jorge luis borges - outras inquisições (pdf)(rev)

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  • OO uu tt rr aa ss ii nn qq uu ii ss ii ee ss

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    JJ OO RR GG EE LL UU II SS BB OO RR GG EE SS

  • Este livro: Outras inquisies, parte integrante da coleo:

    JJOORRGGEE LLUUIISS BBOORRGGEESSOOBBRRAASS CCOOMMPPLLEETTAASS VOLUME II

    1952-1972 Ttulo do original em espanhol: Jorge Luis Borges - Obras Completas

    Copyright 1998 by Maria Kodama Copyright 1999 das tradues by Editora Globo S.A.

    1 Reimpresso-9/99 2 Reimpresso-12/OO

    Edio baseada em Jorge Luis Borges - Obras Completas,

    publicada por Emec Editores S.A., 1989, Barcelona - Espanha.

    Coordenao editorial: Carlos V. Frias Capa: Joseph Ubach / Emec Editores

    Ilustrao: Alberto Ciupiak Coordenao editorial da edio brasileira: Eliana S

    Assessoria editorial: Jorge Schwartz

    Reviso das tradues: Jorge Schwartz e Maria Carolina de Araujo

    Preparao de originais: Maria Carolina de Araujo

    Reviso de textos: Mrcia Menin

    Projeto grfico: Alves e Miranda Editorial Ltda.

    Fotolitos: AM Produes Grficas Ltda.

    Agradecimentos a Adria Frizzi, Ana Gimnez, Christopher E Laferl, Edgardo Krebs, lida Lois, Eliot Weinberger, Enrique Fierro, Francisco Achcar,

    Haroldo de Campos, Ida Vitale, Jos Antnio Arantes e Maite Celada

    Direitos mundiais em lngua portuguesa, para o Brasil, cedidos

    EDITORA GLOBO S.A.

    Avenida Jaguar, 1485

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  • e-mail: [email protected]

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou eletrnico, fotocpia, gravao

    etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorizao da editora. Impresso e acabamento:

    Grfica Crculo

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte - Cmara Brasileira do Livro, SP Borges, Jorge Luis, 1899-1986.

    Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 2 / Jorge Luis Borges. - So Paulo : Globo, 2OOO.

    Ttulo original: Obras completas Jorge Luis Borges. Vrios tradutores. v. 1. 1923-1949 / v. 2.1952-1972 ISBN 85-25O-2877-O (v. 1) ISBN 85-25O-2878-9 (v. 2)

    1. Fico argentina 1. Ttulo.

    CDD-ar863.4 ndices para catlogo sistemtico

    1. Fico : Sculo 2O : Literatura argentina ar863.4

    1. Sculo 2O : Fico : Literatura argentina ar863.4

    OUTRAS INQUISIES Otras Inquisiciones

    Traduo de Srgio Molina

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    Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefcio de sua leitura queles que no podem compr-la ou queles que necessitam de meios eletrnicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou at mesmo a sua troca por qualquer contraprestao totalmente condenvel em qualquer circunstncia. A generosidade e a humildade a marca da distribuio, portanto distribua este livro livremente.

  • OOUUTTRRAASS IINNQQUUIISSIIEESS

    1952 -

    A Margot Guerrero

  • A MURALHA E OS LIVROS

    He, whose long wall the wand ring Tartar bounds...

    Dunciad, II, 76.

    Li, dias atrs, que o homem que ordenou a edificao da quase infinita muralha chinesa foi aquele primeiro Imperador, Che Huang-ti, que tambm mandou queimar todos os livros anteriores a ele. O fato de as duas vastas operaes as quinhentas a seiscentas lguas de pedra opostas aos brbaros, a rigorosa abolio da histria, isto , do passado procederem da mesma pessoa e serem de certo modo seus atributos inexplicavelmente agradou-me e, ao mesmo tempo, inquietou-me. Indagar as razes dessa emoo o fito desta nota.

    Historicamente, no h mistrio nas duas medidas. Contemporneo das guerras de Anbal, Che Huang-ti, rei de Tsin, reduziu os Seis Reinos a seu poder e aboliu o sistema feudal; erigiu a muralha, porque as muralhas eram defesas; queimou os livros, porque a oposio os invocava para louvar os antigos imperadores. Queimar livros e erigir fortificaes tarefa comum dos prncipes; a nica singularidade de Che Huang-ti foi a escala em que ele atuou. o que do a entender alguns sinlogos, mas eu sinto que os fatos referidos so algo mais que um exagero ou uma hiprbole de disposies triviais. Cercar uma horta ou um jardim comum; no, cercar um imprio. Tampouco rotineiro pretender que a mais tradicional das raas renuncie memria de seu passado, mtico ou verdadeiro. Trs mil anos de cronologia tinham os chineses (e, nesses anos, o Imperador Amarelo, e Chuang Tzu, e Confcio, e Lao-ts), quando Che Huang-ti ordenou que a histria comeasse com ele.

    Che Huang-ti condenara a me ao desterro por libertinagem; em sua dura justia, os ortodoxos no viram seno impiedade; Che Huang-ti talvez quisesse suprimir os livros cannicos porque estes o acusavam; Che Huang-ti talvez quisesse abolir todo o passado para abolir uma nica lembrana: a infmia de sua me. (No de outra sorte um rei, na Judia, mandou matar todas as crianas para matar uma.) Essa conjetura aceitvel, mas nada nos diz da muralha, da segunda face do mito. Che Huang-ti, segundo os historiadores, proibiu qualquer meno morte, e procurou o elixir da imortalidade, e recluiu-se em um palcio figurativo, que constava de tantos aposentos como dias tem o ano; esses dados sugerem que a muralha no espao e o incndio no tempo foram barreiras mgicas destinadas a deter a morte. Todas as coisas querem persistir

  • em seu ser, escreveu Baruch Spinoza; pode ser que o imperador e seus magos acreditassem que a imortalidade intrnseca e que a corrupo no pode entrar em um orbe fechado. Pode ser que o Imperador tenha tentado recriar o princpio do tempo, tenha-se chamado Primeiro para ser realmente o primeiro, e Huang-ti para de certo modo ser Huang-ti, o legendrio imperador que inventou a escrita e a bssola. Este, segundo o Livro dos Ritos, deu s coisas seu nome verdadeiro; semelhantemente, Che Huang-ti jactou-se, em inscries que perduram, de que, sob seu imprio, todas as coisas receberam o nome que lhes convm. Sonhou em fundar uma dinastia imortal; ordenou que seus herdeiros se chamassem Segundo Imperador, Terceiro Imperador, Quarto Imperador, e assem at o infinito... Falei de um propsito mgico; tambm poderamos supor que erigir a muralha e queimar os livros no foram atos simultneos. Isso (segundo a ordem que escolhssemos) dar-nos-ia a imagem de um rei que comeou por destruir e mais tarde resignou-se a conservar, ou a de um rei desiludido que destruiu o que antes defendia. Ambas as conjeturas so dramticas, mas, que eu saiba, carecem de base histrica. Herbert Allen Giles conta que aqueles que ocultaram livros foram marcados a ferro candente e condenados a construir, at o dia de sua morte, a desmedida muralha. Essa notcia favorece ou tolera outra interpretao. Talvez a muralha fosse uma metfora, talvez Che Huang-ti tenha condenado aqueles que adoravam o passado a uma obra to vasta quanto o passado, to nscia e to intil. Talvez a muralha fosse um desafio e Che Huang-ti tenha pensado: "Os homens amam o passado, e contra esse amor nada posso nem podem meus carrascos, mas um dia h de viver um homem que sinta como eu, e ele destruir minha muralha, como eu destru os livros, e ele apagar minha memria e ser minha sombra e meu espelho, e no o saber". Talvez Che Huang-ti tenha amuralhado o imprio porque sabia que este era precrio e destrudo os livros por entender que eram livros sagrados, ou seja, livros que ensinam o que ensina o universo inteiro ou a conscincia de cada homem. Talvez o incndio das bibliotecas e a edificao da muralha sejam operaes que de modo secreto se anulam.

    A muralha tenaz que neste momento, e em todos, projeta seu sistema de sombras sobre terras que no verei a sombra de um Csar que ordenou que a mais reverente das naes queimasse seu passado; verossmil que a idia nos toque por si mesma, para alm das conjeturas que permite. (Sua virtude pode estar na oposio entre construir e destruir, em enorme escala.) Generalizando o caso anterior, poderamos inferir que todas as formas tm sua virtude em si mesmas e no em um "contedo" conjeturai. Isso coincidiria com a tese de Benedetto Croce; j Pater, em 1877, afirmou que todas as artes aspiram condio da msica, que apenas forma. A msica, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepsculos e certos lugares querem dizer algo, ou algo disseram que no deveramos ter perdido, ou esto

  • prestes a dizer algo; essa iminncia de uma revelao, que no se produz, talvez o fato esttico.

    Buenos Aires, 1950.

  • A ESFERA DE PASCAL

    Talvez a histria universal seja a histria de algumas metforas. Esboar um captulo dessa histria o fito desta nota.

    Seis sculos antes da era crist, o rapsodo Xenfanes de Colofnio, farto dos versos homricos que recitava de cidade em cidade, condenou os poetas que atriburam traos antropomrficos aos deuses e props aos gregos um nico Deus, que era uma esfera eterna. No Timeu, de Plato, l-se que a esfera a figura mais perfeita e mais uniforme, porque todos os pontos da superfcie eqidistam do centro; Olof Gigon (Ursprang der Griechischen Philosophie, 183) entende que Xenfanes falou analogicamente; o Deus era esferoidal por ser essa forma a melhor, ou menos m, para representar a divindade. Parmnides, quarenta anos depois, repetiu a imagem ("o Ser semelhante massa de uma esfera bem arredondada, cuja fora constante do centro em qualquer direo"); Calogero e Mondolfo entendem que ele intuiu uma esfera infinita, ou infinitamente crescente, e que as palavras transcritas acima tm um sentido dinmico (Albertelli: Gli Eleati, 148). Parmnides lecionou na Itlia; poucos anos antes de sua morte, o siciliano Empdocles de Agrigento urdiu uma laboriosa cosmogonia; h uma etapa em que as partculas da terra, da gua, do ar e do fogo integram uma esfera sem fim, "o Sphairos redondo, que exulta em sua solido circular".

    A histria universal seguiu seu curso, os deuses demasiado humanos que Xenfanes atacara foram rebaixados a fices poticas ou a demnios, mas afirmou-se que um deles, Hermes Trismegisto, ditara um nmero varivel de livros (42, segundo Clemente de Alexandria; 20.000, segundo Jmblico; 36.525, segundo os sacerdotes de Thot, que tambm era Hermes), em cujas pginas estavam escritas todas as coisas. Fragmentos dessa biblioteca ilusria, compilados ou forjados desde o sculo I1, formam aquilo que recebe o nome de Corpus Hermeticum; em um desses fragmentos, ou no Asclpio, tambm atribudo a Trismegisto, o telogo francs Alain de Lille Alanus de Insulis descobriu em fins do sculo XII a seguinte frmula, que as idades vindouras no esqueceriam: "Deus uma esfera inteligvel, cujo centro est em toda a parte e a circunferncia em nenhuma". Os pr-socrticos falaram de uma esfera sem fim; Albertelli (como, antes, Aristteles) pensa que falar assim cometer uma contradictio in adjecto, pois sujeito e predicado se anulam; isso bem pode ser verdade, mas a frmula dos livros hermticos deixa-nos, quase, intuir essa esfera. No sculo XIII, a imagem reapareceu no simblico Roman de la Rose, que a apresenta como sendo de Plato, e na enciclopdia Speculum Triplex; no

  • XVI, o ltimo captulo do ltimo livro de Pantagruel referiu-se a "essa esfera intelectual, cujo centro est em toda a parte e a circunferncia em nenhuma, que chamamos Deus". Para a mente medieval, o sentido era claro: Deus est em cada uma de suas criaturas, mas nenhuma O limita. "O cu, o cu dos cus, no te contm", disse Salomo (I Reis 8, 27); a metfora geomtrica da esfera deve ter parecido uma glosa dessas palavras.

    O poema de Dante preservou a astronomia ptolomaica, que durante mil e quatrocentos anos regeu a imaginao dos homens. A terra ocupa o centro do universo. uma esfera imvel; em torno dela giram nove esferas concntricas. As sete primeiras so os cus planetrios (cus da Lua, de Mercrio, de Vnus, do Sol, de Marte, de Jpiter, de Saturno); a oitava, o cu das estrelas fixas; a nona, o cu cristalino, tambm chamado Primeiro Mvel. Este rodeado pelo Empreo, que feito de luz. Toda essa laboriosa mquina de esferas ocas, transparentes e giratrias (um dos sistemas requeria cinqenta e cinco) chegara a ser uma necessidade mental; De Hipothesibus Motuum Coelestium Commentariolus o tmido titulo que Coprnico, negador de Aristteles, deu ao manuscrito que transformou nossa viso do cosmos. Para um homem, para Giordano Bruno, a ruptura das abbadas estelares foi uma libertao. Este proclamou, na Ceia das Cinzas, que o mundo o efeito infinito de uma causa infinita e que a divindade est prxima, "pois est dentro de ns mais ainda que ns mesmos estamos dentro de ns". Procurou palavras para explicar o espao copernicano aos homens e em uma pgina famosa estampou: "Podemos afirmar com certeza que o universo todo centro, ou que o centro do universo est em toda a parte e a circunferncia em nenhuma" (Da Causa, do Princpio e da Unidade, V).

    Isso foi escrito com exultao em 1584, ainda luz do Renascimento; setenta anos depois, no restava nem um reflexo desse fervor, e os homens sentiram-se perdidos no tempo e no espao. No tempo, porque, se o futuro e o passado so infinitos, no haver realmente um quando; no espao, porque, se todo ser eqidista do infinito e do infinitesimal, tampouco haver um onde. Ningum est em algum dia, em algum lugar; ningum sabe o tamanho de seu rosto. No Renascimento, a humanidade acreditou que chegara idade viril, e assim o declarou pela boca de Bruno, de Carnpanella e de Bacon. No sculo XVII acovardou-a uma sensao de velhice; para se justificar, exumou a crena em uma lenta e fatal degenerao de todas as criaturas, por obra do pecado de Ado. (No quinto captulo do Gnesis consta que "todos os dias de Matusalm foram novecentos e setenta e nove anos"; no sexto, que "havia gigantes sobre a terra naqueles dias".) O primeiro aniversrio da elegia Anatomy of the World, de John Donne, lamentou a vida brevssima e a estatura mnima dos homens contemporneos, que so como as fadas e os pigmeus; Milton, segundo a biografia de Johnson, temeu que o gnero pico j fosse impossvel na terra;

  • Glanvill entendeu que Ado, "medalha de Deus", desfrutou de uma viso telescpica e microscpica; Robert South famosamente escreveu: "Um Aristteles no foi mais que escombros de Ado, e Atenas, os rudimentos do Paraso". Naquele sculo desanimado, o espao absoluto que inspirou os hexmetros de Lucrcio, o espao absoluto que para Bruno fora uma libertao, foi um labirinto e um abismo para Pascal. Este abominava o universo e desejaria adorar a Deus, mas Deus, para ele, era menos real que o abominado universo. Deplorou que o firmamento no falasse, comparou nossa vida de nufragos em uma ilha deserta. Sentiu o peso incessante do mundo fsico, sentiu vertigem, medo e solido, e expressou-os em outras palavras: "A natureza uma esfera infinita, cujo centro est em toda a parte e a circunferncia em nenhuma". O texto assim publicado por Brunschvicg, mas a edio crtica de Tourneur (Paris, 1941), que reproduz as rasuras e vacilaes do manuscrito, revela que Pascal comeou a escrever effroyable: "Uma esfera terrvel, cujo centro est em toda a parte e a circunferncia em nenhuma".

    Talvez a histria universal seja a histria da vria entonao de algumas metforas.

    Buenos Aires, 1951.

  • A FLOR DE COLERIDGE

    Por volta de 1938, Paul Valry escreveu: "A histria da literatura no deveria ser a histria dos autores e dos acidentes de sua carreira ou da carreira de suas obras, e sim a histria do Esprito como produtor ou consumidor de literatura. Essa histria poderia ser levada a termo sem mencionar um nico escritor". No era a primeira vez que o Esprito formulava essa observao; em 1844, no povoado de Concord, outro de seus amanuenses anotara: "Dir-se-ia que uma nica pessoa redigiu quantos livros h no mundo; h neles tal unidade central que inegvel serem obra de um nico cavalheiro onisciente" (Emerson: Essays, 2, VIII). Vinte anos antes, Shelley sentenciou que todos os poemas do passado, do presente e do porvir so episdios ou fragmentos de um nico poema infinito, construdo por todos os poetas do orbe (A Defence of Poetry, 1821).

    Essas consideraes (implcitas, sem dvida, no pantesmo) permitiriam um infindvel debate; eu, agora, invoco-as para executar um modesto propsito: a histria da evoluo de uma idia, por meio dos textos heterogneos de trs autores. O primeiro texto uma nota de Coleridge, ignoro se escrita em fins do sculo XV11I ou princpios do XIX. Diz, literalmente:

    "Se um homem atravessasse o Paraso em um sonho e lhe dessem uma flor como prova de que estivera ali, e ao despertar encontrasse essa flor em sua mo... O que pensar?"

    No sei qual ser a opinio de meu leitor acerca dessa imaginao; eu a considero perfeita. Us-la como base de outras invenes felizes parece previamente impossvel; tem a integridade e a unidade de um terminus ad quem, de uma meta. Claro que o ; na ordem da literatura, como em outras, no h ato que no seja coroao de uma infinita srie de causas e manancial de uma infinita srie de efeitos. Por trs da inveno de Coleridge est a geral e antiga inveno das geraes de amantes que pediram uma flor como prova.

    O segundo texto que alegarei um romance que Wells esboou em 1887 e reescreveu sete anos mais tarde, no vero de 1894. A primeira verso intitulava-se The Chronic Argonauts (neste titulo descartado, chronic tem o valor etimolgico de "temporal"); a definitiva, The Time Machine. Wells, nesse romance, continua e reforma uma antiqssima tradio literria: a previso de fatos futuros. Isaas v a desolao de Babilnia e a restaurao de Israel; Enias, o destino militar de sua posteridade, os romanos; a profetisa de Edda Saemundi, o retorno dos deuses que, depois da cclica batalha em que nossa terra h de perecer, descobriro, espalhadas entre as ervas de uma nova

  • pradaria, as peas de xadrez com que antes jogaram... O protagonista de Wells, ao contrrio desses espectadores profticos, viaja fisicamente ao futuro. Volta exausto, empoeirado e muito abatido; volta de uma remota humanidade que se bifurcou em espcies que se odeiam (os ociosos eloi, que habitam em palcios dilapidados e ruinosos jardins; os subterrneos e nictalopes morlocks, que se alimentam dos primeiros); volta com as tmporas encanecidas e traz do porvir uma flor murcha. Essa a segunda verso da imagem de Coleridge. Mais inacreditvel que uma flor celestial ou que a flor de um sonho a flor futura, a contraditria flor cujos tomos agora ocupam outros lugares e ainda no se combinaram.

    A terceira verso que comentarei, a mais trabalhada, inveno de um escritor muito mais complexo que Wells, embora menos dotado dessas agradveis virtudes que se costuma chamar de clssicas. Refiro-me ao autor de A Humilhao dos Northmore, o triste e labirntico Henry James. Este, ao morrer, deixou inacabado um romance de carter fantstico, The Sense of the Past, que uma variante ou elaborao de The Time Machine.1 O protagonista de Wells viaja ao futuro em um inconcebvel veculo, que avana ou recua no tempo como os outros veculos no espao; o de James volta ao passado, ao sculo XVIII, fora de compenetrar-se dessa poca. (Os dois procedimentos so impossveis, mas o de James menos arbitrrio.) Em The Sense of the Past, o nexo entre o real e o imaginrio (entre atualidade e passado) no uma flor, como nas fices anteriores; um retrato que data do sculo XVIII e que misteriosamente representa o protagonista. Este, fascinado por essa tela, consegue trasladar-se data em que foi executada. Entre as pessoas que encontra, figura, necessariamente, o pintor; este o pinta com temor e averso, pois intui algo de incomum e anmalo nessas feies futuras... James cria, assim, um incomparvel regressos in infinitum, j que seu heri, Ralph Pendrel, traslada-se ao sculo XVIII. A causa posterior ao efeito, o motivo da viagem uma das conseqncias da viagem.

    Wells, verossimilmente, desconhecia o texto de Coleridge; Henry James conhecia e admirava o texto de Wells. Claro que, se for vlida a doutrina de que todos os autores so um autor,2 tais fatos so irrelevantes. A rigor, no indispensvel ir to longe; o pantesta que declara que a pluralidade dos autores ilusria encontra inesperado apoio no classicista, segundo o qual essa

    1 No li The Sense of Past, mas conheo a suficiente anlise de Stephen Spender, em sua obra The

    Destructive Element (p. 1O5-1O). James foi amigo de Wells; sobre a relao deles pode-se consultar o vasto Experiment in Autobiography, deste ltimo.

    2 Em meados do sculo XVII, o epigramatista do pantesmo Angelus Silesius disse que todos os bem-

    aventurados so um (Cherubinischer Wandersmann, V, 7) e que todo cristo deve ser Cristo (op. cit., V, 9).

  • pluralidade importa muito pouco. Para as mentes clssicas, a literatura o essencial, no os indivduos. George Moore e James Joyce incorporaram, em suas obras, pginas e sentenas alheias; Oscar Wilde costumava dar seus argumentos de presente para que outros os executassem; ambas as condutas, embora superficialmente opostas, podem evidenciar um mesmo sentido da arte. Um sentido ecumnico, impessoal... Outra testemunha da unidade profunda do Verbo, outro pegador dos limites do sujeito, foi o insigne Ben Johnson, que, empenhado na tarefa de formular seu testamento literrio e os ditames favorveis ou adversos que dele mereciam seus contemporneos, limitou-se a combinar fragmentos de Sneca, de Quintiliano, de Justo Lipsio, de Vives, de Erasmo, de Maquiavel, de Bacon e dos dois Escalgeros.

    Uma ltima observao. Aqueles que copiam minuciosamente um escritor fazem-no de modo impessoal, fazem-no por confundir esse escritor com a literatura, fazem-no por supor que se afastar dele em um ponto afastar-se da razo e da ortodoxia. Durante muitos anos, eu acreditei que a quase infinita literatura estava em um homem. Esse homem foi Carlyle, foi Johannes Becher, foi Whitman, foi Rafael Caninos-Assns, foi De Quincey.

  • O SONHO DE COLERIDGE

    O fragmento lrico Kubla Khan (cinqenta e tantos versos rimados e irregulares, de refinada prosdia) foi sonhado pelo poeta ingls Samuel Taylor Coleridge, em um dos dias do vero de 1797. Coleridge escreve que se retirara para uma chcara nos confins de Exmoor; uma indisposio obrigou-o a tomar um hipntico; foi vencido pelo sono momentos depois de ler uma passagem de Purchas que descreve a edificao de um palcio por Kubilai Khan, o imperador cuja fama ocidental foi obra de Marco Polo. No sonho de Coleridge, o texto lido por acaso principiou a germinar e a se multiplicar; o homem que dormia intuiu uma srie de imagens visuais e, simplesmente, de palavras que as manifestavam; passadas algumas horas, acordou, com a certeza de ter composto, ou recebido, um poema de cerca de trezentos versos. Recordava-os com singular clareza e conseguiu transcrever o fragmento que perdura em suas obras. Uma visita inesperada interrompeu-o e foi-lhe impossvel, depois, recordar o restante. "Descobri, com no pequena surpresa e mortificao conta Coleridge , que, embora retivesse de modo vago a forma geral da viso, tudo o mais, salvo umas oito ou dez linhas soltas, tinha desaparecido como as imagens na superfcie de um rio onde se atira uma pedra, mas, ai de mim, sem a ulterior restaurao delas." Swinburne sentiu que os versos resgatados eram o mais alto exemplo da msica do ingls e que o homem capaz de analis-los poderia (a metfora de John Keats) destecer um arco-ris. As tradues ou resumos de poemas cuja virtude fundamental a msica so vos e por vezes prejudiciais; basta-nos reter, por ora, que a Coleridge foi dada em um sonho uma pgina de no discutido esplendor.

    O caso, embora extraordinrio, no nico. No estudo psicolgico The World of Dreams, Havelock Ellis equiparou-o com o do violinista e compositor Giuseppe Tartini, que sonhara que o Diabo (seu escravo) executava no violino uma prodigiosa sonata; o sonhador, ao despertar, deduziu de sua imperfeita lembrana o Trillo del Diavolo. Outro exemplo clssico de cerebrao inconsciente o de Robert Louis Stevenson, a quem um sonho (segundo ele mesmo contou em seu Chapter on Dreams) deu o argumento de Olalla e outro, em 1884, o de Jekyll & Hide. Tartini quis imitar na viglia a msica de um sonho; Stevenson recebeu do sonho argumentos, isto , formas gerais; mais afim com a inspirao verbal de Coleridge a que Beda, o Venervel, atribui a Caedmon (Historia Ecclesiastica Gentis Anglocum, IV, 24). O caso ocorreu em fins do sculo VII, na Inglaterra missionria e guerreira dos reinos saxes. Caedmon era um rstico pastor e j no era jovem; uma noite, esgueirou-se de

  • uma festa por prever que lhe passariam a harpa, e ele sabia-se incapaz de cantar. Recolheu-se ao estbulo, para dormir entre os cavalos, e no sonho algum o chamou pelo nome e lhe ordenou que cantasse. Caedmon respondeu que no sabia, mas o outro disse: "Canta o princpio das coisas criadas". Caedmon, ento, recitou versos que jamais ouvira. No os esqueceu, ao despertar, e pde repeti-los diante dos monges do vizinho mosteiro de Hild. No aprendeu a ler, mas os monges explicavam-lhe passagens da histria sagrada e ele "as ruminava como um puro animal e as transformava em dulcssimos versos, e assim cantou a criao do mundo e do homem e toda a histria do Gnesis e do xodo dos filhos de Israel e sua entrada na terra prometida, e muitas outras coisas da Escritura, e a encarnao, paixo, ressurreio e ascenso do Senhor, e a vinda do Esprito Santo e o ensinamento dos apstolos, e tambm o terror do Juzo Final, o horror dos castigos infernais, as douras do cu e as mercs e os juzos de Deus". Foi o primeiro poeta sacro da nao inglesa; "ningum igualou-se a ele diz Beda , porque no aprendeu dos homens, e sim de Deus". Anos mais tarde, previu a hora em que morreria e aguardou-a dormindo. Esperemos que tenha reencontrado seu anjo.

    primeira vista, o sonho de Coleridge corre o risco de parecer menos assombroso que o de seu precursor. Kubla Khan uma composio admirvel e as nove linhas do hino sonhado por Caedmon quase no apresentam outra virtude exceto sua origem onrica, mas Coleridge j era um poeta, enquanto a Caedmon foi revelada uma vocao. H, entretanto, um fato ulterior, que magnfica at o insondvel a maravilha do sonho em que Kubla Khan foi gerado. Se esse fato for verdadeiro, a histria do sonho de Coleridge antecede Coleridge em muitos sculos e ainda no chegou a seu fim.

    O poeta sonhou em 1797 (outros entendem que em 1798) e publicou seu relato do sonho em 1816, sob a forma de glosa ou justificativa do poema inacabado. Vinte anos depois, apareceu em Paris, fragmentariamente, a primeira verso ocidental de uma dessas histrias universais em que a literatura persa to rica, o Compndio de Histrias, de Rachid ed-Din, que data do sculo XIV. Em uma pgina, l-se: "A leste de Chan-tong, Kubla Khan erigiu um palcio, de acordo com uma planta que vira em sonho e que guardava na memria". Quem escreveu isso era vizir de Ghazan Mahmud, que descendia de Kubla.

    Um imperador mongol, no sculo XIII, sonha um palcio e o edifica conforme a viso; no sculo XVIII, um poeta ingls, que no tinha como saber que essa construo se derivara de um sonho, sonha um poema sobre o palcio. Confrontadas com essa simetria, que trabalha com almas de homens que dormem e abarca continentes e sculos, nada ou muito pouco so, a meu ver, as levitaes, ressurreies e aparies dos livros piedosos.

  • Que explicao preferiremos? Aqueles que de antemo rejeitam o sobrenatural (eu procuro, sempre, incluir-me nesse grupo) julgaro que a histria dos dois sonhos uma coincidncia, um desenho traado pelo acaso, como as formas de lees ou de cavalos que as nuvens por vezes configuram. Outros argiro que o poeta soube de algum modo que o imperador sonhara o palcio e disse ter sonhado o poema para criar uma esplndida fico, capaz, tambm, de paliar ou justificar o que nele h de truncado e rapsdico.1 Essa conjetura verossmil, mas obriga-nos a postular, arbitrariamente, um texto no identificado pelos sinlogos em que Coleridge pudesse ter lido, antes de 1816, o sonho de Kubla.2 Mais encantadoras so as hipteses que transcendem o racional. Por exemplo, cabvel supor que, destrudo o palcio, a alma do imperador tenha penetrado na alma de Coleridge para que este o reconstrusse em palavras, mais duradouras que mrmores e metais.

    O primeiro sonho acrescentou um palcio realidade; o segundo, que se deu cinco sculos mais tarde, um poema (ou princpio de poema) sugerido pelo palcio; a semelhana dos sonhos deixa entrever um plano; o perodo enorme revela um executor sobre-humano. Indagar o propsito desse imortal ou desse longevo seria, talvez, no menos atrevido que intil, mas lcito suspeitar que ele no teve xito. Em 1691, o padre Gerbillon, da Companhia de Jesus, constatou que do palcio de Kubilai Khan s restavam runas; do poema consta-nos que foram resgatados no mais que cinqenta versos. Tais fatos permitem conjeturar que a srie de sonhos e de trabalhos no chegou ao fim. Ao primeiro sonhador foi oferecida, na noite, a viso do palcio, e ele o construiu; ao segundo, que no soube do sonho do anterior, o poema sobre o palcio. Se o esquema no falhar, algum, em uma noite a sculos de ns, sonhar o mesmo sonho sem suspeitar que outros o sonharam e lhe dar a forma de um mrmore ou de uma msica. Talvez a srie de sonhos no tenha fim, talvez a chave esteja no ltimo.

    J escrita a explicao acima, entrevejo ou creio entrever outra. Quem sabe um arqutipo ainda no revelado aos homens, um objeto eterno (para usar a nomenclatura de Whitehead), esteja ingressando paulatinamente no mundo; sua primeira manifestao foi o palcio; a segunda, o poema. Quem os comparasse teria visto que eram essencialmente iguais.

    1 No incio do sculo XIX ou final do XVIII, julgado por leitores de gosto clssico, Kubla Khan era muito

    mais ousado que hoje. Em 1884, o primeiro bigrafo de Coleridge, Traill, ainda pde escrever: "O extravagante poema onrico Kubla Khan pouco mais que uma curiosidade psicolgica".

    2 Ver John Livingston Lowes: The Road to Xanadu, 1927, p. 358, 585.

  • O TEMPO E J. W. DUNNE

    No nmero 63 da revista Sur (dezembro de 1939), publiquei uma pr-histria, uma primeira histria rudimentar, da regresso infinita. Nem todas as omisses desse esboo eram involuntrias: exclu deliberadamente a meno a J. W. Dunne, que extraiu do interminvel regressus uma doutrina bastante assombrosa do sujeito e do tempo. A discusso (a mera exposio) de sua tese teria excedido os limites dessa nota. Sua complexidade requeria um artigo independente: este que agora ensaiarei. Alenta-me a escrev-lo o exame do ltimo livro de Dunne Nothing Dies (1940, Faber & Faber) , que repete ou resume os argumentos dos trs anteriores.

    O argumento nico, para ser mais exato. Seu mecanismo nada tem de novo; o que quase escandaloso, inslito, so as inferncias do autor. Antes de coment-las, anoto alguns prvios avatares das premissas.

    O stimo dos muitos sistemas filosficos da ndia que registra Paul Deussen1 nega que o eu possa ser objeto imediato do conhecimento, "pois, se nossa alma fosse conhecvel, seria necessria uma segunda alma para conhecer a primeira e uma terceira para conhecer a segunda". Os hindus no tm sentido histrico (isto : perversamente, preferem o exame das idias ao dos nomes e datas dos filsofos), mas consta-nos que essa negao radical da introspeco tem cerca de oito sculos. Por volta de 1843, Schopenhauer a redescobre. "O sujeito conhecedor", repete ele, "no conhecido como tal, pois seria objeto de conhecimento de outro sujeito conhecedor" (Welt als Wille und Vorstellung, tomo 2, captulo 19). Herbart tambm jogou com essa multiplicao ontolgica. Antes dos vinte anos, j deduzira que o eu inevitavelmente infinito, pois o fato de conhecer-se a si mesmo postula outro eu que tambm se conhece a si mesmo, e esse eu postula por sua vez outro eu (Deussen: Die Neuere Philosophie, 1920, p. 367). Exornado de histrias, de parbolas, de boas ironias e de diagramas, esse o argumento em que os tratados de Dunne se baseiam.

    Este (An Experiment with Time, captulo XXII) raciocina que um sujeito consciente no s consciente daquilo que observa, mas de um sujeito A que observa e, portanto, de outro sujeito B que consciente de A e, portanto, de outro sujeito C consciente de B... No sem mistrio, acrescenta que esses inumerveis sujeitos ntimos no cabem nas trs dimenses do espao, e sim

    1 Nachvedische Philosophie der Inder, p. 318.

  • nas no menos inumerveis dimenses do tempo. Antes de esclarecer esse esclarecimento, convido meu leitor para repensarmos o que diz este pargrafo.

    Huxley, como bom herdeiro dos nominalistas britnicos, sustenta que h apenas uma diferena verbal entre o fato de perceber uma dor e o de saber que a percebemos e zomba dos metafsicos puros, que em toda sensao distinguem "um sujeito sensvel, um objeto sensgeno e esse personagem imperioso: o Eu" (Essays, tomo 6, p. 87). Gustav Spiller (The Mind of Man, 1902) admite que a conscincia da dor e a dor so dois fatos distintos, mas considera-os to compreensveis quanto a simultnea percepo de uma voz e de um rosto. Sua opinio parece-me vlida. Quanto conscincia da conscincia, invocada por Dunne para instalar em cada indivduo uma vertiginosa e nebulosa hierarquia de sujeitos, prefiro supor que se trata de estados sucessivos (ou imaginrios) do sujeito inicial. "Se o esprito disse Leibniz tivesse de repensar o pensado, bastaria perceber um sentimento para pensar nele e para depois pensar no pensamento e depois no pensamento do pensamento, e assim at o infinito" (Nouveaux Essais sor lEntendement Humain, livro 2, captulo 1).

    O procedimento criado por Dunne para a obteno imediata de um nmero infinito de tempos menos convincente e mais engenhoso. Assim como Juan de Mena em seu Labyrintho,2 como Uspenski no Tertium Organum, ele postula que o futuro j existe, com suas vicissitudes e pormenores. Para o futuro preexistente (ou do futuro preexistente, como prefere Bradley) flui o rio absoluto do tempo csmico, ou os rios mortais de nossas vidas. Essa translao, esse fluir, exige, como todos os movimentos, um tempo determinado; teremos, portanto, um tempo segundo para o traslado do primeiro; um terceiro para o traslado do segundo, e assim at o infinito...3 Assim a mquina proposta por Dunne. Nesses tempos hipotticos ou ilusrios tm interminvel morada os sujeitos imperceptveis que o outro regressus multiplica.

    No sei qual ser a opinio de meu leitor. No pretendo saber que coisa o tempo (nem mesmo se uma "coisa"), mas intuo que o curso do tempo e o tempo so um nico mistrio, e no dois. Dunne, suspeito, comete um erro semelhante ao dos distrados poetas que falam (digamos) da lua que mostra seu rubro disco, substituindo assim uma indivisa imagem visual por um sujeito, um verbo e um complemento, que no outro seno o prprio sujeito, ligeiramente

    2 Neste poema do sculo XV h uma viso de "trs mui grandes rodas": a primeira, imvel, o passado; a

    segunda, giratria, o presente; a terceira, imvel, o futuro.

    3 Meio sculo antes de ser proposta por Dunne, "a absurda conjetura de um segundo tempo, no qual flui,

    rpida ou lentamente, o primeiro", fora descoberta e recusada por Schopenhauer, em uma nota manuscrita anexa a seu Welt als Wille und Vorstellung. Consta na pgina 829 do segundo volume da edio histrico-crtica de Otto Weiss.

  • mascarado... Dunne uma vtima ilustre desse mau hbito intelectual denunciado por Bergson: conceber o tempo como uma quarta dimenso do espao. Postula que o futuro j existe e que devemos trasladar-nos a ele, mas esse postulado basta para transform-lo em espao e para requerer um tempo segundo (que tambm concebido sob forma espacial, sob a forma de linha ou de rio) e depois um terceiro e um milionsimo. Nenhum dos quatro livros de Dunne deixa de propor infinitas dimenses do tempo,4 mas essas dimenses so espaciais. O tempo verdadeiro, para Dunne, o inatingvel ltimo termo de uma srie infinita.

    Que razes haveria para postular que o futuro j existe? Dunne fornece duas: uma, os sonhos premonitrios; outra, a relativa simplicidade que essa hiptese outorga aos inextricveis diagramas tpicos de seu estilo. Ele tambm quer evitar os problemas de uma criao contnua...

    Os telogos definem a eternidade como a simultnea e lcida posse de todos os instantes do tempo e declaram-na um dos atributos divinos. Dunne, surpreendentemente, supe que a eternidade j nos pertence e que isso corroborado pelos sonhos de cada noite. Nestes, segundo ele, confluem o passado imediato e o imediato porvir. Na viglia percorremos o tempo sucessivo a uma velocidade uniforme, no sonho abarcamos uma rea que pode ser vastssima. Sonhar coordenar os vislumbres dessa contemplao e com eles urdir uma histria, ou uma srie de histrias. Vemos a imagem de uma esfinge e a de uma botica e inventamos que uma botica se transforma em esfinge. No homem que amanh conheceremos colocamos a boca de um rosto que nos olhou ontem noite... (Schopenhauer escreveu que a vida e os sonhos so folhas de um mesmo livro e que l-las em ordem viver; folhe-las, sonhar.)

    Dunne garante que na morte aprenderemos o feliz manejo da eternidade. Recuperaremos todos os instantes de nossa vida e os combinaremos como bem entendermos. Deus, e nossos amigos, e Shakespeare colaboraro conosco.

    Diante de uma tese to esplndida, qualquer falcia cometida pelo autor resulta insignificante.

    4 A frase reveladora. No captulo XXI do livro An Experiment with Time, o autor fala de um tempo que

    perpendicular a outro.

  • A CRIAO E P H. GOSSE

    "The man without a Navel yet lives in me" (o homem sem Umbigo perdura em mim), escreve, curiosamente, Sir Thomas Browne (Religio Medici, 1642), para denotar que foi concebido em pecado, por descender de Ado. No primeiro captulo do Ulisses, Joyce tambm evoca o ventre imaculado e liso da mulher sem me: "Heva, naked Eve. She had no navel". O tema (sei bem) corre o risco de parecer grotesco e banal, mas o zologo Philip Henry Gosse vinculou-o ao problema central da metafsica: o problema do tempo. Essa vinculao de 1857; oitenta anos de esquecimento talvez equivalham novidade.

    Duas passagens da Escritura (Romanos 5; 1 Corntios 15) contrapem o primeiro homem, Ado, aquele em que morrem todos os homens, ao derradeiro Ado, que Jesus.1 Essa contraposio, para ser mais que uma simples blasfmia, pressupe certa enigmtica paridade, traduzida em mitos e em simetria. A Lenda urea diz que o lenho da Cruz provm daquela rvore proibida que est no Paraso; os telogos, que Ado foi criado pelo Pai e pelo Filho com a idade exata que o Filho teria ao morrer: trinta e trs anos. Essa insensata preciso certamente influenciou a cosmogonia de Gosse.

    Este a divulgou no livro Omphalos (Londres, 1857), cujo subttulo Tentativa de Desatar o N Geolgico. Em vo vasculhei as bibliotecas em busca desse livro; para redigir esta nota, recorrerei aos resumos de Edmund Gosse (Father and Son, 1907) e de H. G. Wells (All Aboard for Ararat, 1940). Introduzo exemplos ilustrativos que no constam nessas breves pginas, mas que julgo compatveis com o pensamento de Gosse.

    No captulo de sua Lgica que trata da lei da causalidade, John Stuart Mill sustenta que o estado do universo em qualquer instante conseqncia de seu estado no instante precedente e que a uma inteligncia infinita bastaria o conhecimento perfeito de um nico instante para saber a histria do universo, passada e vindoura. (Tambm deduz oh, Louis Auguste Blanqui! oh, Nietzsche! oh, Pitgoras! que a repetio de qualquer estado comportaria a

    1 Na poesia devota, essa conjuno comum. Talvez o exemplo mais intenso esteja na penltima estrofe

    de "Hymn to God, my God, in my sickness", March 23,163O, composto por John Donne:

    We think that Paradise and Calvary, Christs Cross, and Adams tree, stood in one place, Look Lord, and find both Adams met in me; As the first Adams sweat surrounds, my face, May the last Adams blood my soul embrace.

  • repetio de todos os outros e faria da histria universal uma srie cclica.) Nessa moderada verso de certa fantasia de Laplace a de que o estado presente do universo , em teoria, redutvel a uma frmula, da qual Algum poderia deduzir todo o porvir e todo o passado , Mill no descarta a possibilidade de uma futura interveno externa capaz de interromper a srie. Afirma que o estado q fatalmente produzir o estado r; o estado r, o s; o estado s, o t; mas admite que, antes de t, uma catstrofe divina a consummatio mundi, digamos pode aniquilar o planeta. O futuro inevitvel, preciso, mas pode no ocorrer. Deus espreita nos intervalos.

    Em 1857, uma discrepncia preocupava os homens. O Gnesis atribua seis dias seis dias hebreus inequvocos, de ocaso a ocaso criao divina do mundo; os paleontlogos impiedosamente exigiam enormes acumulaes de tempo. Em vo repetia De Quincey que a Escritura tem a obrigao de no instruir os homens em cincia alguma, j que as cincias constituem um vasto mecanismo para desenvolver e exercitar o intelecto humano... Como conciliar Deus com os fsseis, Sir Charles Lyell com Moiss? Gosse, fortalecido pela prece, props uma soluo assombrosa.

    Mill imagina um tempo causal, infinito, que pode ser interrompido por um ato futuro de Deus; Gosse, um tempo rigorosamente causal, infinito, j interrompido por um ato pretrito: a Criao. O estado n fatalmente produzir o estado v, mas antes de v pode ocorrer o Juzo Universal; o estado n pressupe o estado c, mas c no ocorreu, porque o mundo foi criado em f ou em h. O primeiro instante do tempo coincide com o instante da Criao, como dita Santo Agostinho, mas esse primeiro instante comporta no s um infinito porvir, mas tambm um infinito passado. Um passado hipottico, claro, mas minucioso e fatal. Surge Ado, e seus dentes e seu esqueleto contam trinta e trs anos; surge Ado (escreve Edmund Gosse) e ele ostenta um umbigo, embora nenhum cordo umbilical o ligue a uma me. O princpio da razo exige que nenhum efeito carea de causa; essas causas requerem outras causas, que regressivamente se multiplicam,2 todas deixam vestgios concretos, mas s as posteriores Criao existiram realmente. No vale de Lujn perduram esqueletos de gliptodonte, mas jamais houve gliptodontes. Essa a tese engenhosa (e, acima de tudo, inacreditvel) que Philip Henry Gosse props religio e cincia.

    As duas a rejeitaram. Os jornalistas reduziram-na doutrina de que Deus teria escondido fsseis sob a terra para pr prova a f dos gelogos; Charles Kingsley desmentiu que o Senhor tivesse gravado nas rochas "uma suprflua e vasta mentira". De nada adiantou Gosse expor a base metafsica da tese: quo inconcebvel um instante de tempo sem outro instante precedente e outro

    2 Cf. Spencer: Facts and Comments, 1902, p. 148-51.

  • ulterior, e assim at o infinito. No sei se ele conheceu a antiga sentena que consta das pginas iniciais da antologia talmdica de Rafael Caninos-Assns: "No era seno a primeira noite, mas uma srie de sculos j a precedera".

    Duas virtudes quero reivindicar para a esquecida tese de Gosse. A primeira: sua elegncia um tanto monstruosa. A segunda: sua involuntria reduo ao absurdo de uma creatio ex Nihilo, sua demonstrao indireta de que o universo eterno, como pensaram o Vedanta e Herclito, Spinoza e os atomistas... Bertrand Russell atualizou-a. No captulo nove do livro The Analysis of Mind (Londres, 1921), supe que o planeta foi criado h poucos minutos, provido de uma humanidade que "recorda" um passado ilusrio.

    Buenos Aires, 1941.

    Post-Scriptum. Em 1802, Chateaubriand (Gnie du Christianisme, I, 4, 5) formulou, partindo de razes estticas, uma tese idntica de Gosse. Revelou quo inspido, e irrisrio, teria sido um primeiro dia da Criao povoado de filhotes, larvas, crias e sementes. Escreveu: "Sans une vieillesse originaire, la nature dans son innocence et t moins belle quelle ne 1"est aujourdhui dans sa corruption".

  • OS ALARMES DO DOUTOR AMRICO CASTRO1

    A palavra problema pode ser uma insidiosa petio de princpio. Falar em problema judeu postular que os judeus so um problema; vaticinar (e recomendar) as perseguies, a expoliao, o fuzilamento, a degola, o estupro e a leitura da prosa do doutor Rosenberg. Outro demrito dos falsos problemas o de promoverem solues tambm falsas. Plnio (Histria Natural, livro oitavo) no se contenta em observar que os drages atacam os elefantes durante o vero: arrisca a hiptese de que o fazem para beber todo seu sangue, que, como ningum ignora, muito frio. O doutor Castro (La Peculiaridad Lingstica, etc.) no se contenta em observar uma "confuso lingstica em Buenos Aires": arrisca a hiptese do "lunfardismo" e da "mstica gauchofilia".

    Para demonstrar a primeira tese a corrupo do idioma espanhol no Prata , o doutor apela a um procedimento que devemos qualificar de sofstico, para no pr em dvida sua inteligncia; de cndido, para no duvidar de sua probidade. Acumula retalhos de Pacheco, de Vacarezza, de Lima, de Last Reason, de Contursi, de Enrique Gonzlez Tun, de Palermo, de Llanderas e de Malfatti, transcreve-os com infantil gravidade e depois os exibe urbi et orbi como exemplos de nossa degenerada linguagem. No suspeita que tais exerccios ("Con un feca con chele / y una ensaimada / vos te vens pal Centro / de grau bacn)2 so caricaturais; declara-os "sintomas de grave alterao", cuja causa remota so "as conhecidas circunstncias que fizeram dos pases platinos zonas aonde a pulsao do imprio hispnico chegava j sem brio". Com idntica eficcia caberia argumentar que em Madri j no restam vestgios do espanhol, como o demonstram as coplas transcritas por Rafael Salillas (El Delincuente Espaol: Su Lenguaje, 1896):

    El minche de esa rumi dicen no tenela bales; los he dicaito yo, los tenela muy juncales...

    El chibel barba del breje

    1 La Peculiaridad Lingstica Rioplatense y Su Sentido Histrico (Losada, Buenos Aires, 1941).

    2 Traduo literal dos versos, sendo o primeiro em vesre (de al revs, ao contrrio; inverso proposital das

    slabas): "Com um pingado / e um po doce / voc vem para a cidade / bancando o gr-fino". (N. da T.)

  • menjind a los burs: apinchar ararajay y menda la pirab.3

    Diante de sua poderosa treva, quase lmpida esta pobre copla em lunfardo:

    El bacn le acanal el escracho a la minushia; despus espirajushi por temor a la canushia.4

    Na pgina 139, o doutor Castro anuncia-nos outro livro sobre o problema da lngua em Buenos Aires; na 87, jacta-se de ter decifrado um dilogo campestre de Lynch "em que os personagens usam os meios mais brbaros de expresso, que s podem ser inteiramente compreendidos por quem est familiarizado com as grias rio-platenses". As grias: ce pluriel est bien singulier. Com exceo do lunfardo (modesto esboo carcerrio que ningum sequer sonha em comparar ao exuberante cal dos espanhis), no h grias neste pas. No padecemos de dialetos, embora padeamos, sim, de institutos dialetolgicos. Essas corporaes vivem de reprovar os sucessivos jarges que inventam. Improvisaram o gauchesco, baseados em Hernndez; o cocoliche, baseados em um palhao que trabalhou com os Podest; o vesre, baseados nos alunos da terceira srie. Em tais detritos se apiam; tais riquezas lhes devemos e deveremos.

    No menos falsos so "os graves problemas que a fala representa em Buenos Aires". Viajei pela Catalunha, por Alicante, pela Andaluzia, por Castela; morei alguns anos em Valldemosa e um em Madri; guardo gratssimas lembranas desses lugares; jamais observei que os espanhis falassem melhor que ns. (Falam, sim, em voz mais alta, com o aprumo de quem ignora a dvida.) O doutor Castro imputa-nos arcasmo. Seu mtodo curioso: descobre

    3 Traduo literal dos versos em cal (linguagem dos ciganos na Espanha): "O sexo dessa mulher / dizem

    que no tem plos; / eu mesmo os vi, / ela os tem muito vistosos... / / No melhor dia do ano / peguei o touro unha: / conheci uma freira / e me deitei com ela". (N. da T.)

    4 Consta do vocabulrio giriesco de Luis Villamayor: El Lenguaje del Bajo Fondo (Buenos Aires, 1915).

    Castro ignora esse lxico, talvez por ter sido citado por Arturo Costa lvarez em um livro essencial: El Castellano en la Argentina (La Plata, 1928). Desnecessrio advertir que ningum diz minushia [mulher], canushia [polcia], espirajushiar [fugir]. [Traduo literal dos versos em lunfardo: "O gr-fino retalhou / a cara da mulher / e depois fugiu / por medo da polcia". (N. da T.)]

  • que as pessoas mais cultas de San Mamed de Puga, em Orense, esqueceram esta ou aquela acepo desta ou daquela palavra; imediatamente resolve que os argentinos tambm devem esquec-la... fato que o idioma espanhol padece de vrias imperfeies (montono predomnio das vogais, excessivo relevo das palavras, inpcia para formar palavras compostas), mas no da imperfeio que seus desastrados vindicadores lhe assacam: a dificuldade. O espanhol faclimo. S os espanhis julgam-no rduo: talvez porque os perturbem as atraes do catalo, do bable, do maiorquino, do galego, do basco e do valenciano; talvez por um erro da vaidade; talvez por certa rudeza verbal (confundem acusativo com dativo, dizem le mat em vez de lo mat, costumam ser incapazes de pronunciar Atlntico ou Madrid, acham que um livro pode suportar este cacofnico ttulo: La Peculiaridad Lingstica Rioplatense y Su Sentido Histrico).

    O doutor Castro, em cada pgina desse livro, prdigo em supersties convencionais. Despreza Lpez e venera Ricardo Rojas; nega os tangos e refere-se s xcaras com respeito; pensa que Rosas foi um caudilho de guerrilhas, um homem ao estilo de Ramrez ou Artigas, e ridiculamente chama-o "centauro mximo". (Com melhor estilo e juzo mais lcido, Groussac preferiu a definio: "miliciano de retaguarda".) Proscreve entendo que com toda a razo a palavra cachada, por zombaria, mas aceita a tomadura de pelo, que, visivelmente, no mais lgica nem mais encantadora. Condena os idiotismos americanos, por preferir os idiotismos espanhis. No quer que digamos de arriba; quer que digamos de gorra... Esse examinador do "fato lingstico buenairense" registra seriamente que os portenhos chamam o gafanhoto de acrdio; esse inexplicvel leitor de Carlos de la Pa e de Yacar revela-nos que taita significa "pai" no linguajar suburbano.

    Nesse livro, a forma no contradiz o contedo. s vezes o estilo comercial: "As bibliotecas do Mxico possuam livros de alta qualidade" (p. 49); "A alfndega seca... impunha preos fabulosos" (p. 52). Por vezes, a contnua trivialidade do pensamento no exclui o pitoresco dislate: "Surge ento a nica coisa possvel, o tirano, condensao da energia sem rumo da massa, que ele no canaliza porque no guia, e sim corpulncia esmagadora, ingente aparelho ortopdico que mecanicamente, bestialmente, encurrala o rebanho disperso" (p. 71, 72). s vezes o pesquisador de Vacarezza tenta o mot juste: "Pelos mesmos motivos alegados para torpedear a maravilhosa gramtica de A. Alonso e P. Henrquez Urea" (p. 31).

    Os compadritos de Last Reason emitem metforas hpicas;o doutor Castro, mais verstil no erro, conjuga a radiotelefonia com o football: "O pensamento e a arte rio-platense so valiosas antenas para tudo aquilo que no mundo significa valor e esforo, atitude intensamente receptiva que no demorar a converter-se em fora criadora, se o destino no torcer o rumo dos

  • sinais propcios. A poesia, o romance e o ensaio conseguiram muito mais que um goal perfeito. A cincia e o pensamento filosfico tm nomes de extrema distino entre seus cultivadores" (p. 9).

    errnea e mnima erudio o doutor Castro acrescenta o incansvel exerccio da adulao, da prosa rimada e do terrorismo.

    P.S. Leio na pgina 136: "Tentar escrever como Ascasubi, Del Campo ou Hernndez, a srio, sem ironia, algo que d o que pensar". Transcrevo aqui as ltimas estrofes do Martn Fierro:

    Cruz e Fierro numa estncia Uma tropilha apanharam, frente os bichos tocaram Como crioulos bem curtidos E logo, sem serem ouvidos, A fronteira atravessaram.

    E depois de ter passado Numa madrugada clara, Disse Cruz ao camarada Que olhasse pros casarios; E pelo rosto do amigo Duas lgrimas rolaram.

    E seguindo o fiel do rumo, Adentraram no deserto, Eu no sei se, em campo aberto, Tombaram nas correrias Mas espero, algum dia, Saber deles algo certo.

    E j com estas notcias Minha cano terminei, Por ser verdade contei Todas as desgraas ditas: um tear de desditas Todo gacho de lei.

    Mas ponha sua esperana No Deus que tudo assinou, Eu me despeo e j vou Que aqui cantei a meu modo,

  • Males que conhecem todos Mas quinda ningum contou.

    "A srio, sem ironia", eu pergunto: Quem mais dialetal? O cantor das lmpidas estrofes que repeti acima ou o incoerente redator dos aparelhos ortopdicos que encurralam rebanhos, dos gneros literrios que jogam football e das gramticas torpedeadas?

    Na pgina 122, o doutor Castro enumerou alguns escritores cujo estilo considera correto; apesar da incluso de meu nome nesse catlogo, no me julgo totalmente incapacitado para falar de estilstica.

  • NOSSO POBRE INDIVIDUALISMO

    As iluses do patriotismo no tm fim. No primeiro sculo de nossa era, Plutarco zombou daqueles que declaram ser a lua de Atenas melhor que a lua de Corinto; Milton, no XVII, reparou que Deus tinha por hbito revelar-se primeiro a Seus ingleses; Fichte, no incio do XIX, declarou que ter carter e ser alemo so, evidentemente, a mesma coisa. Aqui os nacionalistas pululam; o que os move, segundo eles, o compreensvel ou inocente propsito de fomentar os melhores traos argentinos. Ignoram, porm, os argentinos; na polmica, preferem defini-los em funo de algum fato exterior; dos conquistadores espanhis (digamos), ou de uma imaginria tradio catlica, ou do "imperialismo saxo".

    O argentino, ao contrrio dos americanos do Norte e de quase todos os europeus, no se identifica com o Estado. Isso pode ser atribudo circunstncia de que, neste pas, os governos costumam ser pssimos ou ao fato geral de que o Estado uma inconcebvel abstrao,1 a verdade que o argentino um indivduo, no um cidado. Aforismos como o de Hegel "O Estado a realidade da idia moral" parecem-lhe piadas sinistras. Os filmes elaborados em Hollywood costumam oferecer admirao o caso de um homem (geralmente um jornalista) que busca a amizade de um criminoso para depois entreg-lo polcia; o argentino, para quem a amizade uma paixo e a polcia uma maffia, sente que esse "heri" um incompreensvel canalha. Sente, como Dom Quixote, que "cada qual que se avenha com seu pecado" e que "no certo o homem honrado ser algoz de outros homens, sem que nada lhe v nisso" (Quixote, l, XXII). Mais de uma vez, em face das vs simetrias do estilo espanhol, suspeitei que diferimos irremediavelmente da Espanha; essas duas linhas do Quixote bastaram para convencer-me de meu erro; so como o smbolo tranqilo e secreto de nossa afinidade. Algo que profundamente confirmado por uma noite da literatura argentina: essa desesperada noite em que um sargento da polcia rural gritou que no ia consentir o delito de matarem um valente e ps-se a lutar contra seus prprios soldados, ao lado do desertor Martn Fierro.

    O mundo, para o europeu, um cosmos em que cada um corresponde intimamente funo que exerce; para o argentino, um caos. O europeu e o americano do Norte entendem que h de ser bom um livro que mereceu um

    1 O Estado impessoal: o argentino s concebe relaes pessoais. Por isso, para ele, roubar dinheiro

    pblico no crime. Apenas constato um fato; no o justifico nem desculpo.

  • prmio qualquer; o argentino admite a possibilidade de no ser ruim, apesar do prmio. Em geral, o argentino descr das circunstncias. Pode ignorar a fbula de que a humanidade sempre inclui trinta e seis homens justos os Lamed Wufniks que no se conhecem entre si, mas que secretamente sustentam o universo; quando a ouvir, no estranhar que esses benemritos sejam obscuros e annimos... Seu heri popular o homem s que luta contra a partida, seja em ato (Fierro, Moreira, Hormiga Negra), seja em potncia ou no passado (Segundo Sombra). Outras literaturas no registram fatos anlogos. Tomemos, por exemplo, dois grandes escritores europeus: Kipling e Franz Kafka. A primeira vista, nada h em comum entre os dois, mas o tema do primeiro a vindicao da ordem, de uma ordem (a estrada em Kim, a ponte em The Bridge-Builders, a muralha romana em Puck of Pooks Hill); o do segundo, a insuportvel e trgica solido de quem carece de um lugar, por humilssimo que seja, na ordem do universo.

    Diro que os traos que assinalei so meramente negativos ou anrquicos; acrescentaro que no comportam explicao poltica. Ouso sugerir o contrrio. O mais urgente dos problemas de nossa poca (j denunciado com proftica lucidez pelo quase esquecido Spencer) a gradual intromisso do Estado nos atos do indivduo; na luta contra esse mal, cujos nomes so comunismo e nazismo, o individualismo argentino, talvez intil ou prejudicial at agora, h de encontrar justificativa e deveres.

    Sem esperana e com nostalgia, penso na abstrata possibilidade de um partido que tivesse alguma afinidade com os argentinos; um partido que nos prometesse (digamos) um severo mnimo de governo.

    O nacionalismo pretende embair-nos com a viso de um Estado infinitamente incmodo; essa utopia, uma vez alcanada na terra, teria a providencial virtude de fazer com que todos almejassem, e por fim construssem, sua anttese.

    Buenos Aires, 1946.

  • QUEVEDO

    Assim como a outra, a histria da literatura prdiga em enigmas. Nenhum deles inquietou-me, nem me inquieta, tanto quanto a estranha glria parcial que coube por sorte a Quevedo. Nos censos de nomes universais, o dele no consta. Muito tentei inquirir as razes dessa extravagante omisso; certa vez, em uma conferncia esquecida, julguei encontr-las no fato de suas duras pginas no fomentarem, nem sequer tolerarem, o menor desabafo sentimental. ("Abusar do sentimentalismo ter xito", observou George Moore.) Para alcanar a glria, eu dizia, no indispensvel que um escritor se mostre sentimental, mas indispensvel que sua obra ou alguma circunstncia biogrfica estimulem o patetismo. Nem a vida nem a arte de Quevedo, ponderei, prestam-se a essas ternas hiprboles cuja repetio faz a glria...

    Ignoro se essa explicao correta; hoje eu a complementaria com esta: virtualmente, Quevedo no inferior a ningum, mas no encontrou um smbolo que se apoderasse da imaginao das pessoas. Homero tem Pramo, que beija as homicidas mos de Aquiles; Sfocles tem um rei que decifra enigmas e que os orculos levam a decifrar o horror de seu prprio destino; Lucrcio tem o infinito abismo estelar e a discrdia dos tomos; Dante, os nove crculos infernais e a Rosa paradisaca; Shakespeare, seus mundos de violncia e de msica; Cervantes, o venturoso vaivm de Sancho e Quixote; Swift, sua repblica de cavalos virtuosos e de Yahoos bestiais; Melville, a abominao e o amor da Baleia Branca; Franz Kafka, seus crescentes e srdidos labirintos. No h escritor de fama universal que no tenha cunhado um smbolo; este, convm lembrar, nem sempre objetivo e externo. Gngora ou Mallarm, Verbi gratia, perduram como tipos do escritor que laboriosamente elabora uma obra secreta; Whitman, como protagonista semidivino de Leaves of Grass. De Quevedo, ao contrrio, perdura apenas uma imagem caricatural. "O mais nobre estilista espanhol transformou-se em um prottipo de trocista", observa Leopoldo Lugones (El Imperio jesutico, 1904, p. 59).

    Lamb disse que Edmund Spencer era the poets poet, o poeta dos poetas. De Quevedo, teria de resignar-se a dizer que o literato dos literatos. Para gostar de Quevedo preciso ser (em ato ou em potncia) um homem de letras; inversamente, ningum que tenha vocao literria pode no gostar de Quevedo.

    A grandeza de Quevedo verbal. Julg-lo um filsofo, um telogo ou (como pretende Aureliano Fernndez Guerra) um homem de Estado um erro que podem permitir os ttulos de suas obras, no o contedo. Seu tratado

  • Providencia de Dios, Padecida de los que la Niegan y Gozada de los que la Confiesan: Doctrina Estudiada en los Gusanos y Persecuciones de Job prefere a intimidao ao argumento. Como Ccero (De Natura Deorum, II, 40-44), prova uma ordem divina mediante a ordem observada nos astros, "ingente repblica de luzes", e, expedida essa variante estelar do argumento cosmolgico, acrescenta: "Poucos foram os que absolutamente negaram haver Deus; exporei vergonha os que pouca tiveram, e so: Digoras de Mileto, Protgoras de Abdera, discpulos de Demcrito e Teodoro (vulgarmente chamado Ateu), e Bio de Boristenas, discpulo do imundo e desatinado Teodoro", o que no passa de terrorismo. Na histria da filosofia h doutrinas, provavelmente falsas, que exercem obscuro encanto sobre a imaginao dos homens: a doutrina platnica e pitagrica do trnsito da alma por muitos corpos, a doutrina gnstica de que o mundo obra de um deus hostil ou rudimentar. Quevedo, apenas estudioso da verdade, invulnervel a esse encanto. Escreve que a transmigrao das almas uma "bestial bobagem" e uma "loucura bruta". Empdocles de Agrigento afirmou: "J fui criana, moa, touceira, pssaro e mudo peixe que surge do mar"; Quevedo anota (Providencia de Dios): "Revelou-se juiz e legislador deste enredo Empdocles, homem to insensato que, afirmando ter sido peixe, mudou-se em to contrria e oposta natureza que morreu borboleta do Etna; e vista do mar, do qual fora povo, precipitou-se no fogo". Os gnsticos, Quevedo moteja de infames, malditos, loucos e inventores de disparates (Zahurdas de Plutn, in fine).

    Sua Poltica de Dios y Gobierno de Cristo Nuestro Seor deve ser considerada, segundo Aureliano Fernndez Guerra, "um completo sistema de governo, o mais atinado, nobre e conveniente". Para estimar o valor dessa sentena, basta-nos lembrar que os quarenta e sete captulos desse livro ignoram todo e qualquer fundamento que no seja a curiosa hiptese de que os atos e palavras de Cristo (que foi, como se sabe, Rex Judaeorum) so smbolos secretos a cuja luz o poltico deve resolver seus problemas. Fiel a esse cabalstico pressuposto, Quevedo depreende, do episdio da samaritana, que os tributos exigidos pelos reis devem ser leves; do episdio dos pes e dos peixes, que os reis devem remediar as necessidades; da repetio da frmula sequebantur, que "o rei deve conduzir os ministros, e no os ministros o rei"... O assombro vacila entre a arbitrariedade do mtodo e a trivialidade das concluses. Entretanto, Quevedo tudo salva, ou quase, com a dignidade da linguagem.1 O leitor distrado pode julgar-se edificado por essa obra. Anloga

    1 Reyes certeiramente observa (Captulos de Literatura Espaola, 1939, p.133): "As obras polticas de

    Quevedo no propem uma nova interpretao dos valores polticos nem tm, agora, nenhum valor alm do retrico... Ou so panfletos circunstanciais, ou so obras de declamao acadmica. A Poltica de Dios, apesar de sua ambiciosa aparncia, no passa de um arrazoado contra os maus ministros. Mas entre essas pginas podem encontrar-se alguns dos traos mais caractersticos de Quevedo".

  • discrepncia percebe-se no Marco Bruto, onde o pensamento no memorvel, embora as clusulas o sejam. Nesse tratado, o mais imponente dentre os estilos exercidos por Quevedo atinge a perfeio. O espanhol, em suas pginas lapidares, parece regressar ao rduo latim de Sneca, de Tcito e de Lucano, ao atormentado e duro latim da idade de prata. O ostentoso laconismo, o hiprbato, o quase algbrico rigor, a oposio de termos, a aridez, a repetio de palavras do a esse texto uma preciso ilusria. Muitos perodos merecem, ou exigem, ser julgados de perfeitos. Verbi gratia, este que transcrevo: "Honraram com folhas de louro uma linhagem; pagaram grandes e soberanas vitrias com as aclamaes de um triunfo; recompensaram vidas quase divinas com esttuas; e, para que no descassem de prerrogativas de tesouro os ramos, as ervas, o mrmore e as vozes, no as permitiram pretenso, e sim ao mrito". Outros estilos freqentou Quevedo com no menos felicidade: o estilo aparentemente oral do Buscn, o estilo desmesurado e orgistico (mas no ilgico) de La Hora de Todos.

    "A linguagem observou Chesterton (G. F. Watts, 1904, p. 91) no um fato cientifico, e sim artstico; foi inventada por guerreiros e caadores e muito anterior cincia." Quevedo nunca a entendeu assim; para ele a linguagem foi, essencialmente, um instrumento lgico. As trivialidades ou eternidades da poesia guas equiparadas a cristais, mos equiparadas a neve, olhos que brilham como estrelas e estrelas que fitam como olhos incomodavam-no por serem fceis, mas muito mais por serem falsas. Esqueceu-se, ao censur-las, de que a metfora o contato momentneo de duas imagens, no a metdica assimilao de duas coisas... Tambm execrou os idiotismos. Com o propsito de "exp-los vergonha", urdiu com eles a rapsdia intitulada Cuento de Cuentos; muitas geraes, fascinadas, preferiram ver nessa reduo ao absurdo um museu de primores, divinamente destinado a salvar do esquecimento as locues zurriburi, abarrisco, cochite hervite, qutame all esas pajas e a trochi-moche.2

    Quevedo foi equiparado, em mais de uma ocasio, a Luciano de Samsata. H uma diferena fundamental: Luciano, combatendo as divindades olmpicas no sculo II, faz uma obra de polmica religiosa; Quevedo, ao repetir esse ataque no sculo XVI de nossa era, limita-se a observar uma tradio literria.

    Examinada, ainda que brevemente, sua prosa, passo a discutir sua poesia, no menos mltipla.

    Considerados documentos de uma paixo, os poemas erticos de Quevedo so insatisfatrios; considerados jogos de hiprboles, deliberados

    2 Zurriburi: 1. sujeito desprezvel, canalha; 2. confuso. Abarrisco, ou a barrisco: conjuntamente e sem

    distino. Cochite y hervite: 1. feito rpida e atabalhoadamente; 2. pessoa precipitada. Qutame all esas pajas (en un): num timo. Trochi-moche(a), ou a troche y moche: s tontas; sem eira nem beira. (N. da T.)

  • exerccios de petrarquismo, costumam ser admirveis. Quevedo, homem de apetites veementes, nunca deixou de aspirar ao ascetismo estico; tambm deve ter achado insensato depender de mulheres ("bem-avisado aquele que usa de suas carcias e nestas no se fia"); esses motivos bastam para explicar o artificialismo voluntrio daquela Musa IV de seu Parnaso, que "canta faanhas de amor e formosura". O acento pessoal de Quevedo est em outros poemas; naqueles que lhe permitem publicar sua melancolia, sua coragem ou seu desengano. Por exemplo, neste soneto que ele enviou, de sua Torre de Juan Abad, a Dom Jos de Salas (Musa, H, 109):

    Recolhido na paz destes desertos, Com poucos, porm doutos, livros juntos, Eu vivo dialogando coos defuntos E os mortos com os olhos ouo ao perto.

    Se nem sempre entendidos, sempre abertos, Emendam e secundam meus assuntos, Em msicos, calados contrapontos Ao sonho desta vida oram despertos.

    As grandes almas que a morte ausenta, Das injrias dos anos, vingadora, Livra, bom dom Joseph, a douta Imprensa.

    Em fuga irrevogvel corre a hora; E aquela o melhor clculo assenta, Que na lio e estudo nos melhora.

    No faltam traos cultistas ao poema anterior (ouvir com os olhos, orar despertos ao sonho da vida), mas o soneto eficaz a despeito deles, no por causa deles. No direi que se trata de uma transcrio da realidade, porque a realidade no verbal, mas sim que suas palavras importam menos que a cena que evocam ou que o acento viril que parece anim-las. Nem sempre ocorre o mesmo; no mais ilustre soneto desse volume "Memoria inmortal de don Pedro Girn, duque de Osuna, muerto en la prisin" , a esplndida eficcia do dstico

    Sua Tumba so de Flandres as Campanhas e seu Epitfio a sangrenta Lua

  • anterior a toda interpretao e no depende dela. Digo o mesmo da seguinte expresso: o pranto militar, cujo sentido no enigmtico, e sim corriqueiro, o pranto dos militares. Quanto sangrenta Lua, melhor ignorar que se trata do smbolo dos turcos, eclipsado por no sei que piratarias de Dom Pedro Tllez Girn.

    No poucas vezes, o ponto de partida de Quevedo um texto clssico. Assim, a memorvel linha (Musa, IV, 31):

    Sero p, porm p apaixonado

    uma recriao, ou exaltao, de uma de Proprcio, (Elegias, 1, 19):

    Ut meus oblito pulvis amore vacet.3

    Grande o mbito da obra potica de Quevedo. Compreende pensativos sonetos, que de algum modo prefiguram Wordsworth; opacas e rangentes severidades,4 bruscas magias de telogo ("Com os doze ceei: eu fui a ceia"); gongorismos intercalados, para provar que ele tambm era capaz de jogar esse jogo,5 urbanidades e douras da Itlia ("humilde solido verde e sonora");

    3 "Que a minha cinza fique livre de um amor que me esqueceu." (N. da T.)

    4 Tremeram fundamente umbrais e portas

    Ali onde a majestade negra e obscura As frias dessangradas sombras mortas Oprime em lei desesperada e dura; Co"as trs gargantas ao latido prontas, Ao ver a nova luz divina e pura, O Crbero calou-se, e de repente, Fundos suspiros deu a negra gente.

    O solo sob os ps gemeu inteiro, Desertos montes como cs cendrados, Que no merecem ver do cu luzeiros, E em nossa palidez cegam os prados. Acrescentavam desconsolo e medo Os roucos ces, que em reinos vos e baldos Perturbam o silncio e os ouvidos, Confundindo lamentos e latidos.

    (Musa, IX)

    5 dura lide um animal nascido

    E smbolo zeloso dos mortais, De Jove foi disfarce, e foi vestido, Que um tempo empederniu as mos reais, E por trs dele os cnsules gemeram, E luz rumina em campos celestiais.

    (Musa, II)

  • variantes de Prsio, de Sneca, de Juvenal, das Escrituras, de Joachim de Bellay; brevidades latinas; troas;6 escrnios de curioso artifcio;7 lgubres pompas da aniquilao e do caos.

    Farta j a Toga do veneno trio, Ou todo em ouro rgido e palente, Cobre-te em tesouros dOriente, Mas no descansa, oh Lias!, teu martrio.

    Padeces um magnfico delrio, Quando a felicidade delinqente O horror obscuro em esplendor te mente, Vbora em rosicler, spide em lrio.

    Crs que em Palcio a Jove porfiar podes, Pois a seu modo Estrelas mente o ouro, Ali onde vives, sem saber que morres.

    E tu, senhor de tudo e tantos louros, Para quem sabe examinar-te, s podre E pura vilania, o nojo, o lodo.

    Os melhores poemas de Quevedo existem para alm da moo que os gerou e das comuns idias que os animam. No so obscuros; evitam o erro de perturbar, ou distrair, com enigmas, ao contrrio de outros de Mallarm, de Yeats e de George. So (para diz-lo de algum modo) objetos verbais, puros e independentes como uma espada ou um anel de prata. Este, por exemplo: "Farta j a Toga do veneno trio".

    6 A Mndez chegou berrando

    De azeites bem suarenta, Derramando pelos ombros O balano de suas lndeas.

    (Musa, V)

    7 Este Dom Fbio cantava

    Para gradis e sacadas De Aminta, que de esquec-lo Disseram que no se lembra.

    (Musa, VI)

  • Trezentos anos completou a morte corporal de Quevedo, mas ele continua sendo o primeiro artfice das letras hispnicas. Como Joyce, como Goethe, como Shakespeare, como Dante, como nenhum outro escritor, Francisco de Quevedo menos um homem que uma vasta e complexa literatura.

  • MAGIAS PARCIAIS DO QUIXOTE

    verossmil que estas observaes tenham sido enunciadas alguma vez, e quem sabe muitas vezes; a discusso de sua novidade interessa-me menos que a de sua possvel verdade.

    Cotejado com outros livros clssicos (a Ilada, a Eneida, a Farslia, a Comdia dantesca, as tragdias e comdias de Shakespeare), o Quixote realista; esse realismo, entretanto, difere essencialmente daquele que foi exercido no sculo XIX. Joseph Conrad pde escrever que exclua de sua obra o sobrenatural, porque admiti-lo parecia negar que o cotidiano fosse maravilhoso: ignoro se Miguel de Cervantes compartilhou dessa intuio, mas sei que a forma do Quixote levou-o a contrapor um mundo real e prosaico a um mundo imaginrio. Conrad e Henry James romancearam a realidade por julg-la potica; para Cervantes o real e o potico so antinomias. As vastas e vagas geografias do Amads ele ope os poeirentos caminhos e as srdidas estalagens de Castela; imaginemos um romancista de nosso tempo que, com seu senso pardico, destacasse os postos de gasolina. Cervantes criou para ns a poesia da Espanha do sculo XVII, mas nem aquele sculo nem aquela Espanha eram para ele poticos; homens como Unamuno, ou Azorn, ou Antonio Machado, enternecidos pela evocao de La Mancha, seriam para ele incompreensveis. O plano de sua obra vedava o maravilhoso; este, porm, devia nela figurar, ao menos de maneira indireta, como os crimes e o mistrio em uma pardia de romance policial. Cervantes no podia recorrer a talisms nem a sortilgios, mas insinuou o sobrenatural de modo sutil e, por isso mesmo, mais eficaz. Intimamente, Cervantes amava o sobrenatural. Paul Groussac, em 1942, observou: "Com certa tintura mal fixada de latim e italiano, a colheita literria de Cervantes provinha sobretudo dos romances pastoris e de cavalaria, embaladoras fbulas do cativeiro". O Quixote menos um antdoto dessas fices que uma secreta despedida nostlgica.

    Na realidade, cada romance um plano ideal; Cervantes compraz-se em confundir o objetivo e o subjetivo, o mundo do leitor e o mundo do livro. Nos captulos em que se discute se a bacia do barbeiro um elmo e a albarda um jaez, o problema tratado de modo explcito; em outras passagens, como j anotei, apenas insinuado. No sexto captulo da primeira parte, o padre e o barbeiro revistam a biblioteca de Dom Quixote; assombrosamente, um dos livros examinados a Galatia, de Cervantes, e eis que, por coincidncia, o barbeiro amigo do autor e no o admira muito, dizendo que este mais versado em desgraas que em versos e que o livro tem algo de boa inveno,

  • prope algo, mas no conclui nada. O barbeiro, sonho de Cervantes, ou forma de um sonho de Cervantes, julga Cervantes... Tambm surpreende saber, no incio do nono captulo, que o romance inteiro foi traduzido do rabe e que Cervantes adquiriu o manuscrito em um mercado de Toledo, tendo encomendado a traduo a um mourisco, que viveu mais de um ms e meio em sua casa, enquanto conclua a tarefa. Pensamos em Carlyle, que fingiu que o Sartor Resartus era a verso parcial de uma obra publicada na Alemanha pelo doutor Digenes Teufelsdroeckh; pensamos no rabino castelhano Moiss de Len, que escreveu o Zohar ou Libro del Esplendor e o publicou como obra de um rabino palestino do sculo III.

    Esse jogo de estranhas ambigidades culmina na segunda parte: os protagonistas leram a primeira, os protagonistas do Quixote so, tambm, leitores do Quixote. Aqui inevitvel lembrar o caso de Shakespeare, que inclui no cenrio de Hamlet outro cenrio, onde se representa uma tragdia que mais ou menos a de Hamlet; a correspondncia imperfeita entre a obra principal e a secundria diminui a eficcia dessa incluso. Um artifcio anlogo ao de Cervantes, e ainda mais assombroso, figura no Ramayana, poema de Valmiki que narra as proezas de Rama e sua guerra contra os demnios. No ltimo livro, os filhos de Rama, que no sabem quem seu pai, procuram abrigo em uma selva, onde um asceta os ensina a ler. Esse mestre , estranhamente, Valmiki; o livro em que eles estudam, o Ramayana. Rama ordena um sacrifcio de cavalos; a essa festa comparece Valmiki com seus alunos. Estes, acompanhados pelo alade, cantam o Ramayana. Rama ouve sua prpria histria, reconhece seus filhos e em seguida recompensa o poeta... Algo semelhante operou o acaso nas Mil e Uma Noites. Essa compilao de histrias fantsticas duplica e reduplica at a vertigem a ramificao de um conto central em contos adventcios, mas no procura graduar suas realidades, e o efeito (que devia ser profundo) superficial, como um tapete persa. E bem conhecida a histria liminar da srie: o desolado juramento do rei, que a cada noite desposa uma virgem que manda decapitar ao alvorecer, e a resoluo de Scherazade, que o entretm com fbulas, at que sobre os dois giraram Mil e Uma Noites e ela lhe mostra seu filho. A necessidade de completar mil e uma sees obrigou os copistas da obra a todo tipo de interpolaes. Nenhuma to perturbadora quanto a da noite DCII, mgica entre as noites. Nessa noite, o rei ouve a prpria histria da boca da rainha. Ouve o incio da histria, que abrange todas as outras e tambm de monstruoso modo a si mesma. Intui o leitor claramente a vasta possibilidade dessa interpolao? Seu curioso perigo? O fato de a rainha persistir e o imvel rei escutar para sempre a truncada histria das Mil e Uma Noites, agora infinita e circular... As invenes da filosofia no so menos fantsticas que as da arte: Josiah Royce, no primeiro volume da obra The World and the Individual (1899), formulou a seguinte: "Imaginemos que

  • uma poro do solo da Inglaterra foi perfeitamente nivelada e que nela um cartgrafo traa um mapa da Inglaterra. A obra perfeita; no h detalhe do solo da Inglaterra, por menor que seja, que no esteja registrado no mapa; tudo a tem seu correspondente. Desta sorte, tal mapa deve conter um mapa do mapa, que deve conter um mapa do mapa do mapa, e assim at o infinito".

    Por que nos inquieta que o mapa esteja includo no mapa e as Mil e Uma Noites no livro das Mil e Uma Noites? Por que nos inquieta que Dom Quixote seja leitor do Quixote, e Hamlet, espectador de Hamlet? Creio ter encontrado a causa: tais inverses sugerem que, se os personagens de uma fico podem ser leitores ou espectadores, ns, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictcios. Em 1833, Carlyle observou que a histria universal um infinito livro sagrado que todos os homens escrevem, e lem, e procuram entender, e no qual tambm so escritos.

  • NATHANIEL HAWTHORNE1

    Comearei a histria das letras americanas com a histria de uma metfora; ou melhor, com alguns exemplos dessa metfora. No sei quem a inventou; talvez seja um erro supor que as metforas possam ser inventadas. As verdadeiras, as que formulam ntimas conexes entre duas imagens, sempre existiram; as que ainda podemos inventar so as falsas, as que no vale a pena inventar. Esta a que me refiro a que liga os sonhos a uma apresentao teatral. No sculo XVII, Quevedo formulou-a no incio do Sueo de la Muerte; Luis de Gngora, no soneto "Varia imaginacin", onde lemos:

    O sonho, autor de representaes, em seu teatro sobre o vento armado, sombras usa vestir de vulto belo.

    No sculo XVIII, Addison a enunciar com mais preciso. "A alma, quando sonha escreve Addison , teatro, atores e pblico." Muito antes, o persa Omar Khayyam escrevera que a histria do mundo uma representao que Deus, o numeroso Deus dos pantestas, planeja, representa e contempla, a fim de distrair sua eternidade; muito depois, o suo Jung, em encantadores e, sem dvida, exatos volumes, equipara as invenes literrias s invenes onricas, a literatura aos sonhos.

    Se a literatura um sonho, um sonho dirigido e deliberado, mas fundamentalmente um sonho, bom que esta nossa histria das letras americanas tenha os versos de Gngora por epgrafe e seja inaugurada com a anlise de Hawthorne, o sonhador. Pouco anteriores no tempo, h outros escritores americanos Fenimore Cooper, uma espcie de Eduardo Gutirrez infinitamente inferior a Eduardo Gutirrez; Washington Irving, urdidor de agradveis espanholadas , mas podemos ignor-los sem risco algum.

    Hawthorne nasceu em 1804, no porto de Salem. Salem padecia, j ento, de dois traos anmalos na Amrica: era uma cidade, apesar de pobre, muito velha; era uma cidade em decadncia. Nessa velha e decadente cidade de honesto nome bblico, Hawthorne viveu at 1836; amou-a com o triste amor que inspiram, nas pessoas que no nos amam, os fracassos, as doenas, as manias; em essncia, no falso dizer que nunca se afastou dela. Cinqenta anos depois, em Londres ou em Roma, continuava em sua aldeia puritana de

    1 Texto de uma conferncia proferida no Colegio Libre de Estudios Superiores em maro de 1949.

  • Salem; por exemplo, quando desaprovou que os escultores, em pleno sculo XIX, esculpissem esttuas nuas...

    Seu pai, o capito Nathaniel Hawthorne, morreu em 1808, nas ndias Orientais, no Suriname, de febre amarela; um de seus antepassados, John Hawthorne, foi juiz nos processos de feitiaria de 1692, em que dezenove mulheres, entre elas uma escrava, Tituba, foram condenadas forca. Nesses curiosos processos (agora o fanatismo assume outras formas), Justice Hawthorne procedeu com severidade e, sem dvida, com sinceridade. "To conspcuo foi escreveu Nathaniel, o nosso Nathaniel no martrio das bruxas que lcito pensar que o sangue dessas desventuradas tenha deixado nele uma mancha. Uma mancha to profunda que deve perdurar em seus velhos ossos, no cemitrio de Charter Street, se ainda no forem p." Depois desse arroubo pictrico, Hawthorne acrescenta: "No sei se meus maiores se arrependeram e suplicaram a misericrdia divina; agora, eu o fao em nome deles e peo que qualquer maldio que se tenha abatido sobre minha raa seja-nos, desde o dia de hoje, perdoada". Quando o capito Hawthorne morreu, sua viva, a me de Nathaniel, recluiu-se em seu quarto, no segundo andar da casa. No mesmo andar estavam os quartos das irms, Louisa e Elizabeth; no ltimo, o de Nathaniel. Essas pessoas no comiam juntas e quase no se falavam; a refeio de cada um era deixada em uma bandeja, no corredor. Nathaniel passava os dias escrevendo contos fantsticos; na hora do crepsculo vespertino, saa para caminhar. Esse furtivo regime de vida durou doze anos. Em 1837, escreveu a Longfellow: "Vivi recludo, sem o menor propsito de faz-lo, sem a menor suspeita de que isso me ocorreria. Converti-me em prisioneiro, tranquei-me em um calabouo, e agora j no encontro a chave, e, mesmo que a porta estivesse aberta, quase teria medo de sair". Hawthorne era alto, bonito, magro, moreno. Tinha o andar balanado dos homens do mar. Naquele tempo no existia (para felicidade das crianas, sem dvida) literatura infantil; Hawthorne leu aos seis anos o Pilgrims Progress; o primeiro livro que ele comprou com o prprio dinheiro foi The Faerie Queen: duas alegorias. Tambm, embora seus bigrafos no o digam, a Bblia; talvez a mesma que o primeiro Hawthorne, William Hawthorne de Wilton, trouxera da Inglaterra junto com uma espada, em 1630. Acabei de pronunciar a palavra alegorias; essa palavra importante e, em se tratando da obra de Hawthorne, talvez imprudente ou indiscreta. Sabe-se que Edgar Allan Poe acusou Hawthorne de alegorizar e que aquele opinava serem tal atividade e gnero indefensveis. Duas tarefas nos deparam: a primeira, indagar se o gnero alegrico , de fato, ilcito; a segunda, indagar se Nathaniel Hawthorne incorreu nesse gnero. Que eu saiba, a melhor refutao das alegorias a de Croce; a melhor vindicao, a de Chesterton. Croce acusa a alegoria de ser um enfadonho pleonasmo, um jogo de vs repeties, que primeiro nos mostra (digamos) Dante guiado por Virglio e Beatriz para depois

  • explicar, ou dar a entender, que Dante a alma, Virglio a filosofia, ou a razo, ou a luz natural, e Beatriz a teologia ou a graa. Segundo Croce, segundo o argumento de Croce (o exemplo no dele), Dante primeiro teria pensado: "A razo e a f operam a salvao das almas" ou "A filosofia e a teologia nos conduzem ao cu" e depois, onde pensou razo ou filosofia, ps Virglio e, onde pensou teologia ou f, ps Beatriz, o que seria uma espcie de mascarada. A alegoria, segundo essa interpretao desdenhosa, viria a ser uma adivinhao, mais extensa, mais lenta e muito mais incmoda que as outras. Seria um gnero brbaro ou infantil, uma distrao da esttica. Croce formulou essa refutao em 1907; em 1904, Chesterton j a refutara sem que aquele o soubesse. To incomunicada e to vasta a literatura! A pgina pertinente de Chesterton aparece em uma monografia sobre o pintor Watts, ilustre na Inglaterra em fins do sculo XIX e acusado, como Hawthorne, de alegorismo. Chesterton admite que Watts produziu alegorias, mas nega que esse gnero seja condenvel. Argumenta que a realidade ,de uma interminvel riqueza e que a linguagem dos homens no esgota esse vertiginoso caudal. Escreve: "O homem sabe que h na alma matizes mais desconcertantes, mais inumerveis e mais annimos que as cores de um bosque outonal... Cr, no entanto, que esses matizes, em todas as suas fuses e converses, podem ser representados com preciso por meio de um mecanismo arbitrrio de grunhidos e chiados. Cr que mesmo de dentro de um corretor da Bolsa realmente saem rudos que significam todos os mistrios da memria e todas as agonias do desejo...". Da infere Chesterton a possibilidade de haver diversas linguagens que de algum modo correspondam inapreensvel realidade; entre muitas outras, a das alegorias e das fbulas.

    Dito de outro modo: Beatriz no um emblema da f, um trabalhoso e arbitrrio sinnimo da palavra f; a verdade que no mundo h uma coisa um sentimento peculiar, um processo ntimo, uma srie de estados anlogos que possvel indicar por meio de dois smbolos: um, assaz pobre, o som "f"; outro, Beatriz, a gloriosa Beatriz que desceu do cu e deixou suas pegadas no Inferno para salvar Dante. No sei se a tese de Chesterton vlida; sei que, quanto menos uma alegoria for redutvel a um esquema, a um frio jogo de abstraes, melhor ela ser. H o escritor que pensa por meio de imagens (Shakespeare, ou Donne, ou Victor Hugo, digamos) e o escritor que pensa por meio de abstraes (Benda ou Bertrand Russell); a priori, uns valem tanto quanto outros, mas quando um abstrato, um raciocinador, quer ser tambm imaginativo, ou fazer-se passar por tal, ocorre o denunciado por Croce. Percebemos que um processo lgico foi enfeitado ou disfarado pelo autor, "para desonra do entendimento do leitor", como disse Wordsworth. , para citar um exemplo notrio desse mal, o caso de Jos Ortega y Gasset, cujo bom pensamento obstrudo por laboriosas e adventcias metforas; , muitas vezes, o de Hawthorne. No mais, os dois escritores so antagnicos. Ortega pode

  • raciocinar, bem ou mal, mas no imaginar; Hawthorne era homem de contnua e curiosa imaginao; mas refratrio, digamos assim, ao pensamento. No digo que ele fosse pouco inteligente; digo que pensava por meio de imagens, de intuies, como costumam pensar as mulheres, no por meio de mecanismo dialtico. Foi prejudicado por um erro esttico: o desejo puritano de fazer de cada imaginao uma fbula levava Hawthorne a acrescentar-lhes moralidades e, s vezes, a false-las e a deform-las. Conservaram-se os cadernos onde ele concisamente tomava nota de seus argumentos. Em um deles, de 1836, est escrito: "Uma serpente admitida no estmago de um homem e alimentada por ele, dos quinze aos trinta e cinco anos, atormentando-o terrivelmente". Isso j basta, mas Hawthorne se v na obrigao de completar: "Poderia ser um emblema da inveja ou de outra paixo maligna". Outro exemplo, este de 1838: "Que ocorram fatos estranhos, misteriosos e atrozes que destruam a felicidade de uma pessoa. Que essa pessoa os impute a inimigos secretos e que, por fim, descubra que ela a nica culpada e a causa. Moral: a felicidade est em ns mesmos". Mais um, do mesmo ano: "Um homem, durante a viglia, pensa bem de outro e confia nele plenamente, mas inquietam-no sonhos em que esse amigo age como inimigo mortal. Revela-se, por fim, que o carter sonhado era o verdadeiro. Os sonhos tinham razo. A explicao seria a percepo instintiva da verdade". So melhores aquelas fantasias puras que no procuram justificativa nem moralidade e que parecem no ter outro fundo alm de um obscuro terror. Esta, de 1838: "Imaginar no meio da multido um homem cujo destino e cuja vida esto sob o poder de outro, como se os dois estivessem em um deserto". Esta, que uma variante da anterior e que Hawthorne anotou cinco anos depois: "Um homem de forte vontade ordena a outro, moralmente submisso a ele, que execute uma ao. O que ordena morre, e o outro continua executando aquela ao at o fim de seus dias". (No sei de que maneira Hawthorne teria desenvolvido esse argumento; no sei se ele teria decidido que o ato executado fosse trivial, ou levemente horrvel, ou fantstico, ou talvez humilhante.) Ou este, cujo tema tambm a escravido, a sujeio ao outro: "Um homem rico deixa em testamento sua manso a um casal pobre. Os herdeiros mudam-se para a; encontram um criado sombrio que o testamento probe demitir. Este os atormenta; descobre-se, por fim, que se trata do homem que legou a casa". Citarei mais dois esboos, bastante curiosos, cujo tema (no ignorado por Pirandello nem por Andr Gide) a coincidncia ou a confuso do plano esttico e do pl