o viajante - perse.com.br · homem só é feliz fazendo o que quer, quando quer e onde e como quer....
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Dedicatória
A meus pais, como prestação de contas
A meus filhos, como herança
A minha esposa, como dedicação
A Claudemir Montoni (in memoriam) e Antônio Afonso de
Toledo (in memoriam), como testemunho
A todos os meus alunos, como farol
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I
Por onde andei, ao longo dos meus longos dias,
tenho ouvido gente a falar-me da felicidade. Este homem que
habita estas terras resume a felicidade a uma pequena casa,
uma boa esposa e muitos filhos, numa rotina eternamente
simples e confortável; este outro, em ter por satisfeitos todos
os seus desejos, grandes ou pequenos; outro, ainda, em
trabalho plenamente realizado; e aquele, que vive além das
montanhas do oeste, pouco se importa com ela, sequer pensa
nisso, basta-lhe estar vivo.
Todos estão certos ao se considerarem felizes, e
possível e provavelmente errados se consideram que um
homem só é feliz fazendo o que quer, quando quer e onde e
como quer.
Mas o que quer o homem?
Tu, se te sentes feliz ao longo das horas de
embriaguez, deves correr ao botequim mais próximo e gastar
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todo o teu dinheiro em muitas e fartas doses de aguardente
até que alcances a tua embriaguez e a tua felicidade.
Se teu irmão alcança a felicidade banhando em
sangue a sua espada, é bom que mate; e que mantenha a
morte sempre viva e vibrante em suas mãos.
Tu, porém, não concordas com os assassínios de teu
irmão, pois te fazem infeliz, e lhe dizes:
- Meu irmão, há muito que te tenho como amigo e,
tu bem o sabes, o que mais desejo é ver-te sempre em júbilo e
longe das preocupações e conflitos da alma. Por isso tenho
suportado em silêncio, durante toda a minha vida, as mortes
que carregas nas tuas mãos e nas tuas costas, e todas as que
ainda hás de levar contigo pelo caminho que percorres. Tenho
até, por muitas vezes, apoiado o teu modo de agir, em nome
da tua felicidade.
“Mas eis que meu coração já não suporta mais os
teus atos e meu Deus se envergonha do que fazes. Sinto nojo
da tua espada e do sangue que nela apodrece, cujo fedor
sinto até as entranhas de minhas narinas. A cada reencontro
contigo ouço o clamor dos entes amados da tua vítima,
desesperados, chorosos, saudosos e infelizes.”
“Aquele que mataste ontem tinha esposa e filhos e
era amado; anteontem mataste uma criança e seus pais estão
a maldizer o teu nome; semana passada foi uma mãe, e seus
filhos rogam por vingança...”
“Tua felicidade não vale tal preço. É necessário que
acabes de vez com essa matança vã. Estás a nos fazer
infelizes, a mim e ao meu Deus.”
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Teu irmão, entretanto, te diz:
- Meu irmão, nós somos um só, fruto do mesmo pai e
da mesma mãe; o mesmo seio que te amamentou, também a
mim alimentou; e eu nada faria que te pudesse magoar, pois
meus olhos nada veem além da tua completa felicidade... E
como és feliz na tua embriaguez eu mesmo, muitas vezes,
presenteei-te com tonéis dos melhores vinhos que o dinheiro
pode comprar...
“Mas nossos pais estão a chorar por ti por causa da
loucura que te advém da embriaguez. Passam noites e noites
insones temendo pela sorte da tua esposa e dos teus filhos,
que são obrigados a presenciar o terrível espetáculo da tua
chegada ao lar, ao mesmo tempo em que veem diminuir a cota
diária do pão para que tenhas dinheiro suficiente para te
embebedares.”
“Urge que abandones esse vício, e logo. Não é por
mim apenas que falo, mas por teus filhos, por tua esposa e
por nossos pais. Estás a fazer-nos infelizes, a todos.”
Acontece, então, que ambos vos recolheis à solidão,
tanto tu quanto teu irmão, na solenidade de um templo ou
na serenidade de um campo, para meditar sobre as vossas
felicidades e as infelicidades alheias, sempre pensando,
pensando e pensando...
Tu sentes a dor da esposa, dos filhos e dos pais, e teu
irmão sente o peso das palavras do irmão e do Deus. A
felicidade de ambos já não é felicidade, é guerra. Guerra de
almas. Dentro de vós, uma alma deseja a felicidade pura e
simples enquanto outra não quer a infelicidade alheia; mas
outra, ainda, quer abandonar a consciência, outra quer
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esquecimento do que foi ouvido, outra rejeita verdades, e
outra as quer impor.
E o que fazes então, tu que te embriagavas?
Ai, eu bem sei o que fazes...! Acorres nervosamente
ao mesmo botequim na esperança tola de encontrares a ti
próprio outra vez...! Tola, porque cada copo de aguardente
que sorves contém uma lágrima da tua esposa; tola, porque
cada rosto que te cruza o olhar parece ter a mesma expressão
do rosto do teus filhos; tola, porque o botequim já não é mais
o mesmo... Tola, porque tu já não és mais o mesmo. Ouviste
as palavras do teu irmão e não as podes rejeitar ou fingir que
não existem porque foram lançadas ao ar, como os ventos que
movimentam embarcações... E tu és embarcação, e palavras
são ventos... Palavras te impelem a navegar e teu pobre
raciocínio nada pode contra elas, se o quiseres usar como
âncora... Irás a pique.
Não tentes te apegar à tua passada felicidade, nem
queiras obrigar o passado a voltar à tua mente! A
embriaguez alegre já é perdida, o momento se foi, agora não
passa de ilusão! Tu te transformaste, alguma coisa mudou
em ti, não és mais o mesmo, não és mais o que eras nas
antigas noites nos bares! Tu, agora, és apenas um covarde
tentando voltar ao teu patético e pacato passado quando
eras feliz por seres ignorante das desgraças que causavas!
Maldizes a verdade que ouviste irromper da
garganta do teu irmão e o amaldiçoas também, a ele, que te
abriu os olhos, que te iluminou o que tua escuridão ocultava,
que te fez ver o quão errônea era a tua ideia de felicidade e
que te deixou assim, tonto, sem saber realmente o que ela
realmente é. Não, não és mais o mesmo. Não és o mesmo e
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julgas-te infeliz por sabê-lo. Ausência de conhecimento sobre
ti próprio, ausência de rumo a seguir...! Isso te fende e te
deprime...!
És um estúpido com medo da transformação
inevitável.
Mas eu, que caminho por desertos e geleiras, vales e
montanhas, pântanos e florestas, e que do alto dos meus
calcanhares faço vir à tona o coração dos homens, sei que
não sabes o que é a felicidade e nem quais são os teus desejos.
Lembra, já foste feliz, e com a mesma intensidade,
nas brincadeiras de ciranda e nos bailes do colégio, nas
manhãs tranquilas do campo e nas noites efervescentes das
cidades, na casa das prostitutas e na cama da tua esposa; e
amanhã, provavelmente, serás feliz de outra maneira em
qualquer outro lugar, de alguma outra forma... Inclusive na
morte, se esta vier a libertar-te das dores de algum intenso
sofrimento.
A cada minuto da tua vida foste feliz de um modo
diferente e independente dos teus desejos. Vieste a descobrir
a felicidade quando ela já ia longe no tempo. Quando
brincavas de roda vestias as roupas do teu pai sonhando usá-
las algum dia, e hoje tu sonhas com os tempos da tua
infância suspirando de saudades... Por isso não me venhas
com os teus desejos medíocres e tuas lamentações imbecis
sobre felicidade e infelicidade! Nada sabes a esse respeito.
Sentes apenas desejos e achas que teu querer resume-se a eles.
Não sabes o que queres, sabes apenas dos desejos que dizes
ter.
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Mas eu vou fundo no teu coração e sei que és
estúpido o suficiente para creres em felicidades e
infelicidades, e por isso imponho-te: “Encontra-te, antes de
pensares sobre tais coisas!” Tuas pequenas e variadas
felicidades ao longo da existência não passam de degraus,
simples estágios do teu desenvolvimento, meros meios para o
teu encontro contigo mesmo, e fazes enorme besteira ficando
a chorar pela destruição de qualquer uma delas.
Encontra outra.
Passa logo para o próximo degrau.
Tu, que agora passas longo tempo no costumeiro
botequim, tentando ver na embriaguez de hoje a mesma
alegria que viste ontem, afasta-te logo daí e volta para a tua
casa, para a tua esposa e para os teus filhos, pois não és mais
feliz na embriaguez. És agora um covarde tentando
inutilmente te apegares ao que o coração rejeita e o cérebro
quer ressuscitar, estando tu entre um coração e um cérebro
que tentam conciliação. Pretendes o impossível... Restam-te
agora, apenas, uma guerra entre as várias almas que em ti
residem e uma dúvida que te foi colocada na cabeça pelo teu
irmão. Tua felicidade não existe mais, não como a
vislumbravas através dos teus pobres desejos. Sobe mais um
degrau e descobrirás a felicidade do lar, da esposa e dos
filhos. Essa será também destruída algum dia, por um filho
canalha ou por uma esposa infiel. Mas continua subindo. De
degrau em degrau descobrir-te-ás a ti mesmo e só então
saberás da tua verdadeira felicidade, porque saberás o que
realmente queres, deixando de lado desejos que são vãos.
Cresce.
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Passa logo para o próximo degrau.
Repara, tu nem sabias que eras feliz brincando de
ciranda enquanto sonhavas ser adulto, e hoje tu suspiras,
nostálgico, saudoso da criança feliz que foste outrora...
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II
Atravessei o pequeno istmo que faz fronteira com o
reino do norte, o qual, dizia-se, era muito avançado e cujos
progresso e riqueza a todos maravilhavam. Fui ter com o
dono da propriedade imediatamente seguinte a fim de pedir-
lhe autorização para montar meu acampamento em suas
terras.
― De onde vens? ― perguntou-me ele.
― De todos os lugares e de lugar nenhum.
― De que nação tu és?
― Todas. Sou viajante.
― Ah! Tu és membro da Ordem dos Viajantes!
― Não, não sou.
― Qual é tua religião?
― Não tenho nenhuma.
― Tu exerces, então, o mesmo ofício que eu e,
portanto, pertences também à minha corporação...!
― Não sei qual é o teu ofício, e nem faço parte de
corporação alguma.
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― Como queres, então, fazer teu acampamento em
minhas terras? Não pertences a ordem alguma que possa pelo
menos indicar-me o que pensas e em que acreditas; não vives
num só lugar, não sei de que nação ou reino vieste, pareces
não ter nada em comum comigo, nem fé e nem ofício, e ainda
queres autorização para acampar em minha propriedade?
Como posso confiar a ti um pedaço de minhas terras se não
sei quais as leis que te governam?
Calei-me paciente enquanto o ouvia e a introspecção
guiou-me pelos caminhos do meu próprio pensamento...
Ó, estúpido...! Tua ignorância transborda para além
dos limites do teu corpo!
Julgas poder confiar em alguém pelo simples fato de
ser esse alguém membro de alguma organização invisível? Tu
não confias no homem e quer confiar em algo que é fruto
dele?
Ah, eu sei o que pensas saber...!
Já vi homens caminharem lado a lado, ao mesmo
ritmo dos passos, cabisbaixos e sem trocar palavras...
Subitamente, um vê no outro um sinal, ou um gesto, ou um
olhar, ou um símbolo qualquer que o identifica como
pertencendo a uma mesma instituição, ou a uma mesma
nação, ou a uma mesma corporação, ou a uma mesma seita,
ou a uma mesma ordem... E de pronto a situação se altera!
Começam a tagarelar como se fossem velhos amigos, na
crença de que algo os une! Ambos são judeus, ou são
ferreiros, ou são cristãos, ou são doutores, ou são
divorciados, ou são pais, e acham que isso os aproxima um do
outro! Se não vislumbrassem o sinal, o gesto, o olhar ou o
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símbolo continuariam ambos em suas respectivas passadas
solitárias, cabisbaixos e sem trocar palavra... E nunca
descobririam um no outro o amigo, o camarada, o
companheiro de percurso!
Tolo é o que és, se acreditas nessas coisas! Queres
encontrar nas organizações a unidade dos homens quando
deverias, antes, encontrar a unidade no homem. Vês apenas
uma de suas almas, a que ele diz ser a sua unidade, que ele
diz ser a imagem de si, de suas leis, de suas crenças, de seus
valores, de seus objetivos, de seus desejos...!
Mas ainda far-te-ei entender que são apenas desejos
o que chamas de vontade...
Queres que o ferreiro se una ao ferreiro, que o cristão
se associe ao cristão, que os divorciados se agreguem e que os
pais se reúnam!
Esqueces que o ferreiro pode ser também o cristão, o
pai e o divorciado, e não é dividindo as várias almas de um
homem e ajuntando-as em grupos de outras almas de outros
homens que alcançarás a unidade do homem. Chega o dia em
que o ferreiro conflita com o cristão, que por sua vez conflita
com o pai, que discorda do divorciado que discorda do
ferreiro...
E eis o que restará do homem, então: fragmentos,
cacos desordenados originários de uma guerra entre almas,
um espólio de humanidade.
Podes dizer que os desejos do ferreiro são
incompatíveis com os desejos do cristão, que são divergentes
dos do pai que são inconciliáveis com os do divorciado; podes
dizer ser necessário que o ferreiro se una ao ferreiro, que o
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cristão se una ao cristão, que o pai se una ao pai e que o
divorciado se una ao divorciado, para que o ferreiro lute pelo
ferreiro, que o cristão lute pelo cristão e que o pai lute pelo
pai, se quiserem subsistir e prosperar.
E eu te direi: ótimo para ti! Minhas congratulações!
Unes boa parte dos homens, que é o que querias! Tens agora
todos os homens agrupados e organizados segundo as tuas
pobres convicções! Alcançaste o teu objetivo! A humanidade
está unida! Os homens estão unidos!
Mas o homem não está.
O homem se encontra na mais completa desunião,
fragmentado, disposto aos pedaços. Não sabe o que é, não se
encontra, não tem lugar em si, pois insistes em que ele se
divida, pondo cada face sua num determinado lugar, lugar
esse que te parece o mais adequado. E é por isso que amas a
humanidade mas não consegues amar os homens; tuas
organizações, tuas ordens e tuas corporações são falhas
porque captam apenas partes de um homem.
E o homem ou é inteiro ou não é nada!
Se hoje crias organizações para os ferreiros, os
cristãos e os pais é porque teu raciocínio, teu pobre
raciocínio, não pode enxergar além de coerências e
incoerências.
É certo, os desejos do homem são incoerentes. O
ferreiro deseja o trabalho, o pai deseja o filho, o divorciado
deseja a solteirice e o cristão deseja o messias. E eu sou
forçado a concordar contigo quando dizes ser incoerência o
ferreiro desejar o messias, o cristão desejar a forja e o ferreiro
desejar a solteirice.