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ISSN 1413-6651 So Paulo - 2010

Editora Responsvel Institucional Marilena de Souza Chaui Editora Responsvel Tessa Moura Lacerda N. XXIII, JUL-DEZ DE 2010 ISSN 1413-6651

Comisso Editorial Celi Hirata, Daniel Santos, Eva Turim e Valria Loturco da Silva. Conselho Editorial Atilano Domnguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatin (Univ. de Crdoba), Diogo PiresAurlio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagre (Univ. de Rennes), Maria das Graas de Souza (USP), Olgria Chain Fres Matos (USP), Paolo Cristofolini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-Franois Moreau (cole Normale Suprieure de Lyon). Pareceristas Pareceristas: Andr Menezes Rocha, Cntia Vieira da Silva, David Calderoni, Douglas Ferreira Barros, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino Jos de Macedo Orione, Fernando Dias Andrade, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Luciana Zaterka, Lus Csar Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mnica Loyola Stival, Roberto Bolzani Filho, Srgio Xavier Gomes de Arajo.

Ficha CatalogrficaCadernos Espinosanos / Estudos Sobre o sculo XVII So Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2010. Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651Publicao do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Sculo XVII Universidade de So Paulo Reitor: Prof. Dr. Joo Grandino Rodas Vice-Reitor: Prof. Dr. Hlio Nogueira de Cruz FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Diretora: Profa. Dra. Sandra Nitrini Vice-Diretor: Prof. Dr. Modesto Florenzano Departamento de Filosofia Chefe: Roberto Bolzani Filho Vice-Chefe: Mrcio Suzuki Coord. do Programa de Ps-Graduao: Marco Antnio de vila Zingano e Carlos Alberto Ribeiro de Moura

Imagem da Capa: Belvedere (Litogravura) M. C. Escher 1958

Endereo para correspondncia: Profa. Marilena de Souza Chaui A/C Grupo de Estudos Espinosanos Departamento de Filosofia USP Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 05508-900 So Paulo-SP Brasil Telefone: 0 xx 11 3091-3761 Fax: 0 xx 11 3031-2431 e-mail: [email protected] site: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos

Projeto Grfico: Taynam Bueno /// [email protected] /// Tiragem: 500 exemplaresA Comisso Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestes de mudanas.

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APRESENTAO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade de So Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste perodo, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar as foras do tempo voraz que tudo abole da memria dos homens. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propsito. Desde o nmero X, dedicado ao Professor Lvio Teixeira, os Cadernos esto dedicados tambm a Estudos sobre o sculo XVII, seu subttulo. O que, na verdade, expressa algo que j acontecia na prtica, pois textos acerca de vrios outros filsofos do perodo sempre estiveram presentes a cada edio. O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos sobre filsofos seiscentistas, constituindo um canal de expresso dos estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do pas. Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaborao de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos tambm publicaro, regularmente, ensaios de autores brasileiros e tradues de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto. Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filsofos daquele perodo a que esta publicao inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a comunicao entre os que esto envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento deste trabalho.

Franklin Leopoldo e Silva5

SOBRE ESTE NMERO

Este nmero traz uma diversidade de autores do sculo XVII: dois artigos sobre Leibniz (em sua complexa relao com a filosofia espinosana e na diferena entre o possvel e o existente); dois artigos sobre Hobbes (sobre sua noo de causalidade e sobre o direito natural); dois artigos sobre Espinosa (sobre a poltica nesse autor); um artigo sobre a noo de liberdade para Descartes; e finalmente um artigo sobre um autor contemporneo: MerleauPonty e sua crtica ao chamado paradigma cartesiano de pensamento. Este nmero conta ainda com a traduo das anotaes de Leibniz sobre o primeiro livro da tica de Espinosa. Boa leitura!

Os Editores

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SUMRIO

LEIBNIZ, 1678: ANOTAES DE LEITURA DA TICA DE ESPINOSA Ulysses Pinheiro.....................................................................................11 A CAUSALIDADE EM HOBBES: NECESSIDADE E INTELIGIBILIDADE Celi Hirata...............................................................................................33 POSSvEIS E ExISTENTES EM LEIBNIZ Wilson Alves Sparvoli.............................................................................59 A CONCEPO CARTESIANA DA LIBERDADE NOS PrInCPIos dA FIlosoFIA Mariana de Almeida Campos.................................................................73 IMAGENS E ANALOGIAS DO CORPO E DA MENTE NA POLTICA DE SPINOZA Alexandre Arbex valadares.....................................................................95 IMAGINAO: ENTRE O MEDO E A LIBERDADE Daniel C. Avila.......................................................................................135 O DIREITO vIDA NOS ElEMEnTos dA lEI nATUrAl E PolTICA DE HOBBES Rogrio Silva de Magalhes..................................................................1599

Para alm do corPo-objeto e da rePresentao intelectual: como merleau-Ponty redescobre o corPo COMO vECULO DA ExISTNCIA jos marcelo siviero.............................................................................187 SOBRE A TICA DE BENTO ESPINOSA G. W. Leibniz............. .........................................................................................215 NOTCIAS.....................................................................................................254 INSTRUES PARA OS AUTORES...........................................................257 CONTENTS...................................................................................................258

LEIBNIZ, 1678: ANOTAES DE LEITURA DA TICA DE ESPINOSA*Ulysses Pinheiro**Resumo: Este artigo analisa as anotaes que Leibniz escreveu, em 1678, sobre a ento recm-publicada tica de Espinosa, mostrando como elas prefiguram alguns desenvolvimentos posteriores de sua teoria metafsica. Partindo de uma anlise das crticas de Leibniz Proposio 2 da Parte I da tica, o artigo mostrar como as discusses sobre a compatibilizao entre liberdade e determinismo, que ocuparam o centro de suas preocupaes metafsicas nas dcadas seguintes, retomam, ainda que com modificaes, temas e problemas tratados nessas notas. Particularmente, ser mostrado que a relao entre autonomia e poder de escolha pode ser melhor compreendida como um desenvolvimento de teses exploradas nessa leitura inicial da obra de Espinosa. Palavras-chave: Leibniz, Espinosa, monismo, determinismo, liberdade.

Na data de seu encontro pessoal com Espinosa, em 1676, Leibniz j havia lido seu Tratado Teolgico-Poltico, e provavelmente tambm os Princpios da Filosofia de Descartes1, alm de ter tomado conhecimento das teses centrais de sua obra principal (e poca indita), a tica, mas teve de esperar at 1678 para finalmente ter o livro entre as mos. O exame atento de como Leibniz recebeu, criticou e eventualmente assimilou as proposies da tica pode ser usado como um princpio hermenutico para compreender a elaborao, ento ainda em curso, de seu prprio sistema. A partir da exposio de trechos das anotaes nas quais as teses* Este texto foi escrito graas ao apoio da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), atravs do Programa de Apoio a Humanidades 2008 e do Pronex Predicao e existncia. O autor tambm conta com a bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida pelo CNPq. ** Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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em questo foram formuladas, explicar as divergncias assinaladas por Leibniz em sua leitura ser um dos ndices que permitir avaliar um copertencimento e uma distncia entre essas figuras centrais da modernidade. No se trata de elucidar a relao entre eles a partir da difcil noo de influncia, nem da idia reguladora de um dilogo que tivesse como resultado o estabelecimento de um julgamento final sobre a verdade e a falsidade contidas na teoria de um ou de outro . Ao invs disso, o mtodo2

se formava ento na Europa. Ainda em busca de Espinosa, Leibniz faz um longo desvio de sua viagem de Paris at Hanover, onde ocuparia o cargo de bibliotecrio da Corte, passando por Haia para conversar pessoalmente com o autor do livro to ansiosamente aguardado. A curiosidade de Leibniz explica-se por um conjunto de motivos ou, pelo menos, podemos inferir algumas dessas razes a partir de outros escritos da mesma poca. Primeiramente, j ento envolvido no projeto de formular uma linguagem universal para a cincia, mas tendo em vista, sobretudo, o objetivo poltico maior de pensar os fundamentos da sociedade europia na unidade da Igreja atravs da reunificao da cristandade, Leibniz via, na anunciada filosofia esotrica de Espinosa, escrita, segundo se dizia no crculo restrito dos que conheciam verses ou trechos da obra, maneira dos gemetras, uma possvel contribuio a (ou talvez mesmo a realizao acabada de) seu prprio projeto de elaborao de uma lngua perfeita que exprimisse a estrutura lgica do pensamento, livre das contingncias histricas que contaminam as lnguas naturais. A decepo de Leibniz, ao ler a obra pstuma no comeo de 1678, manifesta-se nas inmeras crticas, escritas margem do texto ou em suas anotaes privadas, algumas vezes expressas em tom spero, contra as demonstraes propostas por Espinosa. Em segundo lugar, Leibniz aparentemente tambm buscava, na filosofia espinosana, uma contribuio para suas tentativas de elaborar uma prova para a existncia do Ser necessrio que explicasse, ao mesmo tempo, o estatuto ontolgico dos seres contingentes e unisse, em uma nica explicao coerente, essas duas modalidades do ser. A decepo aqui talvez tenha sido ainda maior: o necessitarismo implicado pela noo espinosana de substncia ser, no fim da dcada de 1670, duramente criticado, e depois incorporado, como uma espcie de slogan filosfico, a todas as suas crticas aos novos filsofos (i.e., os cartesianos e os hobbesianos). A partir da dcada de 16805, o espinosismo ser caracterizado como a realizao mais13

de contraposio aqui adotado buscar, na figura que Espinosa assume no contexto da teoria de Leibniz, a manifestao de traos essenciais do pensamento desse ltimo. No inicio dos Novos ensaios, traado um conflito dramtico constitutivo da obra, o qual no ope, como se poderia supor, as teorias de Leibniz e Locke, mas antes as de Leibniz e Espinosa: o primeiro, travestido sob a figura de Tefilo, parece confessar, numa espcie de autobiografia intelectual, ter, em certa poca, quase se convertido ao espinosismo. A resistncia a essa converso suficientemente importante para justificar o batismo de ningum menos do que do protagonista do dilogo; Leibniz descreve a a tentao de aderir filosofia de Espinosa, para acrescentar logo em seguida: mas essas novas luzes me curaram, e desde essa poca adoto s vezes o nome de Tefilo3. No discutiremos aqui se a tentao narrada por Leibniz nesse trecho foi real ou apenas um recurso literrio, mas inegvel que ela corresponde a um fato marcante em sua vida: mesmo antes de seu perodo parisiense, que transcorreu entre os anos de 1672 e 1676, Leibniz j tinha conhecimento da filosofia de Espinosa, da qual se aproximou, primeiramente, com reservas . Em Paris, fez contatos com4

membros do crculo espinosista principalmente o jovem matemtico e cientista Tschirnhaus, cuja indiscrio hesitante lhe permitiu os primeiros contatos com a expresso mxima da obra de Espinosa, o manuscrito da tica, que circulava entre poucos no movimento radical subterrneo que12

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bem acabada do cartesianismo, mas no merecer mais nenhum exame detalhado como os que ele lhe consagrou no conjunto de anotaes sobre a tica, datadas de 1678 . A crtica a Espinosa ocupa, assim, uma funo6

O argumento de Leibniz labirntico: em primeiro lugar, concede que, se atributos forem entendidos como predicados concebidos por si mesmos, ento duas substncias com atributos diferentes no tm nada em comum entre si; em seguida, formula uma objeo contra a Proposio 2, negando que seja absurdo que duas substncias distintas possam ter alguma coisa em comum (precisamente, atributos que so concebidos por si mesmos); finalmente, diz que sua prpria objeo poderia ser respondida por Espinosa, mas no explicita em que consistiria essa resposta; ao invs disso, recusa o argumento e a prpria questo que ele tenta responder porque nega que possa haver dois atributos exprimindo a mesma essncia. Entretanto, com esse ltimo movimento, parece ter sido retirada a base de sua crtica inicial, pois o que ele implica diretamente que, dada a definio de substncia a partir de uma de suas propriedades (a de ser em si), segue-se imediatamente outra propriedade, a de ser concebida por si. Ora, essa assimilao que, nos comentrios sobre a tica, enunciada precisamente como o principal ponto de discrdia com relao teoria de Espinosa7, sendo incessantemente repetido ao longo das notas de leitura redigidas nesse perodo por exemplo, ao comentar a Definio 3 da Parte I, diz Leibniz:Definio 3. Substncia aquilo que em si e concebido por si. [....] Ento podemos perguntar: [....] a substncia ao mesmo tempo em si e concebida por si? Mas ento seria necessrio para ele provar que o que quer que tenha uma propriedade tambm tem a outra, embora o contrrio parea antes ser verdadeiro [....]. E esse [isto , a tese contrria de Espinosa] o modo como os homens usualmente concebem as substncias. (Leibniz 11, GP 1, p.139)

peculiar no desenvolvimento intelectual de Leibniz: formulada de uma vez por todas nesse primeiro contato, permanecer como um axioma negativo pelo resto de sua obra. Mostraremos adiante que esse axioma oculto compatvel com alguns desenvolvimentos posteriores do pensamento leibniziano, especialmente com os conceitos de noo completa e com sua concepo acerca da liberdade e da contingncia; antes disso, porm, preciso entender sua formulao nesse momento inaugural. O cerne da crtica que Leibniz elaborou em 1678 tica de Espinosa encontra-se em seu comentrio sobre a Proposio 2 da Parte I; diz ele:Proposio 2. Duas substncias com atributos diferentes no tm nada em comum. Se por atributos ele entende predicados que so concebidos por si mesmos, concedo a proposio [....] Mas o caso diferente se essas duas substncias tm alguns atributos diferentes e alguns em comum, como quando c e d so atributos de A, e d e f, atributos de B. [....] Talvez ele pudesse demonstrar a proposio contra essa objeo, como se segue. Uma vez que d e c ambos expressam a mesma essncia (sendo atributos da mesma substncia A, por hiptese), e d e f tambm expressam a mesma essncia, pela mesma razo (sendo por hiptese atributos da mesma substncia B), c e f tambm devem [exprimir a mesma essncia]. Portanto, segue-se que A e B so a mesma substncia, o que contrrio hiptese, sendo, pois, absurdo que duas substncias distintas possam ter alguma coisa em comum. Retruco que no concedo que possa haver dois atributos que so concebidos por si mesmos e ainda assim possam expressar a mesma substncia. Pois quando quer que isso ocorra, esses dois atributos expressando a mesma coisa de diferentes modos podem ser analisados, ou pelo menos um deles. Isso posso facilmente provar. (Leibniz 11, GP 1, p.141)14

A importncia que Leibniz concedeu Proposio 2 fica clara luz desse ltimo trecho: ela o ponto de partida do qual todo o sistema15

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espinosano derivado, j que a Proposio 1 , aos seus olhos, suprflua8, e nessa demonstrao inicial encontram-se em germe as polmicas teses do monismo e do determinismo absoluto, contra as quais Leibniz volta todo seu arsenal argumentativo ao longo da polmica de uma vida inteira contra o espinosismo. Dada a tese espinosana segundo a qual duas substncias numericamente distintas no podem ter nenhum atributo comum entre si, segue-se que cada substncia um princpio nico de autodeterminao, o qual, no sendo influenciado por nada de externo, s pode ser explicado, internamente, por sua prpria essncia o que implica diretamente, segundo o autor da tica, o determinismo absoluto, j que todas as propriedades de uma substncia (inclusive sua existncia) seriam derivadas logicamente de sua essncia. A ambigidade presente no argumento de Leibniz explicada em parte pelo fato de, em um certo sentido, ele ter de recusar a conexo entre as duas propriedades da substncia discriminadas acima, e, em outro sentido, ter de aceitar essa mesma conexo, tendo em vista a inteligibilidade das substncias criadas e, no caso dos indivduos dotados de razo, sua autonomia como agentes livres. Inteligibilidade e autonomia que ele sempre se recusou a separar: se um agente livre, ele o tanto mais sua liberdade enrazase em uma compreenso (e, veremos adiante, em uma autocompreenso) racional de sua essncia. Se verdade, como dir Leibniz mais tarde, que o passado est impregnado de futuro, ento talvez fosse legtimo supor que a conscincia, ainda que implcita, dos desenvolvimentos posteriores de seu prprio sistema guia as anotaes feitas margem da tica ou, seria melhor dizer, parece ser parte de seu processo constitutivo. Um indcio disso a constatao de que os paradoxos envolvidos na proposta compatibilista entre liberdade e determinismo, proposta por Leibniz aps 1685, e dos quais muitos duvidam que ele tenha conseguido se livrar, manifestam-se desde essa raiz metafsica que a caracterizao do conceito de substncia a16

partir das propriedades de ser em si e ser concebida por si, pois, como veremos adiante, se a recusa da conexo entre elas garante uma explicao para a contingncia requerida pelo poder de escolha, a afirmao dessa mesma conexo o que fundamenta a autonomia das aes. De fato, a teoria leibniziana da noo completa, elaborada em sua forma acabada na dcada seguinte9, segundo a qual todas as substncias so individuadas por meios puramente conceituais, parece assimilar as propriedades de ser em si e ser concebido por si, o que permitiria explicar a autonomia das substncias atravs de sua completa independncia conceitual, mesmo com relao a Deus: esse ltimo encontra prontas em seu intelecto as idias das substncias possveis. Por outro lado, a contingncia do mundo atual e, por transitividade, de todos os acontecimentos que nele ocorrem, s possvel se a criao do mundo por Deus for explicada a partir de uma relao entre o criador e as criaturas, concebidas como substncias, que inclua uma comunidade de atributos (ainda que sob a forma de limitao e de negao10), o nico modo de exprimir de forma inteligvel uma relao causal que preserve o poder de escolha dos seres finitos. A questo inicial com a qual temos de nos defrontar diz respeito, pois, ao modo de conciliar essas duas posies aparentemente antagnicas. Para explorar o modo como Leibniz viu essa conciliao, voltemos a seu comentrio da Proposio 2 da Parte I da tica, pois desde esse primeiro contato com o texto to ansiosamente aguardado por um ano11, a recusa do fatalismo necessitarista que ele reconheceu nas pginas recm folheadas guiou suas crticas. A leitura atenta das anotaes de Leibniz revela no s uma crtica ao uso ambguo que Espinosa faz da palavra atributo, mas uma contaminao do prprio Leibniz por essa ambigidade12: essa palavra usada tanto por ele quanto pelo autor que critica ora para significar a totalidade da essncia da substncia (o equivalente do atributo principal cartesiano), ora para significar uma das formas ou propriedades que17

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constituem a essncia da substncia. Podemos desfazer essa ambigidade reservando ao primeiro sentido a palavra essncia e ao segundo, a palavra atributo . O que Leibniz pretende mostrar que, em certo sentido, uma13

complexo se resolve porque a essncia uma lei (ou noo) individual. Nesse sentido, Deus o sujeito de predicao de todas as formas simples, mas a essncia de Deus no o mero agregado dessas formas, nem cada uma delas tomada separadamente16. Porque as formas so simples17, nenhuma proposio afirmativa verdadeira poderia ser dita da relao que elas estabelecem entre si se elas no estivessem unidas a um sujeito (por exemplo: o pensamento no a durao, mas o sujeito que pensa dura). Mas isso mostra precisamente a diferena entre as formas e a substncia. Ora, a substncia que tem uma essncia. As formas simples so todas elas e apenas elas atributos de Deus, elementos primeiros de sua possibilidade, ainda que Deus as preceda todas em ato: as formas so concebidas por si, os sujeitos o so pelas formas e pelo fato de que so sujeitos18. A relao entre os atributos e as substncias (Deus ou as criaturas) a relao entre abstratos (expressos em predicados) e o concreto (uma coisa substancial, plenamente inteligvel) os primeiros encontram-se em um ser concreto que a condio de sua existncia, mas que encontra neles, por sua vez, a condio de sua essncia. A substncia no definida pela lista de seus atributos, como se as variaes dos atributos fossem suficientes para singularizar o sujeito19: ela a razo ou o fundamento que permite deduzir todos os atributos do sujeito que ela designa, o que faz que a relao de inerncia seja tambm uma relao de fundamento explicativo. Poderamos tentar discernir nessa ltima afirmao a resposta de Espinosa aludida por Leibniz em sua crtica Proposio 2. Como vimos, essa resposta permaneceu inarticulada no comentrio leibniziano, o qual, lembremos, formulado nos seguintes termos:Talvez ele pudesse demonstrar a proposio contra essa objeo, como se segue. Uma vez que d e c ambos expressam a mesma essncia (sendo atributos da mesma substncia A, por hiptese), e d e f tambm expressam a mesma19

substncia, que em si, no concebida por si, na medida em que ela tem em comum com as outras substncias (Deus e as demais substncias criadas) muitos atributos; em outro sentido, porm, cada substncia concebida por si, pois a essncia de cada uma delas qualitativamente diferente da de todas as demais. s ao manter, simultaneamente, que a cada substncia individual corresponde uma nica essncia, e que essa essncia composta por atributos compartilhados com outras substncias (e, em sua forma absoluta, com Deus) que Leibniz poder explicar a criao de substncias que formam um subconjunto do conjunto de substncias possveis. Feita essa distino entre essncia e atributo, fica claro por que o comentrio de Leibniz sobre a Proposio 2 compatvel no s com a doutrina da noo completa, enunciada de forma clara a partir de 1685, e da qual essa distino ao mesmo tempo um signo e uma causa, mas tambm com o argumento para provar a existncia de Deus, elaborado em 1676 durante suas discusses com Espinosa em Haia, e retomado ao longo dos anos seguintes . De fato, esse ltimo argumento afirma que Deus 14

um ser dotado de infinitas perfeies ou infinitos atributos, enquanto o argumento de 1678 contra a Proposio 2 afirma que, se mais de uma propriedade exprime a essncia de uma substncia, ento uma delas no simples, e pode ser analisada at se chegar a algo simples. A divergncia com Espinosa15 poderia ser interpretada da seguinte maneira: a propriedade de exprimir uma essncia s pode ser aplicada a algo simples, de tal modo que vrios atributos simples no podem ser predicados de uma mesma coisa se a predicao for entendida como expresso da essncia. Toda substncia tem apenas uma essncia simples, embora ela seja, em certo sentido, complexa e completa: essa conjuno do simples e do18

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essncia, pela mesma razo (sendo por hiptese atributos da mesma substncia B), c e f tambm devem [exprimir a mesma essncia]. Portanto, segue-se que A e B so a mesma substncia, o que contrrio hiptese, sendo, pois, absurdo que duas substncias distintas possam ter alguma coisa em comum. (Leibniz 11, GP 1, p.141)

(o que equivale tese provada na Proposio 5). Essa anlise de Bennett poderia servir como base para completar o argumento da Proposio 2, da seguinte maneira: se uma substncia A fosse d e c e apenas d e c e se uma substncia B fosse d e f e apenas d e f, algo teria de explicar esse fato; ora, o que explicaria esse fato s poderia ser o atributo d (j que nada mais, por hiptese, dado na realidade de A e de B). Mas isso significaria que d explica ao mesmo tempo fatos diferentes, o que incompreensvel (ainda mais se levarmos em conta que, sendo uma forma simples, d no implica nem c nem f). Logo, a situao descrita na hiptese inicial impossvel porque inexplicvel. Contra essa concluso, poder-se-ia formular a seguinte objeo: se o atributo d no pode explicar a diferena entre A e B, ento ele no pode explicar tampouco por que, no caso em que A tivesse os atributos d e c e B tivesse os atributos f e g, A teria o atributo c mas s o atributo d parece poder explicar esse fato. Contra essa objeo, seria possvel imaginar a seguinte resposta: o que explica a presena de c em A apenas a compossibilidade entre d e c, a qual a razo explicativa de sua atribuio a A; se, em seguida a essa resposta, for perguntado por que existem algumas compossibilidades e no outras, a resposta seria: todas as compossibilidades existem (porque tudo o que possvel necessariamente existe); s existe uma nica substncia (Proposio 14). Mas basta por ora de especulaes sobre o que Leibniz teria podido querer dizer; o que quer que ele tenha pensado sobre esse ponto, o que importante notar, tomando como base o que ele efetivamente escreveu, que a mera distino conceitual entre essncia e atributo no resolve todas as dificuldades relacionadas caracterizao da natureza das substncias individuais a partir das propriedades de ser em si e ser concebido por si. Em particular, a atribuio de liberdade s substncias individuais proposta por Leibniz deve explicar sua autonomia levando em conta sua verso peculiar da atribuio a elas da propriedade de ser concebidas por21

No fica claro, nesse trecho, o contedo completo do argumento, aqui apenas esboado, que Leibniz sugeriu ao se colocar no lugar de Espinosa e imaginar sua resposta objeo formulada logo antes. Podemos ensaiar uma hiptese sobre seu significado, desde que reconheamos desde o incio que ela permanecer sempre uma especulao no comprovvel textualmente, como indica o prprio prembulo da leitura leibniziana do texto espinosano, enunciado justamente como uma marca de prudncia: ... forte demonstrabit hoc modo. Essa especulao teria a seguinte forma: um exame atento da Proposio 2 deve admitir, inicialmente, que ela pode ser lida de duas maneiras: ou bem como afirmando que, se duas substncias diferem com relao a todos os seus atributos, ento elas no tm nada em comum entre si, ou bem como afirmando que, se duas substncias tm um atributo distinto de algum atributo da outra, ento elas no tm nenhum atributo em comum entre si. apenas a segunda leitura que permitiria a resposta de Espinosa obscuramente sugerida por Leibniz20. Bennett (1, 17) sugere que, dada a tese do racionalismo explicativo (isto , a tese que afirma a validade irrestrita do Princpio de Razo Suficiente), se houvesse n substncias com o atributo d, algo teria de explicar esse fato; ora, essa explicao teria de derivar de d, isto , do que d , isto , da definio de d. Mas nenhuma definio exprime um nmero determinado de indivduos (pela Proposio 8), uma vez que ela se limita a exprimir a natureza da coisa definida. Logo, dizer que h um nmero n de substncias com o atributo d seria uma afirmao para a qual nenhuma razo poderia ser dada20

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si: enquanto os indivduos espinosanos (os modos finitos da substncia nica) podem ser ditos autnomos na medida em que suas aes no so explicadas por causas externas, os indivduos leibnizianos aparentemente s podem ser, tanto quanto a substncia nica de Espinosa, inteiramente ativos, j que nada de externo age sobre eles (a no ser Deus, na medida em que os cria). Paradoxalmente, esse excesso de independncia traz problemas no s, como era de se esperar, para a atribuio da contingncia envolvida no poder de escolha, uma vez que tudo o que acontece a uma substncia uma ao que se segue de seu conceito, mas tambm para a prpria noo de autonomia, uma vez que a passividade deve ser explicada a partir de determinaes intrnsecas substncia todas as suas aes, tanto as ditas livres quanto as involuntrias, seriam o resultado causal de sua essncia, a qual concebida por si (no sentido relevante discriminado acima21). Como se sabe, Leibniz ter uma sada elegante para esse problema, ainda que ela s seja elaborada em textos muito posteriores ao fim da dcada de 1670 (sada essa que manifestaria uma influncia inequvoca de Espinosa (Cf. Friedmann 7, p.292-293)): ele distinguir aes e paixes a partir de caractersticas internas das almas (i.e., de suas percepes: idias claras e distintas e idias obscuras e confusas). Esse tipo de explicao ser especialmente adequado ao sistema leibniziano, no qual, ao contrrio do espinosano, no se admite haver influncia real entre indivduos22. Mas ento Leibniz dever explicar em que consiste essa determinao interna a partir de idias claras e distintas. exatamente isso o que ele far, a partir de uma anlise do conceito de juzo. Vejamos, pois, como a filosofia madura de Leibniz, partindo da aceitao desse axioma negativo formulado s margens das pginas da tica, tentar resolver tal impasse. Fazer esse movimento anacrnico nos permitir discernir mais claramente a forma como a recepo da filosofia de Espinosa moldou as reflexes de Leibniz sobre o problema da liberdade, especialmente a22

partir da maneira como as discusses sobre a ontologia fundamental das substncias desembocam em uma teoria do juzo que pretende explicar a liberdade das substncias individuais. Em muitos textos, Leibniz definir a autonomia envolvida na escolha livre pelo simples exerccio da capacidade de julgar, atravs da qual representamos possibilidades alternativas que exercem a funo de causas finais sobre as quais incidem diversos desejos. Os desejos, por sua vez, esto submetidos a uma lei natural instaurada por Deus23, a Lei da Vontade, formulada como instncia do Princpio da Perfeio, segundo a qual os homens faro sempre o que lhes parece ser o melhor. Dessa forma, as duas proposies seguintes no so, ao contrrio do que aparentam primeira vista, contraditrias: I- a mente no escolhe nunca o que no momento [imprsentiarum] lhe parece ser o pior e II- a mente no escolhe sempre o que no momento lhe parece ser o melhor (Leibniz 14, C 21)24. Ora, se fossem dados a um sujeito S dois objetos de escolha, A e B, e se A lhe parecesse ser melhor do que B, por que seria impossvel, como afirma Leibniz, para algum que tivesse acesso aos estados mentais de S anteriores e contemporneos deliberao, prever que S escolher A naquele momento? Ou ainda: se for certo, por uma lei natural, que S no escolher B, e supondo-se que ele far uma escolha, por que no imediatamente certo que ele escolher A? Leibniz explica: a mente pode adiar e suspender o juzo at uma deliberao ulterior, desviando a alma [animum] em direo a outros pensamentos (Leibniz 14, C 21-22)25; qual pensamento finalmente lhe ocorrer no pode ser o objeto de nenhuma lei pr-definida, pois pela pura espontaneidade de sua mente26, causa de suas representaes, que, no momento seguinte, S (sua alma) pensar em, digamos, C, que aparecer como melhor do que A (e, a fortiori, do que B), e que ser objeto do desejo mais forte. Cumprindo assim a Lei da Vontade (que vlida sem excees), S escolher C.23

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Novamente aqui, a soluo de Leibniz extremamente engenhosa e original. Enquanto que, para Descartes, a liberdade da vontade se definia por duas caractersticas independentes , a saber, a espontaneidade (ou27

um gabinete em Hanover. Mas, uma vez acertadas essas contas tericas, a luta poltica e religiosa contra o espinosismo poder desde ento ser travada publicamente, em um combate incessante em prol de uma Europa a ser libertada de seu principal inimigo. O fracasso desse combate, agora constatado retrospectivamente, tendo em vista os resultados do projeto iluminista em parte inspirado por Leibniz, no pode ser usado para medir o talento do desafiante.

facilidade na determinao) e o poder de escolha entre contrrios (a indiferena positiva), e que, para Espinosa, a liberdade se definia apenas pela espontaneidade (o livre arbtrio sendo denunciado como uma iluso), para Leibniz a espontaneidade equivalente ao poder de escolha. Escolher no significa nada alm do que ser a causa autnoma de nossas representaes: porque podemos suspender nossos juzos e introduzir autonomamente uma nova representao no curso da deliberao, podemos nos subtrair ordem das causas eficientes e escolher algo diferente daquilo que indicava a Lei da Vontade (que, ainda assim, ser efetiva quando a escolha for feita). A nica condio para sermos livres sermos racionais e dotados de um poder criativo de nos afigurarmos possibilidades alternativas. O nico pecado no nos determos suficientemente na deliberao e na reflexo dessas alternativas e, precipitadamente, escolhermos uma aparncia de Bem que esconde o Mal; inversamente, nossa principal virtude a ateno e a pacincia28. Essa soluo para o problema da compatibilizao entre liberdade e necessidade est longe de ser inteiramente satisfatria e as infindveis retomadas do problema por parte do prprio Leibniz poderiam nos levar a suspeitar de que nem mesmo para ele sua soluo encontrou uma formulao definitiva29. Mas esse breve resumo de uma de suas etapas iniciais (ou, talvez fosse melhor dizer, de uma de suas discusses preparatrias) nos permitiu, pelo menos, ver de que forma as crticas a Espinosa, escritas no limiar da dcada decisiva de maturao do pensamento leibniziano, prefiguraram e condicionaram seus desenvolvimentos posteriores. A partir de ento, o nome Espinosa e o adjetivo espinosista sero os signos abreviados de uma divergncia terica que os ops nesse momento inaugural, em parte pessoalmente, em Haia, e, depois da morte do filsofo, privadamente, em24

LEIbNIZ, 1678: LECtURE NotES oN SPINoZaS Ethics abstract: This paper analyses the notes Leibniz wrote in 1678 on the then recently published Spinozas Ethics, showing how they foreshadow some ulterior developments of his metaphysical theory. Taking as the point of departure of this analysis Leibnizs critics to Proposition 2 of the Part I of the Ethics, the paper will show how the discussions on the compatibility between freedom and determinism, that occupy the center of his metaphysical concerns in the following decades, resume themes and problems considered in these notes, even if they are somehow different from the original context. It will be showed, in particular, that the relation between autonomy and the power of choice can be better understood as a development of theses explored in this first reading of Spinozas work. Keywords: Leibniz, Spinoza, monism, determinism, freedom. REFERNCIaS bIbLIoGRFICaS: 1. BENNETT, Jonathan A Study of Spinozas Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. 2. BEYSSADE, Jean-Marie La Philosophie Premire de Descartes. Paris: Flammarion, 1979. 3. CHAUI, Marilena A nervura do real. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. 4. DELEUZE, Gilles Le pli. Leibniz et le barroque. Paris: Les ditions de Minuit, 1988.25

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5. DONEY, Willis Gueroult on Spinozas Proof of Gods Existence. In: Spinoza Issues and Directions. Leiden; New York: E.J. Brill, 1990, pp. 32-38. 6. FICHANT, Michel Lorigine de la ngation. In: Science et mtaphysique dans Descartes et Leibniz. Paris: Presses Universitaires de France, 1998, pp. 85-120. 7. FRIEDMANN, Georges Leibniz et Spinoza. Paris: Gallimard, 1962. 8. GOLDENBAUM, Ursula Why Shouldnt Leibniz Have Studied Spinoza? The Rise of the Claim of Continuity in Leibnizs Philosophy out of the Ideological Rejection of Spinozas Impact on Leibniz. In: The Leibniz Review, Vol. 17, 2007, pp. 107-138. 9. LACERDA, Tessa Moura Leituras leibnizianas de Espinosa. In: Cadernos Espinosanos, VI, 2000, pp. 47-74. 10. ______ Simplicidade e variedade: um dilogo entre Leibniz e Espinosa. In: O que nos faz pensar, 26, dezembro de 2009, pp. 217-241. 11. LEIBNIZ, G. W. [GP] Die philosophischen Schriften von G.W. Leibniz, ed. por C.J. Gerhardt, 7 vols., Berlin, 1875-1890, reedio Georg Olms, Hildesheim, 1978. 12. ______ [NE] Nouveaux essais sur lentendement humain. Paris: Flammarion, 1990. 13. ______ [Grua] Textes indits (daprs les manuscrits de la bibliothque provinciale de Hanovre). 2 volumes. Ed. por Gaston Grua. Paris: PUF, 1998. 14. ______ [C] Opuscules et fragments indits de Leibniz. Extraits des manuscrit de la Bibliothque royale de Hanovre. Ed. por Louis Couturat. Paris: Felix Alcan, 1903.26

15. ______ [Rauzy] Recherches gnrales sur lanalyse des notions et des vrits. 24 thses mtaphysiques et autres textes logiques et mtaphysiques. Org. por Jean-Baptiste Rauzy. Paris: Presses Universitaires de France, 1998. 16. ______ [A] Smtliche Schriften und Briefe. Ed. Deutsche Akademie der Wissenschaften zu Berlin. Darmstad; Berlin: Akademie Verlag, 1923-.

NotaS: 1. Sobre a provvel data em que Leibniz leu os Princpios, cf. Friedmann 7, pp. 86-87. Segundo Friedmann, as anotaes de Leibniz margem do primeiro livro publicado por Espinosa so posteriores a sua leitura da tica, em 1678. 2. Ainda assim, para uma bem informada discusso recente sobre as possveis influncias de Espinosa sobre Leibniz, cf. o artigo de Goldenbaum 8, que trata da disputa que contraps, no final do sculo XIX, Erdmann e Stein a Guhrauer, Trendelenbourg, Foucher de Careil e Gerhardt. 3. Cf. Leibniz 12, I, 1. Como se sabe, a primeira redao dos Novos ensaios ocorreu em 1703, um ano antes que a morte de Locke interrompesse seu projeto de publicao. 4. Leibniz menciona Espinosa pela primeira vez em 1669, em carta de 30 de abril a Jacob Thomasius: ele comenta, no muito favoravelmente, Os princpios da filosofia de Descartes (cf. Friedmann 7, p. 86). Nessa carta, o nome de Espinosa aparece enumerado em uma lista de cartesianos, dentre os quais, segundo Leibniz, no h quase nenhum que tenha acrescentado o que quer que seja s descobertas do mestre (apud Friedmann, id. ibid.). curioso notar que esse juzo preliminar ser de certa forma mantido mesmo aps ele estudar a obra de Espinosa, na medida em que considerar essa ltima como o desenvolvimento lgico do cartesianismo. Em 1670, com a publicao do Tratado teolgico-poltico, Leibniz envolve-se em uma intensa troca de cartas, principalmente com correspondentes que, como ele, viam no livro um ataque religio. No ano, seguinte, porm, escreve a Espinosa uma carta cordial (a nica que restou da correspondncia entre os dois filsofos, publicada, a contragosto de Leibniz, na edio da Opera Posthuma do filsofo hertico). 5. Como nota Lacerda 9, p. 54, as objees de Leibniz a Espinosa formuladas em 1678 se, por um lado, prefiguram o sistema maduro do primeiro, ainda so tributrias27

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de uma concepo escolstica de substncia que no inclui a noo de fora entre suas notas caractersticas (nem tampouco, portanto, sua concepo posterior dos atributos, entendidos como eventos): A crtica a Espinosa redigida [....] em um universo preso linguagem escolstica e o seu pressuposto, mesmo que Leibniz j imaginasse incluir nas notas caractersticas do conceito de substncia individual as reflexes trazidas da dinmica e da matemtica infinitesimal, no deixa de ser uma definio lgica de substncia como sujeito, cujos atributos seriam predicados. curioso notar que o silncio progressivo de Leibniz a respeito de Espinosa se d no mesmo movimento de introduo dessa noo dinmica de substncia em seu prprio sistema o que, entretanto, o aproximaria da concepo espinosana de substncia. Essa discusso retomada em Lacerda 10, p. 229. 6. Leibniz GP 1: 139-152. H um segundo manuscrito de Leibniz sobre a tica, reproduzido em Grua I: 277-286. Uma exceo notvel ao silncio que se segue a esses comentrios mais extensos seu exame das teses da tica a partir de suas notas de leitura do livro Elucidarius cabalisticus, escrito pelo telogo J.-G. Watcher em 1706. Apesar de ter sido editada por Foucher de Careil na Frana, no sculo XIX, sob o titulo um tanto equivocado de Uma refutao indita de Espinosa, o texto trata principalmente das relaes entre a cabala e a filosofia de Espinosa tal como Watcher as figurava. Para uma anlise desse texto, cf. Lacerda 10, pp. 237-240. 7. Cf. sobre esse ponto Lacerda 10, p. 230, citando Marilena Chau 3, pp.786-792. 8. Cf. seu comentrio Proposio 5 dessa mesma Parte I: Observo alm disso que a Proposio 1 intil a no ser para provar esta proposio. Ela poderia ter sido omitida, pois basta que a substncia possa ser concebida sem suas afeces, seja ela anterior a elas por natureza ou no. Com relao a essa crtica de Leibniz, curioso notar que no Apndice do Curto tratado, uma espcie de proto-tica que s ser descoberta e publicada no sculo XIX, os equivalentes das Proposies 1 a 4 da tica aparecem como axiomas. 9. De forma paradigmtica, no Discurso de metafsica e na correspondncia com Arnauld. 10. Os atributos das substncias finitas (complexos, relativos, em parte negativos) so limitaes dos atributos divinos (simples, absolutos, positivos). 11. Como atesta sua correspondncia com Schller, um dos responsveis pelo trabalho secreto e perigoso envolvido na publicao da obra pstuma de Espinosa. 12. Desde o inicio de suas anotaes crticas sobre a tica, Leibniz manifestou suas crticas s dificuldades presentes na definio espinosana de atributo (sintoma, a seus28

olhos, da deficincia da linguagem lgica do livro); comentando a Definio 4 da Parte I, ele se pergunta se ele entende por atributo todo predicado recproco, ou todo predicado essencial, seja ele recproco ou no, ou, finalmente, todo predicado essencial primrio ou indemonstrvel da substncia. A crtica de Leibniz deriva, em suma, da constatao da ausncia de uma definio lgica de atributo. 13. Um dos fragmentos de novembro de 1676 (A VI iii 574) formula precisamente dessa maneira a relao entre essncia e atributos: Um atributo um predicado necessrio que concebido por si, isto , que no pode ser reduzido a muitos outros; A essncia tudo aquilo que numa coisa concebido por si, isto , o agregado de todos os atributos. 14. A nota que Leibniz redigiu durante os dias em que permaneceu em Haia, em novembro de 1676, conhecida sob o ttulo de Que o ser sumamente perfeito existe (A VI iii 578; G VII 261-263). 15. Embora possamos suspeitar se se trata de uma divergncia real, pois a doutrina da tica sobre as relaes entre essncia e atributos poderia ser interpretada como afirmando precisamente essa distino. 16. O texto Sobre as formas ou atributos de Deus, de abril de 1676 (A VI iii 513515) elucida essa relao entre atributos e essncias: Os atributos de Deus so infinitos, mas nenhum envolve a essncia total de Deus. Pois a essncia de Deus consiste nisto: em que ele o sujeito de todos os atributos compatveis. 17. Uma das caractersticas do pensamento maduro de Leibniz ser um certo ceticismo quanto a nossa possibilidade de apreender essas formas simples embora ele nunca tenha abandonado a tese acerca da necessidade de pressup-las em uma explicao metafsica. 18. A VI iii 513-516, abril de 1676. Como vimos acima (nota 18), essa soluo em certo sentido similar de Espinosa: esse ltimo afirma que muitos (infinitos) atributos podem exprimir a mesma essncia e que a essncia da substncia nica o agregado de todos os atributos logicamente possveis. 19. Fichant, 6, pp. 107-108; Deleuze 4, pp. 60-67 (deve-se notar, porm, que ambos se referem primariamente noo de substncia da filosofia madura de Leibniz). Aqui se prenuncia a noo dinmica de substncia, formulada de modo claro nos anos seguintes. 20. Sobre essa dupla leitura da Proposio 2, cf. Bennett 1, 17; Doney 5, pp. 3536. Como nota Doney, a primeira leitura da Proposio 2 implica a falsidade da Proposio 14, na medida em que essa ltima tem como premissa que no pode haver29

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mais de uma substncia com o mesmo atributo: se houvesse outra substncia alm de Deus, ela teria de compartilhar algum atributo com Deus o que apenas a segunda leitura da Proposio 2 refuta. 21. Isto , usando a distino entre atributo e essncia, tomando tal distino no sentido em que, para cada substncia, h uma e apenas uma essncia correspondente, e no no sentido em que no h nenhum atributo comum entre as vrias substncias. 22. Os indivduos espinosanos so, como se sabe, coisas finitas que modificam os atributos infinitos de Deus; para esses modos, no h nenhum problema em admitir que eles tm coisas em comum entre si (justamente o atributo do qual eles so modificaes). Ao caracterizar os indivduos como substncias que so, em um certo sentido, concebidas por si, Leibniz deve recusar uma influncia real entre elas precisamente porque so essncias diferentes. Essa soluo, no entanto, traz consigo um novo problema: se o que permite a relao causal (de criao) entre Deus e as criaturas no uma comunidade de essncias (pois a essncia de Deus qualitativamente distinta da essncia das criaturas), mas apenas uma comunidade de atributos (no caso da relao das substncias criadas com Deus, h uma medida comum porque os atributos das primeiras so limitaes dos atributos divinos), ento por que a comunidade de atributos entre as substncias criadas no seria suficiente para permitir relaes causais entre elas? Esse problema seria provavelmente evitado por Leibniz graas a sua teoria acerca das noes completas: duas coisas finitas com essncias distintas no tm nenhuma relao real entre si porque a essncia de cada uma delas exprime-se em uma noo completa. No caso da relao entre Deus e as criaturas, a relao causal de criao no interfere nas noes completas das coisas, mas limita-se a acrescentar o predicado de existncia a elas ou seja, a existncia no faz parte do conceito completo de nenhuma coisa. 23. Cf. Discurso de metafsica, Art. 13 (Leibniz 11, vol. 4, pp. 436-439): h dois decretos primitivos de Deus, o primeiro pelo qual Ele decide fazer sempre o mais perfeito e o segundo pelo qual Ele decide que o homem far sempre (ainda que livremente) o que lhe parecer ser o melhor. 24. C 21, sem ttulo e sem data. Para a datao desse texto, cf. Rauzy (in: Leibniz 15, p. 325) (segundo Rauzy, a data mais provvel o comeo dos anos 1690; segundo Parkinson, trata-se provavelmente de um texto escrito na metade da dcada anterior). 25. Deve-se notar aqui a oposio entre mente [mentem] e alma [animum], que talvez indique dois nveis mentais distintos, um mais ativo e outro passivo. Um resultado adicional interessante desse exame seria mostrar que Leibniz tem uma teoria30

original para explicar o fenmeno da acrasia ou incontinncia, assimilando-o a uma espcie de omisso intencional. 26. Cf. Ensaios de Teodicia, 323 (Leibniz 11, vol. 6, p. 308): a forma ou a alma (notar aqui uma certa hesitao) a fonte da ao, tendo em si o princpio do movimento e da mudana; em uma palavra, , como Plato a chama. 27. Pode ser dubitvel, porm, que as duas caractersticas definitrias da liberdade sejam logicamente independentes para Descartes: mesmo quando a vontade exercida em uma situao de indiferena negativa, na qual o poder de escolha se sobrepe espontaneidade, requerido que haja autonomia (ausncia de coero) e, portanto, uma certa facilidade na autodeterminao. Da mesma forma, nas escolhas fceis do Bem e do Verdadeiro, quando h uma forte inclinao em assentir ao que se apresenta de modo claro e distinto para a mente, deve haver a presena necessria da indiferena positiva (pelo menos se levarmos em conta a famosa carta a Mesland de 9 de fevereiro de 1645). Cf. sobre esse ponto Jean-Marie Beyssade 2, Cap. IV (Le libre arbitre et le moment de llection). A dimenso temporal do ato de escolha, constantemente assinalada por Beyssade em sua interpretao de Descartes, tambm encontra um lugar de destaque no texto de Leibniz que estamos examinando. Para uma espcie de antecipao cartesiana da resposta de Leibniz, cf. Carta a Mesland de 2 de maio de 1644. 28. A deliberao virtuosa deve ter seu trmino atentamente considerado, tendo como critrio de seu fim a vontade presumida de Deus, tanto quanto possamos julg-la Discurso de metafsica, Art. 4 Leibniz 11, vol. 4, pp. 429-430). Sobre a ao indireta da vontade sobre as aes, ser interessante comparar a teoria de Leibniz com a teoria de Descartes, tal como ela exposta no Tratado das paixes da alma, Art. 27 e 50. O prprio Leibniz realiza essa comparao nos Ensaios de Teodicia, Primeira Parte, 60-65 (Leibniz 11, vol. 6, pp. 135-138). Sobre o poder de escolha explicado pelo adiamento de uma deciso, cf. Ensaios de Teodicia, Terceira Parte, 326-327 (Leibniz 11, vol. 6, pp. 309-310). 29. Em particular, no basta afirmar que a autonomia equivalente ao poder de escolha; preciso dar a esse ltimo um sentido que recupere ao menos parte de nossa compreenso corrente do ato de escolher como um evento que envolve a contingncia.

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A CAUSALIDADE EM HOBBES: NECESSIDADE E INTELIGIBILIDADECeli Hirata*Resumo: O escopo do artigo examinar a tese hobbesiana de que todo efeito possui uma causa necessria, indicando como o filsofo a demonstra de modos diferentes, mas complementares: em primeiro lugar, tanto por meio da identificao entre causa integral, causa suficiente e causa necessria, como pela redefinio dos conceitos de potncia e ato; em segundo, atravs da subordinao do princpio de bivalncia determinao necessria dos eventos; e, por fim, pela defesa de que s por meio de uma causa necessria, causa que opera mecanicamente por meio de contato, possvel dar a razo pela qual os eventos possuem tais determinaes espaciotemporais ao invs de outras, de modo que a causalidade mecnica necessria se estabelece como o nico tipo legtimo de explicao dos fenmenos em Hobbes, transformando-se, ento, na forma geral da inteligibilidade. Palavras-chave: causalidade, necessidade, requisito, mecanicismo, lei de inrcia.

1. Causalidade e necessidadeNa sua doutrina da causalidade, Hobbes reformula conceitos provenientes da tradio aristotlico-escolstica de maneira a substituir uma concepo qualitativa da natureza por uma fsica estritamente mecanicista (cf. Leijenhorst 18, p. 426 - 447). Trata-se de uma doutrina absolutamente central em seu sistema, sendo decisiva no apenas no campo da filosofia propriamente natural, mas tambm no campo da moral e da poltica, j que ela vale para todo tipo de evento, seja natural ou humano, de forma que tanto a concepo que Hobbes possui das paixes humanas como a que ele tem de liberdade decorrem diretamente do modo como ele pensa a relao entre causa e efeito. Mais do que isso, a doutrina da causalidade* doutoranda do departamento de Filosofia da usP.

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determinante para a prpria circunscrio da atividade filosfica ou cientfica, uma vez que a filosofia em geral se define em Hobbes como investigao racional das conexes causais (Hobbes 7, I, 2, p. 2). Por ser uma teoria que est contida na prpria definio de filosofia, ela comea a ser constituda antes mesmo que a parte efetivamente doutrinria do De Corpore, a filosofia primeira, que deve fornecer as primeiras definies, seja iniciada. Uma vez que a investigao das relaes causais se identifica com a prpria filosofia, o estabelecimento do que causa e efeito tornase central na instituio do mtodo, que consiste justamente no caminho mais breve possvel de investigao dos efeitos pelas causas conhecidas e, inversamente, das possveis causas a partir de efeitos conhecidos (idem, VI, 1, p. 58 e 59). Assim, Hobbes apresenta no captulo relativo ao mtodo, parte da Computatio sive logica, a definio de causa:Causa a soma ou agregado de todos os acidentes, tanto no agente quanto no paciente, que concorrem para a produo do efeito proposto, de um tal modo que no se pode entender que todos existem sem que o efeito exista, ou que, estando qualquer deles ausente, que o efeito exista. Uma vez conhecendo-se o que a causa, cabe examinar, um a um, cada um dos acidentes que acompanham ou precedem o efeito e que paream de algum modo contribuir para ele, e ver se, algum deles no existindo, pode-se ou no entender que o efeito proposto exista. Separam-se, desse modo, aqueles que concorrem para a produo do efeito daqueles que no concorrem. Feito isto, renem-se aqueles que concorrem e considera-se se possvel entender que, existindo todos simultaneamente, o efeito proposto no exista. Se no podemos conceber isso, aquele agregado a causa integral do efeito, caso contrrio, no, e, nesse caso, outros acidentes devem ainda ser buscados e acrescentados (Hobbes 13, VI, 10, p. 151).

Nesta primeira definio de causa apresentada no De Corpore, Hobbes, alm de determinar que a relao causal se d entre acidentes (e no entre corpos ou substncias) e envolve um agente e um acidente (isto , dois termos, dos quais um gera ou destri algum acidente e o outro sofre alguma alterao), realiza duas distines que sero centrais na defesa da tese de que todo evento tem a sua causa necessria. A saber: a discriminao entre o que requisito e o que no , por um lado, e entre causa integral e parcial, por outro. Em primeiro lugar, Hobbes salienta que a causa constituda dos acidentes do agente e do paciente que estritamente concorrem para a produo do efeito. Quando o evento se d, preciso examinar as circunstncias que o antecedem para, por meio da anlise ou da resoluo, isolar os diversos acidentes tanto no agente como no paciente que estavam presentes na realizao do evento. Feito isto, deve-se a seguir eliminar dentre estes quais no contribuem para o efeito, o que se faz por meio da hiptese da privao: caso se possa conceber que, na ausncia do acidente examinado, o efeito se produza, ento no se tratava de um fator ou requisito para a produo do efeito, mas de um acidente que, embora seja antecedente ao efeito, no faz parte de sua causa. a estes acidentes que se aplica a denominao de contingentes, termo que denota a relao de independncia causal de um acidente ou evento em relao a outro (Hobbes 7, IX, 10, p. 112) sem significar de modo algum a ausncia de causa ou de necessidade dos eventos, como se mostrar. Ao contrrio, se no se pode conceber a remoo do acidente examinado sem a remoo da prpria causa, trata-se de um acidente que concorre para a produo do efeito, sendo ele, ento, parte da causa. Fala-se, neste caso, de uma causa sine qua non, isto , causa necessria por hiptese ou requisito para a produo do efeito, como Hobbes precisar no captulo concernente causa e ao efeito (idem, IX, 3, p. 107). Deste modo, s parte da causa o que efetivamente35

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contribui para a sua produo, sendo que todos os outros acidentes do agente e do paciente com os quais o efeito no possui uma relao de dependncia so excludos da explicao causal. Ora, por meio desta eliminao dos acidentes que no constituem requisitos para a produo do efeito da relao causal que se evitam as supersties, que se originam justamente devido ignorncia do que a causalidade: como Hobbes diz no Leviat, a maioria dos homens, rememorando aquilo que eles viram anteceder determinados efeitos, sem examinar pelo raciocnio o que h no antecedente e no consequente que possui uma relao de dependncia ou conexo, esperam supersticiosamente determinados eventos a partir de fatos semelhantes, que no possuem parte na sua produo (Hobbes 8, XII, p. 97). Fica claro assim que a relao causal no consiste numa relao de antecedncia e sucesso simplesmente temporal, mas lgica, de forma que a imaginao e a memria so, sem o recurso da razo e das suas operaes de anlise e sntese, insuficientes para o estabelecimento correto das conexes causais. Em segundo lugar, na definio de causa supracitada, Hobbes determina o que causa integral. Aps a discriminao dos acidentes que constituem fatores para a produo do efeito daqueles que no o so, o que realizado em parte pela anlise ou resoluo (distino dos diversos acidentes que antecedem o efeito) e em parte por sntese (verificao de se o acidente em questo entra ou no na composio da causa), deve-se novamente pela sntese reunir todos os acidentes que constituem requisitos para a produo do efeito e examinar se este agregado suficiente ou no para a produo do efeito, exame que se faz por uma prova indireta, uma espcie de reduo ao absurdo: caso no seja possvel conceber que, estando todos aqueles acidentes reunidos, o efeito no se produza, fica patente que aquele conjunto de requisitos constitui a soma de todos os requisitos para a produo do efeito, soma que s pode ter como resultado o efeito proposto.36

Isto , se a concepo da reunio de todos estes acidentes no pode ser separada da concepo da produo do efeito em questo, trata-se da causa integral. Ao contrrio, caso a separao da concepo da soma dos fatores at ento delimitados daquela do efeito produzido no resulte num absurdo, numa impossibilidade de concepo, ento no se trata da causa integral, pois, supondo-se estar todos [os acidentes tanto do agente quanto do paciente, sem os quais o efeito no pode ser produzido] presentes, no se pode entender que o efeito no se produza no mesmo instante (Hobbes 7, IX, 3, p. 108). Se a conexo necessria entre a totalidade dos requisitos ou causa integral e o efeito se rompesse, ocorreria algo ininteligvel. A relao em questo , assim, de natureza lgica: uma vez suposto o antecedente, incompreensvel que o consequente no se siga. Por isso, a ausncia da produo do efeito sinaliza diretamente a ausncia de um ou mais requisitos necessrios para a produo do efeito, devendo, ento, o agregado dos acidentes em questo ser incrementado com outros acidentes indispensveis para o engendramento do evento esperado at que a noproduo deste seja inconcebvel. Assim sendo, a totalidade exaustiva de todas as condies sine quibus non, isto , das condies necessrias, para a produo do efeito, que constitui a sua causa integral, ser, na filosofia de Hobbes, identificada com a condio suficiente desta produo, que, por sua vez, ser identificada com a sua causa necessria, transformando-se causa integral, causa suficiente e causa necessria em termos sinnimos. Eis a sinonmia que constitui o cerne da tese de que todo efeito possui uma causa necessria:A causa integral sempre suficiente para produzir o seu efeito, sempre que esse efeito seja de todo possvel, porque qualquer efeito que se proponha para ser produzido, caso se produza, torna manifesto que a causa que o produziu era suficiente; mas se ele no for produzido e ele for, no entanto,37

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possvel, evidente que algo estava faltando ou no agente ou no paciente sem o qual o efeito no pode ser produzido, isto , estava faltando algum acidente que era requisito para a sua produo. A causa no era, portanto, integral, ao contrrio do que era suposto. Da se segue tambm que, no instante em que a causa se torna integral, neste mesmo instante o efeito se produz; porque se no se produzisse faltaria algo requerido para a produo e no se trataria de uma causa integral como se supunha. Ao definir como causa necessria aquela que, uma vez suposta, o efeito no pode deixar de se seguir, concluir-se- tambm que qualquer efeito que se produza o ser por uma causa necessria. Porque o produzido, pelo mero fato de slo, teve uma causa integral, isto , tudo aquilo que, uma vez suposto, no se pode conceber que o efeito no se siga; e essa causa necessria. E, pela mesma razo, torna-se manifesto que quaisquer que sejam os efeitos que se produziro no futuro, eles possuem uma causa necessria e que, deste modo, tudo o que tenha sido produzido ou que h de s-lo, ter sua necessidade em coisas antecedentes (idem, IX, 5, p. 108 e 109; os itlicos do segundo pargrafo so meus).

devido interferncia de uma circunstncia externa, como, por exemplo, no caso de um fogo, que possui todas as condies requisitadas para queimar um pedao de madeira, mas no o efetiva por causa de uma chuva ou vento repentinos, sendo que a causa necessria no se identifica com a causa suficiente porque aquela a composio desta mais a ausncia de impedimentos externos , para Hobbes, uma se iguala outra na medida em que ele extermina a distino entre condies internas e externas, tomando ambas como requisitos para a produo do efeito (Leijenhorst 18, p. 432). Afinal, requisito denota, como j foi dito, todos os fatores que possuem uma relao de causalidade ou dependncia com o efeito, independentemente se estes esto no agente ou no paciente. Ora, na medida em que a totalidade dos requisitos para a produo do efeito equivale a esta produo mesma, o efeito torna-se a ratio congnoscendi de sua causa, de maneira que do efeito foroso deduzir que ele foi produzido por uma causa suficiente: como Hobbes diz, sua produo torna manifesto que a causa que o produziu era suficiente. Inversamente, a ausncia do efeito proposto constitui um ndice de que a causa no era integral, j que, neste caso, evidente que algo estava faltando ou no agente ou no paciente sem o qual o efeito no pode ser produzido. Assim, de todo efeito produzido, na medida em que ndice de uma causa suficiente ou necessria, conclui-se que ele possui a sua causa necessria, o que vale no s para os efeitos produzidos no passado ou os que esto se produzindo no presente, mas tambm para os eventos futuros. Em oposio noo de futuros contingentes, Hobbes atribui, ento, necessidade a todos os eventos, independentemente destes serem passados, presentes ou futuros. Afinal, deve vigorar a mesma conexo lgica de antecedncia e consequncia em todas as relaes de causa e efeito, independentemente da posio temporal dos homens em relao ao fenmeno examinado, de forma que tudo o que tenha sido produzido ou39

Deste modo, causa integral, causa suficiente e causa necessria se tornam conceitos intercambiveis, pois s suficiente a causa que integral, isto , a causa que dispe da totalidade dos requisitos ou condies sine quibus non. E uma causa integral ou suficiente no pode, por definio, ser deficiente, sendo necessria a produo do efeito uma vez que a causa dada. Como Cees Leijenhorst indica, esta identificao entre a causa suficiente e a causa necessria realiza-se por meio de uma reinterpretao destes dois conceitos, que podem ser encontrados em manuais escolsticos. Enquanto os escolsticos distinguiam a causa suficiente da causa necessria por meio da distino entre condies internas e circunstncias externas mesmo havendo uma causa suficiente, o efeito pode no se produzir38

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que h de s-lo, ter sua necessidade em coisas antecedentes. Esta expanso da necessidade da relao da causa e do efeito para toda a extenso do tempo, independentemente se os eventos em questo so passados, presentes ou futuros, tornada ainda mais explcita pelo tratamento que Hobbes d ao par conceitual potncia e ato. Atribuindo um significado novo a estes conceitos tradicionais, Hobbes reconduz a distino entre potncia e ato quela entre causa e efeito, dizendo que ambas so a mesma coisa, ainda que a partir de diferentes consideraes: quando o agente e o paciente possuem todos os requisitos necessrios para a produo do efeito, dizemos que eles podem produzi-lo, isto , que eles possuem a potncia (potentia, power) para esta produo, sendo que a potncia do agente equivale causa eficiente e a potncia do paciente causa material. A nica diferena que o termo causa diz respeito ao efeito j produzido e o termo potncia relativo a este mesmo efeito a ser produzido no futuro, de modo que causa se refere ao passado e potncia ao futuro. Da mesma maneira, o acidente produzido , em relao causa, efeito, e, em relao potncia, ato (Hobbes 7, X, 1, p. 113). Ora, assim como causa e efeito so termos relativos, s havendo causa onde h efeito e, inversamente, efeito apenas na medida em que h uma causa integral ou suficiente, potncia e ato so termos correspondentes, de maneira que um ato s pode ser produzido por uma potncia suficiente ou por aquela potncia a partir da qual ele no poderia deixar de ser produzido (idem, X, 2, p. 114). Isto : s pode haver ato onde h uma potncia plena e, reciprocamente, s se pode falar de uma potncia plena na medida em que h ato, j que todo ato produzido no mesmo instante que a potncia plena (idem, X, 2, p.114). Ao identificar a relao de ato e potncia com a de causa e efeito, potncia equivalendo produo do ato, tal como a causa integral com a produo do efeito, Hobbes assimilar, a partir do conceito de potncia, a possibilidade necessidade e a ausncia de potncia com a impossibilidade.40

impossvel um ato para cuja produo no h uma potncia plena. Na medida em que potncia plena aquela na qual todas as coisas que so requisitos para a produo do ato concorrem, se a potncia nunca for plena, sempre faltar uma destas coisas sem as quais o ato no pode ser produzido; donde aquele ato nunca poder ser produzido, isto , impossvel: e todo ato que no impossvel possvel. Todo ato que , portanto, possvel deve ser produzido em algum momento; pois se ele nunca for produzido, ento aquelas coisas que constituem requisitos para a sua produo nunca devero concorrer; donde ser aquele ato impossvel por definio, o que contrrio ao que era suposto (idem, X, 4, p. 115).

Neste pargrafo, Hobbes reproduz em certa medida aquele argumento supracitado de que todo efeito possui uma causa necessria, argumento que recorre dupla implicao, seja entre causa e efeito, seja entre potncia e ato: a potncia plena no pode, consistindo na totalidade dos requisitos para a produo do ato, deixar de produzir o ato, que, por sua vez, s pode ser produzido por uma potncia plena, pois, caso contrrio, faltaria um ou mais dos acidentes que so condio sine quibus non para a sua produo. J naquele pargrafo do captulo concernente causa e ao efeito, Hobbes afirmava que a necessidade desta relao vigora tanto no passado, como no futuro. Nesta passagem, entretanto, ao abstrair a perspectiva temporal por meio do conceito de potncia, ele estende esta necessidade a qualquer momento que se queira, eliminando, assim, a noo de possibilidade enquanto modalidade lgica que no s se ope impossibilidade, mas tambm se distingue da necessidade: na filosofia de Hobbes, aquilo que possvel necessrio, pois um ato s possvel na medida em que a potncia de produzi-lo plena, o que significa que ela o produzir necessariamente. Logo, o ato que no se produz em algum momento do tempo no possvel, j que sempre falta para esta produo41

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algum requisito que impede a potncia de ser plena; em outras palavras, ele impossvel. Ou seja, no h nada entre o possvel e o impossvel, j que o possvel se identifica com o necessrio. Deste modo, Hobbes elimina a contingncia, ou melhor, a redefine: ao invs de se aplicar aos eventos que podem ou no ocorrer, ela exprime tanto a maneira pela qual explicitamos a ausncia de conexo causal entre dois eventos, que, embora concomitantes ou sucessivos, so independentes entre si, como, mais frequentemente, a nossa ignorncia das causas necessrias (idem X, 5, p. 115 e 116) a contingncia no denota a ausncia de causas, mas caracteriza apenas a relao do nosso conhecimento com o evento (Hobbes 9, p. 259). Como Luc Foisneau comenta, o tempo no , em Hobbes, abertura ao possvel, mas a limitao do conhecimento em funo de nossa considerao, de modo que o possvel passa a ser apenas uma modalidade temporal do necessrio: um evento possvel um evento necessrio que sabemos que se produzir, sem, no entanto, saber quando (cf. Foisneau 5, p. 88). A oposio a Aristteles no poderia, ento, ser mais clara. Se por meio do par conceitual potncia e ato, Aristteles distinguia dois modos distintos do ser, diferenciando a potncia como mera possibilidade do ato, que denota o real e que , por isso, ontologicamente superior potncia (cf. Metafsica, livro IX, 1045 b 25 1052 a 12 - Aristteles 2, p. 428 - 473), Hobbes, em contraste, eliminar justamente por meio destes dois conceitos a distino da possibilidade e da atualidade: a potncia completa se identifica ao prprio ato, isto , a possibilidade de um ato j significa a sua efetividade, de modo que todo ato possvel deve ocorrer em algum ponto do tempo.1

que possui valor de verdade e das quais todo o conhecimento filosfico composto, no poderiam ser nem verdadeiras e nem falsas, o que tornaria o princpio de bivalncia invlido e, consequentemente, toda pretenso de cincia caduca. Como Hobbes diz no seu comentrio crtico ao discurso sobre a liberdade e a necessidade do bispo de Bramhall, a necessidade de todo evento no apenas provada pela dupla implicao j examinada entre causa suficiente ou necessria e a produo do efeito, como tambm pela natureza da proposio: necessrio que amanh chova ou no chova. Se, portanto, no for necessrio que chova, necessrio que no chova, caso contrrio, no h necessidade de que a proposio chover ou no chover seja verdadeira. Sei que h alguns que dizem que necessariamente verdadeiro que um dos dois venha a ocorrer, mas no separadamente que chover ou que no chover, o que equivale a dizer que uma delas necessria e que, no entanto, nenhuma delas necessria; para evitar este absurdo, eles fazem a seguinte distino, de que nenhuma delas verdadeiramente determinada, mas indeterminada, o que significa apenas que uma delas verdadeira, mas ns no sabemos qual e a necessidade, ento, permanece, ainda que ns no a saibamos (Hobbes 9, p. 277).

Da mesma forma que uma proposio ou verdadeira ou falsa, no havendo meio-termo entre a verdade e a falsidade (que o que o princpio de bivalncia estabelece), um evento, como, por exemplo, a chuva futura, ou necessrio (de forma que a proposio que o enuncia verdadeira) ou no-necessrio, o que, como j se disse, equivale, na filosofia de Hobbes ao impossvel, j que no h nada entre o necessrio e o impossvel, sendo a proposio que a enuncia, ento, falsa. A indeterminao cabe ao fato e proposio correspondente apenas do ponto de vista do nosso conhecimento: objetivamente, toda proposio ou verdadeira ou falsa e todo evento43

2. Causalidade e inteligibilidadeNa filosofia de Hobbes, a necessidade estabelecida pela relao causal vai de par com a racionalidade. Se os eventos no fossem necessrios, as proposies, que constituem a nica espcie de discurso42

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ou necessrio ou impossvel. Em uma passagem muito semelhante supracitada, na qual Hobbes igualmente defende a necessidade de todos os eventos por meio do princpio de bivalncia, o filsofo acrescenta que a verdade de uma proposio no depende de nosso conhecimento, mas da anterioridade de suas causas (Hobbes 7, X, 5, p. 116). Assim, esta prova da necessidade pelas proposies subordina-se quela prova j discutida da necessidade pelas causas (cf. Foisneau 6, p. 109). De fato, numa outra passagem do Anti-White, o filsofo ingls afirma que a necessidade das proposies, em funo da qual dizemos que um tal evento ocorrer, segue-se da necessidade que exige que os eventos procedam de causas (Hobbes 11, XXXV, 13, p. 393; apud Foisneau 6, p. 110). Ora, essa mesma dependncia do valor de verdade das proposies em relao determinao necessria dos eventos por meio de suas causas aparece de maneira explcita na justificao da necessidade na prescincia divina, que seria destruda se houvesse livre-arbtrio ou contingncia no sentido tradicional do termo: essas coisas que so chamadas de futuros contingentes, se elas no ocorrem de maneira certa, isto , a partir de causas necessrias, no podem ser conhecidas de antemo (Hobbes 10, p. 18). Pois no o conhecimento que determina os eventos, mas sim o contrrio: que a prescincia divina deva ser a causa de alguma coisa, no pode ser verdadeiramente dito, vendo que prescincia cincia, e cincia depende da existncia das coisas conhecidas e no estas daquela (Hobbes 9, p. 246). Mais ainda, a relao entre a necessidade posta pela causalidade e a inteligibilidade que ela torna possvel se estabelece num nvel ainda mais fundamental, a saber, na imaginao, anteriormente ao estabelecimento da filosofia propriamente dita. Sem o recurso causalidade necessria no s a constituio do discurso cientfico se tornaria impossvel, uma vez que o valor de verdade das proposies se fundamenta nas relaes causais, como tambm se tornaria impossvel a representao dos eventos44

no tempo, j que, neste caso, no se poderia imaginar nem o incio e nem o trmino de qualquer fenmeno. Numa palavra, no se poderia representar ou conceber qualquer alterao na natureza:Que um homem no pode imaginar nada comeando sem uma causa no pode ser conhecido de outra forma seno tentando conceber como ele pode imagin-lo. Mas, se ele empreender esta tentativa, ele encontrar, se no houver causa para a coisa, tanta razo para conceber que esta poderia comear tanto em um tempo como noutro, de forma que ele teria razes iguais para pensar que a coisa deveria comear em todos os tempos, o que impossvel, e, portanto, ele deveria pensar que houve uma causa especial pela qual ela comeou ento ao invs de mais cedo ou mais tarde; ou ento que ela nunca comeou, mas eterna (idem, p. 276).

A relao necessria entre a causa e seu efeito no s provada pela imbricao entre o conceito de causa suficiente e de seu efeito e pela dependncia que o princpio de bivalncia possui em relao a ela, mas tambm pela imprescindibilidade desta relao na representao dos eventos no tempo, pois impossvel conceber um evento sem uma causa, causa que s pode ser, alis, necessria. Como Hobbes diz, a representao do evento no espao e no tempo necessariamente acompanhada da representao de sua causa. Sem a interveno do conceito de causa, haveria tanta razo para conceber que um evento poderia comear tanto num tempo como no outro, de forma que seu incio seria inimaginvel. Uma vez que Hobbes pensa que toda ideia ou concepo uma imagem (Hobbes, 8, III, p. 17), sendo que s podemos conceber aquilo que podemos imaginar (razo pela qual no h ideia de infinito, por exemplo), o evento e o seu incio seriam ininteligveis na ausncia da representao de uma causa. Dito de outra forma, no haveria45

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razo suficiente para imaginar o evento se iniciando em um momento determinado ao invs de outro, mas aquele que representa o evento teria razes iguais para pensar que a coisa deveria comear em todos os tempos, o que impossvel. Sem a representao da causalidade no seria possvel a representao de nenhum evento, isto , de nenhuma alterao na natureza, mas s seria possvel a representao das coisas como sendo eternas, o que contrrio estrutura da representao humana, que s pode se dar no espao e no tempo2. Toda representao de um evento envolve, pois, a concepo de uma causa especial, causa que d a razo pela qual este evento teve incio num momento determinado e no anteriormente ou posteriormente. Assim, na ausncia de uma relao causal necessitante no s o valor de verdade das proposies sobre os eventos permaneceria indeterminado, o que feriria o princpio de bivalncia, como tambm a imaginao ou representao de um evento seria indeterminada, sem uma insero precisa no tempo e no espao, j que o incio de qualquer evento seria ininteligvel. Numa palavra, a representao seria impossvel. Que todo evento s possa ser representado como possuindo um incio prova que todo evento possui a sua causa necessria, pois o evento s pode ter incio se a sua causa suficiente para produzi-lo, isto , se no falta nada que constitui requisito para a sua produo, como Hobbes argumenta no pargrafo seguinte ao supracitado. Afinal, como a causa suficiente e a produo do efeito se equivalem, o efeito produzido no mesmo instante em que a causa integral, de modo que em toda ao o incio (principium) e a causa so tomados pelo mesmo (Hobbes 7, IX, 6, p. 110). Assim, a relao causal que confere inteligibilidade tanto s proposies, na medida em que a razo das proposies o porqu delas serem verdadeiras ou falsas no outra que a causa dos eventos (Foisneau 6, p..111), como aos prprios eventos, j que a razo de qualquer mudana s pode ser encontrada na sua causa, sem a qual o evento teria46

razo para se dar em qualquer parte do tempo: o nico modo pelo qual o esprito pode dar razo de uma proposio, assim como de um efeito natural, consiste em exibir sua causa produtora. A causa produtora aparece ento como a forma mais universal do princpio de razo. Ela se identifica com a exigncia de racionalidade em geral (Zarka 19, p. 203). A causalidade necessria aparece, ento, como a forma geral da inteligibilidade, pela qual tanto a representao dos eventos como a enunciao das suas proposies correspondentes so tornadas possveis para ns.

3. Causalidade e mecanicismoResta indicar como esta identificao entre causa necessria e razo se estabelece no interior do paradigma mecanicista da filosofia moderna, o que tornar ainda mais claro como s uma causa necessria causa que Hobbes concebe como sendo mecnica pode tornar os eventos inteligveis, dando razo de suas determinaes espaciotemporais. O pargrafo citado na seo anterior, no qual Hobbes defende que um homem no pode imaginar algo comeando sem uma causa, j que, na ausncia desta, no haveria razo para conceber o incio do evento num determinado ponto do tempo, constitui a justificativa (alocada na seo minhas razes do Da liberdade e da necessidade) do sexto item listado em minha opinio sobre a liberdade e a necessidade, no qual Hobbes afirma que nada se inicia por si mesmo, mas a partir da ao de algum outro agente imediato (Hobbes 9, p.274). derivando as consequncias desta mxima3 para o campo da moral que Hobbes sustenta que a causa de uma volio no pode residir na prpria vontade, mas deve provir de mbiles exteriores, de forma, ento, que a acepo da liberdade humana como o poder de iniciar uma cadeia causal nova, sem que ela mesma seja causada por nada, revela-se falsa, que a concepo que Hobbes visa47

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combater neste texto polmico. Do lado da filosofia natural, esta mxima se identificar rejeio do movimento espontneo e ter como consequncia a dupla assero que constitui o cerne do princpio de inrcia, a saber, que um corpo em repouso assim sempre permanecer a menos que um outro corpo o mova e, simetricamente, que um corpo em movimento permanecer para sempre em movimento a no ser que um outro corpo o pare. Eis como Hobbes prova a inexistncia do movimento espontneo na dcima concluso extrada a partir dos princpios estabelecidos no Short tract on first principles:Nada pode mover a si mesmo. Suposto (se isso for possvel) que A pode mover a si mesmo, preciso que ele o faa por uma potncia ativa que esteja nele prprio (de outra forma, ele no move a si mesmo, mas movido por outro); e, vendo que ele age sempre em si mesmo, ele deve [...] mover a si mesmo sempre. Suposto, ento, que A possui a potncia (power) de ser movido na direo de B, ento, A deve sempre mover a si mesmo em direo a B. Do mesmo modo, suposto (como nos permitido) que A possui a potncia de ser movido em direo a C, ento, A deve sempre mover a si mesmo em direo a C. Ele deve, ento, mover-se sempre em direes contrrias, o que impossvel. (Hobbes 12, p. 18 e 20).

todos os requisitos necessrios para se mover , ela no poderia deixar de se mover; ora, como esta potncia ativa atribuda prpria coisa, ela dispensa o recurso a qualquer outra circunstncia exterior, de forma que ela deveria ter se movido desde a eternidade e, sem a necessidade da interveno de outros corpos a ela exteriores, em todas as direes. Mas esta suposio s mostra como a atribuio aos corpos de uma potncia de se mover absurda: no se pode conceber que a soma de todos os requisitos para a produo de um efeito no resulte nesta produo mesma, pois, caso contrrio, tratar-se-ia de um absurdo matemtico, de uma equao desigual, de uma conexo que vai contra a razo, concebida por Hobbes precisamente como a capacidade de calcular, isto , de somar e de subtrair (Hobbes 7, I, 2, p. 3). Ora, uma vez que a produo do efeito suposto inconcebvel, isto , incompatvel com a estrutura da representao humana, que no pode deixar de imaginar o evento num espao e num tempo determinados, mostra-se que a hiptese falsa. Assim, a concepo matemtica que Hobbes possui da causalidade que est no fundamento da rejeio do movimento espontneo e da cosmologia aristotlica em geral, j que a concepo aristotlica de evento natural, calcada nas noes de potncia e ato, forma e matria, avessa a qualquer tratamento matemtico, sendo a toda alterao compreendida qualitativamente como um processo. Para Hobbes, ao contrrio, a relao causal, que pensada segundo o modelo da gerao ou produo, estritamente quantitativa, sendo que a causa e a produo do objeto se equivalem, de forma que se conhece a causa de algo quando se capaz de reproduzi-lo (idem, I, 5, p. 5 e 6) o que se ajusta perfeitamente concepo de cincia tpica da modernidade, segundo a qual o escopo da filosofia reside na utilizao dos efeitos previstos para a produo de eventos conforme a comodidade dos homens (idem, I, 6, p. 6). Rejeitando, ento, a concepo de que as coisas possuam uma potncia ativa pela qual elas movam a si mesmas, Hobbes concebe que49

De acordo com a demonstrao hobbesiana da causalidade necessria de todo evento (demonstrao que tambm se encontra no Short Tract, ainda que no to desenvolvida quanto aquela que consta no De Corpore), o conjunto de todas as condies necessrias para a produo de um efeito constitui a sua condio suficiente que, como tal, no pode deixar de produzi-lo, sendo, ento, necessria. Do mesmo modo, se algo possusse em si mesmo a potncia de se mover o que significa, conforme a definio que Hobbes d ao termo potncia, que esta coisa possuiria48

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toda mudana que, vale dizer, o filsofo ingls reduz ao movimento local (idem, IX, 9, p. 111 e 112), que doravante constituir no s o nico tipo de alterao, mas tambm a causa mais universal de todas, sendo que um movimento sempre tem como causa outro movimento (idem, VI, 5, p. 62; Hobbes 8, I, p. 2), o que possibilita o tratamento matemtico de todo evento ou alterao, j que tanto a causa como o efeito so, neste caso, termos homogneos, passveis de composio e de subtrao fruto de uma causa transitiva, de modo que toda relao de causa e efeito envolve um agente e um paciente, uma causa eficiente e uma causa material que compem a causa integral.4 Uma vez que os corpos so desprovidos de um princpio interno de ao, de uma forma ou essncia que os disponha a uma alterao qualquer, a causa da mudana s pode estar em algo exterior. Sem referncia a esta causalidade exterior, no s no se poderia conceber por que a mudana, isto , a passagem do repouso ao movimento ou do movimento ao repouso, iniciou-se num tempo determinado, como tambm no se poderia explicar por que o movimento se deu numa direo determinada. Ou seja, sem o recurso a esta causalidade exterior e mecnica, a um outro corpo contguo e em movimento (Hobbes 7, IX, 7, p. 110 e 111), que altera o corpo em questo pela transmisso de seu movimento por meio do contato, no haveria a razo pela qual o evento em questo possui estas determinaes espaciotemporais ao invs de outras:O que est em repouso permanecer sempre em repouso, a no ser que haja algum outro corpo alm dele que, esforando-se em tomar o seu lugar por meio do movimento, faa com que este no possa mais permanecer em repouso. Pois suponha-se que algum corpo finito existe e est em repouso e que todo o espao ao seu redor est vazio; se agora este corpo comear a se mover, ele o far em alguma direo; vendo, portanto, que no havia nada no corpo que no o dispusesse ao repouso, a razo pela qual ele se moveu nesta direo est em algo fora50

dele; e, da mesma maneira, se ele tivesse se movido em outra direo, a razo do movimento naquela direo teria estado em algo fora dele; mas, vendo que se supunha que nada havia fora dele, a razo de seu movimento numa direo seria a mesma de seu movimento em todas as outras direes, do que se segue que ele se moveria do mesmo modo em todas as direes simultaneamente, o que impossvel. Do mesmo modo, o que est em movimento, sempre estar em movimento, a no ser que haja algum outro corpo alm dele que o leve ao repouso. Pois se supomos que no h nada alm dele, no haver razo pela qual ele deveria entrar em repouso agora ao invs de em algum outro tempo; donde se segue que seu movimento cessaria de forma similar em qualquer partcula do tempo, o que no inteligvel (idem, VIII, 19, p. 102 e 103, itlicos meus).

O princpio de inrcia, que constitui um dos principais pilares da transformao que a concepo de natureza sofre na passagem da filosofia aristotlico-escolstica para a moderna, , nesta passagem do De Corpore, ainda que apresentado de maneira incompleta, demonstrado, ento, por meio da noo de razo. Com o declnio da cosmologia aristotlica, o movimento e o repouso passam a ser concebidos no mais como modos do ser, isto , como o processo e o seu fim, mas como estados definidos por uma relao entre espao e tempo5, em relao aos quais os corpos so completamente indiferentes, o que introduz a necessidade de se dar uma razo para explicar por que o corpo passou de um para o outro. Afinal, opondo-se concepo aristotlica segundo a qual todo ser natural constitui um princpio de atividade dotado de uma essncia que lhe proporciona uma finalidade interna, de modo que toda alterao concebida teleologicamente como um processo de atualizao de uma potncia (Fsica III, I, 201 a 10 201 a 11 - Aristteles 3, p. 195), Hobbes no s estabelece que tanto a potncia como o ato consistem em movimentos atuais que s diferem51

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quanto perspectiva temporal (Hobbes 7, X, 6, p. 116), como tambm rejeita tanto a causa formal como a causa final, que, a seu ver, no passam de causas eficientes: enquanto a primeira nada mais do que uma causa eficiente que ocorre entre contedos de conhecimento, na qual um causa do outro, a segunda s tem lugar nas coisas que possuem sentidos (sensum) e vontade (idem, X, 7, p. 117; III, 20, p. 38 e 39) e indica apenas a relao entre a representao de algo desejado e uma ao, sendo que a primeira constitui a causa eficiente da segunda.6 Ora, uma vez que o corpo destitudo de qualquer princpio de atividade interno, na ausncia de uma razo exterior ao corpo, ele permanecer no estado em que se encontra, e s poder passar do repouso ao movimento e do movimento ao repouso pela interveno de outro corpo. Mas, com o abandono do arsenal aristotlico da teoria do movimento, no s a passagem de um estado a outro que requer uma razo exterior ao corpo: tambm a direo na qual o corpo se move deve ser referida a uma razo que no se encontra nem no corpo e nem no espao, doravante concebido como sendo perfeitamente homogneo. Em contraste com a concepo de um cosmos qualitativamente organizado e com a noo de lugar natural que lhe correspondente, segundo a qual cada coisa tende a um lugar determinado conforme a sua natureza prpria (Do Cu, IV, 3 Aristteles 1, p. 342 - 351), Hobbes concebe o espao como sendo algo que no real, mas imaginrio (j que no existe fora da representao, mas a imagem que o sujeito percipiente possui de algo exterior e subsistente por si, isto , o corpo), apresentando-o como aquilo que no atualmente preenchido, mas como aquilo que pode ser preenchido (Hobbes 7, VII, 2, p. 82 e 83). Na medida em que o espao desprovido de determinaes atuais, os corpos so indiferentes a um lugar ou outro, de forma que se no houvesse a comunicao do movimento a partir de um corpo exterior, no haveria a razo pela qual o corpo se52

moveu em uma determinada direo ao invs da outra, pois, sem esta referncia disposio do outro corpo em relao ao corpo movido, este seria indiferente a qualquer direo, sendo determinado a se mover em todas as direes, o que impossvel. Do mesmo modo, sem a interveno de um outro corpo, no se poderia compreender como um corpo passa do movimento ao repouso agora ao invs de antes ou depois, pois no h nenhuma tendncia natural no corpo ao repouso, mas, ao contrrio, assim como um corpo em repouso assim permanecer, a menos que um outro corpo se choque com este, o que comumente aceito, pela mesma razo, a saber, que nada pode alterar-se a si prprio, um corpo em movimento permanecer eternamente em movimento se um outro corpo no o parar o que, ao contrrio, no facilmente admitido devido autoridade dos doutores da Escola, que atribuem s coisas inanimadas um apetite pelo repouso, o que, por sua vez, tem por base o antropomorfismo (Hobbes 8, II, p. 3 e 4). Desta forma, a passagem do movimento ao repouso necessita de uma explicao causal tanto quanto a passagem do repouso ao movimento. Se no houvesse a comunicao do movimento por um corpo exterior, haveria tanta razo para que o corpo passasse bruscamente ao repouso em