos amigos54 que, te ho de receber bem. E, se o no quisesses, loucura, mulher cessando a tua clera, ganhars mais.

Medeia

Da hospitalidade dos teus amigos no carecerei; nem receberei coisa alguma, nem no-la ds; que a ddiva de um celerado no tem utilidade.

Jaso

Mas eu tomo os numes por testemunha de que quero fazer todo o bem, a ti e s crianas. A ti no te agrada o que bom, mas por orgulho rejeitas os amigos; tanto mais h de doer-te.

Medeia

Corre. Tomar-te- a saudade da donzela recm desposada, se te demoras fora de casa, longe da sua vista. Celebras as tuas npcias; que ainda pode ser que, com o auxlio do deus, se diga que casars de maneira a renegares o casamento.

(Sai Jaso.)

2. Estsimo

Estrofe

O amor quando forte55nem renome nem virtude

d aos homens.

Ai! mas Vnus, quando branda,

no h deusa mais graciosa!

Contra mim, nunca, senhora, tu lances

do arco doirado a seta inevitvel

ungida de paixo.

Antstrofe

Seja eu antes sensata,

dos deuses dom mais belo;

nunca, ferida

a minha alma pela ira adversa

e discrdia insacivel,

Vnus terrvel me d outro leito;

antes honrando uma unio tranqila,

a distinga das outras.

Estrofe

ptria, meu lar,

nunca eu de vs seja privada,

tendo na frente uma vida

impossvel de viver,

misrrima em seus males.

A morte, a morte me vena antes

de chegar esse dia.

Dentre as penas maior no h

que ser da ptria arrancado.

Antstrofe

Ns vimos, no soubemos

por outros o que ns pensamos.

Nem cidade nem amigo

do teu mal se condoeu,

que dos males o pior.

Possa como ingrato perecer

quem no honra os amigos,

depois de dar da alma pura

as chaves. Para mim no amigo.

3. Episdio

(Entra Egeu.)

Egeu

Medeia, salve: que no h preldio mais belo do que este, para nos dirigirmos a um amigo56.

Medeia

Salve tu tambm, filho do sbio Pandon, Egeu57. Donde vens para o solo desta terra?

Egeu

De Febo deixei o orculo vetusto58.

Medeia

E porque ao centro da terra59 fatdico chegaste?

Egeu

Buscando ter dos filhos a gerao.

Medeia

deuses! Sem filhos chegaste at aqui?

Egeu

Sem filhos somos, pelo fado de algum deus.

Medeia

Tendo mulher, ou sendo estranho ao tlamo?

Egeu

No somos livres do leito nupcial.

Medeia

E que te disse Febo sobre filhos?

Egeu

Palavras demasiado sbias para um homem entender.

Egeu

Claro, tanto mais que ele pede um esprito sutil.

Medeia

Que orculo deu ento? Diz, se lcito ouvir.

Egeu

Que do ventre eu no solte a parte proeminente...

Medeia

Antes de fazer o qu ou de chegar a que terras?

Egeu

Antes de voltar a entrar no lar paterno

Medeia

E com que necessidade navegaste para esta terra60?

Egeu

H um homem chamado Piteu, senhor da terra de Trezeno...

Medeia

Filho, ao que dizem, muito piedoso, de Plops61.

Egeu

Com ele quero conversar sobre a ordem divina.

Medeia

Sbio o varo e experimentado no assunto.

Egeu

E a mim o mais caro de todos os companheiros de armas.

Medeia

Que sejas bem sucedido e consigas o que desejas!

Egeu

Mas porque tens esse olhar e essa cor62?

Medeia

Egeu, de todos os maridos, o meu o pior.

Egeu

Que dizes? Conta-me claramente as tuas aflies.

Medeia

Jaso me ultraja, sem que eu nada lhe tivesse feito.

Egeu

E que fez ele? Explica-me com mais clareza.

Medeia

Uma mulher est agora acima de ns, como senhora da casa.

Egeu

Mas ele no ousou cometer esse feito vergonhoso?

Medeia

Pois fica a saber que sim; desonrada est quem dantes era sua amiga.

Egeu

Mas ele apaixonou-se ou aborreceu o seu leito?

Medeia

Uma grande paixo e no fiel aos amigos.

Egeu

Deix-lo ir, se um malvado, como dizes!

Medeia

O seu desejo foi apoderar-se da glria de mandar.

Egeu

E h algum que lha d? Completa a tua histria.

Medeia

Creonte, que quem manda nesta terra de Corinto.

Egeu

Compreensvel era, mulher, a tua aflio.

Medeia

Estou perdida. E alm disso sou expulsa do pas.

Egeu

Por quem? Ests a falar de outros males ainda.

Medeia

Creonte me expulsa, exilando-me da terra de Corinto.

Egeu

E Jaso consente? Tambm no o louvarei.

Medeia

no o diz com palavras; porm, a sua vontade consentir. Mas imploro-te pelas tuas barbas e pelos teus joelhos, como tua suplicante, compadece-te de mim que sou uma desgraada, e no olhes com indiferena a minha queda e o meu abandono, mas recebe-me no teu lar, no teu pas, na tua casa. Assim o desejo de ter filhos seja atendido pelos deuses e tu morras feliz! Tu no sabes achado fizeste. Farei com que deixes de ser um homem sem descendncia e far-te-ei gerar filhos. Eu conheo esses remdios.

Egeu

Por muitos motivos estou pronto a conceder-te essa graa, mulher, primeiro por respeito aos deuses, depois pelos filhos cuja procriao anuncias. Que eu para isso j de todo estou sem foras. mas ser assim: vindo tu ao meu pas, tentarei dar-te hospitalidade, segundo a justia. Aqui tens, contudo, mulher, os avisos que te dou: eu desta terra no quero levar-te, mas tu que, se fores por tua vontade para minha casa, ficars livre de ofensas, e no tenhas medo que a algum te abandone. Por ti mesma sairs desta terra; pois at para os que me deram a hospitalidade quero ser ileso de culpas63.

Medeia

Seja assim. Mas se eu tivesse disso a f, em tudo estaria de bem contigo.

Egeu

Acaso no confias em mim? Ou que dificuldades existe?

Medeia

Confio. Mas inimiga para mim a casa de Plias64, e Creonte.

Ligado por estes juramentos, ainda quando quiserem levar-me fora da tua terra, no me abandonarias. Ao passo que, sendo o nosso acordo s em palavras, e sem juramento face dos deuses, tornar-te-ias num amigo, que logo obedeceria s proclamaes do arauto65. Dbil o meu estado; para eles h felicidade e uma casa reinante.

Egeu

Grande prudncia mostram as tuas palavras. Mas, se assim te parece, no me negarei a faz-lo. Para mim mais seguro mostrar aos inimigos que tenho um pretexto, e a tua situao ficar mais firme. Nomeia tu primeiro os deuses.

Medeia

Jura pelo solo da Terra e pelo Sol66, pai do meu pai, e associando dos deuses toda a raa.

Egeu

E o que preciso fazer ou no fazer? Diz.

Medeia

Que jamais me expulsars do teu pas, espontaneamente, nem me abandonars com vida, por tua livre vontade, se algum dos meus inimigos desejar levar-me.

Egeu

Juro pela Terra e pela luz brilhante do Sol e por todos os deuses manter-me fiel ao que de ti ouvi.

Medeia

Basta. E se no mantiveres o juramento, que ters de sofrer?

Egeu

A sorte dos mpios.

Medeia

Podes ir-te em paz. Est tudo bem. Eu chegarei tua cidade, o mais depressa que puder, depois de ter feito o que pretendo e de ter conseguido o que quero!

(Sai Egeu.)

Coro

Possa o filho de Maia67, o deus que guia as gentes, a casa levar-te, e assim se cumpram os teus desejos, Egeu, tu, que homem to nobre nos pareces.

Medeia

Zeus, Justia, filha de Zeus, e luz do Sol68, vitoriosos estamos agora, amigas, sobre os nossos inimigos, e entramos j no caminho. Agora h esperana de fazer justia sobre os nossos inimigos. Porque este homem, quando penvamos na maior aflio, apareceu como um porto de abrigo das minhas decises. A eles prenderemos as amarras da popa69, dirigindo-nos para a fortaleza e cidade de Palas70. Os meus planos, j tos vou dizer todos. Mas no recebas as minhas palavras a ttulo de deleite.

A Jaso algum mandarei, dentre os meus servidores, pedindo-lhe que comparea minha presena. E, quando ele chegar, dir-lhe-ei palavras brandas, de como tambm eu sou desse parecer, que esto bem as npcias reais, que traindo-me, ele celebra, e que belo o partido e bem calculado. Pedirei que os meus filhos fiquem , no para os deixar em terra hostil, a fim de serem mal tratados pelos inimigos, mas para tratar ardilosamente a filha do rei. Mand-los-ei ento com presentes nas mos71, um peplos sutil e uma coroa de ouro lavrado. E quando ela pegar nesses enfeites e os cingir ao seu corpo, ter uma morte horrorosa, assim como todo aquele que tocar na donzela. Tais sero os venenos com que eu hei de ungir os presentes. Mas neste ponto eu suspendo as minhas palavras. Gemo ao pensar na ao que em seguida tenho de praticar. Porque eu vou matar os meus filhos. No h quem os possa livrar. E, depois de ter derrubado toda a casa de Jaso, saio do pas, fugindo do assassnio dos meus filhos adorados, eu, que ousei a mais mpia das aes. que no se pode tolerar que os inimigos escarneam de ns, amigas.

Vamos. De que me vale viver? no tenho ptria, no tenho casa, no tenho refgio para esta calamidade. Errei uma vez, quando abandonei a casa paterna, confiada nas palavras de um grego, que, com a ajuda do deus, sofrer a nossa justia. Porque no tornar a ver com vida, daqui por diante, os filhos que de mim teve, nem gerar nenhum da noiva recm casada, porque ser foroso que essa m tenha m sorte com os meus venenos. Ningum me suponha fraca ou dbil, nem sossegada; outro o meu carter: dura para os inimigos, benvola para os amigos. Porque de tais pessoas a vida gloriosssima72.

Coro

J que tais desgnios nos comunicaste, ns, no desejo de te ajudar, e de acordo com as leis dos mortais, no te aconselhamos a que cometas essa ao.

Medeia

No pode ser de outra maneira. Tu tens desculpa de assim falar, tu que no sofreste, como eu, duramente.

Coro

Mas tu hs de atrever-te a matar a tua descendncia, mulher?

Medeia

Nada morder mais rijo no corao de meu marido.

Coro

E tu virs a ser, por certo, a mais desventurada das mulheres.

Medeia

Vamos. Suprfluos so todos os argumentos que se meterem de permeio.

(Para uma aia.)

Mas, anda73, corre a trazer Jaso, j que de ti nos servimos para todas a misses de confiana. Nada digas das minhas decises, se na verdade queres bem aos teus amos e s mulher.

3. Estsimo

Estrofe

Coro

Felizes so de h muito os Erectidas74,

filhos dos deuses bem-aventurados,

os da sagrada terra inviolada,

que da mais ilustre cincia75 se nutrem,

e pelo ar do mais belo fulgor

movem seu passo leve, onde uma vez

as Musas puras, as nove Pirides,

criaram fama a loura Harmonia76.

Antstrofe

E dizem que Cpria77 ao p do Cefiso78das belas guas que ela faz brotar,

largou sobre o pas as brisas suaves

dos ventos moderados79; de rseas flores

as comas com grinaldas odorferas

enfeitadas, como do seu costume,

Cincia mandou, para a acompanharem,

os Eros que da Arte80 so estmulo.

Estrofe

Mas dos rios sagrados a cidade,

ou de amigos a terra hospitaleira,

como h de receber

a me que mata os filhos,

mpia entre os demais?

Olha o golpe nos filhos,

olha o crime que fazes!

Ns te suplicamos e te imploramos:

No mates os teus filhos!

Antstrofe

Onde a coragem na alma e na mo

ters, dos filhos contra o corao,

com audcia tremenda?

Como, volvendo os olhos,

a teus filhos, sem lgrimas,

dars sorte fatal?

Quando eles carem, splices,

no poders tingir mo homicida

com nimo constante.

4. Episdio

(Entra Jaso.)

Jaso

Ao tenho chamamento venho. Apesar da tua hostilidade, no deixars certamente de ser servida. Mas quero ouvir o que pretendes de novo da minha parte, mulher.

Medeia

Rogo-te, Jaso, que perdoes as minhas palavras. natural que suportes as minhas iras, dadas as muitas provas de amor que trocamos. Eu entrei em discusso comigo mesma, a mim me censurei. Miservel, que insnia esta, e que hostilidade para com quem me quer bem? E estou, como uma inimiga, contra os soberanos do pas e contra o marido, que fez o que havia de mais conveniente para ns, desposando uma rainha e gerando irmos para meus filhos? no hei de eu libertar-me desta ira? Que me pode acontecer se os deuses do providncias desta maneira? no tenho eu os filhos e no sei que temos que abandonar esta terra e que so escassos os amigos? Nisto refletindo, compreendi que fora estulta e em vo me enfurecera. Agora eu louvo-te e pareces-me sensato em nos arranjar este parentesco, e eu insensata, eu que devia tomar parte nestas decises e ajudar a lev-las a bom termo, e estar ao lado do teu tlamo e regozijar-me por prestar noiva e a ti os meus cuidados. Mas ns somos, no direis ms, mas mulheres; mas no deves igualar-te na maldade, nem a uma loucura responder com outra. Pedimos-te este favor e admitimos que erramos h pouco, mas agora pensvamos melhor.

(Medeia vai porta da casa chamar os filhos.)

filhos, filhos, vinde c, deixai a nossa casa.

(Os filhos entram.)

Sa, vinde beijar o vosso pai e dizer-lhe adeus comigo e, ao mesmo tempo, abandonai a antiga averso contra os inimigos, tal como a vossa me. Porque trguas j fizemos e a ira aplacamos. Tomai-lhe a mo direita. Ai de mim, como eu penso nos males dissimulados! filhos meus, ainda por muito tempo podereis assim estender os braos caros? Desgraada de mim, como estou propensa s lgrimas e a cheia de temor! Agora, enfim, que erradiquei a inimizade ao pai, esta cena de ternura encheu-me os olhos de lgrimas.

Coro

Tambm a mim aos olhos vem um pranto vivo. Oxal o mal no avance mais do que agora.

Jaso

Isso louvo, mulher, e aquilo no censuro. Porque natural que o sexo feminino se enfurea contra os maridos, quando eles contraem npcias estranhas. Mas o teu nimo mudou para melhor e, embora s com o tempo, reconheceste a deciso que prevaleceu. Esse procedimento de uma mulher sensata. Para vs, filhos, conseguiu vosso pai, no sem cuidados e com o auxlio dos deuses, perfeita segurana. Penso, na verdade, que haveis de ser ainda, com vossos irmos, os primeiros nesta terra de Corinto. Crescei, que o resto vos arranjar vosso pai e quem dos deuses vos for propcio. Possa eu ver-vos chegar florescentes ao termo da juventude, superiores aos meus inimigos!

Mas tu, porque de lgrimas abundantes banhas teus olhos, volvendo para o lado o branco rosto81, e sem prazer recebes as minhas palavras?

Medeia

No nada. Pensava nestas crianas.

Jaso

Est descansada. Eu velarei por elas.

Medeia

Assim farei. Nem eu desconfiarei da tua palavra. Frgil a mulher e nascida para as lgrimas.

Jaso

Mas por que tanto gemes por estes filhos?

Medeia

Eu lhes dei o ser. E, quando tu fazias votos para que os pequenos vivessem, invadiu-me um sentimento de piedade, se assim viria a acontecer...

Quanto aos motivos que te trouxeram a falar comigo, uns j foram ditos, dos outros vou fazer meno. J que aos soberanos parece conveniente mandar-me embora do pas e que melhor para mim reconheo-o bem que eu no habite demasiado perto de ti e dos senhores desta terra, pois que me consideram malfica para a casa deles, ns nos retiraremos destes lugares; mas as crianas, pede a Creonte que sejam educadas por tuas mos e que no sejam daqui exiladas.

Jaso

No sei se o convencerei; preciso tentar.

Medeia

Mas, ao menos, manda a tua esposa pedir ao pai que as crianas no saiam do pas.

Jaso

Sim, imagino que, a ela, sempre a poderei convencer.

Medeia

Com certeza, se ela uma mulher como as outras. Mas tambm nessa diligncia eu te ajudarei. Vou-lhe mandar uns presentes, que em beleza excedero em muito o que se usa, creio eu82, e que sero levados pelas crianas.

(Chamando para dentro de casa.)

preciso que um dos criados traga aqui o adereo a toda a pressa83. E ela ser feliz no uma, mas mil vezes, por lhe ter cabido em sorte por companheiro um homem excelente, como tu, e por possuir um adereo que outrora o pai do meu pai, o Sol, deu aos seus descendentes.

(Um servo traz o adereo e retira-se.)

Tomai estes dons nupciais em vossas mos, filhos, levai-os para os dardes feliz noiva real, que no receber ddiva desprezvel.

Jaso

Insensata! Para que deixas tuas mos vazias desses bens? Julgas que o palcio real escasso em peplos, escasso em ouro? Guarda essas coisas; no as ds. Se, na verdade, alguma considerao tem por ns a esposa, colocar-nos- acima dos dons, eu bem o sei.

Medeia

No me digas isso. H um provrbio que diz que os presentes at aos deuses convencem. O ouro para os mortais mais potente do que mil argumentos. Dela o gnio protetor, ela que o deus d agora a prosperidade, jovem e soberana. E o exlio dos meus filhos, por ele eu dava a vida, que no ouro apenas. filhos, entrai os dois no rico palcio e suplicai nova esposa de vosso pai, e minha senhora, implorai-lhe que no vos expulse desta terra, e dai-lhe o adereo, porque o mais necessrio que estes dons sejam recebidos pelas prprias mos dela. Ide o mais depressa que puderdes. Sede bem recebidos, para serdes para a vossa me os arautos da boa nova, que ela anseia por que acontea.

(Saem Jaso e os filhos.)

4. Estsimo

Estrofe

Coro

no mais tenho, no mais

esperana que vivam

as crianas: para a morte

j caminham.

Dos adereos de ouro

a noiva mal o recebe.

Oh! Recebe!

E na loira cabea

com as prprias mos

o enfeite mortal colocar.

Antstrofe

A beleza esplendente

e a graa divina

lhe faro por o peplos

e a coroa

dourada; sob a terra

em breve noivar.

Desgraada,

tal a rede fatal,

onde ela h de cair.

E no pode fugir a tal desgraa.

Estrofe

E tu, desgraado, mal casado,

genro do soberano, sem saberes,

morte funesta, horrvel,

aos filhos, mulher, a ti preparas.

Iluso, infeliz, teu destino.

Antstrofe

Contigo gemo ainda a tua dor,

me desgraada de filhos, que matas,

por causa de um noivado,

que celebra teu marido, vivendo

com uma companheira, contra a lei.

xodo

(Entra o Pedagogo com as crianas.)

Pedagogo

Senhora, teus filhos escaparam ao exlio e a noiva real com prazer recebeu os presentes em suas mos; daquele lado haver paz para as crianas. Mas ento? Como ests perturbada, quando tudo corre bem?

Medeia

Ai! Ai!

Pedagogo

Os lamentos no esto de acordo com to boas notcias.

Medeia

Ai! Ai! Digo eu ainda.

Pedagogo

Acaso anunciei uma desgraa sem saber, e me enganei, julgando trazer boas novas?

Medeia

O dito est dito; no te censuro.

Pedagogo

Fortes razes eu tenho, ancio; porquanto os deuses e eu pensamos mal; quando planejei este ato84.

Pedagogo

Tem confiana; ainda um dia hs de partir para junto de teus filhos.

Medeia

Antes disso, outros farei partir85, coitada de mim!

Pedagogo

no s s tu que te separas dos filhos. E quem mortal tem de suportar melhor a desgraa.

Medeia

Assim farei. Mas tu vai dentro de casa e prepara aquilo de que as crianas necessitam todos os dias86.

(O Pedagogo retira-se.)

filhos, filhos, vs tendes pas e tendes morada, na qual, depois de terdes abandonado esta desgraada, habitareis, para sempre privados da vossa me. Eu tenho de partir para o exlio, para outra terra, antes de ter gozado a vossa companhia e de vos ter visto felizes, antes de ter adornado o leito, e a noiva, e o tlamo, e de ter pegado nos fachos nupciais87.

Oh! Desventurada que eu sou, por ser to indomvel! No era para isto que eu vos tinha criado, filhos, no foi para isto que eu sofri trabalhos e passei torturas, suportando as dores agudas de dar luz.

Coitada de mim, que em tempos tive tanta esperana em vs, que haveis de amparar-me na velhice, e que, depois de morta, me haveis de arranjar por vossas mos, piedosamente, causando inveja aos homens; e agora se foi o doce pensamento. Porque, privada de vs, eu levarei uma vida amarga, e para mim dolorosa. E vs nem sequer ao menos vereis a vossa me com esses queridos olhos, porque tereis passado a outro gnero de vida88.

Ai! Ai! Porque fitais em mim os olhos, filhos? Porque sorrides pela ltima vez? Ai! Ai! Que hei de eu fazer? O nimo fugiu-me, mulheres, desde que vi o olhar lmpido dos meus filhos. no, eu no seria capaz. Deix-las ir, as minhas decises anteriores. Levarei desta terra os filhos, que so meus. Para que hei de eu, para afligir o pai deles com a sua desgraa, infligir a mim duas vezes os mesmos males? No, eu no, por certo. Deix-las ir, as minhas decises.

E contudo, que se passa em mim? Quero provocar o escrnio dos meus inimigos, deixando-os de castigo? Tenho de me atrever. Ah! Mas que vileza a minha, ter sequer admitido pensamentos de brandura no meu esprito! Ide, filhos, para casa89. A quem no agradar assistir aos meus sacrifcios, consigo. O meu brao no estar enfraquecido. Ai! Ai!

Mas no, meu corao, tu, ao menos, no fars isso. Deixa-os, desgraada, poupa as crianas. Vivendo l conosco, eles sero a tua alegria.

Juro pelos gnios da vingana, que esto no Hades90, nunca acontecer que eu entregue os meus filhos aos inimigos para lhes sofrerem as insolncias91. assim, absolutamente, e no h que fugir-lhe. E certo que com a coroa na cabea, envolta no peplos, a noiva perecer, eu bem o sei. Mas eu sigo pelo caminho mais desgraado, e a estes vou mand-los por um ainda pior! Quero dizer adeus aos meus filhos. Deixai-me, filhos, deixai vossa me apertar a vossa mo direita.

mo to querida, boca mais cara de todas, e figura e rosto nobre dos meus filhos, gozai de felicidade, mas l; que a daqui vosso pai vo-la tirou. doce abrao, terno corpo e sopro suavssimo dos meus filhos!

Ide, ide.

(Os filhos retiram-se.)

J no estou em estado de olhar mais para ns, que sou dominada pelo mal. E compreendo bem o crime que vou perpetrar mas, mais potente do que a minha vontade, a paixo, que a causa dos maiores males para os mortais.

Coro

Muitas vezes j,

tenho usado de razes mais sutis

e entrado em disputas mais altas

do que dado ao sexo das mulheres.

Mas tambm para ns h uma Musa,

conosco anda para nos ensinar.

Mas no com todas. Talvez entre muitas,

poder-se- alguma encontrar,

no estranha s Musas.

Dentre os mortais, quem filhos nunca teve

nem experimentou, digo eu que est

no melhor caminho da felicidade,

mais que quem os teve.

Quem no tem filhos nem experimentou,

seja isso um bem, seja isso um mal

para os mortais no tendo descendncia,

muita dor evitam.

Mas aqueles para quem dos filhos em casa

existe o doce rebento, eu vejo

o tempo em tormento passar.

Como cri-los da melhor maneira,

depois, da vida deixar-lhes os meios.

Depois, se para o bem, se para o mal os criam,

e para isso se esforam,

at isso incerto.

De todos os males, guardei para agora

um s que pior para todos os homens.

Na vida acharam bem-estar bastante,

flor da juventude eles j chegaram,

e nobres so; mas a sorte o decide,

os tira do caminho e a morte lhes leva

dos filhos para o Hades os corpos belos.

Para que serve ento aos homens os deuses,

alm dos outros males, um desgosto

mais forte que todos,

por causa de ter filhos, lhe acrescentem?

Medeia

Amigas, h muito que eu aguardo os acontecimentos, com nimo atento ao que h de vir de acol. Mas eis que vejo um dos criados de Jaso aproximar-se. A sua respirao arquejante indica que vai anunciar uma nova desgraa.

(Entra o Mensageiro.)

Mensageiro

tu, que cometeste uma ao terrvel e fora da lei, Medeia, foge, foge, no desprezes navio que te leve ou carro que ande sobre o solo!

Medeia

Que acontece que exija a minha fuga?

Mensageiro

Morreu h pouco a princesa e Creonte, que a gerou, por causa dos teus venenos.

Medeia

Disseste as palavras mais belas e entre os benfeitores e amigos meus para sempre te contarei.

Mensageiro

Que dizes? Estars no teu juzo, ou estars louca, mulher, tu que, depois de arruinar a casa dos soberanos, te comprazes em ouvi-lo e no te atemorizas?

Medeia

Tambm tenho algo para responder s tuas palavras. Mas no tenho pressa, amigo, conta. Como morreram? Porque nos deleitars duplamente, se eles morreram na maior aflio.

Mensageiro

Depois que os teus dois filhos chegaram com seu pai e entraram nos aposentos nupciais, regozijamo-nos , ns, escravos, que com teus males nos havamos afligido. Logo se murmurava com insistncia que tu e teu marido vos tnheis reconciliado da vossa prvia dissenso. Beija um a mo, outro a loira cabea das crianas. Eu mesmo, era tal o prazer, que segui com elas para os aposentos das mulheres.

A senhora que agora ns veneramos na tua vez, antes de fitar os teus dois filhos, tinha o olhar ardente preso em Jaso. Depois, cobriu os olhos e voltou para o lado a face branca, tocada pela averso que lhe causara o ingresso das crianas. Porm o teu marido dissipa as iras e a fria da donzela, dizendo-lhe assim: - No sejas hostil a quem me caro, aplaca a tua ira, torna a volver o rosto, e tem por amigos aqueles que o so para o teu esposo; recebe estes presentes e roga a teu pai que perdoe o exlio a estas crianas, por amor de mim.

E ela, ao ver o adereo, no resistiu, e deu ao marido o seu consentimento para tudo. E, mal se tinham afastado de casa o pai e os filhos, pegou no peplos matizado e vestiu-o e, colocando a urea coroa sobre os anis do cabelo, compe o penteado a um espelho brilhante, sorrindo imagem inanimada do seu corpo. E depois, levantando-se do trono, passeia pela casa, caminhando leve, com seus alvos ps, muito feliz com as ddivas e, muitas e muitas vezes, retesando a perna, olhava para trs, a ver se caa bem.

Ento um espetculo terrvel se pde ver: a cor se lhe muda, e avana cambaleante, os membros trementes, e a custo consegue deixar-se cair sobre o trono, antes de tombar por terra.

Uma das criadas antigas, crendo que vinham a as iras de Pan92 ou de algum dos deuses, soltou um grito, antes mesmo de ver pela boca golfar alva espuma, as meninas dos olhos reviradas e o corpo exangue. Ento um grande lamento em contrrio respondeu quele grito. Logo uma se precipitou para a casa do pai, outra para o esposo de h pouco, a contar a fatalidade da noiva. E toda a casa ressoava com o rudo das correrias apressadas.

J ento um corredor veloz, movendo-se num dos lados de uma lia de seis pletros, teria tocado na meta93. E ela, no meio do seu silncio e de olhos semicerrados, despertou, pobre donzela, com um gemido. Uma dupla aflio a atacava: o diadema de ouro, colocado na cabea, a largar uma torrente mgica de fogo omnvoro, e o peplos, e o peplos sutil, ddiva dos teus filhos, lacerava as brancas carnes da desventurada.

Do trono se ergue, em chamas, agitando o cabelo e a cabea em toas as direes, querendo arrancar a coroa. Mas, solidamente, o ouro retinha a sua pressa, e o fogo, depois de ela sacudir a cabea, brilhava com outro tanto fulgor. Cai no solo, vencida pela desgraa, perfeitamente irreconhecvel, exceto a quem a gerara. Pois j bem dos olhos era visvel a bela forma, nem a nobreza do seu rosto, mas sangue mistura com fogo lhe gotejava do alto da cabea, e dos ossos as carnes lhe escorriam, tal a lgrima que cai do pinheiro, consumidas pelas fauces ocultas dos venenos um espetculo pavoroso! Todos tinham medo de tocar no cadver. A sorte fora a nossa mestra.

Mas eis que o infeliz pai, da desgraa ignaro, entra de sbito em casa e cai sobre o cadver. Logo um grito soltou, e cingindo-a com os braos, beija-a, exclamando: - desventurada filha, quem dos deuses te perdeu desta forma ignominiosa? Quem priva de ti este velho, ao p da sepultura? Ai de mim! Possa eu, filha, contigo sucumbir!

Depois que cessou gemidos e lamentaes, querendo erguer o velho corpo, ficava aderente ao peplos sutil, como a hera aos ramos do loureiro, e era uma luta temerosa. Ele tentava levantar o joelho, e ela retinha-o. E cada vez qie fizesse fora, separava dos ossos as suas velhas carnes. Por fim, desistiu e exalou, o infeliz, o seu esprito, pois j no era superior ao mal. Jazem os cadveres ao p um do outro, o da filha e o do velho pai, uma desgraa que clama pelas lgrimas.

E, para mim, o teu caso est fora de discusso. Tu mesma descobrirs a maneira de te subtrares ao castigo. As coisas dos mortais, no agora a primeira vez que as tenho por uma sombra, nem sinto temor de dizer que aqueles dentre os homens que tm fama de sbios e de artificiosos nos seus discursos, esses mesmos merecem o maior dos castigos. Dos mortais, no h um s homem que seja feliz. Pode, se sobrevier a prosperidade, ser um mais bem sucedido do que o outro, mas, feliz, no nenhum94.

(Sai o Mensageiro.)

Coro

Parece que muitos foram os males que com justia o nume infligiu a Jaso neste dia95.

Medeia

Amigas, decidida est a minha ao: matar os filhos o mais depressa que puder e evadir-me desta terra, no v acontecer que, ficando eu ociosa, abandone as crianas, para serem mortas com mo mais hostil. absoluta a necessidade de as matar, e, j que foroso, mat-las-emos ns, ns que as geramos. Mas vamos, arma-te, corao. Por que hesitamos e no executamos os males terrveis, mas necessrios? Anda, minha desventurada mo, empunha a espada, empunha-a, move-te para a meta96 dolorosa da vida, no te deixes dominar pela cobardia, nem pela lembrana dos teus filhos, de como eles te so caros, de como os geraste. Mas por este breve dia, ao menos, olvida, que depois os chorars. Porque, mesmo matando-os, eles te so sempre caros e eu que desgraada mulher que eu sou97!

(Medeia entra em casa.)

Coro

Estrofe

terra, raios

do Sol coruscantes98,

vede, oh! vede esta mulher perdida,

antes que com mo suicida99ela ataque os prprios filhos.

Da tua dourada estirpe

ela procede; e os mortais

temem derramar o sangue de um deus.

Detm-te tu, luz, filha de Zeus!

Desta casa arranca o crime infeliz

e a vingana da Ernia100!

Antstrofe

Em vo o trabalho

dos filhos, em vo

a descendncia cara tu geraste.

Tu, que sem medo passaste

das Simplgades o estreito

com as suas rochas negras.

Por qu, desgraada, a ira

pesada na alma te cai e o crime

hostil vem? Mancha que no se redime

em casas genocidas, onde cai

dos deuses a maldio.

Filhos (dentro.)

Ai de mim!

Coro

Estrofe

Ouves este grito?

Ouves as crianas?

Ai que desgraada,

Mulher de m sorte!

Filhos

Ai, que farei? Para onde fugir me?

no sei, querido irmo, perdidos estamos.

Coro

Entramos?

Salvemos do crime

estas crianas.

Filhos

Sim, pelos deuses, salvai-nos, precisamos.

Como a ponta da espada j est perto!

Coro

Desgraada, eras de pedra

ou de ferro, tu que os filhos,

esses frutos que geraras,

com a prpria mo mataste!

Antstrofe

Uma s mulher

uma s at agora

ouvi, que para os filhos

levantaste a mo.

Foi Ino101 que os deuses enlouqueceram,

quando Hera102 de casa a quis expulsar.

No mar cai a pobre,

pelo mpio crime

dos prprios filhos,

estendendo o p para alm da margem,

morre, consigo os dois filhos levando.

Que horror pode vir ainda?

tlamo feminil,

causa de tantos trabalhos,

que mal tens feito aos mortais!

(Entra Jaso.)

Jaso

Mulheres, que estai junto destes tetos, por ventura ainda se encontra nesta casa a autora de tantos horrores, Medeia, ou conseguiu ela fugir? Pois fora que ela se oculte debaixo da terra ou que asas lhe levantem o corpo para o ar profundo, se no quer pagar a pena casa real. Estar ela convencida de que, lhe ser dado fugir inclume desta casa?

Mas no venho tanto por cuidado nela, como nas crianas.

Aquela que fez mal, o pagar com a desgraa. Eu vim para salvar a vida dos meus filhos, no vo os parentes fazer-lhes alguma coisa para vingar o mpio crime materno.

Coro

desgraado, que no sabes a que ponto chegaram teus males, Jaso! Se no, no proferirias tais palavras.

Jaso

Que ? Acaso tambm quer matar-me, a mim?

Coro

Teus filhos esto mortos pela mo de sua me.

Jaso

Ai de mim, que dizes? Como tu me deitaste a perder, mulher!

Coro

Pensa em teus filhos, como seres que j no existem.

Jaso

Onde os matou ento? Dentro ou fora de casa?

Coro

Abre essas portas, vers os teus filhos assassinados.

Jaso

Correi j as fechaduras103, servos, soltai estas trancas, para eu ver a dupla desgraa, os que morreram... e aquela a quem eu farei pagar as culpas.

(Medeia aparece em plano mais elevado, no carro do Sol, com os cadveres dos filhos.)

Medeia

Para que abalas e tentas destrancar essas portas104, procurando os cadveres e a mim, autora dessa obra? Cessa esse trabalho. Se precisas de mim, fala, se quiseres, que com a mo nunca me tocars. O Sol, pai de meu pai, me deu este carro como meio de defesa contra mo inimigas.

Jaso

abominada, mais que todas odiosa mulher, para os deuses e para mim e para toda a raa humana, tu que quiseste enterrar a espada nos filhos que geraras, e me deitaste a perder, deixando-me sem descendncia! E depois de fazer isto, ainda contemplas a luz do sol e a terra, tendo executado a mais mpia das aes?

Pudesses tu perecer! Vejo agora o que esto no via, quando de uma casa e de um pas brbaro te trouxe para um lar helnico a ti, grande flagelo, que atraioaste o pai e a terra, que te criara105. O teu gnio da vingana, os deuses o assestaram contra mim106. Depois de teres matado o teu irmo junto do prprio lar, embarcaste na nau de Argos, de bela proa.

Tais foram os teus princpios. Casando com este homem, e gerando-me filhos, s npcias, ao leito os imolaste. no h mulher alguma na Grcia que queira jamais fazer tal, essas s quais eu te dei preferncia como esposa, contraindo uma aliana odiosa e funesta, para mim, tu, que s leoa, no mulher, dotada duma natureza mais selvagem do que a Cila Tirrnica107.

Mas a ti nem mil improprios seria capazes de morder. Tal o impudor inato que possuis. Desaparece, desavergonhada assassina de teus filhos. A mim cabe-me em sorte lamentar-me, a mim, que nem gozarei de novo leito nupcial, nem me dado dizer adeus ainda em vida aos filhos que gerei e criei, pois que os perdi.

Medeia

Podia alongar-me muito a refutar os teus argumentos, se o pai Zeus no soubesse o que de mim sofreste, o que de mim ganhaste. Tu no havias de gozar uma doce vida, depois de teres desprezado o meu tlamo, escarnecendo de mim. Nem a soberana, nem o que te props o casamento, Creonte, de expulsar-me inclume desta terra. Depois disto, chama-se leoa, se quiseres, chama-me Cila, a que habita o rochedo tirrnico, que o teu corao, eu atingi como cumpria.

Jaso

Mas tambm sofres esta tortura e participas da desgraa.

Medeia

Sabe-o bem. A dor se esvai, desde que no podes rir-te de mim.

Jaso

filhos, que me perversa vos coube em sorte!

Medeia

filhos, como a loucura paterna vos perdeu!

Jaso

No foi contudo a minha destra que os imolou.

Medeia

Mas a tua insolncia e as tuas novas npcias.

Jaso

E por causa do tlamo entendeste dar-lhes a morte?

Medeia

Crs que isso pequena calamidade para uma mulher?

Jaso

Se for sensata; mas para ti tudo perverso.

Medeia

Eles j no existem. o que h de te pungir.

Jaso

Eles existem, ai de mim, como gnios da vingana sobre a tua cabea.

Medeia

Sabem os deuses quem deu incio s calamidades.

Jaso

Sabem sem dvida como a tua mente execranda.

Medeia

Odeia-me. Tambm eu detesto o azedume da tua voz.

Jaso

E eu o da tua. Mas fcil a separao.

Medeia

Como assim? Que tenho a fazer? Tambm eu a desejo ardentemente.

Jaso

Que me concedas dar sepultura a estes cadveres e chor-los.

Medeia

Isso no, que eu mesma com minhas mos lhes darei sepultura, levando-os para o templo da deusa Hera Acraia108, para que nenhum inimigo os profane, revolvendo os tmulos. E nesta terra de Ssifo109 instituiremos uma festa e ritos sagrados para sempre, em compensao deste crime mpio. Quanto a mim, vou para a terra de Erecteu110, habitar com Egeu, filho de Pandon. E tu, como natural, mau, de m sorte acabars, ferido na cabea por um fragmento da nau de Argos111, depois de ter visto das minhas npcias o amargo fim.

Jaso

Dos filhos a Ernia e a Justia, que vinga os crimes, te faam perecer.

Medeia

Quem te ouvir, dos deuses ou demnios, a ti que s perjuro e falso aos hspedes112?

Jaso

Ai, execranda assassina dos filhos!

Medeia

Vai para casa enterrar a tua esposa.

Jaso

Vou, mas privado de ambos os meus filhos.

Medeia

No chores ainda; aguardes a velhice...

Jaso

filhos to queridos!

Medeia

me, no a ti.

Jaso

Que depois mataste?

Medeia

Para te castigar.

Jaso

Ai de mim, que a boca querida dos filhos eu queria, desgraado, agora beijar.

Medeia

Agora lhes falavas, e os beijavas, ento expulsaste-os.

Jaso

D-me pelos deuses, que eu toque dos filhos no tenro corpo.

Medeia

No pode ser; em vo gastas palavras.

Jaso

Ouvis isto, Zeus, como nos afastam, o que ns sofremos desta execranda infanticida, no mulher, mas leoa? Ah! Mas at onde dado e eu posso, hei de lamentar-me, invocando os deuses. Os numes tomarei por testemunhas de como tu me impedes de tocar, de sepultar os filhos de mataste, os filhos que quem dera eu no gerasse e nunca os mortos por ti visse.

Coro

De muita coisa Zeus no Olimpo o Senhor, e muita coisa os deuses fazem sem contar. Vimos o que se esperava no realizar, para o que no se sabia o deus achar caminho.

Assim vistes o drama terminar1131 Argos era o nome da nau em que navegaram Jaso e os outros heris (por isso chamados Argonautas) at Clquida,, onde, por ordem de Plias, rei de Iolcos na Tesslia, iam conquistar o velo de ouro.

2 Metfora nutica para sugerir o erguer e baixar rtmico dos remos de um e de outro lado da embarcao.

3 As Simplgades eram rochas entrada do Ponto Euxino (hoje Mar Negro). Segundo a lenda,, eram a principio mveis e embatiam uma contra a outra,, caracterstica que transparece na etimologia do seu nome. Depois da passagem de Argos - o primeiro navio que conseguiu transp-las (feito que j consta da Odissia, XII. 69-70) - tornaram-se fixas.

4 Montanha na Tesslia, onde a nau foi construda.

5 Medeia, filha de Eetes, rei da Clquida, tendo-se apaixonado por Jaso,, ajudou-o, com as suas artes mgicas, a vencer a prova que seu pai lhe impusera para poder levar o velo de ouro - lavrar a terra com touros ignispirantes - e ainda a escapar ao drago sempre vigilante que o guardava. Em seguida, fugiu com Jaso, depois de matar o irmo, Apsirto, e de espalhar os seus restos mortais, a fim de que o pai, ao colh-los se atrasasse na perseguio que movia ao par fugitivo.

6 Chegada a Iolcos, Medeia convenceu as filhas do rei Plias a cozerem o pai num caldeiro, com ervas mgicas, para que ele recuperasse a juventude. Por mais este crime, viu-se na necessidade de fugir para Corinto. Sobre aquele tema, comps Eurpides a tragdia perdida As Pelades.

7 Segundo o escoliasta Pndaro, Olmpicas, XIII. 74, Medeia ps termo fome que lavrava em Corinto.

8 Eurpides no d nome princesa de Corinto,, embora j o argumento antigo da pea lhe chama Glauce, apelativo que se conserva na tradio local como o de uma fonte da cidade a cujas guas ela se atirou,, em busca de antdoto para os venenos de Medeia (Pausnias, II. 3.6). A par desse nome os autores tardios designam-na tambm por Cresa. O krater-de-volutas de Munique ao ilustrar este tema, chama-lhe Creonteia, o que significa igualmente filha de Creonte.

9 O juntar das mos era parte do cerimonial da promessa de fidelidade.

10 Omitimos aqui os versos 38-43, que so em parte uma antecipao do desenrolar dos acontecimentos, feita com frases que ocorrem mais adiante no lugar prprio (assim, 40-41 = 379-380): que o seu esprito perigoso, e no suportar o sofrimento. Conheo o seu carter, e temo que enterre no corao uma espada afiada, entrando silenciosa no palcio, onde est armado o leito; ou que mate o rei e o esposo, e em seguida sofra alguma desgraa maior.

11 O texto diz exatamente pelo teu queixo, modo de implorar em relao com a atitude clssica do suplicante: tocar com a direita na barba ou no queixo, e com a esquerda nos joelhos (cf. Ilada 1500-501, e o quadro de Ingres, no Museu do Louvre, que ilustra esse passo).

12 duvidoso se se tratava de um jogo de dados ou das damas, pois a dificuldade em distingui-los data j do texto de Homero (Odissia, I. 107). O segundo, que tem larga representao em vasos gregos,, vinha j dos tempos micnicos, e inclinar-nos-amos para ele sem reservas, se no fosse a nota do escoliasta a este passo, que o identifica com o primeiro.

13 A mais famosa fonte de Corinto, que, tal como a mencionada na nota 8, ainda hoje se conserva.

14 J o escoliasta antigo notou que era suprfluo o v. 87, que omitimos: uns justamente, outros por causa do lucro. Do mesmo modo pensou Brunck, seguido por quase todos os editores modernos.

15 Aluso ao leito fnebre.

16 Tmis a deusa da Justia, qualificada logo adiante pela ama como patrona dos votos e como guardi dos juramentos. A invocao seguinte, a rtemis, mais difcil de explicar, razo porque alguns comentadores tm proposto emendas ao texto. Torna-se clara, se admitirmos que j se deu o sincretismo com Hcate, deusa das artes mgicas, pela qual Medeia muito propriamente jura adiante.

17 Ver nota 9.

18 Primeira referncia explcita ao assassinato de Apsirto.

19 Desde a Ilada (III. 276-280 e XIX. 258-260) se afirmara a noo de que Zeus castiga os perjuros.

20 Uma aluso aos antigos aedos, que durante os banquetes entretinham os convivas com os seus cantos.

21 Em Hesodo, Teogonia, 901-906, Tmis esposa de Zeus, me das Horas e das Parcas. squilo, no Prometeu Acorrentado, 209-210, d-a como me de Prometeu, identificando-a assim com a Terra. Confiada no juramento de que a deusa era guardi, que Medeia abandonara a Clquida e viera para a Hlade.

22 J em squilo, Persas, 66-67, a Europa dada como fronteira sia. Aqui a oposio mais vaga, pois se refere aos dois lados separados pelo Helesponto.

23 Ver notas 2 e 3.

24 Referncia ao dote.

25 Segue-se um verso interpolado, que j Wilamowitz condenou: ou voltando-se para u amigo, ou para um companheiro.

26 Literalmente colocar-me ao lado do escudo. Os escudos dispunham-se em combate de maneira a formar uma linha contnua.

27 Segue-se um verso interpolado: e o que lhe deu a filha que ele desposou.

28 Uma das muitas metforas nuticas da tragdia grega.

29 Este famoso passo, de 292 a 301, tem sido considerado como uma defesa do prprio poeta. Alis, Eurpides, retomou vrias vezes o tema dos inconvenientes da sophia.

30 O verso que se segue, 304, interpolado: para uns sou uma pessoa tranqila, para outros ainda outro o meu carter.

31 Literalmente: suplico-te pelos teus joelhos e pela tua filha h pouco desposada.

32 Literalmente: o facho do deus - perfrase para designar o Sol, dando maior solenidade ao decreto que Creonte est a proclamar.

33 O Grego exilado, pensava, em primeiro lugar, em recorrer queles a quem estava ligado pelo vnculo da hospitalidade. Efetivamente, quem acolhia algum sob o seu teto, dando-lhe assim proteo tinha direito a esperar retribuio de favores, se um dia as posies se invertessem. Esta norma de etiqueta social, j bem definida nos Poemas Homricos, informa o ideal aristocrtico de felicidade de Slon: Feliz o que tem filhos caros, cavalos monodctilos, ces de caa, e um hspede em terra alheia. A salvao de Medeia vir, de fato, da hospitalidade que Egeu lhe prometer, no terceiro episdio.

35 Aluso a uma atitude de suplicante.

36 O texto diz no fgado. Entre os gregos corao e fgado empregam-se indiferentemente para designar a sede da vida ou das emoes.

37 Medeia retoma e analisa as dvidas do coro.

38 Insere-se aqui a motivao dramtica da cena de Egeu - cena cuja relevncia para a tragdia tem sido objeto de larga discusso.

39 O juramento por Hcate, deusa das artes mgicas, especialmente apropriado a este monlogo, em que Medeia prepara o seu plano de vingana por meio de venenos.

40 Ssifo era o fundador da casa real de Corinto, qual pertencia a noiva de Jaso.

41 O pai de Medeia, o rei Eetes, era filho de Hlios (o Sol.)

42 Partindo de uma expresso proverbial para sublinhar a alterao da ordem natural das coisas, o Coro significa o seu espanto perante a inverso de valores na ordem moral. Doravante, os homens, e no as mulheres, sero acusados de infidelidade.

43 As objurgatrias anti-feministas surgem em vrios passos de Hesodo e tm a sua expresso mais violenta na chamada Stira contra as Mulheres, composta no sculo VI a.C. por Semnides de Amorgo.

O prprio Eurpides era acusado de misoginia pelas suas contemporneas, como o prova a esfuziante pardia de Aristfanes na comdia As Mulheres que Celebram as Tesmofrias. certo que muitas das peas conservadas (nomeadamente, Andrmaca, Hcuba,, Hiplito) abundam em tiradas anti-feministas; mas, por outro lado, a Medeia, embora inclua algumas (veja-se, por exemplo, o final do monlogo que termina o primeiro episdio), toma freqentemente a defesa dos direitos da mulher, a ponto de os seus versos terem sido cantados, no sculo XIX pelas inglesas participantes no chamado movimento sufragista. Todos esses fatos servem para nos advertir do perigo de confundir a verdade dramtica com a verdade do autor.

44 J na Ilada Febo Apolo era deus do canto e da msica.

45 A literatura grega registra uma srie de nomes que invalidam a afirmao destes versos, sobre a incapacidade potica da mulher. Porm, anteriormente a Eurpides, s duas alcanaram notoriedade, Safo e Corina (se que esta ltima no mais tardia). Compare-se com a restrio feita adiante.

46 Nova referncia a travessia das Simplgades, mencionada no comeo do drama.

47 A seguir a este verso, figura o 468: para os deuses e para mim e para toda a raa humana que os editores, a partir de Brunck, omitem, como sendo antecipao do verso 1324.

48 Jaso fora suplicante de Medeia, mas esta agora no recebia a paga da sua generosidade.

49 Metfora tirada da cunhagem das moedas.

50 Depois de afirmar que Medeia se limitara a obedecer sua paixo simbolizada aqui por Cpria ou Afrodite Jaso aponta como primeiro benefcio o t-la trazido para a Grcia. O tema da oposio entre os brbaros e helenos, posto em voga pelo sofista Antifonte, era corrente na 2. metade do sculo V a.C., e quase um lugar comum nas tragdias de Eurpides. Geralmente, o contraste definia-se a favor da superioridade grega, atribuda ao conhecimento da justia como aqui. Note-se, no entanto, a ironia dramtica resultante do fato de essas palavras serem postas na boca de Jaso.

51 Orfeu era um cantor mtico, que com a sua arte subjugava at a natureza. O fato de ele ter sido um dos membros da expedio dos Argonautas no certamente o motivo desta referncia, por trs da qual sentimos o ideal artstico do prprio poeta.

52 Medeia faz um gesto de indignao, que Jaso acalma.

53 Tpico muito versado por Eurpides, principalmente na Hcuba, 1187-1194. Os perigos resultantes da ausncia de ligao entre a eloqncia e a tica eram j apontadas pelos inimigos dos Sofistas, aos quais tal relao era indiferente.

54 O texto diz aos hospedeiros. Jaso promete Medeia que gozar da mesma hospitalidade a que ele teria direito, segundo a etiqueta j mencionada em notas anteriores. Esta transferncia da hospitalidade equivale, a grosso modo, nossa moderna carta de apresentao.

55 No primeiro par de estrofes, o Coro faz votos por que lhe seja concedida uma unio tranqila, livre da ira, da discrdia, do adultrio; que Afrodite no perturbe os casamentos felizes! O segundo par de estrofes evoca as amarguras do exlio (tema que Eurpides retomar mais tarde, nas Fencias, por exemplo) e censura veladamente a ingratido de Jaso.

56 Com as ltimas afirmaes do Coro, de censura ao amigo ingrato, forma contraste a interveno de Egeu. O fato evidencia-se logo na saudao, que repete a palavra amigo.

57 Egeu, filho de Pandon e pai de Teseu, era um dos reis mticos de Atenas, a quem, por tradio, estava ligada a figura de Medeia. Eurpides comps uma tragdia intitulada Egeu, que no se conserva.

58 O orculo de Delfos, o mais famoso da Grcia.

59 Os gregos acreditavam que o omphalos (literalmente: umbigo) do santurio de Delfos assinalava o centro da terra. Diziam que essa pedra cnica era a que Cronos engolira, supondo ser o seu filho Zeus, e depois fora obrigado a vomitar; atribuam-lhe, portanto, origem celeste. Os modernos pensam que se trata de um meteorito.

60 O acesso a Delfos, ainda hoje difcil, devido s altas montanhas em cujas encostas se situa, faziam-no geralmente os antigos atravs do porto de Itea. A embarcara Egeu, para efetuar a travessia do Golfo de Corinto, at o Istmo. Da seguir para Trezeno, que fica a nordeste do Peloponeso.

61 Plops, filho de Tntalo, era o heri epmino de toda a Pennsula (Peloponeso a ilha de Plops), antepassado dos Atridas, e primeiro vencedor dos jogos olmpicos.

62 S neste momento Egeu repara na expresso de sofrimento de Medeia, que certamente a mscara traduzia.

63 Enquanto se encontra no territrio de Corinto, Egeu hspede de Creonte, motivo por que no pode desrespeitar as suas ordens, sem faltar lealdade que lhe deve.

64 A casa reinante da Tesslia.

65 O arauto que, em nome do rei de Corinto, iria reclamar a entrega de Medeia.

66 A Terra e o Sol costumavam ser invocados em primeiro lugar, para garantir os juramentos. Assim na Ilada, III. 276-280, e XIX. 258-260.

67 O filho de Maia (e Zeus) Hermes, o deus dos viajantes.

68 Medeia invoca os deuses que protegem os juramentos, Zeus e Dike (a Justia) aqui sinnima de Tmis e ainda o Sol, seu antepassado.

69 Outra metfora nutica. Os navios gregos tinham, alm das ncoras, amarras de popa, para os prenderem praia.

70 Atenas, cidade cuja divindade protetora era Palas Atena.

71 Omitimos aqui o verso 785, que um arranjo de 950, 940 e 943: para os levarem noiva, e no sarem desta terra.

72 Era a doutrina corrente entre os antigos, no s em espritos vulgares, como Arquloco ou Tegnis, como num homem a muitos ttulos superior, como era Slon. A primeira derrogao a esta lei de Talio encontra-se no Crton de Plato, posta na boca de Scrates.

73 Esta ordem dada a uma das aias de Medeia. As palavras que se seguem sugerem que a encarregada do recado seja a ama. Neste caso, seria a sua nica presena em cena, depois do prodo. Anteriormente, no verso 774, Medeia anunciara vagamente que mandaria a Jaso algum dentes os seus servidores.

74 O Coro cana o elogio de Atenas, a hospitaleira metrpole das artes e da cincia, onde Medeia vai habitar.

Os atenienses intitulavam-se Erectidas, como descendentes de Erecteu, fundador mtico da sua cidade, o qual nascera da Terra. O conhecido templo da Acrpole dedicado a Erecteu s acabou de se construir em 409 a.C., vinte e dois anos depois de estreada a pea.

75 Aqui cincia traduz o grego sophia, que designa o conhecimento das letras e das artes.

76 A unio das Nove Musas, patronas de todas as formas de sophia, produz a harmonia.

77 Um dos nomes de Afrodite, por ter abordado primeiro a ilha de Chipre, quando nasceu das guas do mar (outra verso da lenda refere o mesmo com relao a Citera, donde o epteto Citereia.)

78 O Cefiso era um dos rios de Atenas. No verso 846 alude-se de novo a ele, bem como ao Ilisso.

79 Exaltao do clima de Atenas, como causa da sua excelncia.

80 Afirma-se nestes versos que Afrodite mandou os Amores, bem como a Cincia (Sophia), pois todos juntos levam excelncia na poesia, na msica, na filosofia. essa superioridade (em grego, arete) que, por esse motivo, aqui traduzimos por arte.

81 As lgrimas de Medeia, s agora so notadas por Jaso. Na ausncia do jogo fisionmico no teatro grego (impossibilitado pelas mscaras), os sinais externos de emoo Te6m de ser dados pelo prprio texto.

82 Omite-se aqui o verso 949, que a repetio do verso 786: um peplos sutil e uma coroa de ouro lavrado.

83 A ordem dada aqui por Medeia prontamente realizada, pois cinco versos adiante j ela faz entrega das ddivas aos filhos. Como a protagonista nunca sai de cena at ao verso 1250, no ficou oportunidade para as ungir com venenos, conforme anunciara no verso 789. , sem dvida uma pequena inconseqncia do dramaturgo.

84 A responsabilidade dos seus atos suficientemente ntida para Medeia, para a levar a este aparente anacoluto de usar a 1. pessoa do singular, depois de ter principiado por falar dos deuses como sujeito da ao.

85 Jogo de palavras sinistro sobre o sentido de partir.

86 Medeia manda o Pedagogo sair para cumprir a sua tarefa diria de tratar das coisas das crianas tarefa que ela sabe no mais ser necessria.

87 Srie de cerimnias nupciais que pertencia me do noivo executar.

88 Novamente um jogo de palavras que alude ao destino das crianas.

89 Alguns entendem que os filhos saem de cena neste ponto e regressam, chamados pelos servos, no verso 1069. Outros ainda supem que as crianas hesitam, mas no chegam a retirar-se, em 1053.

90 O inferno grego.

91 Omitem-se aqui os versos 1062-1063, que so iguais a 1240-1241: absoluta a necessidade de os matar, e, j que foroso mat-los-emos ns, que os geramos.

92 O escoliasta explica: Antigamente os homens supunham que quem sucumbia de repente era porque o seu esprito fora atingido por Pan, sobretudo, e por Hcate. Algo desta noo prevalece ainda nas expresses modernas medo pnico ou ser tomado de pnico.

93 Texto pouco seguro, mas no qual se percebe claramente a metfora tirada das corridas, para sugerir o breve lapso de tempo decorrido. Um pletro equivalia a pouco mais de 30 m. Portanto, o corredor teria percorrido um dos lados do estdio, ou seja, pouco mais de 90 m.

94 Depois de verberar os perigos da sabedoria e da eloqncia e de lamentar a triste condio do homem, o Mensageiro abandona a cena.

95 Os manuscritos apresentam aqui trs versos (1233-1235): desgraada, como lamentamos a tua desventura, filha de Creonte, que partiste para a manso do Hades, por causa das npcias de Jaso.

96 Outra metfora tirada das corridas.

97 Medeia sai por algum tempo de cena, onde se tinha mantido sem interrupo desde a primeira entrada, ao comear o 1. episdio.

98 As mesmas invocaes do verso 148.

99 Mo suicida, porque, destruindo a sua descendncia, se aniquilava tambm a si.

100 As Ernias eram divindades subterrneas, que vingavam os crimes cometidos contra pessoas do mesmo sangue.

101 Segundo a verso mais corrente, Ino, filha de Cadmo, lanou-se ao mar com seu filho Melicertes, fugindo perseguio de seu marido, o rei Atamante, que, tendo enlouquecido, matara j o outro filho, Learco. Ino foi depois divinizada, com o nome de Leucoteia, e outro tanto aconteceu a Melicertes, que mudou o nome para Palmon. Aqui, Ino que, tomada de loucura, matou os dois filhos e saltou para o mar. Provavelmente seria esta a verso adotada por Eurpides na sua tragdia perdida, Ino.

102 O texto diz precisamente a esposa de Zeus, que, por convenincia mtrica, substitumos por Hera.

103 Medeia tinha fechado e trancado as portas, razo porque o Coro estava fisicamente impossibilitado de intervir. Agora, Jaso tem de chamar pelos servos, para abrirem a casa. no , portanto, aos criados que o acompanhavam que ele d esta ordem.

104 Enquanto Jaso tenta forar a porta, Medeia aparece na mechane (maquinismo que colocava em cena as figuras num nvel mais elevado). Vem no carro do Sol, que, segundo os comentadores antigos, era puxado por serpentes.

105 Regressa aqui a antinomia gregos e brbaros, mas agora sem ironia.

106 A vingana divina, que devia ser exercida sobre Medeia, atingiu o prprio Jaso.

107 Cila era um grande escolho marinho, em frente a outro mais temvel ainda, Caribdes. Segundo a Odissia (XII. 85-94), era um monstro horrvel, com doze ps disformes, seis pescoos compridos, cada um com sua cabea, e trs filas serradas de dentes; at meio corpo, estava metida numa caverna, e apenas deitava de fora as cabeas, ladrando de maneira temvel. Nunca os navios passavam por ela inclumes, pois Cila arrebatava-os e devorava a tripulao. Assim fez a seis dos companheiros de Ulisses, que viu ento a cena mais lamentvel de toda a sua viagem de regresso.

Como todos os stios homricos, este tambm veio a ser localizado. Era o estreito de Messina, que d acesso ao Mar Tirrnico. Da viria talvez o qualificativo do texto, que j o escoliasta explicava como vindo do Mar Tirrnico (os dos etruscos). provvel que, como sugerem alguns comentadores, houvesse aqui tambm uma aluso aos atos de pirataria do povo etrusco, conhecidos do prprio Eurpides.

108 O templo de Hera Acraia ou Hera do promontrio seria o que ficava num cabo em frente a Scon, prximo de Corinto, segundo Elsmley; ou o que existiria na acrpole de Corinto, segundo o escoliasta.

109 Corinto.

110 Atenas.

111 Devia tratar-se de um fragmento da nau, que Jaso consagrou em um templo.

112 Mais uma vez, Medeia insiste na gravidade dos crimes de Jaso: violao de juramento e das leis da hospitalidade. Jaso fora hspede da casa de Medeia na Clquida.

113 Com estes mesmos cinco versos (salvo umas alteraes no primeiro) terminam mais quatro peas de Eurpides: Alceste, Andrmaca, Bacantes, Helena. Outro grupo de dramas (Ifignia entre os Tauros, Orestes, Fencias) tm tambm finais iguais entre si. Destes fatos parece lcito tirar a concluso de que o poeta no atribua significado especial ao remate das suas peas.