jorge luis borges - pequena antologia para ser ler

Upload: reno303

Post on 09-Apr-2018

231 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    1/130

    Pequena Antologia .

    para se ler Jorge Luis Borges

    http://br.groups.yahoo.com/group/digital_source
  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    2/130

    O homem sempre se

    percebe no fim dos tempos.

    Jorge Luis Borges

    No criei personagens.

    Tudo o que escrevo

    autobiogrfico. Porm, no

    expresso minhas emoes

    diretamente, mas por meio de

    fbulas e smbolos. Nunca fiz

    confisses. Mas cada pgina

    que escrevi teve origem em

    minha emoo

    Jorge Lus Borges

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    3/130

    A Rosa de Paracelso ................................................................................. 5

    A Aproximao a Al-Mu' tasim ..............................................................10

    A Escrita do Deus ................................................................................... 17

    Ulrica ......................................................................................................22

    O livro de areia .......................................................................................27

    A Casa de Asterion ..................................................................................33

    As coisas .................................................................................................. 36

    Funes, o Memorioso ...............................................................................37

    A biblioteca de Babel .............................................................................. 45

    O Outro ...................................................................................................54

    Do rigor na cincia ................................................................................. 63

    O forasteiro .............................................................................................64

    A loteria da Babilnia .............................................................................66

    Um telogo na morte ..............................................................................73

    Sereias ..................................................................................................... 75

    Arte potica ............................................................................................. 77

    Emma Zunz .............................................................................................79

    O Livro ....................................................................................................85

    Fragmentos de um Evangelho Apcrifo ................................................95

    Poema dos dons ...................................................................................... 98

    O Guardio dos Livros .........................................................................100

    A seduo do tigre .................................................................................103

    A prova .................................................................................................. 104

    Hino ...................................................................................................... 105

    O Nosso .................................................................................................107

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    4/130

    Elogio da sombra .................................................................................. 108

    Aqui hoje...............................................................................................111

    O labirinto .............................................................................................112

    Uma orao ...........................................................................................113

    Mistrios dolorosos e gozosos de Dom Jorge ......................................115

    VIDA E OBRA ......................................................................................120

    Crtica ....................................................................................................123

    Frases ...................................................................................................125

    Bibliografia ........................................................................................... 128

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    5/130

    A Rosa de Paracelso

    Jorge Luis Borges

    De Quincey: Writings, XIII, 345

    Em sua oficina, que abarcava os dois cmodos do poro,

    Paracelso pediu a seu Deus, a seu indeterminado Deus, a qualquer

    Deus, que lhe enviasse um discpulo.

    Entardecia. O escasso fogo da lareira arrojava sombras

    irregulares. Levantar-se para acender a lmpada de ferro era demasiado

    trabalho. Paracelso, distrado pela fadiga, esqueceu-se de sua prece. A

    noite havia apagado os empoeirados alambiques e o atanor quando

    bateram porta. O homem, sonolento, levantou-se, subiu a breve

    escada de caracol e abriu uma das portadas. Entrou um desconhecido.

    Tambm estava muito cansado. Paracelso lhe indicou um banco; o

    outro sentou-se e esperou. Durante um tempo no trocaram uma

    palavra.

    O mestre foi o primeiro que falou:

    Lembro-me de caras do Ocidente e de caras do Oriente

    falou, no sem certa pompa No me lembro da tua. Quem s e quedesejas de mim?

    O meu nome no importa replicou o outro Trs dias e trs

    noites tenho caminhado para entrar em tua casa. Quero ser teu

    discpulo. Trago-te todos os meus bens e tirou um taleigo que

    colocou sobre a mesa. As moedas eram muitas e de ouro.

    F-lo com a mo direita. Paracelso lhe havia dado as costas para

    acender a lmpada. Quando se voltou, viu que na mo esquerda ele

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    6/130

    segurava uma rosa, que o inquietou. Recostou-se, juntou as pontas dos

    dedos e falou:

    Acreditas que sou capaz de elaborar a pedra que transforma

    todos os elementos em ouro e ofereces-me ouro. No ouro o queprocuro, e se o ouro te importa, no sers meu discpulo.

    O ouro no me importa respondeu o outro. Essas moedas

    no so mais do que uma parte da minha vontade de trabalho. Quero

    que me ensines a Arte; quero percorrer a teu lado o caminho que

    conduz Pedra.

    Paracelso falou devagar:

    O caminho a Pedra. O ponto de partida a Pedra. Se no

    entendes estas palavras, nada entendes ainda. Cada passo que deres

    a meta.

    O outro o olhou com receio. Falou com voz diferente:

    Mas, h uma meta?

    Paracelso riu-se.

    Os meus difamadores, que no so menos numerosos que

    estpidos, dizem que no, e me chamam de impostor. No lhes dou

    razo, mas no impossvel que seja uma iluso. Sei que h um

    Caminho.

    Estou pronto a percorr-lo contigo, ainda que devamos

    caminhar muitos anos. Deixa-me cruzar o deserto. Deixa-me divisar, ao

    menos de longe, a terra prometida, ainda que os astros no me deixem

    pis-la. Mas quero uma prova antes de empreender o caminho.

    Quando? falou com inquietude Paracelso.

    Agora mesmo respondeu com brusca deciso o discpulo.

    Haviam comeado a conversa em latim; agora falavam em alemo.

    O garoto elevou no ar a rosa.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    7/130

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    8/130

    Uma palavra? perguntou com estranheza o discpulo O

    atanor est apagado e esto cheios de p os alambiques. O que faras

    para que ressurgissem?

    Paracelso olhou-o com tristeza.

    O atanor est apagado reiterou e esto cheios de p os

    alambiques. Nesta etapa de minha longa jornada uso outros

    instrumentos.

    No me atrevo a perguntar quais so falou o moo, deixando

    Paracelso na dvida se foi com astcia ou com humildade. E continuou

    Falastes do que usou a divindade para criar os cus e a terra.

    Falastes do invisvel Paraso em que estamos e que o pecado original

    nos oculta. Falastes da Palavra que nos ensina a cincia da Cabala.

    Peo-te, agora, a merc de mostrar-me o desaparecimento e o

    aparecimento da rosa. No me importa que operes com alambiques ou

    com o Verbo.

    Paracelso refletiu. Depois disse:

    Se eu o fizesse, diras que se trata de uma aparncia impostapela magia dos teus olhos. O prodgio no te daria a F que buscas:

    Deixa, pois, a Rosa.

    O jovem o olhou, sempre receoso. O mestre elevou a voz e lhe

    disse:

    Alm disso, quem s tu para entrar na casa de um mestre e

    exigir um prodgio? Que fizeste para merecer semelhante dom?

    O outro replicou, temeroso:

    J que nada tenho feito, peo-te, em nome dos muitos anos

    que estudarei tua sombra, que me deixes ver a cinza, e depois a Rosa.

    No te pedirei mais nada. Acreditarei no testemunho dos meus olhos.

    Tomou com brusquido a rosa encarnada que Paracelso havia

    deixado sobre a cadeira e a atirou s chamas. A cor se perdeu e s ficou

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    9/130

    um pouco de cinza. Durante um instante infinito, esperou as palavras e

    o milagre.

    Paracelso no havia se alterado. Falou com curiosa clareza:

    Todos os mdicos e todos os boticrios de Basilia afirmam que

    sou um farsante. Talvez eles estejam certos. A est a cinza que foi a

    rosa e que no o ser.

    O jovem sentiu vergonha. Paracelso era um charlato ou um mero

    visionrio e ele, um intruso que havia franqueado a sua porta e o

    obrigava agora a confessar que as suas famosas artes mgicas eram

    vs.

    Ajoelhou-se, e falou:

    Tenho agido de maneira imperdovel. Tem-me faltado a F que

    exiges dos crentes. Deixa-me continuar a ver as cinzas. Voltarei quando

    for mais forte e serei teu discpulo e no final do Caminho, verei a Rosa.

    Falava com genuna paixo, mas essa paixo era a piedade que

    lhe inspirava o velho mestre, to venerado, to agredido, to insigne e

    portanto to oco. Quem era ele, Johannes Grisebach, para descobrir

    com mo sacrlega que detrs da mscara no havia ningum? Deixar-

    lhe as moedas de ouro seria esmola. Retomou-as ao sair.

    Paracelso acompanhou-o at ao p da escada e disse-lhe que em

    sua casa seria sempre bem-vindo. Ambos sabiam que no voltariam a

    ver-se. Paracelso ficou s. Antes de apagar a lmpada e de se recostar

    na velha cadeira de braos, derramou o tnue punhado de cinza na mo

    cncava e pronunciou uma palavra em voz baixa. A Rosa ressurgiu.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    10/130

    A Aproximao a Al-Mu' tasim

    Jorge Luis Borges

    traduo de Carlos Nejar

    Philip Guedalla escreve que o romance The approach to Al-

    Mutasim, do advogado Mir Bahadur Ali, de Bombaim, " uma

    combinao um tanto incmoda (a rather uncomfortable combination)

    desses poemas alegricos do Isl que raras vezes deixam de interessar

    seu tradutor, e daqueles romances policiais que inevitavelmente

    superam John H. Watson e aperfeioam o horror da vida humana nas

    mais irrepreensveis penses de Brighton". Antes, o Sr. Cecil Roberts

    denunciara no livro de Bahadur "a dplice, inverossmel tutela de

    Wilkie Collins e do ilustre persa do sculo XII, Ferid Eddin Attar"

    pacfica observao que Guedalla repete sem novidade, mas num

    dialeto colrico. Essencialmente, ambos os escritores concordam: os

    dois indicam o mecanismo policial da obra, e seu undercurrentmstico.

    Essa hibridao pode levar-nos a imaginar certa semelhana com

    Chesterton; logo comprovaremos que no h tal coisa.

    A editio princeps da Aproximao a Almotsim apareceu em

    Bombaim, em fins de 1932. O papel era quase papel-jornal; a capa

    anunciava ao comprador que se tratava do primeiro romance policial

    escrito por um nativo de Bombay City. Em poucos meses, o pblico

    esgotou quatro edies de mil exemplares cada uma. A Bombay

    Quaterly Review, a Bombay Gazette, a Calcutta Review, a Hindustan

    Review (de Alahabad) e o Calcutta Englishman dispensaram-lhe seu

    ditirambo. Ento Bahadur publicou uma edio ilustrada que intitulou

    The conversation with the man called Al-Mutasim e que subtitulou

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    11/130

    magnificamente: A game with shifting mirros(um jogo com espelhos que

    se deslocam). Essa edio a que Vtor Gollanez acaba de reproduzir

    em Londres, com prlogo de Dorothy L. Sayers e com omisso qui

    misericordiosa das ilustraes. Tenho-a vista; no consegui obter a

    primeira, que pressinto muito superior. Autoriza-me a isso um

    apndice, que resume a diferena fundamental entre a verso primitiva

    de 1932 e a de 1934. Antes de examin-la e de discuti-la convm

    que eu indique rapidamente o curso geral da obra.

    Seu protagonista visvel nunca se nos diz seu nome

    estudante de Direito em Bombaim. Blasfematoriamente, descr da f

    islmica de seus pais, mas, ao declinar a dcima noite da lua demuharram, encontra-se no centro de um tumulto civil entre

    muulmanos e hindus. noite de tambores e invocaes: entre a

    multido adversa, os grandes plios de papel da procisso muulmana

    abrem caminho. Um ladrilho hindu voa de uma sotia; algum afunda

    um punhal num ventre; algum muulmano, hindu? morre e

    pisoteado. Trs mil homens lutam: basto contra revlver, obscenidade

    contra imprecao. Deus, o Indivisvel, contra os Deuses. Atnito, oestudante livre-pensador entra no motim. Com as mos desesperadas,

    mata (ou pensa haver morto) um hindu. Atroadora, eqestre, semi-

    adormecida, a polcia do Sirkar intervm com rebencaos imparciais.

    Foge o estudante, quase sob as patas dos cavalos. Busca os ltimos

    arrabaldes. Atravessa duas vias ferrovirias ou duas vezes a mesma via.

    Escala o muro de um desordenado jardim, com uma torre circular no

    fundo. Uma chusma de ces cor de lua (a lean and evil mob ofmooncoloured hounds) emerge dos rosais negros. Acossado, busca

    amparo na torre. Sobe por uma escada de ferro faltam alguns lances

    e no terrao, que tem um poo enegrecido no centro, d com um

    homem esqulido, que est urinando vigorosamente, agachado, luz da

    lua. Esse homem lhe confia que sua profisso roubar os dentes de

    ouro dos cadveres trajados de branco que os parses deixam nessa

    torre. Diz outras coisas vis e menciona que faz quatorze noites que nose purifica com bosta de bfalo. Fala com evidente rancor de certos

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    12/130

    ladres de cavalos de Guzerat, "comedores de ces e de lagartos,

    homens enfim to infames como ns dois". Est clareando: no ar h um

    vo baixo de abutres gordos. O estudante, aniquilado, adormece;

    quando desperta, j com o sol bem alto, desapareceu o ladro.

    Desapareceram tambm um par de charutos de Trichinpoli e umas

    rupias de prata. Diante das ameaas projetadas pela noite anterior, o

    estudante resolve perder-se na ndia. Pensa que se mostrou capaz de

    matar um idlatra, mas no de saber com segurana se o muulmano

    tem mais razo que o idlatra. O nome de Guzerat no o deixa, e o de

    uma malka-sansi (mulher da casta dos ladres) de Palanpur, muito

    preferida pelas imprecaes e dio do despojador de cadveres. Argi

    que o rancor de um homem to minuciosamente vil importa em elogio.

    Decide sem maior esperana busc-la. Reza e empreende com

    lentido firme o longo caminho. Assim acaba o segundo captulo da

    obra.

    Impossvel traar as peripcias dos dezenove restantes. H uma

    vertiginosa pululao de dramatis personae para no falar de uma

    biografia que parece esgotar os movimentos do esprito humano (desdea infmia at a especulao matemtica) e de um peregrinar que

    compreende a vasta geografia do Indosto. A histria comeada em

    Bombaim segue nas terras baixas de Palanpur, demora-se uma tarde e

    uma noite porta de pedra de Bikanir, narra a morte de um astrlogo

    cego numa cloaca de Benares, conspira no palcio multiforme de

    Katmandu, reza e fornica no fedor pestilencial de Calcut, no Machua

    Bazar, contempla nascer os dias no mar desde um cartrio de Madras,v morrer as tardes no mar de uma sacada no Estado de Travancor,

    vacila e mata em Indapur e conclui sua rbita de lguas e de anos na

    mesma Bombaim, a poucos passos do jardim dos ces cor de lua. O

    fugitivo que conhecemos, cai entre pessoas da classe mais vil e se

    acomoda a elas, numa espcie de certame de infmias. De sbito com

    o milagroso espanto de Robinson ante a pegada de um p humano na

    areia percebe certa mitigao dessa infmia: uma ternura, umaexaltao, um silncio, num dos homens detestveis. "Foi como se

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    13/130

    tivesse cruzado armas no dilogo um interlocutor mais complexo. "

    Sabe que o homem vil que est conversando com ele incapaz desse

    momentneo decoro; da postula que este refletiu um amigo, ou amigo

    de um amigo. Repensando o problema, chega a uma convico

    misteriosa: Em algum ponto da Terra h um homem de quem procede

    essa claridade; nalgum ponto da Terra est o homem que igual a essa

    claridade. O estudante resolve dedicar sua vida a encontr-lo.

    J o argumento geral se entrev: a busca insacivel de uma alma

    atravs dos tnues reflexos que esta deixou em outras: no princpio, o

    leve rastro de um sorriso ou de uma palavra; no fim, esplendores

    diversos e crescentes da razo, da imaginao e do bem. medida queos homens interrogados conheceram mais de perto Almotsim, sua

    poro divina maior, mas se acredita que so simples espelhos. O

    tecnicismo matemtico aplicvel: o pesado romance de Bahadur

    uma progresso ascendente, cujo termo final o pressentido "homem

    que se chama Almotsim". O imediato antecessor de Almotsim um

    livreiro persa de suma cortesia e felicidade; o que precede esse livreiro

    um santo... Ao cabo dos anos, o estudante chega a uma galeria "emcujo fundo h uma porta e uma esteira barata com muitas contas e

    atrs um resplendor". O estudante bate palmas uma e duas vezes e

    pergunta por Almotsim. Uma voz de homem a incrvel voz de

    Almotsim convida-o a passar. O estudante abre a cortina e avana.

    Nesse ponto o romance acaba.

    Se no me engano, a boa elaborao de tal argumento impe ao

    escritor duas obrigaes: uma, a variada inveno de rasgos profticos;

    outra, a de que o heri prefigurado por esses rasgos no seja mera

    conveno ou fantasma. Bahadur satisfaz a primeira; no sei at onde a

    segunda. Em outras palavras: o inaudito e no contemplado Almotsim

    deveria deixar-nos a impresso de um carter real, no de uma

    desordem de superlativos inspidos. Na verso de 1932, as notas

    sobrenaturais rareiam: "o homem chamado Almotsim" tem seu bocado

    de smbolo, mas no carece de traos idiossincrsicos, pessoais.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    14/130

    Infelizmente, essa boa conduta literria no persistiu. Na verso de

    1934 a que tenho vista o romance decai em alegoria: Almotsim

    emblema de Deus e os pontuais itinerrios do heri so, de alguma

    forma, os progressos da alma na ascenso mstica. H pormenores

    aflitivos: um judeu negro de Kochin, ao falar de Almotsim, diz que sua

    pele escura; um cristo o descreve sobre uma torre com os braos

    abertos; um lama vermelho recorda-o sentado "como essa imagem de

    manteiga de iaque que modelei e adorei no mosteiro de Tashilhunpo".

    Essas declaraes querem insinuar um Deus unitrio que se acomoda

    s desigualdades humanas. A meu ver, a idia pouco estimulante.

    No direi o mesmo desta outra: a conjetura de que tambm o Todo-

    Poderoso est em busca de Algum, e esse Algum de Algum superior

    (ou simplesmente imprescindvel e igual) e assim at o Fim ou melhor,

    o Sem-Fim do Tempo, ou em forma cclica. Almotsim (o nome

    daquele oitavo Abssida que foi vencedor em oito batalhas, gerou oito

    vares e oito mulheres, deixou oito mil escravos e reinou durante o

    espao de oito anos, de oito luas e de oito dias) quer dizer

    etimologicamente O procurador de amparo. Na verso de 1932, o fato de

    que o objeto da peregrinao fosse um romeiro justificava de maneira

    oportuna a dificuldade de encontr-lo; na de 1934, d margem

    teologia extravagante que mencionei. Mir Bahadur Ali, vimo-lo,

    incapaz de soslaiar a mais burlesca das tentaes da arte: a de ser um

    gnio.

    Releio o anterior e temo no ter destacado suficientemente as

    virtudes do livro. H particularidades muito civilizadas: por exemplo,certa disputa do captulo dezenove na qual se pressente que amigo de

    Almotsim um contendor que no rebate os sofismas do outro, "para

    no ter razo de forma triunfal".

    Entende-se ser honroso que um livro atual derive de um antigo: j

    que a ningum agrada (como disse Johnson) nada dever a seus

    contemporneos. Os repetidos mas insignificantes contatos do "Ulisses"

    de Joyce com a "Odissia" homrica continuam escutando nunca

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    15/130

    saberei por que a atordoada admirao da crtica; os do romance de

    Bahadur com o venerado "Colquio dos pssaros" de Farid ud-din Attar

    conhecem o no menos misterioso aplauso de Londres, e ainda de

    Alahabad e Calcut. Outras derivaes no faltam. Certo investigador

    enumerou algumas analogias da primeira cena do romance com a

    narrativa de Kipling On the City Wall; Bahadur as admite, mas alega

    que seria muito anormal que duas pinturas da dcima noite de

    muharram no coincidissem... Eliot, com mais justia, recorda os

    setenta cantos da incompleta alegoria The Farie Queene, nos quais no

    aparece uma nica vez a herona, Gloriana - como salienta uma

    censura de Richard William Church (Spencer, 1879). Eu, com toda

    humildade, assinalo um precursor distante e possvel: o cabalista de

    Jerusalm, Isaac Luria, que no sculo XVI propagou que o esprito de

    um antepassado ou mestre pode entrar na alma de um infeliz, para

    confort-lo ou instru-lo. Chama-se Ibbr essa variedade da

    metempsicose1.

    1 No decurso desta notcia, referi-me a Mantiq al-Tayr (Colquio

    dos pssaros),do mstico persa Farid al-Din Abu Talib Muhammad ben

    Ibrahim Attar, a quem os soldados de Tule mataram, filho de Zingis

    Jan, quando Nishapur foi espoliada. Talvez no consiga resumir o

    poema. O remoto rei dos pssaros, o Simurg, deixa cair no centro da

    China uma pluma esplndida; os pssaros resolvem busc-lo, cansados

    de sua antiga anarquia. Sabem que o nome de seu rei quer dizer trinta

    pssaros; sabem que sua fortaleza est no Kaf, a montanha circular que

    rodeia a Terra. Empreendem a quase infinita aventura; superam sete

    vales, ou mares; o nome do penltimo Vertigem; o ltimo se chama

    Aniquilao. Muitos peregrinos desertam; outros perecem. Trinta,

    purificados pelos trabalhos, pisam a montanha do Simurg. Enfim o

    contemplam: percebem que eles so o Simurg e que o Simurg cada

    um deles e todos. (Tambm Plotino - Enadas, V, 8, 4 - descreve uma

    extenso paradisaca do princpio de identidade: Tudo, no cu

    inteligvel, est em todas as partes. Qualquer coisa todas as coisas. O

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    16/130

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    17/130

    A Escrita do Deus

    Jorge Luis Borges

    O crcere profundo e de pedra; sua forma de um hemisfrio quase

    perfeito, embora o piso (tambm de pedra) seja algo menor que um

    crculo mximo, fato que de algum modo agrava os sentimentos deopresso e de grandeza. Um muro corta-o pelo meio; este, apesar de

    altssimo, no toca a parte superior da abbada; de um lado estou eu,

    Tzinacan, mago da pirmide Qaholom, que Pedro de Alvarado

    incendiou; do outro h um jaguar, que mede com secretos passos iguais

    o tempo e o espao do cativeiro. Ao nvel do cho, uma ampla janela

    com barrotes corta o muro central. Na hora sem sombra (o meio-dia)

    abre-se um alapo no alto e um carcereiro que os anos foramapagando manobra uma roldana de ferro, e nos baixa, na ponta de um

    cordel, cntaros de gua e pedaos de carne. A luz entra na abbada;

    neste instante posso ver o jaguar.

    Perdi o nmero dos anos que estou na treva; eu, que uma vez fui

    jovem e podia caminhar nesta priso, no fao outra coisa seno

    aguardar, na postura de minha morte, o fim que os deuses me

    destinam. Com a longa faca de pedernal abri o peito das vtimas e agora

    no poderia, sem magia, levantar-me do p.

    Na vspera do incndio da Pirmide, os homens que desceram de

    altos cavalos me castigaram com metais ardentes para que revelasse o

    lugar de um tesouro escondido. Abateram, diante de meus olhos, a

    imagem do deus, mas este no me abandonou e me mantive silencioso

    entre os tormentos. Feriram-me, quebraram-me, deformaram-me e

    depois despertei neste crcere, que no mais deixarei nesta vida mortal.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    18/130

    Premido pela fatalidade de fazer algo, de povoar de alguma forma

    o tempo, quis recordar, em minha sombra, tudo o que sabia. Gastei

    noites inteiras lembrando a ordem e o nmero de algumas serpentes de

    pedra ou a forma de uma rvore medicinal. Assim fui vencendo os anos,

    assim fui entrando na posse do que j era meu. Uma noite, senti que

    me aproximava de uma lembrana precisa; antes de ver o mar, o

    viajante sente uma agitao no sangue. Horas depois, comecei a avistar

    a lembrana; era uma das tradies do deus. Este, prevendo que no fim

    dos tempos ocorreriam muitas desventuras e runas, escreveu no

    primeiro dia da Criao uma sentena mgica, capaz de conjurar esses

    males. Escreveu-a de maneira que chegasse s mais distantes geraes

    e que no tocasse o azar. Ningum sabe em que ponto a escreveu nem

    com que caracteres, mas consta-nos que perdura, secreta, e que um

    eleito a ler. Considerei que estvamos, como sempre, no fim dos

    tempos e que meu destino de ltimo sacerdote do deus me daria acesso

    ao privilgio de intuir essa escritura. O fato de que uma priso me

    cercasse no me vedava esta esperana; talvez eu tivesse visto milhares

    de vezes a inscrio de Qaholom e s me faltasse entend-la.

    Esta reflexo me animou e logo me intuiu uma espcie de

    vertigem. No mbito da terra existem formas antigas, formas

    incorruptveis e eternas; qualquer uma delas podia ser o smbolo

    buscado. Uma montanha podia ser a palavra do deus, ou um rio ou o

    imprio ou a configurao dos astros. Mas no curso dos sculos as

    montanhas se aplainam e o caminho de um rio costuma desviar-se e os

    imprios conhecem mutaes e estragos e a figura dos astros varia. Nofirmamento h mudana. A montanha e a estrela so indivduos e os

    indivduos caducam. Busquei algo mais tenaz, mais invulnervel.

    Pensei nas geraes do cereais, dos pastos, dos pssaros, dos homens.

    talvez em minha face estivesse escrita a magia, talvez eu mesmo fosse o

    fim de minha busca. Estava nesse af quando recordei que o jaguar era

    um dos atributos do deus.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    19/130

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    20/130

    Um dia ou uma noite entre meus dias e minhas noites que

    diferena existe? sonhei que no cho do crcere havia um gro de

    areia. Voltei a dormir, indiferente; sonhei que despertava e que havia

    dois gros de areia. Voltei a dormir, sonhei que os gros de areia eram

    trs. Foram, assim, multiplicando-se at encher o crcere e eu morria

    sob este hemisfrio de areia. Compreendi que estava sonhando; com um

    enorme esforo, despertei. O despertar foi intil: a inumervel areia me

    sufocava. Algum me disse: "No despertaste para a viglia, mas para

    um sonho anterior. Esse sonho est dentro de outro, e assim at o

    infinito, que o nmero dos gros de areia. O caminho que ters que

    desandar interminvel e morrers antes de haver despertado

    realmente".

    Senti-me perdido. A areia me enchia a boca, mas grite: "Nenhuma

    areia sonhada pode matar-me nem existem sonhos dentro de sonhos".

    Um resplendor me despertou. Na treva superior abria-se um crculo de

    luz. Via a face e as mos do carcereiro, a roldana, o cordel, a carne e os

    cntaros.

    Um homem se confunde, gradualmente, com a forma de seu

    destino; um homem , afinal, suas circunstncias. mais que um

    decifrador ou um vingador, mais que um sacerdote do deus, eu era um

    encarcerado. Do incansvel labirinto de sonhos regressei dura priso

    como minha casa. Bendisse sua umidade, bendisse seu tigre,

    bendisse meu velho corpo dolorido, bendisse a treva e a pedra.

    Ento ocorreu o que no posso esquecer nem comunicar. Ocorreu

    a unio com a divindade, com o universo (no sei se estas palavras

    diferem). O xtase no repete seus smbolos; h quem tenha visto Deus

    num resplendor, h quem o tenha percebido numa espada ou nos

    crculos de uma rosa. Eu vi uma Roda altssima, que no estava diante

    de meus olhos, nem atrs, nem nos lados, mas em todas as partes, a

    um s tempo. Essa Roda estava feita de gua, mas era tambm de fogo,

    e era (embora visse a borda) infinita. Entretecidas, formavam-na todas

    as coisas que sero, que so e que foram, e eu era um dos fios dessa

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    21/130

    trama total, e Pedro de Alvarado, que me atormentou, era outro. Ali

    estavam as causas e os efeitos e me bastava ver essa roda para

    entender tudo, interminavelmente. Oh, felicidade de entender, maior

    que a de imaginar ou a de sentir! Vi o Universo e vi os ntimos desgnios

    do universo. Vi as origens narradas pelo Livro do Comum. Vi as

    montanhas que surgiram na gua, vi os primeiros homens com seu

    bordo, vi as tinalhas que se voltaram contra os homens, vi os ces que

    lhes desfizeram os rostos. Vi o deus sem face que h por trs dos

    deuses. Vi infinitos processos que formavam uma s felicidade e,

    entendendo tudo, consegui tambm entender a escrita do tigre.

    uma frmula de catorze palavras casuais (que parecem casuais)e me bastaria diz-la em voz alta para ser todo-poderoso. Bastaria diz-

    la para abolir este crcere de pedra, para que o dia entrasse em minha

    noite, para ser jovem, para ser imortal, para que o tigre destrusse

    Alvarado, para afundar o santo punhal em peitos espanhis, para

    reconstruir a pirmide, para reconstruir o imprio. Quarenta slabas,

    quatorze palavras, e eu, Tzinacan, regeria as terras que Montezuma

    regeu. Mas eu sei que nunca direi estas palavras, porque eu no melembro de Tzinacan.

    Que morra comigo o mistrio que est escrito nos tigres. Quem

    entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desgnios do universo

    no pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou

    desventuras, mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e

    agora no lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe

    importa a nao daquele outro, se ele agora ningum? Por isto no

    pronuncio a frmula, por isso deixo que os dias me esqueam, deitado

    na escurido.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    22/130

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    23/130

    Um dos presentes comentou:

    No a primeira vez que os noruegueses entram em York.

    Pois disse ela. a Inglaterra foi nossa e a perdemos, se

    que algum pode ter algo ou algo pode ser perdido.

    Foi ento que a olhei. Uma linha de William Blake fala de moas

    de suave prata ou furioso ouro, porm em Ulrica estavam o ouro e a

    suavidade. Era leve e alta, de traos afilados e de olhos cinzentos.

    Menos que seu rosto, impressionou-me seu ar de tranqilo mistrio.

    Sorria facilmente e o sorriso parecia afast-la. Vestia-se de preto, o que

    raro em terras do Norte, que tentam alegrar com cores o apagado do

    ambiente. Falava um ingls ntido e preciso e acentuava levemente os

    erres. No sou observador; essas coisas descobri pouco a pouco.

    Apresentaram-nos. Disse-lhe que eu era professor da

    Universidade de los Andes em Bogot. Esclareci que era colombiano.

    Perguntou-me de modo pensativo:

    O que ser colombiano?

    No sei respondi. um ato de f.

    Como ser norueguesa assentiu.

    Nada mais posso recordar do que se disse nessa noite. No dia

    seguinte, desci cedo para a sala de jantar. Pelas vidraas vi que havia

    nevado; os pramos se perdiam na da manh. No havia ningum mais.

    Ulrica me convidou para a sua mesa. Disse que lhe agradava sair para

    caminhar sozinha.

    Lembrei-me de um chiste de Schopenhauer e respondi:

    A mim tambm. Podemos sair juntos os dois.

    Afastamo-nos da casa, sobre a neve recente. No havia uma alma

    nos campos. Propus que fssemos a Thorgate, que fica rio abaixo, a

    algumas milhas. Sei que j estava enamorado de Ulrica; no teria

    desejado a meu lado nenhuma outra pessoa.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    24/130

    Ouvi subitamente o distante uivo de um lobo. Nunca tinha ouvido

    um lobo uivar, mas sei que era um lobo. Ulrica no se alterou.

    Em seguida, disse, como se pensasse em voz alta:

    As poucas e pobres espadas que vi ontem em York Minster me

    comoveram mais que as grandes naves do museu de Oslo.

    Nossos caminhos se cruzavam. Ulrica, nessa tarde, prosseguiria a

    viagem em direo a Londres; eu, at Edimburgo.

    Em Oxford Street ela disse-me repetirei os passos de

    Quincey, que procurava a sua Anna perdida entre as multides de

    Londres.

    De Quincey respondi deixou de procur-la. Eu, ao longo

    do tempo, continuo procurando-a.

    Talvez disse em voz baixa a tenhas encontrado.

    Compreendi que uma coisa inesperada no me estava proibida e

    a beijei-lhe a boca e os olhos. Afastou-me com suave firmeza e depois

    declarou:

    Serei tua na pousada de Thorgate. Peo-te, enquanto isso, que

    no me toques. melhor que assim seja.

    Para um celibatrio entrado em anos, o amor um dom que j

    no se espera. O milagre tem direito de impor condies. Pensei em

    minha mocidade em Popayn e em uma moa do Texas, clara e esbelta

    como Ulrica, que me havia negado seu amor.

    No incorri no erro de lhe perguntar se me amava. Compreendi

    que no era o primeiro e que no seria o ltimo. Essa aventura, talvez a

    derradeira para mim, seria uma de tantas para essa resplandecente e

    resoluta discpula de Ibsen.

    De mo dadas, seguimos.

    Tudo isto como um sonho disse e eu nunca sonho.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    25/130

    Como aquele rei replicou Ulrica que no sonhou at que

    um feiticeiro o fez dormir numa pocilga.

    Acrescentou em seguida:

    Ouve. Um pssaro est prestes a cantar.

    Pouco depois ouvimos o canto.

    Nestas terras disse pensam que quem est para a morrer

    prev o futuro.

    E eu estou para morrer disse ela.

    Olhei-a, atnito.

    Cortemos pelo bosque apressei-a Chegaremos mais

    rpido a Thorgate.

    O bosque perigoso replicou.

    Seguimos pelos pramos.

    Eu gostaria que este momento durasse para sempre

    murmurei.

    "Sempre" uma palavra que no permitida aos homens

    afirmou Ulrica e, para minorar a nfase, pediu-me que repetisse o meu

    nome, que no ouvira bem.

    Javier Otrola disse-lhe.

    Quis repeti-lo e no pde. Fracassei, igualmente, com o nome

    Ulrikke.

    Vou te chamar Sigurd declarou com um sorriso.

    Se sou Sigurd repliquei, tu sers Brynhild.

    Havia atrasado o passo.

    Conheces a saga? perguntei-lhe.

    Naturalmente disse. A trgica histria que os alemes

    estragaram com seus tardios Nibelungos.No quis discutir e respondi:

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    26/130

    Brynhild, caminhas como se quisesses que entre os dois

    houvesse uma espada no leito.

    Estvamos de repente diante da pousada. No me surpreendeu

    que se chamasse, como a outra, Northern Inn.

    Do alto da escada, Ulrica me gritou:

    Ouviste o lobo? J no h lobos na Inglaterra. Apressa-te.

    Ao subir para o andar de cima, notei que as paredes estavam

    empapeladas maneira de William Morris, de um vermelho muito

    profundo, com entrelaados frutos e pssaros. Ulrica entrou primeiro. O

    aposento escuro era baixo, com um teto de duas guas. O esperadoleito se duplicava em um vago cristal e a polida caoba recordou-me o

    espelho da Escritura. Ulrica j se havia despido. Chamou-me pelo meu

    verdadeiro nome, Javier. Senti que a neve aumentava. J no havia

    nem espelhos. No havia uma espada entre os dois. Como a areia,

    escoava o tempo. Secular na sombra fluiu o amor, e possu pela

    primeira e ltima vez a imagem de Ulrica.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    27/130

    O livro de areia

    Jorge Luis Borges

    ... Thy rope of sands...

    George Herbert (1593-1623)

    A linha consta de um nmero infinito de pontos, o plano, de um

    nmero infinito de linhas; o volume, de um nmero infinito de planos, o

    hipervolume, de um nmero infinito de volumes... No, decididamente

    no este, more geometrico, o melhor modo de iniciar meu relato.

    Afirmar que verdico , agora, uma conveno de todo relato

    fantstico; o meu, no entanto, verdico.

    Vivo s, num quarto andar da Rua Belgrano. Faz alguns meses,

    ao entardecer ouvi uma batida na porta. Abri e entrou um

    desconhecido. Era um homem alto, de traos mal conformados. Talvez

    minha miopia os visse assim. Todo seu aspecto era de uma pobreza

    decente. Estava de cinza e trazia uma valise cinza na mo. Logo senti

    que era estrangeiro. A princpio achei-o velho; logo percebi que seu

    escasso cabelo ruivo, quase branco, maneira escandinava, me havia

    enganado. No decorrer de nossa conversa, que no duraria uma hora,

    soube que procedia das Orcadas.

    Apontei-lhe uma cadeira. O homem demorou um pouco a falar.

    Exalava melancolia, como eu agora.

    Vendo bblias disse.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    28/130

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    29/130

    Trata-se de uma verso da Escritura em alguma lngua

    indostnica, no verdade?

    No replicou.

    Logo baixou a voz como que para me confiar um segredo:

    Adquiri-o em uma povoao da plancie, em troca de algumas

    rupias e da Bblia. Seu possuidor no sabia ler. Suspeito que no Livro

    dos Livros viu um amuleto. Era da casta mais baixa; as pessoas no

    podiam pisar sua sombra sem contaminao. Disse que seu livro se

    chamava o Livro de Areia, porque nem o livro nem a areia tem princpio

    ou fim.

    Pediu-me que procurasse a primeira folha.

    Apoiei a mo esquerda sobre a portada e abri com o dedo polegar

    quase pegado ao indicador. Tudo foi intil: sempre se interpunham

    vrias folhas entre a portada e a mo. Era como se brotassem do livro.

    Agora procure o final.

    Tambm fracassei; apenas consegui balbuciar com uma voz que

    no era minha:

    Isto no pode ser.

    Sempre em voz baixa o vendedor de bblias me disse:

    No pode ser, mas . O nmero de pginas deste livro

    exatamente infinito. Nenhuma a primeira; nenhuma, a ltima. No sei

    por que esto numeradas desse modo arbitrrio. Talvez para dar a

    entender que os termos de uma srie infinita admitem qualquer

    nmero.

    Depois, como se pensasse em voz alta:

    Se o espao infinito, estamos em qualquer ponto do espao.

    Se o tempo infinito, estamos em qualquer ponto do tempo.

    Suas consideraes me irritaram. Perguntei:

    O senhor religioso, sem dvida?

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    30/130

    Sim, sou presbiteriano. Minha conscincia est limpa. Estou

    seguro de no ter ludibriado o nativo quando lhe dei a Palavra do

    Senhor em troca de seu livro diablico.

    Assegurei-lhe que nada tinha a se recriminar e perguntei-lhe seestava de passagem por estas terras. Respondeu que dentro de alguns

    dias pensava em regressar sua ptria. Foi ento que soube que era

    escocs, das ilhas Orcadas. Disse-lhe que a Esccia eu estimava

    pessoalmente por amor de Stevenson e de Hume.

    E de Robbie Burns corrigiu.

    Enquanto falvamos eu continuava explorando o livro infinito.

    Com falsa indiferena perguntei:

    O senhor se prope a oferecer este curioso espcime ao Museu

    Britnico?

    No. Ofereo-o ao senhor replicou e fixou uma soma

    elevada.

    Respondi, com toda a verdade, que essa soma era inacessvel

    para mim e fiquei pensando. Ao fim de poucos minutos, havia urdido

    meu plano.

    Proponho-lhe uma troca disse. O senhor obteve este volume

    por algumas rupias e pela Escritura Sagrada; eu lhe ofereo o montante

    de minha aposentadoria que acabo de cobrar, e a Bblia de Wiclif em

    letras gticas. Herdei-a de meus pais.

    A black letterWiclif! murmurou.

    Fui ao meu dormitrio e trouxe-lhe o dinheiro e o livro. Virou as

    pginas e estudou a capa com fervor de biblifilo.

    Trato feito disse.

    Assombrou-me que no regateasse. S depois compreenderia que

    havia entrado em minha casa com a deciso de vender o livro. No

    contou as notas e guardou-as.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    31/130

    Falamos da ndia, das Orcadas e dos Jarls noruegueses que as

    governaram. Era noite quando o homem se foi. No voltei a v-lo nem

    sei o seu nome.

    Pensei em guardar o Livro de Areia no vo que havia deixado oWiclif, mas optei finalmente por escond-lo atrs de uns volumes

    desemparelhados de As mil e uma Noites.

    Deitei-me e no dormi. s trs ou quatro da manh, acendi a luz.

    Procurei o livro impossvel e virei suas folhas. Em uma delas vi gravada

    uma mscara. O ngulo levava uma cifra, j no sei qual, elevada

    nona potncia.

    No mostrei a ningum meu tesouro. ventura de possu-lo se

    agregou o temor de que o roubassem e, depois, o receio de que no

    fosse verdadeiramente infinito. Estas duas preocupaes agravaram

    minha j velha misantropia. Restavam-me alguns amigos; deixei de v-

    los. Prisioneiro do Livro, quase no saa rua. Examinei com uma lupa

    a lombada gasta e as capas e rechacei a possibilidade de algum artifcio.

    Comprovei que as pequenas ilustraes distavam duas mil pginas uma

    da outra. Fui anotando-as em uma caderneta alfabtica, que no

    demorei a encher. Nunca se repetiram. De noite, nos escassos

    intervalos que a insnia me concedia, sonhava com o livro.

    O vero declinava e compreendi que o livro era monstruoso. De

    nada me serviu considerar que no menos monstruoso era eu, que o

    percebia com olhos e o apalpava com dez dedos com unhas. Senti que

    era um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava ecorrompia a realidade.

    Pensei no fogo, mas temi que a combusto de um livro infinito

    fosse igualmente infinita e sufocasse o planeta de fumaa.

    Lembrei haver lido que o melhor lugar para ocultar uma folha

    um bosque. Antes de me aposentar trabalhava na Biblioteca Nacional,

    que guarda novecentos mil livros; sei que mo direita do vestbulo,

    uma escada curva se some no sto, onde esto os peridicos e os

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    32/130

    mapas. Aproveitei um descuido dos empregados para perder o Livro de

    Areia em uma das midas prateleiras. Tratei de no me fixar em que

    altura, nem a que distncia da porta.

    Sinto um pouco de alvio, mas no quero passar pela Rua Mxico.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    33/130

    A Casa de Asterion

    Jorge Luis Borges

    Para Marta Mosquera Eastman

    E a rainha deu luz um

    filho que se chamou Asterion.

    APOLODORO: Biblioteca, III, I.

    Sei que me acusam de soberba, e talvez de misantropia, e talvez

    de loucura. Tais acusaes (que castigarei no devido tempo) so

    irrisrias. verdade que no saio de casa, mas tambm verdade que

    as suas portas (cujo nmero infinito*) esto abertas dia e noite aos

    homens e tambm aos animais. Que entre quem quiser. No encontraraqui pompas femininas nem o bizarro aparato dos palcios, mas sim a

    quietude e a solido. Por isso mesmo, encontrar uma casa como no

    h outra na face da terra. (Mentem os que declaram existir uma

    parecida no Egito.) At meus detratores admitem que no h um s

    mvel na casa. Outra afirmao ridcula que eu, Asterion, seja um

    prisioneiro. Repetirei que no h uma porta fechada, acrescentarei que

    no existe uma fechadura? Mesmo porque, num entardecer, pisei narua; se voltei antes da noite, foi pelo temor que me infundiram os rostos

    da plebe, rostos descoloridos e iguais, como a mo aberta. O sol j se

    tinha posto mas o desvalido pranto de um menino e as preces rudes do

    povo disseram que me haviam reconhecido. O povo orava, fugia, se

    prosternava; alguns se encarapitavam na estilbata do templo das

    Tochas, outros juntavam pedras. Algum deles, creio, se ocultou no mar.

    No em vo que uma rainha foi minha me; no posso confundir-mecom o vulgo, ainda que o queira minha modstia.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    34/130

    O fato que sou nico. No me interessa o que um homem possa

    transmitir a outros homens; como filsofo, penso que nada

    comunicvel pela arte da escrita. As enfadonhas e triviais mincias no

    encontram espao em meu esprito, capacitado para o grande; jamais

    guardei a diferena entre uma letra e outra. Certa impacincia generosa

    no consentiu que eu aprendesse a ler. s vezes o deploro, porque as

    noites e os dias so longos.

    Claro que no me faltam distraes. Como o carneiro que vai

    investir, corro pelas galerias de pedra at cair no cho, estonteado.

    Oculto-me sombra duma cisterna ou volta de um corredor e divirto-

    me com que me busquem. H terraos donde me deixo cair, atensangentar-me. A qualquer hora posso fazer que estou dormindo,

    com os olhos cerrados e a respirao contida. (s vezes durmo

    realmente, s vezes j outra a cor do dia quando abro os olhos.) Mas,

    de todos os brinquedos, o que prefiro o do outro Asterion. Finjo que

    ele vem visitar-me e que eu lhe mostro a casa. Com grandes referncias,

    lhe digo "Agora voltamos encruzilhada anterior" ou "Agora

    desembocamos em outro ptio" ou "Bem dizia eu que te agradaria estepequeno canal" ou "Agora vais ver uma cisterna que se encheu de areia"

    ou "J vais ver como o poro se bifurca". s vezes me engano e rimo-nos

    os dois, amavelmente.

    No tenho pensado apenas nesses brinquedos; tenho tambm

    meditado sobre a casa. Todas as partes da casa existem muitas vezes,

    qualquer lugar outro lugar. No h uma cisterna, um ptio, um

    bebedouro, um pesebre; so catorze (so infinitos) os pesebres,

    bebedouros, ptios, cisternas. A casa do tamanho do mundo; ou

    melhor, o mundo. Todavia, de tanto andar por ptios com uma

    cisterna e com poeirentas galerias de pedra cinzenta, alcancei a rua e vi

    o templo das Tochas e o mar. No entendi isso at uma viso noturna

    me revelar que tambm so catorze (infinitos) os mares e os templos.

    Tudo existe muitas vezes, catorze vezes, mas duas coisas h no mundo

    que parecem existir uma s vez: em cima, o intrincado sol; embaixo,

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    35/130

    Asterion. Talvez eu tenha criado as estrelas e o sol e a enorme casa,

    mas j no me lembro.

    A cada nove anos, entram na casa nove homens para que eu os

    liberte de todo o mal. Ouo seus passos ou sua voz no fundo dasgalerias de pedra e corro alegremente para busc-los. A cerimnia dura

    poucos minutos. Um aps outro caem sem que eu ensangente as

    mos. Onde caram, ficam, e os cadveres ajudam a distinguir uma

    galeria das outras. Ignoro quem sejam, mas sei que um deles, na hora

    da morte, profetizou que um dia vai chegar meu redentor. Desde ento

    a solido no me magoa, porque sei que meu redentor vive e que por fim

    me levantar do p. Se meu ouvido alcanasse todos os rumores domundo, eu perceberia seus passos. Oxal me leve para um lugar com

    menos galerias e menos portas. Como ser meu redentor? me

    pergunto. Ser um touro, ou um homem? Ser talvez um touro com

    cara de homem? ou ser como eu?

    O sol da manh rebrilhou na espada de bronze, j no restava

    qualquer vestgio de sangue.

    Acreditars, Ariadne? disse Teseu. O minotauro apenas

    se defendeu.

    *O original diz catorze, mas sobram motivos para inferir que, na

    boca de Asterion, esse adjetivo numeral valha por infinitos.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    36/130

    As coisas

    Jorge Luis Borges

    A bengala, as moedas, o chaveiro,

    A dcil fechadura, as tardias

    Notas que no lero os poucos dias

    Que me restam, os naipes e o tabuleiro.

    Um livro e em suas pginas a seca

    Violeta, monumento a uma tarde

    Sem dvida inolvidvel e j olvidada,

    O rubro espelho ocidental em que arde

    Uma ilusria aurora. Quantas coisas,

    Limas, umbrais, atlas, taas, cravos,

    Nos servem como tcitos escravos,

    Cegas e estranhamente sigilosas!

    Duraro para alm de nosso esquecimento;

    Nunca sabero que nos fomos num momento.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    37/130

    Funes, o Memorioso

    Jorge Luis Borges

    Recordo-o (no tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado,

    apenas um homem na terra teve o direito e tal homem est morto) com

    uma obscura passiflrea na mo, vendo-a como ningum jamais a vira,

    ainda que a contemplasse do crepsculo do dia at o da noite, uma vida

    inteira. Recordo-o, o rosto taciturno e indianizado e singularmente

    remoto, por trs do cigarro. Recordo (creio) suas mos delicadas de

    tranador. Recordo prximo dessas mos um mate, com as armas da

    Banda Oriental, recordo na janela da casa uma esteira amarela, com

    uma vaga paisagem lacustre. Recordo claramente a sua voz; a voz

    pausada, ressentida e nasal de orillero antigo, sem os assobios italianos

    de agora. Mais de trs vezes no o vi; a ltima, em 1887... Parece-me

    muito feliz o projeto de que todos aqueles que o conheceram escrevam

    sobre ele; meu testemunho ser por certo o mais breve e sem dvida o

    mais pobre, porm no o menos imparcial do volume que vs editareis.

    A minha deplorvel condio de argentino impedir-me- de incorrer no

    ditirambo - gnero obrigatrio no Uruguai; quando o tema um

    uruguaio. Literato, cajetilla, porteo. Funes no disse essas palavras

    injuriosas, mas de um modo suficiente me consta que eu representava

    para ele tais desventuras. Pedro Leandro Ipuche escreveu que Funes

    era um precursor dos super-homens; "Um Zaratustra cimarrn e

    vernculo"; no o discuto, mas no se deve esquecer que era tambm

    natural de Fray Bentos, com certas limitaes incurveis.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    38/130

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    39/130

    conhecidos e, finalmente, pelo "cronomtrico Funes". Responderam-me

    que um redomo o havia derrubado na estncia de San Francisco, e

    que havia se tornado paraltico, sem esperana. Recordo a sensao de

    incmoda magia que a notcia despertou-me: a nica vez que eu o vi,

    vnhamos a cavalo de So Francisco e ele andava em um lugar alto; o

    fato, na boca do meu primo Bernardo, tinha muito de sonho elaborado

    com elementos anteriores. Disseram-me que no se movia da cama, os

    olhos repousados na figueira do fundo ou em uma teia de aranha. Ao

    entardecer, permitia que o levassem para perto da janela. Levava a

    arrogncia ao ponto de simular que era benfico o golpe que o havia

    fulminado... Duas vezes o vi atrs da relha, que toscamente enfatizava a

    sua condio de eterno prisioneiro; uma, imvel, com os olhos cerrados;

    outra, imvel tambm, absorto na contemplao de um aromtico galho

    de santonina.

    No sem um certo orgulho havia iniciado naquele tempo o estudo

    metdico do latim. A minha mala inclua o De viris illustribus de

    Lhamond, o Thesaurus de Quicherat, os comentrios de Jlio Csar e

    um volume mpar da Naturalis historia de Plnio, que excedia (econtinua excedendo) as minhas modestas virtudes de latinista. Tudo se

    propaga em um povoado; Ireneo, em seu rancho das orillas, no tardou

    em enteirar-se da chegada desses livros anmalos. Dirigiu-me uma

    carta florida e cerimoniosa, na qual recordava no encontro,

    desditosamente fugaz, "do dia 7 de Fevereiro de 1884", ponderava os

    gloriosos servios que Don Gregorio Haedo, meu tio, falecido nesse

    mesmo ano, "havia prestado s duas ptrias na valorosa jornada deItuzaing", e me solicitava o emprstimo de qualquer dos volumes,

    acompanhado de um dicionrio "para a boa inteleco do texto original,

    pois todavia ignoro o latim". Prometia devolv-los em bom estado, quase

    imediatamente. A letra era perfeita, muito perfilada; a ortografia, do tipo

    que Andrs Bello preconizou: i por y, j por g. A princpio, suspeitei

    naturalmente tratar-se de uma zombaria. Meus primos asseguraram

    que no, que eram coisas de Ireneo. No sabia se atribua aoatrevimento, ignorncia ou estupidez a idia de que o rduo latim

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    40/130

    no requeresse mais instrumento do que um dicionrio; para

    desencoraj-lo completamente enviei-lhe o Gradus ad parnassum de

    Quicherat e a obra de Plnio.

    No dia 14 de Fevereiro telegrafaram-me de Buenos Aires quevoltasse imediatamente, pois meu pai no estava "nada bem". Deus me

    perde; o prestgio de ser o destinatrio de um telegrama urgente, o

    desejo de comunicar a toda Fray Bentos a contradio entre a forma

    negativa da notcia e o peremptrio advrbio, a tentao de dramatizar a

    minha dor, fingindo um estoicismo viril, talvez distraram-me de toda a

    possibilidade de dor. Ao fazer a mala, notei que me faltavam o Gradus e

    o primeiro tomo da Naturalis historia. O "Saturno" sarpava no diaseguinte, pela manh; essa noite, depois da janta, dirigi-me casa de

    Funes. Assombrou-me que a noite fora no menos pesada que o dia.

    No humilde rancho, a me de Funes recebeu-me.

    Disse-me que Ireneo estava no quarto dos fundos e que no me

    estranhasse encontr-lo s escuras, pois Ireneo preferia passar as

    horas mortas sem acender a vela. Atrevessei o ptio de lajota, o

    pequeno corredor; cheguei ao segundo ptio. Havia uma parreira; a

    escurido pareceu-me total. Ouvi prontamente a voz alta e zombeteira

    de Ireneo. Essa voz falava em latim; essa voz (que vinha das trevas)

    articulava com moroso deleite um discurso, ou prece, ou encantamento.

    Ressoavam as slabas romanas no ptio de terra; o meu temor as

    tomava por indecifrveis, interminveis; depois, no enorme dilogo

    dessa noite, soube que formavam o primeiro pargrafo do 24 captulo

    do 7 livro da Naturalis historia. O tema desse captulo a memria: as

    ltimas palavras foram ut nihil non iisdem verbis redderetur auditum.

    Sem a menor mudana de voz, Ireneo disse-me o que se passara.

    Estava na cama, funmando. Parece-me que no vi o seu rosto at a

    aurora; creio lembrar-me da brasa momentnea do cigarro. O quarto

    exalava um vago odor de umidade. Sentei-me, repeti a histria do

    telegrama e da enfermidade de meu pai.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    41/130

    Chego, agora, ao ponto mais difcil do meu relato. Este ( bem

    verdade que j o sabe o leitor) no tem outro argumento seno esse

    dilogo de h j meio sculo. No tratarei de reproduzir as suas

    palavras, irrecuperveis agora. Prefiro resumir com veracidade as

    muitas coisas que me disse Ireneo. O estilo indireto remoto e dbil; eu

    sei que sacrifico a eficcia do meu relato; que os meus leitores

    imaginem os perodos entrecortados que me abrumaram essa noite.

    Ireneo comeou por enumerar, em latim e espanhol, os casos de

    memria prodigiosa registrados pela Naturalis historia: Ciro, rei dos

    persas, que sabia chamar pelo nome todos os soldados de seus

    exrcitos; Metradates e Eupator, que administrava a justia dos 22idiomas de seu imprio; Simnides, inventor da mnemotecnia;

    Metrodoro, que professava a arte de repetir com fidelidade o escutado

    de uma s vez. Com evidente boa f maravilhou-se de que tais casos

    maravilharam. Disse-me que antes daquela tarde chuvosa em que o

    azulego o derrubou, ele havia sido o que so todos os cristos; um cego,

    um surdo, um tolo, um desmemoriado. (Tratei de recordar-lhe a

    percepo exata do tempo, a sua memria de nomes prprios; no mefez caso.) Dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem

    ver, ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair,

    perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o presente era quase

    intolervel de to rico e to ntido, e tambm as memrias mais antigas

    e mais triviais. Pouco depois averiguou que estava paraltico. Fato

    pouco o interessou. Pensou (sentiu) que a imobilidade era um preo

    mnimo. Agora a sua percepo e sua memria eram infalveis.

    Num rpido olhar, ns percebemos trs taas em uma mesa;

    Funes, todos os brotos e cachos e frutas que se encontravam em uma

    parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer de trinta

    de abril de 1882 e podia compar-los na lembrana s dobras de um

    livro em pasta espanhola que s havia olhado uma vez e s linhas da

    espuma que um remo levantou no Rio Negro na vspera da ao de

    Quebrado. Essas lembranas no eram simples; cada imagem visual

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    42/130

    estava ligada a sensaes musculares, trmicas, etc. Podia reconstruir

    todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas ou trs vezes havia

    reconstrudo um dia inteiro, no havia jamais duvidado, mas cada

    reconstruo havia requerido um dia inteiro. Disse-me: Mais

    lembranas tenho eu do que todos os homens tiveram desde que o

    mundo mundo. E tambm: Meus sonhos so como a vossa viglia. E

    tambm, at a aurora; Minha memria, senhor, como depsito de lixo.

    Uma circunferncia em um quadro-negro, um tringulo retngulo; um

    losango, so formas que podemos intuir plenamente; o mesmo se

    passava a Ireneo com as tempestuosas crinas de um potro, com uma

    ponta de gado em um coxilha, com o fogo mutante e com a cinza

    inumervel, com as muitas faces de um morto em um grande velrio.

    No sei quantas estrelas via no cu.

    Essas coisas me disse; nem ento nem depois coloquei-as em

    dvida. Naquele tempo no havia cinematgrafos nem fongrafos; , no

    entanto, verossmil e at incrvel que ningum fizera um experimento

    com Funes. O crto que vivemos postergando todo o postergvel;

    talvez todos saibamos pronfundamente que somos imortais e que maiscedo ou mais tarde, todo homem far todas as coisas e saber tudo.

    A voz de Funes, vinda da escurido, seguia falando.

    Disse-me que em 1886 havia elaborado um sistema original de

    numerao e que em muito poucos dias havia ultrapassado vinte e

    quatro mil. No o havia escrito, porque o pensado uma s vez j no

    podia desvanecer-lhe. Seu primeiro estmulo, creio, foi o

    descontentamento de que os trinta e trs uruguaios requeressem dois

    signos e trs palavras, em lugar de uma s palavra e um s signo.

    Aplicou logo esse desparatado princpio aos outros nmeros. Em lugar

    de sete mil e treze, dizia (por exemplo) Mximo Prez; em lugar de sete

    mil e catorze, A Ferrovia; outros nmeros eram Luis Melin Lafinur,

    Olivar, enxofre, os rsticos, a baleia, o gs, a caldeira, Napoleo,

    Agustn de Vedia. Em lugar de quinhentos, dizia nove. Cada palavra

    tinha um signo particular, uma espcie de marca; as ltimas eram

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    43/130

    muito complicadas... Eu tratei de explicar-lhe que essa rapsdia de

    vozes desconexas era precisamente o contrrio de um sistema de

    numerao. Eu lhe observei que dizer 365 era dizer trs centenas, seis

    dezenas, cinco unidades; anlise que no existe nos "nmeros". O Negro

    Timoteo a manta de carne. Funes no me entendeu ou no quis me

    entender.

    Locke, no sculo XVII, postulou (ou reprovou) um idioma

    impossvel no qual cada coisa individual, cada pedra, cada pssaro e

    cada ramo tivesse um nome prprio; Funes projetou alguma vez um

    idioma anlogo, mas o desejou por parecer-lhe demasiado geral,

    demasiado ambgo. De fato, Funes no apenas recordava cada folha decada rvore de cada monte, mas tambm cada uma das vezes que a

    havia percebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas

    jornadas pretritas a umas setenta mil lembranas, que definiria logo

    por cifras. Dissuadiram-no duas consideraes: a conscincia de que a

    tarefa era interminvel, a conscincia de que era intil. Pensou que na

    hora da morte no havia acabo ainda de classificar todas as lembranas

    da infncia.

    Os dois projetos que foi indicado (um vocabulrio infinito para a

    srie natural dos nmeros, um intil catlogo mental de todas as

    imagens da lembrana) so insensatos, mas revelam certa balbuciante

    grandeza. Nos deixam vislumbrar ou inferir o vertiginoso mundo de

    Funes. Este, no o esqueamos, era quase incapaz de idias gerais,

    platnicas. No apenas lhe custava compreender que o smbolo genrico

    co abarcava tantos indivduos dspares de diversos tamanhos e diversa

    forma; perturbava-lhe que o co das trs e catorze (visto de perfil)

    tivesse o mesmo nome que o co das trs e quatro (visto de frente). Sua

    prpria face no espelho, suas prprias mos, surpreendiam-no cada

    vez. Comenta Swift que o imperador de Lilliput discernia o movimento

    do ponteiro dos minutos; Funes discernia continuamente os avanos

    tranqilos da corrupo, das cries, da fatiga. Notava os progressos da

    morte, da umidade. Era o solitrio e lcido espectador de um mundo

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    44/130

    multiforme, instantneo e quase intolerantemente preciso. Babilnia,

    Londres e Nova York tm preenchido com feroz esplendor a imaginao

    dos homens; ningum, em suas torres populosas ou em suas avenidas

    urgentes, sentira o calor e a presso de uma realidade to infatigvel

    como a que dia e noite convergia sobre o infeliz Ireneo, em seu pobre

    subrbio sulamericano. Era-llhe muito difcil dormir. Dormir distrair-

    se do mundo; Funes, de costas na cama, na sombra, figurava a si

    mesmo cada rachadura e cada moldura das casas distintas que o

    redoavam. (Repito que o menos importante das suas lembranas era

    mais minucioso e mais vivo que nossa percepo de um gozo fsico ou

    de um tormento fsico). Em direo ao leste, em um trecho no

    pavimentado, havia casas novas, desconhecidas. Funes as imaginava

    negras, compactas, feitas de treva homognea; nessa direo virava o

    rosto para dormir. Tambm era seu costume imaginar-se no fundo do

    rio, mexido e anulado pela corrente.

    Havia aprendido sem esforo o ingls, o francs, o portugus, o

    latim. Suspeito, contudo, que no era muito capaz de pensar. Pensar

    esquecer diferenas, generalizar, abstrair. No mundo abarrotado deFunes no havia seno detalhes, quase imediatos.

    A receosa claridade da madrugada entrou pelo ptio de terra.

    Ento vi a face da voz que toda a noite havia falado. Ireneo tinha

    dezenove anos; havia nascido em 1868; pareceu-me to monumental

    como o bronze, mais antigo que o Egito, anterior s profecias e s

    pirmides. Pensei que cada uma das minhas palavras (que cada um dos

    meus gestos) perduraria em sua implacvel memria; entorpeceu-me o

    temor de multiplicar trejeitos inteis.

    Ireneo Funes morreu em 1889, de uma congesto pulmonar.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    45/130

    A biblioteca de Babel

    Jorge Luis Borges

    By this art you may contemplate the variation of the 23 letters...

    The Anataomy of Melancholy, part. 2, sect.II, mem. IV.

    O universo (que outros chamam a Biblioteca) compe-se de um

    nmero indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos

    poos de ventilao no centro, cercados por balaustradas baixssimas.

    De qualquer hexgono, vem-se os andares inferiores e superiores:

    interminavelmente. A distribuio das galerias invarivel. Vinteprateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os

    lados menos dois; sua altura, que a dos andares, excede apenas a de

    um bibliotecrio normal. Uma das faces livres d para um estreito

    vestbulo, que desemboca em outra galeria, idntica primeira e a

    todas. esquerda e direita do vestbulo, h dois sanitrios

    minsculos. Um permite dormir em p; outro, satisfazer as

    necessidades fsicas. Por a passa a escada espiral, que se abisma e seeleva ao infinito. No vestbulo ha um espelho, que fielmente duplica as

    aparncias. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca

    no infinita (se o fosse realmente, para qu essa duplicao ilusria?),

    prefiro sonhar que as superfcies polidas representam e prometem o

    infinito... A luz procede de algumas frutas esfricas que levam o nome

    de lmpadas. H duas em cada hexgono: transversais. A luz que

    emitem insuficiente, incessante.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    46/130

    Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude;

    peregrinei em busca de um livro, talvez do catlogo de catlogos; agora

    que meus olhos quase no podem decifrar o que escrevo, preparo-me

    para morrer; a poucas lguas do hexgono em que nasci. Morto, no

    faltaro mos piedosas que me joguem pela balaustrada; minha

    sepultura ser o ar insondvel; meu corpo cair demoradamente e se

    corromper e dissolver no vento gerado pela queda, que infinita.

    Afirmo que a Biblioteca interminvel. Os idealistas argem que as

    salas hexagonais so uma forma necessria do espao absoluto ou, pelo

    menos, de nossa intuio do espao. Alegam que inconcebvel uma

    sala triangular ou pentagonal. (os msticos pretendem que o xtase lhes

    revele uma cmara circular com um grande livro circular de lombada

    contnua, que siga toda a volta das paredes; mas seu testemunho

    suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro cclico Deus). Basta-me,

    por ora, repetir o preceito clssico: "A Biblioteca uma esfera cujo

    centro cabal qualquer hexgono, cuja circunferncia inacessvel".

    A cada um dos muros de cada hexgono correspondem cinco

    estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de formato uniforme;cada livro de quatrocentas e dez pginas; cada pgina, de quarenta

    linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor preta. Tambm h

    letras no dorso de cada livro; essas letras no indicam ou prefiguram o

    que diro as pginas. Sei que essa inconexo, certa vez, pareceu

    misteriosa. Antes de resumir a soluo (cuja descoberta, apesar de suas

    trgicas projees, talvez o fato capital da histria), quero rememorar

    alguns axiomas.

    O primeiro: a Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo

    corolrio imediato a eternidade futura do mundo, nenhuma mente

    razovel pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecrio, pode ser

    obra do acaso ou dos demiurgos malvolos; o universo, com seu

    elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmticos, de

    infatigveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecrio

    sentado, somente pode ser obra de um deus. Para perceber a distncia

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    47/130

    que h entre o divino e o humano, basta comparar esses rudes

    smbolos trmulos que minha falvel mo garatuja na capa de um livro,

    com as letras orgnicas do interior: pontuais, delicadas, negrssimas,

    inimitavelmente simtricas.

    O segundo: O nmero de smbolos ortogrficos vinte e cinco.1

    Essa comprovao permitiu, depois de trezentos anos, formular uma

    teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que

    nenhuma conjectura decifrara: a natureza disforme e catica de quase

    todos os livros. Um, que meu pai viu em um hexgono do circuito

    quinze noventa e quatro, constava das letras M C V perversamente

    repetidas da primeira linha ate ltima. Outro (muito consultado nestarea) um simples labirinto de letras, mas a pgina penltima diz Oh,

    tempo tuas pirmides. J se sabe: para uma linha razovel com uma

    correta informao, h lguas de insensatas cacofonias, de confuses

    verbais e de incoerncias. (Sei de uma regio montanhosa cujos

    bibliotecrios repudiam o supersticioso e vo costume de procurar

    sentido nos livros e o equiparam ao de procur-lo nos sonhos ou nas

    linhas caticas da mo... Admitem que os inventores da escritaimitaram os vinte e cinco smbolos naturais, mas sustentam que essa

    aplicao casual, e que os livros em si nada significam. Esse ditame,

    j veremos, no completamente falaz).

    Durante muito tempo, acreditou-se que esses livros impenetrveis

    correspondiam a lnguas pretritas ou remotas. verdade que os

    homens mais antigos, os primeiros bibliotecrios, usavam uma

    linguagem assaz diferente da que falamos agora; verdade que algumas

    milhas direita a lngua dialetal e que noventa andares mais acima

    incompreensvel. Tudo isso, repito-o, verdade, mas quatrocentas e dez

    pginas de inalterveis M C V no podem corresponder a nenhum

    idioma, por dialetal ou rudimentar que seja. Uns insinuaram que cada

    letra podia influir na subsequente e que o valor de M C V na terceira

    linha da pgina 71 no era o que pode ter a mesma srie noutra posio

    de outra pgina, mas essa vaga tese no prosperou. Outros pensaram

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    48/130

    em criptografias; universalmente essa conjectura foi aceite, ainda que

    no no sentido em que a formularam seus inventores.

    H quinhentos anos, o chefe de um hexgono superior2 deparou

    com um livro to confuso quanto os outros, porm que possua quaseduas folhas de linhas homogneas. Mostrou o seu achado a um

    decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em

    portugus; outros lhe afirmaram que em idiche. Antes de um sculo

    pde ser estabelecido o idioma: um dialeto samoiedo-lituano do

    guarani, com inflexes de rabe clssico. Tambm decifrou-se o

    contedo: noes de anlise combinatria, ilustradas por exemplos de

    variantes com repetio ilimitada. Esses exemplos permitiram que umbibliotecrio de gnio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Esse

    pensador observou que todos os livros, por diversos que sejam, constam

    de elementos iguais: o espao, o ponto, a vrgula as vinte e duas letras

    do alfabeto. Tambm alegou um fato que todos os viajantes

    confirmaram: "No h, na vasta Biblioteca, dois livros idnticos".

    Dessas premissas incontrovertveis deduziu que a Biblioteca total e

    que suas prateleiras registram todas as possveis combinaes dos vintee tantos smbolos ortogrficos (numero, ainda que vastssimo, no

    infinito), ou seja, tudo o que dado expressar: em todos os idiomas.

    Tudo: a histria minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o

    catlogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catlogos falsos, a

    demonstrao da falcia desses catlogos, a demonstrao da falcia do

    catalogo verdadeiro, o evangelho gnstico de Basilides, o comentrio

    desse evangelho, o comentrio do comentrio desse evangelho, o relatoverdico de tua morte, a verso de cada livro em todas as lnguas, as

    interpolaes de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pde

    escrever (e no escreveu) sobre a mitologia dos saxes, os livros

    perdidos de Tcito.

    Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a

    primeira impresso foi de extravagante felicidade. Todos os homens

    sentiram-se senhores de um tesouro intacto e secreto. No havia

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    49/130

    problema pessoal ou mundial cuja eloquente soluo no existisse: em

    algum hexgono. o universo estava justificado, o universo bruscamente

    usurpou as dimenses ilimitadas da esperana. Naquele tempo falou-se

    muito das Vindicaes: livros de apologia e de profecia, que para

    sempre vindicavam os actos de cada homem do universo e guardavam

    arcanos prodigiosos para seu futuro. Milhares de cobiosos

    abandonaram o doce hexgono natal e precipitaram-se escadas acima,

    premidos pelo vo propsito de encontrar sua Vindicao. Esses

    peregrinos disputavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras

    maldies, estrangulavam-se nas escadas divinas, jogavam os livros

    enganosos no fundo dos tneis, morriam despenhados pelos homens de

    regies remotas. Outros enlouqueceram... As Vindicaes existem (vi

    duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas talvez no

    imaginarias) mas os que procuravam no recordavam que a

    possibilidade de que um homem encontre a sua, ou alguma prfida

    variante da sua, computvel em zero.

    Tambm se esperou ento o esclarecimento dos mistrios bsicos

    da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. verosmil queesses graves mistrios possam explicar-se em palavras: se no bastar a

    linguagem dos filsofos, a multiforme Biblioteca produzir o idioma

    inaudito que se requer e os vocabulrios e gramticas desse idioma. Faz

    j quatro sculos que os homens esgotam os hexgonos... Existem

    investigadores oficiais, inquisidores. Eu os vi no desempenho de sua

    funo: chegam sempre estafados; falam de uma escada sem degraus

    que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliotecrio;s vezes, pegam o livro mais prximo e o folheiam, procura de

    palavras infames. Visivelmente, ningum espera descobrir nada.

    A desmedida esperana, sucedeu, como e natural, uma depresso

    excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum hexgono

    encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram

    inacessveis afigurou-se quase intolervel. Uma seita blasfema sugeriu

    que cessassem as buscas e que todos os homens misturassem letras e

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    50/130

    smbolos, at construir, mediante um improvvel dom do acaso, esses

    livros cannicos. As autoridades viram-se obrigadas a promulgar ordens

    severas. A seita desapareceu, mas na minha infncia vi homens velhos

    que demoradamente se ocultavam nas latrinas, com alguns discos de

    metal num fritilo proibido, e debilmente arremedavam a divina

    desordem.

    Outros, inversamente, acreditaram que o primordial era eliminar

    as obras inteis. Invadiam os hexgonos, exibiam credenciais nem

    sempre falsas, folheavam com fastio um volume e condenavam

    prateleiras inteiras: a seu furor higinico, asctico, deve-se a insensata

    perda de milhes de livros. Seu nome execrado, mas aqueles quedeploram os "tesouros" destrudos por seu frenesi negligenciam dois

    fatos notrios. Um: a Biblioteca to imensa que toda reduo de

    Origem humana resulta infinitesimal. Outro: cada exemplar nico,

    insubstituvel, mas (como a Biblioteca total) h sempre vrias

    centenas de milhares de fac-smiles imperfeitos: de obras que apenas

    diferem por uma letra ou por uma virgula. Contra a opinio geral,

    atrevo-me a supor que as consequncias das depredaes cometidaspelos Purificadores foram exageradas graas ao horror que esses

    fanticos provocaram. Urgia-lhes o delrio de conquistar os livros do

    Hexgono Carmesim: livros de formato menor que os naturais;

    onipotentes, ilustrados e mgicos.

    Tambm sabemos de outra superstio daquele tempo: a do

    Homem do Livro. Em alguma estante de algum hexgono (raciocinaram

    os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compndio perfeito

    de todos os demais: algum bibliotecrio o consultou e anlogo a um

    deus. Na linguagem desta rea persistem ainda vestgios do culto desse

    funcionrio remoto. Muitos peregrinaram procura d'Ele. Durante um

    sculo trilharam em vo os mais diversos rumos. Como localizar o

    venerado hexgono secreto que o hospedava? algum props um

    mtodo regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um

    livro B, que indique o lugar de A; para localizar o livro B, consultar

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    51/130

    previamente um livro C, e assim at o infinito... Em aventuras como

    essas, prodigalizei e consumi meus anos. No me parece inverosmil que

    em alguma prateleira do universo haja um livro total;3 rogo aos deuses

    ignorados que um homem um s, ainda que seja h mil anos! o

    tenha examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a felicidade no

    esto para mim, que sejam para outros. Que o cu exista, embora meu

    lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num

    instante, num ser, Tua enorme Biblioteca Se justifique.

    Afirmam os mpios que o disparate normal na Biblioteca e que o

    razovel (e mesmo a humilde e pura coerncia) quase milagrosa

    exceo. Falam (eu o sei) de "a Biblioteca febril, cujos fortuitos volumescorrem o incessante risco de transformar-se em outros e que tudo

    afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira". Essas

    palavras, que no apenas denunciam a desordem mas que tambm a

    exemplificam, provam, evidentemente, seu gosto pssimo e sua

    desesperada ignorncia. De fato, a Biblioteca inclui todas as estruturas

    verbais, todas as variantes que permitem os vinte e cinco smbolos

    ortogrficos, porm nem um nico disparate absoluto. Intil observarque o melhor volume dos muitos hexgonos que administro intitula-se

    Trono Penteado, e outro A Cibra de Gessoe outro Axaxaxas ml. Essas

    proposies, primeira vista incoerentes, sem dvida so passveis de

    uma justificativa criptogrfica ou alegrica; essa justificativa verbal e,

    ex hypothesi, j figura na Biblioteca. No posso combinar certos

    caracteres

    dhcmrlchtdj

    que a divina Biblioteca no tenha previsto e que em alguma de

    suas lnguas secretas no contenham um terrvel sentido. Ningum

    pode articular uma slaba que no esteja cheia de ternuras e de

    temores; que no seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso

    de um deus. Falar incorrer em tautologias. Esta epstola intil e

    palavrosa j existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um

    dos incontveis hexgonos e tambm sua refutao. (Um numero nde

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    52/130

    linguagens possveis usa o mesmo vocabulrio; em alguns, o smbolo

    biblioteca admite a correta definio ubquo e perdurvel sistema de

    galerias hexagonais, mas bibliotecapooupirmideou qualquer outra

    coisa, e as sete palavras que a definem tem outro valor. Voc, que me l,

    tem certeza de entender minha linguagem?)

    A escrita metdica distrai-me da presente condio dos homens.

    A certeza de que tudo est escrito nos anula ou nos fantasmagrica.

    Conheo distritos em que os jovens se prostram diante dos livros e

    beijam com barbrie as pginas, mas no sabem decifrar uma nica

    letra. As epidemias, as discrdias herticas, as peregrinaes que

    inevitavelmente degeneram em bandoleirismo, dizimaram a populao.Acredito ter mencionado os suicdios, cada ano mais frequentes. Talvez

    me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espcie humana

    a nica est por extinguir-se e que a Biblioteca perdurar: iluminada,

    solitria, infinita, perfeitamente imvel, armada de volumes preciosos,

    intil, incorruptvel, secreta.

    Acabo de escrever infinita. No interpolei esse adjetivo por

    costume retrico; digo que no ilgico pensar que o mundo infinito.

    Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os

    corredores e escadas e hexgonos podem inconcebivelmente cessar o

    que absurdo. Aqueles que o imaginam sem limites esquecem que os

    abrange o nmero possvel de livros. Atrevo-me a insinuar esta soluo

    do antigo problema: A Biblioteca ilimitada e peridica. Se um eterno

    viajante a atravessasse em qualquer direo, comprovaria ao fim dos

    sculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que,

    reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solido alegra-se com

    essa elegante esperana.4

    NOTAS:

    1 O manuscrito original no contem algarismos ou maisculas. A

    pontuao foi limitada virgula e ao ponto. Esses dois signos, o espao

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    53/130

    e as vinte e duas letras do alfabeto so os vinte e cinco smbolos

    suficientes que enumera o desconhecido. (Nota do Editor.)

    2 Antes, em cada trs hexgonos havia um homem. O suicdio e

    as enfermidades pulmonares destruram essa proporo. Lembrana deindizvel melancolia: s vezes, viajei muitas noites por corredores e

    escadas polidas sem encontrar um nico bibliotecrio.

    3 Repito-o: basta que um livro seja possvel para que exista.

    Somente est excludo o impossvel. Por exemplo: nenhum livro

    tambm uma escada, ainda que, sem dvida, haja livros que discutam e

    neguem e demonstrem essa possibilidade e outros cuja estrutura

    corresponde de uma escada

    4 Letizia lvarez Toledo observou que a vasta Biblioteca intil; a

    rigor, bastaria um nico volume, de formato comum, impresso em

    corpo nove ou em corpo dez, composto de um nmero infinito de folhas

    infinitamente delgadas. (Cavalieri, em princpios do sculo XVII, disse

    que todo corpo slido superposio de um nmero infinito de planos.)

    O manuseio desse vade mecum sedoso no seria cmodo: cada folha

    aparentemente se desdobraria em outras anlogas; a inconcebvel folha

    central no teria reverso.

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    54/130

    O Outro

    Jorge Luis Borges

    O fato ocorreu no ms de fevereiro de 1969, ao norte de Boston,

    em Cambridge. No o escrevi imediatamente, porque meu primeiro

    propsito foi esquec-lo para no perder a razo. Agora, em 1972, pensoque, se o escrevo, os outros o lero como um conto e, com os anos, o

    ser talvez para mim.

    Sei que foi quase atroz enquanto durou e mais ainda durante as

    noites desveladas que o seguiram. Isto no significa que seu relato

    possa comover a um terceiro.

    Seriam dez da manh. Eu estava recostado em um banco,

    defronte ao rio Charles. A uns quinhentos metros minha direita havia

    um alto edifcio cujo nome nunca soube. A gua cinzenta carregava

    grandes pedaos de gelo. Inevitavelmente, o rio fez com que eu pensasse

    no tempo. A milenar imagem de Herclito. Eu havia dormido bem;

    minha aula da tarde anterior havia conseguido, creio, interessar aos

    alunos. No havia ningum vista.

    Senti, de repente, a impresso (que, segundo os psiclogos,

    corresponde aos estados de fadiga) de j ter vivido aquele momento. Na

    outra ponta de meu banco, algum se havia sentado.

    Teria preferido estar s, mas no quis levantar em seguida, para

    no me mostrar descorts. O outro se havia posto a assobiar. Foi ento

    que ocorreu a primeira das muitas inquietaes dessa manh. O que

    assobiava, o que tentava assobiar (nunca fui muito entoado), era o

    estilo crioulo de La Taperade Elias Regules. O estilo me reconduziu aum ptio j desaparecido e memria de lvaro Mellin Lafinur, morto

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    55/130

    h muitos anos. Logo vieram as palavras. Eram as da dcima do

    princpio. A voz no era a de lvaro, mas queria parecer-se com a de

    lvaro. Reconheci-a com horror.

    Aproximei-me e disse-lhe:

    O senhor oriental ou argentino?

    Argentino, mas desde o ano de 1914 vivo em Genebra foi a

    resposta.

    Houve um silncio longo. Perguntei-lhe:

    No nmero dezessete da Malagnou, em frente igreja russa?

    Respondeu-me que sim.

    Neste caso disse-lhe resolutamente o senhor se chama

    Jorge Luis Borges. Eu tambm sou Jorge Luis Borges. Estamos em

    1969, na cidade de Cambridge.

    No respondeu-me com a minha prpria voz um pouco

    distante.

    Ao fim de um tempo insistiu:

    Eu estou aqui em Genebra, em um banco, a alguns passos do

    Rdano. 0 estranho que nos parecemos, mas o senhor muito mais

    velho, com a cabea grisalha.

    Respondi:

    Posso te provar que no minto. Vou te dizer coisas que um

    desconhecido no pode saber. L em casa h uma cuia de prata comum p de serpentes, que nosso bisav trouxe do Peru. H tambm uma

    bacia de prata que pendia do aro. No armrio do teu quarto, h duas

    filas de livros. Os trs volumes das Mil e Uma Noites de Lane, com

    gravaes em ao e notas em corpo menor entre os captulos, o

    dicionrio latino de Quicherat, a Germania de Tcito em latim e na

    verso de Gordon, um Dom Quixote da casa Garnier, as Tbuas de

    Sanguede Rivera Indarte, o Sartor Resartusde Carlyle, uma biografiade Amiel e, escondido atrs dos demais, um livro em brochura sobre os

  • 8/8/2019 Jorge Luis Borges - Pequena Antologia Para Ser Ler

    56/130

    costumes sexuais dos povos balcnicos. No esqueci tampouco um

    entardecer em um primeiro andar da praa Dubourg.

    Dufour corrigiu.

    Est bem. Dufour. Te basta, tudo isto?

    No respondeu Essas provas no provam nada. Se eu

    estou sonhando, natural que eu saiba o que sei. Seu catlogo prolixo

    totalmente vo.

    A objeo era justa. Respondi:

    Se esta manh e este encontro so sonhos, cada um de ns

    dois tem que pensar que o sonhador ele. Talvez deixemos de sonhar,

    talvez no. Nossa evidente obrigao, enquanto isto, aceitar o sonho,

    como aceitamos o universo e termos sido engendrados e olharmos com

    os olhos e respirarmos.

    E se o sonho durasse? disse com ansiedade.

    Para tranqiliz-lo e me tranqilizar, fingi uma serenidade que

    certamente eu no sentia. Disse-lhe:

    Meu sonho j durou setenta ano