o visto - 6ª edição

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA JORNAL DO CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS ANO 3, Nº6 SETEMBRO de 2015 16 PÁGINAS O VISTO /OVISTOUFSC [email protected]

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Sexta Edição, setembro de 2015. Periódico dos alunos da graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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Page 1: O Visto - 6ª edição

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINAJORNAL DO CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

ANO 3, Nº6 SETEMBRO de 2015 16 PÁGINAS

O VISTO

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Page 2: O Visto - 6ª edição

Entre a última semana de maio e a primeira de junho de 2015, a cidade de Florianópolis recebeu oito ônibus com imigrantes haitianos vindos do Acre.

A desorganização inicial em relação à situação ocorreu pela desarticulação dos entes da federação. As cidades do Acre como Basiléia e Epitaciolândia, despreparadas e sem o devido apoio do Governo Federal diante do gran-de fluxo de imigrantes que chegava, declararam estado de emergência. A União, sem uma política pública defi-nida, respondeu a esse pedido de socorro enviando ôni-bus para que os imigrantes pudessem se espalhar pelo país e desafogar as pequenas cidades do norte. Entre-tanto, as cidades destino não foram avisadas do envio de pessoas e tiveram que se organizar às pressas sem saber o número de imigrantes que viriam, para onde iriam, quando chegariam, muito menos qual o estado de saúde dessas pessoas, profissão, nível de escolarida-de, expectativas, ou qualquer outra informação. A Prefeitura de Florianópolis, apesar dos pro-testos endereçados à União, organizou-se rapidamente para recepcionar esses imigrantes: deu assistência ini-cial para a obtenção dos documentos necessários, en-caminhamento médico, compra de passagens de ônibus para as cidades do interior onde os haitianos já possuí-

am conhecidos estabelecidos e ajudou-os a buscar em-prego para os que escolheram ficar em Florianópolis, atuando em conjunto com a Pastoral do Imigrante e o Instituto de Geração de Oportunidades de Florianópolis (IGOF). A secretaria de Estado chegou posteriormente e ofereceu auxílio subsidiário aos trabalhos da Prefeitura. A sociedade civil também se mobilizou para arrecadação de roupas e material de limpeza para esses imigrantes e oferecimento de auxílio como intérpretes para facilitar o trabalho e diminuir a sensação de desorientação das pessoas. Os diferentes entes da federação pouco se en-tenderam e de maneira pouco organizada atendeu-se à demanda inicial que chegava durante aquela semana. Contudo, antes de julgar a política de recepção de cada estado ou cidade, é fundamental revisar as causas des-se fluxo migratório e a resposta dada inicialmente pelo Governo Federal em relação à chegada dos haitianos ao país. O Haiti possui economia primária voltada à agri-cultura de exportação. Desde a sua independência da França, em 1804, a história do país é marcada por lon-gos períodos de instabilidade política, ditaduras, inter-venção norte-americana, golpes de Estado, tentativa de democratização e levantes populares. O ex-presidente do Haiti Jean Bertrand Aristide, após sua deposição, pe-diu ajuda à Organização das Nações Unidas (ONU) devi-do à vacância do poder local e à extrema instabilidade por que passava o país.

EDITORIAL EXPEDIENTE

IMIGRAÇÃO HAITIANA: ANÁLISE DA POLÍTICA ADOTADA PELO GOVERNO BRASILEIRO

Um mapa político é a forma gráfica de identificar divisões políticas e administrativas de uma determinada região, aqui, ele serve para acabar com as divisões e juntar visões e pensamentos sobre tudo o que você pensa e acha que deve ser dito e debatido acerca do cenário internacional. O que você pensa?

Ciências SociaisEvelyn Fogaça Alves

[email protected]

Mestrado em DireitoWanda Helena Falcão

[email protected]

JornalismoGisele Flôres

[email protected]

Relações InternacionaisCarolina Ferrari

[email protected] Borges

[email protected] Antonio

[email protected] Piccinini

[email protected] Ferreira Vieira

[email protected] Borba

[email protected] Cidade Garcez

[email protected] Silvério

[email protected] Hugo Lopes

[email protected]

Design por Gisele Flôres

[email protected]

O VISTO PÁGINA 3

nesta ediçãoImigração haitiana: análise da política adotada pelo governo brasileiroPágina 3

Os desafios europeus da imigração síriaPágina 6

Elas não são Charlie: a infância que pede a marchaPágina 8

Migrações e PsicologiaPágina 10

O VISTO

apoio

Giulia Manccini Pinheiro – Estudante do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina

Dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras. E, talvez, isto seja bastante verdade. A foto do menino sírio Aylan Kurdi, encontrado morto no início do mês às margens de uma praia na Turquia, chocou o mundo pela brutali-dade e crueza do sofrimento de um inocente. Ao estampar as capas dos principais jornais internacionais, a imagem tornou-se o símbolo máximo de uma das maiores catástrofes humanitárias desde o fim da Segunda Guer-ra Mundial. O Wall Street Journal colocou o retrato do pequeno Aylan ao lado das grandes imagens que mudaram o mundo, como a da menina vie-tnamita correndo com o corpo queimado por um bombardeio durante a guerra no país. Estas ilustrações, segundo o jornal americano, têm o poder de transformar a agonizante lerdeza que as burocracias da política e da diplomacia impõem em um sentimento de urgência, que permite a nós, seres humanos, transcender as limitações impostas por nossas próprias instituições. Vitorioso na dura guerra síria, o pequeno Aylan teve de se lançar em uma batalha que se mostraria ainda mais cruel, aquela imposta pe-las águas turbulentas que separam um Oriente Médio em chamas de uma Europa em crise. Morto aos três anos, o menino sírio mostrou ao mundo que, por trás de muitos números contabilizando refugiados, havia aquilo de mais elementar que pode existir: vida. Talvez por isto, o retrato de sua morte tenha significado tanto. Só nos resta saber até quando.

Gabriel Piccinini

MAPA POLÍTICO

Migrações e refúgio: a contribuição da PsicologiaPágina 11

Desconstruindo (descobrindo) o “estrangeiro”Página 13

Relações internacionais e pós-colonialismo: agenda acadêmica e desafios metodológicosPágina 15

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O VISTOPÁGINA 4 O VISTO PÁGINA 5

A ONU respondeu com o envio de uma força multilateral reunida às pressas e, posteriormente, com a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH), criada pela resolução 1542 de 30/04/2004 do Conselho de Segurança da ONU. O Brasil, pela pri-meira vez na história da instituição, tomou a frente da missão de paz, aceitando comandar as tropas e envian-do 1.200 militares, como forma de aumentar sua influ-ência entre os países em desenvolvimento, política ado-tada desde o ano de 2002 pelo Ministério das Relações Exteriores. Em 2010, o Haiti sofreu um terremoto de alta magnitude, que atingiu a capital e regiões próximas, causou muitas mortes e destruição, e foi seguido por uma epidemia de cólera que devastou o país. Diante da situação extremamente precária, os haitianos saíram do que sobrou de suas casas em busca de melhores con-dições. Um dos fluxos iniciados pela catástrofe foi em direção ao Brasil devido à simpatia criada pelo Exército Brasileiro em sua atuação na MINUSTAH. Os militares brasileiros - aliados à presença concomitante de Organi-zações Não Governamentais brasileiras na ilha, como a Viva Rio, a Pastoral da Criança e o Grupo de Apoio à Pre-venção da AIDS, entre outras - foram responsáveis por diversos projetos naquele país, como o auxílio para a construção da usina hidrelétrica do rio Artibonite e pro-gramas agrícolas promovidos pela Embrapa. Além disso, a debilidade da fronteira amazônica facilitou a atuação dos “coiotes”, traficantes humanos responsáveis pelas travessias clandestinadas, somando, por fim, a esperan-ça da propalada prosperidade econômica. Os primeiros imigrantes que chegaram ao país solicitaram refúgio ao Brasil em razão das violações cau-sadas pelo terremoto. Esses pedidos foram analisados inicialmente pelo Comitê Nacional para Refugiados (CO-NARE), que os negou, baseando sua decisão na falta de requisitos legais para a concessão do status de refugia-do. Apesar de ter considerado a condição de refugiado inviável, o CONARE, sugeriu que os pedidos de refúgio fossem submetidos ao Conselho Nacional de Imigração (CNIG) com base na Resolução Recomendada nº 08/06, que trata dos “pedidos de refúgio que não sejam pas-síveis de concessão, mas que, a critério do CONARE, possam os estrangeiros permanecer no país por razões humanitárias” (Resolução Normativa nº 8, de 19 de de-zembro de 2006, art 1º). Nesse contexto, foi expedida a Resolução Normativa nº 97/12, que concede visto por razões humanitárias pelo prazo de cinco anos, com as mesmas características do permanente para trabalho, mas sem a necessidade de os migrantes possuírem qua-lificações profissionais ou comprovar relações laborais no Brasil.

O que se pode extrair das atas das reuniões do CONARE e CNIG, entre o período de 2010 e 2014, é que a idéia inicial do governo brasileiro era auxiliar as pessoas que haviam sido prejudicadas pelo terremoto ocorrido no país, mas evitar que ocorresse uma “diáspora” haitiana em direção ao Brasil. Contudo, a política da concessão de vistos humanitários aos haitianos foi renovada ao longo dos anos por novas portarias do Ministério do Tra-balho, que diminuíram cada vez mais os requisitos para a aquisição do visto, aumentando o número de conces-sões por mês para poder abarcar não apenas as pesso-as que já estavam acomodadas em território brasileiro, mas também as que se encontravam nas fronteiras na-cionais e as que estavam a caminho. A princípio, essa podia parecer a melhor escolha de política pública diante da situação. Entretanto, a não concessão do pedido de refúgio deixa os haitianos no Brasil em uma situação de fragilidade diante da vontade política do atual governo, uma vez que os vistos huma-nitários podem ser revogados a qualquer momento. Ao mesmo tempo, pesquisas publicadas pelo CNIG indicam que o primeiro grupo de haitianos (refere-se aos 199 pedidos de refúgio submetidos pelo CONARE ao CNIG, em março de 2011) ingressou no Brasil principalmente através do Estado do Amazonas, enquanto o segundo grupo, (relativo a 237 solicitações de refúgio remetidas

em maio de 2011) veio majori-tariamente pela fronteira com o Acre. Enquanto o primeiro gru-po era principalmente composto de indivíduos oriundos de áreas próximas à região mais afetada pelo terremoto de janeiro de 2010, o segundo grupo já apre-senta maior quantidade de pes-soas advindas de regiões menos diretamente afetadas pelo cata-clismo, especialmente dos de-partamentos mais ao norte da-quele país. O que se constatou é que o segundo grupo apresenta um nível de escolaridade infe-rior ao do primeiro. Percebe--se, assim, que não apenas as pessoas diretamente afetadas pelo terremoto, mas também os chamados “migrantes econômi-cos” se viram estimulados a vir ao Brasil, exatamente o que se tentara evitar inicialmente. Diante de tal cenário, recomenda-se que o CONARE passe a aceitar os pedi-dos de refúgio fundamentados no desastre ambiental ocorrido ao invés da concessão de vistos de caráter hu-manitário sem um controle específico. Apesar de não haver expressa previsão nacional ou internacional para a concessão de refúgio aos chamados “refugiados am-bientais” ou “deslocados ambientais”, essa nova catego-ria jurídica vem sendo suscitada em diversos fóruns de discussões. É amplamente reconhecido que um grande número de pessoas se desloca anualmente para fugir das consequências causadas por desastres ambientais. Todavia, o grande impasse no reconhecimento dessa categoria é a falta de uma definição concludente, pois raramente o desastre em si gera o deslocamento, mas sim um conjunto de fatores econômicos, políticos e am-bientais. A definição de refúgio adotada internacional-mente e englobada pelo nosso ordenamento jurídico requer “o fundado temor de perseguição em razão da raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas”, de modo que desastres ambientais não pode-riam ser os causadores dessa perseguição. Porém, a Lei brasileira nº 9.474/97 que define os mecanismos para a concessão do refúgio, inspirada pela Declaração de

Cartagena, que ampliou a defi-nição de Refugiados, em seu art. 1º, inciso III, também reconhece como refugiado todo o indivíduo que: “devido à grave e generali-zada violação de direitos huma-nos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país”. Deste modo, quando uma pessoa so-fre atentados aos seus direitos humanos e o seu próprio país ou é o causador ou não é capaz de protegê-la, ela será considerada como refugiado dentro das fron-teiras brasileiras. Nesse contexto, pode-se considerar que os haitianos afe-tados pelo terremoto em 2010 tiveram seus direitos humanos violados e o governo do Haiti, diante da instabilidade política já existente, não foi capaz de protegê-los, de forma que esses

poderiam ser considerados como refugiados no Brasil. Defende-se, assim, que essa seria a melhor opção a ser adotada, pois, além de restringir a ajuda àqueles verdadeiramente atingidos pelo cataclis-mo, aumentaria o espectro de proteção a essas pessoas em razão de o status de refugiado possuir como base o princípio da não-devolução, o qual proíbe o governo brasileiro de devolver o refugiado ao local onde teve seus direitos humanos violados, diferentemente do vis-to humanitário que não possui caráter legal e pode ser revogado a qualquer momento, além de estes poderem fazer parte dos programas de reassentamento de refu-giados organizados pelo CONARE. Portanto, esta opção desafogaria as pequenas cidades do Acre e permitiria uma melhor articulação entre os entes da Federação, dado que o CONARE já possui uma inovadora e estruturada forma de integrar os refugiados ao Brasil levando em conta suas particula-ridades culturais, diferentemente do modo improvisado que está sendo feito por prefeituras e secretarias de Es-tado. Por fim, também deve-se questionar se, passados cinco anos do terremoto e do ápice da crise no Haiti, há ainda justificativa para tratar a situação como emergen-cial e humanitária.

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O VISTO

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OS DESAFIOS EUROPEUS DA IMIGRAÇÃO SÍRIA

Em janeiro de 2015, diversas no-tícias sobre a migração e refúgio rodaram o mundo todo após al-

guns barcos que levavam imigrantes ilegalmente, da África para a Europa, afundarem, matando milhares de pessoas que fugiam de seus países em busca de melhores condições de vida em outro continente. O mais chocante foi a descoberta de que tal forma de travessia vinha ocorrendo há muito tempo, colocando em ris-co a vida de diversas pessoas e enri-quecendo aqueles que financiavam a entrada ilegal dos imigrantes tanto pela Itália como pela Grécia. Estima--se que cada um dos passageiros pagavam uma quantia equivalente a dez mil reais, chegando a somar

mais de um milhão de reais em al-guns barcos.

Segundo dados do Alto Co-missariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), grande parte das pessoas que vem migrando para os países europeus em busca de asi-lo saem da Síria, país que vem sendo abalado por uma forte guerra civil e pelos resquícios da Primavera Árabe que transformou a conjuntura políti-ca de diversos países. É fato que em pouco mais de quatro anos de guerra, cerca de 215 mil pessoas já perderam suas vidas nos conflitos sírios, enquanto se es-tima que cerca de 11,4 milhões de pessoas já fugiram do país em busca de abrigo e refúgio. O ACNUR calcula que só no ano de 2014 os sírios foram os res-ponsáveis pela maior quantidade de solicitações de refúgio em todo o mundo, atingindo o número de

149.600 demandas de abrigo, contra os 46.960 pedidos que foram regis-trados no ano de 2013. O fato é que a guerra civíl na Síria, que em março de 2015 com-pletou quatro anos, tem sido um grande catalisador que impulsiona esse número de pedidos de refúgio. A guerra que se iniciou como uma simples revolução para derrubar o presidente Bashar Al-Assad do po-der, se estende até os dias de hoje e tem gerado uma grande crise hu-manitária, tanto na Síria como nos países vizinhos. A manifestação ini-cialmente pacífica foi recebida com uma terrível repressão por parte do governo, o que teria gerado tal esta-do de instabilidade. O resultado dessa instabili-dade social foi não só a explosão no número de pedidos de refúgio em todo o mundo; mais que isso, foi a migração ilegal de sírios, levados

Maria Clara Donato Alves e Samuel Matheus Nóbrega Leano – alunos do curso de Direito da Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas (FACISA), Campina Grande (PB).

pelos já citados barcos clandestinos, em busca de melhores condições de vida. Além dos países europeus, aqueles que fazem fronteira com a Síria também têm sido grande alvo de migração. O ACNUR calcula que cerca de 3 milhões de sírios já teriam fugido para outros países do Oriente Médio. Segundo a Agência de Fron-teiras da União Europeia, FRONTEX, já foram detectados mais de 40.304 imigrantes ilegais em meio a rota do Mediterrâneo Central, número que subiu mais de 288% com relação a 2013, cabendo salientar que tais nú-meros não abrangem aqueles que entram sem sequer serem detecta-dos. A Grécia é o principal ponto de trânsito, seguido pelos Balcãs, como opção de muitos outros mi-grantes que procuram um ponto de passagem pelo norte da Europa. Nos primeiros seis meses de 2014, os países do sul europeu registraram cerca de 60.800 pedidos de asilo, um aumento na faixa de 73% sobre o mesmo período no ano de 2013. O grande problema que vem sendo encontrado são as formas uti-lizadas por essas pessoas para sair de seus países. O ACNUR estima que das 219 mil pessoas que tenta-ram fazer as travessias clandestinas em 2013, apenas 60 mil consegui-ram alcançar o destino final. Essa redução de quase quatro vezes do número inicial se deve às péssimas condições sanitárias dos barcos que realizam esse percurso, além da má alimentação, rápida propagação de doenças etc. A atual imigração na Europa age com dois efeitos distintos, sen-do o primeiro o fato de a grande maioria dos imigrantes não possuir nenhuma qualificação, seja técnica ou acadêmica, além de muitos ainda chegarem sem fluência necessária no idioma para realizar atividades básicas do dia-a-dia. Para agravar

ainda mais essa situação, os países que recebem a maior parte des-se fluxo de imigrantes ilegais são a Itália e a Grécia, países fortemente abalados pelos problemas econô-micos e sociais decorrentes da crise econômica mundial de 2008, o que dificulta ainda mais a inserção des-tes imigrantes na sociedade e no mercado de trabalho europeu. Já o segundo efeito reflete na necessidade da imigração para os países europeus, pois, um estudo do International Longevity Centre (Lon-dres) avisava, ainda em 2013, que a Europa precisaria de “pelo menos mais 11 milhões de imigrantes até 2020” para garantir o pagamento das pensões de seus reformados, pois a sociedade europeia envelhe-ce de forma tão vertiginosa que a proporção de contribuintes e pen-sionistas passaria rapidamente para dois por um. Entretanto, os governos pa-

recem negligenciar tal necessidade e, ano após ano, dificultam a entra-da de migrantes, justificando tanto pela baixa qualificação profissional, quanto pelo medo da não inserção destes na sociedade, o que pode-ria causar sérios problemas sociais, como o aumento da criminalidade. Sendo assim, para perma-necer regularmente dentro da UE, os imigrantes devem preencher o requisito que se encontra no Esta-tuto dos Refugiados, em seu artigo 1°, que diz que, o refugiado deve provar às autoridades que é uma pessoa que sofre de “fundado te-mor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, partici-pação em determinado grupo social ou opiniões políticas [...]” e está fora do seu país de origem por causa de tais temores ou de razões que deri-vam da mera conveniência pessoal, não podendo regressar ao mesmo. A partir do momento em que ocor-re o refúgio, deve o país que acolhe o refugiado respeitar todos os seus direitos e tratá-lo com dignidade. Deve ser chamada atenção para outros importantes direitos do refugiado que são a sua não repa-triação e o respeito ao princípio da não-devolução, que proíbe retorno

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do refugiado ao lugar onde sua vida e liberdade estavam anteriormente ameaçadas. No entanto, tal proi-bição vem sido descumprida pela Grécia, acusada de constantemente barrar a entrada de novos imigran-tes em seu território. Como medida, tanto para conter a imigração desenfreada, como também para frear o grande número de mortes que ocorria du-rante as travessias clandestinas, as autoridades europeias decidiram aumentar o policiamento das fron-teiras marítimas e terrestres inten-sificando as patrulhas em busca de possíveis imigrantes ilegais. Além disso, também foi sus-pensa a operação Mare Nostrum, patrocinada pelo governo italiano, uma vez que tal medida só servia para atrair ainda mais imigrantes.

O orçamento anteriormente disponibilizado para tal projeto foi redireciona-do para apoio de ONG’s que trabalham tan-to na recepção como na ajuda da legalização dos imigran-tes, bem como na sua inserção dentro do mer-cado de trabalho europeu. Outro ponto bastante dis-cutido entre os países membros da UE é o estabelecimento de metas de apoio para que haja a formação de uma União Nacional, para que se es-

tabilize a situação política e conflitu-osa instaurada nos países do Orien-te Médio com a Primavera Árabe, o que serviria de forma mais eficiente para que a migração ilegal desenfre-ada fosse estabilizada.

anos governa aquele país com mãos fortes. O líder, Bashar al-Assad, evoca o povo sírio a lutar contra os revoltosos em prol da sua perma-nência no poder, a violência, então, se dissipa velozmente, há luta en-tre iguais dentro de uma casa só, a guerra civil síria se torna, segundo a ONU, uma das maiores crises huma-nitárias do recente século XXI. Em março de 2015, a foto que nos choca: a menina levanta as mãos, se rende, e nos seus olhos a leitura da dor que continua a cami-nhar pelas ruas de Damasco, de Ale-ppo e de outras tantas regiões sírias. Os dados demonstram os efeitos de-vastadores: a cada dia, mais civis são envolvidos, mais baixas são noticia-das. Calcula-se que foi ultrapassada a marca de 220 mil pessoas mortas, as que sobreviveram recorrem ao refúgio noutros países. Neste con-texto, as crianças são atingidas for-temente pelas hostilidades, a afeta-ção de mais de 14 milhões, aponta o UNICEF (2015), produz um futuro incerto. O olhar assustado daquela menina para a câmera retrata o re-trocesso do que fora traçado. O sen-timento de infância e sua descober-ta – aduz Ariès (2011) - transita por ondas, isto se evidencia no caminhar dos anos com a percepção do menor que se modifica a par-tir do momento em que a família também se transforma dentro do contexto social. Com a emergência do sentimento de família, passa-se a figurar seus elementos formadores, dentre eles, a criança. Logo surge a necessidade de se voltar para esta parcela que não mais era uma mera “miniatura de adultos”, pois havia ali um ser com especificidades e que precisava ser assim concebido.Contudo, na iconografia atual, a in-volução é palpitante. Ao longo do tempo, passos foram dados, entre-

tanto, as garantias reconhecidas na Convenção de 1989 são esquecidas severamente quando em situações de beligerância; há de falar em di-reito à educação, à saúde, à convi-vência familiar, à proteção integral, em escombros? O acesso a bens mí-nimos para vida digna se torna algo distante. Entende-se que o proces-so de maturação com plenitude se vincula intimamente ao acolhimen-to, ao afeto recebido e ao ambiente amistoso em que se vive. Destarte, o conflito em terras sírias e os vultos do ISIS somados aos já existentes impossibilitam o desenvolvimento saudável dos pequenos. Os traumas herdados pelas crianças são preocu-pantes, os aspectos biopsicossociais abalados, as famílias desestrutura-das – quanto mais as garantias bá-sicas são atingidas, maiores são os efeitos nocivos acarretados à crian-ça em conflito armado, pontua Sin-ger (2006). A Save the Children, ONG britânica presente em vários países, defende a urgência de maior inves-timento em aparelhamento médi-co-hospitalar, no acompanhamento profissional quanto à saúde mental e emocional, em políticas direciona-das para a recuperação destas vidas. A eficácia destas ações depende in-

trinsecamente da vontade da comu-nidade internacional em promover ajuda aos que convivem com o ne-fasto cotidiano na Síria. O não surpreendente silên-cio ao quadro resvala em exponen-cial aumento de vítimas: são 2 mi-lhões de meninos e meninas sem assistência humanitária, em torno de 2,6 milhões não frequentam as escolas desde 2011, quase 2 milhões estão refugiadas no Líbano, na Tur-quia, na Jordânia e noutras regiões do globo, segundo a UNICEF. Crian-ças sírias dormem em igual vala das 200 nigerianas de Chibok, dos estu-dantes de Peshawar, dos indefesos de Gaza. Nenhuma delas é Charlie. Os interesses em pôr fim ao conflito não são condizentes com os discursos, tampouco com o ideário dos instrumentos de caráter prote-tivo. As falácias norteiam os últimos anos da Síria. Espera-se que as dores dos infantes se tornem marcha, que suas vozes não sejam anoitecidas, que a incerteza do amanhã se torne memória, que, como afirma Graça Machel, “as crianças [representem], por um lado, a razão que nos faz lutar pela eliminação dos piores aspectos da guerra; por outro, a nossa grande esperança de conseguirmos”.

O VISTO

ELAS NÃO SÃO CHARLIE: A INFÂNCIA QUE PEDE A MARCHA

Há cinco anos, a atenção do mundo se voltava para a Síria, os questionamentos e exclamações eram vastos, as promessas para resolução, frutíferas. As

máculas deixadas pelo silêncio da comunidade interna-

cional são revestidas por números incômodos que refle-tem o nosso tempo: o diálogo para a promoção da paz e dos direitos humanos se apequena ao revés, de forma alarmante, da lista de vidas marcadas por conflitos ar-mados. Em 2011, relembremos, houve levante popular contra o regime da família Assad, que há mais de 40

O VISTO

Wanda Helena Mendes Muniz Falcão – aluna do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina

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Ser “estrangeiro” em algum lugar carrega a representa-ção de não pertencer a este mesmo lugar. É ser estra-nho aos códigos e lógicas culturais, implícitos e explíci-tos, que regem determinado grupo. É estar, mesmo que temporariamente, desprovido dos referenciais culturais que permitem dar sentido às experiências. O sofrimento psicológico que uma experiência migratória pode desen-cadear é um fenômeno complexo atravessado por uma série de variáveis políticas, econômicas e psicossociais. No caso do refúgio – como nos contextos de guerras, desastres naturais e perseguições políticas e religiosas nos países de origem destas pessoas – muitas vezes não há tempo de se preparar para a partida. Assim, as des-pedidas e a elaboração dos lutos são, por vez, impossi-bilitadas. Somada a incerteza do deslocamento e de um projeto de vida no novo país de residência configura-se uma situação com grande potencial de vulnerabilidade psíquica. Podemos, com isto, dizer que o refugiado leva consigo pouco do que definia sua identidade pessoal e cultural. Sensibilizada através do estudo dos impactos psicológicos das migrações e do refúgio, além de enga-jada na intervenção clínica com imigrantes e refugiados, a Clínica Intercultural oferece, desde 2012, atendimen-tos psicológicos para refugiados e imigrantes, desde que os mesmo apresentem uma especificidade cultural na expressão de seu sofrimento psicológico. A Clínica Inter-cultural é um projeto de extensão do departamento de Psicologia da UFSC e é coordenado pela professora Lu-cienne Martins Borges do mesmo departamento. O pro-jeto esteve presente na 1ª Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio – COMIGRAR, realizada em maio de 2014, onde compartilhou sua experiência na Feira Nacional de Práticas de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Experiências de Políticas Migratórias e Refú-gio que ocorreu concomitantemente à conferência. Na ocasião, o projeto foi parabenizado pelo Ministério da Justiça e pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). O desejo daqueles que se lançam em uma ex-periência migratória é de encontrar no lugar de destino uma possibilidade de realizar-se, mas para tal é preciso superar uma série de desafios ao longo do processo de integração e reconhecimento social.

Movimento e migração são as condições de definição histórica da humanidade. Porém, o mundo vive hoje uma realidade no mínimo intrigante a qual nos deve le-var a reflexões com responsabilidade.

De acordo com o CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados (2014), o Brasil possui refugiados reconhecidos de 81 nacionalidades distintas. Segundo o ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (2014), referentes ao período entre janei-ro de 2010 e outubro de 2014, a análise estatística de-monstra o fortalecimento continuado da proteção aos refugiados e solicitantes de refúgio no Brasil. O número total de pedidos de refúgio aumentou mais de 930% en-tre 2010 e 2013. A maioria dos solicitantes de refúgio vem da África, Ásia (inclusive Oriente Médio) e América do Sul. Nos últimos anos, todas as importantes crises humanitárias impactaram diretamente os mecanismos de refúgio no Brasil, com expressivos números de so-licitantes da Síria, Líbano e República Democrática do Congo chegando ao país. Esses dados não incluem in-formações relacionadas aos nacionais do Haiti, já que estes têm vistos emitidos de residência permanente por razões humanitárias. Há uma necessidade iminente de transforma-ções sociais e políticas atuais de migração, porém além do coletivo, se faz necessário também um olhar signifi-cativo para este sujeito, para o indivíduo em condição de estrangeiro. O tema do sofrimento psíquico do sujei-to na experiência migratória é abrangente e se percebe a grande necessidade de estudos e propostas de inter-venção sobre tal questão. Estrangeiros que vivem em contexto transcultu-ral, frequentemente experimentam muita tensão. Não é uma tarefa fácil aprender uma nova língua, uma nova cultura e um novo conjunto de regras verbais e não ver-bais. Estão expostos a experimentar de maneira positi-va e/ou negativa o choque cultural causado pelo stress múltiplo: intelectual, emocional e fisiológico, pois pode comprometer sua capacidade de bom funcionamento quando são incapazes de interpretar sinais de um am-biente novo e incerto. Um fator importante a ser consi-derado, é o processo de elaboração das perdas inerente à experiência migratória, vinculada à história de cada in-

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A Clínica Intercultural é um projeto de extensão do Curso de Graduação em Psicologia da UFSC que oferece atendimento psicológico especializado e

direcionado a pessoas que passam por experiências mi-gratórias e podem apresentar estado de vulnerabilida-de psíquica. O serviço é oferecido a alunos da UFSC e à comunidade externa e é prestado na língua materna do estrangeiro. O grupo iniciou suas atividades em 2012 e conta com o apoio tanto de alunos quanto de profissio-nais já formados. Convidamos Márcio Jibrin, psicólogo formado pela UFSC e mestrando do programa de pós-graduação da mesma instituição, a contar um pouco mais sobre este projeto.

O ser humano sofre diversas influências ao longo de seu desenvolvimento, o que invariavelmente aconte-ce na relação com outros seres e/ou com o ambiente. Das inúmeras funções que a cultura tem em nossas vi-das, ressalto algumas que ocupam um lugar central para o estudo da Psicologia Clínica Intercultural e para a in-tervenção psicológica com imigrantes e refugiados. A cultura nos fornece uma ética, estratégias de enfrentamento a situações difíceis, possibilita dar nome aos sentimentos, além de organizar os pensamentos em categorias simbólicas possíveis. É através da cultu-ra que nos sentimos pertencentes a algo maior que nós mesmos; pertencentes a um grupo de semelhantes de uma mesma nação, a um grande sistema religioso, aos hábitos de uma família. Reconhecer-se e ser reconhe-cido como parte integrante de um determinado siste-ma de princípios, valores e crenças é parte fundamental da constante construção do que afirmamos ser a nossa identidade e, por efeito, daquilo com o que nos identifi-camos.

O VISTO

MIGRAÇÕES E PSICOLOGIAMárcio JibrinPsicólogo, mestrando do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC e psicoterapeuta da Clínica Intercultural. Contato:[email protected]

MIGRAÇÕES E REFÚGIO, CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA

Mariana Bassoi Duarte da Silva - psicóloga formada pela PUC-PR e aluna do programa de mestrado da UFPRMaria Virginia Filomena Cremasco – psicanalista e professora da UFPR

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divíduo que migra entrará em contato com uma nova cultura e precisa abrir mão de tudo que lhe é conhecido e mergulhar em um mundo que requer novas represen-tações e novos significados. Isso significa vivenciar uma experiência de desamparo na qual a não compreensão cultural afeta o bem estar psicológico e dificulta a sua adaptação. Um migrante em estado de privação, com a perda prolongada de referenciais próprios, sofre e vi-vencia uma crise. Toda crise implica em ruptura ou sepa-ração, mesmo que apenas como realidade psíquica. São períodos de transição que representam para o indivíduo tanto uma oportunidade de crescimento como um pe-rigo de aumento da vulnerabilidade e enfermidade psí-quicas. Mudar de país, significa, entre outras coisas, construir uma nova vida, fazer novas representações e dar significados diferentes ao que era familiar, se depa-rando com inúmeras perdas como a de pertencer a um grupo que lhe dá identidade e reconhecimento. A per-da do sentimento de pertencimento pode gerar gran-de ansiedade devido à necessidade que todo indivíduo apresenta de sentimento de segurança, proteção e de orientação. O estrangeiro, é o diferente para quem o recebe, coloca em questão a unidade para o grupo que o acolhe, ao mesmo tempo que sua presença fortalece a identifi-cação deste grupo. Segundo alguns autores, o estrangeiro personi-fica para o grupo esse outro. Outro que se afirma em muitos sentidos: outro país, outro lugar, outro costume, outra língua, outro modo de estar, que não faz parte, o que é de outra parte, enigmático. Este estranhamento, a incompreensão do modo diferente de existir que não a do grupo e do padrão estabelecido, é muito difícil de ser

elaborada pelo estrangeiro, que pode vir a sofrer com tamanha rejeição e solidão, já que se encontra desam-parado. Por outro lado, pode despertar no grupo que o acolhe, forte sentimento de raiva e rejeição. Denúncias frequentes por parte dos migrantes africanos, são os casos de racismo e xenofobia enfren-tados por estes, questão que têm se intensificado e que passam a ser uma preocupação, bem como a margina-lização dos migrantes que, ao se depararem com as di-ficuldades, agravadas pela vulnerabilidade social, termi-nam por sofrer com a manipulação e controle, por parte da sociedade. A migração é uma das muitas experiências na vida que trará um sofrimento psíquico àquele que a vi-vencia, a priori o desamparo e o luto são inerente a esse fenômeno. A migração, então, é uma das contingências da vida que expõe o indivíduo a passar por estados de desorganização interior. Apontamos a necessidade de estudarmos a migração como um processo de cada su-jeito, com sua experiência e bagagem individual. A psi-cologia tem muito a contribuir por se apropriar da singu-laridade e por oferecer uma escuta ao seu sofrimento. Um desafio iminente com a realidade e conjecturas atuais. Necessidades relacionadas à educação, empre-gabilidade e saúde são apenas algumas das importantes áreas de atuação que a psicologia pode contribuir. Refle-xões sobre a atuação da psicologia em como colaborar com esta questão atual é de fundamental importância. As demandas são muitas e ainda pouco se tem efetiva-do enquanto projetos e intervenções no campo da psi-cologia em nosso país.

O VISTO

(Pequenas) vítimas em vão

A boneca jogada no canto O carrinho sem roda nem corNa estante quebrado um santo Na panela barro sem sabor.

A mãe chora dia e noiteSe ajoelha e se põe a rezar O pai sofre a dor de um açoite Boca seca; não quer mais falar.

Chegaram arrombando a porta Acharam o menino na rua Pra eles que nada importaLevaram a menina nua.

Calaram com tapa o pai E a mãe, com um estupro Dor que fica e não vai Levaram seus filhos sem rumo.

Os gritos ecoaram alémAs lágrimas lavaram o rosto O sangue escorria tambémPelo corpo por dentro morto.

O menino foi ser treinadoA segurar arma sem nem pensar A obedecer ordens caladoA atingir alvos sem hesitar.

A menina foi ser forçadaA virar mulher, cedo demais A ser todo tempo violadaSorrir nem se lembra mais.[...]E a guerra acontecia lá fora As bombas explodiam no chão Pequenas pegadas iam emboraCrianças [...], vítimas em vão.

Gabriela Silveira - aluna do curso de Relações Internacionais UFSC

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Todos os indivíduos nascem imersos em sistemas cultu-rais compostos por códigos

simbólicos e normas, os quais são herdados ao longo dos anos e que, de certa forma, regulam as práticas sociais. A linguagem representa um dos mais importantes códigos sim-bólicos, e pode ser vista tanto como modo de ação quanto de represen-tação. A articulação de formações discursivas está, portanto, essencial-mente relacionada a determinados valores, inclusive aqueles referentes às relações dos indivíduos ao que para eles é “estranho”.

Muitas vezes o poder das palavras é capaz de transformar a realidade dos fatos, sendo, portan-to, a versão dos fatos atribuída pelo discurso mais importante do que os acontecimentos em si. Tal crítica se assemelha a denúncia feita por Platão na obra Górgias, de que a re-tórica muitas vezes não permite o acesso à verdade. A construção da palavra “estrangeiro” e a atual cono-tação dada a ela é um exemplo de como o discurso, neste caso, tem o poder de marginalizar o indivíduo que se encontra fora do seu país, e fazer com que ele seja “o outro”, aquele que é estranho a determina-da sociedade. A palavra portuguesa “es-

trangeiro” deriva do francês antigo estrangie (atual étranger), sendo a palavra estrangier derivada de es-trange, a qual era usada tanto no sentido de “estranho” como de “estrangeiro”. Define-se, portanto, estrangeiro como aquele que não pertence ou que se considera como não pertencente a uma determina-da região, classe ou meio; forasteiro, ádvena, estranho. Pesquisando o sentido da palavra estranho em outras línguas, nos deparamos com algumas curio-sidades: na língua espanhola a pa-lavra raro, derivada do latim rarus (algo espaçado, que apresenta inter-valos, poroso, pouco denso), signifi-ca “estranho”.

DESCONSTRUINDO (DESCOBRINDO) O “ESTRANGEIRO”

Carolina Ferrari – aluna do curso de Relações Internacionais da UFSC

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RELAÇÕES INTERNACIONAIS E PÓS-COLONIALISMO: AGENDA ACADÊMICA E DESAFIOS METODOLÓGICOS

O surgimento das Relações Internacionais como área autônoma de estudos e positivada se dá no início do século XX. Porém seu estudo como área

não fragmentada data ainda da guerra do Peloponeso, quando Tucídides realiza as primeiras análises sobre as relações entre as Cidades-Estados e suas implicações. Como informa Thales Castro, “o saber internacional, como objeto categórico analítico, é antiquíssimo e re-monta à investigação positiva, normativa e descritiva do enigmático fenômeno humano em suas múltiplas teias de relacionamento interativo social e em vários compar-timentos”. As Relações Internacionais desempenham um papel fundamental como área teórica, uma vez que ela (a área de estudo) reúne uma gama de teorias e me-todologias de áreas “irmãs/afins”, destacando a Ciência Política, Sociologia, História, Direito, Economia, Filosofia e Antropologia. No decorrer do desenvolvimento das Relações Inter-nacionais como campo de estudo surgiram debates um tanto quanto pragmáticos, os quais visavam captar as la-cunas e serem variações das teorias que acabavam não considerando como relevantes ao estudo a área para além das teorias clássicas e já consagradas (realismo e

idealismo). Na passagem da década de 80-90, surge a crítica pós-colonial. Esta crítica é engendrada principal-mente pela Antropologia e pela Sociologia, para servir como deslocamento da agenda eurocêntrica de estudos. Para Murvatan Barbosa, o nascimento da agenda de es-tudos pós-coloniais liga o surgimento desta tradição à trajetória ascensional de certos intelectuais do Terceiro Mundo nas academias europeias e estadunidenses, a partir da década de 1980. O estudo da crítica pós-colonial tem como principais referências o autor indiano Homi K. Bahbha, cuja obra “The Location of Culture”, de 1994, é voltada para os estudos culturais e pós-coloniais, e o palestino Edward W. Said, tendo como principal contribuição “Orienta-lism”, de 1978, obra essa que pretendia desconstruir o discurso colonial a partir da metodologia arqueológica foucaultiana acerca das relações entre saber e poder na modernidade. Ambos os autores trazem grandes con-tribuições para estudos dos discursos assimétricos, da imposição de cultura e das demais consequências dei-xadas pelo colonialismo. As Relações Internacionais no final da Guerra Fria necessitavam abranger suas análises para além do paradigma “conflito e cooperação”, devido à multipli-cidade de fatores que se iniciavam em decorrência do conflito, sendo um deles as descolonizações africanas.

Guilherme Augusto Batista Carvalho – aluno do curso de Relações Internacionais da PUC-Goiás

Ou seja, também poderíamos re-lacionar algo que não é comum a algo estranho, por surgir pouco fre-quentemente. A associação entre a raridade e a estranheza também aparece em outras línguas como no alemão, nas palavras selten (raro) e seltsam (estranho), e ainda vai além associando o estranho a algo maravilhoso, como wunderbar (ma-ravilhoso) ao lado de wunderlich (esquisito). Isto acontece também no búlgaro, língua de origem eslava, em que chuden pode significar tan-to “maravilhoso” quanto “estranho”. Portanto, o que faz com que normal-mente algo estranho em nossa so-ciedade seja visto de maneira nega-tiva? Não poderia ser “o estranho” algo maravilhoso? E afinal, o que faz de um homem estrangeiro? O discurso estigmatizador sobre o que representa o estrangeiro faz com que a individualidade destes imigrantes se perca dentro de deter-minada sociedade, e que estes se-jam vistos não através de suas qua-lidades, mas sim através de ideias pré-concebidas. Tal fato se agrava quando os imigrantes se encontram em determinado país de maneira “ilegal”, quando as suas ações, por mais comuns que possam ser, são vistas como ilícitas. Este discurso, o qual pode ser percebido diariamen-te nos noticiários, faz parte de um fenômeno em que os imigrantes são vistos como uma ameaça ao Estado receptor, sendo estes indivíduos in-desejados tanto pelo Estado como pela sociedade em si.

Contudo, a atribuição de um sentido negativo ao que é estran-geiro vai contra a própria realidade humana em diversos sentidos: 1) mi-grar é um direito e representa algo natural na história da humanidade; 2) todas as sociedade têm algo a contribuir umas às outras, principal-mente em termos culturais; 3) todos nós somos estranhos à nós mesmos. Segundo Julia Kristeva (1994, p.201), “O estrangeiro está em nós. E quando fugimos ou combatemos o estrangeiro, lutamos contra o nosso inconsciente - este ‘impróprio’ do nosso ‘próprio’ impossível.” Ou seja, como defende Freud, é raro que um imigrante seja tão “ameaçador” ou provoque as mesmas angústias que suscitam fatos normais da vida hu-mana, como a morte. Indo além do que é estra-nho, raro e maravilhoso, seja algo ou alguém que não pertence a de-terminado contexto, pode-se che-

gar ao absurdo, que não se encon-tra separadamente no homem ou no mundo, mas na sua existência em comum. O absurdo encontra-se no desejo por clareza do homem e na sua incapacidade de entender e compreender o mundo. Os homens estão jogados no absurdo, jogados na arbitrariedade de se entender o sentido da existência. E se não se possui todas as respostas da vida humana, não seria ela mesma estra-nha aos indivíduos?! Ou não seriam os indivíduos estranhos a eles mes-mos?! E se consideramos a vida uma mera passagem, não seriam os ho-mens estrangeiros? Assim, pode-se concluir que, se todos são estrangei-ros, não existem estrangeiros.

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O VISTO

Após o inicio do descongelamento das tensões, houve espaço para se pensar além das possibilidades de um conflito iminente. Assim, abriam-se os leques nos estudos sobre centro-periferia, visando dar respaldo a algumas temáticas antes nem pensadas como relevan-tes. Sendo assim temos o pós-colonialismo como um es-tudo complementador para diversas áreas das humani-dades, mas em especial para as Relações Internacionais, em suas consequências. As Relações Internacionais analisavam, em relação à colonização, as tipologias geopolíticas e fronteiriças, a preocupação com a guerra e a ampliação do poder, mas negligenciavam suas consequências sociais e cul-turais. Os estudos pós-coloniais trazem análises sobre as colonizações presenciais (estatais), e também da colonização cultural, e é exatamente aí que temos um “casamento” entre a teoria e empirismo, como também entre Relações Internacionais e pós-colonialismo. Apesar de ser uma teoria extremamente recente, o pós-colonialismo tem sido bastante utilizado. Após o início da multilateralização do sistema internacional, ou-tros movimentos e relações têm ganhado projeção. O estudo das relações sul-sul tem sido prova desta virada de agenda de estudos internacionais, em que universi-dades de países antes denominados coloniais iniciaram o aprofundamento em seus estudos nos mais diversos temas. Com as descolonizações, surgiram questões de gê-nero, identidade e separatismo. Segundo Bruno Carva-lho, “a questão da identidade nacional, especialmente, torna-se problemática, sendo papel do intelectual mos-trar que as fronteiras refletem um objeto construído, por vezes inventado, o que implica contestar suas ima-ginações binárias e estáticas”. Os estudos sobre terro-rismo utilizam-se do pós-colonialismo para nele buscar o cerne das questões históricas, culturais, econômicas e sociais que geraram o grupo/movimento terrorista. O pós-colonialismo também tem se relacionado com es-tudos de movimentos emancipatórios e de busca pela democracia, como o da Primavera Árabe, suas razões e suas consequências, assim como mostra Celso Pacior-nik: “Com exceção de nações históricas como o Egito e o

Marrocos, a maioria das outras é formada por criações artificiais, produtos do colonialismo europeu que juntou tribos e etnias diferentes em Estados unitários que só conseguiam se manter através de um Estado autoritá-rio”. Através dessa infinidade de temas profundos (em to-das as áreas do conhecimento) para serem tratados no “casamento” entre pós-colonialismo e Relações Interna-cionais, é claro quais desafios são postos. As experiên-cias empíricas estão a todo vapor. Processos históricos se desenrolando, surgimento de movimentos transna-cionais que têm seu cerne em questões culturais e colo-niais ainda do século XIX (e até mesmo antes) e que tem impacto direto em diversos fatores da vida acadêmica ao redor do mundo por provocar incertezas e dificuldades na leitura dos processos apenas por questões políticas, econômicas e militares. Talvez a maior dificuldade da junção entre Relações Internacionais e pós-colonialismo esteja justamente ai, na negligência de mais fatores. O desenvolvimento dos fatores tem levado ao desenolvimento metodológico e científico desta afini-dade entre pós-colonialismo e Relações Internacionais. Os problemas da aplicabilidade de uma na outra, em ar-tigos, trabalhos monográficos, dissertações e teses, têm se concentrado nos distanciamentos linguísticos e na dificuldade de se superar a literatura eurocêntrica (ain-da mais utilizada para ler os processos internacionais). O sistema internacional tem mostrado que existe a ne-cessidade de se interpretá-lo de diversas formas. Sendo assim, o que nos resta questionar é se este debate tem de fato condições para se sustentar, uma vez que as op-ções metodológicas de uso e agendas de pesquisa exis-tem, porém as incertezas do uso se conservam devido ao pragmatismo da área das Relações Internacionais, a qual tem ainda o Realismo como seu principal expoente. O caminho para o aprofundamento das relações entre as duas está traçado, resta saber se ele terá continuida-de e se a agenda se ampliará com o decorrer do tempo.