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Governo do rio de JaneiroGovernador Luiz Fernando Pezão

Secretaria de eStado de culturaSecretária de eStado de cultura Adriana Scorzelli RattesSecretária de relaçõeS inStitucionaiS Olga CampistaSubSecretário de Planejamento e GeStão Mario CunhaSuPerintendente de arteS Eva Doris Rosental

eScola de arteS viSuaiS parque laGediretora Claudia Saldanhacoordenadora de enSino Tania Queiroz coordenadora de exPoSiçõeS e debateS Clarisse Riveracoordenador de eventoS Vitor Zenezi

coordenadora do ProGrama aProfundamento | criação artíStica 2014 Anna Bella Geigercoordenador do ProGrama aProfundamento | curadoria 2014-15 Fernando CocchiaralecomiSSão de enSino Glória FerreiraLuiz Ernesto Moraes Maria TornaghicomiSSão de ProjetoS Batman Zavareze George Kornis Paulo Sergio DuarteSuPerviSora de enSino Vanessa RochaSuPerviSora do ProGrama educativo Cristina de PádulaSuPerviSora do núcleo de arte e tecnoloGia e daS oficinaS de imaGem Gráfica Tina VelhoProGrama de caPacitação de mediadoreS Maria Tornaghi Cristina de Pádula Tania QueirozaSSeSSora de ProjetoS eSPeciaiS Sandra Caleffi

SuPerviSor técnico daS oficinaS de imaGem Gráfica Roberto TavaresbibliotecáriaS Danyelle Sant’Anna Maria Fernanda Nogueira Olga AlencaraSSiStenteS de enSino Ana Carolina Santos Lucas LeuzingeraSSiStenteS de exPoSiçõeS e debateS Laara Hügel Renan Lima Sabrina VelosoaSSiStente de eventoS Naldo Turl Selma FraimanSecretaria Gisele Oliveira Thais Sousa Victoria MorenoServiçoS GeraiS

SuPerviSor Homero GomesaSSiStenteS Janir Pereira Iraci De Oliveira Gerson Freitas Roberto NiltonaSSiStente de eletriciSta Marcelo Gonçalves

oca laGePreSidente Marcio Botnervice-PreSidente Lisette Lagnadodiretor adminiStrativo e financeiro Artur E. P. MirandaGerente adminiStrativo e financeiro Rosana RibeiroGerente de eventoS e ProjetoS Marcus WagneraSSeSSora de comunicação Rachel Korman SuPerviSor adminiStrativo Sergio BastosSuPerviSor financeiro Hércules da Costa SouzaaSSiStente adminiStrativo Carmen da Costa Souza

conSelheiroS

PreSidente Paulo Albert Weyland Vieira

eav rua jardim botânico, 414 jardim botânico rio de janeiro | rj 22461-000 tel | fax: 21 3257 1800 www.eavparquelage.rj.gov.br

vice-PreSidente Fabio Szwarcwald conSelho Adriana de Mello Barreto Adriana Scorzelli Rattes Adriano Estrella Pedrosa Antonio Alberto Gouvea Vieira Daniel Senise Carlos Alberto Mendes dos Santos Gomes Eduardo Saron Eliane Lustosa Ernesto Neto Eva Doris Rosental Fernando Marques Oliveira Guilherme Gonçalves Luis Eduardo da Costa Carvalho Luiz Camillo Osorio Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho Renato Augusto Zagallo Villela dos Santos Ronaldo Cesar Coelho

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encontroS coM artiStaS

BRíGIDA BALTAR

CADu

FELIPE BARBOSA

FERNANDA GOMES

LuIZ ERNESTO

RICARDO BECKER

créditoS doS cadernoSorGanização Tania Queiroz Vanessa Rocha

Projeto Gráfico, tratamento de imaGem e Produção Gráfica Dupla Design

fotoGrafiaS Adriano Facuri, Cadu, Felipe Felizardo, Luciano Bogado, Pat Kilgore, Studio Barbosa Ricalde, Wilton Montenegro

reviSão de texto Rachel Valença

tranScrição Vanessa Rocha

Gravação Bruno Marcus TOMBA Records

imPreSSão Stamppa Gráfica

ciP-braSil. cataloGação-na-fonte

Sindicato nacional doS editoreS de livroS, rj

e74

escola de artes visuais do Parque lage

cadernos eav 2012 : encontros com artistas / escola de artes visuais do Parque lage ; organização: tania Queiroz e vanessa rocha. – rio de janeiro : eav, 2014.

264 p. : il. ; 13 x 18 cm. – (cadernos eav) iSbn 978-85-64192-18-8

1. arte contemporânea - Palestra. 2. artistas brasileiros. 3. baltar, brígida, 1959-. 4. cadu, 1977-. 5. barbosa, felipe, 1978-. 6. Gomes, fernanda, 1960-. 7. ernesto, luiz, 1955-. 8. becker, ricardo, 1961-. i. Queiroz, tania. ii. rocha, vanessa. iii. título. iv. Série.

crb7 6590 / crb7 0024/14

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APRESENTAÇÃO

Os Cadernos EAV: Encontros com Artistas reúnem um impor-tante acervo de conversas entre artistas consagrados e alunos do Programa Fundamentação da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Implementado pela EAV em março de 2009, com recursos da Secretaria de Estado de Cultura, o programa preparatório com disciplinas fundamentais para a formação em arte visa oferecer uma iniciação ao aluno.

Com três professores para cada grupo, o Fundamentação promove, a cada mês, encontros com artistas convidados.

Com o lançamento de mais dois volumes dos Cadernos EAV torna-se público o resultado desses encontros, realizados em 2011 e 2012, entre artistas brasileiros e jovens do programa de ensino.

Nos dois primeiros volumes, de 2009 e 2010, registrou-se os encon-tros com os artistas Anna Bella Geiger, Carlos Zílio, Ernesto Neto,

Ivens Machado, Nelson Félix, Tunga, Beatriz Milhazes, Daniel Senise, Eduardo Coimbra, Elizabeth Jobim, Vik Muniz e Wal-tércio Caldas.

Nos dois Cadernos de agora podemos conhecer os depoimentos de Brigida Baltar, Cadu, Carlos Vergara, Efrain Almeida, Felipe Barbosa, Fernanda Gomes, Iole de Freitas, José Damasceno, Luiz Ernesto, Luiz Aquila e Victor Arruda.

A diversidade dos processos de criação e das experiências resultan-tes da atividade profissional de cada artista formam um singular conjunto de idéias à respeito da vida e da arte e proporcionam depoimentos de rara riqueza e espontaneidade.

Agradecemos a todos, artistas e professores, que generosamente colaboraram com este projeto, revelando parte da sua vivência artística e profissional.

CLAuDIA SALDANHA - Diretora da EAV Parque Lage

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presságio, 2012Video still.Exposição O amor do pássaro rebelde nas Cavalariças da EAV Parque Lage

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Agradeço ao Parque Lage o convite e queria dizer que, para mim, é bem especial ter uma conversa neste lugar, principalmente porque também comecei a estudar na Escola de Artes Visuais, nos anos 1980 e, talvez com a mesma idade de vocês, estava com algumas inquietações. Então, eu acho que a gente pode aproveitar realmente esse momento para falar com franqueza dessas inquie-tações. Na verdade, elas acompanham todo nosso caminho – até hoje tenho insônias, dúvidas e questionamentos, mas sei que, quando somos estudantes ou ainda estamos iniciando nossas pesquisas artísticas, as pulsões são mais intensas e temos que administrar isso... Eu sempre gosto de começar falando desse início, porque, particularmente, estava aqui estudando arte e ao mesmo tempo fazia uma faculdade de história, já havia iniciado a faculdade de arquitetura e experimentado ser atriz. Então,

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mostrados foi uma estante com frascos de vidro que armazenavam goteiras recolhidas. Lá em Cuba me ofereceram uma sala com resíduos de pinturas antigas nas paredes e rastros de goteiras no espaço, então eu acabei colocando meu trabalho justamente na parte mais manchada da parede e pendurei ao lado uma capa de chuva transparente.

Em 1996, desenhei o formato do meu corpo na parede da casa e fiz a escavação desse molde. Essa ação nunca foi repetida em uma galeria ou museu, porque o sentido acontecia para mim, no espaço íntimo. Sem espectadores, a obra existe como fotografia e vídeo. Chamei de Abrigo. Ricardo Basbaum escreveu um texto que considero importante, em que ele fez umas colocações: “Você se situa num lugar extraordinário, que é numa parede onde você tem uma visão particular incomum, você está num lugar que é quase uma impossibilidade. Então, amplia esse lugar da visão.”

A ideia era usar o corpo como estrutura e a casa como extensão do próprio corpo. Eu gosto de pensar como se o corpo fosse uma continuação daqueles tijolos, o corpo como fortaleza, um corpo que sustenta uma parede.

Sou árvore2 é uma fotoação, também intimista, feita em cima do sofá.

o meu começo foi bastante conturbado, cheio de opções a fazer, e a pergunta era onde eu iria mergulhar profundamente. Há também o momento, esse intervalo em que você já está trabalhando há um tempo com arte e se pergunta: “Isso já é uma obra de arte?” ou “Eu me considero uma artista?”. Meu crescimento aconteceu no processo de eliminações e escolhas. Foi uma busca, na ver-dade, de identidade. E para isso parti da pura experimentação, do uso de materiais variados e tentativas de construção de um pensamento e de uma obra, para chegar a um contorno com um pouco mais de maturidade no início dos anos 1990. Incorporei situações biográficas no trabalho e isso começou a acontecer por meio de pequenas ações que eu fazia usando o meu próprio corpo e, principalmente, a casa onde eu vivia, no Rio de Janeiro. Por exemplo, eu fazia registros fotográficos de situações bem cotidianas, como tomar banho ou fazer um corte de cabelo, e então, finalmente, a casa passou a ser meio e suporte do próprio trabalho. Mais tarde, quando comecei a participar de algumas exposições importantes, institucionais, foi bom ver meu trabalho situado e relacionado à geração 90.

Estas são umas imagens da Bienal de Havana1 [Brígida inicia a projeção], de que participei em 1994, e pela primeira vez apre-sentei as ações que aconteciam naquela casa. Um dos trabalhos

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Este ano, dando aula aqui na EAV Parque Lage, ao lado de Mar-celo Campos e Efrain Almeida, estamos justamente falando sobre a presença do corpo na arte contemporânea. A ideia do corpo como memória e como identidade foi uma vertente que interessou os artis-tas dos anos 1990 e, indo mais para trás, os artistas dos anos 1970. A Body Art aconteceu com suas experiências mais políticas e radicais.

Silhuetas3 foi realizada em 1996. Agora o corpo se apresenta em uma instalação no chão, em sete formatos obtidos com madeira, pedra, tijolo, casca de tinta, saibro, poeira e pedaços de reboco. Todos resíduos da casa em que eu vivia.

Aqui é a Torre4 [Brígida prossegue mostrando imagens], um trabalho de construção com tijolos – a criação de um espaço de reflexão.

Todo meu processo, então, na época, podia se resumir em cole-cionar e selecionar materiais. Um vidro conteve lágrimas,5 que eu guardava em um pequeno buraco na parede.

Ainda falando dos anos de 1990, incorporei situações como abrir uma janela.6 Com a participação do meu filho Tiago, nós abrimos uma janela na parede. Nesse momento, a relação entre vida e arte ficou entrelaçada.

“A ideia era usar o corpo

como estrutura e a casa

como extensão do próprio

corpo. Eu gosto de pensar

como se o corpo fosse

uma continuação daqueles

tijolos, o corpo como

fortaleza, um corpo que

sustenta uma parede.”

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mas o sentido que essa paisagem pode transmitir – a atmosfera emocional, afetiva. O drama me interessa, o que a neblina produz como simbólico. Percebo meu trabalho atravessado pelo simbólico, presente também na exposição atual das Cavalariças, O amor do pássaro rebelde.

Continuando a falar sobre as coletas, mantive nas fotografias a pre-sença de ônibus passando, placas de trânsito, o registro de alguns elementos urbanos nessa ação. Em 2001 ganhei o Prêmio Rioarte e pude fazer novos filmes, usando 16mm, construí roupas especiais e vidros orgânicos e fiz um disco de vinil. Na verdade, eu também estava começando a expor mais e, quando apresentava os vídeos projeta-dos, sentia a necessidade de uma atmosfera de som, por exemplo. Então, produzi o disco e apresentei o projeto Coletas sempre com uma vitrola – foi assim no Agora/Capacete7 em 2001, e mais tarde, em 2008, na Caixa Cultural de Brasília.8 Neste último espaço, fiz uma inversão: o vídeo foi projetado menor, e havia sete vitrolas no espaço – uma orquestra de vitrolas. O som foi retirado das próprias experiências e recriado digitalmente – foi mesmo uma experiência particular sonora. Não tão particular, pois fiz com a parceria do Phil.

Um acontecimento bom nessa exposição (com curadoria da Luisa Duarte e Marisa Flórido) foi ter na sala da frente a obra de Paulo

É interessante quando a gente tem a oportunidade de falar sobre nossos processos, porque iniciamos novas reflexões e percebemos as transformações da obra no percurso. Eu acho que o meu trabalho começou inicialmente existencial, realista, com algo de biográfico – são fotos simples, cruas, em que uso roupas cotidianas. Mais tarde, a obra se volta para uma fabulação – meu trabalho se modificou no tempo.

Um trabalho nunca é tão cronológico ou linear. Ao mesmo tempo que eu fazia ações domésticas, comecei a realizá-las também em um sítio fora do Rio de Janeiro. Eu levava para lá algumas coisas que também estavam dentro de uma atmosfera intimista – colocava, por exemplo, móveis ao ar livre e cobria de terra, e fazia algumas experiências na natureza. Foi quando comecei a coletar orvalho. Meu filho também participou dessa experiência. Na verdade, acho que as primeiras coletas de goteiras me levaram, também, para as ações na natureza.

Coletar neblina foi um projeto que desenvolvi por quase dez anos. Ao mesmo tempo, era um trabalho com potência de imagem, mas, para mim, principalmente, era uma experiência sensorial impor-tante. Então, eu repetia essa vivência, geralmente nas serras de Petrópolis, Teresópolis, e ficava lá, pelas manhãs, naquela umidade. E posso sentir que o mais interessante para mim não é a paisagem,

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Este, por exemplo,11 é um trabalho mais inicial com o tijolo – eu usava o próprio tijolo para construir objetos, desenhos, esculturas pequenas, e neste caso essa é uma escultura com tijolo maciço. Mais tarde12 produzi uma série de tijolos bem pequenos, a partir do tijolo em pó e cola. Isso se tornou um projeto: usar o pó até o final e o projeto termina. Eu gosto desta ideia – eu saí da casa levando a casa. Em vários galões. Uma casa móvel, que não se fixa e que vai sendo transformada.

Caixa cobogó é um trabalho que eu venho fazendo, também a par-tir de moldes de silicone, pó de tijolo e cola. Sem a caixa o título é Renda cobogó.

Em 2010,13 fiz sete montanhas do Rio de Janeiro com pó de tijolo e as apresentei só uma vez na Bienal de Denver. Quando as montanhas voltaram de viagem, chegaram brancas – eu tinha misturado cola mineral e resina, que reagiram. Estou refazendo a obra sem usar resina, apenas barro e pó de tijolo da casa, um intercâmbio de terras.

Utopias e Devaneios14 são duas esculturas em formato de livros, estas sim em pó de tijolo e resina.

Vou agora apresentar algumas imagens de instalações e exposições

Vivacqua – também com uma instalação sonora, relacionada ao deserto. Então, a gente criou essa relação da umidade e da aridez, tudo por meio da sonoridade.

Essa é uma imagem de um dos vidros coletores9 [Brígida mostra a imagem no telão]. A foto é de 2001,10 bem diferente daquela primeira imagem que eu mostrei coletando orvalho com o meu filho em 1994, quer dizer, outra atmosfera. Todas essas diferenças nos levam a uma aceitação do nosso próprio percurso. Hoje em dia, tenho respeito ao olhar algumas obras que eu não faria de novo daquela forma, mas que foram feitas, acreditando que era o melhor. No caso das coletas, minhas prediletas são as primeiras ações, realizadas nos 90.

Depois de realizar as Coletas, comecei a ter mais convites para exposições e observava que o trabalho inicial que eu tinha feito na casa não era conhecido. Senti necessidade de voltar a ele. Eu tenho um processo de avanço e retorno a um trabalho. Às vezes estou com um trabalho novo e daqui a pouco volto para um trabalho que foi iniciado cinco anos atrás, quando sinto que seria bom potencializá--lo. Coincidiu que, em torno de 2004, eu já estava saindo daquela casa onde fiz todas as experiências iniciais e sentia que não tinha aprofundado o suficiente, como gostaria. Então, ao sair, levei vários materiais de lá e até hoje continuo trabalhando com eles.

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céu entre paredes,19 a narrativa da experiência de estar subindo as paredes da casa para recolher tijolos, através dos vãos deixados, que me serviram de escada, e então eu podia quase escalar. E, por estar tão próxima à parede, eu já não via casa, mas grutas, cavernas e novas paisagens. Na última sala fiz mais uma vez um desenho no chão com pó.

Em Buenos Aires,20 na Galeria 713, também mostrei o piso bro-cado e dessa vez reproduzi o mesmo desenho do piso em azulejo hidráulico da própria galeria.

Vou mostrar mais uma exposição,21 que aconteceu no firstsite, na Inglaterra. Eu queria ter quebrado as paredes e colocado meus tijolos dentro dos buracos, já tinha feito essa experiência no Museu no Espírito Santo, e a curadora agora estava muito animada para eu repetir o mesmo lá na Inglaterra, mas como o firstsite aconte-cia em uma casa antiga e tombada, não permitiram que eu fizesse o projeto. E optamos, eu e a curadora, Annabel Lucas, por uma nova experiência,22 que me deixou entusiasmada – e consistiu em preencher todos os espaços do chão com pó de tijolo. O chão era de madeira, bem antigo, e o resultado foi chegar à invisibilidade, você entrava no espaço e não via nada. Havia uma sutileza que foi sendo percebida devagar. Foi no firstsite que desenhei a Floresta

de que participei. É bom para vocês observarem a obra no espaço. Foi na Fundação Eva Klabin que comecei a trabalhar com máscara de papel e pó de tijolo, deixando o pó ficar solto no espaço, podendo ser desmanchado no final. Então, se tornou uma obra efêmera e lá15 optei por fazer a reprodução do desenho do papel de parede de uma das salas da FEK e sobre um móvel instalei o brocado. Repeti a ação em um canto da sala principal, no chão. Passagem secreta16 é uma parede de minitijolos, montada em uma porta de correr. O vão da porta ficou mais estreito para a passagem das pessoas, provocando uma sensação de impedimento, e houve um sentido dúbio – não era claro se a porta iria correr. Foi bom ver a relação da arte contemporânea em um espaço como a Fundação Eva Klabin, que já contém sua própria coleção de arte.

Em 2007,17 fiz a exposição individual Pó de casa, na Galeria Nara Roesler, em que apresentei desenhos. Foi quando produzi as mini-paredes e o Chão pela primeira vez. E mostrei o Canto brocado, logo após ter apresentado na FEK.

Em 2010,18 Moacir dos Anjos me convidou a fazer duas instalações na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. Um dos trabalhos foi a criação de paisagens só usando o pó de tijolo, no chão. No final da exposição, eu recolhia o pó. Apresentei também o vídeo Um

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nas roupas infantis – e me fotografei usando esse pano como se fossem extensões do corpo, como favos. Minha casa tinha muita madeira, e trabalhei com a ideia dos casulos nas árvores. Levei a experiência para a natureza. Os desenhos foram também inspi-radores. Desenhos como uma renda, que é o favo; em alguns, usei carimbos, sempre com palavras ligadas ao universo das abelhas. Em Favo imbuia,25 o desenho do favo aparece na escavação da madeira. Fiz um vídeo26 para a Bienal, em que o mel desce pelas escadas, bro-tando do corpo, da casa. É a partir daí que o trabalho vai ficando cada vez mais ligado à fábula, entrando no mundo das metamorfoses.

Maria Farinha Ghost Crab27 é sobre a personificação do caranguejo fantasma. Convidei a atriz Lorena da Silva para ser esse persona-gem, o caranguejo de areia. Filmamos28 na Ilha Grande em 16mm. Ela corria, se escondia, cavava, enterrava a cabeça, em ritmo veloz. A Maria Farinha tem essa agitação, e ela usava fones de ouvido em formato de conchas. Mais tarde percebi que, na verdade, eu também estava trabalhando o conceito casa, porque o caranguejo está sempre indo para a toca. O nome, caranguejo fantasma, eu não inventei, ele é conhecido como caranguejo fantasma, porque se confunde com a areia, pela cor, e está sempre escapando. Gostei de fazer um trabalho mais fantasmático e em um lugar muito solar. Fazia sol intenso na Ilha durante as gravações. Eu tinha também,

vermelha,23 pela primeira vez – um desenho feito com o efêmero pó, diretamente na parede de outra sala. Mais tarde continuei a desenhá-la em outras exposições, diferentes em escala e intensi-dade. Trabalhar com esta efemeridade traz uma sensação de um desaparecimento, que eu acho que de certa forma se relaciona com a neblina. O que ajudou a montagem sutil do firstsite foi o fato de a instituição já ser uma construção de tijolos. Em Colchester, a cidade é toda de tijolos aparentes. Isso construiu um pouco de mimetismo com meu trabalho e criou uma relação interessante. Na janela da casa, que dava para um jardim tipicamente inglês, instalei as borboletas – todas na parede pelo lado de fora. Assim, você podia observá-las do jardim e, com um pouco de dificuldade, da sala de exposição.

Ainda relacionada à casa, aconteceu a obra Casa de abelha.24 Foi um trabalho que eu fiz em 2002 para a Bienal de São Paulo, que esse ano tinha como tema cidades. Como meu interesse era mais intimista, eu não conseguia imaginar como iria enfocar algo urbano. E decidi continuar dentro da casa, entrelaçando a minha e a das abelhas. A abelha é um inseto social e tem essa tarefa de construir a própria casa e o próprio alimento simultaneamente. E o mel traz associações entre doçura e afetividade. Então, em um pano, fiz uma espécie de bordado, em ponto “casa de abelha” – geralmente usado

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“Eu acho que o meu trabalho

começou inicialmente

existencial, realista, com

algo de biográfico - são fotos

simples, cruas, onde uso

roupas cotidianas. Mais tarde,

a obra se volta para uma

fabulação - meu trabalho se

modificou no tempo.”

ao mesmo tempo, silêncio e uma música bem fantasmagórica que acompanhava o filme. Esse filme foi feito em 2004.

Agora vou dar um salto para meus projetos recentes. A exposição nas Cavalariças se chama O amor do pássaro rebelde29 e, basica-mente, uma cantora lírica encena duas árias da Carmen de Bizet. Ela canta o amor e a morte. Há uma inspiração em Carmen e Bezan-zoni, mas as histórias me interessam menos do que as atmosferas criadas. Tudo aconteceu quando eu comecei a trabalhar com voos. Em 2011 trabalhei na exposição Voar.30 Eu queria voos, mas ao mesmo tempo as quedas e as vertigens. Então, fiz31 esculturas que tinham penas ou traziam alguma metamorfose, de ser híbrido. E usei massinha mesmo, massas de porcelana, aquelas que vão ao forno e são coloridas.32

Esse trabalho,33 é um anfiteatro em cima de um abajur. O teatro começou a me interessar. O lugar das invenções, o palco das magias.

Os cavalos do carrossel são alados.34 Eu pensava no mito da Aurora. A mitologia é essa: ela sobe com os seus cavalos cor-de-rosa aos céus, todas as manhãs, trazendo o amanhecer. Ela, a deusa Aurora. E o nome dos cavalos, um é Claridade e o outro é Brilho, que é o título da obra.

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E termino minha apresentação, feliz com a presença de vocês, com um trecho do Voar.39

ALuNO: Quando e como o seu trabalho começou a ter algum reconhecimento?

Tive um processo de crescimento bem gradativo. Lembro de ten-tar mostrar meu trabalho nos Salões de arte. Nos anos 1980, havia, entre outros, o Salão Nacional, que era bem importante – todo ano eu mandava imagens para o Salão Nacional, mas nunca consegui ser selecionada. Em 1994, tive essa oportunidade de ir para a Bienal de Havana, que foi a minha primeira exposição fora do Brasil, e em 1997 ganhei o prêmio do Salão da Bahia. Eu posso dizer que a partir de 2000 é que tive algum reconhecimento, principalmente por convites de exposições fora do Brasil. Em 2002 participei da Bienal de São Paulo. O Prêmio Rioarte, em 2001, foi importante, pois culminou com a exposição Coletas no Agora/Capacete. O Agora/Capacete era um organismo organizado por artistas, pelo Helmut Batista, o Eduardo Coimbra, o Ricardo Basbaum. Foi um lugar perfeito para apresentar o meu trabalho, porque acima de tudo éramos amigos da mesma geração.

ALExANDRE DACOSTA: Existia videoarte, da década de 1980 pra cá, com o vídeo se tornando mais maleável, menos pesado.

Fazer projetos sobre voos começou com uma vontade de tra-balhar com o meu irmão, que é engenheiro e responsável pela construção de aparelhos circenses, então ele é sempre convi-dado para espetáculos de teatro ou dança, pois sabe justamente como fazer a pessoa voar, alto, com segurança. E eu comecei todo esse projeto me reunindo com ele, tentando criar umas ideias de máquinas para voar. Mas a ideia de construir uma máquina de verdade, que chegou a ser cogitada, acabou não existindo. E que bom, também, que não existiu, porque logo entendi que o mais importante para mim é o teor simbólico dos voos. Os voos que você pode dar sem sair do lugar. E fiquei satisfeita também com a dimensão das maquetes. Esta recebeu o título A maquina para voar ou A vertigem do pavão.35

Na Escola de Música,36 fiz um grupo de fotografias sobre um teatro de sombras projetadas no papel de parede. Na mesma escola realizei o filme Voar. Convidei a maestrina Valéria Matos para reger um coro de 16 vozes. A composição da música foi do Tim Rescala. Eu queria fazer um coro de músicas sobre voos e que incorporassem as noções de vertigem e de queda. Eu apresento o filme sem os cantores, a maestrina rege um coro invisível. Trabalhar na Escola de Música da UFRJ foi bom. Entre as fotografias, há Autorretrato com asas de harpa sobre Osíris, o inventor da flauta37 e Dançando com as sete notas.38

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A. D.: Até porque os galeristas investiram nisso, na pintura.

E algumas pessoas, alguns artistas ficaram um pouco sentindo a necessidade de se organizar, porque não tinham galerias – não havia tantas como hoje e nem muito movimento institucional. Lembro que a obra do Hélio Oiticica ficava em um apartamento...

A. D.: É, eu fui lá com aquele grupo, A Moreninha....

Realmente aconteciam os movimentos dos artistas, e teve A Moreninha, e toda a nossa formação era quase entre amigos. Mais tarde a gente também se organizou num grupo chamado Visorama.

A. D.: A minha pergunta ia ser essa...

Pode perguntar.

A. D.: Não, desenvolve!

Na verdade a gente se reunia – João Modé, Eduardo Coimbra, Carla Guagliardi, Valeska Soares (que hoje mora em Nova Iorque), Analu Cunha, Ricardo Basbaum, Rodrigo Cardoso, Márcia X e Ricardo

Mas se fazia mais vídeo mesmo como projeção, não como um material para acompanhar uma instalação, um trabalho, uma escultura, né?

Você nos anos 1980 fez muitos trabalhos com vídeo, mas acho que você tem razão, a apresentação do vídeo se tornou mais incorporada à instalação, definindo o próprio espaço da obra.

A. D.: Se bem que, no final da década de 70, isso é que eu queria lembrar, o José Roberto Aguilar, o Otavio Donasci, que era um cara que fazia umas instalações com umas caras enormes, se vestia de negro, botava umas televisões em cima da cabeça e ficavam umas figuras estranhíssimas... Enfim, o vídeo já estava vindo com várias funções. Na década de 80 é que teve um pouco menos, né? Mas, realmente, não era tão usado.

Eu me lembro das performances do Otavio Donasci... Na verdade, na década de 1980 não havia tanta informação sobre os momentos anteriores, pelo menos eu tinha essa sensação. Ou eu era muito jovem e estava ainda iniciando meus conhecimentos, pode ser. Como entrei para o Parque Lage a primeira vez em 1982, havia um movimento bem grande, que foi a pré-Geração 80, e tudo girava em torno da volta da pintura.

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Edu Coimbra, nossos trabalhos ali, sendo projetados junto com outros artistas. Era uma maneira de nos entendermos inseridos em uma óptica contemporânea e internacional. Uma vez recebe-mos a Barbara Kruger, aí a levamos na cachoeira das Paineiras, depois fomos almoçar num restaurante. Lembro que a Analu Cunha pegou os guardanapos de todos, inclusive o da Barbara, e fez um trabalho. Mais tarde encontramos com o Mark Dion e o galerista inglês Nicholas Longsdail.

A. D.: E foi na década de 90, em que o objeto, uma volta até um pouco à arte conceitual, que começou a vigorar mais do que em 80, estava muito preso pictoricamente, a pintura ali. Vou aproveitar agora e passar esse microfone adiante e fazer umas perguntas. uma é sobre o Visorama: eu não participei, mas acompanhei de longe, e gostaria que você falasse mais um pouco.

Hoje em dia existem muitos coletivos. Na época teve A Moreninha e o Visorama, quase não existiam...

A. D.: O grupo Seis Mãos... Eu sempre gostei de trabalhar em grupo, até por causa do teatro.

Ventura – para estudar, organizar imagens de arte contemporânea, convidar curadores, críticos para conversar...

A. D.: Vocês fizeram revista, né?

A revista Item veio depois, organizada pelo Ricardo Basbaum e pelo Eduardo Coimbra. Eles eram os editores e o Modé desenvolvia o projeto gráfico.

A. D.: Era um grupo de estudos.

Era um grupo para refletir sobre arte contemporânea, entender o nosso momento, o circuito de arte, o papel das instituições, das galerias, o panorama internacional. Isso ia ajudando a formar nosso pensamento, nossas escolhas individuais. Era nossa formação mesmo, como artistas.

A. D.: E isso quando não existia internet, o que é um dado importante.

Sim, não existia a internet. E é por isso que organizamos um banco de imagens, todo em slides, com imagens nossas e de artis-tas do mundo todo. Eram bacanas aquelas projeções na casa do

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estado físico. Quando expus na Suíça, na Kunsthaus Baselland, tive a oportunidade de conhecer um crítico que me deu um livro de um artista alemão chamado Gerard... que também fazia umas coletas, de nuvens. E aí entramos em contato e nos correspondemos durante dois anos. Fui percebendo que a obra do Gerard diferia da minha, era bem científica – ele colhia nuvens em vidros e catalogava as nuvens, por exemplo, pelo grau de umidade. Para mim, colher névoa é pura fantasia. Os vidros coletores, incrivelmente, funcionaram, para minha surpresa, mas eu não fiz nenhuma pesquisa mais profunda, científica para isso. Então, o que sempre me interessou no projeto da neblina foi muito mais o que ela traz de atmosfera – é você olhar uma paisagem que pode estar velada, você pode se aproximar do invisível em contraste com as superexposições da atualidade. A neblina, uma vez o Marcelo Campos disse, também é uma parede.

A. D.: Sempre se abrigando, tem um abrigo aí.

Tem uma coisa que passa por aí, sim. E eu acho que a coisa do drama... Essa exposição que está aqui no Parque Lage, eu trabalhei com uma narrativa, com uma história. Embora eu tenha trabalhado com a Carmen de Bizet, me interessa menos a história da Carmen, da mesma maneira que eu trabalhei com a memória desta casa, mas para falar de outras questões. Eu não quis fazer um documentário.

E, eu acho que você marcou muito os anos 1980, com essas atuações. O Seis Mãos era incrível.

A. D.: A minha pergunta é exatamente resgatando um pouco o teatro. Você disse que chegou a ser atriz, até trabalhamos juntos. Você falou do drama, falou muito a palavra drama, como o drama está no seu trabalho. Eu acho isso muito interessante, vendo essa exposição que está aqui e a do Oi Futuro. Quer dizer, claro, tem essa coisa do drama pessoal, que a gente pode até resgatar uma memória emotiva, que se fala muito em teatro, que é você resgatar uma memória sua para colocar no personagem e sentir uma emoção que seria do personagem, mas que é sua também. Você já falou muito dessa coisa do psicológico que você joga no seu trabalho, e eu queria que você falasse um pouco se essa experiência do teatro ainda fica muito em você para você fazer esses trabalhos referenciais a um drama ou não, se é uma coisa puramente poética, mesmo.

Sim, a natureza psíquica do trabalho me interessa. Ou emocional. Poderia se perceber meu trabalho como uma pesquisa de elementos e de certa maneira é: o tijolo é pedra ou terra, a neblina é ar e umi-dade. Mas afirmo que o que move este trabalho da neblina não é o seu

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Habanera, 2012Maquetes de madeira e vídeo

Foto: Wilton Montenegro

Na verdade, são duas encenações muito claras, uma fala de morte e a outra de amor, e elas trazem essa generalização (dramática) que no fundo é o que mais se aproxima do meu interesse mesmo. Ao mesmo tempo, construí três pequenos teatros de madeira para apresentar as óperas. É também trazer o espetáculo para uma visão intimista. Não sei se eu te respondi.

A. D.: Respondeu. Você fez uma desvinculação do lado atriz, também, no sentido que agora você chama atores...

É, por exemplo, na escola de música, mais uma vez, fiz umas expe-riências me fotografando. Eu chamei de Teatro de sombras, eu usei as paredes lá da escola de música, eu fiz uma série de fotografias das sombras projetadas em posições de voos e quedas... Então, mais uma vez, minha imagem, mesmo em sombra, foi parte da obra. Agora, não há mais nenhuma intenção biográfica. No caso do filme Voar, foi um convite para a cantora lírica Carla Odorizzi. São atores ou cantores convidados para realizar uma performance.

A. D.: E tem uns outros atores pelo Parque...

Tem outros personagens, não atores profissionais necessariamente. Convidei amigos, pessoas de outras áreas, para este trabalho. No

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filme, eles atuam nesse lugar da fábula. São personagens que não têm história – são como fantasmas que saíram dessas óperas, des-sas histórias, de uma memória talvez, e que vivem nesse lugar da metamorfose – então, ao mesmo tempo ele é um cavaleiro e um cavalo. São metade personagem de ópera, metade natureza. Tem a personagem com cabelos vermelhos e gola rufo, ela é quase um mico-leão-dourado, a roupa tem pelos.

A. D.: Interessante porque a fábula carrega drama, também, drama e encenação, o teatral. Essa palavra fábula é muito boa.

ALuNA: Você trabalhou durante muito tempo com um material, com pó de tijolo, com tijolo. E eu sou atriz, a gente treina muito, nós, atores. E eu fico pensando como me reinventar ainda em mim, sabe? E como você conseguiu transformar esse material e ficar com ele tanto tempo. E eu queria saber como continuar com isso, porque é muito fácil largar, né?

Eu acho que é uma necessidade continuar, é como afirmar um território, para você mesma. É a consciência de que é preciso mergulhar mais. É o tempo também de potencializar uma obra. No caso da casa, eu senti que isso poderia se tornar um projeto: retirar da casa, a casa se tornar um pó e a partir daí seguir com

novas moldagens. Eu trabalho com intuição; para falar a verdade, acho que intuição é uma coisa boa, e desejo. Então, o que move é isso, é a sua vontade. E as suas escolhas é que vão formando você. Há muitos caminhos e possibilidades, não vai dar tempo de desen-volver tudo o que gostaria. Eu acho que o caminho do artista é um caminho de escolhas, que não terminam, há sempre um confronto com o que você já realizou, com o que você ainda pode realizar.

ALuNO: Você falou em intuição agora, então eu queria saber como é que a tecnologia, e essa coisa do slide lá dos anos 80, que você comentou, como é que isso influencia no seu processo criativo, na sua intuição, enfim, na construção da sua obra. Você falou em pesquisa: hoje em dia você vai no Google e descobre tudo sobre uma pessoa. O tempo de maturação da ideia, na verdade, de você ir descobrindo as informações, tem uma diferença sobre esse processo criativo agora e como isso influencia?

Como é hoje em relação ao que foi? Bom, no início tinha, real-mente, menos acesso à informação. Aconteceu e acontece essa revolução da tecnologia e o mundo ficou diferente, mais rápido. Mas, por outro lado, não dá tempo de ouvir todas as músicas, de ler todos os livros, de absorver todas as informações disponíveis.

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O importante é seguir, como disse, suas vontades. Elas guiam. E isso é confortante – saber que, diante de tanta história, você não precisa conhecer tudo. Mas eu não sei se é exatamente isso que você quer perguntar, você falou de tecnologia...

ALuNO: Na verdade, quando você tem muita opção, era isso que eu queria saber mesmo. Porque você é muito detalhista nas suas obras, você é muito pontual, consegue pegar um tema e destrinchar ao longo do tempo. O seu trabalho com pó de tijolo é muito bom. Você tem uma coisa mesmo de caminho, e hoje, com a tecnologia, as coisas ficam muito soltas, né? Você quer abraçar tudo, quer ler tudo, quer ver tudo, você até começou a palestra falando disso, né? De ver várias coisas e de estar sob todos os estímulos e ter que escolher aquele que mais te interessa.

É verdade, eu acho que isso é um assunto no mundo, e não tem como fugir de mergulhar nessa fragmentação... Estudar ajuda bas-tante. Durante dez anos eu frequentei um grupo de filosofia, por exemplo, em que a gente falava sobre tudo relacionado ao mundo contemporâneo. Isso me ajudou a entender um monte de coisas. Eu acho que existe a ansiedade, mas o tempo vai azeitando nossas procuras, mesmo que elas sejam assumidamente caóticas.

ALuNO: Talvez você já esteja começando a responder à minha pergunta, no final agora dessa última, porque eu ia perguntar como se deu esse atravessamento entre os materiais, as ideias que se atravessam de um material para o outro, a conexão entre essas mídias que você explora. Tem a ver com a tecnologia, mas, enfim, queria que você falasse sobre isso.

Quando você é um artista que trabalha com um material só, com o tempo você vai ficando muito bom no uso daquele material. Por exemplo, se você é um artista que trabalha com pintura, você vai entendendo cada vez mais como preparar a tela, como misturar bem as tintas, etc. No meu caso, o único material que conheço com mais profundidade é o tijolo. Por isso, às vezes, quando penso em uma obra que precise do uso de outro material cuja técnica eu desconheça, posso me juntar a outros profissionais. Para o Teatro de sombras, fiz a maquete junto com a Beth, que é uma ótima maquetista. Para minha última exposição na Galeria Nara Roesler, apresentei uma escultura em bronze que foi produzida em uma fundição. Tive que trabalhar junto com um fundidor de bronze, porque é uma técnica muito específica, você tem que trabalhar no fogo para derreter o metal.

ALuNO: Em relação à problematização do tempo, por exemplo, você usa uma 16mm na Ilha Grande e você usa

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“Eu trabalho com

intuição, para falar

a verdade, acho que

intuição é uma coisa

boa, e desejo. Então,

o que move é isso, é a

sua vontade. E as suas

escolhas é que vão

formando você.”

também uma Full HD. Então, eu queria saber como é que você escolhe.

E usei o vinil numa época em que ninguém mais estava falando em vinil. E isso também passa por essa coisa muito orgânica do que se esteja vivendo no momento: eu tinha ido para a Alemanha e, quando eu visitava as pessoas lá, todo mundo escutava disco de vinil e tinha vitrola. E no Brasil você só via aqueles discos no meio da rua sendo vendidos a dez centavos. Fiquei animada para fazer um. E fui fazer um filme em 16mm também. Mas não estava levan-tando nenhum pensamento à antitecnologia, na verdade, eu estava perseguindo uma imagem que me interessava, que é analógica. Eu me formei com analogia, o meu portfólio nos anos 1990 era todo em slides e eu fotografava com uma Pentax analógica – todas as fotos da neblina foram feitas com essa câmera. A entrada do mundo digital foi decepcionante para mim, porque o que eu via não tinha qualidade. E isso já mudou. Há câmeras de vídeo que se aproximam da tradicional imagem do cinema, da película. Eu sou da geração que viveu essa transformação – e meu trabalho traz essa mistura.

A Tacita Dean só faz vídeos em 16mm, só projeta em 16mm ou 35, ela é totalmente ligada ao analógico e é uma questão de posiciona-mento dela no mundo. Ela filmou a fábrica da Kodak na Alemanha,

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quando ameaçada de fechar. Ela filma todos os mecanismos do analógico na Kodak. É bem interessante e nostálgico. No início dos anos 2000, quando eu estava apresentando a neblina com vitrola, eu adorava também esse lugar de tecnologia low, digamos assim, com o uso de muitos fios aparentes no espaço. É bacana, fica tudo em um tom mais artesanal.

ALuNO: Quando eu vi o seu trabalho, não esse especificamente, mas alguns outros, eu acabei pensando em Manoel de Barros, e depois eu acabei lendo algumas coisas, algumas pessoas também fazendo essa relação e falando algumas coisas. E eu queria saber de você se isso existe de fato, se você pensa na obra dele em algum sentido e se te incomoda que façam essa relação.

Não, não me incomoda. Essa relação foi feita também por uma curadora de Florianópolis, mais jovem. Ela me mandou refe-rências dele pelo facebook. Inclusive eu acho que as leituras do nosso trabalho, a gente não tem o controle. Quando você faz um trabalho, e você tem todas as suas razões internas para fazer, esse trabalho está no mundo. Por exemplo, quando realizei o Abrigo, eu pensava na força de sustentar uma parede, o corpo como tijolo, essa era a minha intenção, mas para algumas havia a relação com

a morte, mais diretamente, porque existiam as catacumbas, onde as pessoas eram enterradas na parede. As leituras são do mundo também.

ALuNO: Tive a oportunidade de ir ali na sua exposição sobre a Gabriela e achei que tem muito a ver com o que você vem trabalhando ao longo da sua vida, em cima dessa coisa do pó do tijolo. E até a estrutura do próprio local em que você montou a exposição tem muito a ver com essa questão do pássaro, não sei se você reparou. Mas a minha pergunta é sobre a validação do trabalho em si. Por exemplo, quando você se apropria de uma outra forma de trabalhar: “Ah! Vou construir um lustre ou vou construir uma maquete”, como fica essa questão da construção do objeto? Por exemplo, do tijolo, eu entendo que seja um pouco diferente esse conceito de você desconstruir a casa para reconstruir e a coisa de construir um objeto.

São atitudes diferentes. No caso do tijolo, tem a desmaterialização de um objeto já existente para se transformar em outro. Nas últimas exposições Voar, na Oi Futuro, e O amor do pássaro rebelde, aqui nas Cavalariças, existe mais o processo clássico de construção de uma escultura, é um outro tipo de relação.

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ALuNO: Mas você é aberta a esse tipo de relação nova ou sempre tenta buscar um pouco das suas experiências adquiridas em outros trabalhos?

Eu sempre me coloco livre diante de cada novo projeto. Sempre falo para os meus alunos que um pouco de esquecimento é bom. Mas, por exemplo, quando a maestrina entra naquele teatro e rege um coro de vozes invisíveis, eu também estou relacionando com os gestos da neblina, com aquele lugar da coleta que também acon-tece com silêncios, ausências e invisibilidades. A Maria Farinha escutava vozes que ela não sabia muito de onde vinham, e assim os trabalhos vão se conectando. Há maneiras diferentes de sustentar esses entrelaçamentos.

ALuNO: Você disse no começo que acaba sempre retornando, em algum momento, ao tijolo e, pelas fotos que você mostrou, você tem esse material e não à toa você estocou esse material. Então, esse retorno ao material de tijolo, você pensa ele de alguma forma, ele se dá intuitivamente, ele é mais um lugar de repouso ou ele é como um lugar de impulso para o resto dos seus trabalhos? Quando você retorna, você sente como retornando a um lugar um pouco mais confortável, ou para buscar um desconforto novo?

É possível... É como voltar para casa. Você falou em pouso e impulso, eu acho que são sempre as duas coisas. Porque sempre quando retorno há também os pontos zero de partida. Desenhar para mim é sempre um lugar de pouso talvez.

ALuNO: O seu trabalho começou nessas experiências com tijolos ou tem alguma coisa antes?

Ele começou nessas experiências da casa, e os tijolos como parte disso. Banho e chuva,40 por exemplo, é anterior, eu não sabia que iria coletar neblina ou goteiras, e ele já tem essa relação com a ideia de coletar... O trabalho na casa começou mesmo com o armazena-mento de materiais. Eu colocava as tintas das paredes em potes de vidro e às vezes fazia desenhos com aquelas cascas de tinta. E continuava fazendo uns buracos nas paredes, plantava ervas nos tijolos e fotografava tudo. A casa era espaço como laboratório.

A. D.: E por que você saiu dessa casa?

Foi natural, foi o fechamento de um ciclo no sentido da vida pessoal, mas eu precisei levar a casa em pó.

ALuNO: Eu queria fazer uma pergunta quanto à questão do

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processo de seleção, do que você considera que “pode ser exposto”. Considerando que você, dentro do seu processo criativo, tem uma questão da intuição e da intimidade, como você faz, dentro desse processo de seleção? Você faz um experimento e esse experimento, eu imagino que o público não vá conseguir fazer essa leitura, por ser algo muito íntimo. Ou não tem esses limites? Tudo que vem dentro desse processo criativo você acha que pode ser exposto?

Existe uma seleção, mesmo que essa seleção não seja feita ime-diatamente, porque, às vezes, você não tem a visão suficiente para decidir, quando você está muito próxima ao trabalho – quando é uma obra ainda em processo e recente –, para compreendê-la na sua totalidade. Tem a soma do tempo de maturação. Então, eu acho que a gente tem esse poder, e isso é bacana, a gente pode escolher a própria construção da obra e, em conseqüência, o que vai ser exposto. Talvez respondendo mais a sua pergunta: para mim, o íntimo sempre importa se vai trazer sentidos mais coletivos. Não se trata de mostrar uma biográfica, mas pensamentos e atmosferas que produzam sentidos nos observadores da obra – este é o limite.

ALuNA: Eu fiquei pesquisando, ontem mesmo, a sua obra. E a que mais me chamou a atenção foi a que você disse

presságio, 2012Video still.Exposição O amor do pássaro rebelde nas Cavalariças da EAV Parque Lage

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que é a que te deu mais visibilidade, que é a da neblina, que não tem visibilidade, né? E que te deu visibilidade. [Risos] Eu vi uma foto, ação fotográfica, como você chama, com um colete de plástico bolha e atrás você carregando todos os frascos com neblina e, em cinco minutos na internet, eu tive um fruir e aconteceu, realmente, um fenômeno estético ali com a sua obra, eu fiquei encantada! Teve uma época da minha vida em que eu também morei na floresta, me isolei, e isso me remeteu a essa bagagem, de momentos vividos, uma bagagem de coleta de sensações, uma apropriação de uma sensação que é imaterial. Essa foi a minha sensação vendo o seu trabalho, que, como você disse, está no mundo. Eu queria saber, desse colete de plástico bolha, com a neblina, o orvalho, o que você realmente expressou, qual era o seu objetivo nessa parte da obra, nessa fotoação.

Quando eu comecei a coletar o orvalho, primeiro foi como extensão das ações que eu já estava fazendo na casa, para a natureza. Eu levava móveis e parte da casa para a natureza. Foi quando comecei a colher orvalho. E depois neblina. A minha captura era de signi-ficado, porque tudo significa, de certa maneira. Então, a neblina é mistério, invisibilidade, paisagem que muda, falta de localização, o lugar do sublime, do corpo diante dessa paisagem. Todos esses

significados colocam você também no lugar de captar a impossibi-lidade. É chegar ao espaço da ficção. E tudo foi muito processual, porque no começo, realmente, eu pensava em vedar os vidros, até entender que a minha captura era de sentidos.

ALuNO: Eu queria saber um artista atual que te interessa.

É difícil mencionar um. Me interesso por artistas mesmo que não tenham relação aparente com meu trabalho, mas posso entender e apreciar a potência das suas intenções. Agora, na Feira de Arte do Rio, foi interessante rever a obra da Roni Horn, com as fotografias dos rios – ela fotografa o Sena, o Tâmisa, entre outros. Pesquisei há pouco tempo para minhas aulas a Hannah Wilke, uma artista dos anos 1970 que trabalhou sobre o corpo ao mesmo tempo criando uma relação com a escultura menos rígida que a minimalista, mais orgânica. Tem a Laura Lima, o Zerbini, são tantos.

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Notas1. V Bienal de Havana. Cuba, 1994.

2. BALTAR, Brígida. Sou árvore, 1997. Fotografia, edição de 3. Dimensões: 27 x 18 cm.

3. BALTAR, Brígida. Silhuetas, 1996. Ação e fotografia.

4. BALTAR, Brígida. Torre, 1996. Ação e fotografia. Construção com tijolos.

5. BALTAR, Brígida. Coleta de lágrima, 1993.

6. BALTAR, Brígida. Abrindo a janela, 1996. Ação.

7. BALTAR, Brígida. A coleta da neblina. Ação e fotografia, edição de 5. Dimensões: 40 x 60 cm. Exposição individual realizada no Espaço Agora/Capacete, Rio de Janeiro, 2001.

8. BALTAR, Brígida. Paisagem sonora, 2008. Vinil: neblina, orvalho, maresia – coletas, vitrolas e caixas de som. Coletas em 16mm e vídeo. Caixa Cultural, Brasília.

9. BALTAR, Brígida. Coletor de orvalho, 2001. Escultura de vidro e madeira cavada. Dimensões: 11 x 60 cm. Os objetos coletores têm dimensões variadas, podendo chegar a aproximadamente 80 cm de comprimento.

10. BALTAR, Brígida. 2001. A coleta do orvalho, 2001. Ação e fotografia, edição de 5. Dimensões: 40 x 60 cm.

11. BALTAR, Brígida. Para voar, 1995. Escultura em tijolo maciço. Dimensões: 21 x 10 x 7 cm.

12. BALTAR, Brígida. Miniparquê, 2007. Pó de tijolo moldado. Dimensões: 23 x 34 cm.

13. BALTAR, Brígida. Pó e paisagem, 2010. Esculturas feitas com pó de tijolo e cola mineral sobre estrutura de madeira: Dois Irmãos, Dedo de Deus, Pedra da Gávea, Corcovado, Pão de Açúcar, Pedra do Arpoador, Pico da Tijuca. Morros cariocas. Dimensões variáveis.

14. BALTAR, Brígida. Utopias e Devaneios, 2005. Dois livros. Pó de tijolo, resina e prateleira. Dimensões: 25 x 17 x 1 cm.

15. BALTAR, Brígida. Passagem secreta, 2007. Pó de tijolo e máscara de papel recortada. Dimensões variáveis.

16. BALTAR, Brígida. Passagem secreta, 2007. Parede de minitijolos moldados, instalada em porta de correr. Dimensões: 227 x 77 x 3 cm.

17. BALTAR, Brígida. Pó de casa. Exposição individual realizada na Galeria Nara Roesler. São Paulo, 2007.

18. Brígida Baltar apresentou na Semana de Videoarte da Fundação Joaquim Nabuco a série Coletas, numa videoinstalação na Galeria Massangana e o resultado de uma residência artística de três dias no Recife, na Galeria Baobá, ambas na Fundaj Casa Forte. Recife, 2010.

19. BALTAR, Brígida. Um céu entre paredes, 2005. Videoação. Duração: 1’15”.

20. BALTAR, Brígida. Sala brocada, 2007. Desenho com pó de tijolo e máscara de papel sobre chão. Dimensões: 22 m². Arte Contemporaneo, Buenos Aires.

21. BALTAR, Brígida. Um céu entre paredes. Exposição individual realizada no firstsite, Colchester, de maio a junho de 2006.

22. BALTAR, Brígida. Um céu entre paredes, 2006. Pó de tijolo moldado e pó de tijolo sobre o chão, firstsite, Colchester.

23. BALTAR, Brígida. Floresta vermelha, 2006. Desenho com pó de tijolo e duas molduras de madeira.

24. BALTAR, Brígida. Casa de abelha, 2002. Série de fotografias. 25ª Bienal de São Paulo.

25. BALTAR, Brígida. Favo imbuia, 2009. Madeira escavada. Dimensões: 44,5 x 36 cm.

26. BALTAR, Brígida. Casa de abelha. Vídeo. Duração: 49”.

27. BALTAR, Brígida. Maria Farinha Ghost Crab, 2004. Série de fotografias e vídeo.

28. BALTAR, Brígida. Maria Farinha Ghost Crab, 2004. Vídeo filmado em 16mm. Duração: 15’ 27”.

29. BALTAR, Brígida. O amor do pássaro rebelde. Exposição individual realizada nas Cavalariças da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Rio de Janeiro, de 24 de agosto a 28 de outubro de 2012.

30. BALTAR, Brígida. Voar. Exposição realizada no Oi Futuro Flamengo. Rio de Janeiro, de 11 de julho a 5 de setembro de 2011.

31. BALTAR, Brígida. Esculturas zoomórficas, 2011.

32. BALTAR, Brígida. Escultura alada IV, 2011. Mármore, resina, cerâmica e metal. Dimensões: 26 x 13 x 22 cm.

33. BALTAR, Brígida. Sem título, 2011. Madeira balsa, abajur de bronze e lâmpada vermelha. Dimensões: 40 x 35 x 30 cm.

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34. BALTAR, Brígida. Claridade e Brilho, 2001. Madeira, resina, metal e motor. Dimensões: 94 x 80 x 80 cm.

35. BALTAR, Brígida. A vertigem do pavão ou máquina para voar, 2011. Madeira, bronze e motor. Dimensões: 165 x 50 cm.

36. BALTAR, Brígida. Teatro de sombras, 2011. Ensaio fotográfico desenvolvido na Sala Leopoldo Miguez, na Escola de Música da UFRJ, Rio de Janeiro, durante as gravações do filme Voar.

37. BALTAR, Brígida. Autorretrato com asas de harpa sobre Osíris, o inventor da flauta, 2011. Fotografia. Dimensões: 24 x 18 cm.

38. BALTAR, Brígida. Dançando com As setes notas, 2011. Fotografia. Dimensões: 24 x 18 cm.

39. BALTAR, Brígida. Voar, 2011. Filme de 16mm. Duração: 7’.

40. BALTAR, Brígida. Banho e chuva, 1992. Dois jarros de porcelana e cerâmica sobre estante de madeira. Dimensões: 27 x 22 x 9 cm.

Saiba maisDOCTORS, Márcio. Brígida Baltar: passagem secreta. Rio de Janeiro: Circuito, 2010. 192 p.

ESPAÇO AGORA/CAPACETE. Brígida Baltar: neblina orvalho e maresia coletas. Rio de Janeiro, 2001.

OI FUTURO. Brígida Baltar: o que é preciso para voar. Curadoria e textos de Marcelo Campos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2011. 122 p.

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Montagem na 30ª Bienal de São Paulo/SP. Fundação Bienal de São Paulo, 7 de setembro a 9 de dezembro de 2012

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Gostaria de agradecer à EAV por esta rara oportunidade, não apenas de dividir meu pensamento, minhas ideias, mas de fazê-lo ao lado de um público tão ávido por conhecimento, genuinamente interessado.

Privilegiando os eventos mais recentes, começo pela Bienal de São Paulo. Como já foi dito nesta mesa, aspectos excêntricos per-tencentes às possíveis identidades que um artista assume ou lida durante a criação – como a obsessão e a loucura – parecem ter sido privilegiados nessa mostra. Recordei-me, portanto, de um comportamento adotado pelos índios nativos norte-americanos quando um membro da tribo detém tais características; em geral, quando nasce alguém dentro da comunidade que não se enquadra em nenhuma das atividades tradicionais, ao invés de se tornar um pária ou ser descartado pelo grupo, esse indivíduo é extremante

Foto: Cadu

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lançou o Rumos Visuais, mapeamento e seleção de novos artistas que curadores do Brasil inteiro esperam que, não sei ao certo, inje-tem ou sejam sangue novo no cenário de arte contemporânea do país. E participei com 22 anos da primeira edição. Fui escolhido por uma professora ligada à EAV intimamente e que foi uma pessoa fundamental em minha formação: Viviane Matesco. Iniciei meus estudos aqui com 14 anos de idade, fazendo aulas de modelo vivo. Hoje sou professor da instituição. É um privilégio enorme poder devolver conhecimento ao lugar que lhe ofertou tanta informação e que foi tão importante para construir sua identidade.

Retomando, foi no Itaú que encontrei pela primeira vez o André, nós éramos ambos “mapeados”. O interessante, o singular da ini-ciativa foi que pela primeira vez uma instituição organizava, além de uma grande mostra coletiva com os selecionados, exposições secundárias itinerantes que possibilitavam a ampliação do contato entre eles. Esse processo foi inaugurado com um seminário de uma semana na sede do Itaú. Éramos todos artistas muito jovens, estudantes ainda, precisando ganhar um pouco de léxico, um pouco de malícia do meio, e aquilo era uma chance única.

Eu encontrei com o André ali, tivemos uma conversa de poeta para poeta... Estávamos desesperados com a situação, com o excesso

bem acolhido, bem cuidado, preservado como algo singular. Pois em momentos de crise, em que não há um caminho claro a ser seguido pelo grupo, é justamente aquele que não possui caminho que o encontra para o conjunto. É possível que nunca se precise dele, mas é bom tê-lo preservado, é bom que ele esteja ali. Quando me contaram essa história, fiquei aliviado. Pensei: “Bom, acho que posso ter encontrado um lugar, não?” Quem sabe eu tenha encon-trado um caminho para mais alguém além de mim.

Acredito que artistas, com suas buscas pessoais, colaboram para a abertura de outros universos possíveis, passíveis de serem habitados por outros. Os artistas ajudam nesse sentido. Indiví-duos singulares, legitimamente envolvidos em criação, por uma necessidade de comentar este mundo de inquietações, de espantos, preservando um manancial importante para justificar sua própria existência e a de tantos.

Posso sentir que algo está diferente. Primeiramente, por meu trabalho nunca ter sido visto por tantas pessoas e, segundo, pelo modo como cheguei à Bienal. Algo tão espontâneo que até agora não compreendo bem como ocorreu. Mas sou capaz de pensar retrospectivamente e entender como nossas trilhas se cruzaram. Há muitos anos, conheci o André Severo. Em 2000, o Itaú Cultural

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de exposição que estávamos tendo, com a voracidade de alguns colegas. Estávamos sendo moldados para alguma coisa e me senti em uma escola para supermodelos. Estavam me preparando para alguma coisa que eu não sei o que era. Ele carregou um fardo ainda maior, porque havia um prêmio, na época uma viagem para Paris, e ele ganhou. Quando retornou, imagino que a ressaca resultou no projeto Areal,1 que parecia ser a total negação disso. Não vou falar mais do Areal, pois não tenho propriedade para isso. Mas ele era a única pessoa que eu conhecia.

Reencontrei-o ano passado, durante o Panorama da Arte Brasileira. Fui selecionado para participar da mostra2 e ele também. Fomos convidados a dar palestras no mesmo dia: ele sobre o projeto Areal e eu sobre o projeto Estações. Meu trabalho atual, de codinome Cabana. Cabana? Minha casa. Na verdade, onde estou vivendo. O bonito durante o evento foi termos nos debruçado sobre os mes-mos temas sem qualquer combinação prévia. Ambos estávamos apresentando os motivos pelos quais ainda estávamos fazendo ou tentando trabalhar com arte, apesar de sentir os efeitos da trans-formação do que realizamos em objetos de commodities, em status social, e tantos outros mal-entendidos periféricos à ocupação de criador, mas que parecem estar no cerne da agenda. Como nós transávamos ou deslizávamos e frequentávamos esses lugares com

“Acredito que artistas,

com suas buscas

pessoais, colaboram

para a abertura

de outros universos

possíveis, passíveis

de serem habitados

por outros.”

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mundo atual. Muitos criadores tomaram atitudes semelhantes, a grande maioria dos meus heróis fez isso. Então, juntei dois fortes desejos: o primeiro, de infância, que era o de construir uma casa com as minhas próprias mãos. E o segundo, que, uma vez essa casa construída, eu pudesse habitá-la solitariamente num enorme exercício de autoespreita, para que ao abandoná-la estivesse plena-mente comprometido com esse estado de arte, em arte, em que não houvesse mais distinção entre a minha ocupação profissional e a minha vida. Para tanto, foram necessárias muitas etapas, inúmeras clivagens que circunscreveram um período de três anos.

O projeto Estações é uma casa, uma cabana que construí na Região Serrana do Rio, em um terreno emprestado que surgiu inespe-radamente. E é isso que considero espantoso de vez em quando: basta que você se comprometa integralmente para que o mundo responda a seus anseios positivamente.

Eu passo seis dias por semana lá e uma vez por semana venho dar aulas e encontrar com meu orientador. A estadia iniciou-se na primeira noite do inverno, dia 21 de junho, e minha permanência limitada até o dia 21 de março de 2013. Contando o tempo de cons-trução da cabana, cobrirei o período de um ano lá dentro. Daí advém este nome, Estações, porque vai do outono até o final do verão.

maior ou menor nível de desconforto. Talvez essa feliz coincidência tenha sido crucial para participar da Bienal.3 O projeto Estações enquadra-se muito bem no conceito curatorial da mostra, sob o título A Iminência das Poéticas. E é por onde eu vou começar.

O projeto Estações tem sido gestado há três anos e faz parte da minha tese de doutorado. Sou pesquisador da UFRJ, na área de Poéticas Interdisciplinares. Sempre reflito que umas das vantagens de ser artista é a oportunidade de escrever a sua própria história da arte. Buscar nessa enorme linha de tempo exemplos maravilhosos, tentar achar quem são aqueles com os quais nos identificamos e fazer o maior esforço possível para até o final da vida, quem sabe, sermos distantemente lembrados ao lado desses sujeitos. E uma coisa que sempre me atraiu muito foi a possibilidade de perceber os processos artísticos, mais do que algo relacionado com a produção de objetos, mais do que fazer arte, com a possibilidade de ver o mundo dentro de um estado, ou seja, de se estar em arte. Fazer com que a minha vida, dentro das relações cotidianas, contenha possibilidades de magia, de convívio com tabus, de ambiguidade, de opacidade.

Para que esses estados ocorram com maior naturalidade, com uma certa potência maior, é necessário algum isolamento. É comum que, para um mundo novo nascer, ocorra uma separação de seu

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entra em atrito com curadores, a não ser em momentos muito específicos, mas que são pura fofoca, eu não vou falar! [Risos] Ainda assim, eu nunca tinha tido um encontro tão espontâneo... sem aquela pequena esgrima intelectual que sempre ocorre quando você está sendo apresentado a uma pessoa que te interessa e ela interessada em você de alguma maneira. Ele foi ao meu ateliê, sen-tou, tomou um copo d’água, começamos a conversar, daí a pouco chegou o outro, mais um, agora um café, o fluxo e a troca. Ao final de uma tarde, não notei as horas.

Num determinado momento da conversa, me foi perguntado: “Cadu, o que você está fazendo?” Eu falei: “Olha, eu estou realizando essa história aqui, da cabana, é o que eu tenho no momento construído”. E aí, conforme eu fui apresentando, eles disseram: “Nossa! Você vai participar da Bienal, porque o que você está fazendo está encaixando com tudo que estamos perseguindo!”. Na hora eu não me dei conta daquilo, não acreditei muito, não esperei a coisa, porque não conto mais com o ovo dentro da galinha, espero a coisa vir. E ela veio.

Existia um desejo da Bienal de fazer uma mostra em que houvesse pequenas individuais, obrigatoriamente deveríamos ir com outros trabalhos, e não sou uma pessoa conhecida apenas por um tipo de linguagem, normalmente eu trabalho com ideias que muitas vezes

Até agora, o que pude perceber do projeto é que, a princípio, ele parece ser consequência de uma decisão individual, uma decisão exclusivamente minha. Porém, com o transcorrer do tempo, chega--se à conclusão de que não se parte sozinho, mas por autorização. Há uma instituição acadêmica que me apoiou, a escola em que leciono possibilitou montar um horário que fosse conveniente para mim, a minha galeria, que trabalha comigo em São Paulo, me deu uma força e as pessoas que eu amo, as pessoas de quem eu dependo ou que dependem de mim disseram “Não, nesse momento você pode fazer isso!”. Então, é como a primeira página do guia dos Alcoólicos Anônimos, em que está escrito assim: “Só depende de você, mas sozinho você não consegue”.

Todas as vezes em que sou obrigado a falar do trabalho, é um momento muito delicado, pois estou tentando lidar com algo intangível, que até agora não sei muito bem o que é; um ambiente inteiro para que algo de natureza invisível se presentifique... Difícil de explicar. Não sei de que forma “isso” vai se manifestar, mas pelo menos é o “isso” que me leva até lá e me traz ou me impulsiona até esse limite. Ao expor no MAM esse trabalho, o André escutou. Uma coisa colou na outra e fui apresentado ao Oramas, posteriormente, e após alguns encontros o convite foi formalizado. Algo me deixou muito surpreso com esse contato. Sou um indivíduo que raramente

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possibilidade de desenho. Só que para desenhar nessa plataforma eu seria obrigado a ter um grau de intencionalidade e de rigor associa-dos que eu nunca teria se tivesse um pedaço de papel e uma caneta para fazer. Passei um ano inteiro controlando o meu consumo de luz, apenas para depois receber da Light o resultado prosaico desse esforço. Construí uma parábola perfeita, totalmente simétrica, inversa ao meu consumo de luz anual... Resumindo em palavras muito ruins: eu tomei cerveja quente no verão e tomei banho frio no inverno. Mas o projeto é muito mais. Vocês não fazem ideia da disciplina envolvida para tal. E eu, para ser sincero, também não sei mais. Não sou mais esse homem. Aqui tinha 25 anos de idade e uma crença inabalável em minha imortalidade, a confiança absoluta em ser capaz de fazer qualquer coisa comigo e com o meu corpo. Esse trabalho talvez tenha sido escolhido pela Bienal por se associar com a cabana, o momento em que estava sendo gestada ou apresentada pela primeira vez, essa certa fleuma pela vertigem que o projeto Estações5 contém...

A escolha das obras se deu de modo muito espontâneo, porém com condições: “Não, esse trabalho (o 12 meses) tem que estar, assim como a cabana”. Os outros dois trabalhos me deixaram esco-lher: “Olha, apresenta aqui três ou quatro outras opções para a gente determinar, juntos, o que fazer”. Mas eles explicitaram o

envolvem questões relacionadas a sistemas, métodos, jogos, rigor e tempo, mas que serão configuradas na linguagem que acredito melhor potencializá-las. Portanto, em determinados momentos, utilizo-me do desenho como uma plataforma, outras vezes a perfor-mance, outras vezes o vídeo, a fotografia. O que ficou claro, para eles, é que nesse momento estava muito nítida a presença de elementos sonoros e da ideia de sacrifício.

Com isso em mente, chegamos a quatro trabalhos: o projeto Esta-ções, um trabalho em desenvolvimento em que a cada duas semanas eu mando coisas da minha cabana para a Bienal. Tentativas, gestos oficinais, resultantes de um processo que tenta dar conta dessa experiência, desse desejo de sonhar. E é basicamente o que vou fazer lá, eu vou sonhar lá, eu sou estimulado a sonhar! E isso é muito raro, isso é um pequeno luxo, mas não significa que não está embutida aí a dor e a doçura dessa escolha.

Outra peça presente na Bienal é o 12 meses.4 Um trabalho que deu muito, muito pano para manga para fazer. Ele foi realizado entre 2004 e 2005 e utilizou como suporte de apresentação a minha conta de luz. Todo mundo conhece a conta de luz. Essa aqui é a conta da Light. Ela apresenta um gráfico mensal do consumo anual em kW. Meu desafio foi perceber e abordar esse gráfico como uma

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“E uma coisa que sempre

me atraiu muito foi a

possibilidade de perceber

os processos artísticos, mais

do que algo relacionado

com a produção de objetos,

mais do que fazer arte,

com a possibilidade de ver

o mundo dentro de um

estado, ou seja, de se estar

em arte.”

que gostariam: “Procuramos obras suas em que houvesse a pre-sença de som, porque é algo que você tem feito, e se possível que envolva sistemas”. Então, o trabalho seguinte, que acabou sendo escolhido, foi uma peça que fiz especialmente para a Bienal, uma versão inédita de um trabalho chamado Hino dos vencedores.6 O Hino dos vencedores foi um projeto que surgiu em 2008 diante de uma notícia banal que eu ouvi no rádio, que era que a Mega Sena havia completado dez anos de existência e premiado mil pessoas.

Achei aquilo extraordinário, porque de alguma maneira a loteria é algo que resume para nós a possibilidade de sorte, a possibilidade de, em uma sequência aleatória de seis números, deparar-se com a transformação absoluta da sua vida. Ela é um dos gestos de fé consumista contemporâneos mais presentes na nossa cultura. E eu não sabia o que fazer com aquilo, porque artista, no final das contas, divide as suas perplexidades com o mundo, divide os seus espantos, e eu estava muito espantado com aquilo, estava tentando dar forma para essa sensação. O que acabo fazendo, como a maioria das pessoas, é ir usando as minhas ferramentas, aquelas que possuo, para abordar problemas, como uma forma de aproximação e dali de dentro alguma coisa acaba saindo. E, por ter alguma familiaridade – e aí, eu teria que falar do meu trabalho anterior e eu acho que hoje a gente não tem esse tempo ainda –, eu tenho certa facilidade de lidar

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tocar. Ela ficava na última prateleira do quarto delas. Elas são mais velhas do que eu, e eu mantinha uma relação de paixão suicida com aquela coisa, porque sempre que elas saíam do quarto eu arrumava um banco para subir, uma almofada pra pôr em cima do banco, e pegava a caixinha e a ligava. Aquele era o prazer do homem bomba, porque eu sabia que ia apanhar depois, ia explodir, então ouvia por poucos segundos a caixinha já esperando o tapa vir. E, quando o homem não dá conta, o menino que vive com ele, que lhe dá a mão, é assim que o Milton Nascimento fala?, vai resolver a fissura. [Risos] E, é exatamente isso, grande parte dos meus trabalhos é a visitação madura dos meus medos e prazeres de infância.

“Bom, já que agora eu sou um adulto, posso brincar, posso usar de forma profissional os objetos que, de alguma maneira, eram do meu universo lúdico”. Então, eu tenho muitas caixas de música e essa caixa de música fazia parte do meu acervo.

Temos na Mega Sena seis dezenas, essas seis dezenas são colocadas dentro de um universo de cem dezenas para se escolher, mas a Caixa Econômica Federal mantém, acho, seis ou sete loterias em que o número de dezenas é variável; alguns jogos têm vinte dezenas, outros doze. A quina tem cinco dezenas só, e isso determina também o valor de cada uma delas. A Mega Sena são seis e é a loteria mais

com máquinas, construir padrões, identificar padrões, ou máquinas que constroem padrões, em uma série de questionamentos que vão desde a ideia de empurrar os limites do desenho de paisagem até a possibilidade de, por meio de uma repetição ou de alguma coisa extremamente monótona, transcender isso e poder transformar isso em um objeto que vai habitar o circuito de arte pelo drama que ali foi embutido. De alguma maneira a conta de luz eu acho que fala um pouco disso.

E aí, reparei que o bilhete de loteria brasileiro é exatamente do mesmo tamanho que um tipo de caixa de música que existe no Japão há sessenta anos, que se utiliza de cartões perfurados para produzir música. Isso assim?! Sem razão alguma?! “Ah! Cadu, isso aconteceu do nada?” Não. Na verdade, não, porque alimento uma enorme paixão por caixas de música, acho um objeto muito interessante, que me fascina desde a infância. Logo fui capaz de estabelecer uma relação entre fatos aparentemente distantes; o tamanho do bilhete de um jogo de azar e a partitura de uma caixa de música, cuja razão se reporta à história dos processos de automação, que não vou explicar nesse momento.

Mas acredito que a origem dessa curiosidade existe, porque as minhas irmãs tinham uma caixinha de música que eu nunca podia

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caixinhas continha uma tripa dos cem jogos que constituíam, no final, a soma de mil, e acompanhavam um desenho. Vocês viram que no momento do vídeo eu estou martelando e depois colando umas bolinhas. Isso foi na verdade, no início, algo que acontecia perifericamente ao processo, eu queria fazer uma música, mas repa-rei que, conforme ia furando, os cartões iam acumulando aquelas bolas cravadas com os números em uma outra superfície. Pensei: Caramba! Que engraçado! Isso ilustra, de alguma outra maneira apresenta, devolve a ideia de acaso, desenho, mas dá outro tipo de visualidade ao processo que eu estou construindo, que é eminen-temente sonoro.

Então, eram apresentados a tripa dos cem jogos, a caixa de música com um loop pequeno de trinta jogos e um desenho de 30 x 30 cm, constituindo aquele volume da minha ópera de dez canções.

Para a Bienal de São Paulo eu fiquei resistente, porque tenho quase uma obsessão por não repetir trabalho. Eu não gosto de refazer um trabalho, porque, como muitos dos meus trabalhos têm a possibili-dade de usar sistemas, é fácil eles serem reproduzidos novamente, eu criar as condições iniciais para que eles possam ser apresentados, apesar de quase sempre o resultado ser diferente, porque eu gosto... depois que eu entendo um trabalho, depois que eu já o domino ou

rica, a loteria que dá os prêmios mais altos. Procurei na internet, peguei os mil jogos, cronologicamente organizados, dos mil ganha-dores, e furando as dezenas no próprio cartão de loteria, quando eu os passasse dentro da caixa de música eles corresponderiam a uma nota musical. Desse modo foi possível construir o que chamei de O hino dos vencedores. Um título irônico, uma vez que não existem hinos para perdedores. O hino é ode ao triunfo. Vou mostrar para vocês um filme muito pequenininho que eu fiz caseiramente em 2008 para explicar o trabalho para um amigo meu que morava na Inglaterra, o que eu estava fazendo na época, e depois eu conto como é que ficou a montagem na Bienal.

[Exibição de filme]

Bom, o que vocês viram ali é um pequeno trecho, são trinta jogos só, que estão enfileirados. A apresentação, na época, para a Mega Sena, quando eu fiz o trabalho só com a Mega Sena, cada trabalho era constituído por um conjunto – e eu vou ter que abrir aqui uma outra pasta, só para vocês entenderem uma coisa – vou explicar a diferença das coisas que estão na Bienal...

Este é o trabalho que está na Bienal, mas o trabalho original era composto por dez caixinhas de música, sendo que cada uma dessas

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que ele não me leva mais para aventuras, eu começo a me sentir excessivamente confortável. Não aprecio sentir-me assim. Eu acho que o bom criador é aquele que está sempre trabalhando no limite das suas forças, porque, no processo, vai para lugares que até então não conhecia. E tem um professor aqui na escola, o Charles, que resume isso de uma forma muito inteligente: “Estilo pode ser a única coisa que você foi capaz de fazer e depois você não sabe fazer outra coisa”. Porque é verdade, algumas vezes dá tanto trabalho você se tornar fluente em determinado vocabulário ou adquirir certas habilidades que depois você não consegue abrir mão delas, e elas podem se tornar, então, uma prisão, uma prisão maneirista que, na verdade, você deve-ria abandonar, para que possa ir para outros lugares, para que possa visitar outras paisagens e se dar o direito de nem sempre acertar. Porque a maioria dos artistas acaba querendo chegar a esse primor visual, a esse primor estético – odeio usar essa palavra, desculpa –, esse certo valor de apresentação, mas não sabem depois fazer outra coisa, porque naquele momento é simplesmente apresentação da conquista de um meio, a conquista de uma ferramenta. Ao invés de ser um especialista, acho muito mais interessante ser um generalista, sempre ser ou estar em estado de estrangeiro diante de alguma coisa, por isso fico pulando por diversas áreas e linguagens artísticas, mas tudo bem, isso aí é história do Scooby-Doo, né? Que você conta no final do desenho para dar sentido a tudo. [Risos]

O trabalho da Bienal, ele contém então... eu fui lá, e eles falaram: “A gente queria usar esse trabalho novamente!” Mas eu falei: “Nova-mente não dá, eu não vou fazer a Mega Sena de novo. Me desculpe, tá? Eu posso fazer uma outra coisa que eu não fiz e gostaria de tentar, que é o seguinte: a Caixa Econômica Federal mantém outras cinco ou seis loterias, algumas delas utilizam outros tipos de com-binações numéricas. Logo, a Lotomania, por exemplo, eu acho que utiliza quinze ou vinte números, enquanto que a Quina utiliza apenas cinco, a Mega Sena seis, a Timemania não sei quantos. Vamos, então, pegar os cem primeiros jogos de cada uma dessas loterias e vamos novamente estabelecer outro processo”. Então, o que temos aqui são cinco desenhos, cada um desses desenhos contendo os cem primeiros números dessas loterias, que eu já não sei qual é qual. Até porque a ideia era exatamente que eles pudessem se confundir, mas você tem aqui cem jogos da Mega Sena, cem jogos da Quina, cem jogos da Lotomania, cem jogos da Timemania, cem jogos da Loteca... Desse modo construímos músicas com diferentes camadas de som, que podem ser mani-puladas simultaneamente.

É claro que o público da Bienal é um público muito grande e muito voraz, quando vocês forem lá, infelizmente vocês vão ter que pedir pra mexerem, não vão ser vocês que vão mexer. A gente tentou

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durante um espaço de um ou dois dias, quando a Bienal abriu. Porém tivemos que impedir a interação direta, pois a velocidade e a agressividade com que as pessoas estavam mexendo, ansiedade, enfim, uma série de coisas, que vai desde curiosidade até perversão mesmo, fizeram o trabalho não aguentar. Mas, a ideia toda era essa, que as pessoas pudessem tocar a obra.

O quarto trabalho é um trabalho chamado Partitura.7 O Parti-tura, mais uma vez, é um trabalho que habita o meu universo infantil, que é a minha paixão por trens e a associação dessas viagens com ritmos; de tratar-se sempre de uma viagem modu-lada pelo som, pelo som dos postes que passam ao lado e criam uma certa variação de pressão no seu ouvido... e por aí vai. E ele aconteceu pelo seguinte: em 2010, eu fui chamado para partici-par de um workshop na Fundação Iberê Camargo, que fica em Porto Alegre, como resultado de uma exposição de dez anos de uma bolsa que eu participei e ganhei. É uma bolsa que existe até hoje, que vocês – dependendo do nível de ambição dentro da prática artística – devem tentar com o tempo, chamada Bolsa Iberê Camargo. Participei da primeira seleção, ganhei a primeira bolsa e fui para a Inglaterra. Quando voltei, fiquei fazendo um monte de outras coisas, paralelamente. A Fundação foi ganhando envergadura, até que hoje em dia possui uma sede própria. Um

museu muito bacana projetado pelo arquiteto português Álvaro Siza. Ao completar dez anos de bolsa, resolveram chamar todos os premiados. Apresentei dois projetos, um deles foi realizado e o outro não, pois sofri um acidente de moto. Ao me recuperar, o que levou aí uns quatro, cinco meses de tratamento, acabei passando muito tempo de cama, então eu trabalhava ou mexia com coisas que eram muito pequenas, que coubessem no leito. Em algum momento eu resolvi mexer de novo no meu trem, no meu trenzinho elétrico, e aí, mexendo nele, reparei que, se eu pegasse o meu trem e fundisse com a ideia de uma caixinha de música, se o próprio trilho fosse, digamos assim, o cilindro ou o lugar onde o motor, que é o trenzinho, iria circular, e tudo que eu colocasse ao redor fossem as notas musicais, poderia construir algo interessante.

Eu já tinha que dar um workshop mesmo e pedi para o pessoal da Fundação: “Olha, me comprem três kits de trem tal, tal, tal”. Aí os caras falaram: “Pô, mas para quê você quer isso?”. “Quero para um workshop em que eu vou levar os kits, vou preparar esses trens de uma determinada maneira e vou fazer uma proposição de três, quatro dias”. E foi o que aconteceu. Levei os trens, levei junto uns vagões adaptados em que a gente podia parafusar uma aleta, não sei se vocês estão vendo aqui, de metal. Essa aleta batia em qualquer

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E aí, então, feita a apresentação das quatro peças, nós começamos a montagem do meu espaço lá. Decidimos então que eu ia fazer mais uma vez o Partitura, foi a terceira e última versão desse trabalho, eu não vou mais mexer nele, e falei: “Bom, então eu vou encerrá-lo em uma escala, em uma envergadura que até então eu nunca fiz, eu tinha muita curiosidade para fazer”. Então, a gente comprou um monte de kits, um monte de vagões, garrafas, copos diferentes, e eu fiz uma peça com uma escala ambiciosa, que é essa daqui, que esta lá na Bienal, vocês vão poder ver.

E o espaço ficou assim, então. A grande maioria das salas da Bienal de São Paulo são salas fechadas com paredes, e eu escolhi uma “não sala”... Conversando com o curador, ele afirmou que havia um dado muito grande de natureza envolvendo o meu trabalho e da ideia de som, talvez o som fosse incomodar quando fosse confinado, e a coincidência feliz de eu estar ocupando uma área do pavilhão em que havia árvores muito perto, do outro lado do vidro. Eles me apresentaram algumas plantas, falaram: “Você quer uma área aberta?” No início, eu pensei: “Poxa! Por que eu não tenho uma área fechada como todo mundo?” Mas aí eu vi que isso, o que aparen-temente, nos primeiros cinco minutos, me pareceu um problema, poderia ser uma excelente oportunidade, porque era uma maneira de fazer que um trabalho e outro interferissem menos entre si,

objeto colocado na periferia do circuito e gerava sons. Durante três ou quatro dias fiquei construindo músicas com essas pessoas ou necessariamente não, ou tentando libertar o som da música, né? Que é uma coisa que muita gente tem necessidade ao lidar com sons, querer logo criar música.

[Exibição de vídeo]

Esses circuitos foram feitos por eles...

E foi excelente a oportunidade, porque eu pude entender o que eu deveria mudar no trabalho, qual era o nível de potência que o trabalho teria ou não para sobreviver depois de um momento menos doméstico, menos caseiro e quais são as coisas que podem acontecer, como um vagão soltar, a locomotiva voltar. Como eu ia lidar com esses acidentes ou não, esses acasos felizes.

Fizemos muitos, muitos trajetos. Muitas vezes eu começava com uma frase, uma frase musical e eles, então, iam... Os alunos e eu, dividindo a autoria. Eles traziam os copos, as garrafas, às vezes pegávamos os próprios materiais que a parte do educativo lá tinha e a gente podia manipular uma cerveja, uma coca-cola, uma latinha de spray...

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estações, 2012estações, 2012

Foto: CaduFoto: Adriano Facuri

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porque vaza o som, e em um contexto de Bienal, eu quase obrigo as pessoas a passarem pelo meu trabalho, porque ele está numa área de passagem, então ele, invariavelmente, foi visto, eu acho, por praticamente todas as pessoas que foram ao prédio.

Então, meu espaço é aberto e vocês vão entender lá como é que ele funciona, mas ele é da seguinte maneira: uma área contém o Hino dos vencedores, a outra é uma área designada para o projeto Estações, em que há no chão uma marcação em tamanho real da minha cabana, bem Dogville, recordam? Em frente a ela, há uma parede onde eu mando fotos, coloco desenhos, coloco as plantas digitais do processo, tudo que fui fazendo até essa cabana existir, uma maquete em escala, disposta na posição exata da planta, para as pessoas perceberem, fazerem esse exercício de tamanho, e um texto em que eu apresento, em cinco parágrafos, o que é o projeto.

No final, optamos também por uma televisão com vídeos em tom bem caseiro, mostrando aspectos da minha vida lá. Há registros que parecem ser muito clichês e são. No entanto, quando você está vivendo em um ambiente daqueles, a paisagem se impõe com uma força tão intensa que você não tem como não filmar o pôr do sol, você não tem como não filmar o nascer do sol, você não tem como não se espantar com uma pequena formiga andando ou com um

pequeno animal que se aproxima de você, e eu não vou negar esse impulso nesse momento. E acabo, então, mandando filmes que contêm esse tipo de postura lá. Este aqui, por exemplo, é um filme longuíssimo, de meia hora, que contém o meu pôr do sol, só para vocês terem uma rápida noção...

Não possuo energia elétrica em abundância, tenho um “gato”, que eu fiz de um galinheiro que fica a uns trezentos metros da minha cabana, então é um fiozinho só, que sai de lá até a minha casa, e como a distância é muito grande, eu tenho muita perda de energia no caminho. Só consigo força suficiente para alimentar o meu laptop e ter uma lâmpada, e é o suficiente, para falar a verdade. Banho, eu até instalei um chuveiro, mas não consigo usar o chuveiro quente, cai a luz, só uso ele frio, então quando preciso tomar banho quente, eu tenho um banho solar, que é um saco de um plástico bem resistente, preto, que você pode deixar no sol ou preencher de água aquecida. É um banho de acampamento, que funciona muito bem para um homem de cabelo curto. [Risos]

Mas há gravações curtas; eu fui adotado por uma macaca, eu não adotei ela, ela que me adotou, porque ela frequenta a minha casa, ela vai três ou quatro vezes por dia lá. Eu sei que é uma macaca, porque eu identifiquei, mas isso é muito raro, porque esse animal

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deve ser um animal jovem, que o bando ou separou ou descartou ou morreu, porque eles são animais gregários, eles vivem juntos, então eu acho que como ela está nesse estado ainda de adolescên-cia, ela fica comigo.

E esse é um dos filmes que estão lá, e esse filme causou um enorme mal-entendido que eu fui descobrir outro dia, porque o meu traba-lho, não sei, felizmente ou estranhamente, foi listado, num review da Art in America, como um dos dez trabalhos mais importantes da Bienal, dessa trigésima edição. Porém é afirmado que a obra acon-tece na Amazônia, e não sei se isso influenciou o ranking [Risos da plateia]. E ontem eu tive uma reunião com uma curadora, que está curando a Bienal de Istambul, e ela falou: “Como é o seu projeto na Amazônia?” Aí eu falei: “Olha, vou ser muito sincero com você, se você veio por isso, acho que você vai se decepcionar, porque a minha casa não é na Amazônia, a minha casa é no Rio, mas ela está na Mata Atlântica, na rainforest...” Enfim, aí o mal-entendido foi desfeito, mas eu não sabia disso. Tudo culpa da macaca... [Risos]

Muitas pessoas se preocupam com minha saúde mental. Mas isso é bem relativo aqui. Acho que já surtei faz tempo. [Risos] Não, eu não tenho medo, não disso exatamente, porque me sinto muito confortável nesse tipo de ambiente, consigo passar muitas horas

sozinho, apesar de não ser um ermitão ou uma pessoa com medo de gente. Porque vejo aquilo como um período ritualístico, uma pequena dança solo que inventei, uma escolha, e essa escolha vai acabar em algum momento. Mas o meu medo está em não desejar voltar, não sair dali. Isso eu temo.

Há um livro em particular muito importante, do escritor Henry David Thoreau, que é talvez o sujeito que mais me habita o ima-ginário para ter tomado a decisão de montar o Estações. Em 1845, resolveu construir uma cabana nas margens do Lago Walden e lá ele morou dois anos e dois meses, voltou e escreveu um livro chamado A vida nos bosques. É um sujeito mais conhecido por um ensaio chamado Desobediência civil,8 mas, apesar da qualidade prosaica do que ele escreveu, em termos de literatura, o exemplo dele reverbera até hoje como um dos primeiros gestos eminentemente políticos e ecológicos registrados.

Bom, o que eu tinha para falar é isso. [Aplausos]

ALuNO: Queria perguntar de alguma dificuldade que você tenha tido nesse trabalho da cabana, que você tenha transformado... e agregado ela ao trabalho. Como é um trabalho que está em construção, algum contratempo...

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Não. Há limites, né? Há limites o tempo todo, dá muito trabalho para entrar e dá muito trabalho para sair.

ALuNO: Você vai sem carro?

Não, eu vou de carro, mas tenho que deixar o automóvel na base da montanha, da propriedade em que eu estou, e subir a trilha a pé. As dificuldades, em geral, eu ainda não consegui dar forma a algumas delas, mas elas existem, que é uma enorme tentativa do mundo de me trazer de volta para a cidade o tempo todo, o tempo todo alguma coisa acontece, eu não sei por quê, não são coisas boas, sabe? São eventos familiares importantes, são coisas drásticas, são viagens, e eu fico em uma espécie de balanço, decidindo...

ALuNO: Você cede?

Cedo, eu cedo quando não tenho escolha, acho que um dos poucos caprichos que eu fiz foi ir ao aniversário de 91 anos da minha avó. Pensei: “Bom, essa mulher não vai estar aí muito mais tempo, não vai fazer 92, então eu vou...” [Risos]

Talvez tenha sido uma das minhas saídas mais luxuosas de lá, o resto do tempo fico lá, porque não tenho opção de sair, sabe? Isso

também é muito estranho, porque durante alguns dias lá dentro eu sonho com a cidade, meus sonhos todos acontecem em um contexto urbano, só depois de três ou quatro dias é que eu começo a sonhar com a cabana, meus sonhos habitam ali. E isso é prova da complexidade ou da dificuldade que é fazer o que eu estou fazendo, apesar de isso ser absolutamente irrelevante para o resto do mundo. Apenas tem valor para mim. Mas não, ainda não consegui formalizar um problema, só contá-los, só consigo enxergá-los!

ALuNO: Vi um trabalho seu, o projeto Cavalo, no Oi Futuro,9 e hoje de manhã eu vi uma entrevista, mas, enfim, queria saber como é essa relação com a musicalidade: tinha uma experimentação musical e nos seus trabalhos tem isso: passeiam pela musicalidade, não têm essa relação com as notas, mas com o som...

Sou apaixonado por música há muitos anos, militei na cena cultural musical por algum tempo e ainda trabalho com músicos. Mas o que foi me atraindo para usar o som foi que a visualidade não dava mais conta e porque o som chega ao seu ouvido independentemente do seu desejo. Se você não quer ver alguma coisa, você fecha os olhos; agora, não escutar algo é muito difícil e a capacidade que o som tem de transformação do espaço em que você se encontra, do seu estado

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interior, é muito pré-verbal. Aquilo atinge o seu corpo de uma forma impossível de ignorar. Então comecei a explorar um pouco isso. Mas um dos motivos principais é que percebo que na música a ideia de colaboração é acrescida e a de autoria diminuída. Isso em nome da construção de uma obra ou de um sentido que pode nem pertencer a você. Essa diluição generosa da autoria me atrai.

Tento em alguns outros trabalhos diminuir o meu nível de respon-sabilidade mesmo sobre a obra, quando crio um sistema que vai trabalhar com o vento ou um sistema que utiliza colaboração dos números da loteria ou um sistema que utiliza meu deslocamento em paisagens por meio de um pequeno sismógrafo que absorve as vibrações desse deslocamento e gera uma imagem. Então, essa gentil doação de ideias e de colaborações, que antes eu fazia com coisas inanimadas, hoje em dia eu passo a fazer com autores. E aprecio isso mais ainda pelo fato de não ter uma formação musi-cal, eu não sei muita coisa de teoria musical, não sei tocar muitos instrumentos, não sei tocar nenhum. Para falar a verdade, quem toca muitos instrumentos? Só o Prince, né? [Risos] Se eu tocasse um bem, já estava bom, mas eu não toco nada bem. No entanto, não me intimida trabalhar com essa linguagem. Não sou capaz de prever por quanto tempo essa fase vai durar, mas já tem durado, talvez aí, um ano e meio.

O projeto Cavalo foi um dos exercícios mais difíceis que já atravessei coletivamente. Trabalhei com dez artistas durante um ano, foram nove meses de ensaios, mais apresentação, em que eram todos caciques, era muito cacique, mas todos eram obrigados a virar curumins se quisessem fazer que algo desse certo ali. Então, todos indivíduos muito bem colocados e reconhecidos em suas áreas de atuação, ali, em termos de música, engatinhavam.

ALuNA: É mais uma curiosidade do que uma pergunta. Eu queria saber sobre a experiência de morar em uma montanha: é uma experiência bastante particular, porque você vê uma imensidão na sua frente e o espaço que você habita de terra é muito pequeno, então acho que isso causa um desconforto, ainda mais quando você está sozinho, você não tem para onde fugir.

Bom, na verdade, um pouco como o Absalon, eu construí um pequeno templo da contemplação. Eu me entoco e em determi-nadas circunstâncias identifico certo aprisionamento. Entra muito frio, e foi até por isso que eu escolhi entrar no inverno, porque eu acho que é um momento em que o mundo se contrasta, em que o frio te cutuca, de certa forma te separa do fora, e aí você é obrigado a comer o próprio estômago.

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ALuNO: O telefone pega?

O telefone pega, mas até alguém chegar lá, sabe? Então eu presto muita atenção em tudo que faço porque a qualquer momento aquilo pode colapsar. Por exemplo, eu desvio água de uma nascente que fica montanha acima uns 250 metros. Desci um cano que vem de lá, quando chove muito o cano sai, entope, solta e eu tenho que ir lá emendar a tubulação. Se me descuidar, caio e ninguém vai ficar sabendo. Logo, sou obrigado a prestar muita atenção em tudo que faço e me envolvo. Agora, é bom, 99,9% do tempo é muito bom. A soli-dão, uma companhia que uso a meu favor, como uma companheira.

Eu falo para os meus alunos, aqui: prestem atenção, porque vocês estão fazendo o Fundamentação, ele pode ser a concretização de um desejo que vocês estão gestando há muito tempo e que agora está ganhando corpo. Porém você pode ter esquecido o pedido. Quando você botou o dente debaixo do travesseiro, levou tanto tempo para essa coisa vir ao mundo, você já não lembra mais, então é sempre bom você ter bem certo na sua cabeça quando você estabeleceu certas coisas. Por esse motivo a estrela cadente é um excelente exemplo da ideia de desejo, porque estou tão distante dela, e é tão raro olhar para o alto e ver uma passando, que ela pode ser a imagem que me separa fisicamente do que eu quero e de como isso

vai acontecer. A cabana é, nitidamente, o objeto, a construção que eu sei exatamente quando gestei e quanto tempo levou para ela acontecer, foram mais ou menos uns vinte anos.

TANIA QuEIROZ: Bom, eu acho que a gente vai ter que terminar, eu sei que o Cadu, quando se prontificou, disse que teria que sair às cinco horas em ponto... (risos)

Hoje não está sendo dia de cabana excepcionalmente, né?

Mas foi um dia de Cabana!

T.Q.: Queria agradecer muito! O Cadu falando de forma tão tocante sobre o trabalho, a gente fica realmente emocionado de ouvir. Obrigada!

Obrigado a vocês!

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Notas1. Criado no ano de 2000 por Maria Helena Bernardes e André Severo, Areal é um

projeto em arte contemporânea brasileira cujas principais vertentes de atuação são o suporte à produção de artistas convidados e a publicação da série de livros Documento Areal.

2. 32º Panorama da Arte Brasileira. Curadoria de Cauê Alves e Cristina Tejo. Realizado no Museu de Arte Moderna [MAM SP] – São Paulo, de 15 de outubro a 11 de dezembro de 2011.

3. 30ª Bienal de São Paulo/SP. Fundação Bienal de São Paulo – A Iminência das Poéticas. 7 de setembro a 9 de dezembro de 2012.

4. CADU. 12 meses, 2004-2005. Ampliação digital. Dimensões: 25 x 100 cm.

5. CADU. Estações, 2012. Maquete, fotografias, amuletos e vídeos. Dimensões variáveis.

6. CADU. Hino dos vencedores, 2008-2009. Caixa de música, bilhete de loteria e papel. Dimensões: 30 x 30 cm (desenho); variáveis (instalação).

7. CADU. Partitura, 2010-2011. Instalação. Trem elétrico, trilhos, hastes, copos, garrafas e madeira. Dimensões variáveis.

8. THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Porto Alegre: L&PM, 2007. 88 p.

9. Apresentação realizada no festival Multiplicidades. Oi Futuro Flamengo, Rio de Janeiro, 24 de novembro de 2011.

Saiba mais:GALERIA LAURA ALVIM. Cadu: entardecer no ano do coelho. Textos de Fernando

Cocchiarale. Rio de Janeiro, 2011. 43 p.

GALERIA VERMELHO. Cadu Costa: manhã no ano do coelho. São Paulo, 2011.

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Eu queria agradecer a presença de todos vocês aqui e o convite da EAV. Primeiro, é um prazer estar aqui, retornar, de certa maneira, à escola, um lugar que, afetivamente também, é importante na minha formação. Apesar de não ter frequentado durante muito tempo, foi um lugar importante, sem dúvida, para a minha formação.

Eu estava aqui, enquanto vocês estavam chegando, deixando rolar um vídeo de uma exposição que, na verdade, não foi a última que eu fiz, mas ainda está em cartaz, é um trabalho no Museu do Futebol,1 que, na verdade, é uma instalação interativa que eu fiz junto com o VJ Spetto, a convite do curador Leonel Kaz. É uma espécie de cenografia, instalação, em que a obra dele atravessa a minha, de alguma maneira, para falar de vestiário, que era, digamos assim, o

ursa mel, 2007urso de pelúcia recoberto por estalinhos coloridos 100 x 90 x 86 cm

Foto: Studio Barbosa Ricalde

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assunto da curadoria. Vou, na verdade, mostrar um pdf do último livro que eu publiquei – na verdade está rolando aí – foi publicado no ano passado, então está bem recente. Vou tentar não falar tanto das imagens que vocês estão vendo e tentar falar um pouco do conceito, de algumas questões que norteiam o meu trabalho. Vou passar rapidamente as imagens.

O nome desse livro é Matemática imperfeita,2 que é um conceito que vai atravessar várias obras que eu faço. Vocês vão ver ao longo da apresentação que o material, o tipo de abordagem, a técnica ou mesmo o estilo não são questões com que eu estou preocupado, pelo contrário, eu estou querendo que cada obra em si tenha uma autonomia dentro do seu universo. Então, procuro achar formas que praticamente sejam sugeridas a mim por meio do material que eu elejo. A matemática e a geometria muitas vezes servem tanto para justificar a existência do trabalho quanto para ser um elemento estruturador dos objetos, um elemento conceitual e ao mesmo tempo empírico. Porque não estou preocupado com o resultado quando começo um trabalho, eu estou muito mais preocupado que essa experiência gere uma resultante que vai ser um somatório de diversas abordagens, diversos confrontos com aquele material, com aquela situação, com aquela exposição. Então, de certa maneira, cada trabalho é um site-specific dentro do seu

interuniverso. Essas imagens foram feitas da exposição Matemática imperfeita,3 que foi apresentada lá no Centro de Arte Hélio Oiticica, e era uma exposição que abordava essa questão da matemática por meio de vários materiais, mas também fazendo um recorrido de dez anos de produção. Nem por isso uma retrospectiva, até porque eu acho que ainda não é o momento de se pensar nesse sentido.

Todas as minhas exposições individuais, na verdade, são pequenas curadorias em que eu tento agrupar um determinado universo de questões que, quando agrupadas, serão mais evidentes. O que eu quero dizer com isso? Cada trabalho é um universo em si e esses universos podem estar agrupados de diversas maneiras. Eu posso falar, por exemplo, desse trabalho Sinuca de bico,4 desde questões dos jogos ou no caso da relação matemática como estava nessa exposição, mas agora esse trabalho vai participar de uma exposi-ção5 sobre o surrealismo e a relação do surrealismo com o Brasil. Então, eu também quero que o trabalho sempre possa gerar leituras diversas, eu não estou preocupado com a minha intenção, quando eu realizo um determinado trabalho. O que eu uso, na verdade, além dos materiais cotidianos, estou sempre lidando com uma experiên-cia prévia do espectador em relação àquele material, quer dizer que cada trabalho, na verdade, vai ser lido, interpretado perante uma bagagem cultural que o espectador vai carregar para aquela leitura.

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“A obra sempre

vai procurar falar

em vários graus e

falar particularmente

para cada pessoa.”

Então, ele nunca está completo sem a participação do outro, sem você gerar o estranhamento. É no reposicionamento dos objetos, na frustração da expectativa em relação à natureza das coisas que eu tento inserir minha prática artística.

Essa diversidade de materiais e técnicas, também, faz que a cada novo projeto eu tenha que aprender novas técnicas. Obviamente, por algumas coisas pessoalmente eu me interesso, então acabo aprendendo. O último curso que fiz foi de soldador e serralheiro, um pouco para poder entender o processo... e acabo montando essas oficinas no meu ateliê, que concentra vários tipos de pro-dução. Trabalho com muitos parceiros, muitos colaboradores de diversas áreas e esse leque de ferramentas, de instrumental e de parceiros vai sempre se ampliando, porque estou sempre indo atrás da melhor resposta para a ideia e não tentando adequar ao trabalho o meu conhecimento técnico ou as minhas limitações de qualquer tipo. Obviamente a sua experiência, o seu acesso ou não às coisas, acaba sendo um elemento constituinte, limitador, por isso eu digo que cada obra acaba sendo um site-specific dentro do seu próprio universo.

Esse aqui, Mergulho do corpo,6 é mais um exemplo dessa questão que eu falei, a questão do labor especializado... Seria impossível,

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eu demoraria uns três ou quatro anos aprendendo a azulejar, para poder chegar a esse grau de precisão matemática, mas ao mesmo tempo uma matemática que vai se adequando às necessidades, uma matemática mole, uma matemática que eu não sei se o resul-tado está certo ou está errado, mas ela resulta, ela funciona e ela chega a um determinado resultado, e essa resultante será sempre influenciada pelo que o espectador está trazendo, por isso é uma matemática imperfeita.

A imagem resultante, que me interessa pouco em muitos casos, é como, neste trabalho7 aqui, eu joguei uma partida de pingue--pongue e a bolinha era toda feita de giz, então onde ela tocava a mesa marcava com maior ou menor intensidade e a partir dessa marcação eu cavei a mesa para poder encaixar as bolinhas com maior ou menor profundidade. Então, a imagem que está aqui no trabalho pouco importa, ela vai ser o resultado desse jogo, dessa partida, porque, se mudar alguns poucos elementos dessa operação, muda novamente a imagem.

Um outro aspecto que me interessa particularmente neste trabalho e que em várias outras obras vocês vão ver é o sentido de latência. Latência em alguns casos é bem evidente, como, por exemplo, esse urso que é feito de estalinhos. De fato, ele explode se for atingido.

Então, ele tem um poder de transformação inerente a qualquer matéria, mas que em alguns objetos eu procuro evidenciar, me inte-ressa o risco. Ao mesmo tempo que você é convidado a se aproximar da obra, a obra também te oferece um certo perigo real e, também, esse perigo vai ser emprestado pela pessoa, tanto no cenário cultu-ral quanto no cenário psicológico mesmo. Eu digo cenário cultural porque tem outros trabalhos meus, por exemplo, uma obra que se chama Homem bomba,8 que é um boneco feito com morteiros de São João, fogos de artifício. É um objeto que oferece risco real em um ambiente: ali, ele realmente pode explodir e as pessoas podem sair feridas. Esse trabalho, nos EUA, curiosamente já foi para uma exposição lá e foi super mal-recebido, e na mesma exposição tinha essa série que se chama Teddybear, com bichos de estalinhos e eles são super bem-recebidos, apesar de terem o mesmo tipo de relação de risco... É por isso que eu digo: a relação cultural vai ser determinante para a sua leitura da obra, a obra não vai estar com-pleta em nenhum estágio, nem dentro do ateliê, nem na rua, nem na exposição, nem depois que ela for totalmente sistematizada, avaliada pela crítica, pelo meio. A obra sempre vai procurar falar em vários graus e falar particularmente para cada pessoa.

Esta aqui,9 na verdade, é a origem para alguns trabalhos. Outro aspecto recorrente que vocês vão ver na minha obra é que as séries

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não se fecham. Eu faço uma analogia do chinês que roda pratos ao mesmo tempo e ele tem que voltar para continuar girando o prato que ele deixou para trás. Então, tem essa relação de o trabalho e os materiais continuarem a falar comigo. E então, às vezes, mesmo uma série que já foi exposta, quando volta para o ateliê, eu posso olhar, cinco anos depois, e mudar sem nenhum tipo de pudor, por-que acho que também tenho que me dar esse espaço dentro do meu próprio trabalho.

Muitas vezes, também, o título do trabalho é o elemento consti-tuinte ou mesmo o elemento disparador do trabalho. A série dos trabalhos de estalinhos começou com essas esculturas que se cha-mavam Insight,10 que eram uma forma da minha própria cabeça e enfim... Aqui, novamente, o título acaba fazendo parte da obra, ela se chama The Record,11 é um pódio feito com os discos que seriam, digamos, os top ten da vitrola lá de casa durante os anos 80.

Outro trabalho em que o título, não vou dizer que seria fundamen-tal, mas é um encontro feliz com a obra é o Turtle Ball, que depois alguém chamou de “bolaruga”.12 Ele tem uma certa circularidade que quase descreve o trabalho, e, particularmente, foi um desafio técnico. Eu demorei uns quatro anos para conseguir chegar a esse resultado, ele é feito com resina. Foi superdifícil, moldei mais de

uma tartaruga para conseguir chegar a essa textura, chegar à cor. Então, também tem um labor que seria impossível sem a partici-pação de outros colaboradores. Eu falo muito isso porque o que se evidencia no meu trabalho e na minha aproximação com a arte é que, na verdade, você é proprietário das ideias, a mão do artista não é uma questão muito importante para mim. Obviamente, eu faço muita coisa, até por necessidade e por gosto, mas acho que a invenção reside muito mais no pensamento e no pensamento olhando, no cotidiano do trabalho, e você está sempre entendendo a evolução dele, a que caminho ele vai te direcionar. Então, é um caminhar atento às próprias coisas do mundo, muito mais do que uma imposição técnica, uma imposição conceitual, é um caminhar junto das coisas do mundo com os materiais.

Eu vou falar um pouco dessas duas séries que nasceram juntas, elas se chamam Mapas de consumo13 e Mapas de metrô ou Circulação,14 eles foram pensados quase simultaneamente em uma residência que fiz, em 2001, em Madri. Eu tive uma bolsa para o ateliê de pintura lá na Universidade Complutense de Madri e queria fazer algum tipo de trabalho que me obrigasse a ficar fora do ateliê. Eu queria primeiro descobrir a cidade, particularmente, e também queria entender essa cidade e como eu poderia pensar isso em termos de pintura. Criei essas duas séries que se chamam mapas. Aqui tem

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uma evolução de uma, explicando basicamente o que é: eu vou a uma cidade nova e começo a catar tampinhas do chão, tampas de bebidas alcoólicas ou não alcoólicas, e vou agrupando-as em um campo que eu determino, em um quadro, e aqui no caso tem 1,60 x 1,10, em que cabem mais ou menos quatro mil tampinhas. E essas tampinhas vão sendo agrupadas a partir da sua marca, e essa marca, quando eu encontro mais, é porque foi mais consumida e, então, eu acabo fazendo uma espécie de gráfico estatístico a partir de amostragem do consumo daquela cidade. E novamente o resultado dessa pintura, por mais que pareça que possa ter sido planejada, é simplesmente um gráfico visual do consumo daquelas marcas, por isso que essa marca tem mais que outra. Ela também tem uma dinâmica interessante de território, onde uma marca (cor) começa a fagocitar a outra e, quando começa a ficar mais apertado o espaço, ela começa a expandir os seus domínios para o outro lado, tem uma dinâmica interna que ela se autoconstrói. Então, é um trabalho que pode ser, inclusive, encomendado a partir de uma instrução... Me interessa muitas vezes quando você consegue pensar um trabalho que possa quase se autorreproduzir, sendo único, original e fazendo sentido a mudança dele, porque a cada vez que eu for a Londres com certeza mudou a dinâmica de consumo. Tem alguns que eu chamo de Mapas de longa duração, como o que fiz do Rio,15 supergrande, aproximadamente 15 mil tampinhas coletadas durante dez anos,

e é curioso que as marcas vão mudando a cor no meio do processo. Então, me interessa como o trabalho se dá para mim, muito mais do que eu me impondo a ele. Aí acabou gerando uma série desde 2001, e eu já fiz em diversos lugares, Cidade do México, Tijuana, San Juan, Londres, Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Nova Iorque...

Essas séries nasceram juntas, pois ambas tinham essa vontade de estar na cidade, de estar descobrindo a cidade a partir do seu dejeto. Não que eu me interesse particularmente por questões de reciclagem, apesar de, às vezes, as pessoas fazerem essa aproxima-ção equivocada do meu trabalho. É mais uma coisa que está aí no mundo. Então, não estou particularmente interessado em ecologia, não como artista, me interessa como pessoa. Porque eu acho que a arte, inclusive, não pode se limitar a nada: “Ah eu não posso usar uma tinta acrílica porque vai poluir o meio ambiente”. Tudo polui! Então, não quero levantar nenhuma bandeira.

A série Mapa de metrô foi feita com os bilhetes de metrô de algu-mas cidades. Esta aqui, com os bilhetes de Nova Iorque.16 Eu cato os bilhetes nas ruas e depois redesenho as malhas metroviárias daquelas cidades com seus próprios bilhetes. Então, aqui é o mapa de metrô de Nova Iorque e aí tem o de algumas outras cidades como Madri,17 Cidade do México,18 Londres.19

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“A relação cultural vai ser

determinante para a sua

leitura da obra, a obra

não vai estar completa em

nenhum estágio, nem dentro

do ateliê, nem na rua, nem

na exposição, nem depois

que ela for totalmente

sistematizada, avaliada pela

crítica, pelo meio.”

Aqui é uma instalação que estava no Paço Imperial,20 a exposi-ção chamava-se Estranha economia, todos os trabalhos lidavam de alguma maneira com questões relacionadas à economia, ao dinheiro, à troca, à falsificação, à unicidade. E lá no Paço Imperial eu apresentei esta instalação,21 que era um ambiente doméstico em que todos os objetos eram feitos ou revestidos completamente por essa massa feita de dinheiro picado, dinheiro de verdade, notas que eu consigo com o Banco Central por estarem marcadas, ou seja, o número de série está avisando ao sistema financeiro e bancário que foi dinheiro roubado, então, quando se recupera esse dinheiro, o Banco Central é obrigado, apesar de elas serem verdadeiras, autênticas, a descartar. E eu queria fazer um pouco essa ideia do material que se constrói por si mesmo. Minha ideia é que esse ambiente doméstico – até a origem da palavra economia tem a ver com isso. Tudo no mundo, de certa maneira, é viabilizado ou materializado por meio desse instrumento que a humanidade criou, que é o dinheiro. Então, eu queria dar corpo e visibilidade a esse material. E costumo dizer, também, que todo trabalho vai ter diversas sutilezas de leitura. Então, dentro dessa instalação, haveria trabalhos que, às vezes pelo próprio título ou pelo que é o objeto, criam uma autonomia. Por exemplo, aqui, são os bancos de dinheiro,22 ou então tem as malas feitas com dinheiro,23 tem um tanquezinho de lavar roupa que é um brinquedo, chama-se

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Aprendendo a lavar dinheiro, tem vários trabalhos que vão também se relacionando internamente e em conjunto e, em um sentido maior, em um conjunto de uma obra total, porque eu acho que, no final, o que o artista está construindo é uma obra e não obras, trabalhos isoladamente. O que interessa é realmente o conjunto, é um tipo de pensamento que vai ser a sua contribuição, se for o caso, à cultura, e não o objeto isoladamente.

Um outro aspecto que vocês vão perceber é que os trabalhos às vezes são supersofisticados de serem feitos, apesar de não parecerem, e outros trabalhos são felizes justamente por serem supersimples. Esse aqui é um trabalho que se chama Lixa mão.24 Eu, basicamente, peguei uma lixa de parede, marquei minha mão com caneta no verso e fiquei lixando uma parede de verdade sem tentar tirar minha mão do lugar. Queria que desgastasse só na área que tivesse minha mão e, na verdade, eu fiz uma impressão da minha mão pelo desgaste, uma espécie de gravura um pouco inversa. Mas, ao mesmo tempo, o que me interessa é que eu não fiz nada, só usei minha mão para lixar uma parede, e de repente aconteceu um trabalho. Se fosse des-crever, eu diria: “Eu peguei uma lixa, botei na parede, botei minha mão atrás da lixa e raspei a parede e isso gerou um trabalho”. Às vezes a descrição do trabalho é uma banalidade, só que a operação é muito sutil nesse universo banal do cotidiano.

Esse aqui, também, tem um pouco essa relação. Se chama Quadro de cortiça,25 é um quadro de fotografias em que botei fotografias impressas e deixei se autofotografando no sol durante seis meses, então as fotografias geraram fotografias de si mesmas sobre um quadro de fotografia e ele é apresentado como uma fotografia 1:1. Então, tem essa circularidade e não poderia ser diferente, Fotografia.

De volta à questão dos objetos que se autoestruturam, com uma intervenção pequena minha, autoconstrução é um conceito que me interessa. E também outra coisa importante é um sentido de precisão numérica em termos de elementos. O que eu quero dizer com isso? Que não é um trabalho de acumular objetos e a partir do acúmulo gerar um sentido: eu preciso de um número exato de objetos, às vezes esse número exato são três mil e às vezes são seis. Como no caso dos guarda-chuvas (abrigo), não tem como você fazer esse objeto com nenhum a mais e nenhum a menos, não acontece essa forma, mas às vezes o número exato pode ser vinte mil ou cento e vinte mil. Então, a questão do acúmulo não é importante, é muito mais a questão da quantidade precisa, a quantidade ideal para transmitir o que você está querendo falar ou o que a obra está querendo falar.

Outro aspecto, também, que vocês percebem no trabalho é o de coleção. Isso é uma coisa que vem perseguindo o trabalho. Não

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que eu vá colecionando e as coleções se transformem em traba-lhos, é um caminho oposto. Eu penso um trabalho que já seja uma coleção. Aqui, no caso, é um trabalho que está até participando de uma exposição26 nos EUA, itinerando já há uns três anos em museus supersérios, agora ela está no ICA de Boston e se chama The Record – Arte contemporânea e discos de vinil. E é uma expo-sição séria, começou na Duke University na Carolina do Norte... É curioso como esse universo curatorial é muito rico e o trabalho pode estar encaixado sob diversas questões.

Aqui27 é uma coleção de assinaturas de pessoas que possuíam a minha atual coleção de discos de vinil. Então, eu organizo meus vinis por a quem eles pertenceram e não pelo gênero. Também é uma espécie de autógrafos de pessoas que não são os artistas, tem um pouco uma coleção inversa no próprio ato de colecionar, uma espécie de coleção perversa. E aí, para a exposição, digamos, existe a minha coleção e o objeto que está sendo exposto, eu acabei fazendo uma série de cartões-postais, que são os fragmentos dos discos em que aparecem as assinaturas dessas pessoas que eram os colecionadores da minha coleção de vinis.

Essa é uma série que faço há alguns anos, feita com bolas de futebol. Na verdade, eu desmonto as bolas de futebol, as bolas que eu uso são

as mais clássicas que a gente imagina, de 32 gomos, vinte hexágonos e doze pentágonos, e o que eu faço, basicamente, para torná-las planas é retirar os pentágonos, é uma operação que se dá por si só. E, ao mesmo tempo, é uma paleta cromática que muda cada vez que eu vou ao mercado comprar bola, então essa paleta vai sugerindo outros trabalhos e me permite também não cansar a minha paleta.

Sou bacharel em pintura pela EBA e minha formação, mesmo antes de entrar na faculdade, era produzir essencialmente pin-turas. Durante quatro, cinco anos, no início da minha carreira, eu pintava com bastante frequência. E um aspecto que me freou foi aquela velha questão, que eu acho que todo mundo que pinta tem: o que eu vou pintar que tenha algum sentido? Porque fazer ilustração infantil em tela grande não é o mesmo que pintura... Isso pra mim não era suficiente.... E esse trabalho é essencialmente de pintura, pintura eu digo historicamente, porque historicamente a tentativa da pintura era transmitir um mundo tridimensional para o mundo virtual, plano, e é justamente o que eu faço nesse trabalho com a bola, a bola, que é um objeto que por si só define um espaço tridimensional, é constituinte do plano em que ela se autorrepresenta. Então, na verdade, eu não estou planificando a bola, porque não estou alterando a natureza dos seus elementos, não estou tirando nem estou recortando a unidade primária dela,

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estou só reconfigurando o próprio constituinte de que ela é feita. Eu poderia recortar o gomo para chegar a algum formato, algum tipo de pele, mas na verdade eu tento me ater ao próprio elemento sem alterá-lo, sem que ele possa deixar de ser bola, porque a qualquer momento que eu quiser remontar a bola, eu posso remontá-la com o plano.

E essas sutilezas dos universos pessoais e do olhar do outro, que é tão importante, aconteceram para mim nesse trabalho aqui, que é um hexágono feito com as bolas de futebol. Uma vez eu estava fazendo uma apresentação, uma visita guiada, que tinha esse trabalho exposto,28 para uma turma de escola pública de dez, doze anos, e percebi que tinha um menino que só olhava para esse trabalho, ele não estava prestando atenção em nada mais. Logo que eu terminei a visita ele levantou o braço e perguntou: “– Tio, esse trabalho aqui, por acaso, é uma tabuada de seis?” E eu, na verdade, não tinha percebido que, de fato, é uma tabuada de seis no somatório dos gomos. No centro 0 x 6 não tem o gomo, na primeira volta 6 x 1 = 6 gomos, na segunda 12, e assim por diante, e terminava na décima volta, exatamente 60 gomos. É uma coisa que nem eu saquei a princípio e é muito bom quando a pessoa de fora empresta esse olhar sofisticado, independentemente da formação, e eu tento deixar essa abertura tanto para o trabalho

falar com a pessoa quanto para a pessoa falar com o trabalho. E essas leituras vão tornando o trabalho mais complexo na minha cabeça, entendendo melhor o que eu estou fazendo e, também, vendo que o trabalho está, digamos, atingindo um certo objetivo... Nessa série de futebol mesmo, eu não entendia nada do esporte, de que, aliás, nem gosto... Foi por conta do meu trabalho que eu passei a gostar de futebol... O trabalho vai te empurrando para determinadas áreas do conhecimento, o que me deixa muito feliz. Nenhum dia no ateliê é igual ao outro.

Vou falar um pouco desse trabalho que se chama Boi bola.29 Ele é feito com couro de boi, desses que você compra em lojas de couro, e eu cortei e montei uma bola de couro – porque nenhuma bola no mercado é de couro. Ele é de uma edição de sete, por acaso, e eu tinha até vendido três trabalhos dessa edição e tive a ideia de gravar o símbolo da Nike e o final da tiragem ficou com a logo. Eu não estou muito preocupado com esses aspectos de uma tiragem que ficou inicialmente interrompida, porque o trabalho, digamos, transcendeu aquela situação e acho, também, que é importante o artista ter essa possibilidade de ser menos preocupado com o resultado, ele sempre pode ficar melhor, sabe? Não tenho pressa de o trabalho já estar resolvido totalmente, se tem uma coisa boa em ser artista é você justamente ter a liberdade de voltar atrás.

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Eu pintei até 2000, minha última pintura. Em 2008 comecei a fazer as pazes com a pintura por intermédio do Volpi, na verdade é um Volpi meio maroto, porque o que me interessava aqui era um tipo de construção que eu podia fazer com as casas. E a questão da geometria, novamente, como um elemento estruturador do projeto. Eu fiz diversos condomínios, como chamei esta série,30 que são casas de pássaros, em que eu uso uma paleta livremente aproximada do Volpi e faço um pouco essa relação que, na ver-dade, vem das bandeirinhas, mas é gerada pelos telhados, tem um elemento autoconstrutor e que também vai se desdobrando em diversos sentidos. Aqui, eu explorei um plotter direto na parede, fiz algumas possibilidades e comecei a me aproximar um pouco da pintura... Eu gosto de pegar uma ideia e realmente esgarçá-la ao máximo.

Esta aqui31 é a maior que chegou a ser construída e talvez a mais radi-cal, que é com a casa de cachorro que se chama In the Dog´s House, que seria uma situação difícil, alguma coisa assim. E, novamente, a minha operação aqui é quase nenhuma, praticamente só empilho as casas existentes para gerar o trabalho. Um outro elemento que também vai importar, mais do que objetos, é um sentido de módulo: o trabalho também assimila o objeto muitas vezes na lógica modu-lar, onde ele pode ser expandido, reconfigurado. Estas aqui32 são

as mesmas casinhas que foram para o acervo do MAC de Niterói e, como eles não têm sempre como apresentar ele montado da maior maneira, eu fiz algumas opções de montagem. Então, eles têm, na verdade, cinco obras em uma. A princípio foi uma coisa um pouco estranha, não vou dizer por que eles não aceitaram a ideia numa boa, mas para o setor de museologia era um pouco estranho você ter inventariado cinco obras e na verdade não tinha todas aquelas unidades. São questões com que a arte contemporânea tem obrigação de lidar, as instituições, os museus têm que se adequar à nova pro-dução e cada vez mais rápido isso acontece. Hoje, também, a gente vive em um sistema de arte no Brasil bastante maduro, eu diria, bem diferente de quando eu comecei, em 1996. Há dezesseis anos, era bem diferente todo o sistema de arte, desde a escola, como a gente estava falando mais cedo, enfim, o panorama acadêmico, mesmo, você tinha pouquíssimas opções. Em vários aspectos a gente está bem melhor.

Em 2009 eu fiz uma exposição na Casa Triângulo, em São Paulo, chamada Arquitetura de engenheiro,33 em que, a partir das casi-nhas de passarinho pintadas, eu gerei uma série de pinturas e essas realmente tinham um diálogo explícito com Volpi, até na fatura, nas cores. E, ao mesmo tempo que a escultura foi para a pintura, eu também a forcei a, digamos, o que seria um limite extremo, que seria a própria arquitetura elaborando um projeto em autocad para

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a construção de um prédio. Não construí ainda esse projeto, mas ele está todo dimensionado e é totalmente viável, um arquiteto trabalhou comigo e a gente projetou um prédio viável de ser cons-truído. Então, novamente, essa busca para que o trabalho possa se desdobrar ao extremo e no que ele se transforma, gerando novos trabalhos, novas ideias e irrigando outros trabalhos que estavam até esquecidos. Os meus trabalhos demoram muitos anos para saírem do ateliê, isso é uma curiosidade também, se vocês forem reparar nas minhas fichas técnicas, é sempre assim, 2005-2009, 2007-2012, tem sempre um tempo até eu sentir que eles já fazem sentido fora do ambiente controlado do ateliê... Alguns, é claro, são mais rápidos, mas eu procuro sempre entender bem o trabalho antes de botar ele no mundo. Eu quero poder falar do trabalho, poder defendê-lo.

Uma outra relação do trabalho é com o design, com o produto mais do que uma relação com o design, tem muito mais a ver com certo desprezo pelas artes visuais e com não querer necessariamente só pensar em um circuito de arte tão viciado. Eu acho que é um desafio pessoal cada trabalho me empurrar para uma nova técnica, uma nova questão e novos relacionamentos.

Em 2000 eu fiz esta pintura, que se chama Círculo cromático,34 com chicletes de diversos sabores e com massinha de modelar. Então,

in the dog´s House, 2008Casas de cachorro organizadas300 x 450 cm

Foto: Studio Barbosa Ricalde

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já tinha uma relação da pintura ser um resultado de uma ação do corpo ou um resultado conceitual...

Procuro deixar o material que trabalho o mais cru possível e não tenho nenhuma preocupação em fazer merchandising ou qual-quer coisa desse tipo. Isso é uma questão. Às vezes, por exemplo, agora nessa exposição do Museu do Futebol, que é uma exposição grande, não podiam aparecer marcas, porque teriam problemas com o patrocinador... Mas, como tenho um universo tão amplo e tão diversificado de trabalhos, isso para mim acaba não sendo problema, porque tem sempre um outro trabalho que possa dar uma resposta. Então, me dá uma liberdade, também, de não ter esse tipo de preocupação, de deixar realmente o trabalho contaminado pelo mundo, de deixar o trabalho mostrar o que ele é e de que é feito e não tentar camuflar o que o material é.

Esta instalação35 estava também na exposição Estranha econo-mia, no Paço Imperial. É um trabalho em processo, mais uma das coleções. É uma coleção de refrigerantes de cola, sabores de cola, não a Coca-Cola, e que eu ponho em fila em uma cola e ela está crescendo até hoje, ela começou em 2002 e atualmente conta com quatrocentas marcas e embalagens diferentes de refrigerantes de cola. Me interessa o aspecto de ela estar em crescimento, porque,

quanto mais ela vai crescendo, mais vai se apurando, vai ficando mais sofisticada, ela começa, inclusive, a mudar o próprio discurso sobre si mesma, ela começa a criar aspectos diferentes desde uma arqueologia e, também, ao mesmo tempo, você começa a pensar: O que é a falsificação? O que é a cópia? O que é a cola? O que é mainstream? O que é underground? A exposição do Paço Imperial discutia essas questões... Tem um trabalho, que estava no Paço Imperial, que é um gráfico com as provetas graduadas cheias de Coca-Cola, correspondentes às embalagens de volumes diferentes que eu consegui catalogar, até agora 22 graduações de Coca-Cola até um litro, ou seja, começa na embalagem de 140 ml e até a de um litro são curiosidades sobre o mundo que também movem o trabalho sem querer dar uma resposta.

Aqui, é uma série que também é construída muito mais pelo olhar, a minha ação, de novo um pouco de coleção e de perceber um aspecto que vai ser evidenciado quando você coloca isso lado a lado, quando você faz, digamos, uma curadoria sobre esse objeto mundano ou sobre esse olhar mundano e o coloca no âmbito da arte ou da dis-cussão intelectual.

Aqui,36 é uma série que eu fiz na minha cidade, Rio das Ostras, de lixeiras, as pessoas fazem isso para os animais não atacarem o lixo,

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só que, ao mesmo tempo, elas começam a se tornar expressões esculturais, eu diria, tem uns realmente interessantes.

A série seguinte tem também essa relação, eu chamei de Construti-vismo literário37 e é uma série de vitrines que eu vou fotografando, de livrarias. Eu realmente queria saber por que é assim, se isso faz vender mais livros... Mas, enfim, então tem um olhar curioso sobre a carne do mundo.

Aqui tem a série um pouco mais pirotécnica, eu diria. Esse mate-rial não tem no Brasil, então não é muito conhecido, se chama ‘acendalha’ – eu fiz em Portugal esse vídeo. Ele é um material para acender lareira, então é um combustível sólido, uma mistura de parafina com querosene, com o cheiro superativo, e eu fiz esse iglu,38 o vídeo começa com essa cena, foi feito no cais do porto, então tem um vento constante, você sente a temperatura da imagem, você é enganado porque você não tem o cheiro e depois fora de cena começa a vir o fogo e lentamente consome o iglu, leva vinte minutos para consumir essa peça.

Crepúsculo39 foi para uma exposição40 em Portugal, que aconteceu em uma galeria que foi um armazém do porto, e eu fiquei pen-sando que o armazém obstrui a visão para o rio e eu queria fazer

um trabalho que rememorasse essa visão idealizada do pôr do sol que você tem na água, dele baixando. Então, são oito velas de wind- surfe nessa cor e que geram essa imagem emblemática e clichê...

Gostaria de falar também desses dois trabalhos de 2000. São trabalhos muito pontuais, em que apareceram diversas questões para mim. Primeiro, a questão da latência, de como um gesto pode alterar muito e, ao mesmo tempo, de como fazer uma pintura o mais radical possível. A minha ideia inicial era fazer uma tela com palitos de fósforo e eu fiquei muito com a frase do Barney Newman na cabeça, quando ele falou que um gesto muda toda a lógica do quadro, que um gesto é suficiente para mudar o quadro, e eu fiquei com isso e queria radicalizar um pouco essa ideia. Inicialmente, eu comecei a botar os palitos de fósforo em uma rede de mosquiteiro, enfiava um por um, só que no meio já vi que o negócio não ia dar muito certo, porque a coisa começou a defor-mar e não ficou uma pintura como eu queria, ficou uma espécie de superfície que tem 1 m x 1 m aproximadamente, mas que tem esse sentido de risco que eu queria. Só que foi muito interessante perceber essa falha, porque eu queria que fosse um quadro, uma coisa plana, e comecei a perceber que o fato de a cabeça do palito de fósforo ser maior do que o corpo era o problema que não faria o trabalho ficar plano. Na verdade, esse problema me fez perceber

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que o material estava querendo ser outra coisa, e esse trabalho se chama Mórula,41 mórula é um estágio embrionário, a partir das mitoses da célula. Assim que é fecundado, o óvulo começa a se dividir e chega a um estágio celular que se chama mórula, que é uma espécie de bola com essas células. E esse DNA que eu descobri, de certa maneira, do palito de fósforo ter a cabeça maior do que o corpo, e aí, quando eu colocava ele lado a lado, ele gerava um segmento de cone, e esse segmento de cone gerava uma forma esférica. Então, essa forma é só uma resultante do fato de a cabeça do palito de fósforo ser maior do que o corpo. Essa aqui é a primeira. Quando eu comecei a agrupar elas para tentar fazer esse trabalho, percebi que ela estava se sugerindo dessa forma, se autoestruturando, e aí a coisa começou a ficar mais sofisticada, até eu conseguir fazer, só com perímetros,42 já ver que era uma forma autoestruturante, apesar de ser só fósforo e cola, e é bem evidente, você vê a cola, eu não tento camuflar do que é feito, ela é superresistente porque é um tipo de construção que está no DNA das coisas. É muito curioso como essa forma vai estar em diversas coisas do universo inteiro, do micro ao macro.

A relação com o objeto, enfim, vai desde essa relação física e estru-tural da coisa, como também de uma associação poética, imaginária e conceitual...

“A relação com o

objeto, enfim, vai

desde essa relação

física e estrutural da

coisa, como também

de uma associação

poética, imaginária

e conceitual...”

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O Desenho espacial é um filhote do problema dos fósforos não ter dado certo como pintura lá no início.43 Eu percebi que essas células de fósforo das Mórulas eram segmentos de cone, assim como as pontas dos lápis eram um cone; então, comecei a colar, simplesmente, a ponta dos lápis lado a lado, sem nenhum elemento interno, só a cola, e ela ia gerando esse formato esférico e, apesar de não parecerem, são bastante resistentes. Aí o trabalho vai se desdobrando em diversos objetos diferentes.

Um outro elemento que vai aparecer em alguns trabalhos é o livro, tanto como instrumento de estudo quanto como material. Este44 aqui é um trabalho que eu acho muito importante na minha tra-jetória, porque eu acho que ele resume diversos aspectos. São três livros de geometria descritiva e, se tivessem a proporção áurea nas suas medidas, eles descreveriam um icosaedro perfeito. A princípio, eu fiquei durante uns três anos procurando livros com a proporção áurea, então eu ia à livraria, ao sebo, procurar livros de geometria descritiva com a proporção áurea. E, depois, eu descobri que não precisava, que ele já gerava a imagem que eu pretendia, que era o icosaedro. Isso é uma propriedade matemática, se você interse-ciona três planos áureos entre si, a ligação entre o perímetro desses planos vai gerar um icosaedro. Isso é uma coisa que, estudando matemática, eu descobri e quis aplicar esse princípio a um trabalho.

Então, também tem essa adequação, até você se conformar com a realidade do mundo. Não existem livros de geometria descritiva com a proporção áurea, não precisa ninguém procurar, garanto! Nunca existiram no Brasil, já procurei em todos. [Risos] Então, tem um pouco de o trabalho se adequar. E tem alguns livros que você compra sem nem saber muito bem por quê. Esse livro do peixe é um livro da Phaidon, que é uma editora grande, chama-se Fish face.45 E, basicamente, são caras de peixe em cada página, e depois de ter alguns anos esse livro no ateliê, pensei: “Para quê comprei isso?” [Risos] e em uma demanda de uma exposição que se chamava A água e seu papel,46 e tem essas coisas que você fica quebrando a cabeça para tentar pensar um trabalho, e aí na última hora eu pensei nesse trabalho,47 de inserir um aquário, tem um aquário de verdade que fica dentro do livro com um peixinho nadando ali...

Este48 também é um trabalho que começou em 2000 e até hoje eu faço. Chama-se Justa troca. São chaveiros de guarda-volumes de supermercados, museus, centro culturais, eu vou ao lugar, deixo uma coisa minha e guardo a chave, não volto para devolver, e vou colecionando essas chaves a partir dessa troca compulsória que realizo em alguns lugares. E o objetivo, digamos assim, desse jogo que eu criei para mim mesmo é tentar fazer uma sequência numé-rica, o que é um desafio, muitas vezes a chave que você quer não

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tem, então tem um pouco dessa brincadeira de completar o álbum de figurinhas, que vai estimulando você a continuar o processo de trabalho.

Novamente o aspecto de latência das séries de fósforos, dos esta-linhos, dos homens bomba, aparece na série chamada Pilhados.49 Eu uso pilhas novas, não é reciclagem, pelo contrário, porque me interessa essa potencialidade que está dentro da bateria, me inte-ressa a energia que está contida ali, e às vezes essa energia, essa busca por um material potente, se você conseguisse desmontar o trabalho, poderia ligar um objeto elétrico. O controle que tento dar à obra vem do fato de resinar as pilhas só até um certo ponto, deixando algumas áreas delas em contato com o oxigênio, então quero que esse trabalho de fato pingue, chore e contamine...

Tem um desdobramento dessa obra, que é mais recente, que se chama Chuva química.50 São várias nuvens, que estarão instaladas em uma exposição em que elas estão mais expostas e menos cola-das, elas estão realmente pingando veneno durante a exposição, algumas vezes a própria bateria se soltará da nuvem e cairá no chão... Assim espero... Me interessa um certo grau de radicalidade dessa potencialidade, que, de fato, o objeto gere uma relação de presença com o observador, muito mais do que de ilustração de um

risco, me interessa essa potencialidade de uma coisa tão pequena poder conter uma energia. Obviamente a gente estava falando da pilha, da pólvora, mas na verdade eu acho que esse poder é uma metáfora para o poder da própria arte, em que um pequeno objeto vai conseguir ter uma potencialidade capaz de atingir um mundo inteiro, de certa maneira, e curiosamente eu percebo isso dentro do meu universo de trabalho: como alguns trabalhos bem peque-nos são muito emblemáticos na minha trajetória. É o caso com um trabalho que eu tenho, que é um martelo de pregos,51 algumas pessoas depois foram falando assim: “– Nossa, mas é tão pequeno!” Porque esperavam que fosse uma coisa e era só um martelo com pregos. Então eu acho que é um pouco essa metáfora da arte mesmo.

ALuNO: Eu percebi uma coisa muito geral no seu trabalho, que é bem plural, mas tem uma coisa muito singular, que é o acúmulo, parece que você falou muitas vezes de coleção, muitas vezes de você querer acumular coisas. São duas perguntas: tem uma questão da pintura, porque você falou que pinta com outros objetos, de que maneira você se coloca no campo artístico, por exemplo, isso é bom? Você se caracteriza como um pintor, um escultor? E de que maneira a crítica encara isso de você, como artista, ter uma produção muito plural, porque você tem diferentes trabalhos

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de diferentes temáticas e uns você tenciona, provoca, essa questão da latência você se mostra de uma maneira crítica quanto à arte e em outras não. Quero saber como você se coloca e se isso é um problema ou não para você, porque você não quer se colocar. A segunda questão é como a crítica te recebe dessa maneira.

Primeiro, eu me coloco como artista no sentido mais amplo possível da palavra, depois como um artista visual... Mas, na verdade, não me preocupo com isso! Sou um artista interessado pelo mundo, então esse mundo acaba fazendo que eu me interesse por diversas outras coisas além da arte. A arte é mais um dos meus grandes interesses e principalmente a minha profissão. Mas tem vários assuntos e algumas coisas que vou descobrindo e que me despertam algo que nem sei definir bem, porque a arte vai me levando e de repente estou fazendo algumas coisas que eu nem sabia que eu sabia fazer. Eu acho que nesse sentido de encarar a vida como artista e deixar a vida te levar. Sobre a sua segunda pergunta, acho interessante porque você tem razão, para a crítica esse tipo de trabalho é um problema, primeiro porque você não se coloca em um segmento, segundo porque você se contradiz o tempo inteiro. Eu uso a pintura às vezes para reafirmar que não estou interessado em pintura ou uso a escultura para reafirmar que não estou interessado em escultura.

Mas, assim que eu comecei, um artista que eu acho muito bom chamado Jorge Duarte e que me convidou para uma das minhas primeiras exposições bacanas, virou para mim e disse: “– Felipe, você vai se ferrar, porque vai ter o mesmo problema que eu tive, o meu trabalho é muito diversificado e as pessoas não conse-guem assimilar bem isso”. Eu falei: “– Bom, fazer o quê, né?”. E eu acho que, de certa maneira, você se impõe, eu me impus, impus o meu trabalho, no bom sentido. E percebo uma certa coerência, hoje em dia, esse meu livro Matemática imperfeita tenta abranger quinze anos de carreira, e eu consigo perceber claramente o momento em que as pessoas conseguiram conectar vários trabalhos que elas já conheciam, mas não necessariamente ligavam uns aos outros.

Cronologicamente, o primeiro trabalho meu mais conhecido foi esse das mórulas de fósforo, e aí durante dois meses “o rapaz faz as mórulas de fósforo”, eu podia me acomodar muito bem aí. E aí, logo depois, eu fiz o trabalho que foi apresentado em uma exposição grande, que era o Martelo de pregos. Foi apresentado no Paço Imperial em 2002, numa exposição que foi muito impor-tante, até para despontuar, para contradizer o primeiro trabalho, pois era uma exposição de cinquenta anos de arte brasileira e a última obra era o Martelo de pregos. Então, teve muita visibilidade

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e era o oposto do que as pessoas conheciam. Logo depois, eu fiz uma série que é essa de bolas de futebol, então ferrou, sabe como é? Não dá mais para me identificar pelo material. Então, eu acho que é um desafio diário e acho que a crítica tem certa dificuldade. Eu, particularmente, acho curioso como alguns artistas são tão pouco instigados pelo mundo. Às vezes tão jovens e já se colocam, “eu sou pintor”, “sou fotógrafo”, “trabalho com vídeo”, eu acho curioso você se limitar tão precocemente e acho triste que a crítica tenha tanta dificuldade, não dá para falar globalmente, porque isso também já era, “a crítica”, ou “o mercado”, ou “o circuito” não são entidades que estão sentadas em uma mesa definindo o que é circuito, mercado ou crítica... Quem faz isso é você, você, o artista, o resto não interessa. Então, eu acho que você tem que ter certa postura, digamos, arrogante de impor o seu trabalho, de impor a natureza do seu trabalho e não se adequar “a crítica prefere que eu só faça essa série...” “Bom, foi mal aí...” O artista em certa medida tem que ser um desajustado, mesmo dentro do sistema da arte.

Volto a dizer, hoje, para vocês o campo é muito diferente de expec-tativa, de possibilidades. Mas, em 1995, quando eu virei para a minha família e disse “vou fazer Belas-Artes”, era uma vereda de que ninguém nunca ouviu falar. “–Poxa, mas você é tão bom

aluno e vai fazer Belas-Artes?” É fato, eu só tirava notas altíssimas. No vestibular com minha nota passaria para Direito, Medicina, e escolhi fazer Belas-Artes, nem tentei fazer Arquitetura ou Dese-nho Industrial para garantir um empreguinho. É um desperdício de educação, se você for imaginar, para o entendimento familiar. Então, quando você já vence esse primeiro desafio, que é decidir ser artista, suas chances aumentam... Hoje vocês podem pensar: “Ah, tem mercado, tem galeria”. Gente, é difícil para caramba, não se enganem não! Porque é cotidianamente no ateliê trabalhando em todos os aspectos da produção.

Outro aspecto que eu acho que falta ainda na formação do artista visual, e que os músicos já decidiram muito bem, é a sua autogestão, você realmente se colocar como um profissional. A crise da indús-tria fonográfica fez que os artistas músicos entendessem que dava para tomar um espaço e não só esperar as coisas acontecerem. É mais ou menos a mesma postura em relação à crítica.

ALuNO: Olhando seu trabalho, observei uma ressignificação a partir da mescla entre apropriação de objetos previamente construídos e uma intervenção plástica. Eu queria saber se você conceitua previamente seu trabalho e como é que se dá esse processo.

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Cada projeto é muito diferente do outro. Algumas vezes a ideia vem mais pronta. Às vezes fica um trabalho latente na cabeça e de repente ele se resolve. Então, assim, cada caso é realmente um caso específico.

ALuNO: Eu queria saber se você escreve seu trabalho, por exemplo: “Estou querendo abordar isso”, “Penso nisso”, antes ou depois, durante...

Antes, durante, depois. Depende, depende do trabalho. Obviamente sou muito consciente, fiz mestrado, escrevi uma dissertação, que para o artista é um tormento mesmo, juro, foi superdifícil! Você sabe mais ou menos o que está fazendo, mas também não pode querer achar que você vai ter uma ideia e as coisas vão se resolver a partir daquela ideia, porque aí você mata justamente esse espaço da experimentação, você mata o espaço do erro. Se não fossem alguns erros, alguns acidentes, algumas séries de que eu gosto muito não existiriam. Então, é importante você deixar esse espaço para você poder criar. É um olhar atento o tempo inteiro, é antes durante e depois, porque depois que o trabalho está pronto, ele está pronto em algum aspecto, você pode ter um trabalho vendido que depois você altera. Esqueci o nome do artista, um pintor brasileiro, que era convidado para os jantares e as pessoas ficavam vigiando porque

tetris ball, 2005Bolas de futebol abertas e recosturadas200 x 135 cm

Foto: Studio Barbosa Ricalde

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ele ia na casa dos outros e mexia nos quadros, levava uma tinta... Tem um pouco essa sensação... [Risos]

ALuNA: Vi a sua exposição do Paço, estava vendo aquelas espirais de notas, de boletos e as gravatas, também, e me remeteu muito a uma coisa de cotidiano, de estar pagando aquilo, de boletos de viagem, de conta, etc. Como é que você lida com essa expressão, com essa influência do dia a dia na sua obra, com a natureza do material e com essa questão de cotidiano, também. Como é que isso se dá na sua obra?

Eu acho que o cotidiano se dá pela minha aproximação com o mundo, eu quero que o meu trabalho fale sobre o mundo, sobre as pessoas, não tem um aspecto que eu acho mais relevante e como artista também não acho que a arte é a coisa mais importante do mundo. Lógico que, por ter estudado, me interesso por história da arte, acho que sobre diversos aspectos, inclusive, o trabalho é muito motivado por questões da história da arte, pela relação com o neoconcretismo carioca, enfim... Mas não é um aspecto a se frisar. Eu mantenho essa permissividade no trabalho em relação ao mundo, uma certa promiscuidade do trabalho com o mundo. Então, mais do que uma ressignificação, ele está ali também, ele faz parte do mundo, ele está se relacionando naquele contexto que faz você

achar que ele é aquilo, mas ele também pode ser aquilo outro. Então, acho que tem um pouco essa relação do mundo, das pessoas, por aí.

ALuNO: Você explicou sua obra usando muitos termos matemáticos e científicos. Você acha que essas ciências podem contribuir efetivamente para sua obra, para sua criação artística?

Sim e não. Acho que o trabalho já meio que responde isso. Por exemplo, até essa imagem que está aberta aqui, esse trabalho com ladrilhos hexagonais, eu fiz antes das séries das bolas de futebol, a bola de futebol é quase o inverso desse trabalho. Então, assim, o mundo estava ali, isso aqui é muito mais o meu universo do que as bolas. E é curioso como desse trabalho até o trabalho das bolas tem um espaço de dois a três anos quase. Um pouco por isso, o conhecimento flui a sua vontade, são coisas que me interesso, não tenho formação acadêmica em ciências, mas eu leio muita divul-gação científica, me interesso, vejo documentários, estou sempre pesquisando.

ALuNO: Minha curiosidade vai um pouco além do seu trabalho, eu queria saber um pouco de você como indivíduo, como é o seu ateliê? Como é o seu sistema de produção? Você produz

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sozinho? Você deixa que alguém entre no seu espaço quando você está nesse processo de evolução de um trabalho? É uma curiosidade muito pessoal.

Bom, eu vou mostrar umas fotos do ateliê, vou passar rápido, porque também é um aspecto importante.

Atualmente, eu tenho dois ateliês, eu moro a maior parte do tempo em Rio das Ostras, eu me mudei para lá há quase quatro anos, eu sou casado com uma artista, Rosana Ricalde, que também tem uma produção... Talvez trabalhe mais do que eu até, temos filhos pequenos e tal. Então, a escolha de Rio das Ostras foi tanto no nível pessoal quanto na ideia de criar um ateliê que pudesse atender todas as nossas demandas. Então, durante dois anos a gente fez uma obra, um ateliê realmente grande que tem salões separados, Rosana tem um tipo de espaço, eu trabalho mais no segundo andar, eu fico mais sozinho no segundo andar, que é a biblioteca, onde tem diversas experiências, objetos e coisas em andamento, mas a produção é mais feita nas oficinas, que são no primeiro andar. Lá a gente tem uma equipezinha fixa, hoje de cinco pessoas e os colaboradores, e todos atendem no ateliê. Então, dependendo da demanda, minha ou da Rosana... Toda a arquitetura do espaço foi construída para ser ateliê com todas as nossas demandas, a gente

não precisa acender luz, capta água da chuva. Eu acho que é culpa de gastar tanto material! [Risos] Aqui, por exemplo, esse mezanino foi pensado para poder fotografar, isso até atende mais ao trabalho da Rosana, que trabalha muito sobre papel, então, antes de botar a moldura, pode-se fotografar as coisas de cima, tem toda uma preocupação técnica. Tem uma parte da oficina que tem uma sala de pintura, também, então aqui é vazado para poder sair vapor de tinta, tem também uma biblioteca, escritório, arquivo de docu-mentos, reserva técnica, etc..

É uma empresa... E, paralelo a isso, a gente tem outro ateliê aqui em Botafogo, ele funciona mais para quando a gente está aqui no Rio e também para receber curadores, algumas pessoas, a gente acaba recebendo no ateliê que tem um arquivo pequeno, mas a produção mesmo mais efetiva é dada lá nesse lugar que a gente construiu para trabalhar. E é isso, todo dia no ateliê, acordar e trabalhar, não tem muito por onde escapar não, está nos fundos de casa...

ALuNO: É só uma curiosidade, porque você falou que não teve arquiteto nesse projeto, eu faço arquitetura e pelo que vi está um projeto bem resolvido para um ateliê. E acho curioso, porque eu, como estudante de arquitetura, fico pensando nessa questão dos espaços para a arte. Na faculdade a gente não tem uma

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matéria específica para isso ou qualquer tipo de coisa como a gente tem para habitação, comércio, enfim... Você que projetou todo esse ambiente? É uma curiosidade sobre o projeto.

Na verdade, existiu um projeto esboçado por mim e o André Renaud, que não foi nada feito, porque envolveria cálculo estru-tural, além de nem eu nem o André sermos arquitetos... Foi feito assim, na base do do it yourself, também não tínhamos garantias de que íamos ter grana pra fazer até o final, então resolvemos começar e tivemos a sorte de encontrar um mestre de obras muito bom, que facilitou a coisa toda, eu aprendi muito com o cara, um cara incrível, até hoje ele faz algumas coisas para mim até de trabalho, coisas aqui no Rio ele vem de Rio das Ostras para fazer. E realmente eu saquei que o cara entendia do que estava falando, até onde ele ia, e a gente foi fazendo na medida, assim, tinha uma ideia geral e aí foi sendo feito na medida da grana. Realmente, tudo foi pen-sado para ser ateliê, é um lugar que eu acho que dificilmente seria reaproveitado, quer dizer, dá para aproveitar para outra coisa, vai desde a telha térmica com lâmina de metal para não transmitir eletricidade nem calor, a iluminação, tamanho de portas, polias para suspender trabalhos, etc. Eu e Rosana já tivemos vários ateliês, então a gente já sabia mais ou menos que tipo de espaços a gente gostaria. Não é um galpão, é setorizado segundo as necessidades.

ALuNO: A minha formação, assim como a sua, é em pintura também e no meio da faculdade eu estava pintando e vi que não era a minha praia e de repente tentei outras coisas. Sei que você já pintou muito, sua produção em pintura na faculdade, e mesmo depois dela, você teve uma larga produção e de repente você começou a criar objetos, intervenções. Você tem um ou outro artista que tenha te influenciado a seguir esse caminho ou você falou: “Pintura já deu o que tinha que dar para mim, vou tentar outras coisas”?

Não, nenhum especificamente, eu continuo gostando bastante de pintura, até coleciono algumas coisas. Era uma demanda interna mesmo de uma obra mais conceitual, acho que é mais essa procura de uma obra que tivesse uma visualidade, tivesse uma expressão, mas que tivesse conceito. Eu acho que às vezes se pensa que uma coisa para ter conceito tem que ser hermética, tem que ser antipo-pular, e eu acho que não necessariamente, eu sempre falo do Tom Jobim, porque acho que ele chegou a um grau de sofisticação na música e é extremamente popular, tanto é que até hoje em todas as novelas só toca Tom Jobim. Não precisa ser ruim, não precisa baixar o nível para ser popular, enfim, um artista maior, referência, o Tom Jobim. E aí na arte, o Cildo, acho que essa coisa do resul-tado formal interessa menos do que o processo conceitual, mas ao

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mesmo tempo tem uma exuberância, tem uma presença visual na obra do Cildo quase sempre, tem uma inteligência visual, também, que me interessa bastante.

TâNIA QuEIROZ: Eu queria fazer uma... não é exatamente uma pergunta, mas, se você só pudesse fazer uma recomendação para as pessoas que estão começando uma formação em arte, qual seria ela?

Uma só é difícil! Eu posso fazer um monte, rapidinho... [Risos] Pri-meiro é ter uma relação verdadeira com o trabalho, de gostar mesmo de estar no ateliê, de gostar do meio, porque nem sempre é muito gratificante essa profissão, aliás na maioria das vezes não é, então fica no meio quem realmente gosta, quem tem uma relação mesmo de paixão, é romântico, porque sem romantismo eu acho que em nenhuma profissão você vai conseguir ser muita coisa. E a outra seria realmente aproveitar as oportunidades desse tipo aqui, da faculdade. Hoje a gente tem um monte de palestras, visitas guiadas e isso melhora tanto a formação! Eu digo por mim, fiz a Escola de Belas-Artes em um momento muito precário da escola e eu ia a um monte de palestras e tem sempre coisa boa acontecendo, às vezes você ia a palestra com um cara superimportante e tinha quatro pes-soas, para você é até bom porque a pessoa dá a palestra para você...

Notas1. BARBOSA, Felipe. Vestiário. Exposição individual realizada no Museu do Futebol. São

Paulo, de 14 de fevereiro a 15 de julho de 2012.

2. BARBOSA, Felipe. Matemática imperfeita. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011. 292 p.

3. BARBOSA, Felipe. Matemática imperfeita. Exposição individual realizada no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, de 6 de novembro a 5 de dezembro de 2010.

4. BARBOSA, Felipe. Sinuca de bico, 2003-2010. Mesa de sinuca alterada. Dimensões: 100 x 200 x 310 cm.

5. Espelho refletido - O surrealismo e a arte contemporânea brasileira. Exposição coletiva realizada no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, de 10 de junho a 29 de julho de 2012.

6. BARBOSA, Felipe. Mergulho do corpo - Lavando a alma, 2010. Caixa de água revestida de azulejos, 110 x 134 x 134 cm.

7. BARBOSA, Felipe. Movediça, 2010. Mesa, rede e bolas de pingue-pongue. Dimensões: 75 x 153 x 275 cm.

8. BARBOSA, Felipe. Homem bomba, 2002. Objeto construído com bombas. Dimensões: 44 x 20 x 13 cm.

9. BARBOSA, Felipe. Mórula, 2002. Palitos de fósforo colados lado a lado. Dimensões: 44 x 40 x 43 cm.

10. BARBOSA, Felipe. Insight, 2003. Cabeças feitas com estalinhos brancos. Dimensões: 35 x 24 x 25 cm cada.

11. BARBOSA, Felipe. The Record, 2011. Podios feitos com discos de vinil. Dimensões: 60 x 40 x 20 cm.

12. BARBOSA, Felipe. Bolaruga/Turtle Ball, 2005. Resina e pigmentos. Dimensões: 22 x 22 x 22 cm.

13. BARBOSA, Felipe. Mapas de consumo, 2001-2010. Série de mapas estatísticos feitos de tampas coletadas em diversas cidades do mundo.

14. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô, 2001-2008. Série de bilhetes de metrô redesenhando a malha metroviária da cidade.

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15. BARBOSA, Felipe. Mapa de consumo de longa duração do Rio de Janeiro, 2001-2010. Mapa estatístico de consumo feito com tampas de bebidas coletadas pela cidade. 200 x 300 cm.

16. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Nova Iorque, 2005-2008. Bilhetes de metrô redesenhando a malha metroviária da cidade. 280 x 180 cm.

17. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Madri, 2001. Bilhetes de metrô redesenhando a malha metroviária da cidade. 195 x 195 cm.

18. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Cidade do México, 2004. Bilhetes de metrô redesenhando a malha metroviária da cidade. 180 x 140 cm.

19. BARBOSA, Felipe. Mapa de metrô Londres, 2004. Bilhetes de metrô redesenhando a malha metroviária da cidade. 180 x 260 cm.

20. BARBOSA, Felipe. Estranha economia. Exposição individual realizada no Paço Imperial. Rio de Janeiro, de 21 de março a 13 de maio de 2012.

21. BARBOSA, Felipe. Estranha economia. Instalação. Objetos construídos com notas de real picadas.

22. BARBOSA, Felipe. Bancos, 2011. Notas de real picadas e prensadas. Dimensões: 90 x 35 x 35 cm cada.

23. BARBOSA, Felipe. Mala, 2011. Notas de real picadas e prensadas. Dimensões: 64 x 43 x 35 cm.

24. BARBOSA, Felipe. Lixa mão, 2009. Lixa de parede. Dimensões: 22 x 28 cm.

25. BARBOSA, Felipe. Quadro de cortiça, 2003-2006. Fotografia colorida 82 x 117 cm.

26. The Record: Contemporary Art and Vinyl. Exposição coletiva intinerante. Nasher Museum of Art at Duke University; Institute of Contemporary Art/Boston; Miami Art Museum; Henry Art Gallery, Seattle. 2011-2012.

27. BARBOSA, Felipe. Autógrafos, 2004-2006. Cartões-postais e fragmentos de discos de vinil autografados.

28. BARBOSA, Felipe. Tabuada, 2007. Bolas de futebol costuradas. Dimensões: 135 x 150 cm.

29. BARBOSA, Felipe. Boi bola, 2005. Bola de futebol feita de pele de boi. Dimensões: 22 x 22 x 22 cm.

30. BARBOSA, Felipe. Série Condomínio Volpi. 2007-2008. Colorjet sobre madeira. Dimensões: 60 x 60 cm.

31. BARBOSA, Felipe. In the Dog’s House, 2008. Instalação. Dezesseis casas de cachorro de tamanhos diferentes.

32. BARBOSA, Felipe. In the Dog’s House, 2008. Instalação. Quatro casas de cachorro cada. Dimensões: 220 x 220 x 58 cm e 220 x 58 x 267 cm.

33. BARBOSA, Felipe. Arquitetura de engenheiro. Exposição individual, realizada na Galeria Casa Triângulo. São Paulo, 2009.

34. BARBOSA, Felipe. Círculo cromático. 2000. Pintura. Chicletes e massinhas de modelar e tinta.

35. BARBOSA, Felipe. Cola, 2002-2012. Coleção de refrigerantes de sabor Cola. Trabalho em progresso, contando com aproximadamente 400 marcas diferentes, oriundas de diversos países. Dimensões variáveis.

36. BARBOSA, Felipe. Lixeiras, 2008-2009. Série de fotografias coloridas. Coleção de fotos de suportes para lixo. Dimensões: 30 x 58 cm cada foto.

37. BARBOSA, Felipe. Construtivismo literário, 2005. Série de fotografias coloridas. 24 x 32 cm cada.

38. BARBOSA, Felipe. Igloo, 2007. Vídeo que mostra um pequeno iglu construído com acendalhas. 20’. Cor. Som.

39. BARBOSA, Felipe. Crepúsculo, 2007. Oito velas de windsurfe. Dimensões: 580 x 1600 cm.

40. BARBOSA, Felipe. Estética doméstica, 2007. Exposição individual realizada na Galeria Filomena Soares, Lisboa, Portugal.

41. BARBOSA, Felipe. Mórula, 2002. Palitos de fósforos colados lado a lado. Dimensões: 48 x 45 x 38 cm.

42. BARBOSA, Felipe. Wormhole, 2006. Palitos de fósforo colados lado a lado. Dimensões: 30 x 34 x 33 cm.

43. BARBOSA, Felipe. Desenho espacial, 2005. Lápis e cola. Dimensões: 33 x 33 x 33 cm.

44. BARBOSA, Felipe. Geometria descritiva, 2003-2005. Três livros de geometria descritiva, acrílico e fio transparente. Dimensões: 25 x 25 x 25 cm.

45. DOUBILET, David. Fish face. Londres: Phaidon, 2007. 408 p.

46. A água e seu papel. Exposição coletiva realizada na Galeria Caza Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, de 30 de maio a 17 de junho de 2011.

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47. BARBOSA, Felipe. Livro peixe, 2011. Livro sobre peixes recortado com aquário embutido contendo um peixe vivo. Dimensões: 24 x 24 x 5 cm.

48. BARBOSA, Felipe. Justa troca, 2000-2005. Placas e chaveiros numerados, conseguidos em operações de troca nas instituições que têm guarda-volumes.

49. BARBOSA, Felipe. Pilhados, 2008-2010. Pilhas carregadas e resina. Dimensões variadas.

50. BARBOSA, Felipe. Chuva química, 2012. Placas de metal, resina e pilhas. Dimensões variadas.

51. BARBOSA, Felipe. Martelo de pregos, 2001. Martelo e aproximadamente 1,5 kg de pregos. Dimensões: 35 x 8 x 10 cm.

Saiba maishttp://www.felipebarbosa.com/

BARBOSA, Felipe (Org.). Felipe Barbosa: matemática imperfeita. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011. 292 p. (Pensamento em arte)

COSMOCOPA ARTE CONTEMPORÂNEA. Felipe Barbosa: estranha economia. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012. 88 p. (Coleção Cosmocopa-Apicuri)

BARBOSA, Felipe. Santiago de Compostela: Artedardo, 2008. (Colección DardoTu)

GALERIA ARTE EM DOBRO. Felipe Barbosa. Textos Guilherme Bueno, Luciano Vinhosa, Marisa Flórido, Moacir dos Anjos. Rio de Janeiro, 2006.

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é um prazer estar aqui, um grande prazer! geralmente falo sem plano, prefiro ir pensando o que vou falando. podemos desde já abrir para perguntas. prefiro saber o que vocês gostariam de ouvir. ou não, talvez seja melhor eu falar o que tem me interessado mais. então, acho que podemos ter uma conversa bem livre e todo mundo ficar à vontade. vale falar todas as bobagens. eu me dou sempre esse direito, de começar falando bobagens à vontade. às vezes no meio de um fluxo a gente encontra caminhos muito mais interessantes do que dentro de uma estrutura planejada. mas, na verdade, pensei em falar mais uma vez o que costumo falar, quando me lembro, para iniciar qualquer palestra ou conversa, que é ter em mente que a precariedade da palavra é maior do que a gente pensa. sou apaixonada pela palavra, até por causa dessa precariedade também.

Vista da exposição: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011

Foto: Pat Kilgore

a formatação do texto obedece orientação da artista.

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tanto a precariedade da palavra quanto a precariedade da ideia de entendimento. e procuro entender cada dia menos as coisas, em todos os níveis. parece absurdo, mas é uma desconstrução funda-mental, e a arte traz essa possibilidade, de aproximação do mistério.

ainda bem que a gente vai poder editar isso na hora de publicar. mesmo sendo uma exposição ou uma conversa gravada para ser publicada, tento sempre não prestar tanta atenção à ideia de crista-lização. o espaço do erro é muito importante. quase sempre se tenta evitar o erro, mas é inevitável. e a arte aproveita o erro. a ciência também aproveita o erro, e na vida, também, a gente aproveita bastante o erro. eu gosto da palavra errar, especialmente no infi-nitivo, errar também no sentido de vagar, de se deixar andar à toa.

quer dizer, sempre isso, vou começar a falar e começar por onde? tanto faz, né? essas palavras todas não têm tanta importância, apesar de toda a importância da palavra. onde a situação de fato é o mais equilibrada e potente possível é lá no mam, onde está a exposição. então, se vocês quiserem realmente saber alguma coisa do meu trabalho, é lá que vocês vão saber, não é comigo aqui. e é lá com o pensamento de vocês, não com meu pensamento. claro que o meu pensamento, e o pensamento de qualquer outra pessoa, vai poder sempre acrescentar alguma coisa. mas sinto que, quando

o pensamento se materializa em uma situação plástica, ele tem uma autonomia tão perfeita que a palavra quase sempre tira mais do que acrescenta. tira quando tenta criar um veículo direto. mas quando é assumidamente paralela, livre, poesia, pode até funcionar bem, amplifica. claro que quando há uma tentativa de estruturação também pode funcionar bem, para quem gosta disso. mas o que eu sinto é que, quanto mais a gente deixa a situação concreta agir, em fruição descomprometida, mais potente tudo se torna. sobretudo para quem já está muito embebido disso tudo. as palavras estão tão contaminadas, nesse discurso da arte, que eu tenho pensado – tenho escrito também, eu gosto de escrever – em como poder recuperar um certo frescor das palavras em relação à arte? como inventar palavras? porque pensar em arte e vida como amálgama é pensar uma possibilidade de uma vida muito mais inteira, muito mais livre ou significativa. ou sei lá que palavras a gente pode juntar aí... os processos vão ficando muito misturados e eu sinto que quanto mais misturados eles ficarem melhor vai ser. quanto menos tentar decompor melhor.

porque parece que os sistemas, até de pensamento, são muito falhos. porque a gente aprendeu a pensar com palavras, né? e eu sinto as palavras distantes de uma experiência mais concreta. quando a gente pensa “mesa”, cada um vai pensar em uma mesa diferente.

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e “mesa” é uma coisa simples. imagina quando pensamos algo mais complexo ou abstrato, como funcionam essas frestas entre palavras e entre a palavra e a coisa? porque entre cada palavra há o entendimento de cada um, então... cada vez mais, para mim, é cair nisso com gosto. aceitar a natureza das coisas. porque eu sinto que a cultura que formou o nosso pensamento não aceita a natureza das coisas. nem a natureza da vida, pouco se fala de morte, ou das questões mais determinantes.

então, na possibilidade do fazer da arte há uma libertação do pen-samento que eu acho cada dia mais fundamental, como base para uma ação concreta. uma ação que junte em cada um e em todos nós uma possibilidade, nem que seja um respiro acima dessa dimensão tão trivial, tão acachapante, tão normalizante, tão brutal de uma certa forma da vida cotidiana, né?

e pensar que a gente está tão ligado ainda a essa ideia do registro. é tudo tão misterioso, e vai ficando tão pantanoso, que quanto mais eu tentar entrar nisso, quanto mais falar, mais vou me enrolar, né? e é bom, é ótimo! vou me enrolar, vocês podem rir, eu posso rir e pensar: “estou totalmente perdida, vou voltar para lá”. e tudo isso é o processo do trabalho em si ou o processo do pensamento.

e mesmo trabalho é uma palavra pesada, né? e aí, você pensa em obra, em como nomear as coisas. ainda bem que elas não têm necessidade de nome. vale o tradicional “sem título”, mas é sem-pre desagradável, parece que está faltando alguma coisa. tem que marcar dentro do sistema “sem título”, “sem data”, “dimensões variáveis”, “materiais diversos”. não quer dizer nada, mas cabe na normatização, ou no sistema, ou como fazer...

agora estou me lembrando do paulo bruscky, sentado nesta mesma mesa, falando da maneira de enfrentar o sistema que ele utiliza até hoje, com muita potência e graça (em todos os sentidos da graça, do humor, do estado de graça, da graciosidade, e do grátis). ele falou da ideia de implosão, entrar no sistema e atuar no sistema por implosão. sem ficar jogando pedra na vidraça, entrar profun-damente naquilo e funcionar como implosão.

sinto que o sistema, tanto o sistema da arte quanto o sistema geral das coisas, é um desastre, né? e se é um grande desastre, tanto melhor, talvez não seja tão difícil abrir umas brechas, porque tudo é tão falho, né?

e se a gente pensar que vai morrer e não sabe quando, e não sabe como. e que a gente morrer ainda é o de menos, porque as pessoas

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que amamos também vão morrer, se sobrevivermos a elas. e passar pela morte dos outros é bem pior do que pela nossa própria, eu ima-gino. se a gente pensasse o tempo todo que vai morrer, a vida seria outra coisa, né? a arte seria outra coisa, tudo seria outra coisa. e por que a única certeza concreta é o tempo todo negada pela sociedade em que a gente vive? não tenho ideia. talvez seja desconfortável demais lidar com essa situação permanentemente, para a maioria das pessoas. eu gosto de pensar na morte, para mim funciona como libertação e como possibilidade de criar uma perspectiva mais justa da vida, em todos os sentidos.

cada um de nós tem defeitos maravilhosos. mas como tentar apro-veitar esses defeitos? como poder aceitar a natureza das coisas e ao mesmo tempo perceber que elas são transformáveis? é simples ficar de cabeça para baixo, é simples derramar água no chão, é muito simples. ações muito pequenas, que muitas vezes não faze-mos porque tem ainda essa ideia do “normal”, de que a gente não consegue se desvencilhar.

eu sinto o normal como uma mutilação. é o que tira o imperfeito de cada um e é o imperfeito que vai fazer a beleza de cada um. é o imperfeito que vai fazer da arte, também, essa possibilidade de beleza maior, perfeitamente imperfeita e que não tem nada a ver

com a ideia de beleza que tentam vender para todo mundo.

vou ficar falando sozinha aqui? posso falar horas sozinha.

ALuNO: Bom, seu pensamento é rizomático, você vai andando... Eu tinha feito algumas perguntas. Mas, a partir do que você falou agora, você começou falando da morte, que às vezes é difícil de lidar com a morte, você repetiu essa palavra muito tempo e agora você falou que a sociedade não sabe lidar direito com a morte, essa foi a palavra que me veio. E agora você falou do normal como mutilação. Como essa coisa de lidar com a morte está presente nos seus objetos? Porque, por exemplo, você pega objetos que foram esquecidos, vai acumulando coisas, vai produzindo isso, esse é o seu material para a arte? Você considera alguns elementos desses, no caso, esse fato de você pegar objetos que foram esquecidos, alguma relação entre morte e viver, reviver os objetos, recriar a partir desse objeto que não está sendo utilizado, que foi morto, tem alguma relação com isso?

não é assim direto não. sinto que a morte está entranhada na vida de uma forma totalmente orgânica. quer dizer, a gente vai sentindo isso a todo momento, acho, quando está com essa sensibilidade

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ativa. começo a falar de uma forma muito geral, talvez, porque pensar ou falar de arte sem falar de um todo me parece cada dia mais inútil. mas ao mesmo tempo é muito importante falar de arte, arte mesmo. começo falando assim porque uma palavra vai levando a outra, é o mesmo jeito que eu vou trabalhando.

chegar lá no mam e escutar as pessoas falando: esse espaço tão grande não te dá medo? nenhum! é um prazer muito grande ter um espaço tão lindo, tão maravilhoso – eu não sei se vocês viram a exposição ou não –, um espaço que tem sido tão pouco utilizado da maneira que eu utilizei e que foi planejado para ser utilizado também assim, claro que não só assim, mas também assim, aberto, sem divisões.

e vou me deixando seguir, ou seja, vou tentando justamente juntar tudo, juntar todos os pensamentos, e sobretudo a ideia de pen-samento e ação simultâneos. claro que depois posso tomar uma distância razoável e olhar e ver que aquilo ali não tem por que estar ali e retirar, e aí começar outra vez. ou seja, o que eu sinto é: venho tentando ser o mais livre possível. livre em relação ao meu próprio pensamento, livre da expectativa externa, livre da minha própria expectativa, livre da ideia de que liberdade é impossível. é possível aumentar o grau de liberdade infinitamente, até porque, se a liberdade total é de fato impossível, você pode aumentar o

grau de liberdade o quanto você aguentar. o preço é bastante alto, mas vale a pena, né?

ALuNO: Você disse que falar de arte sem falar do todo é inútil, então você deve ter uma concepção do que é a arte e por que é a arte. E eu me pergunto como é que você se enfiou nisso? Onde é que isso começou e o que te motiva? Além dessa questão da liberdade, do suspiro.

são essas coisas que não adianta tentar explicar muito, né? é desde criança, para mim é desde muito criança. e, aos poucos, você vai seguindo. é engraçado, outro dia eu estava pensando nisso: toda criança desenha, né? basta dar papel e lápis e qualquer criança sai desenhando. tem a mitificação do artista e da criança, desde picasso até a ideia da criança como um ser livre, que eu também acho um mito. mas tem uma coisa muito simples, é muito simples desenhar, toda criança desenha. agora, o estranho é por que tanta gente para de desenhar? não é que você precise ser artista, não acredito que todo mundo é artista, ainda bem, né? mas todo mundo poderia desenhar, simplesmente desenhar.

ALExANDRE DACOSTA: É a escola! Para de desenhar porque a escola normal quer que você faça uma casinha, uma

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arvorezinha e o solzinho amarelo, né? Aí, em casa, os pais de repente: “Mas você pintou o céu de vermelho? Não é branco? O que o céu é?” Sei lá...

outro dia aconteceu uma coisa engraçada. eu estava na casa de um amigo artista e a filha dele tinha desenhado na parede um desenho que ele tinha adorado. um superdesenho, enorme, com várias cores, abstrato, claro, a menina é muito miúda, para ela não devia ser nada abstrato, mas para nós era absolutamente indecifrável. e aí a menina que cuida dela foi lá e fez uma florzinha, aquela florzinha que parece um carimbo, né? e ele tinha ficado tão incomodado com aquilo e eu falei: “mas por que você não vai lá e simplesmente apaga a florzinha?” e ele: “mas eu fico sem jeito, porque ela dese-nhou a florzinha com tanto carinho!” mas qual o problema? vai lá e apaga a florzinha com tanto carinho também, né? (risos) mas ele não conseguiu e eu disse: “me dá a borracha que eu apago, vou apagar com o maior carinho”. e apaguei realmente com o maior carinho. e pronto. então, é isso que eu estou falando, são ações muito simples, né?

e o que eu sinto é que, na verdade, quando o alexandre fala isso, quer dizer, eu tenho a sorte de não ter filhos e ainda estar muito longe da tarefa de me educar a mim mesma. eu me esforço muito,

sou superdedicada, mas ainda estou muito longe do que eu quero conseguir. e quando eu conseguir, não vai adiantar mais nada, eu não vou conseguir mesmo, mas tudo bem! (risos) e a gente pode se educar, né? quem tiver filhos, então, que responsabilidade incrível. mas a gente pode ir se educando nesse sentido, tirando esse lixo. a gente passa a vida inteira, mas não adianta, você tira um monte de lixo e ainda vem gente e te joga mais aquela pazona de lixo. às vezes, é o seu amigo na melhor intenção, ou a sua família, seu pai, sua mãe, seu irmão, seu tio, seu namorado, seu marido, até o seu filho, cara! a quantidade de crianças repressoras é incrível.

a arte é essa possibilidade de um campo de experimentação muito concreto, que transcende tudo isso, que é muito mais do que tudo isso, mas que também é onde você pode errar tranquilo, sabe? um médico não pode se dar esse luxo. a gente pode fazer uma exposi-ção horrorosa, que bom! vai ser mais uma, não vai fazer a menor diferença. ninguém riu?

é uma área de grande liberdade, só você é quem sabe, ninguém mais vai te ensinar, você vai inventar uma coisa! mas aí, o que acontece? o sistema da arte, do jeito que está atualmente, está ficando muito bruto, porque, bem, estamos conseguindo viver disso, é uma pro-fissão. sou uma profissional, vivo disso, ganho dinheiro com isso,

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pago a minha vida com isso. mas, isso é um lado paralelo, né? quer dizer, se na hora em que eu estiver fazendo um trabalho eu pensar se vou vender aquele trabalho ou não, é melhor não sair de casa, vou fazer outra coisa, entende?

é preciso tentar separar as coisas. não há mal nenhum em você ser um artista profissional, desde que ser profissional não sufoque o artista. o artista não pode se permitir entrar nesse espírito de tempo é dinheiro, né? como é possível referenciar o tempo, que é o que existe de mais precioso, na objetividade vulgar do dinheiro?

é um sistema muito absurdo, mesmo. então acho que o pensamento tem que dar volta no sistema o tempo todo e o trabalho tem que ser a expressão mais avançada do pensamento.

acho que somos animais mais emocionais do que racionais, mas a ideia de emoção está cada dia mais distante da arte para iniciados. estamos falando aqui de iniciados, né? não somos o público, então cada vez que entro em uma exposição eu já tenho que me livrar de tudo aquilo, né? o público em geral entra assim: “não estou entendendo nada, explica para mim”. isso é um problema. outro problema é aquele que já entrou entendendo tudo. então, no fundo, para mim, é a mesma coisa. e na verdade é isso, você não tem muito

“e procuro entender

cada dia menos as coisas,

em todos os níveis.

parece absurdo, mas

é uma desconstrução

fundamental, e a arte

traz essa possibilidade,

de aproximação do

mistério.”

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por onde andar, é um território minado mesmo, que bom! e se gente não sabe voar, dá para dar uns saltos, né?

o que conta é trabalhar e trabalhar e trabalhar muito. e autocrítica, não tem nada mais difícil do que autocrítica. o que vale é o senti-mento de estar inteiro ali ou fazendo alguma coisa que possa de fato me surpreender. gosto muito de olhar as coisas, então faço as coisas que eu gosto de olhar. se não tenho o interesse renovado em olhar e olhar de novo, se aquilo não me cria fagulhas para continuar, sei que não presta. mas também vale a alegria, é a prova dos nove, né?

ALuNO: E qual é a sua autocrítica? Como você se vê enquanto espectador da sua obra? Você falou que é legal fazer autocrítica, que é uma coisa muito difícil – de fato é – e onde você recai na sua autocrítica? Porque, na verdade, o seu trabalho, por exemplo, no MAM, ainda vai continuando, vai acontecendo, é uma exposição que vai acontecendo, então, onde acaba e onde você para, para ter uma autocrítica?

não vai acontecendo, isso foi mais um fracasso. eu tenho um tru-que mental: nada está nunca pronto. mas é truque, né? sei que é falso, é só um truque – nada está nunca pronto, mentira total! em certo momento, há um equilíbrio, uma situação de equilíbrio

muito rigoroso. quer dizer, se eu começar a mexer, vou ter que refazer tudo.

fiz durante três semanas e pensei assim: é uma exposição que vai ficar quatro meses, que é um mundo de tempo, e do lado da minha casa. eu não vou viajar durante esses quatro meses, basta eu pegar o meu carro e fazer um trajeto maravilhoso pela praia de copacabana, aterro do flamengo, que por si já é uma preparação perfeita para ver alguma coisa. e eu vou chegar lá, vou poder mudar à vontade. para que eu vou fazer uma exposicão só? falei isso porque, de fato, era a minha intenção. eu não estava nem enganando a mim mesma, eu acho, muito menos a ninguém. já tive essa intenção outras vezes, tentei fazer e fracassei também. chega um momento em que as coisas ficam equilibradas e eu não consigo fazer mais nada. ou des-monto tudo ou começo a tirar para poder acrescentar. três semanas de trabalho muito intenso, chegando em casa era quando eu sentia que o espaço era grande. sei lá quantos quilômetros eu andava ali dentro, nem calculo, não quero nem calcular. o corpo doído, eu estou bem fisicamente, mas parecia que eu tinha apanhado. então, o limite ali é sempre o limite do corpo, de uma certa maneira. e eu não poderia continuar a fazer aquilo naquele ritmo durante quatro meses, ninguém consegue fazer aquilo durante quatro meses. fica-ria doente, eu acho. ou algum acidente iria acontecer. quer dizer,

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eu tenho uma tendência a trabalhar sempre no limite, me agrada isso, tanto do ponto de vista de processo quanto de resultado. mas muitas vezes eu ficava doente ou começava a quebrar tudo, sem querer, tropeço, quebro uma coisa, quebro outra, quebro outra e outra. hoje em dia, com mais experiência, é menos frequente ficar doente ou quebrar coisas. de vez em quando quebro uma coisinha ali e outra aqui, mas antigamente eu passava do ponto e começava de fato a quebrar e quebrar em sequência. aí tinha mesmo que parar!

e tem uma coisa estranha: depois que a exposição abre ao público, ela não é mais sua, então eu não tinha como ficar ali. eu mantive, e mantenho ainda, o meu espaço separado ali. não gosto, quando eu estou fazendo uma montagem, de ter objetos que não façam parte da situação da exposição, então geralmente tenho um espaço de recuo. ali eu tinha um espaço de recuo muito generoso. esse espaço continua lá, fechado ao público. vou lá umas duas vezes por semana, trabalho lá, olho a exposição, faço manutenção, documento um pouco, vejo. e não me deu vontade de mudar nada. acho que às vezes a gente não sabe o que tem que fazer, mas se sabe o que quer fazer já é bom. não sabe se é isso ou aquilo, deveria fazer isso, será que seria bom fazer isso? mas se você sabe o que você quer fazer... tem coisas muito simples: tem vontade de fazer? faz! é tão simples! não tem vontade de fazer? não faz! é básico, é banal? o que vocês

acham disso? não sei, mas é muito prático. até porque ninguém pede a ninguém que faça arte, você faz porque você quer fazer. é uma coisa interior, é uma vontade, mesmo. então, em um lugar onde você tem essa possibilidade de fazer o que quer, por que você vai fazer o que não quer? ou por que você não pode mudar de ideia? eu queria, mas não quero mais!

ALuNO: Com tantas ideias, pensamentos, como você faz para que não se perca dentro daquilo que você se propõe? Porque às vezes eu também vivo isso, muitas ideias, muitas ideias, e aí eu nem sei o que selecionar, nem sei por onde começar. Eu acho que você podia, de repente, dar uma luz para todos nós, em relação a isso.

eu me perco! eu não tenho medo de me perder, eu me perco à von-tade mesmo! e aí tem horas que tem uma onda irresistível, se você está ali é porque tem dedicação, né? é dedicação e integridade, você está seguindo o foco do desejo, né? e da sua visão, e eu penso visão como uma palavra muito importante, ampla. assim, visão não é só o que você está vendo. é o que você está vendo, é o que você está imaginando, é o que você está vendo de uma forma, também, dis-tanciada, crítica, mais consciente. e é se dedicar a ver, né? a olhar e olhar e ver, poder olhar de fato, né? ajudou?

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ALuNO: Eu queria saber se as suas obras têm destinatário ou elas só têm remetente? Você pensa no destinatário ou você se concentra no seu processo e só?

não é uma carta, né? então, não tem nem destinatário nem reme-tente. faço para mim em primeiro lugar, isso é claro. mas não só, porque se fosse só para mim também não faria sentido. ou faria, também, nada faz sentido, então, se nada faz sentido, pode-se pen-sar: que bom que nada faz sentido. melhor do que tentar encontrar um sentido para as coisas é aceitar que nada faz sentido, ou que muito pouca coisa faz sentido. ou mesmo a ideia de fazer sentido é esquisita demais. por que as coisas têm que fazer sentido? de onde surgiu isso? nunca estudei filosofia, gosto de ler, mas não consigo estudar de uma forma sistemática. desde que me livrei da graduação, pensei: finalmente acabou isso! gosto de estudar, mas de acordo com outros métodos, sou empirista, anárquica. não me encaixo nos sistemas padronizados. e não vejo por que me encaixar, já que cumpro as minhas obrigações sociais de uma forma conveniente. isso é importante também, quanto mais você se desencarga desse tipo de coisa, melhor. tem que pagar a conta de luz, porque se não pagar não funciona, literalmente. então, pagou o que tem que pagar, fez os exames de saúde, fez o que tem de ser feito, aí tem espaço para tudo o que se quer fazer.

sinto que está tudo interligado. sinto que estou conectada com aquele cara desenhando na parede da caverna. vi uma vez. é per-feito, lindo! tem umas frases que são lindas, adoro essa, do miró: “a pintura está em decadência desde os tempos das cavernas”! usando o relevo da pedra pra fazer o relevo da coxa do animal, o olho, aproveitando a forma da pedra para fazer o desenho, uma coisa deslumbrante! esse cara fez aquilo pra quem? fez aquilo pra fazer, né? é como se fosse sem remetente conhecido, e o destinatário é geral, para usar a tua imagem.

sinto que eu vivo conversando com os mortos, todo dia, o tempo todo, escutando os mortos, quer dizer, eles não me escutam, mas eu escuto. mas nunca se sabe, né? de vez em quando eu até falo em voz alta para alguém em especial. existe todo esse patrimônio do pensamento e da arte, cada dia mais disponível. outro dia eu estava ouvindo o glenn gould falando sobre bach, um cara que viveu isso com uma obsessão absoluta, uma precisão genial! e falando que aquilo não era avançado demais para a época, ao contrário, ninguém ligava para o johann sebastian porque aquilo era considerado velho. a maravilha que é o registro, né? ter acesso continuado a um patrimônio que é de todos e percebo que é ali, na arte, que estamos de fato. é o espaço verdadeiro da humanidade, no sentido de que está todo mundo ali, e todos interligados. é um momento em que se pode pensar que o

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homem não é um animal tão horrível assim, né? há alguma coisa que compensa esse desastre todo, quer dizer, nada compensa nada, mas tem algo que faz que a gente tenha um certo prazer em ser humano.

ALuNA: Não tenho uma pergunta, são coisas que ficam em mim, algo que eu senti vendo a sua exposição no MAM, mas que mexe muito comigo, porque posso estar errada, mas acho que a arte, para mim, a função, eu tenho vontade de mexer com as pessoas, sabe? De tocar as pessoas e, às vezes, quando a arte é muito contemporânea, como você falou, há uma parte das pessoas que não estão entendendo nada, que não vão entender nada, só que para mim isso é muito bom, para mim, como artista, é uma realização muito grande. Então, eu fico me perguntando qual é a minha função? Por que eu quero fazer isso? Quero fazer isso porque nasci assim. Ninguém disse que precisa de mais artista, então qual é minha função no mundo, para que eu quero fazer isso? Para que e para quem vai servir? Será que é só uma terapia que eu estou fazendo comigo mesma, é algo egoísta? Mas por outro lado, não sei fazer outra coisa, não gostaria de viver de outra forma.

E outra coisa que acontece quando chego a uma exposição como a sua, que mexe muito com o sensível, ela mexe comigo

e eu tenho vontade de mexer nela, então, por outro lado, não há uma liberdade. Me deixa um pouco aflita que às vezes eu vou ver esculturas e tenho vontade de tocar nelas, de sentir a textura, e as suas coisas eu tinha vontade de mudar de lugar, mas vá eu fazer isso lá no MAM... E aí aflige um pouco: essa pessoa está mexendo comigo e eu não posso mexer com ela?

a pessoa não está lá, estou aqui, é outra coisa, né? você vai mexer comigo quando fizer um trabalho também. não é mexendo algo de lugar que você vai mexer comigo. se mexeu na tua emoção, quando você fala isso, se eu estou aqui ouvindo o que você está falando, você está mexendo comigo, pessoalmente. mas no que está ali nem eu mexo em nada, porque ali já é outra coisa. achar que arte parti-cipativa é manipular ou mexer nas coisas acaba sendo uma visão superficial, mexer na coisa sem viver a dimensão mais profunda, mental-emocional. a experiência sensorial ali é principalmente visual. você pode andar e se aproximar daquelas obras à vontade, cada percurso que você faz está configurando uma visão única. uma experiência só sua, determinada pelo seu corpo, pelo seu olhar, seu tempo, seu deslocamento. só pelo fato de se mexer ali, você já está fazendo alguma coisa que é muito mais poderosa do que mexer em alguma coisa ali. e tanto é que você se sente mexida. quando fiz aquilo defini que ninguém poderia mexer ali. defini

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Vista da exposição: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011

Foto: Pat Kilgore

também que eu poderia mexer e não consegui mexer. porque não tive vontade, porque aquilo de certa forma não me pertence mais. aquilo está ali, tem autonomia. você vai poder mexer, eu acho, é no que você vai fazer com essa experiência. acho que isso tem um alcance muito maior do que se a gente pudesse entrar ali e usar aquilo como playground. tenho tido muitos problemas com essa questão participativa, que é muito interessante, muito positiva, mas traz também um efeito negativo, vazio, dessas proposições. acho que em alguns momentos ficaram muito datadas, apesar de eu ser grande fã de hélio oiticica, lygia clark e uma série de outros artistas. vejo isso hoje muito diferente do que eu via antes. quando foi lançado em 1986 o livro aspiro ao grande labirinto, eu li com grande prazer e emoção. quando eu releio hoje, tenho uma visão tão diferente da que eu tinha há quase 30 anos. tudo aquilo é muito importante para ampliar essas possibilidades de pensamento. mas por outro lado acho que foram criados mitos aí, que no momento são para mim muito contraproducentes, como pensar que pelo simples fato de pegar nas coisas você fez algo significativo, quando a verdadeira participação é interior. criar uma dimensão mental e emocional transformadora é o maior resultado daquela experiência, né?

ALuNA: O mexer a que eu me referi...

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tem peças que seriam para mexer até, mas não dá, o público é bruto, você viu o que as pessoas escrevem no livro?

ALuNA: Não, mas o mexer, na verdade, eu estava falando de um mexer muito mais simples, eu tive vontade de ficar sentada do lado...

você pode sentar, sem tocar nos objetos, você pode deitar, você pode ficar lá...

ALuNA: Então podia ficar deitada, eu não tive... Eu fiquei com medo, porque tem uma pessoa que fica lá...

mas ela nem chega perto de você, elas são superlegais, ela não vai atrás de você, vai?

ALuNA: Não.

elas são ótimas!

ALuNA: Só teve uma hora em que eu estava muito perto, aí ela veio andando e ficou olhando, mas eu só estava inclinada...

é um museu, sabe? em situações ideais seria outra coisa. mas o museu não é uma situação ideal, o museu é uma situação possível. em uma situação museológica, aquilo tudo teria aquela faixa branca, né? e só pode ser daquele jeito, porque aquilo tudo é da minha coleção, porque eu quis fazer uma exposição totalmente fora dos padrões museográficos. foi uma exposição feita com custo irrisório. eu quis fazer com as condições limitadas de que o museu dispõe. e sem texto de parede. tem um texto em um pequeno folheto, mas não tem texto de abertura, ou seja, você não é estimulado a ler algo antes de entrar. esse formato como regra geral é um grande problema. primeiro, ter que ler um texto e só depois entrar na exposição, a meu ver, só faz sentido para exposições históricas. mas atualmente parece que todos querem pensar a partir do texto e não do que está de fato ali. e quis fazer sem seguro, entende? tudo que está ali é meu risco. mas tudo tem sido muito bem cuidado e bem feito, essa equipe de monitores tem feito um trabalho incrível. tem a presença de alguém que está prestando atenção, ou seja, você sabe que você não está ali sozinho, que você não pode fazer o que você quiser, você tem que ter uma distância respeitosa no sentido: “não, você não pode mexer em nada”. isso não está escrito em lugar nenhum, né? poderia ter escrito: “por favor, não toque nas obras”, mas aí seria pior ainda, eu acho que isso é implícito, você está em um museu, você não pode tocar, ainda que tenha vontade, você não

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pode tocar. mas você acaba tocando sem querer, ou seja, as pessoas tropeçam, chutam. pela própria estrutura das coisas ali no espaço e pela luz, o tempo todo acontece alguma coisa. o que também é engraçado, não é você que toca o trabalho, é o trabalho que toca você. sei lá, tem uma fricção ali.

ALuNO: Você já contava com isso?

já contava com isso, achei que teria muito mais acidentes do que de fato houve. cada vez que acontece um acidente, ou seja, que-bra alguma coisa, tem muito mais leveza, porque isso não implica nenhum procedimento, perícia, seguro. eu estou arcando com esse ônus, que até agora foi mínimo. quebrou uma peça que eu pude repor, quebrou uma outra peça que não acho que tenha gran-des problemas, coloquei de volta e ela ficou ali. as coisas quebram mesmo, lá em casa as coisas quebram também. felizmente até agora, falta uma semana só, não quebrou a peça que foi vendida durante a exposição. espero que ela não seja quebrada, mas se quebrar...

a primeira peça que eu mostrei em uma exposição foi uma his-tória triste, mas muito educativa. era uma tira de borracha com um caco de vidro. vocês sabem que um caco de vidro é um objeto absolutamente irreproduzível? esse copo você pode encontrar

igual, mas se eu deixo cair e esse copo quebra você nunca mais vai encontrar um caco igual, nunca vai conseguir quebrar um copo da mesma maneira. então, um copo comum, inteiro, é um objeto qualquer. um copo quebrado é um objeto especial, único. nesse caso, era um único caco, e esse objeto era uma tira de borracha com esse caco de vidro enfiado. mostrei na primeira coletiva do projeto macunaíma, que era a apresentação para as individuais que viriam a seguir, foi minha primeira exposição. esse trabalho um amigo quis comprar e eu não vendi porque queria ficar com o trabalho para mim. estupidez, mas bem, é assim, acontece! fui desmontar eu mesma, tinha uma embalagem, eu embalava com algodão, com o caco dentro do algodão e eu amarrava a borracha em volta, tudo dentro de um saco plástico no final. mas eu tinha estacionado em lugar proibido e com medo de rebocarem o carro, botei tudo no saco plástico e saí correndo. quando cheguei e vi que meu carro estava lá, resolvi tirar do saco plástico para embalar direito, mas na hora em que eu tirei o caco de vidro caiu na calçada e se estilhaçou em mil pedaços. em suma, acabou o trabalho! não é uma boa história? (risos) no fundo, o mais importante é imaterial. essa história, para mim, tem muito mais valor do que o trabalho em si. na época era um trabalho importante para mim, mas hoje em dia eu vejo como um trabalho fraco. talvez eu esteja errada, talvez fosse um trabalho bom, mas de toda forma ele já não existe mais.

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ALuNO: Você estava falando, desde o início da conversa aqui, dessa liberdade toda, da sua liberdade em relação ao trabalho, à obra, à ocupação de um espaço como o espaço de um museu que é o MAM, da autonomia que a própria obra gera dentro de uma liberdade, ela acaba surgindo como obra e funciona, está lá no MAM, as pessoas estão visitando...

E você veio falando dessa relação sua com o fazer, com o processo artístico, mas uma curiosidade que sempre surge comigo, em relação a qualquer artista a quem eu tenho oportunidade de fazer pergunta, é: existe um momento em que você se dá conta ou que se desvela essa prática que é uma liberdade que, realmente, qualquer um pode ser artista, mas não é qualquer um que pode ocupar o MAM, e isso é fruto de uma longa história, de muito livro, de muita biblioteca, de muita prática, muito ateliê, não sei como é que é isso. Gostaria que você falasse um pouco desse local, desse momento, não de obra nenhuma, não de exposição específica, mas essa coisa de: “Realmente, agora meu trabalho começa a funcionar”. Até que momento ele é só uma pesquisa, só um desenvolvimento e quando é que você vê o trabalho tendo realmente autonomia e não sendo mais

uma... Você está me entendendo? Se existiu isso ou se não existiu, também?

desde o início percebi que o trabalho existia, tinha autonomia. por-que você pode ter vontade de fazer e não conseguir fazer, ou muitas vezes na hora você não percebe muito bem o que está fazendo, isso acontece muito. mesmo agora, que eu tenho uma trajetória respeitável, posso começar a fazer coisas que não tenham força ou autonomia. nada garante nada. claro, já existe uma obra, está lá, mas isso não garante que eu vá conseguir continuar a desenvolver em plena possibilidade. ou seja, eu acho que cada vez o desafio fica maior, e tem que ficar cada vez maior. a exigência tem que ser cada vez maior. quer dizer, é muito estranho você saber quando faz alguma coisa de fato. eu me lembro também de um dia, há muitos anos, eu não era, digamos, nem artista, eu nunca nem tinha feito uma exposição, mas sempre eu tinha ouvido falar que eu era artista e eu negava aquilo assim... argh!!

A.D.: Tem mais gente para fazer perguntas, mas só como você está falando disso, desse início, quer dizer, meio início, você... Como está um papo abstrato e ótimo, mas só para dar uma estaca zero, uma estaca km 1. Você fez muito tempo programação visual, designer, né? A pergunta é um pouco

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isso: você se formou nisso? Você falou de graduação, você fez desenho industrial, aí você trabalhou como programadora visual? Você vai falar um pouquinho. Esse click, primeiro queria que você falasse um pouco desse design no seu trabalho, como é que desenvolveu, né? Quer dizer, digamos, essa limpeza. Trabalhamos juntos, quer dizer, você fez alguns trabalhos para nosotros, e então eu percebi a limpeza e a precisão que você tinha. Como é que foi essa passagem, quer dizer, essa passagem naturalíssima, mas como é que foi para você essa passagem, claro que já estava junto, naquela época...

não, eu sempre fazia... eu pintava, eu pintava a óleo, cara! ganhei o primeiro prêmio de desenho na escola, ainda no ginásio. eu dese-nhava muito, meu pai não entendia nada, como é que eu fazia essas coisas horríveis se eu tinha tanto jeito para desenho. desenhava, pintava muito, fazia artesanato, fazia tudo! faço até hoje, eu adoro fazer milhares de coisas, fazer coisas, sabe? eu fazia umas coisas quando eu era garota que até hoje tenho vontade de refazer, fazia uns cubinhos de palitinhos de fósforo e depois pintava de preto, fazia umas instalações – instalações no mau sentido – no meu quarto, minha mãe deixava, eu fazia tudo, então eu pregava, era cheio de prego, cheio de coisa pendurada, não tinha mais espaço,

eu ia botando no teto. meus pais foram muito generosos, muito estímulo, sabe? podia fazer o que quisesse e estava sempre fazendo coisas, desde muito criança. mas nunca imaginei que isso era uma profissão. é horrível, até hoje, falar que é artista plástico, acho cons-trangedor. mulher, então? é pior ainda, pensam que o marido deve sustentar, ou o pai. qualquer um pode falar que é artista plástico.

A.D.: Nas fichas de hotel você coloca artista plástico?

coloco, em tudo! agora tenho que colocar artista plástico porque não tenho outra profissão, antes eu tinha, né? então eu falava designer, depois tive que falar designer e artista plástico e hoje em dia eu não posso mais falar que sou designer...

A.D.: Naquela época nem se usava designer, né?

era sempre uma coisa meio cafona de falar! é bonito você falar: “o que você faz? sou médico!” é um negócio sério, lindo! tenho a maior inveja, eu deveria ter feito medicina... (risos) então, eu estou cada vez respondendo menos, né... respondi?

ALuNO: Você começou a falar sobre a questão da morte, sobre a questão da liberdade e falou de mutilação. Eu queria saber

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como você se coloca na questão que o espaço museológico acaba mutilando a sua liberdade como artista. Como é que você dialoga com isso?

isso é uma questão interessante. a palavra mutilação, que eu usei, é forte demais, todo mundo pegou assim, estou até arrependida de ter usado essa palavra, é forte demais. sinto o seguinte: desde a época em que comecei, sempre fiz um trabalho que tinha uma questão de escala muito diferente do que se fazia naquele momento, e uma situação material muito precária, até para poder se nomear aquilo obra de arte. eram umas coisinhas bem pequenas. acho estranho que em arte a primeira coisa que todo mundo pergunta: “com que material você trabalha?” tanto faz! qualquer material, entendeu? e eu não trabalho só com resíduo, mando fundir colheres em ouro branco, 18k, liga italiana. para mim, tanto faz! um copo d’água! qualquer um que vai lá pode fazer aquela escultura que está lá no mam. um sarrafo que se pega em qualquer caçamba, aquela perna de três, bota um copo que você compra em qualquer botequim, enche de água, está ali a escultura.

tem muitos processos, né? então, como tem essa diversidade muito grande, tanto em termos de escala quanto em termos de mate-rial e procedimentos, é bastante complicado do ponto de vista

“quase sempre se tenta

evitar o erro, mas é

inevitável. e a arte aproveita

o erro. a ciência também

aproveita o erro, e na vida,

também, a gente aproveita

bastante o erro. eu gosto da

palavra errar, especialmente

no infinitivo, errar também

no sentido de vagar, de se

deixar andar à toa.”

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museológico ou comercial. trabalho com quatro galerias e atual-mente vivo da venda das minhas obras. tenho muito orgulho disso, até porque me permite uma autonomia em relação a esse sistema de financiamento público de arte. esta é uma outra questão bem complexa, que não vem ao caso hoje aqui, mas um dia a gente pode até falar só sobre isso.

então, eu penso que ao invés de adaptar meu trabalho ao sistema, tento criar um sistema que possa adaptar o que eu faço aos sistemas existentes. dá um trabalho danado, é chatíssimo, mas é necessário. e é sempre um aprendizado, estou sempre tentando encontrar soluções. por exemplo, para adequar à necessidade de exposição permanente, evitando o máximo possível o risco de aquilo ficar muito engessado ali. mas tem casos que é mesmo caixinha de acrí-lico, sinto muito! é a moldura, é o “não me toque, estou no museu”. e é o limite entre o que seria ideal e o que é possível. respondi mal, né? (risos) pode reclamar, eu vou me animando...

ALuNO: uma coisa que me chamou muito a atenção foi você falando que a palavra é pantanosa. E eu fiquei pensando como é a relação com o todo se a palavra é pantanosa, se a gente só tem uma certeza, que a gente vai morrer e que a gente não é nada, como a gente se

entrega ao todo e o que a gente é nesse todo, se o todo é um pântano?

a gente faz o que você está fazendo aí, a gente tenta fazer poesia, né?

ALuNO: É, sei lá... (risos)

eu acho que é poesia, né... é tentar fazer poesia. justamente, quanto mais pantanoso, quanto mais complicado, mais divertido fica, né? é a possibilidade de fazer poesia, seja com palavras, seja com outras coisas, com movimento... o que eu sinto é isso, é pensar, é tentar. claro que tudo também acaba sendo... é isso, já que tudo é mesmo inútil, então a gente está mais livre, não é? já que não há sentido, a gente pode pensar a partir disso. pode pensar a morte como uma liberdade maior para a vida e uma dimensão muito mais realista. se muita gente pensasse na morte em outros termos, a gente não vivia nessa ganância, nesse materialismo tão chinfrim, né? para que você vai gastar o seu tempo, que é a coisa mais preciosa que você tem, para ganhar dinheiro para comprar um monte de porcaria que não serve para nada, para jogar tudo fora, para ter esse... quer dizer, todo um sistema de uma sociedade tão mercantilista, tão materialista. acho que na verdade é falta de pensamento, quer dizer, é uma

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negação da negação da negação da negação, né? o consumismo não existe para quem pensa que a vida é outra coisa, que a vida é um tempo, determinado e rápido, curto, muito mais curto do que se tem ideia. muito mais curto!

ALuNO: Quando você fala dessa questão do desapegar, do entendimento, de ser entendida...

eu não usei a palavra desapegar, tá?

ALuNO: É, então, começar a sair desse sistema de como as coisas funcionam e pensar fora e você começa a pulsar em outra vibração, isso gera problemas, né? Eu acredito que isso gera desconforto, isso gera ansiedade. Eu queria saber o que foi te ajudando durante esse caminhar fora, esse querer pensar fora de um sistema fechado. O que foi te ajudando a abraçar essa liberdade que também causa problemas?

ah, tudo causa problema e tudo causa desconforto, não é? acho que essa ideia do desconforto é muito boa, porque o desconforto ao mesmo tempo é algo, eu acho, intrínseco à natureza humana, a gente não tem como... quer dizer, nascer já é uma espécie de desconforto, você sai daquela situaçāo de conforto total para um

desconforto, a roupa, o sapato. eu sinto muito desconforto, físico, inclusive. então, a gente vai simplesmente procurando eliminar o máximo possível o desconforto no sentido mais simples, né? pensar na roupa que veste, na casa onde vive, como gosta de se locomover, como gosta de estar, o que gosta de comer, como gosta de dormir. e tentar desenvolver o corpo no sentido mais objetivo, para mim, tem sido uma descoberta cada dia mais determinante. pensar em corpo como estrutura mental e emocional também. e pensar em você mesmo como o material de trabalho principal. assim, o meu investimento cada vez mais é em mim mesma. eu vou viajar agora, fazer uma exposição, não vou levar nada, é o que eu mais gosto de fazer. eu não levo nada porque está tudo comigo e onde eu chegar eu vou encontrar as coisas de que preciso, seja em uma loja de material de arte, seja em uma esquina. então, muitas vezes a ideia do desconforto também é um ponto de partida para você procurar o que é não só mais agradável, mas mais gratificante. mas não tem como eliminar o desconforto. eu me sinto muitas vezes sensível demais, mas não tem como eliminar. quer dizer, eu poderia tentar eliminar isso, poderia trabalhar nesse sentido: “quero me tornar mais cascuda”. mas prefiro viver com a minha pelezinha fina, sabe? talvez seja mais desconfortável, certamente é mais desconfortável em vários aspectos, mas em outros não e também é uma natureza, quer dizer, eu já tenho isso, então para

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mim é muito mais fácil, talvez. não sei se fácil, mas mais produtivo, eu tenho melhores resultados, entende? em tentar afinar minha sensibilidade, para não cair em uma pequena armadilha de baixo nível em qualquer esquina, saber me proteger de certa maneira, mas nunca criando casca, sabe?

ALuNA: Como você começa a abraçar isso de pulsar como se fosse em outra vibração, se você vai encontrando pessoas que conseguem conversar sem querer se compreender completamente, encontrando pessoas que não estão tão preocupadas, que não se importam em errar, falar e se soltar. Isso vai acontecendo, você vai encontrando essas pessoas?

vai, vai encontrando e tem horas que você fica um pouco... mas é isso, viver não é simples para ninguém. mas a gente está vivo e como a gente vai viver? acho que é difícil para todo mundo, mas não sei como é. ninguém sabe como é para o outro, né? por mais intimidade que você tenha, por mais comunicação que você tenha. é uma situação de desconforto estar vivo, também. quem sabe a morte é um grande conforto. (risos) não sei, a questão é que você vai como uma planta vai para a luz, de uma certa forma. a gente é muito mais animal do que quer crer e eu acho que isso é mara-vilhoso, não é? sinto que às vezes consigo chegar a um grau de

conforto que é me sentir um animal perfeito. de vez em quando eu me sinto um animal perfeito, é maravilhoso! sem pensar nisso, sem separar pensamento e ação. sem separar hoje, amanhã, ontem, sem pensar que está pensando, simplesmente pensa, age, respira, mexe. isso acontece no amor, acontece na arte, são as referências que eu tenho... e no mar, a natureza, né?

A.D.: O desconforto move.

o desconforto move, certamente, mas pode mover para um descon-forto maior ainda! (risos) às vezes é horrível! se você vai pensando como essas questões vão funcionando ao longo da vida, né? lembro que em vários momentos da vida eu me movia de um desconforto para um desconforto maior ainda e para um desconforto no limite do insuportável. hoje em dia tento equilibrar muito mais. porque tem essa coisa também do mito do artista. hélio oiticica falando “o artista é o vampiro de si próprio” zeus me livre! entendeu? mas tem essa onda, todo mundo já entrou nessa, você vira o vampiro de si próprio, quase todos morrem aos quarenta e poucos anos. eu já passei dessa fase, então pronto. não que eu desvalorize isso, muito pelo contrário, eu tive sorte, escapei, passei dessa fase. quer dizer, é interessante porque você pensa, a maior parte desses artistas que realmente foram consumidos pelo próprio fogo, muito

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fogo, um fogo lindo, maravilhoso. são vidas lindas, maravilhosas, mas geralmente terminam aos quarenta, ninguém aguenta. eu tenho vontade de envelhecer, acho que é um processo interessante, realmente muito interessante, e acho que em termos de arte você consegue, de fato, chegar a uma depuração, e eu estou nessa, estou a fim de envelhecer...

TANIA QuEIROZ: Pessoal, mais duas ou três perguntas... Certamente, está ótima a conversa, mas eu acho que ficaria...

é bom parar... posso, também, responder em três palavras. (risos)

ALuNO: Você falou do cansaço que sentiu em estar presente ali na exposição. Eu acho que tem uma clareza, uma sensibilidade nessa exposição que até eu também senti, sei lá, uma clareza, uma paz muito forte, bem sensível. E agora, pensando na pergunta já, sempre quando eu vejo uma exposição, penso muito no material que o artista utiliza. Você até depois falou de venda, e tem uma escolha desses materiais no espaço e você remetendo a própria presença muito forte de madeira, ferro, eu vejo muito no teu trabalho uma coisa de escolha, da escolha desses materiais. E a pergunta é exatamente sobre isso, sobre como é que a própria madeira, como é que se deu, se tem alguma relação do tempo,

maturação, não sei... eu me perdi um pouco no final... (risos) É basicamente isso, essa questão do material.

o material, para mim, eu vou sempre...

ALuNO: Até pensando no que você falou da galeria, como é que você pensa em tudo?

agora eu me perdi... você está falando da escolha das coisas?

ALuNO: É, tem uma coisa do inacabado, do renegado, parece que você foi a uma loja de demolição. Sabe aquela coisa que ninguém quer mais, que não interessa? Aí eu falei da galeria, se isso tem uma relação até como uma crítica daquela coisa que foi renegada passar a ser vendida, tem uma transvaloração do material.

é, isso eu acho muito bom porque é recolocar as ideias de valor. como está todo mundo muito ligado em preço e não em valor, é interes-sante conseguir transformar um valor abstrato, de uma situação totalmente desvalorizada, em uma situação desse valor aí, quanti-ficado pelo preço. então, isso é uma operação que me agrada muito, às vezes tirar uma coisa sem fazer nada nela, tiro do lixo, da rua, e vai

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Vista da exposição: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2011

Foto: Pat Kilgore

direto para o museu. no fundo, não interessa se aquilo foi achado, se eu herdei, se eu fiz, aquilo existe dentro de um universo que eu construí mentalmente, na verdade é uma construção de linguagem. o que eu construí, na verdade, é uma obra da linguagem, imaterial, totalmente imaterial e as coisas materiais dão, digamos, esse lastro.

então, qual é o mistério disso? aquilo faz parte de um conjunto, ou não significaria nada. só faz sentido porque faz parte de um conjunto, que é uma construção da linguagem ou da poesia, em que é o imate-rial que traz o valor dessa coisa material, ou aquilo não existiria. a linguagem é o que permite ver ou pensar aquilo como arte, e é o que permite depois fazer, aí sim, a operação que mais me interessa, que é poder ver o mundo de uma forma totalmente diferente.

Minha linguagem você não vai conseguir, nem eu, nem ninguém, amarrar em meia dúzia de frases. nem a minha, nem a de nenhum outro artista. estou me dedicando a uma aventura muito complexa e muito exigente, para mim mesma e para quem quiser compartilhar. e funciona, o incrível é que funciona, no sentido transformador. a ideia de que a arte transforma o mundo. acho que a arte contem-porânea tem essa possibilidade de criar um novo olhar em relação a tudo, sobretudo nesse mundo em que a beleza não é mais beleza. e pensar em beleza de uma forma muito mais verdadeira, e poder

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falar em beleza, e eu não estou falando em criar estranhamento, eu não quero chocar ninguém, eu quero criar beleza, uma coisa antiga, muito antiga. às vezes tenho a sensação de que o meu trabalho vira quase uma coisa primitiva, do tempo das cavernas, sabe? mas não, claro que não! é supercontemporâneo! e, sei lá, estou descobrindo, fazendo e descobrindo, né? é uma aventura que vai ficando cada dia mais complexa, quanto mais você começa a entrar no sistema, mais necessária a clareza, saber o que você está fazendo. mesmo que você não saiba exatamente o que você está fazendo. porque ninguém sabe muito bem o que está fazendo. porque, se eu souber muito bem o que estou fazendo, eu sei o que estou fazendo errado. quando você falou “eu sinto errado” ninguém sente errado, não existe sentir errado, não é bom isso? não existe! como você pode sentir errado? pode até ser um sentimento incômodo, inapropriado, desmesurado, todos os adjetivos, mas errado não tem para sentir. pode ser um sentimento ruim ou que você não tenha apreço por ele, mas não é errado, se você sentiu, sentiu.

então, é tentar pensar isso, não adianta tentar reduzir, não adianta pensar e dizer: aqui eu sei o que estou fazendo! eu sei o que estou fazendo desde a primeira exposição. sei muito bem o que eu estou fazendo. tenho confiança porque eu sei o que estou fazendo. nem certo nem errado, eu estou fazendo com o máximo que posso fazer,

estou fazendo com tudo o que eu posso fazer, então eu tenho con-fiança que não estou guardando nada, não estou me poupando. me cuido para caramba, cada vez mais, mas eu não me poupo, sabe? a reserva é no sentido de estar... pronto, já me perdi outra vez! mais uma pergunta para terminar...

ALuNO: Não é exatamente uma pergunta, mas um pedido de comentário. Eu queria que você comentasse um pouco sobre um espaço que tem na sua mostra, na exposição lá, que é um pouco velado, tem uma esfera branca dentro, e me chamou a atenção porque, na verdade, ele é uma coisa um pouco oculta que você se questiona inicialmente se aquilo é uma parede ou é uma passagem e das duas perspectivas você não vê aquilo de início, tanto de cima quanto quando você entra ali. Então, gostaria que você comentasse um pouco sobre isso.

é, as coisas são o que elas são, então é muito simples, eu também me pergunto o que é aquilo. e o que me interessa quando eu estou fazendo as coisas é justamente me perguntar o que é aquilo. senão já não acho tão interessante. ali, aquela situação existe por vários motivos, e por que ela acabou se tornando aquilo, principalmente. posso falar do ponto de vista mais objetivo, ou seja, defini que eu queria o espaço todo aberto e que eu queria uma grande parede na

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entrada, rebatendo a parede do fundo, ou seja, tudo aberto. porque tem um lado que é superestruturado no sentido formal, não no sen-tido formalista, mas no sentido formal como estrutura, modulação, tudo ao contrário desse vagar aí, né? a luz é assim, o espaço é assim e isso aqui rebate. eu não queria que tivesse nenhuma comunicação com a sala anterior e que você entrasse em uma exposição que você não visse nada e, quando você estivesse lá dentro, que você não visse nada lá fora, a não ser a própria paisagem. então fiz aquela parede que rebate, exatamente, a outra parede. e a luz, que é uma luz estranha que vai pro teto, ela é estranha por dois motivos: primeiro porque ilumina só uma parte bem pequena da sala. e só usa as luzes do museu, ou seja, eu resolvi trabalhar com toda a precariedade como um dado positivo. e aconteceu uma situação interessante ali, totalmente casual, porque tem o acaso que é uma maravilha, também. para a exposição que estava na outra sala foi construída uma parede, que tem o avesso ali à mostra. bastava eu fechar aquela porta corta-fogo para a sala ficar “normal”, ou seja, do jeito que seria se não houvesse aquilo. mas aquela estrutura, daquele avesso da parede, tem tudo a ver com outras estruturas que eu estou trabalhando e com outros trabalhos que eu já fiz em outros lugares. por acaso estava ali e eu gostei e deixei aquilo aberto. aos poucos fui usando, também, o que não estava previsto, mas eu tinha pedido para tirar, e quando eu fui começar a montagem, todos aqueles painéis que, na verdade, foi

waltercio caldas que fez para a exposição dele. são estruturas de alumínio com tecido que são encaixadas nas janelas, é um sistema muito bom para ter uma outra situação ali, no museu, porque você tem a luz mas não tem transparência. translúcido mas não transpa-rente. e eu comecei a usar aquilo e acabou criando aquela situação. é um espaço meio estranho, porque as pessoas poderiam ficar ali. você poderia entrar por ali também, todo mundo entra pela direita, mas é possível entrar pela esquerda. é uma série de situações que foi criando aquela situação ali.

ALuNO: Voltando àquela questão sobre o fato de você ter migrado do design para a arte, o que não ficou muito claro para mim foram os motivos, suas motivações, imagino até que seja pela liberdade da criação e pela sua busca de uma beleza menos rasa.

eu adoro design, mas a questão é que não dá para fazer tudo, né? foi uma situação muito simples, porque eu achava que eu nunca ia conseguir viver do meu trabalho. achava que, apesar de saber que eu estava fazendo uma coisa que tinha um espaço, seria meio complicado do ponto de vista...

ALuNO: Desculpa, qual trabalho, o de arte ou design?

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o trabalho de arte. o trabalho de design, pelo contrário, estava muito bem. gosto de design, gostaria até de trabalhar com design no futuro novamente, de outra maneira. acho importantíssimo, acho que o design, hoje em dia, é muito mal pensado. mas não dá para fazer tudo, é só isso. e naquele momento eu tinha no meu apartamento um escritório de design e um ateliê e comecei a perceber que pre-feria estar ali. a cada dia estava fazendo aquilo, arte, com mais vontade, e comecei a não ter mais tanta vontade de fazer design. e aí entrou o computador. foi uma sorte. ainda fiz alguns trabalhos com assistentes, eu sentada do lado. mas eu teria que aprender todo um outro sistema e investir em equipamentos, ou entāo largar. larguei! foi maravilhoso, porque eu detesto ficar no computador por muito tempo, aquilo agride visualmente, bombardeio de luz no olho, né?

ALuNO: Bom, Fernanda, você mencionou a questão da obra do caco de vidro, que você não queria vender, tinha, vamos dizer assim, um certo apego com a obra. Depois desse percurso artístico, ainda hoje, há alguma obra que você faz falando “Isso é para mim, isso eu não quero vender”. E tem uma outra pergunta: você falou da questão do material, por exemplo, eu vi as colheres feitas de ouro branco. Como se dá a questão da valoração no mercado de arte, quem dá esse preço, é a galeria, é o artista? Mas, hoje, por exemplo, como

fica a venda de um objeto feito de ouro com liga italiana e a venda de um que é um sarrafo tirado do lixo? Como se dá esse processo de valoração?

é genial, porque o preço não depende muito do material, o preço do trabalho, na verdade, é muito mais caro do que o preço do ouro, o ouro não é caro, na verdade, né? mesmo quando trabalho com ouro, nunca tem um supercusto de produção e o ouro é um mate-rial maravilhoso de trabalhar, realmente, não é à toa que é tão precioso. é mesmo um material maravilhoso de trabalhar, trabalho com ouro puro também, adoro, você corta com tesourinha, sabe? é um material, assim, delícia, realmente! então, por exemplo, tem um trabalho que é um círculo de ouro e o outro é um acrílico, é o mesmo preço, entendeu? ouro e acrílico, o valor material ali se dilui.

ALuNO: E esse apego com a obra?

esse apego é chato pra caramba, mas tem duas coisas: um é aquele trabalho que você quer guardar por questões idiotamente sentimen-tais. isso acontece, eu sou idiotamente sentimental, isso melhora, mas não cura não. depois tem o trabalho que você não pode vender porque é trabalho gerador, aí é outra história. o trabalho gerador é aquele que você precisa guardar porque ele vai te alimentando.

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tem algo que vai se desenvolver muito ali. às vezes faço um trabalho em dez minutos, mas passo meses, anos, olhando aquilo. tenho trabalhos inacabados de mais de vinte anos.

tenho um monte de desenhos e nunca fiz uma exposição de dese-nhos, até hoje. então, separo em pilhas, desenhos ótimos que são geradores e eu não posso me desfazer ainda, desenhos bons que eu posso vender e desenhos ruins que eu reciclo ou guardo. às vezes, eu vou na pilha de desenhos ruins e acho um desenho lindo e falo: “caramba! o que esse desenho está fazendo aqui? esse desenho é lindo!”. às vezes eu vou na pilha de desenhos bons e falo: “que porcaria de desenho!”. como saber o que é bom e o que não é bom, essa é uma das questões mais complicadas, sobretudo para quem está começando a trabalhar. como você vai distinguir as coisas na sua produção? isso é uma coisa que faz muita diferença, eu acho, e é o que vai fazer vários artistas seguirem muito bem adiante e outros nem tanto. e outros que se perdem: encontrou uma coisa ali e não seguiu aquilo e foi cair em uma outra situação, ou por pressões externas ou porque não teve a capacidade de ver. muitas vezes você não tem a capacidade de ver o que você fez na hora, e, nesse ponto, o mercado acaba atuando de uma forma muito peri-gosa, a minha sorte foi que durante anos eu não vendi quase nada, ficava tudo ali, então...

“porque pensar em

arte e vida como

amalgama é pensar

uma possibilidade de

uma vida muito mais

inteira, muito mais

livre ou significativa.

ou sei la que palavras a

gente pode juntar ai...”

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ALuNO: Quem dá o preço?

quem dá o preço é o galerista e o artista juntos. eu trabalho com a mesma galeria há 22 anos, então é uma delícia! acho dificílimo dar preço para o meu trabalho. parto do princípio de que todo preço está errado. mais um truque, né? preço certo não existe, está tudo errado! valor e preço são coisas muito diferentes e todo preço em relação à arte está errado. partindo desse princípio, é mais simples encontrar o preço mais correto possível. muitos critérios entram em jogo, mas o mais objetivo é ajustar o preço em relação aos preços dos trabalhos que já foram vendidos. jamais vender por menos. então, para mim, é bom manter o preço o mais baixo possível, sem desvalorizar o trabalho. encontrar os vários preços dentro do meu próprio trabalho é complicado, porque não é só formato e material que vão definir. o trabalho de ouro vai ter o mesmo preço de um trabalho de um material totalmente vulgar. e você vai pensando, tudo bem, é preço, só preço, não tem problema nenhum, não é valor. você tenta encontrar o melhor preço. geralmente quem sabe fazer isso da melhor maneira é o galerista consciencioso. o grande perigo é colocar o preço muito alto. é um grande perigo para os artistas jovens, um galerista que vai vender o seu trabalho por uma fortuna, porque se depois o trabalho não vender o problema é seu. o galerista arranja outro artista e você nunca mais vai poder

vender o seu trabalho por um preço razoável. muitos artistas bons entraram nessa enrascada.

ALuNO: Eu queria saber sobre o seu espaço de trabalho, sobre o seu ateliê, como funciona, se é muito habitado, pouco habitado, se é só seu...

sempre trabalhei em casa, gosto de trabalhar em casa. já morei sozinha, já morei casada, em dois casamentos, agora estou morando sozinha de novo. casei com dois caras bem especiais, porque lá em casa é um negócio meio selvagem. as coisas são relativamente organizadas e limpas, mas não tem distinção entre as coisas, quer dizer, é tudo um ateliê. um apartamento de 105m². nem grande nem pequeno, para uma pessoa sozinha é bastante confortável, para duas pessoas também. tem uma sala que só tem um canto, com sofá e uma poltrona, e o resto é tudo vazio, então eu vou mudando à vontade. fico experimentando, está sempre mudando.

ALuNO: Faxineira nem pensar...

faxineira eu já tive uma que era um gênio, mas era um pouco insensível. na época em que eu era casada. então, essa parceria

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amorosa tem que ser sempre uma parceria com gente que está muito ligada no teu trabalho também, e vice-versa. porque se não, não tem como morar ali, tem que ser alguém que realmente goste e eu tive a sorte de encontrar dois companheiros que realmente gostavam, tinham prazer de estar vivendo ali naquela coisa. tem um quarto que não tem nada, não tem arte, não tem nada, só tem um colchão no chão e nada. e tem um ateliê que é superlo-tado, uma cozinha que é tudo muito misturado, é sala de jantar e coleção, porque gosto de ter obras de outros artistas também. e agora eu tenho um ateliê legal, que é o meu preferido, que é o melhor quarto da casa, porque é o mais claro e é um ateliê que eu chamo de ateliê de pintura, é tudo branco e não tem acúmulo. e agora está maravilhoso porque está tudo no mam! semana que vem ainda vai ser uma semana assim, mas a outra semana vai ser barra pesada. eu poderia ter outro espaço, pensei em várias opções e resolvi não fazer nada. vou tentar de novo acomodar tudo em casa, porque, de fato, eu não gosto de trabalhar fora de casa. eu gosto daquela situação que você levanta de noite e você vê o trabalho no escuro. eu gosto de tudo misturado. então, por exemplo, boa parte das coisas que estão no mam vai voltar. uma mesa vai voltar a ser mesa da cozinha, a cadeira vai voltar a ser cadeira, o banquinho vai voltar a ser banquinho, então tem o trânsito dos objetos...

A.D.: E algumas coisas você dispensa...

vou ter que dispensar umas coisas, se vocês quiserem acolher coisas, eu estou pensando...

ALuNO: Mas, geralmente, você dispensa alguma coisa?

dispenso algumas coisas. eu tinha pensado em criar uma situação que seria “obras em depósito”, ou seja, você faz contratos com indivíduos ou instituições e deixa a obra em depósito durante cinco anos. depois quem ficou com a obra em depósito tem preferência de compra ou, se não quiser comprar, devolve. acho que para vários artistas poderia ser uma forma também de fazer circular as coisas. o complicado é que o pessoal, quando pega, para devolver às vezes custa. então tem que realmente fazer contrato. mas nesse caso tem várias coisas que são do museu, então não tem descarte, fica lá no museu mesmo. vamos ver, acho que é fazendo, né? estou um pouco desesperada, mas vai passar...

ALuNO: Eu posso guardar um pouco lá em casa!

todo mundo só quer guardar coisa pequena, eu quero saber quem é que vai guardar trambolho! coisa pequena eu guardo.

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lá em casa, na verdade, é muito divertido, né? é outra coisa. mas no museu é o máximo! que espaço maravilhoso! e aí, para mim, essa exposição é tentar colaborar com o que eu possa fazer de melhor para que o museu possa voltar a ser um espaço importante. e, mais do que importante, vivo, né? o potencial é muito maior do que está sendo usado. e espero que tenha contagiado um pouco quem viu a exposição, que fique com vontade de fazer coisas ali.

A.D.: Os cursos que havia antigamente ajudavam muito nisso.

isso eu tenho falado demais. mas falam assim... “mas tem o par-que lage!”. mas é diferente. o bloco escola era fundamental! e pode ter, inclusive, um intercâmbio maravilhoso entre o parque lage e o bloco escola do mam. seria uma ideia simples de ser implantada. o mam tem essa situação, é no centro da cidade, é um lugar onde todo mundo pode se encontrar. tem esse grande parque que pode ser usado, muito usado, tem cinemateca, tem uma história e uma arquitetura que só ali, né? não tem outro lugar, é um dos museus mais lindos do mundo. precisa recuperar sua potência original.

para mim essa exposição foi materializar essa ideia, de fazer uma exposição que possa também dar ao museu a noção de que uma

autonomia de programação não é necessariamente vinculada a grandes patrocínios. o museu conseguiu 20 mil reais, desses 20 mil reais, que eu saiba, foram gastos até agora 14 mil com tudo, o folheto, a edição de múltiplo. no último domingo vou distribuir os múltiplos, se eu conseguir me lembrar, se não, alguém me lembra. o múltiplo vocês também podem fazer, é só um lápis, aquele lápis que está lá, pendurado, com duas pontas, é só fazer.

é isso, tem muita coisa para fazer, espero que vocês estejam cheios de disposição! porque tem muita gente trabalhando, mas acho que a maioria dos artistas atualmente tem uma sede grande demais de inserção no mercado. é fundamental dar circulação ao trabalho e ganhar a vida fazendo aquilo em que se acredita. mas é preciso ainda muito cuidado e coragem, e uma disposição de amador, amor, muito amor.

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NotaQue difícil este processo de edição! Escrevo muito diferente do que falo, como quase todo mundo, ou pior. Falo muito, escrevo resumidamente. Jurei que nunca mais faço isso. Provavelmente vou acabar fazendo. Lendo, tive o prazer de discordar de mim e mudar. Cortei o que me pareceu inútil ou aborrecido demais. Muitas vezes foi necessário reescrever para dar mais fluidez, sem trair o tom descomprometido da conversa. Fiz o melhor que pude, mas fiquei insatisfeita. Espero que pelo menos guarde um pouco da alegria do encontro.

Saiba maisART GALLERY OF NEW SOUTH WALES. Material immaterial. Curator: Benjamin

Genocchio. Sydney, 1997. 63 p.

GALERIA LAURA ALVIM. Fernanda Gomes. Curadoria da programação Fernando Cocchiarale. Rio de Janeiro, 2013.

GALERIA LUISA STRINA. Fernanda Gomes. São Paulo, 1995.

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Eu queria agradecer o convite para estar aqui hoje neste encontro. Tenho um envolvimento de anos aqui com a escola, são trinta anos de Parque Lage, e eu sempre gosto de participar de projetos como este. Este projeto Fundamentação foi um grande avanço, e eu fico muito contente de estar aqui hoje.

Eu trouxe algumas imagens que vão mostrar um pouco do que acon-teceu durante esses anos todos, terminando com alguns trabalhos mais recentes que estou expondo1 na Galeria Silvia Cintra, aqui na Gávea. Queria convidar todos que ainda não foram.

Eu entrei na EAV em 1975, ano da fundação da escola. A EAV havia acabado de nascer. Temos que lembrar que era uma época

LuIZ ERNESTO

Muito branca, uma nuvem bordada descansava, 2012Resina epóxi, fibra de vidro, impressão inkjet.130 x 130 x 9 cm

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de ditadura. Aqui fora havia um camburão que ficava permanen-temente na entrada do Parque, e muitas vezes, ao chegar, você era revistado. Mão no capô do carro... jogavam sua bolsa no chão... Então, era uma história muito diferente dessa de hoje. Mas aqui era ao mesmo tempo um lugar muito rico, porque era uma espécie de oásis dentro de um ambiente de censura, de ditadura. Era um lugar efervescente, com muitas opções e eu, então, ficava prati-camente o dia inteiro fazendo aulas. Ao mesmo tempo, eu estava fazendo uma faculdade de engenharia, que foi, na verdade, a minha formação. Acabei me formando em engenharia. Eu ficava muito dividido entre estar na faculdade e vir para cá. Minha faculdade era em Petrópolis. Acabei optando pela arte.

Junto de minha exposição atual, lancei um livro,2 que mostra meu percurso nesses anos todos de carreira. Para fazer o livro, revi imagens de trabalhos que não via há muitos anos, que estavam guardadas. E, ao selecionar as imagens, eu me dei conta de quanto dois cursos que eu havia feito no passado, aqui na escola, foram marcantes para mim e como, na verdade, influenciaram tudo que fiz até hoje. Um era o curso do Rubens Gerchman, que era o dire-tor e fundador da escola; o outro, o do Roberto Magalhães. Eram completamente diferentes: Gerchman tinha um trabalho com influência pop. O pop no Brasil, que talvez nem se possa chamar de

pop, era mais político, mais crítico, não tinha aquele clima irônico, cínico, do pop americano. Ele dava um curso que se chamava Coti-diano e Expressão. Era um curso em que podia entrar tudo, aulas teóricas, aulas práticas, leitura de textos, mas era basicamente despertar nos alunos a atenção para o mundo próximo, do dia a dia, e fazer disso uma referência para o seu trabalho. Por outro lado, o Roberto Magalhães era o artista da fantasia, do onírico, do olhar para o mundo com o filtro da fantasia, do fantástico. Um olhar que atravessa a dimensão prática e imediata das coisas e vai para uma dimensão fantástica. São duas posições muito diferentes. Mas acabei chegando à conclusão de que o meu trabalho, ao longo dos anos, pendeu às vezes para um lado, às vezes para o outro. E eu só percebi isto ao fazer o livro.

Sempre tive interesse por objetos, coisas comuns do dia a dia. Eu fotografava esses objetos; coisas que a gente tem em casa, um copo comum de vidro, torneiras, cadeiras, coisas simples, banais, que são tão comuns que, às vezes, se tornam até invisíveis para nós. E a minha ideia era que, por um modo de fazer o trabalho, poderia modificar a natureza desse objeto, fazer que essa invisibilidade se transformasse em opacidade, que a imagem desses objetos pudesse reaparecer no mundo, não pelo seu caráter utilitário, mas por seu lado poético, um lado que pudesse indagar por que as coisas são como

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são. Por que elas não são diferentes? O que eu faço com esse objeto para ele ser uma outra coisa? Como eu posso mudar essa natureza?

De certa maneira, todo trabalho de arte faz isso. Desconfia do mundo. Temos uma tendência a naturalizá-lo, achar que as coi-sas são o que são porque o mundo se desenvolveu assim. Mas nos esquecemos de que quem está construindo esse mundo somos nós, quem dá sentido a esse mundo somos nós. E a arte, a filosofia, a literatura, quer dizer, as formas de expressão, de modo geral, são lugares onde se desconfia desses valores, desses sentidos. É onde você tem uma margem de deslocamento. A possibilidade de rear-rumar, de criar um certo embaralhamento nessas verdades que se enraízam de uma forma tão intensa em nossa vida. Eu queria fazer isto a partir de objetos que fossem familiares. Queria partir de coisas que fossem muito conhecidas, que todos temos em casa. Eu não escolhia objetos novos, eles não deveriam ter a impesso-alidade de um objeto que se compra em uma loja, novo, perfeito. Tinham que ser objetos que, de alguma forma, fizessem parte do dia a dia das pessoas e que isto deixasse neles traços, marcas que os preenchem de histórias, de memórias. Pode se ter uma relação com o objeto pelo uso, ou porque está na moda, pela marca... Objetos podem ser signos de distinção. Mas também temos coisas que nos foram dadas de presente, que nos lembram de pessoas. Às vezes

“De certa maneira,

todo trabalho de arte

faz isso. Desconfia

do mundo.”

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são espaços separados por um vidro. Um lugar que te deixa do lado de fora. E da mesma forma a pintura, porque se você pinta dessa maneira, hiperrealista, é como se o objeto pintado tivesse volume, tivesse uma profundidade. Mas a tela é plana, então você tem uma situação semelhante à da vitrine, você está do lado de fora. Naquele momento, eu queria lidar com três coisas: a ambiguidade de uma imagem que parecesse real, o aquário e a vitrine. E fiz, então, uma série em que misturava a imagem de sapatos com peixes.

Eram trabalhos muito demorados. Eu levava dois, três meses para terminá-los. Era muito lento. Esta série gerou o meu trabalho da Geração 80.3 Como vai você, Geração 80? foi uma exposição,4 em 1984, que ocupou a escola toda, e apesar de ser uma mostra que ficou muito marcada pela pintura, na verdade, o projeto original era de instalações, de ocupação dos espaços. Construí uma grande caixa, como se fosse um aquário, e dentro dessa caixa coloquei várias folhas de plástico transparente, penduradas em paralelo, como se fosse um varal de roupa, até o fundo dessa caixa. As paredes eram pintadas de azul, pintei sapatos sobre as folhas de plástico.

Num certo momento, decidi separar esses objetos de sua hibridi-zação com animais. Comecei então a sugerir a semelhança entre as formas, mas colocando lado a lado dessa vez a forma do animal

herdamos um objeto, então ele tem um significado na família. Eles podem nos lembrar de um lugar ou de uma época. Então, existem outras camadas mais sutis nos objetos, e nessas camadas é que sempre procurei atuar.

[Mostrando imagens dos trabalhos]

Este é um trabalho de 1982. Um desenho. Eu desenhava muito nesta época. Não pintava ainda. Fazia também litografia, que é basicamente desenho. E esse é um trabalho da época em que eu procurava modificar a forma dos objetos de modo a coincidir com certas formas de animais e criar uma espécie de hibridização. Eu queria que isto acontecesse por meio de semelhanças entre as imagens. Por isso o tratamento hiperrealista. São desenhos a lápis, a partir de fotografias

Algum tempo depois, comecei a pintar. Achei que podia introduzir a cor, introduzir a tinta, a tela. E esse foi o primeiro quadro que eu fiz. Na verdade é uma decorrência do trabalho anterior. Resolvi fazer uma série que se chamava Aquário, que era baseada em fotos que eu tirava de vitrines de sapatarias populares, geralmente de Copacabana. Comecei a perceber algumas aproximações entre vitrines, aquários e pintura: primeiro, o fato de que tanto um aquário como uma vitrine

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e a do objeto. Aí, surgiu uma exposição,5 que também foi aqui na escola, chamada Rio Narciso, que teve curadoria do Marcus Lontra e era uma exposição baseada na cidade do Rio de Janeiro. Os artis-tas foram convidados a fazer trabalhos que, de alguma maneira, se relacionassem com a cidade. E aí, como eu fazia essas analogias de formas, trabalhei com uma imagem bem clichê do Rio: o Pão de Açúcar. Associei a forma do morro à forma de um gato deitado. Era um trabalho feito em neon, uma instalação.6

Essas associações começaram a me cansar. Comecei a achar que o projeto já tinha se esgotado. Então me dei um tempo para começar a pensar em outras coisas. Passei um período sem expor e retornei ao desenho, que sempre foi um meio que me ajuda a pensar. Procurei experimentar uma maneira de fazer bem diferente do realismo dos desenhos que eu fazia até então. Fui chegando a um tratamento mais denso, escuro... um tanto expressionista... e iniciei uma série de tra-balhos em que meus objetos, absolutamente banais, apareciam com uma carga dramática. Iniciei, então, uma série de desenhos baseados na ideia de criar um clima denso a partir de imagens de coisas bobas, um cachorro-quente,7 uma televisão,8 um pneu,9 um frango assado...10

Aí, novamente, como aconteceu antes, passei do desenho para a pintura. E comecei então a desenvolver uma série de pinturas, com

“Então, existem

outras camadas mais

sutis nos objetos,

e nessas camadas

é que sempre

procurei atuar.”

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esse clima dos desenhos, usando também objetos banais (como sacolas de supermercado,11 por exemplo). Alguns desses objetos foram reaparecendo em outras séries ao longo do tempo. Como as torneiras.12 Fiz diversos trabalhos com imagens delas.

Para reforçar este clima dramático nas pinturas, que no desenho eu conseguia trabalhando contrastes intensos, fui pesquisar pintores que usaram esses contrastes. Caravaggio, por exemplo. E comecei a me interessar pela representação da luz na história da pintura. Na Idade Média, ela estava atrelada à aplicação da folha de ouro. O ouro na pintura mediaval era a luz divina. A iluminação das velas nas igrejas refletia no dourado dos quadros e criava um clima místico, religioso. E eu comecei então a usar tintas metálicas.

Durante esse período, coincidentemente, ganhei uma bolsa de estudos e fui para a Escócia. Então, lá, fui pesquisar in loco algumas coisas que podia ver em igrejas e castelos medievais e museus.

Nessa época, além das fotos que eu fazia dos objetos, usava também como referência encartes publicitários de lojas de departamentos, que vinham dentro de jornais. Comecei a perceber que, às vezes, em um encarte desses, aparecia, por exemplo, a imagem de um relógio de pulso enorme e a de uma geladeira ao lado, bem pequena.

O tamanho mudava em função do interesse do vendedor, do anun-ciante, de chamar a atenção para um certo objeto e não mantinha qualquer relação com a escala real de tamanhos que esses objetos tinham entre si. Isto é exatamente o que era a pintura medieval, que não lida com perspectiva. O tamanho dos personagens depende da importância que eles têm na história. São tamanhos hierárquicos. Comecei, então, a juntar os meus objetos do cotidiano (muitos eu pintava a partir das imagens dos encartes) com certas estruturas da pintura medieval, e nesse processo, além das tintas metálicas, comecei a colar rendas de crochê do Nordeste sobre as telas, imi-tando os ornamentos das pinturas religiosas. Usei alguns trabalhos de Giotto como modelo, substituindo os personagens por objetos.

Este ursinho,13 por exemplo, é tridimensional, já é um trabalho em fibra de vidro. Eu esculpi em espuma de poliuretano, revesti com a fibra e ele está parafusado no chassi.

Mais tarde, realizei alguns trabalhos tridimensionais utilizando a fibra de vidro. Fiz uma exposição no Paço Imperial que se chamava Relação platônica.14 Eram cinco grandes torneiras feitas em fibra de vidro, presas à parede. Embaixo de cada uma, há uma placa de mármore, sobre a qual imprimi, em serigrafia, uma fotografia de um balde vazio visto de cima.

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Um outro trabalho, em resina, chama-se Nau frágil:15 uma folha de plástico transparente, como eu já tinha usado lá na Geração 80, presa em um canto de parede, com esse barquinho flutuando no meio dela.

Experimentei também outros materiais, como o mármore.

Em uma outra exposição no Paço, apresentei16 uma prateleira que ficava na parede e essa camisa dobrada que eu esculpi em mármore.

Na mesma exposição, mostrei uma gavetinha que tinha um enve-lope também em mármore, com o título de Parla!. 17

Esse18 é outro trabalho da mesma exposição: aviõezinhos, como aqueles dobrados em papel, também em mármore. Eram cinquenta, ficavam no chão.

Fiz também alguns desenhos sobre placas finas de fibra de vidro. Eram translúcidas e eu desenhei objetos que se relacionavam à água. Depois de desenhá-los, jogava água sobre eles, de modo a provocar o apagamento de algumas partes. O nome do trabalho era Desenhos lavados.19

Sutis sensações libertavam momentos encerrados na memória, 2012Resina epóxi, fibra de vidro, impressão inkjet.104 x 180 x 9 cm.

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A partir daí, iniciei o trabalho que venho desenvolvendo e que vai terminar na exposição que estou realizando. São placas de fibra de vidro que se assemelham a quadros (ficam na parede), em que eu insiro fotografias, pintura e texto.

O texto foi entrando aos poucos. Inicialmente, uma única palavra, uma palavra que procurava não ter uma relação direta com a ima-gem, mas que “abria” o seu sentido.

Esse20 é um trabalho que tem a ver com aquela instalação do Paço, mas aqui é plano. São fotografias de torneiras inseridas dentro das camadas de fibra de vidro.

Eram21 bastante transparentes, eu podia controlar nas camadas de fibra o grau de transparência da placa, então certas placas são mais transparentes que outras e quando bate a luz tem-se uma ideia de água.

Outra série foi a dos tijolos, nasceu por acaso, quando eu comecei a fotografar tijolos que estavam empilhados durante uma reforma em minha casa. O tijolo como imagem tem uma outra lógica, eu posso fazer com ele o que com o tijolo real eu não poderia fazer, então comecei a organizá-los como formas, como se fossem abstrações geométricas. Este é chamado Murmúrio.22

Esses são trabalhos mais recentes. Terminei a série dos tijolos e comecei a utilizar a imagem de outros objetos. Como comentei anteriormente, me interessam muito os objetos que não são novos, mas usados. Objetos que tenham as marcas do tempo, que insinuem a impermanência das coisas.

Esses trabalhos atuais são também uma forma de lidar com ques-tões que não pertencem à tradição da pintura. De repensá-las. De discutir seus limites. Eles se situam em uma categoria indefinida, entre a pintura, o objeto, a fotografia...

Há algum tempo comecei a introduzir frases também. Ao invés de usar só uma palavra, surgiram sentenças. Comecei a elaborá-las de uma forma um tanto poética, e hoje, realmente, fazem parte de uma etapa bastante trabalhosa.

Na exposição atual, busquei um clima de silêncio, contemplativo, e resolvi tirar praticamente a cor do trabalho. Guilherme Bueno escreveu o texto principal do livro e deu o título de Pintura muda. Achei que cabia muito bem na exposição e tornou-se o título dela.

ALuNO: Gostaria de saber o tipo de influência que você tem na hora de escrever as frases. Como você disse, é uma das

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partes mais difíceis atualmente, então eu gostaria de saber, mais ou menos, como é esse processo de inspiração, de escrever e ver se está bom, se não está bom, se você tem todo um trabalho de mostrar isso para alguém, talvez, ter uma autoavaliação, como é esse processo?

É, na verdade, isso acabou sendo uma coisa nova para mim. Tenho uma compulsão por leitura, sou um leitor viciado, é algo que real-mente me dá um prazer muito grande. Sempre ando com um caderninho, porque às vezes leio uma coisa e encontro uma palavra, associo a outra e vou anotando. Vou arquivando uns retalhos de textos. Uma palavra solta... uma expressão... algo que ouvi alguém falar... Eu não tenho uma influência direta de algum autor espe-cífico... A imagem vem em primeiro lugar. Dificilmente faço uma frase antes de saber qual é a imagem. Escolho o objeto, faço a foto, trabalho essa imagem no photoshop e envio para o birô imprimir em um acetato. Aí, com a frase já decidida, vou para o ateliê fazer a placa de fibra. Às vezes, tenho uma imagem e tenho essas ano-tações, esses rascunhos, aí, sento na frente do computador e vou escrevendo, fico lá, às vezes, uma semana ou mais, porque a sentença tem que ter uma certa contenção, não vai passar de três linhas, tem que ter um certo ritmo, tem que ter uma certa sonoridade e uma maneira, também, de falar a coisa. Uma legenda não é uma

explicação da imagem, é uma segunda coisa, ela funciona junto. Então, não há um processo fixo.

ALuNO: Como é esse processo de fazer essas placas de fibra de vidro?

É um processo industrial, chama-se laminação. É o mesmo processo usado na fabricação de barcos, móveis de jardim, car-rocerias... Na verdade, a fibra de vidro é uma espécie de palha de vidro. Tem-se que encharcá-la com resina, trabalha-se por camadas sobre uma fôrma, e é entre essas camadas que eu aplico a foto, o texto, a pintura, às vezes pigmentos... Mas é tudo feito por trás, entendeu? Quer dizer, eu só sei como ficou o trabalho, de fato, quando ele sai da fôrma.

ALExANDRE DACOSTA: Eu me lembro na minha adolescência, não sei se você fez isso, mas eu roubei algumas placas de trânsito na rua, na minha adolescência, aquela coisa, o máximo da rebeldia! E me lembro que as placas eram de fibra de vidro, não eram parafusadas, eram coladas naquele suporte, e, às vezes, coçava a mão, a fibra tem isso...

É, não só a mão, como várias outras partes do corpo... [Risos]

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A.D.: Já que você está nesse processo da fibra, você tem algum produto que passa, realmente coça ou a fibra já não coça tanto como antigamente? Enfim, uma pergunta idiota, mas...

Não, tem razão, o material é barra pesada, na verdade! Eu uso máscara, luva e com o tempo você aprende a manusear. Não é que não coce, mas tem um jeito. Meio que naturalmente você vai aprendendo. Uso uma luva de couro, mas, às vezes, tenho que cortar pedaços da manta de vidro... você corta puxando... mas, ao mesmo tempo, com a luva você perde o tato, para fazer uma coisa menor fica difícil e aí eu acabo tirando. A mesma coisa é a máscara, uma máscara própria para vapores, o próprio pó de vidro é perigoso... Mas tem uma hora em que você não aguenta o calor e acaba tirando.

A.D.: Você trabalha com assistente?

Eu já tive assistente, mas tenho um certo problema com isso, eu não sei se fico atrás dele ou se vou fazer outra coisa... eu começo a ficar meio nervoso no ateliê, aí não ajuda. Tenho uma maneira de trabalhar não muito linear... faço uma coisa um pouco, aí depois faço outra, volto para aquela... se eu tenho um assistente, tenho

que criar um modo de trabalhar em função do aproveitamento dele. Em certos momentos ajuda, mas gosto muito dessa solidão do ateliê, gosto de poder sentar ali, ler, dar um tempo... pensar... Não é uma fábrica com horário a cumprir. Não precisa estar tra-balhando o tempo todo, mas é importante estar ali. Mas, se tiver um assistente, o ritmo muda. A exposição atual eu fiz inteira sozinho. Acho que você vai descobrindo um pouco mais sobre o próprio trabalho à medida que você o faz. Mas a impressão das fotos é feita em uma gráfica. Por mais que você planeje antes, e eu tenho que planejar, algumas decisões surgem na hora, você nunca faz exatamente o que você planeja. E aí surgem coisas na hora que só você pode resolver.

ALuNA: Eu queria entender um pouco mais de onde você tirou a ideia, na verdade, de onde você veio antes de ser artista plástico.

[Risos] Antes de ser artista plástico eu não era muita coisa não! Eu era estudante, como falei, a minha formação universitária foi em engenharia mecânica. Eu entrei para a faculdade em 1974, só que passei para uma faculdade em Petrópolis e fui morar lá. Mas, ao mesmo tempo, por ter saído de casa, tive maior liberdade de vir, praticamente todos os dias, ao Rio para estudar aqui no

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Parque Lage. Geralmente as aulas eram à noite na faculdade. Eu chegava aqui de manhã e no final da tarde eu voltava. Então, eu fiz essas duas escolas juntas, acabei me formando em engenharia, mas nunca exerci. Mas, com curso superior, pude ganhar uma bolsa do Conselho Britânico e fui para a Escócia em 92. Trabalhei em um estúdio de gravura lá durante quase um ano, em Glasgow.

A.D.: De qualquer maneira, é desde pequeno que você tem um dom nato de desenho de observação. Eu dei uma olhada no seu livro, ontem eu levei o livro para a turma, falei de hoje e dei uma lida, assim, rapidamente, dei uma passada de olho e vi que tinha uma coisa de você ficar debaixo da mesa do seu pai desenhando. Seu pai era engenheiro, né?

Meu pai era médico...

ALuNO: Mas você já desenhava ali, desde pequenininho, então?

Desde pequeno. Eu tenho dois irmãos que iam jogar bola, aquela coisa, e eu ficava ali em um mundo, assim, meio delirante. Eu me lembro que meu pai tinha uma mesa, grande, onde ele trabalhava. Ele costumava levar papel ofício para casa e me dava um bolo. Eu deitava no chão, embaixo da mesa dele e ficava horas desenhando!

volteando sobre si mesma ora encobria ora revelava, 2012Resina epóxi, fibra de vidro, impressão inkjet.70 x 100 x 5 cm

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Era uma coisa que, realmente, eu adorava fazer, desenhar, desde pequeno eu fazia isso. Outra coisa que foi também muito marcante para mim: um apartamento que eu frequentei muito, também durante a infância, que era o apartamento da minha avó. Era um apartamento muito grande em Botafogo, com objetos muito antigos e cheios de histórias. Lá havia um álbum de desenhos, de caricatu-ras feitas por Araújo Porto-Alegre, que eu herdei. Eram desenhos neoclássicos, muito bem feitos, muito bonitos, e eu gostava muito de ver esse álbum. Toda vez que eu ia a esse apartamento, queria ver o álbum. E havia ainda outra coisa que me surpreendia. Lá, nada saía do lugar, os objetos, durante cinquenta e tantos anos, estavam sempre no mesmo lugar, a mesma mesa, a mesma arrumação... acho que isso teve influência nessa coisa dos objetos, havia uma sensação de perenidade ...

A.D.: Você fez aula com quem aqui, você vem em 1975 para cá?

É, entrei em 1975...

A.D.: Era o Gerchman o diretor?

Era o Gerchman, era o primeiro ano da escola. Eu entrei no final, já tinha mais ou menos uns meses de funcionamento, mas eu entrei

aqui e tinha uma espécie de curso básico, assim como é o de fun-damentação hoje, era um curso com vários professores, eu fiz esse básico. Fiz muitos cursos: modelo vivo, desenho de observação e, como contei, os dois cursos mais importantes foram o curso que o próprio Gerchman dava, que se chamava Cotidiano e Expressão, e o curso do Roberto Magalhães, que eu levei um tempo para entrar, porque era um curso muito concorrido, você tinha que se inscre-ver, fazer uma entrevista, às vezes não tinha vaga. E fiz outros, fiz gravura, lito, mas os dois cursos realmente mais marcantes para mim foi esse do Gerchman e o do Roberto.

A.D.: Lito era quem?

Lito era o Antônio Grosso, que era um grande litógrafo, era um pesquisador do processo da lito e, na verdade, foi um cara muito importante para eu começar a dar aula aqui. Uma professora de lito havia saído e abriu uma vaga... O Grosso me convidou para substituí-la. Foi aí que eu comecei a dar aula, na litografia.

ALuNO: Você disse que trabalha sempre com série, não é? Mas você trabalha as séries de uma maneira continuada ou você trabalha várias séries ao mesmo tempo? Trabalha com duas ou uma série leva a outra?

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Uma série depois da outra. Porque a série, na verdade, não surge de ideias esporádicas que vão aparecendo, são ideias que nascem a partir de um processo, o próprio trabalho começa a te mostrar alguns indícios, possibilidades, você começa a “ler” o próprio trabalho... Mas há sempre um momento de transição, alguns trabalhos nem sempre são muito bons... mas eu não trabalho em séries paralelas.

ALuNO: Na série de Aquários, quanto tempo você levava para finalizar uma pintura daquelas? E você acha que, se não tivesse um planejamento, você conseguiria um resultado interessante, se você saísse um pouco da fotografia e partisse da memória ou alguma coisa assim?

Olha, eu levava muito tempo, realmente, era um trabalho que levava às vezes três meses... eram muitas horas de ateliê. Eu tinha que ter uma disciplina que hoje acho que não teria mais. Mas o que me interessa realmente é lidar com a imagem. Quer dizer, mais do que o objeto em si, me interessa a imagem do objeto, porque com esta imagem posso mudar o objeto, posso mudar sua natureza, aquilo que a imagem representa... Então, não me interessa muito a memória pessoal que eu teria dele ou observá-lo diretamente, me interessa lidar com o objeto depois que ele se torna uma imagem.

“Quer dizer, mais do

que o objeto em si, me

interessa a imagem

do objeto, porque com

esta imagem posso

mudar o objeto, posso

mudar sua natureza,

aquilo que a imagem

representa...”

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Como o cachimbo de Magritte... Então, a fotografia sempre foi importante para mim, é meu ponto de partida.

TANIA QuEIROZ: Você falou da litografia, como foi presente na sua formação. Como é que você vê esses procedimentos da gravura, como eles reverberam no seu trabalho hoje?

Eu acho que esse trabalho, Tania, é um somatório de tudo que eu fiz. Por exemplo: faço esse trabalho ao contrário, eu faço o trabalho pelas costas, é tudo invertido, que é exatamente como se trabalha na gravura. Tenho que fazer marcações na fôrma como registros, como se faz para colocar o papel na gravura. Tenho que riscar a fôrma toda para colocar a foto no lugar correto, Está tudo medido. E isto veio da gravura, da lito. E não deixa de ser um processo de impressão, é uma impressão inkjet. Então, tem a fibra que eu usava lá atrás nos objetos, tem a fotografia, que sempre serviu de base para mim, e esse trabalho invertido que é um processo de gravura.

Notas1. ERNESTO, Luiz. Pintura muda. Exposição individual realizada na Galeria Silvia

Cintra+Box 4. Rio de Janeiro, de 8 de novembro a 8 de dezembro de 2012.

2. ERNESTO, Luiz. Luiz Ernesto: Antologia 1982-2012. Rio de Janeiro: Réptil Editora, 2012. 160p.

3. ERNESTO, Luiz. Aquário, 1984. Instalação. Pintura sobre plástico transparente e madeira.

4. Como vai você, Geração 80?. Exposição coletiva que reuniu trabalhos de 123 artistas, realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, aberta em 14 de julho de 1984.

5. Rio Narciso. Exposição coletiva realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, 1985.

6. ERNESTO, Luiz. Instalação para a exposição Rio Narciso, 1985. Neon. Dimensões: 200 x 200 cm

7. ERNESTO, Luiz. Cachorro-quente, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 70 x 100 cm.

8. ERNESTO, Luiz. TV, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 72 x 100 cm.

9. ERNESTO, Luiz. Pneu, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 70 x 100 cm.

10. ERNESTO, Luiz. Frango, 1988. Grafite sobre papel. Dimensões: 70 x 100 cm.

11. ERNESTO, Luiz. Sacolas, 1987. Grafite sobre papel. Dimensões: 160 x 200 cm.

12. ERNESTO, Luiz. Torneira, 1987. Grafite sobre papel. Dimensões: 160 x 200 cm.

13. Ernesto, Luiz. Urso, 1990. Óleo, fibra de vidro e esmalte sobre tela. Dimensões: 80 x 200 cm.

14. Ernesto, Luiz. Relação platônica,1996. Resina de poliéster, fibra de vidro e serigrafia sobre mármore.

15. ERNESTO, Luiz. Nau frágil, 1997. Instalação. Resina de poliéster e plástico. Dimensões: 150 x 150 x 200 cm.

16. ERNESTO, Luiz. De circunstância, 1999. Mármore e madeira. 36 x 45 x 23 cm.

17. ERNESTO, Luiz. Parla, 1999. Mármore e madeira. 35 x 25 x 8 cm.

18. ERNESTO, Luiz. Fora de alcance, 1999. 30 “aviõezinhos” de mármore. 12 x 25 x 3 cm (cada).

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LUIZ ERNESTO

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19. ERNESTO, Luiz. Desenhos lavados, 1999. Grafite sobre fibra de vidro. Série de 12 desenhos. Dimensões: 50 x 70 cm cada.

20. ERNESTO, Luiz. Ligação, 2012. Resina de poliéster, fibra de vidro e impressão inkjet. Dimensões: 125 x 200 x 5 cm.

21. ERNESTO, Luiz. Deriva, 2002. Resina de poliéster, fibra de vidro e impressão inkjet. Dimensões: 150 x 106 x 5 cm.

22. ERNESTO, Luiz. Murmúrio, 2004. Resina de poliéster, fibra de vidro e impressão inkjet. Dimensões: 150 x 106 x 5 cm.

Saiba maishttp://www.luizernesto.com.br/

GALERIA ANNA MARIA NIEMEYER; PAÇO IMPERIAL. Luiz Ernesto. Rio de Janeiro, 1996.

GALERIA PAULO KLABIN. Luiz Ernesto: pinturas – aquários. Rio de Janeiro, 1984.

LUIZ Ernesto: antologia 1982 – 2012. Textos de Agnaldo Farias, Guilherme Bueno, Marcus de Lontra Costa, Paulo Sergio Duarte. Rio de Janeiro: Réptil, 2012. 453 p.

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A proposta deste encontro é apresentar algumas imagens de tra-balhos representativos da minha atividade como artista e falar um pouco sobre o percurso da minha trajetória. Quando acabar a apresentação, considero interessante uma troca de ideias para um melhor entendimento desses trabalhos.

Em meados dos anos 80, comecei a trabalhar com arte. Minha forma-ção inicialmente foi em Direito, que não tem absolutamente nada a ver com artes plásticas. Então comecei a fazer alguns cursos no ateliê da artista Maria Teresa Vieira, que frequentei durante dois, três anos, e cursos de outros artistas também. Depois, ingressei nos cursos do MAM, que infelizmente não existem mais. A Escola de Artes Visuais eu frequentava para conversar, encontrar artistas e amigos.

RICARDO BECKER

projeto cisco, 2012Vista da instalação realizada no Cento Cultural Laura Alvim - Rio de Janeiro

Foto: Wilton Montenegro

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RICARDO BECKER

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O primeiro curso no MAM foi de desenho, e entrei com um colega artista plástico, Marcos Chaves. Fizemos uma trajetória, mais ou menos juntos: ateliê da artista Maria Teresa Vieira, depois o MAM. Nesse curso específico do MAM, fiquei muito frustrado porque o professor chegou e falou: “Amigo, você tem que ir para um curso mais básico, porque você não sabe desenhar nada!” Fiquei abalado e fui fazer um curso de modelo vivo – a coisa mais careta e arcaica. A situação era a seguinte: algumas senhoras desenhando uma modelo, nua, e eu não conseguia desenhar de jeito nenhum! Tentava, rasgava o papel e via aquelas senhoras desenhando com perfeição; aquele desenho maravilhoso, falei para mim mesmo: “Poxa cara, eu não sei desenhar, não vou ser artista, mas eu quero ser artista!” De repente, o que acontece? Um toque do professor que se tornou um grande amigo, até hoje – Manoel Fernandes, um ótimo artista que mora em São Paulo. Ele chega para mim e fala: “Ricardo, o que é isso que você está fazendo? O que é isso que está aí?” Respondi: “Ah! É um desenho”, e ele: “Ricardo, é o teu desenho! O teu desenho é assim. Você não precisa desenhar igual a essas senhoras que estão do seu lado, e o seu desenho é muito mais interessante do que o delas. Vai embora, vai para casa trabalhar!”.

Acatei; fui para casa e comecei a dar com a cara na parede; pintar, desenhar, estudar; decidi fazer cursos teóricos para uma formação

mais completa. Ao mesmo tempo, passei a vender meu trabalho e a frequentar algumas galerias e dessa forma começo a ingres-sar no mercado de arte. Por acaso, tinha um grupo de amigos e fomos conhecendo pessoas do meio, colecionadores, críticos de arte. Uma crítica de arte, muito amiga, Lígia Canongia, na época, crítica de arte do O Globo, ajudou muito o grupo. Havia crítica de arte no jornal, o que era muito bom e que hoje em dia não existe, praticamente. A exposição que ela idealizou – “7 x ar”, no MAM, deu uma alavancada em nossas carreiras. Éramos sete artistas; uma exposição de esculturas, cada artista iria apresentar uma peça. Foi uma exposição bastante interessante, em 1985. Tivemos a chance de contar com a generosidade dela e de outras pessoas. Mas também fazíamos muitas ações individuais e conjuntas; não ficávamos numa atitude de esperar, “Ah, eu quero a galeria tal...” Nossas ações conjuntas eram importantes; alugávamos uma casa, convidávamos pessoas do meio de arte, críticos, colecionadores. Assim, fomos ingressando no mercado, porque queríamos viver seriamente de arte. Então, fazíamos essas ações, fomos colocando nosso trabalho na rua.

E aconteceu, no MAM; todo aberto, todo de vidro. E que durante muitos anos tinha as janelas tampadas com compensado simu-lando duas grandes paredes nas laterais do espaço. Conversamos

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com o Carlos Zuñiga, diretor de montagem do museu, e falamos: “Gostaríamos de tirar todas essas tapadeiras, todos os módulos, porque a gente quer o museu aberto”. O espaço do museu em que iríamos expor foi projetado sem paredes; as paredes eram falsas. Desvelamos o museu; ficou superbacana porque se via a cidade, os trabalhos conversavam com a cidade. Interação.

Essa exposição no MAM foi determinante; a coisa começou a acon-tecer, o grupo era bem interessante; todos trabalhando seriamente com propostas visuais diversas e determinação. Conversávamos muito; tínhamos um ateliê: eu, Marcos Chaves, Marcus André, André Costa, e fazíamos uma baderna lá dentro! Era um galpão imenso na Tijuca; convidávamos artistas de São Paulo; vinha o Leonilson, fazíamos trabalhos a dez mãos; enfim, era uma curtição! Essa coisa da união é bem legal; depois, por questões da vida, cada um seguiu o seu caminho. As artes plásticas têm essa caracterís-tica; acabam produzindo carreiras solo. Às vezes sinto falta desse encontro, dessa troca de ideias: “Então, o que você está achando do trabalho?”. Isso acabou. Mas, no princípio, foi um pouco assim.

Depois fui morar fora do Brasil e quando a gente sai, as pessoas esquecem um pouco da gente. Passei sete anos em Portugal. Apesar de ter feito duas ou três exposições aqui, fiquei muito tempo sem

vir ao Brasil. Por outro lado, comecei a fazer uma carreira em Por-tugal; exposições em galerias de Portugal e da Espanha; participei de feiras. Trabalhei também com publicidade, porque junto com as artes plásticas sempre mantive uma relação de trabalho com publicidade. Era diretor de arte; esse trabalho em agência durou quinze anos. Então, começou a bater a saudade daqui; o país estava melhorando, também. Quando deixei o Brasil, estava vivendo um momento difícil, não saí por causa dessa crise; na verdade, viajei para me casar, porque me apaixonei por uma portuguesa.

Voltei ao Brasil em 2000, com uma exposição individual agendada no Paço Imperial – Entre algum lugar nenhum. Uma exposição que idealizei em Portugal.

Agora, gostaria de falar um pouco do meu trabalho propriamente. A minha trajetória sempre privilegia o conceito, a ideia, o projeto. Os projetos não têm uma continuidade formal; a continuidade é muito mais conceitual. Então, trabalho com várias mídias – escul-tura, desenho, pintura, instalação – e diversos materiais: alumínio, madeira, vidro, muito com vidro. E procuro passar para os meus alunos essa “fórmula” para que não fiquem presos a uma questão. Percebo que muitos artistas trabalham com apenas um tipo de material ou mídia ou até mesmo se prendem a um determinado

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tema. Seja lá o que for, essa postura acaba limitando o pensamento, nesse caso o artista fica meio sem saída; passa a ser artista de uma obra só e isso acontece muito! Para me proteger dessa situação, priorizo os projetos porque propõem novos desafios... Nenhum vai ser igual ao outro.

O projeto Passeio da sombra vai ao encontro dessa reflexão de pro-por uma multiplicidade de caminhos, uma pluralidade vertiginosa dos possíveis, questão tão atual na arte e vida contemporâneas. O Passeio da sombra, que realizei em 2004, era uma instalação formada por 500 portas de dimensões variáveis que formavam um labirinto e tomavam conta da Cinelândia. Esse trabalho foi pontual; no mundo contemporâneo estamos como em um labirinto. Por que não criar esse labirinto? Faço, então, uma maquete no meu ateliê, um trabalho caro e complicado para execução; um amigo vê essa maquete e fala: “Ricardo, vamos realizar esse trabalho, eu tenho x de grana para fazer essa peça, topa?” “Claro.” E estava tendo no Rio um festival de teatro internacional que envolvia arte, com o tema labirinto, e o Festival permite que o projeto se realize na Cinelândia. Foi superdesafiador, porque gosto de fazer trabalhos de grande escala. Foi assim, então, que realizei minha primeira obra em um espaço urbano. Esse trabalho teve que ser montado de madrugada; com uma equipe de 20 pessoas, em duas madrugadas

apenas. Lembro-me quando a instalação ficou pronta; todos exaus-tos... Fui para casa e no dia seguinte não tinha vernissage, não ia receber convidados. Fui sozinho para o Centro e ao sair do metrô fiquei com medo.“Cara, qual vai ser a reação do público?” Não estava fazendo uma exposição, digamos, num museu ou galeria aonde as pessoas vão para ver arte. Saio do metrô e vejo aquele “monstro” na minha frente. “Cara, eu criei isso!” Começo a ver e ouvir o que as pessoas falam... O trabalho atravessava a praça, fazia uma diagonal, saía quase na beirinha da calçada do Teatro Municipal e ia até o bar Amarelinho; tinha uns 50 metros de comprimento e ia fazendo esse labirinto; não era um labirinto para se perder, era uma alusão. Foi interessante porque separei a praça, e era necessário dar a volta para poder ver o trabalho. Pela manhã, fiquei meio frustrado porque a reação das pessoas era não entrar no labirinto, as pessoas passavam “batido”. Ouvia alguns comentários: “Ah, isso é coisa do Lula!”, um negócio meio favelão, o trabalho era meio povera, era forte pra caramba! Dialogava muito bem com a cidade, conversava com os prédios; teve um momento em que parecia até que as portas tinham voado desses prédios. Passei o dia inteiro observando e enquanto pela manhã as pessoas estavam indo para o trabalho e ninguém queria perder tempo, depois, à tarde, todo mundo entrava. À noite, então, as pessoas interagiam com o trabalho e fiquei super-feliz! Em determinado momento encontrei o Paulo Herkenhoff,

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iluminação. Enfim, estou à frente do meu trabalho; ele é dirigido por mim. Essa última exposição, projeto Cisco, era uma exposição com trabalhos que tinham uma questão de engenharia complicada; tinham que estar em balanço, ficavam no ar. Essas questões que surgem no decorrer da execução do projeto têm que ser resolvidas; então, é o engenheiro, o arquiteto, o marceneiro, que eu não chamo de marceneiro, mas de “meu mágico”, porque ele é o máximo, que resolve tudo. Essas parcerias são fundamentais para a execução correta do trabalho. Em relação às minhas aulas, procuro chamar a atenção para que os alunos aprendam a defender o seu trabalho, entendam o que estão fazendo.

Quanto à questão da montagem de um projeto, seja para uma gale-ria, museu ou espaço público, penso e planejo o que melhor vai se adaptar ao espaço. É preciso entrar no espaço físico do local da exposição para saber o lugar de cada coisa e dessa forma facilitar o trabalho da equipe. É interessante o trabalho estar todo plane-jado para evitar erro, porque é sempre com pouco dinheiro que se trabalha.

ALuNO: Eu queria que você comentasse um pouco sobre uma das obras; aquela que é uma pedra e uma lupa, e a lupa transforma a proporção dessa pedra...

na época, diretor do Museu Nacional de Belas-Artes e ele falou: “Becker, eu adoro esse trabalho, todo dia quando acabo de almoçar, venho aqui e fico apreciando, olhando teu trabalho”. Ocorreu uma situação de liberdade e interação que foi muito interessante; até grafitaram algumas portas. Já montei esse trabalho em museu e foi vandalizado; na rua o pessoal respeitou muito mais. E tinha pensado: “Vão destruir tudo, vão derrubar”.

Quanto à execução dos trabalhos; gosto de dirigir e coordenar os projetos do princípio ao fim, desde a concepção da ideia até colocar, nesse caso, as portas ali na Cinelândia; tudo tem que ser pensado; os meus trabalhos têm um planejamento, uma arquitetura. É claro que conto com colaboradores de confiança como o Leandro que é arquiteto e meu assistente; ele faz toda a parte digital, desenho técnico, maquete. É preciso existir uma parceria, uma confiança, mas não abro mão de dirigir o meu trabalho; eu boto a mão nele o tempo inteiro, gosto muito de ir lá e fazer. Por exemplo, para fazer uma escultura em alumínio, fui para dentro de uma fábrica em São Paulo: não entendia nada de alumínio, aprendi como é que se funde o alumínio, a quantos graus; isso me interessou porque quero estar o tempo inteiro com a mão ali. Tem artistas que mandam fazer, mas gosto de estar controlando o trabalho. Controlo inclusive a montagem, a iluminação; aprendo iluminação e gosto de fazer a

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“Quanto à questão da

montagem de um projeto,

seja para uma galeria, museu

ou espaço público, penso e

planejo o que melhor vai se

adaptar ao espaço. É preciso

entrar no espaço físico do

local da exposição para saber

o lugar de cada coisa e dessa

forma facilitar o trabalho

da equipe.”

Esse trabalho, que realizei em 2004, foi o ponto de partida para o projeto da exposição Belvedere na Galeria Novembro, em 2005, no Rio de Janeiro. O que é belvedere? Belvedere é um lugar em que se vê a grande vista, para tal é necessário subir uma montanha e então vislumbrar a paisagem. A exposição trazia a ideia de paisagem para dentro da galeria, utilizando a lente e suas implicações conceituais. Acho que fui bastante feliz no título, considero fundamental pensar no título; um exercício interessante, porque o título é revelador. O Belvedere parece perguntar qual seria a função do olhar na arte contemporânea, a contemplação ainda estaria na linha de frente desse olhar?

As centenas de lupas presas a correntes metálicas tomaram conta do espaço da galeria e permitiam uma interação com o público. Temos que entrar no trabalho, penetrá-lo, esgueirar-nos entre as lupas. Elas são um emblema de uma visão clara e minuciosa, num conjunto que se impõe ao detalhe. As lupas, a despeito de seu tama-nho e aspecto idêntico, sofreram dois tipos de intervenção; ao lado das intactas, jateei parte das lentes, tirando-lhes a transparência, as deixei translúcidas; além dessa situação, produzi outra, na qual simplesmente vedei de negro as lentes, cegando-as pela opacidade total. Essas situações remetiam à situação de olhar e ver, de não ver com clareza e à situação de não ver.

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Belvedere foi o ponto de partida para o projeto Cisco, um projeto que trata de outras questões; a questão do vento e suas implicações conceituais. O título é sugestivo, parece alertar-nos contra algo que compromete nosso olhar. Ciscos estão à solta e o vento pronto para levá-los. No projeto Cisco, o desafio era tornar o invisível visível. O invisível é o ar e o vento; o vento, uma situação tátil, que incomoda. Os ciscos são uma das poucas situações de “ver” vento – ainda que de forma incômoda. Visualizar o vento de modo poético foi o maior desafio que me propus nesse projeto. E o vento é o veículo que constrói essa exposição através de cinco trabalhos que exploram diferentes possibilidades de visualização do ar. A exposição se inicia com um filme que mostra o fluxo do vento sobre a areia da praia. Na sala principal, um túnel de vento – um penetrável – faz com que o visitante, ao fazer o percurso do túnel, se defronte com uma ven-tania produzida por vários ventiladores no seu interior. Na última sala, duas esculturas, uma com grandes galhos de uma árvore que caiu na minha casa pela ação do vento e outra, uma pequena árvore que revela o assédio do vento sobre ela, sua fragilidade ao longo de uma breve existência. Mas o cisco principal é aquele formado por hábitos acomodados ao senso comum.

Por que eu peguei esse projeto? Como se dá o processo de traba-lho? O que faz o trabalho acontecer? Tenho o hábito de acumular,

passeio da sombra, 2004Vista da instalação realizada na Cinelândia - Rio de Janeiro

Foto: Luciano Bogado

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guardar muitas coisas, objetos que considero que podem resultar em uma ideia. Por exemplo, ganhei esse bonsai1 e esqueci na casa de um amigo em Búzios durante um ano. Quando voltei, lá estava exatamente onde o havia deixado; em um telhadinho e tinha adqui-rido a forma que o vento lhe imprimiu. A questão do vento e suas implicações já estavam na minha cabeça e quando voltei de Búzios deu um start.

Li uma entrevista do Waltercio Caldas e achei muito interessante o que ele dizia: na arte não existe o acaso; “Ah, deu certo porque eu dei essa pincelada”, não! Deu certo porque você foi lá dar a pincelada!” Então, não existe o acaso. Houve a intenção da pince-lada. O artista é consciente do que faz. No caso do projeto Cisco, a árvore que ganhei provocou um pensamento sobre a situação do vento e comecei a desenvolver a instalação e a fazer a maquete. Depois, tive que refletir sobre o fazer, a questão escultórica. Como construir essa escultura? Simplesmente apresentar a árvore em cima de um praticável... não seria uma escultura, seria uma árvore que sofreu a ação do vento com o tempo. Mas quando entra a questão escultórica da coisa? É quando começo a pensar em como será o suporte desse trabalho? Quando um objeto deixa de ser apenas objeto e se torna arte? Decido fixar a árvore em um tubo de vidro embutido na raiz e que depois é colocado na parede.

“O invisível é o ar e o vento;

o vento, uma situação tátil,

que incomoda. Os ciscos são

uma das poucas situações de

“ver” vento – ainda que de

forma incômoda. Visualizar

o vento de modo poético

foi o maior desafio que me

propus nesse projeto.”

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A árvore ganha outra estatura, porque dá conta de transmitir a ideia e assim se torna uma escultura. O objeto árvore se trans-forma em escultura. Se estivesse em cima da mesa, não seria uma escultura, seria um bonsai, e agora passou a ser escultura. Essa mudança de condição passa por esse processo de pensamento que acabei de descrever. O objeto agora transmite um conceito; é portador de uma ideia. Mas também uma condição para que o objeto árvore adquira a posição de obra de arte é que o trabalho seja apresentado e inserido no contexto da arte: museus, galerias, instituições...

ALuNO: Na exposição Cisco tem essa instalação que você acabou de mostrar, que você disse que era um penetrável. Eu queria saber qual a sua relação com o trabalho de Hélio Oiticica.

O penetrável que apresentei no projeto Cisco não foi pensado como um trabalho que se relacionasse diretamente com o Hélio Oiticica. Pensei o trabalho como um site specific e como um penetrável. O Hélio criou vários penetráveis; a situação que desenvolvo não é uma situação de ninho, até chamo de Vento abrigo2. É claro que, quando se pensa em penetrável, sempre se pensa no Hélio, posso ter pensado no Hélio Oiticica, mas não diretamente. As pessoas

até relacionam porque esse trabalho tem uma questão de ninho, tem uma coisa de acolhida; é todo de madeira, as pessoas queriam muito ficar lá dentro. Teve uma situação engraçada, uma menina: “Você não quer me alugar, para eu dormir aqui, colocar uma rede e tal...” O trabalho tinha uma coisa de acolher; então, nesse sentido, considero que pode se pensar no Hélio Oiticica.

ALuNO: Eu perguntei mais por causa do uso da palavra, porque eu também achei que formalmente não tivesse muito a ver. Mas essa palavra não foi inventada pelo Hélio Oiticica? Essa qualificação?

Não, acho que não foi inventado por ele. Penetrável é um tra-balho no qual o visitante entra e com o qual “interage”. No caso do projeto Cisco, considero que pode se falar que o trabalho é muito mais um site specific. Site specific é um trabalho projetado para determinado local. Então, esse trabalho do túnel atende ao conceito de site specific porque foi pensado, dimensionado para aquela sala. O trabalho pode até ser construído em outro local, mas vai ter outra configuração. Enfim, tudo relacionado ao túnel foi pensado e planejado; a desproporção em relação à sala, a mudança da arquitetura do lugar, a condição abrutalhada do trabalho, nada foi feito por acaso.

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casa, o arquiteto, o responsável pelo museu, o iluminador, todos que participaram estavam lá! No final da montagem, teve até um momento que falei: “O trabalho é meu! Quem manda nisso sou eu, vai ser assim, ponto final, e quero ficar com a minha equipe, tranquilo! Porque parceria não é tão simples; montagem e execução têm momentos tensos... O arquiteto: “O trabalho não pode tocar o chão...” Isso, por conta da casa ser tombada. “Tá bom! Mas, como eu faço?” e todo mundo começou a dar ideias, até que meu mar-ceneiro falou: “Para não tocar no chão tem que ser assim e assim. Quer que eu faça?” “Quero!” E conseguiu criar essa engenharia...O trabalho no ar! Parecia que o trabalho ia levantar voo; e você já sai lá de dentro voando, porque o vento é muito forte... Tudo em balanço; planejei com o arquiteto que, ao sair do penetrável para ver o filme, o visitante ainda estivesse recebendo o vento. Depois, na edição do filme com o cineasta, surge a questão do som; lá estava o filme maravilhoso, na cor, e o som? Tinha som. “Mas não podia ter som!” O som é o som do vento! Um som real do vento. Porque o som gravado do vento é “brrrrrr!”; fake, inclusive. Essa foi outra sacada conjunta do trabalho em equipe.

ALuNO: Minha pergunta não está relacionada a um trabalho específico, mas à sua carreira. Você comentou que trabalhou como publicitário ou ainda trabalha? Não ficou muito claro

ALuNO: Sou estudante de arquitetura e agora estou aqui fazendo curso no Parque Lage. Eu gostaria de saber mais a respeito de você, artista, na produção de uma peça e do seu diálogo com o seu parceiro arquiteto, com os engenheiros e com marceneiro. Como é essa troca? Como isso pode enriquecer o seu trabalho, não do ponto de vista do projeto em si, da segurança, de ficar em pé, mas como eles podem contribuir para que o seu trabalho fique melhor do ponto de vista do trabalho em si, do impacto dele?

É importante uma situação de parceria; ser aberto para ideias. Na verdade, essa troca acontece o tempo inteiro. Por exemplo, traba-lho com um arquiteto, amigo meu da Alemanha, que é excelente; em relação ao projeto Cisco, ele falou: “A gente tem que fazer uma maquete, pela volumetria desse trabalho...” E era um lugar com-plicado, passava por uma porta de 1,20m, tinha que ter condições adequadas para o cadeirante, mil e uma normas do museu. Juntos, discutimos como executar o projeto; isso é uma parceria, ter aber-tura para negociar e fazer o melhor. Outra situação de parceria; a ideia do suporte para a árvore foi do Leandro, meu assistente – “por-que você não coloca um vidro na árvore?”. Foi uma contribuição importante. Isso é uma equipe. E a questão da parceria é tão forte que, quando entramos na exposição do projeto Cisco, a equipe da

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Belvedere, 2005Vista da instalação realizada na Galeria Novembro - Rio de janeiro

Foto: Wilton Montenegro

para mim. Você teve um trabalho extenso nessa carreira? Eu queria saber como lidar com essas duas carreiras? uma que você tem que produzir mais comercialmente, que você está ali atendendo a um cliente, tem preocupação com prazo, um salário no final do mês, e uma que também tem as suas formalidades, mas é mais livre no sentido da criação. Então, como lidar com isso?

Comecei trabalhando com arte; então, acontece aquela crise dos anos 80; as galerias começam a falir e pensei: “já estou com vinte e poucos anos, tenho que trabalhar!” E fui pedir um estágio em uma agência, a Artplan, uma das grandes agências do Rio, na época. Pedi um estágio, fui aceito. Depois desse estágio, fui para outra agência, onde fui contratado já como diretor de arte. Logo depois, em Portugal, trabalhei com publicidade em mais algumas agências. Atualmente, não trabalho com publicidade. Realmente, são traba-lhos muito diversos tanto em relação ao cliente como em relação à criação. Como publicitário, tinha liberdade, mas certas limitações de produção; o interesse da agência é atender os clientes. Como artista, a liberdade de produção é muito maior, mas a estabilidade financeira, menor.

ALuNO: E como foi lidar com as duas carreiras em paralelo?

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É muito difícil; primeiro, tem a questão física, de você passar o dia dentro de uma agência. Passava o dia na Artplan e tinha um ateliê na Gávea – foi um momento em que produzi muito pouco, porque chegava exausto ao ateliê, às sete horas da noite, e evidentemente a produção de arte cai. Tem que ter muita força de vontade, traba-lhar final de semana... Quando fui para Portugal, aluguei um ateliê e fiquei quase um ano sem trabalhar com arte, mas a gente nunca deixa de ser artista. Pensa em arte 24 horas por dia. Então, em um dado momento, estava cheio de ideias. E então aconteceram umas coisas bastante engraçadas; conheci uma galerista, levei o meu portfólio, e ela achou muito interessante, gostou do meu trabalho; era uma supergaleria. “Você tem trabalhos aqui?” Ao que respondi: “Tenho, tenho”. Eu não tinha nenhum trabalho, nada, nada, zero! Minha casa não tinha nenhum trabalho, tinha uma TV, um rádio e uma máquina de lavar. “Quero ir ao seu ateliê!” Falei: “Está bem, vamos lá, sábado”. Pensei: “O que eu vou mostrar?” Saio na rua, vou a uma papelaria e compro um monte de papel, uns papéis imensos, de três metros. E criei uma exposição toda em papel. Fiz umas montagens, uma zarabatana com quatro metros de altura, uma escultura em papel, e ficou um trabalho bem interessante. Tinha alguns quadros, porque pinto, também, não com tinta; são uns trabalhos com talco. Também trabalho com uma situação tridi-mensional e desenho. E acabei fazendo uma exposição de pintura

nessa galeria, passei a ser artista da galeria; participei de uma feira em Madri, a Arco. Encontrei vários amigos do Brasil que não via há anos, “Becker, você tá aqui?” “É, estou em uma galeria de Portugal”.

ALuNO: Você já expôs fora do país e aqui também. Eu gostaria de saber qual a diferença de expor aqui e expor lá fora.

Fiz exposições fora do Brasil, em Portugal e na Espanha; conheci artistas, diretores de museu, mas sempre fui um estrangeiro, nin-guém me adotou. Nenhum português me fez um convite para uma coletiva de portugueses. Há, então, esse problema, você é um estran-geiro, por mais anos que você viva fora; você é um brasileiro, seja pintor, escultor. Apesar de ser superrespeitado, sentia essa situação. Por exemplo, o Antônio Dias viveu quarenta anos fora do Brasil, mas continua sendo brasileiro. Às vezes, é mais fácil ser convidado para uma exposição fora do Brasil do que estar propriamente em outro país. Com certeza, estamos com muito mais visibilidade hoje do que há vinte anos e, portanto, somos mais convidados para exposições. Tanto que 90% dos artistas que têm uma carreira internacional, como o Cildo Meireles, moram no Brasil, não estão morando em outros países. Quanto à minha trajetória, prefiro estar aqui, hoje em dia. A Europa é boa para passear, passei quarenta dias agora, em Roma, curtindo, tomando vinho e tal.

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ALuNO: Mas em questão de suporte das galerias e do pessoal envolvido, da montagem?

Tem uma diferença. Se você vai expor em uma galeria lá fora, terá mais apoio e estrutura, com certeza. Expor em Portugal, um país pequeno, na Fundação Gulbenkian, por exemplo, o artista pode contar com uma equipe de dez pessoas, aqui é você e cinco caras te atrapalhando! “Não chegou o prego, o ventilador...!” Alugo o ventilador e pago, porque o produtor dormiu, e o ventilador tinha que estar lá naquele dia. São esses absurdos. Lá fora, não acon-tece isso, mando uma lista para o museu e quando chegar para a montagem, com certeza, os ventiladores vão estar, a madeira também, tudo... Aqui é preciso muito jogo de cintura, que não deixa de ser um aprendizado. Acho que o europeu tem muitas facilidades, ele compra pronto! A gente tem que botar a mão na massa: carregar o quadro, fazer tinta; aprendi a fazer tinta porque não tinha dinheiro para comprar; tinta importada era muito caro. O brasileiro não se intimida com as dificuldades e a falta de apoio; o importante é realizar! E hoje em dia temos a internet, que é uma ferramenta que facilita o acesso do artista, seja para informações de arte seja para a compra de materiais. Pessoalmente, gosto de estar com uma revista de arte na mão, mas esses textos estão na internet, tudo mais fácil!

TANIA QuEIROZ: Os próprios museus, os acervos dos museus...

Eu sou superapologista da internet; você vê o acervo do Louvre, de todos os museus, galerias! Isso é uma facilidade, ferramenta fantástica! Mas não deixem de ir a museus no Brasil, de visitar galerias; galerista não morde! Isso é fundamental! E ler muito! Falo isso porque tinha medo de entrar em galeria, achava os caras arrogantes. Aquela porta de vidro existe para ser aberta! Lembro--me de que tinha medo de entrar na Galeria Saramenha, na Gávea, de um grande amigo meu, até hoje, o Victor Arruda. E não é nada disso; são pessoas superamáveis, são pessoas legais. É que os gale-ristas e curadores sofrem um constante assédio dos artistas e essa postura arrogante faz parte do jogo, para que possam se proteger também. Não levem em consideração e não deixem de frequentar museus e galerias.

TANIA QuEIROZ: A gente tem Inhotim, agora. Quando a gente estudava nem se pensava em ter algo como Inhotim, não é?

Claro que não. Por acaso, ainda não fui, tenho que ir com vocês!

T.Q.: Você tem um caderno, Becker? Onde você anota essas coisas?

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Tenho, mas tenho muito papelzinho solto também, que vou jun-tando aos cadernos.

T.Q.: Ele perguntou sobre o trabalho do espelho, aquele grande e redondo que estava em um espaço público.

Fui convidado para fazer parte de uma exposição nas ruas de Santa Teresa sobre a Via-Sacra e o trabalho que escolhi foi a representação do túmulo de Cristo. Na minha cabeça tinha sempre essa imagem – uma pedra redonda, a tampa da tumba de Cristo. Então, fiz um grande espelho de dois metros de diâmetro, que ficava encostado em um muro virado para o céu. Os trabalhos sob encomenda são difíceis; também fiz um trabalho sobre Aids; eram os quarentas anos da doença e foram convidados quarenta artistas de quarenta anos. Fui buscar em Brancusi, no trabalho O beijo, um clássico da história da arte, a ideia desse trabalho, por conta da representação do carinho e solidariedade que O beijo evoca. Considero que fui muito feliz nessa fotografia. É um trabalho único, não tem a ver com o que eu faço, mas foi bem legal.

Para finalizar, gostaria de comentar sobre um assunto relacionado à fotografia que me preocupa bastante: a documentação da obra de arte. Hoje em dia, com o advento da fotografia digital, ficou

“E não deixar passar,

não jogar fora

nenhuma coisa que

você viu. Acho que o

artista é um poço de

ficar guardando coisas,

armazenando visões,

ideias.”

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Notas1. Árvore cisco, 2012; bastão de vidro e árvore; 30 x 30 cm

2. Vento abrigo, 2012; escultura penetrável; ripas de madeira e ventiladores 10 m

Saiba maisGALERIA GRAÇA FONSECA. Ricardo Becker: “porque eu quero”. Lisboa, 1996.

GALERIA LAURA ALVIM. Ricardo Becker: projeto cisco. Curadoria de Fernando Cocchiarale. Rio de Janeiro, 2012. 43 p.

LAURA MARSIAJ ARTE CONTEMPORÂNEA. Ricardo Becker: você não está aqui. Rio de Janeiro, 2001.

muito fácil o próprio artista fotografar a sua obra, o que considero um erro. Sempre tive a iniciativa de convidar um profissional da fotografia para documentar meu trabalho. É um outro olhar vendo meu trabalho, que não está viciado com a obra. O risco que pode ocorrer é que teremos anos de trabalhos mal documentados de arte, uma geração de obras de arte mal catalogadas.

T.Q.: O que você diria para aqueles que buscam uma formação em arte? O que eles não podem deixar de fazer?

É ter vontade, gostar do que faz. Fui para a arte porque realmente gosto de fazer isso! Faço com amor, acho que faço bem, gosto de fazer. E cada hora é um desafio. Acho que é perseverança, é vontade de ir lá e fazer e assim é possível! Não é impossível ser artista! É trabalhar, trabalhar e ter boas ideias e levá-las em frente. E não deixar passar, não jogar fora nenhuma coisa que você viu. Acho que o artista é um poço de ficar guardando coisas, armazenando visões, ideias.

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