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Com esse tipo de escolha – aliás, demasiado usuais nas traduções de textos teóricos entre nós - Vera produz um tipo de texto que está talvez mais de acordo com o padrão de textos argumentativos brasileiros do que de Leopardi, que em seus escritos críticos e teóricos não parece privilegiar um léxico arcaico ou raro. Ao contrário, apesar de toda a sua erudição, sempre defendeu (inclusive no Zibaldone ) a tese de que a Obras completas II, de Jorge Luis Borges, tradução de Sérgio Molina, Josely Vianna Baptista, Leonor Scliar-Cabral, Nelson Ascher, Carlos Nejar & Alfredo Jacques e Hermilo Borba Filho. São Paulo: Globo, 1999, 565 pp.

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problema é que em português doBrasil o equivalente pragmático évocês, não vós, um pronome hojeem desuso no país.

É o caso, por exemplo, do 17o

fragmento inserido nas“Considerações estéticas”:

“Experimentai (grifo meu)respirar artificialmente erealizar intencionalmentealgum dos muitíssimos atosque se realizam naturalmente;não podereis, senão à forçade padecimentos e danos[...]” (p 556).

São problemáticas tambémalgumas escolhas lexicais de VeraHorn. Em muitas passagens, atradutora opta por um vocabuláriorebuscado como mormente (p 586),agasta (p 587), soía (p 599),fealdade (p 599), galhardas (p661), entre outras.

Com esse tipo de escolha –aliás, demasiado usuais nastraduções de textos teóricos entrenós - Vera produz um tipo de textoque está talvez mais de acordo como padrão de textos argumentativosbrasileiros do que de Leopardi, queem seus escritos críticos e teóricosnão parece privilegiar um léxicoarcaico ou raro. Ao contrário,apesar de toda a sua erudição,sempre defendeu (inclusive noZibaldone) a tese de que a

simplicidade é um dos elementosque embelezam os textos.

Afora essas observações, restaparabenizar Vera Horn pelacorajosa tarefa de traduzir umaobra desconhecida entre nós,introduzindo o leitor brasileiro nasreflexões leopardianas, possibilitandoconhecer a grandeza e a riqueza dosensaios leopardianos, poisLeopardi é famoso como poeta,mas pouco conhecido como prosadore praticamente desconhecido comoensaísta.

Giacomo Leopardi - Poesia eProsa nos permite percorrerpáginas do “maior escritor que aItália teve depois de Dante ePetrarca”, estimulando nossasensibilidade, além, é claro, decontribuir para estreitar os laçosculturais ítalo-brasileiros.

Andréia Guerini

Obras completas II, de Jorge LuisBorges, tradução de SérgioMolina, Josely Vianna Baptista,Leonor Scliar-Cabral, NelsonAscher, Carlos Nejar & AlfredoJacques e Hermilo Borba Filho.São Paulo: Globo, 1999, 565 pp.

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Este segundo volume das chama-das Obras completas de Borges emportuguês saiu em 1999, juntocom o primeiro volume, nocentenário de nascimento doescritor portenho. Nestes doisanos, muita água passou por baixoda ponte das edições borgianas epudemos assistir a um verdadeirofrenesi de publicação de inéditos,fenômeno parecido com o quesucedeu a Fernando Pessoa, háalguns anos. Como o anterior eos posteriores, este volume nãotraz notas, o que é uma pena –Borges sensatamente anotado ficamelhor ainda, como provamedições inglesas e francesasrecentes (por exemplo, os doistomos das Oeuvres complètes,collection la Pléiade, publicadosem 1993 e 1999 e os volumesCollected Fictions, em novatradução de Andrew Harley eSelected Non-Fictions, organiza-do por Eliot Weinberger, amboseditados pela Viking em 1998 e1999 respectivamente). Nele estáreunida a produção publicada emlivros entre 1952 e 1972, ou seja,entre os 53 e 73 anos do autor deFicciones, que estava em plenamaturidade intelectual e começa-va a cair no gosto do público in-ternacional, tornando-se o escri-tor mais festejado do mundo.

Borges, como se sabe, praticouvários gêneros literários, menosjustamente o hegemônico em suaépoca, o romance. Aqui estão reu-nidos um livro de ensaios, Outrasinquisições (Otras inquisiciones),vários livros de poemas (algunscom poemas em prosa ouminicontos poéticos) e um de con-tos, O informe de Brodie (El in-forme de Brodie). Entre estes des-taca-se Outras inquisições, o me-lhor livro de ensaios borgianos,segundo parecer unânime da críti-ca, e cuja tradução, realizada porSérgio Molina, revela um traçopredominante das traduções dovolume e, em geral, das traduçõesbrasileiras do espanhol e do gêne-ro ensaio: o literalismo como prin-cipal procedimento. A acumula-ção das transposições literais em-presta ao conjunto desses exempla-res ensaios borgianos um tomarcaizante ausente do original eestranho à poética do Borges ma-duro. Os exemplos são inúmerosem que o tradutor escolhe, porcomodidade ou prudência, ografologicamente mais próximo:assim legendario dá legendário (nocélebre “A muralha e os livros”,p 10) e “revisan la biblioteca” érecriado como “revistam a biblio-teca” (no citadíssimo “Magias par-ciais do Quixote”, p 49). Muitas

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vezes esse literalismo é plenamen-te justificado e sinaliza sensibili-dade estilística, como quando pro-duz “Clemente de Alexandria es-creveu seu receio” para o original“Clemente Alejandrino escribió surecelo”, enquanto que a última tra-dução em inglês (de EliotWeinberger) preferiu normalizar acombinação heteredoxa borgiana de“escribir” e “recelo” através daseqüência “wrote about his distrust”.

É em Outras inquisições ondese sente mais a falta de uma edi-ção anotada (neste momento sódisponível em francês, nos doisvolumes das Oeuvres complètes,publicados na coleção LaPléiade), pois nos ensaios quecompõem o volume Borges fazuso sistemático e inteligente desua peculiar mas séria erudição (enão de mentirinha, como quer umalenda persistente). Se essaerudição é realmente vasta eimpressionante, Borges minoraum pouco o seu impacto aotraduzir a imensa maioria dascitações e alivia o esforço deleitura ao não abarrotar o textocom referências bibliográficas mi-nuciosas. Borges, como sempre,traduz de forma acurada e astuta,o que acarreta em muitos casosum distanciamento do texto departida, por motivos lingüísticos

ou expressivos. Ora, se as opçõesde Borges são apropriadas para oespanhol, isso não quer dizer quepossam ser diretamente transferí-veis ao português. Melhor teriasido o tradutor – ou a equipe queeditou o volume – controlar cadapassagem do texto citado, em sualíngua original. Há uma décadaisso seria um trabalho insano, nãohoje quando boa parte dos autorescitados por Borges tem seus textosdisponíveis na Internet. Doisexemplos bastam para ilustrar oponto. Em “Historia de los ecosde un nombre” (“História dos ecosde um nome”). Borges conta, re-ferindo-se a Jonathan Swift:

En 1717 había dicho a Young,el de los Night Thoughts:“Soy como ese árbol;empezaré a morir por lacopa.”

No ensaio “Conjectures onOriginal Composition”, publica-do pela primeira vez em 1759,Edward Young cita Swift dizendo:

“I shall be like that tree, Ishall die at top.”

O tradutor, que não parece terconsultado o original inglês, se-gue literalmente a tradução um tan-to livre de Borges, mas no proces-so perde a graça sonora do textoespanhol, alcançada através de uma

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leve adaptação às idiossincrasias dalíngua espanhola e do estiloborgiano:

Em 1717 dissera a Young, odos Night Thoughts: “Soucomo esta árvore; começareia morrer pela copa.”

Quando o autor pratica muitoos jogos de som e sentido, a dife-rença, naturalmente, cresce, comonesta passagem do mesmo “Histó-ria dos ecos de um nome” em queBorges cita um trecho deShakespeare:

La trampa se descubre, elhombre es degradadopúblicamente y entoncesShakespeare interviene y lepone en la boca palabras quereflejan, como en un espejocaído, aquellas otras que ladivinidad dijo en la montaña:“Ya no seré capitán, pero hede comer y beber y dormircomo un capitán; esta cosaque soy me hará vivir.”

Borges se refere aqui à cena IIIdo Ato IV de All’s Well that EndsWell, onde Parolles diz, na carac-terística crafted language deShakespeare:

Captain I’ll be no more;But I will eat and drink, andsleep as softAs captain shall: simply the

thing I amShall make me live.

Sérgio Molina segue a tradu-ção de Borges passo a passo, in-clusive na transformação dos ver-sos em linhas de prosa, mas adap-tando o poético “esta cosa que soy”ao pálido “isto que sou”:

O ardil é descoberto, o homemé degradado publicamente, eentão Shakespeare intervém epõe em sua boca, como em umespelho caído, aquelas outrasque a divindade pronunciou namontanha: “Não serei maiscapitão, mas hei de comer ebeber, e dormir como umcapitão; isto que sou me faráviver.”

Seguir mais ou menos literalmen-te Borges traduzindo Shakespearepode ser uma perda, mas pareceresultar em mais invenção verbaldo que a de outras traduções diretasdo Bardo, como a seguinte,disponível no endereço http://www.jahr.org/nel/shake/bem.htmem 03/07/01:

Foi-se o título de capitão; mascomo qualquer deles voutratar de comer, beber e aosono calmamente entregar-me. Minha vida vai depender,de agora em diante, apenasdo que realmente sou.

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O outro livro de prosa do vo-lume, O informe de Brodie, tra-duzido inicialmente por HermiloBorba Filho e revisto nesta ediçãopor Maria Carolina de Araújo eJorge Schwartz, mostra um textoum tanto atrapalhado e não poracaso, porque é na prosa ondeBorges realmente excele. Comoem outros textos, a revisão se ca-racteriza, de um lado, por certaânsia de correção e, por outro, dereaproximação ao texto-fonte. Issofica claro no primeiro parágrafode “A intrusa”, em dois nomespróprios: onde a versão do primei-ro tradutor trazia (talvez por dis-tração) “o mais moço dos Nelson”temos agora, o correto “o maismoço dos Nilsen” e onde trazia oabrasileirado “Cristiano” temosagora o castelhano “Cristián”,dentro, aliás, de um quaseconsenso atual entre tradutores notratamento dos nomes estrangeiros.Essa opção “estrangeirizante” (de-fendida ardentemente por teóricosem voga como Lawrence Venuti)convence menos em outros mo-mentos, como quando, ainda em“A intrusa” o pouco feliz “quartosmal tratados” do primeiro tradutorse torna o desengonçado “quartosdesmantelados” dos revisores, tudopor seguir à risca uma política deacompanhar palavra por palavra a

peculiar escolha de Borges. Masse “habitaciones desmanteladas”funciona à maravilha em espanhol,inclusive por sua sonoridade (duasvezes cinco sílabas, duas vezesparoxítonas, repetição de t e s) emportuguês parece pobre, tanto emtermos de som (falta a simetria desílabas) como de sentido (“desman-telar” em português brasileiro temuma distribuição de uso diferentedo congênere espanhol que, paracomplicar as coisas, tem umagrafia idêntica). Acresça-se o fatode que “desmantelado” pertence aum conjunto de unidades lexicaisfreqüentemente usado por Borges,muitas vezes como sinônimo desubdesenvolvimento ou atraso,como no sintagma, tantas vezesrepetido, “desmantelada república”.

O fazedor recolhe o melhor dostextos curtos em prosa de Borges,meio narrativos, meio poéticos eque são na verdade uma versãoparticularmente sofisticada do gê-nero conhecido, depois deBaudelaire, como poema em pro-sa. O original, El hacedor, foipublicado em 1960 e foi editadoprimeiramente entre nós pelaBertrand Brasil, em tradução deRolando Roque da Silva. A tradu-ção que consta do presente volu-me é nova, de Josely ViannaBaptista, conhecida por sua tradu-

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ção de Paradiso, de Lezama Lima.“Borges e eu”, pequeno poema emprosa, que é talvez o escrito curtomais citado de Borges, permiteuma comparação ilustrativa dosdois tradutores. Josely é mais pre-cisa que Rolando quando, porexemplo, escolhe (talvez depois deconsultar um nativo) “portão gra-deado” para o problemático item“puerta cancel”, traduzido como“porta envidraçada” por Rolando.Mas é no ritmo da frase e na esco-lha dos epítetos exatos ouchamativos e no delicado equilí-brio de registros de língua, tão tí-picos do escritor argentino, queambas as traduções tropeçam umpouco, como sugere a seguinte fra-se de outro texto compactíssimo,“Inferno, I, 32”:

No sabía, no podía saber, queanhelaba amor y crueldad yel caliente placer dedespedazar y el viento conolor a venado, pero algo enél se ahogaba y se rebelaba

Não sabia, não podia saber,que anelava amor e crueldadee o caloroso prazer dedespedaçar e o vento comodor a cervo, mas algo nelese afogava e se rebelava(Rolando)

Não sabia, não podia saber,que ansiava por amor ecrueldade e pelo vento comcarne de veado, mas algo nelese sufocava e se rebelava(Josely)

Paradoxalmente, Borges pare-ce usar mais recursos poéticos emsua prosa do que em seus versos.Em conseqüência, sua poesia, aocontrário do que acontece com amaioria dos poetas do mundo, nãosó sobrevive mas costuma crescernas traduções. É o que acontece,em geral, com seus poemas tradu-zidos ao inglês e é o que acontecetambém neste volume, sobretudoem O outro, o mesmo (El otro, elmismo), obra de uma tradutoraespecialmente atenta aos efeitos desom, como é Leonor Scliar-Cabral, que em “Limites”(“Límites”) fecha o poema com umverso de sabor camoniano “Espaçoe tempo e Borges me deixando” quemelhora o original “espacio ytiempo y Borges ya me dejan”.

Se Borges inaugurou um novotipo de frase (ou uma novainflexão de frase) em espanhol, nãofez o mesmo em relação ao verso,onde sua contribuição parece me-nos importante que a de contem-porâneos como Vicente Huidobro,Nicanor Parra ou César Vallejo.Mas há um setor humilde do ver-

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Outras praias/ 13 Poetas BrasileirosEmergentes -Other Shores / 13Emerging Brazilian Poets.Antologia bilíngüe organizada eeditada por Ricardo Corona. SãoPaulo: Editora Iluminuras, 1998,300 pp.

so onde Borges foi um mestre oca-sional, talvez porque é nele quepôde dar vazão a duas de suas prin-cipais preferências literárias: oépico e a brevidade da forma. Estesetor é o das letras de milongas,reunidas no breve livro Para asseis cordas (Para las seis cuerdas),presentes neste volume na tradu-ção de Nelson Ascher. Ascher, quejá nos brindou, em brilhante cola-boração com Boris Schnaiderman,os trabalhados versos de Púchkin(A dama de espadas – prosa e po-emas, São Paulo, Editora 34,1999) lutou com versos de melhoracabamento e, portanto, mais re-beldes à recomposição em outralíngua. Uma boa amostra da qua-lidade poética da milonga borgianae do sucesso relativo de Ascher estáno seguinte quarteto da excelente“Milonga de dos hermanos”:

Velay, señores, la historiade los hermanos Iberra,hombres de amor y de guerray en el peligro primeros,la flor de los cuchillerosy ahora los tapa la tierra.

Ouçam, senhores, a históriaDe dois irmãos, os Iberra,Homens de amor e de guerra,Gente incapaz de ser fraca,Flor dos que lutam a faca,Mas hoje os recobre a terra.

Finalmente, nos dois outros li-vros de poemas do volume, Elo-gio da sombra (Elogio de la som-bra), traduzido por Carlos Nejare Alfredo Jacques e O ouro dostigres (El oro de los tigres), tra-duzido por Josely Vianna Baptistatemos um texto correto, que sesustenta mais no conjunto, sem-pre imponente como meditaçãoestético-filosófica sobre a vida e amorte, do que nos versos em si,com freqüência boa prosaversificada – como no original.

Com seus altos e baixos, estelivro, que contém sete livros emum cômodo e barato volume decapa dura, deve ser saudado comoum acontecimento para todo ad-mirador de Borges e para todos osque teimam em seguir gostando dogrande texto literário, aquele quepode ser lido, degustado e tradu-zido infinitamente.

Walter Carlos Costa