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2 0 0 9 ANNA BELLA GEIGER CARLOS ZILIO ERNESTO NETO IVENS MACHADO NELSON FELIX TUNGA ENCONTROS COM ARTISTAS CADERNOS EAV

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2009

ANNA BELLA GEIGER

CARLOS ZILIO

ERNESTO NETO

IVENS MACHADO

NELSON FELIX

TUNGA

ENCONTROS COM ARTISTAS

CADERNOS EAV

Xifópagas capilaresObjeto, performance e filme realizados primeiramente nos anos 80

Foto: Wilton Montenegro

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Sobre o que vamos falar? Poderíamos falar sobre qualquer coisa, mas falar sobre qualquer coisa seria um pouco mais que isso. Falar e estar disposto a responder sobre qualquer coisa. Responder sobre qualquer coisa é certa prepotência, porque pareceria dizer que posso responder sobre qualquer coisa, mas quero ser mais pre-ciso. Posso estar aqui para responder sobre toda e qualquer coisa, não porque eu saiba a resposta, mas porque posso incluir toda e qualquer coisa dentro do meu discurso. Qual é a única disciplina no mundo que lhe permite incluir toda e qualquer coisa no seu discurso? Que eu saiba é a arte, porque ela vai procurar dentro do discurso outras ligações, outros sentidos, outras possibilidades de conectar, criar novos sentidos e compreender aquilo que anda por aí. Portanto, estou aqui para responder sobre toda e qualquer coisa.

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coisa que está num sentido e outra num outro, ao se juntarem, produzem um terceiro sentido. E é a partir desse terceiro sentido que devemos começar a pensar. Vamos passar um filme.

[ Exibição dos vídeos Inside up outside down (Kassel-1997) 1 e Resgate (CCBB-2001)2 ]

O primeiro filme que assistimos foi de uma performance e instalação em Kassel, e o segundo foi o trabalho apresentado na inauguração do CCBB de São Paulo.

Em Resgate, a circunstância era a seguinte: o departamento de marketing do Banco do Brasil indicou que haveria um artista para a inauguração do novo espaço, que é uma coisa meio paradoxal, é evidente que não fiquei muito contente com esse approach estru-tural, disse que participaria, mas que seria contra essa instituição, aceitaram. Fizeram uma reforma no prédio onde pretendiam abrir o Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo, o prédio é numa área de extrema vitalidade, de uma economia marginal e lateral, e eles pretendiam alojar lá esse centro cultural de arte contem-porânea, revitalizando toda aquela área. Achei uma contradição, porque esta noção de vida deles é inteiramente diferente da minha, para mim, aquela é uma zona extremamente vital da cidade, há

Mas, antes disso, hoje acordei e me lembrei que tinha tido um sonho, logo hoje. Era um sonho muito peculiar porque me lem-brei que tinha sonhado com a verdade, só que quando acordei, me esqueci. Acho que isso é uma boa pergunta para começar: que his-tória é essa de um sonho em que você sonha com a verdade, acorda, sabe que sonhou com alguma coisa, e essa coisa é a verdade, e logo esqueceu a verdade? Será verdade que você sonhou? Esse tipo de paradoxo, que o sonho volta e meia nos oferece, de algum modo nos aproxima um pouco do modo de trabalhar em arte. O bom de traba-lhar em arte é que vamos procurando uma outra lógica, outro tipo de associação, e que tem que ter algumas regras, só que essas regras ninguém nos dá, o que temos são os exemplos de outras pessoas que seguiram essas regras. Resolvi que havia uma coisa comum em todas essas atitudes, que era o fato de juntar coisas: a narrativa de um sonho, a narrativa de um fato ou a construção de uma obra de arte, de uma música, de uma poesia, tudo e qualquer coisa que a gente se lembre ou tenha esquecido é fatalmente a ação de juntar coisas. Juntar coisas é, basicamente, a atividade que fazemos, e isso tem algumas regras e é a partir delas que nos perguntamos o que estamos fazendo. Acho que o discurso que interessa é o discurso da conjunção: arte seria então essa capacidade de criar ligações entre coisas, conjunções essas que nos dão sentido. Quando você liga uma coisa com outra, acontece um fenômeno de radiação, uma

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Quando disse que estava aqui disposto a responder perguntas sobre tudo, era para falar dessa atitude, que é um pouco a atitude que quem está começando a fazer arte deve ter: se inquietar por tudo, tentar entender de tudo. Não entender na pretensão de dominar, de ser capaz de deter opinião sobre tudo, mas saber que, para fazer arte, você estará lidando com uma disciplina na qual todos os sen-tidos podem se agregar e se incorporar a alguma coisa que você diz.

Ao enunciar a palavra vermelho ou mostrar uma tela vermelha, perceber que por trás desse gesto existe uma complexidade de evocações que aquele fenômeno vermelho aporta. Quanto mais o artista sabe o que pode vir junto com aquele vermelho, mais ele terá essa capacidade, essa habilidade, esse domínio de criar um discurso e surpreender mais ainda. Surpreender é ir além do senso comum, produzir uma experiência única, radical, diferente. É disso que trata a arte.

ALUNO: Chamaram a minha atenção os símbolos que você usou nos vídeos e também na trilha sonora para a edição desses trabalhos.

Nos dois casos, a trilha sonora do vídeo era baseada efetivamente no que acontecia durante a instalação, durante a performance.

milhares de camelôs, um comércio intenso, só que não era o perfil de arte, de cultura que propriamente o Banco do Brasil aprecia ou que um departamento de marketing pretende que seja a nossa cultura. Fiz uma instalação gigantesca ocupando o prédio todo, com a participação de duzentos personagens.

Talvez uma coisa característica dessa peça no CCBB e da outra em Kassel que possa introduzir a nossa conversa foi um pouco o que disse da ideia de que arte, seja ela qual for, é sempre uma conjun-ção, colocar duas coisas juntas e criar um terceiro sentido que não estaria na primeira nem na segunda, o surgimento entre duas coisas heterogêneas, que não necessariamente tenham a ver uma com a outra, concebendo um sentido quase como uma mágica, um sentido que, de repente, surge. Explorar esses sentidos, conectá-los, produz uma forma de conhecimento, uma forma de saber um pouco bizarra, não obedecendo necessariamente às regras da razão, às regras da compreensão geral, mas obedecendo a uma regra, uma espécie de certeza que se cria quando você está frente a uma obra de arte e sabe que tem alguma coisa certa ali mas não sabe direito o que é.

É esse estado que me interessa na arte. Para produzir esse estado, para que se provoque um estado como esse, será necessário, tam-bém, uma série de outras coisas, saber muita coisa e saber de tudo.

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cada um faz parte da instalação também, porque de algum modo está ali dentro. Rememorar isso, chegar em casa e sonhar com isso é realmente efetivar a realidade daquilo que apresentei.

A arte posta desse modo, portanto, está disposta a falar não com o espectador à frente daquilo que ele já sabe ser uma obra de arte ou mesmo quando em um local destinado para obras de arte. Numa situação dessas, você é invadido pela arte. Uma cena cotidiana, com um leve desvio, uma leve alteração, pode marcar você e fazê-lo refletir, a ponto de poder sonhar com ela e narrá-la depois já com outro aspecto. A arte hoje nos permite essa atitude, ou seja, olhar para tudo e ver arte.

Mas não é tão simples assim, não é só chamar de arte aquilo que você quer, é preciso que aquilo esteja incorporado a um projeto, a uma intenção construída por você. É preciso entrar no sonho visual, falar com os processos primários, que são aqueles processos nos quais os sonhos são elaborados, onde o self, o sujeito, é realmente mais denso e mais livre.

As músicas em Kassel estão sendo tocadas diretamente no equi-pamento de som da estação, aquela primeira música é do Jorge Ben, ele canta “O que está no alto é como o que está embaixo” – uma

O primeiro vídeo foi realizado na X Documenta de Kassel, esta cidade remota e longínqua na Alemanha, à qual fui levado para escolher um lugar para fazer essa performance, essa instalação. Fazia muito frio ali, era inverno. Cheguei à estação de trem morrendo de frio, disseram que ali ia ter uma mostra no segundo andar. Olhei em volta, vi uma parte com menos movimento e perguntei se não podia fazer o meu trabalho ali. Disseram que podiam investigar e resolvi que seria naquele lugar.

O lugar possuía vantagens para apresentar essa peça: primeiro, um público garantido, uma estação de trem ativa, vinte mil pessoas por dia passariam por ali, passariam num contexto do meu interesse, que era o contexto de testemunhar um fato.

Acho que numa performance ou numa instalação – prefiro chamar de instauração – produzimos algo efetivo, instaura-se algo, há uma espécie de fenômeno. Costumo pensar e ver essas interferências como uma espécie de filme sem câmera nem película. Um filme em que você se sentisse dentro dele, a rigor esse filme tem uma câmera e uma película, só que essa câmera é o nosso aparato ótico, nosso corpo é o nosso aparato sensorial e o filme disso é uma conjunção neural, a capacidade de reter uma coisa que testemunhamos e depois refazer, recriar essa coisa. Então, numa situação dessas,

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algum modo aludida nessa música (Com’è triste Venezia), a Bienal de Veneza tem um quê de excesso de plasticidade contraposta a essa mostra alemã, pretensamente mais mental, mais florentina, seria o termo.

Para esclarecer um pouco: artistas florentinos são aqueles similares a Leonardo da Vinci, para quem pensar e fazer são uma coisa só. Artistas venezianos, como Ticiano, por exemplo, são os grandes artistas da plasticidade, do olhar, da expressão. São duas vias que se encontram o tempo inteiro e continuam presentes na arte até hoje, indicando dois caminhos. Os dois são válidos, acredito em exercitar os dois, viver nessa polaridade.

A primeira performance já havia sido apresentada, a parte do chapéu de palha, na Bienal de Veneza anterior, foi uma peça que migrou de Veneza a Kassel para se incorporar a uma complexidade maior.

Já na segunda performance, apresentada no Banco do Brasil, algumas das obras ali tinham sido apresentadas em outras cir-cunstâncias. A primeira delas era Teresa, mesmo nome da música; e Teresa era uma obra muito antiga, dos anos 70, que tive a opor-tunidade de realizar pela primeira vez numa conjuntura bastante favorável. Criamos muitas obras e pensamos que nunca iremos

referência a um texto alquímico – a rigor, na música, ele lê o texto. Editei esta gravação dele, cortando a frase e deixando só esses dois elementos. É evidente que isso se refere ao que vemos: o que vemos é o que está embaixo e o que está no alto, o meio divisor que é a escultura, aquele chapéu bizarro, chapéu comunitário. Essa música já seria uma indicação, além de ser um hit bizarro, entrar numa estação de trem alemã e ouvir o Jorge Ben cantando desse jeito.

A outra música, também presente nesse áudio da performance em Kassel, destaca um trecho do Charles Aznavour, um cantor francês, um hit clássico: “Com’è triste Venezia (Como é triste Veneza)”, igual-mente editada, para deixar só este trecho que alternava com o do Jorge Ben, isto é: O que está no alto, o que está embaixo ao mesmo tempo Como é triste Veneza / Como é triste Veneza.

Essa exposição, a Documenta de Kassel, é bastante importante no circuito ocidental, pretendendo ser internacional, e acontecia ao mesmo tempo da Bienal de Veneza, então era também oportuno falar de Veneza e de Kassel e manter essa polaridade, de algum modo, a polaridade que funda a arte a partir do Renascimento.

É possível pensar a arte através de duas escolas básicas: a escola veneziana e a escola florentina. Essa escola veneziana estaria de

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realizá-las, lógico que vamos, colocamos num caderninho e dei-xamos ali de lado, num pedaço da cabeça, esfriando.

Lá pelos anos 90 alguém me comunicou que eu seria o vencedor do Prêmio Johnnie Walker, fiquei muito satisfeito, mas esse prêmio consistia na aquisição de uma pequena obra e numa exposição num museu. Naquele momento não queria nem vender obra nem fazer exposição num museu. A rigor, esse prêmio era quase um castigo, porque me obrigava a vender uma obra por um preço x, além de fazer uma exposição no Museu de Belas Artes que, para mim, não seria o perfil ideal para situar a arte contemporânea, sobre-tudo na época. Me ocorreu resgatar esse antigo trabalho, ligado às tranças, e que é a versão do uso mais popular das tranças, talvez não a mais popular, mas a mais saborosa que é a teresa. Teresa é a trança armada pelos presidiários, e isso é universal, para escapar. Você precisa de muito pouca coisa, um lençol, um cobertor, rasga, enrola, trança e escapa.

Encontramos várias ideias embutidas, envolvidas, nessa ideia de fazer trança. A primeira delas, particularmente me seduziu e me levou a fazer tranças. É a ideia da geometria, dessa construção tão arcaica, talvez tenha sido a primeira escultura a ser feita pelos humanos, ao mesmo tempo em que os homens faziam tacapes para

“Qual é a única disciplina no

mundo que lhe permite incluir

toda e qualquer coisa no seu

discurso? Que eu saiba é a

arte, porque ela vai procurar

dentro do discurso outras

ligações, outros sentidos,

outras possibilidades de

conectar, criar novos sentidos

e compreender aquilo que

anda por aí.”

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uma música. Conversamos sobre a música, escrevi aquelas palavras de modo que podiam se recombinar infinitamente, criando sentidos cada vez mais múltiplos. O Arnaldo compôs um rock meio mantra que se repete infinitamente, gravamos isso e a primeira versão foi usada no Museu de Belas Artes, quando os premiados receberiam o cheque do Johnnie Walker, cheque este recebido pelos fugitivos que tinham acabado de fazer uma trança. Apagaram as luzes, eles pegaram o cheque e foram embora, isso foi incorporado. Esta per-formance foi reapresentada no Centro Cultural Banco do Brasil. Existia essa música, mas no vídeo ela é usada de outro modo.

ALUNO: E a escolha das formas dos vasos?

No Banco do Brasil havia um conjunto de obras heterogêneas. Assim como juntar duas coisas me interessa, acho que construí-mos uma obra juntando momentos diversos de outras obras que fizemos. É um segundo momento, digamos, sinfônico.

Costumo lembrar às pessoas sobre o trabalho do compositor, quando escreve uma sinfonia. Primeiro escreve um quarteto, um solo, uma linha melódica e depois vai juntando até criar uma sin-fonia. Em arte é possível ter o mesmo pensamento, percebendo, compreendendo o seu trabalho como uma obra. Momentos os mais

ir à caça, as mulheres trançavam, seja cabelo, palha, outras fibras para fazer cobertas, utensílios dos mais genéricos. O mistério das tranças reside num substrato muito arcaico da mente humana, ao mesmo tempo, parte da geometria até hoje pensada na teoria dos nós. A trança está para o quadrado, na teoria euclidiana, como a teoria dos nós para a trança, os nós seriam o primeiro, ao que todos eles se reduzem. Na trança, curiosamente, você separa três coisas independentes, uma coisa não tem nada a ver com outra, apenas a matéria, que se transforma num objeto só.

Voltando àquela operação, onde a arte é qualquer coisa junto, na trança temos, primeiro o gesto de fazer de três coisas separadas, independentes, uma coisa única. Várias coisas me levaram a fazer trança, essa versão são as tranças de escape. Colocar essa atividade no interior do museu, caracterizar isso sendo feito por personagens que evocam uma situação que existe efetivamente na sociedade, esta tensão social nas prisões, a vontade de evasão, transferir isso tudo para um espaço cultural, já tem uma carga semântica imensa. Essas pequenas transferências e essa apresentação de coisas jun-tas começa a borbulhar sentidos, e é dentro deles que devemos procurar as razões e os porquês dessas coisas.

Nessa elaboração da trança, chamei o Arnaldo Antunes para fazer

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compreender o sentido de cada palavra isolada; e trabalhar na tensão, no sentido de cada uma dessas palavras no sentido dessa frase, é uma das operações aludidas nessas peças.

Me ocorreu primeiro fazê-las em ferro, em metal, porque estaria mais próximo do sino, um objeto que seria dominante, prepon-derante e nos chamaria de volta ao ruído do sino. Fundi-las, também, porque me interessava esse resfriamento oferecido pela fundição, como se uma ideia que tivesse sido pensada a 1.200 graus, cinco minutos depois a 1.100 graus, tudo aquilo já está congelado, já é um corpo só, ou seja, na fundição você pega pedaços de ferro, junta, aquece tudo e eleva a uma temperatura muito alta. Depois, verte aquilo sobre um modelo, uma forma, e imediatamente faz aquelas coisas separadas serem convertidas em uma coisa só, coesa. Essa operação é também metáfora para mim, esse isolamento que seria um sino, um cálice, todos eles fundidos na mesma temperatura, mas em momentos diversos. A rigor, já estamos acumulando uma série de operações com sentido extenso.

Depois me ocorreu o seguinte: como incorporar isso? Lembrei da grande sensibilidade das mulheres em se maquiar e da ideia da maquiagem como uma espécie de reencarnação. Pedi aos

diversos podem se encontrar, produzir chispas diferentes, leituras de uns sobre os outros. Partindo dessa ideia, de que uma trança é a transformação de três elementos discretos, isolados, numa unidade só, tentei aventurar isso num outro campo. Imaginei três, quatro formas que pudessem ser geradas a partir da mesma linha. Dese-nhei uma linha sinuosa e percebi ser esta linha o perfil de um sino, e parte desse perfil eu poderia continuar e transformar num perfil de uma copa, de um cálice, e neste mesmo perfil poderia continuar e transformar no perfil de uma garrafa, e esse mesmo no perfil de um funil, e, assim, fui agregando algumas formas, a partir de uma linha comum, e dei volume a elas, as fiz rodarem sobre um eixo.

De um fragmento nasce um sino, de outro fragmento nasce um vaso, de outro uma copa e, curiosamente, essa linha geratriz, tal qual essa linha da trança, agrega um objeto só, e jamais será um objeto só na medida em que você reconhece o sino, o cálice, a garrafa, mas há essa vontade de estarem juntos, originária da concepção dessas formas todas; mesmo tendo objetos separados, você termina em algum lugar sabendo que eles estão juntos, eles fazem parte de uma totalidade.

Essa tensão entre escrever uma frase, compreender o sentido de uma frase, e depois pegar cada palavra que compõe essa frase e

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Esta ação da performance durava doze horas seguidas, começou de manhã e prosseguiu pelo dia inteiro. Um processo meio ine-briante, as pessoas iam ficando possuídas pelo ritmo da música, pela intensidade das sopas, pela luz. E, num dado momento, aquelas bailarinas, cuja função era maquiar sistematicamente as peças, me viram parado e começaram a me maquiar, timidamente pelo sapato, e eu disse que podiam continuar.

O que estava acontecendo ali: eu estava me incorporando àquela obra, por dentro e por fora, como a maioria das pessoas, porque eram oferecidas, no próprio coquetel, não caipirinhas ou vinho branco, mas sopas, que estavam fervendo, eram todas com base vermelha, beterraba. Evidentemente, com bebidas vermelhas, luz vermelha, maquiagem vermelha, havendo forte presença dessa intenção de transformar tudo aquilo numa totalidade, todo e qual-quer personagem ali fazia parte daquela obra.

Falo sobre fazer parte, efetivamente. Se entro num museu, olho para a tela, vou para casa e me lembro dela, e alguém atravessou na frente, pode ser que me lembre do contraste de cor com a roupa dessa pessoa na frente da tela. Mas numa situação dessas, a presença daquela pessoa, fatalmente, vai fazer parte da picture, da imagem que tenho da obra de arte.

dançarinos3 para maquiarem essas peças, mas, dado o tamanho descomunal delas, a quantidade de maquiagem teria que ser imensa. Além disso, os dançarinos teriam que se maquiar também, termi-nando por maquiar o próprio corpo.

Era um modo de falar da hipótese de um terceiro gesto, pictórico e também cotidiano, que todos nós conhecemos: se transformar num all over, numa superfície muito maior, e incorporar, fazer a mesma pele sobre o seu corpo e sobre a escultura, uma espé-cie de criação de continuidade; como dizer que a escultura, em sua totalidade, não apenas no seu olhar, mas o seu corpo inteiro é parte daquilo, pode dialogar com a peça, é como mais um desses elementos desenhados. O outro elemento, que faltava ali, seria o corpo com essa maquiagem. Evidente, numa situação com uma exposição dessa ordem, dada a quantidade de maquiagem, dada a intensidade do som, dada a existência de um grande contingente de atores e personagens, o público que entrava ali terminava por esbarrar naquelas formas maquiadas e se maquiar também. Foram muitas as reclamações de visitantes que entraram elegantemente vestidos e saíram manchados, eu inclusive.

ALUNO: Você também fez parte da performance, em alguns momentos eles maquiavam você?

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inside out, upside down, 1997Vista da performance: X Documenta de Kassel, Alemanha, 1997

Foto: Lucia Helena Zaremba

Hoje em dia é possível pensar o público como sendo parte da obra. Esse é um dos pressupostos dessa atitude, não acho que seja dogmático, nem necessário, ser assim com toda obra, mas é uma possibilidade de que hoje em dia dispomos, e é uma possibilidade rica, na medida em que você agencia mais coisas.

O confinamento das artes face à industria cultural tem a ver, exa-tamente, com aquilo adquirido pelo espetáculo no último século. Você vai a um espetáculo, por mais banal que seja, é luz, é energia, milhares de coisas o envolvem, capturam, e a presença da arte é muito discreta. Mas nada nos diz que a intensidade gerada, abar-cando todos os sentidos, não possa ser agenciada nesse campo de reflexão da arte, algo um pouco mais denso, e acho que me propus a isso, nessa ideia.

ALUNO: A partir do momento em que você se deixa maquiar, você tira a sua autoridade do corpo da obra, é como se você permitisse que a obra crescesse, fosse transpassada, correto?

É correto pensar assim. Estamos tocando numa questão muito fina, o que faz a arte sobreviver? Por que ela sobrevive? Que mistério é esse aonde fazemos toneladas de excremento para três poemas,

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Tem que se aprender a fazer arte, aprender a fazer coisas, é a curiosidade sobre todas as coisas, de que falava no começo desta palestra, se interessar sobre tudo; e depois você pensa saber o que está fazendo, seu trabalho, uma obra, um poema, uma pin-tura, e então percebe, depois que coloca aquilo no mundo, que o trabalho começa a te ensinar, descobre coisas que não tinha pensado sobre aquilo. No entanto, foi você quem o fez, você acha que sabe tudo, mas não sabe, e acho que a arte começa a existir a partir desse momento. É esse momento que perseguimos, esse saber que nos interessa, evidentemente, é um saber subversivo, de outra ordem, contra o saber institucional, porque obedece a regras, as mais estranhas, similares às dos sonhos, à formação dos processos primários do pensamento. Como esse sonho que relatei aqui, sonhei com a verdade e me esqueci quando acordei. Essa situação é paradoxal, é dessa ordem e dessa natureza o nosso interesse.

ALUNO: Cada elemento dessa obra tem um significado, tanto individualmente como em conjunto, você vai elaborando os três elementos, mas é preciso racionalizar o máximo possível e saber o que significa cada elemento para saber o ponto. E você perde o feeling, o “se deixar levar” sem chegar a pensar sobre o fato...

como dizia o Artaud, toneladas de acidentes, de guerras, de sangue, e quantos poemas? Meia dúzia? Que mistério é esse no qual tão poucas obras de arte, quase nada frente à produção industrial, se mante-nham, e continuem tendo o valor que elas têm, não só o financeiro, mas o valor de serem preservadas, de serem cultivadas, cultuadas?

Existe ali uma descoberta, uma hierarquia, um poder que esses objetos possuem, desses poemas feitos, se impondo, invadindo o outro. Estou descrevendo, desse modo, esse poder sutil, mas por que não falar claramente dele e se deixar invadir por esse poder? É nessa situação que o personagem ali está atuando, sendo invadido pela arte e perdendo a hierarquia. Nos surpreendemos, descobri-mos um artista, um poeta, um poema e ficamos perplexos. Isso acontece com todos vocês, é a razão que os traz aqui, um dia terem estado perplexos frente a uma evidência estética, que é o que nos interessa, e é maior que nós, porque ela nos invade. Mesmo o autor se surpreende com a sua obra.

A rigor, fazemos arte para saber, saber aquilo da gente que não sabemos, e que através da arte podemos vir a saber. Esse fazer, não representa o gesto de uma inocência, de se deixar ir, ou ter uma inspiração reveladora de alguma coisa. Não, é um trabalho árduo, se dirige ao limite do seu saber, da sua vontade de conhecer.

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você acerta um gesto no desenho e depois fica perplexo e pensa: “beleza, como ficou legal, acertei, acho que posso fazer isso sem-pre!”. Eu acho que é uma sereia que chama e te leva a dizer “não quero nem pensar sobre isso, quero ir fazendo”, e essa coisa brota e sai, e é uma sereia, também, levando você para o departamento de filosofia: começa a especulação sobre o trabalho, e você termina esquecendo a existência de um fato estético e que a razão de fazer poesia é trabalhar com uma coisa estética. Quando digo estética não é no sentido acadêmico da palavra, mas aquilo que nos faz sentir.

ALUNO: Tenho a impressão que, de algum modo, quando começamos a racionalizar demais, acabamos perdendo a questão da “transcendência”. É bacana pairar sobre o trabalho, não perder o controle, mas...

Esquecer dele e aprender com ele, digamos. Se alguém conseguir enunciar direito isso que você está me dizendo, me conte, vou ficar feliz da vida. É isso mesmo, penso, o trabalho é de associação. Procuramos estudar arte, olhar obras de arte do passado remoto, da gênese da arte, porque é um tipo de saber que se dá um pouco através desse sentido também. Você se coloca à disposição do espetáculo que a coisa oferece e intriga, deixando-se levar pela coisa e só depois refletindo. Quando se reflete, percebe-se que deve

Você está colocando: em que momento você opera racionalmente sobre seu trabalho e em que momento você opera sensualmente sobre seu trabalho, qual é o momento da inspiração, vulgarmente falando, da intensidade, do feeling, e em que momento você está pensando: isso é isso e isso é aquilo. É mais ou menos isso?

ALUNO: Costumam chamar de “gastar a onda”.

Investir na onda! Onda, não se gasta, se investe. (Risos) Essa, é uma questão que acho que vai sempre me perseguir, e a todo mundo, e a conclusão, por minha experiência, é que se trata de uma tensão contínua, se trata de nos mantermos num fio entre a compreensão e a incompreensão. Descrever isso seria uma grande obra de arte e pretendo fazer isso. A atitude normal é você saber e não saber, sei que a chuva me molha, mas quando me refresca, não é a mesma chuva que me molha, é um outro prazer, outra sensualidade...

ALUNO: “Só sei que não entendo” – Guimarães Rosa.

Só sei que não entendo! Essa pergunta, penso, pertence a quem está interessado em fazer arte e tentar descobrir a sua disciplina em relação a isso, até onde se pode ser curioso e até onde pode se deixar ir. Existe o canto da sereia desejando nos seduzir, quando

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coisas assolando o seu sentido, sua mente, e você tenta organizá-las da maneira mais estrita, para conseguir dar conta delas. À medida que você aumenta essa possibilidade de ser pragmático, você está mais próximo ao real, mas é bem mais difícil andar, porque são mais impregnações, é muito mais prazeroso, intenso, rico. Narrativas são possíveis.

Quando comecei a trabalhar, observei certa vocação reflexiva, que meu trabalho estava impregnado dessa vocação que é, geralmente, encaminhada para o campo teórico, ligado à filosofia, à estética, e, obviamente, termina por se afastar do fenômeno, por tratar o fenômeno como objeto de estudo. Nunca quis me afastar do fenômeno da poesia, do fenômeno estético. Como poderia exercer essa vocação reflexiva sem me isolar do meu objeto, fazendo com que essa reflexão fosse parte do objeto, se agregasse ao objeto como sentido?

É possível criar uma teoria, um conjunto de reflexões do objeto que seja uma ficção. A rigor, a teoria também é uma ficção, mas você pode usar essa ficção e incorporar outros objetos mais “divertidos”. Nessa medida, você faz uma paródia da crítica de arte, também. Assim, a crítica é uma construção que pode pertencer à obra, como a percepção de uma obra pertence à obra, assim como estar

se deixar levar mais ainda, e assim continuamente. É isso mesmo.

ALUNO: Me parece que no seu trabalho tem uma questão alinhada com a sua presença, um caráter biográfico e ao mesmo tempo ficcional. Vi um vídeo seu, há muito tempo, começava: “meu nome é Tunga”, mas não era você.

É uma anedota curiosa. Numa dessas conversas, aqui no Parque Lage, me chamaram para fazer um workshop. Eu estava com muita preguiça, estava com o Paulo César Pereio e disse a ele para ir lá e fingir que era eu. Ele deu a aula fingindo ser o Tunga, num certo momento eu disse: “Esse cara não é o Tunga, o Tunga sou eu”. É uma performance, mas tudo é performance.

Vamos esquecer a palavra performance. Tudo é passível de ser impregnado por sentidos outros, que não aquele nominal da lin-guagem, estou aqui falando e usando este gesto que não faz parte do sentido, este gesto já é uma performance. Posso criar um gesto contraditório ao que estou falando e o sentido desse gesto passa a ser tão importante ou mais do que estou falando, amplia o sentido do discurso. Abandonamos a linguagem, como ela é concebida pelo senso comum, e começamos a utilizá-la de modo muito mais próximo a como se pensa, como se lida com o real. Um turbilhão de

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estético, e, eventualmente, não gostamos de algumas companhias. Mas é preciso, antes, tomá-los, não como algo individual, autoral, mas pensar isso num conjunto maior, isso enriquece.

Recentemente, tive uma experiência e pude colocar à prova essa questão. Uma inquietação que paira sobre o meu trabalho, sobre uma questão muito atual: a questão do poder de certas culturas hegemônicas do Ocidente que enunciam a arte como uma coisa feita em uma sociedade avançada, num contexto cultural, etc. Ao mesmo tempo, arte contemporânea, com-tem-po-râ-ne-a: tem um cara no Tibet fazendo uma mandala, na África, fazendo um ícone, uma fogueira, etc., isso parece não entrar no discurso da arte contemporânea, porque ela só lida com valores da alta sociedade, desenvolvida no Ocidente, pela alta racionalidade, ou seja, eixo Nova York-Londres-Paris-Milão, etc. Uma das minhas inquietações é que o trabalho seja passível de compreensão por pessoas dos mais diversos meios culturais. O fato de você usar elementos precisos e claros, oriundos de um contexto cultural preciso, isola o seu trabalho. Por exemplo, quando olho o cachorro-quente do Lichtenstein ou uma lata de Campbell soup do Andy Warhol, sou capaz de apreciar isso, mas tenho um certo desgosto de ser obrigado a saber o que é sopa Campbell, isso realmente não contribui para a minha cultura, é apenas afirmação da hegemonia de produtos culturais locais, num

presente frente a uma obra de arte é se colocar no interior dessa obra e incorporar a ela um sentido novo.

Essa atitude é apenas uma formalização de uma coisa que está pre-sente, latente, é uma prática comum, mas jamais é anunciada com essa graça, pois pretende um ar de seriedade por ter sido investida de um poder cultural. Poder cultural este que termina eliminando ou destruindo modos de pensar. Gostaria que essa prática, da teo-ria, fosse sempre uma prática enriquecedora, o pressuposto desse exercício será sempre enriquecedor em relação à obra de arte. Esse modo de ver e usar isso dentro do meu trabalho é, a rigor, também o meu modo de ver o trabalho dos outros. Olho o traba-lho dos outros como sendo meu trabalho e, quando estou vendo a obra dos outros, é também um pouco do meu trabalho, porque possuo uma visão única daquilo. Todo mundo tem uma visão que, em algum momento, é única de uma obra de arte do outro. Já falei aqui da “quantidade de merda pra pouco poema”, citando o Antonin Artaud, que, num certo momento, processou outro escritor que teria publicado um romance plagiando ele. O Artaud abriu um pro-cesso na Justiça, mas parece que este romance já tinha sido escrito. Esse exemplo traduz um pouco essa verdade, de que existe certa temporalidade, certa incorporação do trabalho dos outros. A rigor, todos nós fazemos parte de um barco, mobiliado de poesia, saber

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uma parte do público passa a ter, “isso é uma porcaria, isso é bom”, faz parte desse jogo. Mas há museus como o Louvre ou a National Gallery de Londres, há similares a eles em Pequim e vários cantos do mundo, para não falar só nesses campos hegemônicos, há visitas a esses lugares similares a um museu de antropologia, você vai lá, sabe que vai ver arte e aquilo é arte porque parece que Deus disse que é arte. Aquilo é tão sério, tão conotado de sentido e passou por tantas peneiras na história, que te oferece quase certeza de que vai ver arte. Um lugar onde você vai botar uma obra de caráter um pouco estranho e sabe que o público vai chegar lá e já considerar aquilo como arte, chegar acriticamente, é uma equação curiosa da arte contemporânea.

[ Exibição do vídeo sobre a obra exposta no Louvre4 ]

ALUNO: Reparei que você usa alguns símbolos que remetem à morte: a caveira, a morte do sapo... O trabalho do início é melancólico, dramático, teatral. A escolha de usar esses símbolos tem a ver com a sua vida, com algo que você queira mostrar, ou com a contemporaneidade de uma maneira geral?

Não. É curioso você dizer isso sobre a morte, porque para mim não é uma coisa presente como símbolo. Um dos significados da caveira

determinado contexto. Há uma inquietação no meu trabalho ao falar de coisas passíveis de serem compreendidas por contextos bem mais amplos. Se vocês olharem bem, dentro do repertório, uma trança, um sino, um pente, cabelo, maquiagem, estou falando de coisas que gente de qualquer lugar do mundo, em qualquer época, é capaz de entender. As primeiras sociedades, ainda paleolíticas, produziram sino, produziram tacape, trança, maquiagem, se pintavam. Você cria um vocabulário acessível, é uma boa tarefa para nós, situados neste hemisfério, nesta posição, pensar desse modo.

Recentemente recebi um convite do Museu do Louvre para fazer uma exposição, instalar uma peça embaixo da pirâmide. A pirâ-mide do Louvre é um lugar bizarro, um lugar de visitação maciça, quatro milhões de pessoas assistiriam a isso. Público hoje em dia é muito fluente, expor no Museu do Futebol, Museu de não-sei-o--quê, como fiz em Kassel, 120 mil pessoas vão ver o trabalho... Vão ver coisa nenhuma! Vão passar por ele, ver é outra coisa. Pessoas que vão ao museu vão ver arte, normalmente, vão ao museu nesse ritual de arte contemporânea, vão ver e, em geral, criticamente. Você vai ao MoMA de Nova York, mas se dá ao luxo de dizer gosto disso ou não gostei disso, isso não entendi. Essa é uma atitude que dá certo conforto ao público, poder estranhar, e é até um pouco a graça dos museus de arte contemporânea, essa indignação que

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é a morte quando você a reconhece dessa forma, mas nós portamos em vida uma caveira, todos nós. Talvez a intensidade dessa ideia de morte seja para reafirmar a continuidade, a transformação. Um dos temas, que é contínuo e se ligaria àquela ideia de conjunção, de colocar duas coisas e surgir uma terceira, são as sucessivas trans-formações. É pensar dinamicamente, os sentidos se formam e são incapazes de ser estáticos, estão sempre evocando outros sentidos. E, possivelmente, se colocar duas coisas juntas elas vão ter uma atração e haverá um sentido comum nessas mesmas duas coisas, sendo capaz de se ligarem, para gerar outras.

ALUNOS: A sua intenção é deixar os trabalhos abertos para nossa interpretação, totalmente abertos, ou você acha que tem alguma coisa que fecha esses sentidos?

Nem um nem outro. Acho que sim, totalmente aberto, o mundo está aberto a interpretações e os produtos que se fazem a partir do mundo, as transformações também são abertas a interpretações. Coisas não abertas a interpretações são sinais de trânsito: em ver-melho você para, porque te coloca em risco.

A arte é um território onde você pode produzir, cutucar o imaginá-rio alheio, e esse imaginário pode ser surpreendente. Restringir o

“Nos surpreendemos,

descobrimos um artista, um

poeta, um poema e ficamos

perplexos. Isso acontece

com todos vocês, é a razão

que os traz aqui, um dia

terem estado perplexos

frente a uma evidência

estética, que é o que nos

interessa, e é maior que nós,

porque ela nos invade.”

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daquela tribo inteira. Isso não aparece no filme, aparece aquele conjunto de caveiras que, embora não possamos analisar morfolo-gicamente, intuímos que sejam todos parentes ou relacionados, e nos dá uma ideia de multiplicidade da morte. O fato de achar uma prótese dentária reabre o sentido para reintroduzir a narrativa que já estava ali antes. Transformo essa narrativa em algo mais dramático: ao invés de achar aquela obturação numa boca viva, achar na boca de uma caveira.

Esse modo de construir, de contar uma história e de impregnar de uma história o conteúdo da obra, é um modo de enriquecer e abrir mais portas; quanto mais portas abertas, mais se pode criar uma fluência, uma evasão de sentidos para adensar a obra.

Por que adensar a obra? Porque a característica maior da linguagem e aquilo que mais nos seduz na linguagem humana é exatamente a abertura de sentidos, é a possibilidade de surpreender com um sentido novo. As linguagens construídas lidam com um território hoje em dia muito desenvolvido por causa da informática, você constrói sistemas de linguagem fechados. A linguagem natural, que é a linguagem falada, já está demonstrada pelo Kurt Goebel6, um matemático lógico, isto é, toda linguagem em que a ideia de contínuo esteja embutida fatalmente será autocontraditória em

sentido a uma possibilidade, a um conjunto de sentidos precisos, seria restringir esse poder da linguagem da arte.

Por outro lado, existem interpretações que estão implícitas, você constrói coisas, um objeto poético é uma construção que tem as suas normas, suas razões internas, suas coesões e indicações de como funcionam. Dificilmente vai se contrariar aquilo, é preciso compreender isso, os esquemas formais que viabilizam aquilo como linguagem, isso é rígido. Esses esquemas formais, se existem, estão ali exatamente para abrir o território dos sentidos e não para restringi-los a um só. Sobre a recorrência de signos de morte, eventualmente ou evidentemente, ali existem construções em que a morte reincide sempre, mas nunca como finitude e sempre como abertura para alguma coisa.

O conjunto de caveiras observadas naquele plano, que estão no chão, aconteceu por acaso. Estávamos filmando5 no Museu Histó-rico Nacional e eu estava procurando outra sala, de repente, abri a porta e vi essas caveiras no chão. Perguntei de que se tratava e me informaram que uma das doutoras que estava trabalhando ali fazia um estudo e aquilo era uma tribo inteira de índios dizimada por um vírus de gripe, possivelmente levado pelos brancos, e ela estava fazendo um estudo para tentar identificar a causa mortis

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contínua. Esse toro seria o modelo ou a referência para como as histórias vão acontecer, como os sentidos vão se formar, sentidos que eu agencio, eu capto, edito, lanço, eles funcionam como se existissem dentro de um toro.

A pintura, por exemplo, considera sua existência a partir de um plano, fala-se da materialidade da pintura, materialidade?

Plano não existe, é uma suposição teórica, um lugar geométrico da continuidade, da equidistância. O toro é outro lugar geométrico, mas fala de um espaço geométrico, um espaço em que as coisas terminam por se reencontrar, toda paralela pode se encontrar, não há o estatuto da paralela sobre o modelo do toro.

Como construção do filme, está não só na narrativa, como no modo de organizar diversos trabalhos. Quando fiz esse filme, antes tinha feito a história das siamesas capilares, que apresentei num congresso de psicanálise, e era o primeiro modo de conectar uma série de obras que havia realizado no curso de sete ou oito anos. As obras eram a trança, o tacape de ímã, aquela cabeleira com pente, etc., aparentemente, trabalhos muito díspares e eu tinha um projeto de que todos esses elementos deveriam estar juntos. A história é bastante longa, mas vou tentar encurtar por

algum momento. A linguagem humana é incompleta, não haverá jamais um discurso completo. O discurso pode abrir mais senti-dos, não criando uma coerência total, porque sempre haverá uma incoerência em algum momento. Procuramos essa incoerência, é paradoxal essa situação do limite da linguagem, onde ela explode para um sentido que não carrega mais. Tudo isso nos interessa, porque nos faz relacionar uns com os outros não a partir dos códigos sociais dados, senão estaríamos nos relacionando só a partir daquilo que cada um é segundo as normas – “sou aquele cara que faz isso, etc.”. A arte faz surpreender, desperta o sen-tido de surpresa que a linguagem, característica do humano, nos imprime, nos oferece.

ALUNO: Essa construção que você fez dos recortes das imagens não foi aleatória, você criou um efeito de circularidade, não é?

A ideia de circularidade aí é mais a recorrência de ciclo, retransfor-mação. O objeto modelo onde as coisas acontecem está explicitado na narrativa do começo ao fim deste filme ÃO7, em vários momen-tos, pela presença do toro, daquele anel circular. Toro, para quem não sabe, em topologia, que é um modo diferente de pensar a geo-metria, é um lugar geométrico com um buraco só e uma superfície

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é uma coisa problemática, isso não é ruim, porque todos nós somos cheios de problemas; somos problemáticos porque somos finitos e construídos de uma incompletude. Temos sempre uma vontade de completar, de organizar essa finitude, mas sabemos: vai acabar e não vamos dar conta dessa complexidade.

É um modo de cada um lidar com sua incompletude.

A sua problemática é que imprime à linguagem uma visão pessoal, é isso que se chama de artista. Todos nós sonhamos e cada sonho, de cada artista, das pessoas mais bizarras e estranhas, vai ser diverso de outro, único e particular, intransferível. Na medida em que con-segue transferir esse sonho, ele vai começar a ser artista. O modo de você ditar essa sua complexidade inicial em linguagem faz de você um artista; somos todos artistas e precisamos encontrar esse modo de expressar.

ALUNO: Você fala muito da questão do sonho. Tem algum motivo?

Falo muito do sonho porque passamos metade da vida dormindo e mal nos damos conta disso. E depois porque, embora a psicanálise seja extremamente vulgarizada no Ocidente, a relação que se tem

um dos caminhos dela. Uma forma de colocá-los reunidos foi naquela pintura sobre seda, em que coloco os objetos um ao lado do outro, criando um objeto total composto por essas partes, tal qual mencionei o sino, cálice, etc. Outro era a narrativa contando a história das gêmeas capilares, que dava conta da totalidade desses objetos, dessas esculturas todas que eu havia produzido. A segunda versão foi o filme, a terceira já foi a escultura, e assim sucessivamente, mas o que está por trás, o que rege tudo, é essa presença do toro, é um modo de pensar no espaço não euclidiano, não newtoniano, é um modo de pensar no espaço topológico; a rigor, a construção funciona nos lugares geométricos da cons-trução, são conexões improváveis.

ALUNO: Essa relação seria a fagulha do significado inicial do seu trabalho?

O significado inicial é uma questão: existirá um significado inicial? A questão é interessante na medida em que volta a recolocar a posição do artista, sua presença, o que é um artista. Qual a diferença de um artista para um não artista? Acho que nenhuma. É apenas a atenção que aquele sujeito dá aos seus problemas, à sua problemática, ou seja, ao seu conjunto de significados iniciais. Vamos falar não só de um significado inicial, mas de uma situação problemática. O ser humano

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conseguir formulá-los através de uma linguagem, qualquer lingua-gem, pode ser cozinhar sopa, como no caso da exposição. Cozinhar sopa vermelha, oferecendo aquela situação, não é só o sabor da beterraba, não é só o sabor do morango, das frutas vermelhas. É lembrar que aquelas pessoas que tomaram a sopa de beterraba, quando fizeram xixi foi avermelhado. O vermelho estava incorpo-rado em seus corpos, a consciência desse vermelho interno sai sob forma de xixi no dia seguinte. Entre a maquiagem e o xixi vermelho, você está ocupando bastante território do seu respeitável público, ou seja, você autoriza as pessoas a se sentirem parte daquela obra. São esses dispositivos que vamos criando para cercar um traba-lho, para cercar a vontade de criar um significado, de apresentar uma problemática e apresentar esse sujeito problemático na sua integridade, para que ele seja ressonhado por outro e talvez nos entenda. Fornecemos elementos para tentar nos fazer reconhecer pelo outro como humanos, e ele tente sonhar o mesmo sonho. Ofe-recer sonhos para serem remontados, ou sonhos remontados sem você estar dormindo, e sim consciente; logo não são sonhos, mas são da mesma natureza que os sonhos. Na vigília, você é capaz de viver uma intimidade com seu self com uma agilidade capaz de lidar com o cotidiano, e isso é uma situação interessante para o mundo.

ALUNO: O seu processo criativo vem em forma de sonho?

com o sonho continua sendo arcaica e o sonho continua a ser um lugar depositário do saber sobre nós mesmos arcaico. Não damos muita bola para um sonho nosso, ou fazemos interpretações ora de um jeito ora de outro. Mas no sonho você agencia metade da sua vida, está próximo aos processos primários de elaboração da linguagem. Acho didático falar do sonho, é mais por isso.

A rigor, poderia fala do esquecimento, dos momentos de devaneio, talvez sejam tão ou mais intensos que os sonhos e estamos na vigília, acordados, no dia a dia. A atenção nesse momento é também um paradoxo, mais ou menos como o primeiro paradoxo de acordar, sonhar com a verdade e me esquecer quando acordei.

Prestei atenção quando estava distraído, essa atenção a essa dis-tração, ou esse conhecimento do universo dos sonhos, dentro dos sonhos, talvez seja a resposta à questão que você me colocou. Pensar na razão, pensar em reconstruir o sonho ou se deixar levar por ele. Ou pensar em como construir um poema, como construir uma obra de arte, ou se deixar levar pelo fazer daquela obra.

Quando prestamos atenção no devaneio, a distração já não está mais, sabemos como é e procuramos essa situação. Criar, fazer arte é criar condições para ficar nesses estados intermediários e

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somos obrigados a recalcar, acalmar, esconder para lidar uns com os outros e formar uma sociedade.

ALUNO: Queria que você falasse um pouco da sua formação profissional. Você fez arquitetura, mas chegou a exercer a profissão?

Muitos seguiam para a arquitetura como uma espécie de compro-misso, para ter uma posição liberal na sociedade, lidar com arte e ao mesmo tempo lidar com a técnica, era talvez como a informática é hoje. Muita gente na minha geração estudou arquitetura. A arquite-tura me deu – não a Escola de Arquitetura, que levei muito pouco dela – a atenção e a prática do exercício, as convenções para construir e a necessidade de perceber, de se fazer consciente das dimensões com as quais a arquitetura equaciona, extremamente enriquecedoras para alguém que lida com escultura. A escultura tradicionalmente é alguma coisa vista de fora e, recentemente, no século passado, começou-se a falar do que hoje chamamos de instalação. A única diferença da instalação, iniciada com Kurt Schwitters em 1912, para a escultura é que na instalação você está dentro e na escultura você está fora.

Quando se trata de arquitetura você está dentro e fora, essa tensão e experiência da arquitetura talvez me tenham dado muito subsídio e

Você não inventa na sua imaginação? Como se dá seu processo de criação?

A minha produção não vem dos sonhos e nem sequer dá atenção aos sonhos. Estou usando e abusando dos sonhos porque não estou sonhando. Vem de saber que existem processos – e a prova disso são os sonhos – de compreensão, de apreensão, nos dei-xando frente ao mundo real e não são só aquilo que aprendemos no convívio social, nas instituições que nos oferecem educação para se conviver e viver. Tem o lado do ser humano deseducado, ineducável ou irredutível aos padrões de educação, são eles viven-ciados aqui e continuam emergindo. Eles afloram sob a forma de violência e são quase indomáveis. Aspectos que a arte resgata e traz a um bom caminho, bom na medida em que existir um caminho humano.

Seria preciso nos alongarmos muito nessa reflexão para tentar saber o que é o humano. Sei que humano não é só aquilo que todos os dias nos dizem que é, estou convencido de que as normas sociais não me fazem humano, me deixam apenas ser humano. Gostaria de encontrar uma sociedade em que emergissem mais dessas catego-rias, em que as relações humanas se intensificassem, o amor fosse de outra forma e exatamente pudesse lidar com esse humano que

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Vanguarda Viperina, 1986 Três serpentes, éter

Foto: Lucia Helena Zaremba

muitas facilidades para compreender e lidar com essa linguagem de estar dentro e fora. Coloco a questão radical da continuidade entre exterioridade e interioridade uma vez que arquitetura é abrigo e monumento, sendo abrigo um lugar onde se acolhe e monumento um lugar onde você honra alguma coisa.

ALUNO: Você fala de outras culturas, das mandalas, do ícone chinês. Não é um pouco eurocêntrico considerar essas manifestações arte? Não seria o contrário? Elas não são feitas com esse objetivo, são rituais...

Você tem toda razão, são rituais em que a arte não é sequer um esta-tuto. Seria você compreender a existência de uma fusão inexorável que está acontecendo no mundo, onde certas estruturas ocidentais terminam se impondo e se generalizando, resgatar um território mantido misteriosamente, como é o da poesia e da arte – da arte falamos depois, porque estamos vivendo à beira de um abismo em relação à arte. Mas manter esse território, onde o espírito vai se manifestar de outro modo e não dentro da ordem da razão, como se espera, é saudável.

Trazer esses objetos, que são manifestações de outras culturas, para um modo de pensar artístico no Ocidente é apenas identificar

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São operações distintas, de ordem diversa, e você encontra uma intimidade muito grande em manifestações de culturas, as mais diversas. O lugar da poesia no Ocidente, onde você ainda conse-gue estabelecer esse diálogo, é esse lugar. Quando vou em direção a outra cultura, olhar outro tipo de manifestação, vou com meu espírito aberto de poeta, não de artista, de profissional. Por acaso, você vai encontrar muito dessas coisas em museu de antropologia, etnologia, arte, mas o que vou procurar não é arte, basicamente, é outro modo de pensar o mundo, muito mais persistente que os últimos trezentos anos de razão.

Quando você vai ao Oriente é muito surpreendente, em certas regiões, o fato dos caras pensarem, o modo que isso repercute na representação daquilo que é vida, é extraordinário. Você compreende essa linguagem lidando com signos, símbolos, mas com um discurso armado, e você é capaz de conversar sobre isso com essa linguagem, pelo fato de estar habituado com esculturas e coisas dessa ordem.

O que se deve proteger não é o meio de arte, não são os museus, sou contra isso tudo, mas outro dispositivo mental, outro modo de pen-sar capaz de dialogar com seres humanos que produzem coisas, as mais diversas, mas que você pode interpretá-las. Por exemplo, você entra de manhã no banheiro, lava a mão com sabonete, vai embora e

aquilo de positivo no Ocidente na relação com a poesia, com aquilo que há de positivo no processo de elaboração de linguagem nessas outras culturas. Isso não é uma coisa nova e é bastante discutí-vel. Coloquei essa questão no trabalho apresentado no Louvre. O nascimento dos museus está estritamente ligado à dominação de um povo sobre outro; o museu, a rigor, não deixa de ser o lugar de pilhagem, daquilo que você toma do inimigo quando invade a casa dele. Os museus são uma espécie de resgate desse saque de dominações, de guardar o lado precioso.

O que existia nessa peça do Louvre era quase que um texto sobre isso. Tinha uma balança, onde de um lado havia caveira e de outro havia réplicas de cabeças que estavam no Louvre, da cultura grega, de culturas diversas. Havia uma alusão a isso, a quanto de domínio foi exercido para guardar esse tesouro precioso, um bem comum do humano. Quanto o homem destruiu, a partir de seu antagonismo com outra tribo, para no fim reconhecer o tesouro dessa tribo? Que estranho movimento é esse, para assimilar o que há de bom no outro é preciso destruí-lo? Acho que o museu é uma síntese perversa disso, ele guarda a memória do saque.

Não parto do princípio da arte, inclusive tenho usado sistema-ticamente a palavra cozinha aqui até para evitar essa confusão.

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uma grande exposição na França chamada Magiciens de la terre, organizada por Jean-Hubert Martin, o curador, e foi a primeira vez que ele trouxe para o museu uma diversidade cultural. Ele foi muito acusado de acrítico ou de ser eurocentrista ao contrário. Eu estava expondo e meu vizinho era um monge tibetano desenhando mandalas de areia.

Há uma anedota bem curiosa: o cara chegou na hora do almoço com seu séquito e perguntaram se ele queria comer, e o pessoal dele disse que sim, até que tanto insistiram e ele disse que não comia. Ele estava ali como artista, mas é evidente que ele não era artista nesse sentido ocidental, o preço que há de se pagar para ter essa audiência, essa proximidade, talvez seja o preço dessa crítica. É uma questão política ver se vale a pena ou não lidar com isso. Em relação ao modo de ver, ao modo de perceber, acho que é bom estarmos atentos e conscientes. Como no começo da conversa, em que falei da instalação para a inauguração do Banco do Brasil de São Paulo, o vetor era revitalizar uma área urbana de São Paulo e por isso queriam um centro cultural naquela área. Uma área vital, cheia de vida, cultura popular emergente!

ALUNO: O seu trabalho me parece ligado a uma coisa espiritual.

deixa aquele sabonete ali, no dia seguinte você faz a mesma coisa e o sabonete está ali. Um dia você se dá conta do sabonete como uma escultura. A rigor, essa operação que você está fazendo, homeopa-ticamente, é exatamente uma operação de fazer uma escultura, pegar uma quantidade de matéria, colocar ali e retirar até fazer uma escultura. Não é dizer que você está trazendo o sabonete para o campo da arte; não, estou transformando a minha vida em algo mais positivo, é saber que lavar as mãos não é só para limpar as mãos, olhar não é só para não cair no buraco, mas para desfrutar de outras coisas, para compreender o mundo de outro modo.

Hoje em dia arte virou profissão, quando comecei era “vagabundo”, hoje temos a impressão de que o meio de arte é uma coisa pode-rosa, museus, galerias. Isso é uma balela do começo do milênio, do século, daqui a dez anos se esquece e fica na moda um outro negócio. Arte é aquela tarefa solitária de procurar alguma coisa que você quer ver de outro jeito, não porque você faz daquilo uma profissão e seu meio de vida.

Acho que é importante ser crítico em relação à ideia de arte do Oci-dente. É onde a gente lida, joga, e onde a gente transita, mas acho importante manter essa distância crítica, essa vigilância crítica em relação ao que dizem ser arte ou não. Na década de 80 houve

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ALUNO: Mas aí você cai no agnosticismo.

Caímos muito longe. Uma espécie de humanismo universalista, ou para-humanismo, porque para falarmos com árvore não custa! (Risos)

Talvez seja um anacronismo, mas acredito ser uma coisa pendular na cultura do Ocidente recente, um tempo muito rápido, muito acelerado, há uma desmaterialização do conteúdo espiritual na história da arte e uma volta. Quando se tende a um esvaziamento total de conteúdo, se tende a uma volta.

ALUNO: Espiritual é uma palavra difícil, me lembra Rothko ou Malevich, mas hoje em dia falar nisso é complicado.

É uma palavra complicada. Estava falando nas fronteiras da lingua-gem, as bordas da linguagem, as bordas da percepção, talvez seja o fato de trabalhar com limites tão tênues, tão sutis, me obrigando a usar o vocabulário dessa maneira. Durante muitos anos fiquei extremamente triste ao usar esse vocabulário, e até usava a palavra “emergir” fora do contexto, mas hoje em dia é mais negócio você correr risco e tentar fazer presente e evocar coisas mais sutis com que a vida lida, a linguagem lida, do que passar por um nacionalista estreito e deixar passar essas coisas como sendo banais. A vida, penso, está mais apoiada nessas pequenas coisas, nessas sutilezas, do que nas grandes razões. Costumo dizer que somos monoteístas, politeístas, ou falsos ateístas, mas tenho encontrado bastante difi-culdade em ser convencido por um ponto de vista ateísta.

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Saiba maisTUNGA. Assalto. Brasília: CCBB-Brasília, 2001. 146 p.

TUNGA. Barroco de lírios. São Paulo: Cosac & Naify, 1997. 308 p.

TUNGA. Caixa de livros Tunga. (Olho por olho, Encarnações miméticas, Se essa rua fosse minha, Lúcido Nigredo, Prole do bebê, Trou rouge e Cartaz Louvre). São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

Notas1. Inside up outside down – performance apresentada na X Documenta de Kassel,

Alemanha. A peça principal desta performance era um enorme chapéu de palha (no estilo veneziano), abaixo do qual e sustentando este chapéu, várias jovens caminhavam pela estação de trem. Acima do chapéu, várias caveiras acomodadas como parte dele.

2. Resgate – performance apresentada no Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo. Nota: Os trabalhos podem receber mais de uma realização, por isso é comum encontrarmos nomes distintos para diferentes versões destes trabalhos, na verdade, desdobramentos de ideias. No caso, por exemplo, de Resgate, outras versões foram realizadas com os títulos de Assalto e Teresa.

3. Bailarinos da Companhia Lia Rodrigues de Dança.

4. À La Lumière des Deux Mondes – escultura montada no Museu do Louvre, Paris, 2005.

5. Filme O nervo de prata, de Tunga e Arthur Omar, 1987. Xifópagas capilares – dupla de gêmeas unidas por uma única cabeleira, objeto, performance e filme realizados primeiramente nos anos 80.

6. Kurt Goedel – (1906-1978) – matemático austríaco cujo trabalho mais famoso foi o teorema da incompletude. Nos anos 40 imigrou para os Estados Unidos para trabalhar na Universidade de Princeton.

7. ÃO – instalação de som com filme 16 mm, montada em 1981 na Galeria Cândido Mendes, Rio de Janeiro.

8. Kurt Schwitters – (1887-1948) – pintor alemão que trabalhou com diversos tipos de mídias, utilizando poesia, som, pintura, colagens, escultura, desenhos gráficos, tipografia e aquilo que viria a ser conhecido como instalação. Figura atuante no dadaísmo, construtivismo e futurismo.

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